(Oliveira, 2006) 14
(Oliveira, 2006) 14
(Oliveira, 2006) 14
2006
Resumo: O objetivo deste artigo é discutir o fenômeno do futebol nas aulas de educação física. O trabalho é fruto de
observações sistemáticas feitas numa escola pública de Campinas-SP, na qual, durante quase um bimestre letivo,
acompanhei o cotidiano das aulas de educação física de uma 8ª série. Pude observar que o futebol, para além de prática
privilegiada, foi palco de preconceitos e desigualdades. Estes fatos levaram-me à compreensão de que os alunos, ao
compreenderem o “outro” numa visão estereotipada, acabaram rotulando-o como inferior, o que, conseqüentemente,
não permitiu um diálogo em pé de igualdade entre os pares. Assim, penso ser necessária a compreensão do “outro” a
partir da alteridade, o que, para além de relevante, torna-se necessário.
Palavras-chave: Futebol. Educação física escolar. Cultura e diversidade cultural.
The football in Physical Education classes: between 'dribbles', prejudice and inequality
Abstract: The aim of this paper is to discuss the phenomenon of football in the Physical Education classes. The work
springs from systematic observations carried on at a public school in Campinas, SP, in which, during almost a full
school bimester, I followed the daily activities of an 8th grade group in their Physical Education classes. I could
observe that football, beyond a privileged practice, was a stage for prejudice and inequality. Such facts drove me to the
comprehension that the students, when understanding ‘the other’ with a stereotyped view, would eventually label her
as inferior, which, consequently, did not allow a dialog on equal basis between them. Thus, I believe it necessary to
understand ‘the other’ within the principle of alterity – which, more than relevant, becomes then a must.
Key Words: Football. Physical education at school. Culture and cultural diversity.
falas, interpretar significados, enfim, filtrar o dito e o não dito As aulas de EF obedeciam a uma rotina bastante
pelos atores sociais no que se refere ao futebol nas aulas de conhecida. Apesar das aulas serem mistas, a professora
EF. dividia a turma por sexo. Segundo ela, era mais fácil trabalhar
com grupos homogêneos, pois, tanto os meninos quanto as
O cotidiano das aulas de Educação Física: seus
meninas, sentiam-se mais à vontade. Também reportou-se ao
atores e suas práticas
aspecto dos meninos serem mais fortes que as meninas,
A escola não é algo à parte da vida dos sujeitos, mas sim,
havendo a possibilidade destas se machucarem. Segundo
parte do projeto pessoal destes, que, ao depositarem nela
Saraiva (2005), o cotidiano das aulas de EF ministradas nas
aspirações diversas, fazem com que a mesma tenha
redes de ensino particular e pública, ainda hoje, é marcado
legitimidade social que a valorize como instituição
por dificuldades e resistências à prática conjunta entre
formadora. Segundo Gusmão (2003), a escola é um espaço de
meninos e meninas, tanto por parte dos alunos quanto dos
sociabilidades, de encontros e desencontros, buscas e perdas,
professores.
descobertas e encobrimentos, de vida e negação da vida.
Ao dividir a turma, após um alongamento inicial, a
Trata-se de um espaço sócio-cultural.
professora ficava com um grupo na quadra coberta, para a
Compreender a escola como espaço sócio-cultural implica
aula de voleibol, e mandava o outro grupo para a quadra
o seu entendimento na ótica da cultura, que, sob um olhar
externa jogar futebol. Ao soar o sino da Escola, que
mais denso,
sinalizava o término da aula, havia a inversão dos grupos.
[...] leva em conta a dimensão do dinamismo, do fazer-
se cotidiano, levado a efeito por homens e mulheres, Curioso notar que apesar do futebol ter sido contemplado
trabalhadores e trabalhadoras, negros e brancos, como conteúdo único de um bimestre, ainda se encontrava
adultos e adolescentes, enfim, alunos e professores, presente nas aulas de todo ano letivo. No entanto, a atenção e
seres humanos concretos, sujeitos históricos, presentes intervenção da professora ficavam restritas ao voleibol,
na história, atores na história. Falar da escola como um
deixando o “jogo” de futebol transcorrer como mera atividade
espaço sócio-cultural implica, assim, resgatar o papel
dos sujeitos na trama social que a constitui, enquanto recreativa, ou de espera. Questionada sobre o porquê da
instituição (DAYRELL, 1996, p.136). ênfase no futebol, a professora disse que se tratava de uma
Essa compreensão remete ao entendimento de que ao se “paixão dos alunos” e que estes reclamariam se não o
pensar numa prática escolar cotidiana, é preciso levar em praticassem. “Eles só querem saber de futebol” (professora).
conta as aspirações dos sujeitos envolvidos com as práticas, Eis aí uma obviedade, a qual será discutida nas próximas
por isso é que, antes de falar sobre o futebol nas aulas, faz-se linhas, não no sentido de apresentar respostas prontas e/ou
necessário contextualizá-lo. corretas sobre o tema, mas sim de possibilitar acesso a uma
A turma da 8ª série era composta por 36 alunos, sendo 15 possível compreensão, pois, segundo (1989, p. 39), “A
meninos e 21 meninas, com idades entre 14 e 17 anos. Como análise cultural é intrinsecamente incompleta e, o que é pior,
qualquer outra turma da escola, tinha duas aulas de EF por quanto mais profunda, menos completa”.
semana, com duração de cinqüenta minutos cada uma. A
O futebol
critério da professora, estas estavam reunidas num só dia.
Segundo a professora, era melhor trabalhar com duas aulas Logo nos primeiros dias de observação notei que a
reunidas, pois cinqüenta minutos era pouco tempo. organização da aula de educação física - divisão de práticas -
Como já dito, estive na escola por quase um bimestre, não iria ser seguida. Havia resistência por parte da maioria
especificamente o terceiro (meses de agosto e setembro de dos meninos em praticar o voleibol, bem como da maioria das
2005). Neste, o conhecimento planejado para abordagem nas meninas em jogar o futebol. Assim, para as meninas,
aulas era o voleibol. Das 16 (dezesseis) aulas previstas para o historicamente, mais dóceis e frágeis foi reservada,
bimestre, estive presente em 12 delas (seis “aulões 1 ”). No predominantemente, a prática do voleibol, e aos meninos,
planejamento da disciplina, um esporte era contemplado a mais “ágeis” e “fortes”, o futebol.
cada bimestre, conforme explicitado a seguir: 1º bimestre: Pode-se entender o fenômeno da “quase” exclusividade da
Handebol; 2º bimestre: Basquetebol; 3º bimestre: Voleibol, e; prática do futebol pelos meninos nestas aulas a partir da
4º bimestre: Futebol. assertiva de Moura (2005), o qual afirma que o futebol no
Brasil é uma “área reservada masculina”. O autor nos diz que,
1
As duas aulas da semana eram reunidas num só dia, uma seguida da outra - o fato do futebol, por ser um esporte de contato, está
uma hora e quarenta minutos de aula (aulão) ao invés de cinqüenta minutos
em dois dias distintos. Segundo a professora, essa era uma estratégia de uso totalmente ligado ao estereótipo masculino, altivo e
do tempo pedagógico que vinha dando certo.
302 Motriz, Rio Claro, v.12, n.3, p.301-306, set./dez. 2006
O futebol nas aulas de Educação Física
fisicamente forte, contrapondo-se ao feminino, representado seu sexo. Tolera-se mais a expressão de afeto em
como tímido, frágil e dependente. mulheres do que em homens, e se estimula o menino a
revidar um ataque físico, ao passo que provavelmente
Nesse sentido, pode-se entender o porque do papel se punirá a menina se tiver a mesma iniciativa
coadjuvante das mulheres no universo futebolístico brasileiro (ROMERO, 1990, p.62).
e nas próprias aulas de EF. No caso desse trabalho, em Tanto na EF quanto na educação escolar e familiar,
nenhum momento, as meninas jogaram futebol junto com os reflete-se, ainda, um viés sexista que tenta transformar a
meninos, e vice-versa. Tal fato pode ser entendido a partir do mulher em um ser submisso, obediente e dócil (SARAIVA,
estudo de Silva (2005) que, ao explicitar sobre a prática do 2005). Tanto é compreensível que, neste estudo, as meninas
futebol nas aulas de EF, enfatiza a forma com que essa prática não esboçaram maiores reivindicações quanto ao fato dos
foi conduzida por um professor. Este, ao dividir a turma em meninos, em quase todo o bimestre, monopolizarem a prática
meninos e meninas, argumentava que a prática do futebol do futebol. Ser menina ou menino nas aulas de EF da 8ª série
feita em conjunto era fator limitador para o desenvolvimento, pesquisada, determinou, de certa forma, o tipo de atividade
principalmente dos meninos. Segundo Silva (2005, p.2300), o que iriam realizar. Apesar da preocupação da professora com
professor afirmava: a participação de toda a turma nas aulas, estas se deram em
Eu acho que essa coisa de os dois sexos fazerem aulas função de uma estereotipia associada à suposta “natureza”
juntos limitou demais os meninos. O menino nesta masculina ou feminina.
idade quer mostrar o máximo de si e com uma menina
na frente dele, ele limita suas ações e não consegue um Entretanto, mesmo com a monopolia do futebol pelos
bom desenvolvimento se ele for exigido ao máximo. meninos, as meninas conseguiram jogar futebol em três
Percepções como esta reforçam estereótipos e fomentam oportunidades, nas aulas por mim observadas. Porém, parecia
preconceitos e desigualdades de oportunidades. Ora, só pelo que a compreensão dessa prática era relegada ao plano
fato de serem meninas não podem ter acesso à prática? Qual inferior, de um futebol de menor qualidade. Até as próprias
argumento legitima esse entendimento? meninas que jogavam, no expressar de gestos e sorrisos,
Em Daolio (2003), há a explicitação de que existe uma atribuíam esse valor à prática.
construção cultural específica do corpo masculino e do No entanto, não se trata de fato isolado. Apesar da
feminino. O mesmo afirma que, sobre um menino, mesmo crescente popularização do futebol feminino no Brasil, e das
antes de nascer, recai toda uma expectativa de segurança e bem-sucedidas participações da seleção brasileira feminina de
altivez de um macho que dará seqüência à geração. Chuteiras futebol em competições internacionais, como na Copa do
são penduradas na porta do quarto da maternidade, camisas Mundo e Jogos Olímpicos, esta prática ainda não logrou
de clubes de futebol são presenteadas, anos mais tarde o status no cenário nacional. Até as próprias locuções
menino começa a brincar na rua, pois, segundo a mãe, se ficar esportivas de tal modalidade, ao serem narradas em rede
em casa, só atrapalha. Em relação às meninas, quando nacional, não fogem a comentários preconceituosos e
nascem, pairam toda uma delicadeza e cuidados. As meninas banalizados tanto das atletas como da prática em si.
ganham bonecas em vez de bolas, utensílios de casa em Também não é raro ouvir comentários das próprias
miniatura (fogão, cozinha, geladeira etc.) e, além disso, são mulheres brasileiras que, nas ruas, escolas, universidades e
estimuladas, todo o tempo, a agirem com delicadeza e bons outros espaços, afirmam, em tom generalista e igualmente
modos, bem como ajudarem suas mães com os serviços preconceituoso, que “toda” mulher que joga futebol é lésbica.
domésticos em casa, a fim de se tornarem boas esposas e Seria essa uma verdade?
mães (IDEM). “Estes hábitos corporais masculinos e
Há alguma explicação que relacione a sexualidade do ser
femininos vão, ao longo do tempo e dependendo da
humano com sua opção esportiva? Negadas tais questões,
sociedade, tornando um sexo mais hábil do que outro em
pode-se afirmar que à mulher ainda está destinado o papel de
termos motores. No caso brasileiro, os meninos tornaram-se
frágil e dócil? A prática do futebol pelas mulheres representa,
mais habilidosos e as meninas, ‘antas’” (p.111).
realmente, uma modalidade inferior?
Na aquisição do papel masculino ou feminino,
incentiva-se mais a independência no menino, Devide (2005), comentando sobre o esporte de alto
recompensando-o por esse comportamento, ao passo rendimento, afirma que, pelo fato da masculinidade ter se
que não se estimula a menina a esse mesmo transformado em norma na performance esportiva,
comportamento. Do menino não é tolerado que comparações e avaliações dos resultados femininos são feitas
expresse sua tristeza na derrota de um jogo através de
gerando interpretações preconceituosas e definindo as
lágrimas, pois “homem não chora”; já das meninas se
aceita, porque é um comportamento “adequado” ao mulheres como esportistas de segunda classe, “[...] uma vez
Motriz, Rio Claro, v.12, n.3, p.301-306, set./dez. 2006 303
R. C. Oliveira
que nunca serão superiores aos homens” (p.45). Tal fronteiras que separam, rigidamente, os grupos sociais pelas
afirmação fornece pistas para a compreensão do porque o suas características visivelmente diferentes, o que acaba por
futebol jogado pelas meninas da 8a série não foi, digamos, escamotear toda uma realidade social e desconsiderar o
“interessante”. processo dinâmico da cultura.
No entanto, não foi somente o fato de ser mulher que De acordo com Gusmão (2003, p. 91),
limitou o acesso ao futebol. Para alguns meninos, essa prática [...] a cultura no interior de uma realidade humana é
ficou distante de ser vivenciada. Dentre os motivos que pude sempre dinâmica, não é fechada ou cristalizada como
perceber, destaco três, a saber: habilidade com a bola nos pés, um patrimônio de raízes fixas e permanentes. A
cultura possui fronteiras móveis e em constante
ou melhor, a “falta dela”; por não inclusão/afinização no expansão. Tampouco é conjugada no singular, já que é
grupo que monopolizava a prática; ou, simplesmente, por não plural, marcada por intensas trocas e muitas
serem “bem vistos” pelos colegas, como por exemplo, o caso contradições nas relações entre grupos culturais
de um menino, excluído da prática por sua aparente diversos e mesmo no interior de um mesmo grupo.
afeminização. É por isso que, nesse estudo, a não oportunidade de certos
Tais fatos denotam certa cristalização de concepções grupos à prática do futebol evidenciou processos de
preconceituosas e “engessadas” que, ao serem encenadas preconceito e desigualdades, pois não se enxergou o outro
neste estudo, adquiriram dimensão de banalização do “outro”, como um diferente, mas sim um inferior. Fato esse que
um “outro” que, não contemplando certas peculiaridades, foi imputou não só a existência de rótulos e marcas, mas também
visto como fora do modelo para compor o cenário do futebol. a violação/estereotipação da subjetividade dos sujeitos.
Em relação à habilidade com a bola nos pés, o padrão deu- Quando as diferenças culturais são consideradas numa
perspectiva estereotipada, focaliza-se apenas as
se pelas técnicas observadas no esporte de rendimento. manifestações externas e particulares dos fenômenos
Qualquer técnica empregada nos jogos que aconteceram, que culturais. Deixa-se valorizar devidamente os sujeitos
fugiam ao padrão futebolístico dos grandes astros, foi motivo sociais que produzem tais manifestações culturais, ou
de piada, ou, em alguns casos, de menor participação no jogo não se consegue compreender a densidade, a
desenvolvido. Ou seja, os meninos, ao primarem por uma dinamicidade e a complexidade dos significados que
eles tecem (FLEURI, 2003, p. 24).
técnica do esporte de competição, acabaram por tolher outras
O preconceito e a desigualdade, evidenciados no presente
possibilidades de se jogar o futebol.
trabalho, tiveram gênese na manifestação de certas diferenças
A maneira como os meninos jogavam, ou melhor, as apresentadas pelos atores sociais, não tendo sido
diversas técnicas empregadas por estes nos jogos serviram compreendidas no todo complexo que envolve as relações
para determinar quem jogava mais e quem jogava menos. sociais. O “outro”, visivelmente diferente, representou o
Quem era mais habilidoso, além de galgar maior status, “outro” desigual, tolerado, no entanto, estigmatizado. Não se
participava mais do jogo, o contrário acontecendo para os não considerou, portanto, que a forma como as diversas pessoas
tão habilidosos. Houve aqui compreensão de que a técnica vivem e/ou se expressam, fazem parte de apenas um, dentre
certa é aquela do esporte de competição e a errada, qualquer vários possíveis, padrões culturais.
outra que fuja ao padrão estabelecido.
Todo esse movimento percebido nas aulas remete, de certa
Temos aqui um grande problema, pois, quando se forma, ao momento conflituoso que a própria sociedade
elege/padroniza, seja na escola ou em qualquer outro lugar, contemporânea vive. “Em tempos de globalização,
uma determinada forma de jogar, acaba-se desvalorizando e caracterizado por estreitamento de fronteiras temporais e
inferiorizando determinados repertórios corporais, espaciais, a constatação e o convívio com os diferentes e as
fomentando, assim, o surgimento de preconceitos e diferenças se dão, quase sempre, de forma tensa, para não
desigualdades. O grupo de meninos e meninas que não jogou dizer desigual” (OLIVEIRA, 2006).
“bem” ou não eram tão habilidosos, exerceram papel de
Nesse estudo, o futebol nas aulas de educação física
coadjuvantes ou, em alguns casos, nem chegaram a compor o
revelou ser, para além de mera prática, um fenômeno de
“enredo” da prática encenada.
várias facetas, que (algumas), ao serem evidenciadas aqui,
Segundo Candau (2002), essa é uma realidade muito forneceu a possível compreensão de que há algo mais do que
presente no imaginário da sociedade em geral, que tende a aquilo que é visível/tácito. Ou seja, por trás de algumas
classificar as pessoas segundo atributos considerados obviedades existem outras, mais óbvias ainda, no entanto,
específicos de determinados grupos sociais. Trata-se de uma obscuras aos olhos de quem vê, mas sensível aos olhos de
visão “engessada” de cultura, a qual denota a existência de quem enxerga. Talvez esse seja o grande desafio para a EF
304 Motriz, Rio Claro, v.12, n.3, p.301-306, set./dez. 2006
O futebol nas aulas de Educação Física
em qualquer prática escolar cotidiana: não só ver, mas restringindo os tempos e espaços do “sagrado” futebol para
enxergar. vivência deles próprios; driblaram os não-habilidosos e a
estes imputaram o papel de coadjuvantes.
Considerações finais: nos caminhos da
Ou seja, o drible não era apenas um fato isolado da prática
alteridade
do futebol dos meninos daquela turma, mas traduzia
Delineando o desfecho desse texto gostaria de explicitar
fortemente as características dos mesmos e a forma com que
um fato importante, para não dizer intrigante, da prática do
encaravam as aulas de educação física e seus outros colegas.
futebol nas aulas de EF da 8ª série. Trata-se do drible.
Com isso, conseguiram também driblar a possibilidade de
Desde o início notei que o drible era extremamente trocas com os diferentes, que ao serem estereotipados, não
valorizado na prática do futebol dos meninos da referida compuseram o enredo de suas práticas. Não conseguiram
turma, pois para as meninas esse não era um fator tão driblar seus preconceitos e a desigualdade.
importante. Esse fato me fez recordar uma frase de Dener -
Atualmente, endossar a valorização e o respeito às
jogador de futebol que morreu na década de 1990 em acidente
diferenças na educação e na EF parecem não causar mais
de carro. O mesmo afirmou, certa vez numa entrevista, que,
tanta resistência. No entanto, conforme Oliveira (2006), é
para ele, um drible era mais importante que o gol. “A torcida
preocupante imaginar que este cenário ainda encontra-se
gosta!” (Dener 2 ). Os alunos, de certa forma, davam vida a
permeado por concepções que tangenciam certos ranços
esta afirmação. Cada um que pegava a bola procurava driblar,
naturalistas que, ao serem encenados, alcançam proporções
o que quase descaracterizava um jogo coletivo.
que deflagram preconceitos e desigualdades de
O drible estava tão presente e mostrava-se tão importante oportunidades.
para aqueles alunos que o ato de fazer um gol era menos
Frente ao exposto, entendo que as possibilidades de
festejado que um “lençol 3 ”, na verdade, os gols aconteceram
desconstrução e superação desse quadro – preconceituoso e
com menos freqüência do que os dribles. Frente a esse fato
desigual – residem na alteridade como um caminho possível
questionava-me sobre o porquë dessa característica. O quë
que fomente a valorização do diálogo e da comunicação com
havia no drible que fazia com que os meninos dessem tanta
o “outro”, que, neste estudo, foi um “outro” inferior.
importância a ele?
A alteridade revela-se no fato de que o que eu sou e o
Longe de verdades conclusivas, apenas aproximando-me outro é não se faz de modo linear e único, porém
de uma possível compreensão, passei a entender que o drible constitui um jogo de imagens múltiplo e diverso. Saber
fazia parte da própria característica da turma. De acordo com o que eu sou e o que o outro é depende de quem eu
sou, do que acredito que sou, com quem vivo e por
Daolio (2003, p. 161), quê. Depende também das considerações que o outro
É por meio do drible que o atacante burla a defesa tem sobre isso, a respeito de si mesmo, pois é nesse
adversária [...] O drible nada mais é do que um ato de processo que cada um se faz pessoa e sujeito, membro
esperteza do atacante, que ameaça ir para um lado e de um grupo, de uma cultura e uma sociedade.
vai para o outro, ou ameaça tocar a bola de lado e toca- Depende também do lugar a partir do qual nós nos
a entre as pernas do atônito defensor. Basta olhamos. Trata-se de processos decorrentes de
lembrarmos de Garrincha, que, com suas fintas contextos culturais que nos formam e informam, deles
inesquecíveis, muitas vezes passava por mais de um resultando nossa compreensão de mundo e nossas
defensor deixando-os caídos ao chão. Impossível práticas frente ao igual e ao diferente (GUSMÃO,
pensar num drible de Garrincha e não associá-lo ao 2003, p. 87, grifos nossos).
malandro brasileiro, com seu andar gingado, seu jeito
Nessa perspectiva, o futebol, não só da 8ª série, mas como
maroto e sua atitude esperta para conseguir sobreviver.
Como num drible no futebol, o malandro é aquele que em qualquer outro cotidiano que fosse encenado, deixaria de
tem que dar um jeito para conseguir dinheiro, para estabelecer desigualdades de oportunidades e passaria a ser
levar alguma vantagem, para conseguir, enfim, marcar palco de igualdades de acesso para todos, a partir da
seus gols. compreensão de que as diferentes formas de jogá-lo não são,
Ora, longe de rotular os meninos da 8ª série de superiores ou inferiores, mas sim diferentes. Ao invés de
“malandros” - espertos, talvez -, estes driblaram a professora palco de preconceitos e subjugações, seria palco de nova
no que diz respeito ao conteúdo de voleibol, previsto para compreensão das diferenças e aprendizado com o diferente.
aquele bimestre; driblaram as meninas das suas práticas,
2
Nascido em 02/04/1971 e falecido em 18/04/1994.
3
Também denominado de “chapéu”, trata-se de uma passagem pelo
adversário enviando a bola por cima do mesmo e pegando-a novamente na
frente.
Motriz, Rio Claro, v.12, n.3, p.301-306, set./dez. 2006 305
R. C. Oliveira