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A Carta

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A Carta

Nunca fui do tipo supersticioso. Tão pouco religioso também, pra dizer a
verdade. Apesar da criação católica, nunca acreditei em um ser superior
manipulando nossas vidas. Se tal existisse, por que se importaria conosco,
tão ínfimos? Paraíso ou perdição, tudo balela. Tantas guerras, fome e
sofrimento. O inferno é aqui, já vivemos nele. E talvez a morte seja uma
forma de libertação.
“O que é a vida, senão um acúmulo de dias e conhecimento. Um dia se
vai, outro nasce. A cada volta no ponteiro do relógio coisas são deixadas
para trás e outras chegam. O que é a vida, senão superar os medos, os
monstros que nos abalam, os segredos a serem revelados e os que não
podem ser revelados. O medo do desconhecido, o medo do destino. O que é
a vida, senão erros e acertos, sorrisos e lágrimas, vitórias e derrotas,
abraços e adeus? Pessoas que nos batem a porta e pessoas que nos batem à
porta. A estação de chegada é a mesma da partida.” Adoro esse texto, não
lembro onde li. Provavelmente na internet.
Acordava todo santo dia às três e quarenta e cinco da matina, passava o
café e tostava um pão dormido na boca do fogão. Vestia o uniforme
pendurado na cadeira, já passado de véspera. Detestava sair pra rua
amarrotado, pura vaidade. Partia para mais um dia árduo de trabalho na
fábrica. Odiava aquele serviço e as pessoas daquele lugar, mas era o que
tinha para garantir o sustento da família. Pensamento esse que me motivava
a continuar. Em cada abraço dos filhos, um renovo. E bastava apenas um
sorriso dela para dissipar minha insegurança e frustrações.
O sonho de ser um autor de sucesso tinha ficado para trás há muito
tempo. Já havia tentado e falhado tantas vezes que já perdera as contas.
Ganhar a vida escrevendo livros em um país onde o índice de analfabetismo
funcional atinge níveis estratosféricos? Mas que loucura! Onde eu estava
com a cabeça? Maldito dom inútil pra escrever. Pra que diabos isso serve
afinal? Nascer com veio artístico em família pobre deveria ser proibido por
lei. Isso é coisa pra filho de rico! Eu devia ter aprendido a virar concreto, ou
qualquer outro tipo de serviço subalterno em que gente da minha estirpe
labuta. Mas não, ao invés disso escrevi diversas histórias que ninguém se
importa, e que nunca serão publicadas.
Nascido de pais humildes e família pobre, a vida nunca me foi muito
favorável, muito pelo contrário. Tive uma infância triste e difícil, sonhando
um dia ter e usufruir daquilo que apenas via os outros desfrutarem. Obrigado
a
trabalhar desde cedo, tive um amadurecimento precoce. Anos se passaram,
e a incerteza e frustação diante do futuro tornou-me amargurado e
introspectivo. Ainda assim, conheci o amor e a escuridão em mim tornou-se
suportável por um tempo.
Mas como era possível ela me amar, se eu nada tinha para oferecer? Um
fracassado, correndo atrás de um sonho inatingível. Tantas ideias, porém,
nenhuma dava certo. Você nunca ligou pra isso, mesmo assim jamais
consegui me libertar do desejo latente que jazia adormecido em meu âmago.
A incessável luta em buscar atingir o sucesso. Em minha cega obsessão
quase te perdi, e foi aí que percebi o que realmente importava. Decidi seguir
em frente, determinado em aproveitar cada momento sem neuras e
comparações, sendo grato a cada dia pelas coisas simples da vida.

Um silvo longo e agudo me traz de vota à realidade. Ao toque da sirene


todos cessam seus afazeres. O barulho das máquinas ecoando outrora como
um mantra ensurdecedor, dá lugar agora a apressados e ruidosos passos em
direção ao refeitório. Normalmente sigo igualmente o mesmo ritual todos os
dias, porém hoje excepcionalmente, caminho até o vestiário, troco de roupa
e vou em direção ao portão. O ambiente escuro e sufocante dá lugar a um
clarão libertador. Havia decidido desde cedo que faria algo diferente pra
variar.
Pra fugir da rotina, da mesmice. Almoçaria fora, afinal de contas dava
duro e merecia vez ou outra uma refeição mais digna, além das sobras da
janta em uma marmita requentada. Senti-me vivo, livre das amarras sociais.
Como algo tão simplório pode ter tamanho impacto sobre a psiquê humana?
Somos tão fúteis assim? Hoje envergonho-me enquanto escrevo essas
palavras, ao lembrar do quão tolo e insensato fui. Disperso e alheio em
minhas considerações, mal notei entre os transeuntes alguém que ao longe
atentamente me observava. Depois de um certo tempo me encarando,
finalmente “ele” veio até mim.
Sempre achei que o diabo, se ele existisse, tivesse rabo e chifres. Ou
talvez um aspecto assustador que imprimisse medo em quem tivesse o
desprazer de o encontrar. Todavia lá estava eu diante do tal capeta, ou
Lucifér, como o próprio se apresentou. De aspecto gentil e singelo, porém
imponente, me abordou ali mesmo em plena rua. Me chamou pelo nome e
disse que me observava já a algum tempo, desde a minha juventude pra ser
mais exato. Achei graça e dei de ombros, pensando tratar-se de alguma
pegadinha. Seu semblante permaneceu sério, até ameaçador por um
instante.
Mas depois abriu um largo sorriso e fitando-me nos olhos, disse: “Eu sou
aquele que pode te dar tudo o que você sempre quis. Sucesso, fama e
riqueza. O tão sonhado reconhecimento, e muito mais. Em tom vacilante
respondi que tais coisas não importavam mais para mim, como antes.
“Vai desistir de tudo o que sempre sonhou?”, perguntou-me enquanto
colocava a mão direita sobre o meu ombro. “Chegou a sua grande chance.
No entanto, a escolha é sua. Vai mesmo abrir mão dessa oportunidade?”,
indagou em tom inquisidor. Engoli a seco, enquanto um turbilhão de
pensamentos invadia minha mente numa fração de segundos.
Poderia ser isso verdade? Estaria eu realmente diante do “gênio da
lâmpada”? Seria bom demais pra ser verdade. Resolvi entrar na onda. Mas
como bem sei que nada na vida é de graça, perguntei o que teria que fazer
em troca. “Relaxe bom homem”, disse ele afagavelmente. Aproveite a vida
como você sempre quis. Viva-a intensamente. Basta apenas, dizer “SIM”.
Mesmo não acreditando em nada daquilo, algo nas palavras daquele
homem reascendeu em mim a chama outrora apagada, porém não extinta. E
num ímpeto involuntário simplesmente concordei com ele. No exato
momento em que aceitei a estranha proposta, simplesmente nada de
anormal aconteceu. O clima ameno da tarde de outono continuou imutável,
agradável. As pessoas caminhando normalmente, seguindo em suas vidas, e
eu parado ali esperando que o exótico cavalheiro me dissesse algo.
Ele apenas apertou minha mão e disse: “APROVEITE A VIDA. TE VEJO
DAQUI A DEZ ANOS!” E seguiu caminhando pelo calçadão de pedras
portuguesas, enquanto eu o observava desaparecer na multidão. Sentindo-
me o mesmo de sempre, segui meu caminho de volta para o trabalho, afinal
já tinha passado quinze minutos do horário de almoço. As horas se
arrastaram mais do que o normal naquele dia atípico, enquanto eu
inutilmente tentava entender o que havia ocorrido.
Condução lotada na volta pra casa, todo dia era assim. Em meio ao
empurra-empurra, tento alcançar o celular no bolso da calça, que
insistentemente tocava. “Você não vai acreditar no que aconteceu...”, disse
Isabella ao telefone. “O QUE HOUVE MULHER? TÁ UM CAOS AQUI!”, gritei,
tentando me fazer ouvir enquanto os ambulantes anunciavam seus produtos
aos berros.
Passos apressados me levaram ante o pequeno portão, enquanto com a
mão tateava o fundo da mochila em busca do chaveiro de acrílico. Ao
primeiro som do girar da chave, ela saiu ao meu encontro com um papel
amassado nas bordas, tamanha a rigidez com a qual o segurava. Descalça e
pálida como cera de vela de sétimo dia, com os olhos arregalados e fitos em
mim,
entregou-me o que havia na mão. Uma carta de uma editora endereçada a
mim, onde se lia “GOSTAMOS DO MATERIAL QUE NOS ENVIOU E TEMOS
INTERESSE EM PUBLICÁ-LO. ENTRE EM CONTATO CONOSCO PARA MAIORES
DETALHES.”
Permaneci por alguns instantes ali parado, sem reação. Li e reli a
pequena frase várias vezes sem entender realmente o que estava
acontecendo. “Finalmente aconteceu. Você conseguiu!”, bradava Isabella
eufórica. “Mas como assim?”, indaguei. “Do nada, depois de tantos anos e
tantas tentativas sem resposta?” Eu simplesmente relutava em acreditar.
Isabella falava alto e com mais palavras do que de costume,
empolgadíssima, enquanto punha o prato á mesa. Atônito, eu apenas
observava sem ouvir nada do que ela dizia. Estava longe, distante. Absorto
em meus próprios pensamentos. Nada parecia fazer sentido. Entretanto, ao
refletir sobre os acontecimentos daquele dia me caiu a ficha, levando-me a
uma única conclusão...” SÓ PODE TER SIDO ELE!”

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