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Bioética - Miolo

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Bioética

e Humanização
em Oncologia
Organizador

Marcos Santos
Colaboradores

Bruno Wurmbauer Junior


Camilo Hernan Manchola Castillo
João Paulo dos Reis Neto
Karla Patrícia Cardoso Amorim
Suelen Medeiros e Silva
Talita Cavalcante Arruda de Morais
Tatiana Strava Corrêa
Volnei Garrafa
© 2017 Elsevier Editora Ltda.
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SP Tel: 11 5105-8555
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ou bens como questões de responsabilidade civil do fabricante do produto, de negligência ou
de outros motivos, ou por qualquer uso ou exploração de métodos, produtos, instruções ou
ideias contidas no material incluso. Devido ao rápido avanço no campo das ciências médicas,
em especial, uma verificação independente dos diagnósticos e dosagens e drogas deve ser
realizada.
Embora todo o material de publicidade deva estar em conformidade com os padrões éticos
(médicos), a inclusão nesta publicação não constitui uma garantia ou endosso da qualidade ou
valor de tal produto ou das alegações feitas pelo seu fabricante.
O conteúdo desta publicação reflete exclusivamente a opinião de seus autores e não necessa-
riamente a opinião da Elsevier Editora Ltda.

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO


SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

B512

Bioética e humanização em oncologia / organização Marcos Santos.


-- 1. ed. -- Rio de Janeiro : Elsevier, 2017.
160 p. : il. ; 16x23 cm.

Inclui índice
ISBN: 978-85-352-8901-5
1. Oncologia. 2. Bioética. I. Santos, Marcos.

17-39776 CDD: 616.994


CDU: 616-006
Prefácio
Gustavo Fernandes

“Chamamos de ética o conjunto de coisas que as pessoas fazem


quando todos estão olhando. O conjunto de coisas que as pessoas
fazem quando ninguém está olhando chamamos de caráter.”
Oscar Wilde

Ética e caráter, os desafios da unificação


A humanidade sonha com a imortalidade, mas, na impossibilidade desta, nos con-
tentamos em driblar a natureza com uma extensão substancial de nossas vidas. Na
busca incessante pelo bem mais precioso, nossa espécie vem atravessando gerações
com nítido incremento na compreensão, na qualificação e na extensão da vida. Tais
avanços são, em grande parte, advento da dedicação de uma pequena parcela da
população que se dedica ao que chamamos de ciência.
Os cientistas das mais diversas áreas se defrontam diariamente com complexos
dilemas que surgem especialmente ao testar intervenções com potencial benéfico
a uma determinada população, sem esquecer-se dos também prováveis malefícios.
Além dos infindáveis desafios técnicos, a isenção na avaliação de cada possibilidade
a ser testada é uma tarefa não realizável de forma individual e empírica, carecendo
de métodos e obstáculos que nos blindem de nossos inúmeros vieses na confecção,
na interpretação e na aplicação da ciência.
A determinação e o monitoramento de fronteiras aceitáveis entre vida e morte,
risco e benefício, individual e coletivo, utilitarismo e deontologia são atribuições
daqueles que se lançam a trabalhar no intricado campo da bioética. A cobrança
por resultados rápidos e confiáveis, sem abrir mão da segurança, é uma marca dos
nossos tempos, impondo o singular desafio de lidar com as pressões do mundo por
avanços rápidos e substanciais, sem expor a riscos inadvertidos um indivíduo sequer.
Equilibrar posicionamentos sobre aborto, eutanásia, pesquisa, transgênicos, seleção
genética de indivíduos, dentre outros, são parte do vasto mundo dessa nova área de
estudos. Conhecer os seus princípios parece ser hoje necessidade de qualquer indiví-
duo, pois suas implicações chegam a todas as casas.
Nesta obra bem dividida em nove capítulos, estão expostos, por autores expe-
rimentados acadêmica e clinicamente, os principais temas relacionados à bioética.
Nos capítulos iniciais estão descritos os aspectos históricos em que crassos erros nos
ensinam a sempre duvidar do nosso senso individual, passando pelos fundamentos
que balizam a atividade e a importância de fundamentos como a Declaração Uni-
versal sobre Bioética e Direitos Humanos (DUBDH). Indo além, são discutidos, sem
medo, os irrefutáveis aspectos econômicos e sociais envolvidos no cuidado à saúde,
assim como os aspectos que nos aproximam do ponto central da humanidade, como
a ética na temida fase final da vida e a comunicação de notícias ruins. Além do co-
nhecimento atual e dos aspectos passados, estão sempre presentes no texto os aspec-
tos futuros que nos abrem os olhos para os desafios infinitos do porvir para essa área
tão nova do conhecimento. Dr. Marcos Santos e seus selecionados colaboradores
conseguiram, de forma ímpar, tocar nos pontos técnicos, reflexões para o futuro,
sem esquecer-se da intensa interface social e econômica exigida pelo tema.
A criatividade e a liberdade para pensar são consideradas questões básicas no
desenvolvimento do conhecimento, entretanto, no que tange a temas relacionados à
vida, a liberdade vigiada, e bem vigiada, é o caminho para reduzir erros, tornando
ética e caráter semelhantes, minimizando substancialmente falhas que, em um pas-
sado recente, colocaram em risco a credibilidade da ciência.
Com estudo e reflexão regados pelos princípios corretos, é possível atingirmos a
celeridade de resposta que a sociedade anseia com a solidez que nós nos exigimos.
Julgo que a leitura desta obra vai nos ajudar nesta incrível tarefa.
Leiam, reflitam, contestem, aproveitem!

Dr. Gustavo Fernandes


Médico Oncologista
Presidente da Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica (SBOC)
Agradecimentos

Gostaria, inicialmente, de agradecer aos coautores que aceitaram (todos prontamen-


te) participar deste desafio que foi escrever sobre a Bioética do século XXI e suas
interseções, cada vez mais intrincadas, com a cancerologia moderna. Os desafios são
crescentes e, portanto, precisam ser debatidos.
Estendo este agradecimento a todos os colegas com quem conversei a respeito
de outras ideias para este livro, mas que, infelizmente, não puderam participar deste
volume por limitação de espaço. Seguramente estarão em empreendimentos futuros.
Finalmente, dedico um agradecimento especial à Empresa Merck Serono, parcei-
ra de inúmeros projetos e patrocinadora também deste, por acreditar, desde o princí-
pio, na importância da ética na pesquisa e na prática oncológica e, ainda, de maneira
integral, na necessidade de escrevermos sobre esse assunto. E, por fim, pela postura
correta, ética e íntegra dada a total liberdade conferida a todos os coautores para
discutir suas ideias tais quais foram suas mais livres e descompromissadas intenções.
Sinto-me, assim, recompensado por todo o esforço com esta obra que o leitor tem,
por ora, em mãos. Espero que seja uma leitura agradável, instigante e enriquecedora.

Dr. Marcos Santos


Organizador
Organizador

Marcos Santos
Médico radioterapeuta, chefe do Serviço de Oncologia/Radioterapia, Hospital Universitário
de Brasília. Mestre em Altas Tecnologias em Radioterapia pela Universidade de Murcia,
Murcia, Espanha. Especialização em Economia da Saúde pela Université Paris Descartes, Paris,
França. Doutor em Bioética – Cátedra UNESCO de Bioética – Universidade de Brasília (UnB).

Colaboradores

Bruno Wurmbauer Junior


Advogado, militante há mais de 20 anos. Graduado em Direito pela Fundação
Universidade de Brasília, Universidade de Brasília (FUB/UnB). Especialista em Direito
Processual Civil pelo Instituto de Cooperação e Assistência Técnica, Centro Universitário
do Distrito Federal (CAT/UDF). Mestre em Direito, Estado e Constituição pelo
Programa de Pós-Graduação em Direito pela FUB/UnB. Autor do livro “Novo Código
de Processo Civil e os Direitos Repetitivos”, pela Editora Juruá, 2015 (2ª ed. 2016).

Camilo Hernan Manchola Castillo


Doutorando em Bioética, Cátedra UNESCO/Programa de Pós-graduação em Bioética
da Universidade de Brasília (UnB). Coordenador executivo do Curso Lato Sensu
em Bioética da Cátedra UNESCO de Bioética da UnB e consultor da Organização
Pan-Americana da Saúde na Comissão Nacional de Ética em Pesquisa.

João Paulo dos Reis Neto


Cardiologista e Clínico Geral pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA).
Diretor-Presidente da Caixa de Previdência e Assistência dos Servidores da Fundação Nacional
de Saúde (Capesesp)/Capesaúde). Vice-Presidente da UNIDAS Nacional. Membro titular
do Conselho Nacional de Saúde (CNS). Sócio-Diretor da Mobile Saúde e Analysis Auditoria.
Ex-Professor de MBA em Auditoria de Sistemas de Saúde, Universidade Estácio de Sá.
Colaboradores

Karla Patrícia Cardoso Amorim


Professora do Departamento de Medicina Clínica da Universidade Federal do
Rio Grande do Norte (UFRN). Professora do Mestrado Profissional em Saúde da
Família – RENASF/UFRN. Professora do Programa de Pós-Graduação em Gestão da
Qualidade em Serviços de Saúde da UFRN. Professora colaboradora do Programa de
Pós-Graduação em Bioética (PPG Bioética) da Universidade de Brasília (UnB).

Suelen Medeiros e Silva


Médica graduada pela Universidade de Brasília (UnB). Residência Médica em Clínica
Médica pelo Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de
São Paulo (HCFMUSP). Residência Médica em Medicina Paliativa pelo HCFMUSP.
Atualmente é presidente da Regional do Centro-Oeste da Academia Nacional
de Cuidados Paliativos – Biênio 2017-2018. Coordenadora da Equipe de Suporte
e Cuidados Paliativos do Hospital Sírio-Libanês – Unidade Brasília.

Talita Cavalcante Arruda de Morais


Acadêmica de Direito e mestre em Bioética pela Cátedra UNESCO de Bioética, Universidade
de Brasília (UnB).

Tatiana Strava Corrêa


Oncologista clínica pela Universidade de São Paulo, Instituto do Câncer do Estado de São
Paulo (USP/ICESP). Trabalha no Hospital Sírio-Libanês e no Hospital Universitário de Brasília.

Volnei Garrafa
Doutor em Ciências pela Universidade Estadual Paulista (UNESP), com p ­ ós­-doutorado em
Bioética (Università La Sapienza, Roma/Itália). Coordenador da Cátedra UNESCO e Programa
de Pós-Graduação em Bioética da Universidade de Brasília. Fundador e atual diretor da Área
Internacional da Rede Latino-Americana e do Caribe de Bioética da UNESCO – Redbioética.
Membro do International Bioethics Committee (IBC) da UNESCO/Paris (2010-2017). Presidente
da International Association for Education in Ethics (IAEE), Pittsburgh/EUA (2017-2020).
Sumário

Capítulo 1 Princípios básicos de bioética 11

Capítulo 2 Histórico e importância da Declaração Universal


sobre Bioética e Direitos Humanos da UNESCO
para o desenvolvimento da bioética no século XXI 27

Capítulo 3 Pesquisa clínica atual – Um olhar da (bio)ética 43

Capítulo 4 Bioética e multi-, inter- e transdisciplinaridade 63

Capítulo 5 Eutanásia, distanásia, mistanásia:


conflitos éticos com a legislação brasileira 77

Capítulo 6 Bioética e cuidados paliativos 103

Capítulo 7 Custos no último ano de vida do paciente 117

Capítulo 8 Justiça e alocação de recursos escassos em oncologia 127

Capítulo 9 Como dar más notícias em oncologia 155


Capítulo 1 | Princípios básicos de bioética

1
Princípios básicos de bioética
Marcos Santos

Contexto histórico
No início da década de 1930, o U.S. Department of Health, equivalente americano ao
Ministério da Saúde brasileiro, patrocinou, numa pequena cidade do Alabama, no
sudeste do país, um estudo que visava acompanhar pacientes com sífilis. O objetivo
era a determinação do curso natural da doença para um melhor conhecimento de
suas temíveis sequelas de largo prazo. Tuskegee, de população majoritariamente
negra, foi o palco da investigação. Em torno de 400 afro-americanos infectados in-
tegraram a coorte, enquanto outros 200 compuseram o grupo controle. Tudo trans-
corria normalmente, com coletas de informação de alta relevância científica, até
que, no início da década de 1950, a penicilina, droga descoberta alguns anos antes,
mostrou-se eficaz no tratamento do Treponema pallidum, agente causador da patologia
estudada. De disponibilidade massiva e de custo acessível, tal droga, surpreendente-
mente, não foi oferecida aos participantes do estudo. Nem mesmo a eles foi disponi-
bilizada a informação de que existiria tratamento para aquela temível enfermidade.
Ao contrário, em 1969, um comitê nomeado especialmente para a avaliação dessa
questão definiu que o procedimento investigacional deveria ser continuado e o trata-
mento, deliberadamente, negado. Apenas em 1972, quando informações referentes
ao estudo foram divulgadas pelo periódico The New York Times, é que se optou, dada

11
Bioética e Humanização em Oncologia

a pressão social, pela interrupção da investigação. Nesse momento, 74 indivíduos in-


fectados ainda estavam vivos, mas mais de 100 pacientes já haviam falecido, vítimas
de complicações de sífilis avançada1.
Também no final da primeira metade do século XX, a Europa vivia os es-
tertores da Segunda Grande Guerra. Ficaram famosos os abusos dos “médicos”
nazistas para com os judeus, confinados em campos de concentração. Homens e
mulheres tiveram suas gônadas submetidas a doses variadas de raio-X com o obje-
tivo de estudar-se a infertilidade secundária. Queimaduras e inchaços, com muita
dor, eram efeitos agudos comuns. Estudos com fins militares buscavam determinar
quanto tempo um ser humano poderia sobreviver em baixíssimas pressões atmos-
féricas. Prisioneiros eram postos em câmaras de gás, com baixa pressão de oxigê-
nio. Alguns morreram, muitos sofreram. Quando a dúvida, sempre com objetivos
bélicos, referia-se aos limites de temperatura suportável pelo ser humano, vítimas
foram mergulhadas em piscinas com águas geladas ou na neve por horas a fio. Nu-
merosos métodos de reaquecimento corporal foram testados. Numerosos também
são os exemplos e os relatos de abusos, e uma descrição detalhada e exaustiva seria
impossível neste espaço. O relevante aqui é que o conjunto dos crimes levou, após
a derrota militar nazista, a uma reação: um tribunal militar americano, conhecido
como Tribunal de Nuremberg, foi estabelecido no dia 9 de dezembro de 1946. E
culminou no documento chamado “Código de Nuremberg”. Surgia, assim, o pri-
meiro tratado internacional que, embora sem força de lei, mencionava claramente
que o consentimento voluntário, por parte dos participantes em qualquer pesquisa
clínica envolvendo seres humanos, era absolutamente fundamental. E tais parti-
cipantes deveriam ter absoluto poder de decisão, livres de coerção de qualquer
espécie, e conhecimento e compreensão suficientes para possibilitar a tomada de
decisão consciente: aceitar (ou não) ser incluído em alguma investigação clínica,
segundo a vontade e o interesse do próprio indivíduo2.
Mas, aparentemente, muitos americanos consideraram que o referido Código
era uma punição por crimes de guerra e que, portanto, não lhes dizia respeito. E a
vida seguia. Porém, no ano de 1966, Henry Beecher, um antigo professor de Aneste-
siologia da Universidade de Harvard, em Massachusetts, publicou um artigo revela-
dor, no conceituado “New England Journal of Medicine”. Nesse artigo, o autor chocou
a comunidade médica ao descrever 22 exemplos de investigações conduzidas aquém
dos padrões mínimos de respeito à ética e publicadas em revistas indexadas norte-
-­americanas. Ou seja: referendadas por especialistas. O exemplo mais chocante,

12
Capítulo 1 | Princípios básicos de bioética

além do já citado estudo de Tuskegee, é o relato de caso em que investigadores


convenceram a mãe de uma paciente, doente terminal acometida por melanoma,
a ter células do tumor de sua filha injetadas nela própria, com o objetivo de estudo
da imunologia do tumor. Criou-se a expectativa absurda de que anticorpos desen-
volvidos pela mãe ajudariam no tratamento da filha, que faleceu no dia seguinte ao
procedimento. A mãe também morreu alguns meses depois. A causa? Melanoma
metastático, o tumor da filha. O autor, no texto, nega o argumento utilitarista: a pes-
quisa é ética ou não desde a sua concepção, e não se tornaria ética post hoc. Os fins,
então, não justificariam os meios. Em outras palavras, não haveria resultados úteis,
se princípios básicos de ética e respeito ao ser humano haviam sido desrespeitados3.
Paralelamente, a Associação Médica Mundial, congregação que, atualmente,
representa 102 Associações Médicas Nacionais, fundada em 1947, em Paris, e se-
diada, desde 1974, em Ferney-Voltaire, nos Alpes Franceses, elaborava, em reunião
na Finlândia, em 1964, a Declaração de Helsinki. Trata-se de uma declaração de
princípios éticos cujo objetivo é o fornecimento de recomendações aos médicos (e
demais participantes de pesquisas clínicas) com seres humanos. Ali ficava definido,
por exemplo, que a missão do profissional de saúde é preservar o bem-estar do ser
humano. Ele deve agir unicamente no interesse do seu paciente. E que os interesses
da ciência e da sociedade não devem, jamais, prevalecer sobre os interesses do sujei-
to de pesquisa4. Posteriores revisões e atualizações, até 2008, no entanto, alteraram
significativamente a essência do documento, como veremos mais adiante5.
Mas foi somente em meados da década de 1970 que o vocábulo “Bioética” pas-
sou a ser usado de forma corrente. Van Rensselaer Potter, um bioquímico norte­-
-­americano da Universidade de Wisconsin, no norte dos Estados Unidos, publicou,
em 1971, o livro: “Bioethics: A Bridge to the Future”6. Nessa obra, o autor recupera o
vocábulo “Bioética”, que havia, originalmente, sido criado pelo pastor protestante
alemão Fritz Jahr, em 1926, em um artigo intitulado “Imperativo Bioético”, no qual
fazia um paralelo entre a filosofia de Kant, responsável pela formulação do conceito
de “imperativo categórico”, e a relação entre humanos para com animais e plan-
tas, mas sem a conotação científico-tecnológica da atualidade7. A partir daí, Potter
propõe que a bioética seja essa ciência que terá o objetivo de colocar-se como uma
ponte de ligação entre os conhecimentos biológicos; naquele momento já se vislum-
bravam grandes evoluções científicas, e os riscos que tais descobertas carregavam
consigo; e a ética, do grego ethos (bom costume), que representaria, nessa junção, o
conhecimento dos valores humanos8.

13
Bioética e Humanização em Oncologia

O Governo dos Estados Unidos da América, por sua vez, em reação à reper-
cussão negativa do estudo de Tuskegee, criou, em 1974, o “National Commission
for the Protection of Human Subjects of Biomedical and Behavioral Research”
(­NCPHS). Tal comissão, após quatro anos de trabalho, elaborou o que ficou conhe-
cido como o Relatório Belmont9. E três eram os princípios que deveriam, a partir
daquele momento, guiar os rumos da Bioética Clínica, aplicados à pesquisa e à
prática médica em geral:
• Respeito pelo sujeito: ou seja, indivíduos devem ser
tratados como agentes autônomos, e pessoas com autonomia
comprometida devem ser objeto de proteção;
• Beneficência: entendia que indivíduos de pesquisa ou sujeitos de
um ato médico devem ser protegidos de qualquer dano e, além disso,
esforço deve ser dirigido no sentido do seu bem-estar. Trata-se de
uma derivação do princípio hipocrático “primum non nocere”, ou seja:
acima de tudo, não causar dano. Ficava, no entanto, plantada a
semente do entendimento de que “algo mais” precisava ser feito;
• Justiça: uma injustiça ocorre quando um benefício que é devido a
alguém lhe é negado sem uma justificativa adequada. Ser justo é dar (ou
deixar de dar) a cada um o que lhe é de direito. Várias teorias filosóficas
foram construídas na tentativa de esclarecer o que é justo, e trata-se,
ainda hoje, de um tema em aberto. Cada caso é passível de discussão.

No ano seguinte, ao final dos trabalhos da mencionada comissão, dois autores


da Universidade de Georgetown, em Washington/DC, Beauchamp e Childress,
publicam o primeiro volume daquela que é uma das principais obras da Bioética
mundial: “Principles of Biomedical Ethics”. Tal livro, atualmente na sua sétima edi-
ção, propõe um método deontológico na tomada de decisões em bioética, sobre-
tudo em sua aplicação clínica e assistencial. Ficou conhecido como fonte primária
do “Modelo Principialista”. Aos três princípios do Relatório Belmont, Beauchamp
e Childress adicionam o princípio da “Não Maleficência”. A não maleficência
estaria, epistemologicamente, anterior à beneficência. Aqui, abraça-se, de manei-
ra completa, o “primum non nocere” hipocrático, enquanto, para que fique claro que
a promoção do bem também é uma obrigação moral (para além da neutralidade
do “não lesar”), o princípio da beneficência é posto em separado, por isso, ganha
em relevância10.

14
Capítulo 1 | Princípios básicos de bioética

Mas o predomínio desse modelo de origem anglo-saxônica, e sua aplicabilidade


a culturas absolutamente diferentes, principalmente em países periféricos, com im-
portantes contingentes populacionais vivendo em condições sociais precárias e que,
por consequência, têm sua autonomia reduzida (ou anulada), passou a ser fortemen-
te questionado, principalmente por bioeticistas latino-americanos. Uma senhora,
por exemplo, com seu filho doente (e outros em casa, provavelmente sem o cuidado
adequado), após esperar por horas a fio pelo atendimento, e sem acesso adequado à
alimentação, não tem autonomia para decidir se aceita ou não que seu filho integre
uma pesquisa clínica, diante da promessa sedutora de exames, cuidados e medica-
ções, fornecidos facilmente e abundantemente pelo patrocinador. É, na verdade,
uma pessoa digna de proteção. Introduz-se, assim, no início do século XXI, o con-
ceito de vulnerabilidade social, tão pouco compreendido pelos países ditos centrais,
como os Estados Unidos e aqueles que formam a Europa Ocidental11.
Em 2002, ocorre no Brasil o 6º Congresso Mundial de Bioética, com mais de
1.400 participantes, de 62 países diferentes. Era, até então, o maior Congresso já
realizado sobre o tema, com o título: “Bioética, Poder e Injustiça”. Seguindo-se a
um Congresso anterior, ocorrido em Tóquio, no ano de 1998, quando se discutiu a
Bioética Global de Potter e se progrediu para temas mais amplos do que a simples
Ética Biomédica, o evento brasileiro expandiu, definitivamente, o campo da disci-
plina para temas sociais e sanitários, politizando a agenda da Bioética internacional
com tópicos que, anteriormente, só haviam sido discutidos tangencialmente12.
Tal movimento foi de importância fundamental para que, após intensas nego-
ciações políticas, a Declaração Universal de Bioética e Direitos Humanos
(DUBDH) fosse aclamada por 191 países, na Conferência Geral da UNESCO, em
Paris, no dia 19 de outubro de 200513. A importância desse documento para a Bioé-
tica do século XXI, assim como um relato histórico de todas as disputas políticas
ocorridas durante o seu processo de produção, é relatada, no próximo capítulo, pelo
Prof. Dr. Volnei Garrafa, representante brasileiro que prestou assistência técnico-
-científica à delegação diplomática de nosso país, naquela ocasião.
A declaração trata de questões de ética postas pela medicina, pelas ciências da
vida e pelas tecnologias associadas, todas aplicadas aos seres humanos levando em
conta suas dimensões social, jurídica e ambiental. E anuncia os princípios que são
de importância mundial14. Dentre os 15 princípios elencados, avaliamos que são de
suprema importância para a prática oncológica, não diminuindo a relevância dos
demais, o artigo 4: “Benefício e Dano”, o artigo 8: “Respeito pela Vulnerabilidade

15
Bioética e Humanização em Oncologia

Humana e pela Integridade Individual” e o artigo 15: “Compartilhamento de Be-


nefícios”, princípios sobre os quais discorremos brevemente a seguir (o artigo 14:
“Responsabilidade Social e Saúde” merece, nesta obra, um capítulo à parte).

BENEFÍCIO E DANO
Os médicos devem, antes de qualquer outro objetivo, cuidar efetivamente dos seus
pacientes15. Trata-se de uma preocupação presente na prática desses profissionais o
juramento de Hipócrates: “aplicarei os regimes terapêuticos para o bem do doente
segundo o meu poder e entendimento, nunca para causar dano ou mal a alguém”16.
Segundo a DUBDH, em seu artigo 4, os benefícios diretos e indiretos a paciente,
sujeitos de pesquisa e outros indivíduos afetados devem ser maximizados, e qualquer
dano possível a tais indivíduos deve ser minimizado, quando se trate de aplicação e
do avanço do conhecimento científico, das práticas médicas e tecnologias associa-
das13.
De inspiração, à primeira vista utilitarista, esse princípio também pode ser en-
tendido sob uma ótica não consequencialista, em consonância com a filosofia de
Kant, baseando-se em um dos seus imperativos categóricos: “age de tal maneira que uses
a humanidade, tanto na tua pessoa, como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente
como um fim e nunca, simplesmente, como um meio”17. No contexto da Bioética, a definição
de “minimização de risco” assume importância fundamental, haja vista a estratégia
frequentemente utilizada, descrita na Literatura, de fornecimento de informação
inadequada, objetivando uma maior facilitação da inclusão de pacientes em proto-
colos de pesquisa17,18.
Distinguem-se, segundo Frankena, três níveis de beneficência: o mais baixo, da
não maleficência, ou seja, obrigação de não causar dano. Em segundo lugar, há o
nível da supressão do mal já instalado, seguido pelo impedimento do mal. Finalmen-
te, o nível mais alto é o de proporcionar o bem19. No contexto da prática clínica, a
beneficência implica a cura, se esta é possível, o arrefecimento da enfermidade, o
alívio dos sintomas e, permanentemente, os cuidados apropriados. Deve, idealmen-
te, superar a simples supressão ou prevenção do mal. Na medida do possível, deve
aportar um benefício mensurável para o paciente20.
É importante observar que, em todos os tratamentos médicos, assim como na
investigação clínica, a ocorrência do mal fortuito é um risco onipresente. A proteção
absoluta contra esse risco não é atingível, mesmo em condições ideais. A sanção mo-
ral para a aceitação desse risco provém da probabilidade de obtenção de benefício

16
Capítulo 1 | Princípios básicos de bioética

que resulta desse tratamento. Os profissionais de saúde estão, então, moralmente


obrigados a conduzir um processo de minimização de risco e de maximização do
benefício de tal maneira eficaz e moralmente defensável, tanto quanto as circuns-
tâncias vierem a permitir20.

RESPEITO PELA VULNERABILIDADE


Segundo o artigo 8 da DUBDH da UNESCO, a vulnerabilidade humana deve ser
levada em consideração na aplicação e no avanço do conhecimento científico, das
práticas médicas e de tecnologias associadas. Indivíduos e grupos de vulnerabili-
dade específica devem ser protegidos e a integridade individual de cada um deve
ser preservada13. Esse artigo revela, segundo Jan Solbakk, a combinação de duas
interpretações de vulnerabilidade diferentes: uma segundo a qual a vulnerabilidade
é concebida como uma condição humana por excelência, ou seja, algo permanente,
indelével, que gera a necessidade de respeito e, por outro lado, uma interpretação de
vulnerabilidade prevalente nas diretrizes e nos documentos normativos aplicáveis à
investigação médica, à assistência sanitária ou à bioética, que aponta para o manejo
de estados e situações acidentais de vulnerabilidade aumentada, ou seja, formas de
vulnerabilidade que exijam medidas adicionais de proteção e de identificação das
pessoas e populações específicas que necessitam proteção21.
Diferentes autores têm sugerido que a vulnerabilidade pode ser um princípio ade-
quado para formar a base de uma bioética global, uma vez que expressa caracterís-
ticas que são compartilhadas por todos os seres humanos, sem exceção. E, da mesma
maneira, permitiria que fosse respeitada uma variedade de contextos diferentes, nos
quais houvesse peculiaridades a serem consideradas22. Vulnerabilidade, do latim vul-
nus, que significa “ferida”, descreve alguém ou alguma coisa que está suscetível a ata-
que ou lesão física ou emocional; o lado fraco de um assunto ou questão, e do ponto
por onde alguém pode ser atacado ou ofendido23. Na Bioética, conforme descrito por
Cunha & Garrafa, assume perspectivas regionais variáveis. Nos Estados Unidos, por
exemplo, o conceito está intimamente ligado ao de autonomia. Indivíduo vulnerável é
aquele incapaz de tomar decisões relativas a seu próprio interesse. Na Europa, por ou-
tro lado, o conceito está mais ligado ao de direitos humanos e respeito pela dignidade
humana. Já na América Latina, costuma-se dividir a história da bioética em recepção,
assimilação e recriação, sendo esta última etapa iniciada com o fim das ditaduras nas
Américas Central e do Sul, o que resultou na caracterização da disciplina como um
movimento político, mais do que uma área do conhecimento restrita aos limites da

17
Bioética e Humanização em Oncologia

medicina. Consideram-se, por aqui, o processo histórico e as relações de poder, que se


refletem em desigualdades sociais, pobreza e exploração do meio ambiente22.
É importante ressaltar, ainda no contexto latino-americano, a distinção propos-
ta por Schramm entre vulnerabilidade e vulneração. Vulnerabilidade, segundo o
autor e em consonância com o que vai acima, é uma categoria sui generis que pode
ser aplicada a qualquer indivíduo que, enquanto tal, pode ser ferido, mas que não
necessariamente será. É uma característica potencial, enquanto vulneração é uma
característica mais concreta, resultante, por exemplo, do pertencimento a uma clas-
se social, a uma determinada etnia, a um dos gêneros ou do seu estado de saúde24.
Kottow, por sua vez, tentou politizar a diferença entre vulnerabilidade como uma
condição ontológica ou como uma contingência momentânea25. Lorenzo, finalmen-
te, aporta o conceito de vulnerabilidade social, que se define como uma exposição
ao risco decorrente de uma situação de exclusão social, o que, segundo o autor, im-
plicaria, inclusive, a necessidade de proteção especial para participantes de pesquisa
quando esta é levada a cabo em países periféricos, uma vez que a vulnerabilidade
social produziria certos riscos que não poderiam ser identificados pelas avaliações
tradicionais de ética em pesquisa26.
O texto de Cunha & Garrafa discorre ainda sobre o conceito de bioética africa-
na e sobre como a vulnerabilidade seria vista neste continente. Segundo os autores,
apesar de haver uma tendência de assimilação da bioética estadunidense, há a pro-
posta do autor Kevin Behrens de adaptação do principialismo, substituindo o prin-
cípio da justiça pelo que chama de princípio da harmonia e recuperando o princípio
do respeito pelo indivíduo, em lugar do princípio da autonomia. Por fim, há menção
ao que os autores chamam de bioética de origem asiática, sendo a Ásia não somente
o maior continente, como também aquele que contém a maior diversidade cultural
e religiosa, o que faria da tarefa de construção de uma normativa singular na região
uma tarefa árdua, se não impossível22.
O paciente com câncer é, sem dúvida, um indivíduo que vivencia um aumento
significativo de sua vulnerabilidade inata. E esse é um parâmetro que pode, por meio
de instrumentos específicos, ser aferido. Pacientes para os quais se observa maior
grau de vulnerabilidade psicológica apresentam maior intensidade e variabilidade
sintomática, sendo essa variável mais relevante no computo geral da significância
do sintoma do que, por exemplo, o tipo de tumor ou seu grau de acometimento
sistêmico (estadiamento). Esses pacientes são, em geral, mais pessimistas, têm mais
problemas maritais ou familiares e não infrequentemente têm história de depressão,

18
Capítulo 1 | Princípios básicos de bioética

com maior hesitação entre a negação e a aceitação27. Quando se considera a vulne-


rabilidade social, observou-se, nos Estados Unidos, que pacientes do Medcare, progra-
ma norte-americano de seguro-saúde para pessoas com idade igual ou superior a 65
anos (inclui alguns indivíduos mais jovens com deficiências ou renais crônicos)28 que
não têm seguro-saúde privado, têm menor chance de receber quimioterapia, mesmo
após o ajuste de variáveis como idade, raça, status marital, diagnóstico (tipo de cân-
cer) e estadiamento. Segundo os autores desse estudo, uma possível explicação viria
do fato de que menor remuneração resultaria em menor empenho, por parte dos mé-
dicos assistentes, para tratar esses pacientes29. A vulnerabilidade social contribuiria
para diferenças no acesso ao tratamento do câncer mesmo em países com cobertura
universal de saúde, como, por exemplo, o Canadá30, a Itália31,32 ou o Brasil33-37.

COMPARTILHAMENTO DE BENEFÍCIO
Atesta o artigo 15 da DUBDH que os benefícios de qualquer pesquisa científica e suas
aplicações devem ser compartilhados com a sociedade como um todo e, no âmbito
da comunidade internacional, em especial com países em desenvolvimento. Para dar
efeito a esse princípio, os benefícios podem assumir quaisquer das seguintes formas:
ajuda especial e sustentável e reconhecimento aos indivíduos e grupos que tenham
participado de uma pesquisa; acesso a cuidados de saúde de qualidade; oferta de no-
vas modalidades diagnósticas e terapêuticas ou de produtos resultantes da pesquisa;
apoio a serviços de saúde; acesso ao conhecimento científico e tecnológico; facilida-
des para geração de capacidade em pesquisa; e outras formas de benefício coerentes
com os princípios dispostos na presente Declaração. Os benefícios não devem, tam-
bém, constituir indução inadequada para estimular a participação em pesquisa13.
A investigação científica vem se desenvolvendo progressivamente desde o sé­­
culo XVIII, quando era uma atividade amadora. Evoluiu para uma prática universi-
tária no século XIX e, finalmente, industrial a partir do quarto final do século XX. A
maioria das populações, nos países pobres, ainda tem muita dificuldade de acesso às
mínimas condições para sua sobrevivência e dignidade. Investimentos na promoção
e acesso a farmacoterapias, por parte das populações desprivilegiadas, é quase que
não existente, implicando no fato de que quase 70% de todas as despesas médicas
estão sob a responsabilidade do indivíduo e não do Estado38. No contexto da inves-
tigação clínica, o financiamento privado supera largamente o investimento público,
o que levou a uma diminuição do poder regulador estatal na definição de políticas

19
Bioética e Humanização em Oncologia

públicas, prioridades em pesquisa e, finalmente, na definição de diretrizes éticas, a


serem seguidas nesse tipo de investigação11.
Uma revisão recente mostrou que aproximadamente 25% dos estudos patroci-
nados por indústrias farmacêuticas baseadas nos Estados Unidos foram conduzidos
fora daquele país, muitas vezes em regiões pobres ou em desenvolvimento. Todos,
no entanto, preocupavam-se com doenças prevalentes no país sede. E menos de 1%
das drogas registradas entre 1975 e 2004 tinham como alvo doenças prevalentes na
região mais desfavorecida do mundo. Essa lacuna ficou conhecida como “10/90”,
ou seja: 90% dos recursos gastos anualmente em investigação médica visavam bene-
ficiar 10% da população do mundo. Desafortunadamente, indicativos desses supra-
citados estudos fazem crer que esse cenário não tenha mudado substancialmente no
século XXI, embora o número de participantes de pesquisa, recrutados nos países
mais pobres, tenham crescido substancialmente nos últimos 15 anos11, tornando ain-
da mais abusivo o cenário anteriormente descrito.
Participantes de pesquisa estão, inerentemente, expostos a serem alvos de ex-
ploração por parte de pesquisadores inescrupulosos. Exploração, que também pode
ocorrer na prática clínica corriqueira39, é um conceito complexo que ocorre quando
uma parte leva uma vantagem injusta sobre a outra40. Dois elementos distintos po-
dem ser separados: o processo e o resultado. O elemento “processo” concerne à na-
tureza da transação entre duas ou mais pessoas. Uma transação em que há explora-
ção é aquela na qual uma das partes se aproveita de uma circunstância específica ou
de uma vulnerabilidade ou fraqueza da outra parte para tirar proveito da situação.
Tipicamente, a parte perdedora fica em pior situação depois da transação, embora
isso não seja uma consequência imprescindível. O elemento “resultado”, por sua
vez, consiste na distribuição de riscos e benefícios entre as partes, que pode ser ex-
ploratória mesmo se consensual. No contexto da investigação clínica, pode ocorrer
quando os participantes da pesquisa auferem muito pouco (ou nenhum) benefício
advindo de sua participação no ensaio41.
Como reação às práticas atrozes cometidas no regime nazifascista alemão, talvez
o principal exemplo de exploração acontecido durante o século XX, além do Códi-
go de Nuremberg2, surgiu, justificada pelos cientistas do pós-guerra que diziam que
não cabia misturar a condenação da tortura com a ética da investigação clínica, a
Declaração de Helsinki4, que, ao contrário do documento anterior, único e imutável,
é propositiva, reformável e que, de fato, vem sofrendo seguidas modificações desde
sua divulgação inicial, no ano de 1964.

20
Capítulo 1 | Princípios básicos de bioética

DECLARAÇÃO DE HELSINKI
A Associação Médica Mundial, congregação que, atualmente, representa 102 Asso-
ciações Médicas Nacionais, fundada em 1947, em Paris, e sediada, desde 1974, em
Ferney-Voltaire, nos Alpes Franceses, elaborou, em reunião na Finlândia, em 1964,
a conhecida e muito citada “Declaração de Helsinki”. Trata-se de uma declaração
de princípios éticos cujo objetivo é o fornecimento de recomendações aos médicos
(e demais participantes de pesquisas clínicas) quando os investigados são seres hu-
manos. Ali, ficou definido, por exemplo, que a missão do profissional de saúde é
preservar o bem-estar do ser humano. Este deve agir unicamente no interesse do seu
paciente. E que os interesses da ciência e da sociedade não devem, jamais, prevalecer
sobre os interesses do sujeito de pesquisa4. Esse documento foi, durante muitos anos,
considerado o principal documento normativo internacional da ética em pesquisa42.
No final dos anos 1990, uma série de estudos avaliando a eficácia da zidovudina
(AZT) na prevenção da transmissão vertical do vírus da imunodeficiência humana
(HIV) abalou o mundo da Bioética. A polêmica centrava-se na utilização de estu-
do placebo-controlado quando já se conhecia um tratamento efetivo, disponível no
mundo desenvolvido. A justificativa para a execução do referido estudo estava no
custo do tratamento que havia se mostrado efetivo em ensaio anterior, financiado
pelo NIH (Instituto Nacional de Saúde americano, em sua sigla em inglês) nos Esta-
dos Unidos e na França. Esse ensaio havia sido interrompido precocemente devido
à demonstração de uma impressionante redução na taxa da transmissão vertical do
HIV com o uso do AZT, em comparação ao placebo (23 vs. 8%)43. O alto custo do
esquema utilizado impossibilitava, segundo alguns, a aplicação em larga escala no
mundo em desenvolvimento. Objetivava-se, agora, o teste da eficácia de esquemas
com menores doses de AZT. Mantinha-se, no entanto, o grupo controle em trata-
mento com placebo, visando a resultados mais rápidos e menos custosos44,45.
Encaixa-se aqui, de maneira perturbadora, o argumento utilitarista de que ne-
nhum desses pacientes, na ausência do estudo, poderia se beneficiar do tratamento,
enquanto, na presença deste, pelo menos uma parte dos sujeitos de pesquisa pode-
ria colher alguma vantagem. O problema é que a vantagem que estará disponível
para os pacientes dos países ricos é desproporcionalmente maior. As populações
dos países pobres não têm nem terão, depois de findo o estudo, acesso a cuidados
básicos de saúde, poder político ou entendimento da pesquisa, ou seja, baixo en-
tendimento dos riscos envolvidos. O compartilhamento dos benefícios é, então,
injusto. Há, pois, exploração46.

21
Bioética e Humanização em Oncologia

A influência da supracitada Declaração de Helsinki, taxativa a respeito da


utilização do placebo na pesquisa com seres humanos (só estaria justificado na
ausência de um tratamento efetivo conhecido), foi, progressivamente, diminuindo,
graças a pressões do governo norte-americano e da indústria farmacêutica47,48. A
primeira objeção é a de que a responsabilidade pelo cuidado dos participantes
de pesquisa de países pobres seria dos seus respectivos governos locais e que uma
restrição exagerada ao uso de placebos acabaria por desestimular importantes pa-
trocinadores a investir em pesquisa no mundo em desenvolvimento47. O ponto de
corte foi a revisão de Edimburgo, no ano 2000, tenazmente combatida por Argen-
tina e Brasil. A tendência da flexibilização do uso dos placebos se seguiu na revisão
de 2008, em Seul, na Coreia do Sul e, posteriormente, em 2013, em Fortaleza, no
Brasil. A Declaração de Helsinki acaba diluída e maculada, distorcida pela adoção
de um padrão de ética em pesquisa que, em seus países de origem, seria eticamente
inaceitável48.
Em uma carta aberta à então Ministra da Saúde norte-americana durante o
governo Bill Clinton, Donna Shalala, alguns autores alertavam que, na ausência de
uma ação de sua parte, mais de mil crianças africanas, asiáticas ou caribenhas iriam
morrer vitimadas pela infecção por HIV, infecção esta que contrairiam desnecessa-
riamente de suas mães, uma vez que essas mulheres não receberiam a terapêutica
provada eficiente, já que locadas no braço placebo, nos estudos financiados, mais
uma vez, pelo NIH americano, buscando avaliar a eficácia de menores doses de
AZT na transmissão vertical do vírus HIV49.
Um estudo em que um dos braços é tratado com placebo somente está justi-
ficado quando não há tratamento efetivo conhecido para a patologia em questão.
Quando há tratamento reconhecido, o placebo não deve ser usado. Os investiga-
dores são os responsáveis por todos os pacientes que são incluídos na pesquisa, não
somente por alguns deles. E os objetivos da investigação não podem se sobrepor ao
bem-estar dos participantes incluídos45. O importante periódico “The Lancet” assu-
miu uma postura clara em editorial publicado no ano de 2003: o que vai acima não
é negociável, taxando de espúrio argumento de que esses estudos ajudariam a cons-
truir uma infraestrutura de pesquisa nos países que aceitassem serem sede de estudos
com limites éticos diversos daqueles adotados nos países ricos47.
Marcia Angel, por sua vez, compara os estudos sobre a transmissão vertical do
HIV em mulheres de países periféricos ao clássico e supracitado estudo de Tuske-
gee1, que gerou grande comoção nos Estados Unidos. A principal razão pela qual

22
Capítulo 1 | Princípios básicos de bioética

códigos de conduta ética devem ser claros a respeito da responsabilidade primária


do investigador para com o cuidado com os participantes da pesquisa advém do
fato de que é grande a tentação de submeter o bem-estar dos participantes aos
interesses do investigador. O que é ainda mais provável quando a questão a ser
respondida pela pesquisa é relevante, com potencial de melhora dos resultados
dos tratamentos de futuros pacientes. A autora atesta que o risco de exploração é
significativo, entre outros motivos, pela grande diferença de conhecimento técnico
entre pesquisador e pesquisado, além de uma flagrante assimetria, também, na
autoridade sobre o tratamento a ser empregado. O New England Journal of Medicine,
outra importante publicação em medicina, periódico do qual a autora foi editora-
-chefe durante vários anos, também assumiu posição de não publicar investigações
que não primam pela conduta ética, independentemente da relevância técnica dos
resultados alcançados45.

DECLARAÇÃO DE CÓRDOBA
Como resposta à reformulação da Declaração de Helsinki, ocorrida em 2008, na
Coreia do Sul, a Red Latino-Americana da Bioética, por meio da Declaração de
Córdoba5, publicada em 14 de novembro de 2008, propõe:
• Rechaçar a 6ª versão da Declaração de Helsinki, aprovada na Coreia
do Sul, em outubro de 2008, pela Associação Médica Mundial.
• Propor, como marco de referência da normativa ética, os
princípios contidos na Declaração Universal sobre Bioética
e Direitos Humanos promulgada por aclamação em outubro
de 2005, na assembleia geral da UNESCO13.
E, voltando-se à DUBDH, vê-se que tal Declaração almeja um ambicioso concei-
to de compartilhamento de benefícios que vai além do compartilhamento direto com
os executores de determinada pesquisa. A DUBDH se baseia em marcos de referência
anteriores, como a Declaração Universal de Direitos Humanos50, que, em seu artigo
27, atesta que todo ser humano tem o direito de participar livremente da vida cultural
de sua comunidade, de fruir das artes e de participar do progresso científico e de seus
benefícios. Assim, todo ser humano, participante ou não da ciência, pesquisa ou inova-
ção, tem o direito inato de compartilhar dos benefícios do avanço científico51.

23
Bioética e Humanização em Oncologia

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26
2
Capítulo 2 | Histórico e importância da Declaração Universal sobre Bioética e Direitos
Humanos da UNESCO para o desenvolvimento da bioética no século XXI

Histórico e importância da
Declaração Universal sobre
Bioética e Direitos Humanos da
­UNESCO para o desenvolvimento
da bioética no século XXI
Volnei Garrafa

Introdução
O ano 2005 foi especial para a Bioética. A aprovação e a homologação da Declara-
ção Universal sobre Bioética e Direitos Humanos (DUBDH), durante a 33a.
Conferência Geral da United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization (Or-
ganização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura – U ­ NESCO),
celebrada em Paris, em 19 de outubro de 2005 , significaram, na prática concreta,
1

seu atestado de reconhecimento e maioridade. Como representante brasileiro que


prestou oficialmente assessoria técnico-científica à delegação diplomática do país
naquele importante evento da Organização das Nações Unidas (ONU), tive o pri-
vilégio não somente de acompanhar as etapas decisivas de sua delicada e complexa
construção e participar de cada uma delas, bem como hoje estou tendo a possibili-
dade de analisar, neste livro organizado pelo doutor Marcos Santos, seu desenvolvi-
mento histórico e seu conteúdo com uma visão mais “intestina” do processo.
Se a construção da Declaração foi difícil, passada pouco mais de uma década
de sua adoção é possível avaliar que valeu a pena a longa caminhada percorrida por
árduos caminhos durante sua elaboração. Apenas doze anos de vida significam mui-
to pouco tempo para que se possa avaliar, com precisão, o impacto e a importância
que a DUBDH atualmente exerce no contexto sociopolítico mundial. No entanto,

27
Bioética e Humanização em Oncologia

são inegáveis seu reconhecimento e sua aceitação em importantes meios acadêmi-


cos universitários, comitês hospitalares de bioética clínica e de pesquisa, organismos
profissionais de diferentes áreas, congressos, etc. É ainda importante registrar que
seu conteúdo tem servido de guia para a confecção de leis que orientam diferentes
países e seus organismos públicos representativos em temas de difícil consenso.
O objetivo do presente capítulo, portanto, é partir de um breve histórico da
bioética nos seus primeiros anos de vida – quando ficou evidenciada sua forte rela-
ção preferencial com as situações de limites ou fronteiras do desenvolvimento centí-
fico-tecnológico – prosseguindo com posteriores momentos de mudança da agenda,
com clara ampliação de sua abrangência e ação prática a partir da construção e
homologação da DUBDH. Nesse sentido, a partir dessa nova roupagem epistemoló-
gica ampliada da bioética, o texto procura avaliar, ainda, o impacto atual e futuro da
Declaração da U ­ NESCO no próprio desenvolvimento da bioética neste século XXI.

Alguns antecedentes – A emergência da bioética


biomédica no contexto contemporâneo
Conflitos morais relacionados com as fronteiras do desenvolvimento biotecnocientí-
fico sempre geraram fortes reações no imaginário social através dos tempos. Já qua-
se no final do século passado, dois acontecimentos registrados especificamente na
seara das novas tecnologias de reprodução assistida marcaram o mundo, atraindo a
atenção especialmente da academia e da imprensa: o nascimento de Louise Brown,
o “primeiro bebê de proveta”, produzido na Inglaterra em 1978; e o anúncio do nas-
cimento de Dolly, a ovelha clonada por Ian Wilmut, no Roslin Institute, em Glasgow,
Escócia, em 1997. Em ambas as ocasiões não foram poucas as vozes – científicas,
religiosas ou políticas – que reclamaram a altos brados que a humanidade estava
brincando de Deus2. Para alegria de todos e felicidade geral do planeta, no entanto,
nenhuma catástrofe aconteceu. Pelo contrário, hoje, diferentes técnicas de fecunda-
ção assistida fazem parte do arsenal terapêutico reprodutivo da maioria dos países e
a quantidade de animais clonados – inclusive por razões alimentares e de adaptação
ambiental – é grande. Mas tudo isso não deixou de gerar enormes controvérsias e foi
objeto central de acirradas discussões éticas, como veremos mais adiante.
Em ambos os casos anteriormente relatados, a emergência e a consolidação da
bioética foram fundamentais para que as reflexões morais acontecessem de modo

28
Capítulo 2 | Histórico e importância da Declaração Universal sobre Bioética e Direitos
Humanos da UNESCO para o desenvolvimento da bioética no século XXI

mais equilibrado, evitando, por um lado, abusos em nome da ciência e, por outro,
proibições descabidas3. Com uma base teórico-conceitual em construção desde o
início dos anos 1970, esse novo “território do saber” – na expressão do filósofo
italiano Francesco Bellino4 – passou a fornecer um rico e diversificado arsenal de
ferramentas teóricas e metodológicas capacitadas a contribuir para a resolução mais
adequada dos conflitos. Sua utilização metódica e aplicada, sustentada no diálogo,
na argumentação e na razão, passou a auxiliar de modo decisivo na construção
de consensos ou, pelo menos, no alcance de respostas eticamente aceitáveis e mais
equilibradas para os conflitos morais constatados nas sociedades hodiernas, princi-
palmente aqueles relacionados com o acelerado desenvolvimento da ciência.
Apesar de algumas controvérsias que deixarei de lado neste escrito, o neologismo
“bioética” surgiu e foi acolhido no mundo universitário e acadêmico no início dos
anos 1970 nos Estados Unidos, com o significado amplo e literal de “ética da vida”.
Gradativamente, no entanto, passou, na prática, a receber outra conotação, reduzi-
da aos assuntos biomédicos e biotecnológicos, característica com a qual acabou sen-
do reconhecido pelos cinco continentes, mais direcionado à relação dos profissionais
de saúde com seus pacientes e ao controle ético das pesquisas desenvolvidas com se-
res humanos. No entanto, passada a fase inicial de consolidação e reconhecimento,
que se estendeu até o final do século XX, estudiosos da área começaram a debater a
necessidade de a base epistemológica e de ação da bioética ser ampliada para outros
campos, especialmente o sanitário (direito à saúde, acesso a novos medicamentos...),
o social (exclusão, analfabetismo, discriminação, estigma...) e o ambiental (direito à
água e oxigênio limpos, respeito à biodiversidade, por exemplo).
As pessoas menos familiarizadas com a bioética poderão se perguntar sobre as
razões da construção de novos referenciais de sustentação conceitual para a discipli-
na, se, ao que parece, pelo menos aos olhos desavisados, ela já estaria definida desde
a sua criação, por Van Rensselaer Potter5, e da adequação dos chamados “quatro
princípios de Georgetown” (respeito à autonomia, não maleficência, beneficência e
justiça) como sua ferramenta metodológica hegemônica que passou a ser conhecida
como “Principialismo”6.
Imediatamente após a apresentação do livro que deu origem à bioética – Bioe-
thics, bridge to the future7, Potter teve sua proposta original utilizada e modificada por
outros pesquisadores, com um escopo essencialmente biomédico aplicado, como já
foi mencionado, principalmente às situações relacionadas com problemas na relação
profissional-paciente e dos investigadores e empresas com os sujeitos participantes

29
Bioética e Humanização em Oncologia

de pesquisas clínicas. Diversamente, seu criador imaginava a bioética com uma visão
de “ponte”, de uma ética que se relacionava com os fenômenos da vida humana no
seu mais amplo sentido, incorporando não somente temas da área médica e tam-
bém social, mas especialmente ambientais ligados à sustentabilidade do planeta.
Um pouco mais adiante, em 1988, para renovar e reforçar suas ideias, ele passou a
denominá-la de “Bioética Global”8.
No início dos anos 1990, no entanto, começaram a surgir críticas ao principia-
lismo e à pretensa universalidade de seus princípios a partir, principalmente, da ne-
cessidade que fossem respeitados os diferentes contextos sociais e culturais existentes
mesmo em um mundo globalizado, mas diversificado e, por extensão, as próprias
interpretações morais autóctones dadas aos diferentes conflitos ou problemas neles
registrados. Vozes discordantes passaram, então, a se manifestar nos próprios Esta-
dos Unidos9,10, na Europa11 e na América Latina12-15.

Os dois Congressos Mundiais que começaram a mudar


a agenda bioética – Tóquio/1998 e Brasília/2002
A partir do Quarto Congresso Mundial realizado em Tóquio, Japão, em 1998, a
bioética (re)começou a percorrer outros caminhos, tendo como referência o tema ofi-
cial do evento que foi “Bioética Global”. Com forte influência de Alastair C
­ ampbell,
então presidente da International Association of Bioethics (IAB), parte dos segui-
dores da bioética retornou aos trilhos originais delineados por Potter que, já bas-
tante idoso e enfermo, enviou uma videoconferência apresentada na abertura do
Congresso, onde reafirmou suas convicções originais. Nos estertores do século XX,
portanto, a disciplina passou a expandir suas fronteiras de estudo, incluindo no con-
texto das questões relacionadas à qualidade da vida humana assuntos que até então
apenas tangenciavam sua pauta, como o tema dos direitos humanos e da cidadania,
a questão da priorização na alocação de recursos sanitários escassos no setor saú-
de, a preservação da biodiversidade, a finitude dos recursos naturais planetários, o
equilíbrio do ecossistema, os alimentos transgênicos, o racismo e outras formas de
discriminação, etc.
Com o VI Congresso Mundial de Bioética, realizado em Brasília, em 2002, a voz
daqueles que não concordavam com o desequilíbrio verificado na balança tornou-se
mais forte, a partir da definição da temática do evento, que foi “Bioética, Poder e
Injustiça”16. Os fortes embates verificados no evento trouxeram à tona a necessidade

30
Capítulo 2 | Histórico e importância da Declaração Universal sobre Bioética e Direitos
Humanos da UNESCO para o desenvolvimento da bioética no século XXI

de a especialidade incorporar ao seu campo de reflexão e aplicação temas sociopolí-


ticos da atualidade, principalmente as agudas discrepâncias sociais e econômicas en-
tre ricos e pobres, entre as nações dos Hemisférios Norte e Sul do planeta. Segundo
Daniel Wickler, pesquisador e bioeticista estadunidense de Harvard, ex-presidente
da IAB e primeiro consultor de bioética da Organização Mundial da Saúde (OMS),
“a combinação entre bioética e política é nova e saudável para a área... Foi um feito
histórico que deu grande impulso à bioética na América Latina e no mundo”17.
Com as transformações e o novo ritmo que começou a ser experimentado no
contexto internacional da bioética, o escopo da ética aplicada deixou de ser consi-
derado como de índole supraestrutural, meramente individual e específica para, ao
contrário, passar a exigir participação direta da sociedade civil nas suas discussões
com vistas ao bem-estar futuro das pessoas e comunidades. A questão ética, pois,
passava a adquirir certa identidade pública, deixando de ser considerada apenas
uma questão de consciência a ser resolvida na esfera privada ou particular, de foro
individual ou exclusivamente íntimo18.
No alvorecer do século XXI, o jornal The New York Times alçou a bioética ao
seleto grupo dos dez temas prospectivos mais importantes para o novo milênio. Não
estava enganado... Atualmente, são incontáveis as atividades, em todo o mundo,
com ela relacionadas: Conselhos Nacionais, Regionais e Municipais de Bioética;
diferentes tipos de Comitês que analisam: pesquisas com seres humanos e animais;
problemas éticos relacionados com as diferentes categorias profissionais; questões
vinculadas às práticas hospitalares ou à ética clínica e assistencial... Além disso, é
significativo o número de: novas revistas científicas relacionadas com a área, seja
do campo biomédico, social, filosófico ou jurídico; congressos e outros eventos es-
pecializados; criação de novas disciplinas nas universidades e mesmo em escolas
secundárias, além de programas específicos de pós-graduação lato sensu (especializa-
ção) e stricto sensu (mestrado e doutorado), com inovadoras linhas de pesquisa. Mais
recentemente estágios especiais de pós-doutoramento já passam a ser frequentes nas
universidades mais avançadas.
Como já foi registrado no início deste capítulo, o reconhecimento definitivo da
bioética chegou em 2005 quando a U ­ NESCO proporcionou ao mundo a Declara-
ção Universal sobre Bioética e Direitos Humanos. O documento acabou incorpo-
rando as ideias que já vinham amadurecendo internacionalmente, especialmente na
América Latina, ampliando sua agenda para além dos campos inicialmente estabe-
lecidos, incorporando à nova pauta questões antes esquecidas ou relegadas. Entre

31
Bioética e Humanização em Oncologia

esses temas está, sem dúvida, o da humanização, do qual trata a presente obra.
Entre os 15 princípios que compõem parte dos 28 artigos da DUBDH, vários deles
têm relação direta com o assunto: respeito pela dignidade humana e os direitos hu-
manos (art. 3); respeito pela vulnerabilidade humana e pela integridade individual
(art. 8); igualdade, justiça e equidade (art. 10); não discriminação e não estigmatiza-
ção (art. 11); responsabilidade social e saúde (art. 14).

AU
­ NESCO, seus Comitês e as três
Declarações Internacionais
A ­UNESCO dispensou mais de dois anos de intensas discussões até alcançar um do-
cumento final que satisfizesse os interesses e as expectativas das diferentes linhas de
pensamento, muitas vezes conflitivos, além de política e culturalmente antagônicos
entre os diferentes países localizados em regiões geográficas remotas e com hábitos
diversos. A homologação da DUBDH se deu por aclamação, o que significa ter sido
referendada unanimemente pelos 191 países que na época integravam formalmente
as Nações Unidas. O percurso de sua construção, no entanto, foi longo e penoso,
entre avanços e retrocessos, passando por diversas versões preliminares coordena-
das pelo International Bioethics Committee (Comitê Internacional de Bioética – IBC) da
Organização, versões estas que posteriormente tinham ainda que passar pelo crivo
político decisório do Intergovernmental Bioethics Committee (Comitê Intergovernamental
Internacional de Bioética – IGBC).
Tanto o IBC como o IGBC foram criados em 1993, quando a U ­ NESCO era
dirigida pelo geneticista espanhol Federico Mayor, o qual, pela própria formação aca-
dêmica, entendeu como poucos a necessidade de que algum dos organismos da ONU
tomasse a frente com relação ao indispensável estabelecimento de limites e controle no
campo da engenharia genética, que começava freneticamente a despontar com ainda
maior vigor naquele momento histórico. A medida foi vista com reservas (e algum ciú-
me...) pela Organização Mundial da Saúde (OMS), que julgava ter monopólio sobre a
área. Contudo, sem hesitar, a ­UNESCO foi em frente na empreitada.
O IBC é formado por 36 membros rigorosamente selecionados, com currículos
e perfis científicos sólidos e internacionalmente reconhecidos. O mandato desses
membros é de quatro anos. Já o IGBC é composto por dirigentes diplomáticos e
políticos de 36 diferentes países, que se revezam na sua composição. Enquanto o
primeiro é consultivo e operativo, o segundo é decisivo na revisão das proposições,

32
Capítulo 2 | Histórico e importância da Declaração Universal sobre Bioética e Direitos
Humanos da UNESCO para o desenvolvimento da bioética no século XXI

uma vez que representa as posições oficiais dos países-membros em temas para eles
muitas vezes delicados sob os mais variados ângulos (técnico, cultural, religioso, etc.).
Voltando historicamente à década de 1990, esses dois comitês foram inicial-
mente responsáveis pela Declaração Universal sobre o Genoma Humano e
os Direitos Humanos19, adotada também por unanimidade na 29ª Conferência
Geral da U ­ NESCO realizada, sempre em Paris, em 11 de novembro de 1997. Tal
documento internacional determinou a importante diferença entre descoberta e
invenção, impedindo que pessoas, empresas ou mesmo países patenteassem com
objetivo de lucro as sequências decifradas de DNA (ácido desoxirribonucleico) que
estavam naquele momento sendo pioneiramente decifradas. A diferença exposta na
Declaração é sutil: descoberta é tudo aquilo que está na natureza e, portanto, não
pode ser patenteado. E invenção, por outro lado, é o produto de pesquisas e trabalho
científico desenvolvido a partir de unidades naturais e por isso sim pode ser paten-
teado. O documento, portanto, determinou que o Genoma Humano é propriedade
única do próprio ser humano, seu portador e componente individual, em última
instância, da própria espécie humana.
Logo a seguir, acompanhando a cronologia de atividades da ­­UNESCO nes-
se campo, os dois Comitês elaboraram a Declaração Internacional sobre os
Dados Genéticos Humanos20, aprovada sempre por unanimidade e aclamação,
agora em 16 de outubro de 2003, por ocasião da sua 32ª Conferência Geral. Essa
Declaração determinou, de modo inédito, o direito e a obrigatoriedade de manuten-
ção da confidencialidade dos dados genéticos de cada indivíduo. Tal medida definiu
que os dados genéticos de cada pessoa são de restrita propriedade dela mesma,
impedindo, por exemplo, que empresas inescrupulosas preocupadas exclusivamente
com lucros possam estabelecer restrições e mesmo impedimentos na seleção de tra-
balhadores a partir de características genéticas que possam no futuro virem propor-
cionar o desenvolvimento de doenças (de tratamento geralmente longo e oneroso...)
no seu portador. Em outras palavras, a Declaração impede que os avanços alcança-
dos pela ciência, em vez de incluir pessoas no mercado de trabalho, passem a ser
usados com objetivos exatamente opostos, de alijar, de excluir do sistema produtivo
laboral os indivíduos portadores de alterações genéticas.
Para terminar o presente tópico, é indispensável registrar que as Declarações
discutidas aqui não têm o poder de lei. São consideradas, para fins práticos, “Nor-
mas não Vinculantes”, ou seja, apesar de não terem poder legal na relação com as
legislações dos países que as homologaram, desfrutam no contexto internacional das

33
Bioética e Humanização em Oncologia

nações de um inegável poder moral. Além disso, vêm servindo como luz conduto-
ra segura desses países na elaboração de suas leis internas relacionadas com os mais
variados e delicados temas aqui tratados.

A DUBDH e o início de sua construção


As discussões com relação à terceira Declaração elaborada pela ­UNESCO e objeto do
presente capítulo – a DUBDH – começaram em julho de 2003 por meio de um draft
(borrador) inicial elaborado por dois dos mais eminentes membros do IBC: os profes-
sores Giovanni Berlinguer (mundialmente respeitado médico sanitarista, pesquisador,
bioeticista e parlamentar italiano) e Leonardo de Castro (reconhecido filósofo e bioe-
ticista filipino). Apesar dos avanços contidos no documento original, membros conser-
vadores do Comitê acabaram logrando a adição de diversas emendas ao seu conteúdo,
descaracterizando-o completamente com relação ao perfil inicialmente proposto. Os
diferentes interesses relacionados, direta ou indiretamente, com a Declaração fizeram
o documento passar por nada menos que sete diferentes versões.
Até outubro de 2004, o encaminhamento dado ao assunto reduzia a bioética a
questões especificamente relacionadas e direcionadas aos campos biomédico e bio-
tecnológico, com base no principialismo e de acordo com os interesses dos países
desenvolvidos que durante os embates trataram de evitar, a todo custo, a ampliação
da sua pauta. Desde o início do processo de construção da Declaração, os países da
América Latina, especialmente o Brasil, manifestaram seu veemente desacordo com
o rumo que o texto estava tomando. Esse rumo reduzia a raiz bios da bioética – que
significa vida no seu mais amplo sentido, de acordo com a conhecida definição
de saúde proposta pela OMS e que diz respeito ao “completo estado de bem-estar
físico, mental e social e não somente à ausência de doença” – a situações ligadas
exclusiva e diretamente à medicina, ignorando os inegáveis componentes sociais,
culturais e políticos relacionados, direta ou indiretamente, com a causalidade das
doenças por todo o mundo.
No início de novembro de 2004, por convocação do Ministério da Justiça da
Argentina, por meio de sua Secretaria de Direitos Humanos, com apoio decisivo da
Rede Latino-Americana e do Caribe de Bioética (Redbioética), foi promovida uma
reunião em Buenos Aires para discutir o assunto. Da referida reunião participaram,
como convidados, alguns membros do IBC: Michèle Jean (Canadá), então presi-
dente do Comitê, além de Christian Byk (juiz francês) e Hector Gross Espiell (que,

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Capítulo 2 | Histórico e importância da Declaração Universal sobre Bioética e Direitos
Humanos da UNESCO para o desenvolvimento da bioética no século XXI

além de ex-Ministro das Relações Exteriores do Uruguai, posteriormente foi seu


Embaixador na França e também na U ­ NESCO). Participou também do Encontro
o diretor da Divisão de Ética das Ciências e Tecnologias da ­UNESCO, o destacado
bioeticista holandês Henk ten Have, o qual, pelo seu cargo, funcionou como uma
espécie de secretário-geral de todo o processo de construção da Declaração.
Da América Latina estiveram presentes especialistas e representantes de 11 paí-
ses. Os três representantes brasileiros na reunião, indicados pela Sociedade Brasilei-
ra de Bioética (SBB) – Fermin Roland Schramm, José Eduardo de Siqueira e Volnei
Garrafa (então presidente da entidade) – tiveram o cuidado de solicitar uma reunião
prévia no Ministério das Relações Exteriores do Brasil, em Brasília, com o propósito
de levar uma posição oficial para a difícil e concorrida reunião, aqui relatada em
detalhes pela sua importância histórica.
O Encontro produziu dois documentos, ambos contundentes. Um deles, técnico,
colocava adendos específicos aos artigos já constantes do borrador que então estava
em discussão; e o outro, político, imediatamente traduzido para o inglês e distribuí-
do pelos cinco continentes, no qual os participantes criticavam duramente o direcio-
namento que estava sendo dado à Declaração, advogando profundas alterações no
seu teor. A partir daí as coisas começaram a mudar...

Ano 2005 – As reuniões decisivas


O ano de 2005 passou a ser visto como decisivo, pois se tratava do prazo limite
acertado entre os países para consecução do documento final. Ao todo foram nada
menos que três concorridas e disputadas reuniões, a seguir relatadas.
A reunião ordinária do IBC realizada em janeiro de 2005, a partir das críticas
provenientes das nações latino-americanas, mas também de outros países, preparou
um novo draft bastante diferente dos anteriores, o qual subsidiou as duas reuniões
decisivas dos chamados “Experts Governamentais Nível II” que representavam ofi-
cialmente os diversos países, desenvolvidas em abril e junho, respectivamente, sem-
pre na capital francesa.
A 1ª Reunião dos Experts Governamentais Nível II ocorreu entre os dias 8 e 10
de abril de 2002. Nela aconteceu um fato inusitado, que demonstra as dificuldades
que surgiam no decorrer das discussões, devido a posições diametralmente opostas
defendidas pelos diferentes países, de regiões geográficas e culturas diversas. O Ar-
tigo 1º da DUBDH, por exemplo, já deveria apresentar o “Conceito de Bioética”.

35
Bioética e Humanização em Oncologia

Após três intensos dias de discussões, o avanço foi nulo, não tendo sido logrado
alcançar consenso sequer para redigir uma única linha, em uma clara divisão entre
as diferenças existentes.
A postura dos países ricos do hemisfério norte se contrapunha às posições dos
países pobres e em desenvolvimento do hemisfério sul. Na essência, o que estava em
luta era: a posição mais conservadora e mercadológica dos países centrais, preocu-
pados principalmente com as questões biomédicas, seus avanços e a questão do con-
trole ético das pesquisas com seres humanos, tema especialmente caro aos ricos con-
glomerados internacionais de medicamentos; e a posição mais aberta e generosa dos
países periféricos do sul, que defendiam uma proposta que não excluía a anterior,
mas incluía também as questões persistentes constatadas no cotidiano das pessoas
pobres e excluídas do processo desenvolvimentista mundial. No final, ficou decidido
pelo menos que a Declaração não iria comportar uma definição de Bioética e que
esta deveria ser desenvolvida individualmente por cada país ou região.
Esse encaminhamento não deixou de ser uma primeira vitória dos países perifé-
ricos, pois significava, em outras palavras, que a bioética não é única e que não existe
uma só Bioética. E que, nesse sentido, na busca de aproximações possíveis ao seu
conceito, esse não pode prescindir de considerar o respeito à pluralidade moral de
cada cultura. Dessa forma, evitou-se para o futuro a imposição de um imperialismo
moral direcionado do centro à periferia do mundo, das nações mais fortes em relação
às mais frágeis. O resultado da reunião, no entanto, gerou muita insegurança entre os
países participantes no sentido de que a construção da Declaração poderia ser fadada
ao fracasso caso não se alcançasse pelo menos uma base inicial para dar o rumo das
discussões na segunda reunião, prevista para junho. Outro ponto positivo alcança-
do pelos países periféricos foi a proposta vencedora de que se criasse uma comissão
com membros de diferentes países, que teria como referência os drafts anteriores e
as discussões desenvolvidas na primeira reunião, incumbida de elaborar um novo
documento básico. Para coordenador do grupo foi eleito o embaixador do Uruguai.
A 2ª Reunião dos Experts Governamentais, decisiva para o alcance do objetivo
central de todo o processo aqui apresentado, aconteceu entre os dias 20 e 24 de
junho de 2005. Nessa segunda etapa, os ânimos estavam mais serenados, com cada
lado cedendo um pouco na busca de um documento que equilibrasse, na medida
do possível, as posições em confronto. Nessa reunião ficou ainda mais evidenciada
a união de pensamento, das intervenções e especialmente de votos nas decisões sub-
metidas a esse tipo de processo, entre os países da América Latina, África e Índia.

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Capítulo 2 | Histórico e importância da Declaração Universal sobre Bioética e Direitos
Humanos da UNESCO para o desenvolvimento da bioética no século XXI

As principais diferenças gerais se davam com relação à inclusão (ou não) de certos
temas polêmicos como a solidariedade entre as nações e os benefícios compartilha-
dos com relação aos progressos nas pesquisas, entre outros... O artigo 14, que trata
da Responsabilidade Social e Saúde, foi objeto do embate mais difícil, uma vez que
em países como os Estados Unidos o acesso aos serviços de saúde não constitui um
direito (humano) das pessoas, mas um bem de mercado que possa ser comprado por
quem tenha recursos financeiros. Finalmente, vencidos todos os 28 artigos, um a um,
palavra por palavra, linha após linha, parágrafo após parágrafo, o formato final da
DUBDH foi estabelecido, com a concordância de todos os países presentes. Estava
felizmente salva a Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos.
Seu teor final foi levado à homologação na Conferência Geral da ­UNESCO
de outubro/2005, como já expressado no início do capítulo, e incorporou definiti-
vamente à agenda bioética do século XXI, além dos temas biomédicos e bio-
tecnológicos, já contemplados desde os debates iniciais, também as questões
sanitárias, sociais e ambientais, fato de grande interesse para as nações do
hemisfério sul do planeta, entendido este como um conceito geopolítico e não mera
e exclusivamente geográfico. Assim, a luta dos países latino-americanos, secundada
pela quase totalidade das nações africanas, por diversos países árabes e pela Índia
e outras nações do sul da Ásia, passou a fazer parte da nova pauta internacional da
bioética, politizando definitivamente seus rumos.
A reunião final de 19 de outubro de 2005, coincidindo com a 33ª Conferência
Geral da U ­ NESCO, serviu festivamente apenas para a homologação do documento
e uma grande confraternização entre os atores que participaram da difícil mas gra-
tificante caminhada em prol de um mundo melhor e mais justo.

Importância da DUBDH para o desenvolvimento


da bioética no século XXI
O IX Congresso Brasileiro de Bioética foi realizado em Brasília em setembro de
2011 e, como presidente, fiz a saudação de abertura do evento. A intervenção deu
origem a um artigo publicado no ano seguinte com o título “Ampliação e politiza-
ção do conceito internacional de bioética”21. O texto, que tem relação direta com a
temática que encerra o capítulo, foi dividido em três partes: 1. Panorama geral em
2012 – Razões que exigem mudanças; 2. Alguns problemas antigos e outros novos

37
Bioética e Humanização em Oncologia

nos quais a bioética vem falhando (ou não se manifestando como deveria...); 3. Me-
didas e mudanças necessárias para enfrentar os antigos e novos problemas.
O trabalho começa tomando como referência algumas questões negativas que
então vinham acontecendo no contexto global, como as tentativas (e o êxito...) dos
grandes conglomerados farmacêuticos internacionais – infelizmente, com apoio da
OMS e da Associação Médica Mundial (World Medical Association – WMA) – em in-
troduzir profundas mudanças no conteúdo da Declaração de Helsinque, documento
tido até então como de reconhecido valor moral com relação ao controle ético das
pesquisas com seres humanos em todo o mundo e contra os quais nos manifestamos
de modo veemente por meio de vários artigos publicados em periódicos científi-
cos22-25. Nesse sentido, o artigo anteriormente comentado defendia a necessidade de
que os países componentes do sistema das Nações Unidas passassem a fazer uso mais
firme e crescente da DUBDH para enfrentar esse e outros problemas que foram
tratados no tópico seguinte.
O segundo ponto levantou algumas questões nas quais a bioética vinha falhando
ou se omitindo e sobre as quais nossa equipe de pesquisadores da Cátedra ­UNESCO
de Bioética da Universidade de Brasília começou nos anos seguintes a se dedicar
criticamente, entre as quais: comercialização dos estudos clínicos e das revisões éti-
cas das pesquisas com seres humanos26; consentimento informado e vulnerabilidade
social27,28; benefícios realmente compartilhados29; responsabilidade social e saúde30;
conflitos de interesse.
O terceiro e último tópico do artigo, por sua vez, apresentava algumas inicia-
tivas que se faziam necessárias para o enfrentamento dos problemas apontados:
utilização efetiva dos princípios e referenciais da DUBDH apresentados e defen-
didos no texto; construção de novos marcos internacionais de proteção humana;
elaboração, revisão e/ou reforço de normas nacionais de controle e dos comitês
de bioética e de ética em pesquisa; e o estabelecimento de referenciais confiáveis e
equilibrados na construção de novo discurso e prática bioética, incluindo: o apro-
fundamento de questões como a busca de diálogo exaustivo entre os participantes
de um debate antes da tomada de decisões; o uso de argumentação coerente nos
embates discursivos; a utilização da racionalidade como objeto de reflexão que
torna os discursos éticos mais harmônicos e equilibrados; a coerência na busca de
respostas moralmente aceitáveis e de aplicação prática; a procura exaustiva da difí-
cil construção de consensos; e, por fim, após esses consensos serem logrados, haver
disposição para a tomada de decisões.

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Capítulo 2 | Histórico e importância da Declaração Universal sobre Bioética e Direitos
Humanos da UNESCO para o desenvolvimento da bioética no século XXI

Passados poucos anos da apresentação da argumentação citada e procurando


fugir da tentação de cair em otimismo exagerado, é necessário registrar que algumas
transformações, embora com velocidade menor que o desejado, vêm acontecendo
no contexto do panorama exposto, ampliando o debate e as opções. Entre estas ain-
da tímidas mudanças, podem ser assinalados principalmente a crescente construção
de novos núcleos acadêmicos e o aumento da visibilidade internacional da bioética
por meio da criação de programas e disciplinas na pós-graduação, além da inclusão
de novas disciplinas nos currículos de graduação de diferentes cursos não somente
das áreas biomédicas, mas também no direito e nas ciências humanas e sociais. Tais
atividades proporcionam, naturalmente, promissor espaço para o desenvolvimento
de estudos que passam a ser divulgados em livros, nas revistas científicas e mesmo
na imprensa leiga, a partir dos resultados de pesquisas independentes, de teses de
doutorado, de dissertações de mestrado e de trabalhos de iniciação científica e con-
clusão de cursos.
Igualmente, é indispensável registrar que entidades associativas e profissionais
de diferentes áreas vêm ampliando o espaço da bioética nas suas revistas, boletins
informativos e congressos. Além disso, organismos públicos do poder executivo (mi-
nistérios, secretarias, departamentos...), do legislativo (câmaras municipais de ve-
readores, câmaras estaduais e federais de deputados, além do senado federal) e do
judiciário (os tribunais das diversas instâncias) também têm utilizado as ferramentas
teóricas e práticas proporcionadas pela bioética, nas suas intervenções, operações,
justificativas no próprio encaminhamento de decisões.
Todo esse movimento – dentro dos marcos de referência da DUBDH – oportuni-
za uma maior visibilidade para as reflexões relacionadas com as diferentes situações
morais de interesse e responsabilidade da bioética, possibilitando principalmente
o aprofundamento crítico dos macroproblemas – das chamadas “situações persis-
tentes” – que afetam cotidianamente grandes contingentes de pessoas socialmente
excluídas por todo o planeta. O conjunto dos argumentos aqui apresentados reforça
a percepção de que vem acontecendo internacionalmente uma lenta mas crescente
politização da agenda bioética, já mencionada, fato que a coloca em um patamar de
ferramenta aplicada realmente crítica e concretamente interventiva.
Para encerrar, deve ser lembrado que documentos construídos coletivamente
pela comunidade internacional de nações normalmente levam muitos anos – e mes-
mo décadas – para ter seu reconhecimento e visibilidade alcançados no contexto
global. A histórica Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, por exem-

39
Bioética e Humanização em Oncologia

plo, passou a ser de fato aceita e citada com regular frequência somente a partir dos
anos 1970, ou seja, quase três décadas depois de sua promulgação. A Declaração de
Bioética da U­ NESCO, mesmo sendo uma declaração setorial com menor impac-
to e abrangência do que a acima registrada, apenas completou a primeira década
de vida; mas mesmo assim seus resultados já começam gradualmente a aparecer,
conforme foi visto nas reflexões expostas neste capítulo. O conjunto de todos esses
movimentos vem fazendo os países e seus organismos representativos, nos três níveis
político-administrativos (executivo, legislativo e judiciário), mais e mais assumirem
o compromisso de utilizar seus princípios e referenciais, incorporando-os às suas
práticas públicas.

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41
Capítulo 3 | Pesquisa clínica atual – Um olhar da (bio)ética

3
Pesquisa clínica atual –
Um olhar da (bio)ética
Karla Patrícia Cardoso Amorim

Introdução
O incentivo e o apoio à pesquisa clínica são de suma importância, sobretudo, em
se tratando da oncológica, face o alerta e as estimativas da União Internacional
Contra o Câncer (UICC), para um aumento de 50% no número de novos casos de
câncer e o dobro do número de mortes até 2020. No cenário brasileiro, esse desafio
apresenta-se maior, visto que a sobrevida em câncer fica em torno de 2 a 4 anos,
enquanto nos países desenvolvidos esse índice sobe de 12 a 16 anos1.
Entretanto, como se sabe, a ciência, ao longo dos tempos, proporcionou um
acúmulo de conhecimentos, os quais, necessariamente, não se pautaram por um
progresso ético/moral. E esse descompasso, cada vez mais acentuado, repercute ne-
gativamente nas diferentes esferas da vida, e, nesse caso em particular, na atividade
de pesquisa.
A discussão acerca da ética assume, no atual contexto, uma elevada significação,
considerando sua importância diante de uma realidade em que se observa, con-
comitantemente, um avançado desenvolvimento tecnocientífico, convivendo com
uma diversidade de problemas que se apresentam no modelo de sociedade em que
vivemos, tais como: doenças emergentes e persistentes; fome; miséria; violência; ra-
cismo; exclusão social; desrespeitos ao ser humano e ao meio ambiente, entre tantos

43
Bioética e Humanização em Oncologia

outros, que atentam contra a vida. Assim, essa tensão entre progresso científico e
desenvolvimento social traz para o cerne da discussão a ética, tornando tal reflexão
indispensável à formação e à prática em pesquisa.
A ética deve ser incorporada como parte indissociável do saber científico, tendo-
-se a consciência de que ela é a pedra angular de todo o processo para a tomada de
decisões, escolhas e ações daqueles envolvidos nas atividades científicas. O intuito é
buscar, primordialmente, um equilíbrio entre o processo de investigação científica e
a proteção das pessoas e sociedades que dela participam, procurando, nesse curso,
promover o exercício do respeito e da responsabilidade em prol de uma melhor qua-
lidade de vida e dignidade para todos. Seria a busca por uma aliança entre a ciência
e a humanidade, como propôs Potter2 na gênese da bioética.
No cenário atual das pesquisas clínicas, é preciso ter a consciência crítica que
tais pesquisas, especificamente os ensaios clínicos na área de medicamentos, tor-
naram-se no final do século passado e início deste, definitivamente, uma atividade
industrial3, em que vem sobressaindo, para o bem e para o mal, o poder do mercado
farmacêutico.
Dessa forma, o objetivo do presente ensaio é refletir de forma crítica a respeito
do papel da (bio)ética, como fio condutor de todas as etapas do processo da pesquisa
clínica, no contexto de poder do mercado e de desigualdade social, e apontar alguns
impasses, lacunas e questões desafiadoras que deverão ser consideradas e enfrenta-
das, com urgência, por todos que buscam desenvolver e garantir a construção de
uma ciência responsável e consciente, como adverte Edgar Morin4.
Assim, por questões didáticas, optou-se por apresentar as questões (bio)éticas
concretas, que ainda necessitam ser enfrentadas no processo de pesquisa, com base
nos seguintes tópicos: a) Concepção e elaboração da pesquisa clínica; b) Avaliação
e acompanhamento por Comitês de Ética em Pesquisa; c) Os participantes das pes-
quisas clínicas; d) A condução da pesquisa; e) Fase pós-estudo e f) Divulgação dos
resultados.
É importante explicitar que o texto tem como base a experiência da autora
como professora-pesquisadora na área da bioética e ex-coordenadora de um Comitê
de Ética em Pesquisa.

44
Capítulo 3 | Pesquisa clínica atual – Um olhar da (bio)ética

As questões (bio)éticas e a pesquisa clínica atual


CONCEPÇÃO E ELABORAÇÃO DA PESQUISA CLÍNICA
Um aspecto pouco falado e debatido no âmbito científico, porém, contido na Reso-
lução do Conselho Nacional de Saúde (CNS) 466/125 (vigente atualmente no Bra-
sil), é a questão da importância social do estudo e do seu retorno/contribuição à
sociedade. Ou seja, ao se planejar uma pesquisa, tal planejamento não poderá estar
dissociado de uma reflexão a respeito da probabilidade que o estudo terá de con-
tribuir com a saúde, o bem-estar e a melhoria das condições de vida da população
envolvida, principalmente, quando financiada com recursos públicos.
Essa forma de pensar irá provocar uma reflexão sobre os valores e finalidades
envolvidos no processo de pesquisar e gerar conhecimentos, confirmando, assim,
tratar-se de uma questão de cunho ético. Nesse sentido, surgem questões: O que
pesquisar? Por que pesquisar um determinado medicamento ou tratamento? Quem
deverá patrocinar estas pesquisas? Por que priorizar determinadas áreas em detri-
mento de outras? Indo mais além: Pelo fato de os recursos públicos destinados ao
financiamento das pesquisas serem limitados, deverá haver prioridade nesse sentido?
As respostas para essas indagações, também, levam o debate para o campo da polí-
tica, havendo, assim, a necessidade de um maior envolvimento da sociedade, o que
justifica e respalda o fato de o sistema brasileiro de gestão e avaliação das pesquisas
envolvendo seres humanos – o sistema formado pela Comissão Nacional de Ética
em Pesquisa (CONEP) e pelos diversos Comitês de Ética em Pesquisa (CEP), distri-
buídos por todas as regiões do País, estar vinculado ao Conselho Nacional de Saúde
(CNS). Entretanto, apesar dessa ligação com o CNS, na prática, efetivamente, esse
debate não tem atingido a sociedade em geral, demostrando que a função educativa
e o controle social, esperados do referido Sistema, ainda não se materializaram de
maneira efetiva.
Na área da pesquisa clínica, a escolha do que pesquisar não deve estar alheia
às necessidades e prioridades da sociedade, com base em dados epidemiológicos e
sociodemográficos, principalmente, quando financiada pelo Estado. Porém, não é
isso que se observa na maioria das vezes.
Na atualidade, o maior patrocinador dos ensaios clínicos para o desenvolvimen-
to de novos medicamentos é a indústria farmacêutica. Esse seguimento constitui-se
em empresas, as quais seguem a lógica do mercado. Nessa lógica, é necessário ver
quais as atividades que dão mais retorno financeiro, para se investir e garantir lu-

45
Bioética e Humanização em Oncologia

cros, fato que, na maioria das vezes, não está em consonância com as necessidades
prioritárias da sociedade. Angell6 alerta “a respeito da prudência de confiar o de-
senvolvimento de medicamento a uma indústria cuja responsabilidade é totalmente
voltada para investidores, e não para o público (exceto no sentido restrito de que os
medicamentos devem ser seguros e eficazes)” ( p. 65). Urge, então, a necessidade de
maior apoio e incentivo à pesquisa clínica por parte do Estado, respeitando uma
lógica conduzida pela ética e não pelo mercado.

AVALIAÇÃO E ACOMPANHAMENTO POR


COMITÊS DE ÉTICA EM PESQUISA
O Brasil conta atualmente com um reconhecido sistema de avaliação ética de pes-
quisas envolvendo seres humanos, em funcionamento há 20 anos, criado pela Reso-
lução CNS 196/96, citado anteriormente – o Sistema CEP-CONEP.
No entanto, observa-se que, com aumento gradual e progressivo do número de
pesquisas no Brasil, a eficácia e a efetividade deste Sistema, principalmente, nesses
últimos anos, vêm sendo questionadas, criticadas e colocadas em xeque. A prova
disso são algumas propostas, inclusive em trâmite no Congresso Nacional atual-
mente, que, por vezes, visam diminuir os direitos e as conquistas sociais alcançados
até o presente, como é o caso do projeto de lei – PLS 200/2015, que, da forma que está
posto, acaba com a estrutura atual da CONEP e reduz os direitos dos doentes que participam
de pesquisas.
É importante ter consciência, ao se falar em sistema de gestão da ética em pes-
quisa, que isso não pode ser limitado à apreciação inicial da pesquisa e à avaliação
normativa por parte do Sistema CEP-CONEP, uma vez que as normas, apesar de
serem necessárias, não são capazes de abarcar a complexidade das questões que se
apresentam, diuturnamente, sendo indispensável e urgente o exercício de uma edu-
cação em prol de uma cultura ética.
Como adverte Rego7, mais do que impor regras aos atores envolvidos na ques-
tão, precisa-se estimular o desenvolvimento de uma competência moral, para que
possam realizar julgamentos e agirem em conformidade com eles. Para isso, o autor
aponta para o papel importante da educação, seja no âmbito da graduação ou pós-
-graduação, de estimular o raciocínio crítico aos futuros profissionais e cientistas.
Indo-se mais além do pensamento do autor, acredita-se que essa educação em prol
de uma cultura ética na ciência deverá ser iniciada desde a infância e abranger a
sociedade em geral, por meio de inúmeras estratégias e instituições.

46
Capítulo 3 | Pesquisa clínica atual – Um olhar da (bio)ética

Porém, é salutar expor que, nessa mesma perspectiva, sobretudo, deverão en-
contrar-se os membros dos Comitês de Ética. Esses membros devem ser escolhidos
a partir de um perfil adequado, no qual tenham como o norte principal do seu
trabalho a proteção, o respeito à dignidade dos sujeitos e o fomento de uma cultura
ética na pesquisa. Para tanto, deverão estar dispostos a fazer um contínuo exercício
de crítica e reflexão, buscando fugir das acomodações das respostas uniformes, fá-
ceis e prontas das normas, visto que as pesquisas, nas mais diversas áreas do saber,
trazem questões e desafios diversos que não poderão ser analisados em uma única
perspectiva. Por exemplo, uma pesquisa social na área das humanidades não poderá
ser avaliada sob os mesmos parâmetros utilizados para análise de um ensaio clínico
e vice-versa; ou ainda, mesmo em se tratando de ensaios clínicos, cada um terá pe-
culiaridades éticas, os quais deverão ser avaliados com base nas suas características
particulares.
Atualmente, a questão da consolidação do Sistema CEP-CONEP, também, pas-
sa pela necessidade de valorização e reconhecimento desse trabalho nas instituições.
Observa-se que a demanda do número de pesquisa vem aumentando, progressiva-
mente, e que, por exemplo, pela falta de incentivo que um professor de uma Insti-
tuição de Ensino Superior tem, na maioria das vezes, em participar do CEP, ele se
recusa a fazer parte. Esse fato tem resultado em uma escassez de pessoas qualificadas
e com o perfil, dispostas a atuarem como membros.
Essa questão importante pode provocar, assim, uma queda de qualidade ou
atraso das apreciações éticas e início da pesquisa, pois haverá uma demanda muito
maior do que a real capacidade de trabalho do Comitê. Tal situação concreta provo-
ca uma insatisfação generalizada, podendo afetar (e já está afetando) a credibilidade
de um Sistema tão importante para efetivação da ética na pesquisa.
Essa demora, além do razoável, para uma efetiva avaliação ética por questões de
falta de estrutura do Sistema CEP-CONEP é, em si mesma, uma séria questão ética
a ser enfrentada. Atrasar a liberação do início de uma pesquisa ou mesmo demorar
a aprovar uma nova versão de um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido
(TCLE), na área da oncologia, em que o fator tempo é primordial, suscita questões
éticas importantes para o próprio Sistema CEP-CONEP, permitindo críticas e ata-
ques que poderiam ser evitados, ou mesmo nunca serem feitos, se o Sistema funcio-
nasse dentro de uma estrutura adequada à demanda real vigente.
Assim, a infraestrutura e o processo de trabalho do Sistema CEP-CONEP, em
todos os âmbitos, são pontos que merecem ser revistos urgentemente. Há uma ne-

47
Bioética e Humanização em Oncologia

cessidade de se repensar e reavaliar tais aspectos. Não é sustentável continuar dentro


de uma perspectiva quase que “amadora”, dependente da boa vontade dos “volun-
tários” e de Comitês que, muitas vezes, não têm uma estrutura de funcionamento
básica. As demandas atuais sinalizam e exigem uma inevitável “profissionalização”
do setor, com total apoio das instituições envolvidas e de todas as instâncias rela-
cionadas ao Sistema CEP-CONEP. Muitos devem se perguntar: o que se quis dizer
com profissionalização? Seria, no mínimo, propiciar que os Comitês sejam formados
por pessoas qualificadas a fazerem o julgamento ético dos protocolos de pesquisas,
isentas de conflitos de interesse, atuando de livre e espontânea vontade, tendo o seu
trabalho reconhecido e, principalmente, trabalhando com uma estrutura adequada
ao tamanho da demanda.
Vale ainda ressaltar que a Resolução CNS 466/125 prevê como uma competên-
cia dos CEP acompanhar o desenvolvimento das pesquisas. Entretanto, com base
na atual demanda e estrutura do Sistema, esse acompanhamento tem ficado em
segundo plano. Um exemplo emblemático dessa afirmação foi o fato envolvendo um
grupo de ribeirinhos de São Raimundo do Pirativa – Amapá em uma pesquisa, os
quais recebiam doze reais para levar picadas de 100 mosquitos ao longo de um ano,
e que, segundo relatos, muitos contraíram a malária8. Neste caso, ficou evidencia-
do que a falta de acompanhamento efetivo da pesquisa possibilitou uma prática e
procedimentos que não haviam sido apreciados de início e autorizados pelo Sistema
CEP-CONEP.
Visualiza-se com muita clareza que, no decurso desses 20 anos de existência, o
Sistema CEP-CONEP passou e ainda passa por “momentos” diferentes, quais se-
jam: o momento de criação relacionado com a aprovação da Resolução CNS 196/96,
estabelecendo um sistema de controle social para analisar e acompanhar os aspectos
éticos das pesquisas com seres humanos; o momento de expansão e o momento de con-
solidação, os quais ainda estão em pleno curso (pois, desde 1996, há um crescimento
no número de CEP nas diversas instituições de ensino e pesquisa no País, totalizando
739 Comitês em novembro de 2015 – segundo dados da CONEP). Entretanto, tem-
-se urgência que o Sistema entre, efetivamente, no momento de avaliação permanente e
revisão crítica, para que, na prática, ele possa realmente dar conta dos inúmeros desa-
fios, propiciando um real avanço científico aliado ao avanço ético-social, ratificando,
sobretudo, o respeito à dignidade das pessoas (participantes das pesquisas).
Dessa forma, algumas questões vivenciadas atualmente no âmbito das pesquisas
brasileiras, se não enfrentadas com certa emergência, colocam o importante e ne-

48
Capítulo 3 | Pesquisa clínica atual – Um olhar da (bio)ética

cessário Sistema CEP-CONEP (pensado e constituído para ser um sistema transpa-


rente e de controle social, em prol de uma ciência ética que valoriza a dignidade dos
participantes das pesquisas) no descrédito. Esse descrédito propicia aos que buscam
outros interesses primários, principalmente econômicos, defenderem a sua extinção,
ou, no mínimo, proporem mudanças que relativizam muito o rigor ético e os cuida-
dos com os participantes de pesquisa.

OS PARTICIPANTES DAS PESQUISAS CLÍNICAS


A partir deste tópico, serão feitas algumas reflexões e discussões com base nos re-
sultados de um estudo realizado pela autora, em um Centro de Pesquisa Clínica em
oncologia da cidade de Natal, estado do Rio Grande do Norte (RN) – localizado na
região Nordeste do Brasil, nos anos de 2013 e 2014. Vale ressaltar que esse Centro
é considerado uma instituição de referência no tratamento do câncer no RN. Esta
pesquisa foi financiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e
Tecnológico (CNPq) e teve como objetivo conhecer quem são os participantes de
ensaios clínicos da área da oncologia e os aspectos envolvidos nas suas decisões de
participarem de estudos dessa natureza.
O trabalho foi desenvolvido em duas etapas. A primeira, de caráter quantitativo,
teve objetivo de mostrar o perfil socioeconômico (idade, sexo, grau de escolaridade,
renda familiar, lugar de residência, se possui ou não assistência de saúde privada
etc.) de todos 62 pacientes/participantes dos 16 ensaios clínicos desenvolvidos no
Centro de Pesquisa estudado e que constituíram a população do trabalho.
Na segunda etapa, de cunho qualitativo, realizaram-se entrevistas semiestrutu-
radas com 11 desses pacientes que estavam participando ou tinham participado dos
estudos clínicos. Buscou-se captar, por meio dos depoimentos dos entrevistados, os
seguintes dados: decisão e motivação para participar em estudos clínicos; experiên-
cia de ser voluntário em pesquisa em saúde; processo de consentimento livre e escla-
recido; conhecimento a respeito dos riscos e benefícios a que foram submetidos; e os
cuidados durante e pós-estudos que lhes foram dispensados.
Partiu-se da perspectiva de que muito pouco se sabe sobre os pacientes onco-
lógicos/participantes de pesquisa clínica em países com grandes desigualdades so-
ciais e pouca atenção lhes é dispensada pelo mundo científico e acadêmico. Nesse
contexto, é indispensável se questionar a respeito da autonomia e da dignidade do
ser humano: existe realmente autonomia onde faltam meios para suprir as necessi-
dades mais básicas do ser humano? Com relação ao TCLE: será que, em estado de

49
Bioética e Humanização em Oncologia

vulnerabilidade socioeconômica e analfabetismo, não se teria na maioria das vezes,


no máximo, um termo de consentimento meramente informado e assinado por um
paciente passivo, em vez de livre e esclarecido? Quanto ao motivo pelo qual os pa-
cientes aceitam participar de pesquisas clínicas, seria, principalmente, pela falta de
opção de tratamento, dificuldade de acesso a medicações e exames complementares
de alta complexidade9, uma vez que há dificuldade no acesso ao serviço público de
saúde em países como o Brasil? Ou por um sentimento realmente solidário e cons-
ciente que objetive contribuir com o progresso da ciência? Ou, ainda, pela busca da
possibilidade de cura?
Neste estudo, buscou-se responder a tais questões. Observou-se que quase a tota-
lidade dos pacientes participava de estudo clínico fase 3; apenas 3,23% dos pacientes
estavam em estudos fase 2; e nenhum paciente participava de estudo nas fases 1 e 4.
Dos 62 pacientes, 77,42% eram mulheres e 22,58% homens, com idades distri-
buídas conforme o Gráfico 1.
É importante divulgar que a informação sobre o grau de escolaridade foi uma
das questões com maior ausência. Em mais da metade – 54,84% – essa informa-
ção não estava preenchida nos documentos. Entre os pacientes com a escolaridade
identificada, a maioria (27,42%) tinha apenas o ensino fundamental; 11,29% eram
analfabetos; 3,23% tinham o ensino médio, mesma porcentagem dos que possuíam
ensino superior.

10 -

8-
Número de pacientes

6-

4-

2-

0-
20 40 60 80 100 120
Idade (anos)

Gráfico 1. Distribuição das idades dos pacientes participantes dos ensaios clínicos
no Centro de Pesquisa.

50
Capítulo 3 | Pesquisa clínica atual – Um olhar da (bio)ética

Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios10, realizada em 2012


pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a região Nordeste do País,
região do Centro estudado, é a que ainda concentra o maior número de analfabetos
– 54,14% do total nacional. A situação fica pior quando se consideram os analfabe-
tos funcionais. Vale ainda salientar que o analfabetismo é maior entre as pessoas de
mais idade, que representa a maioria dos pacientes do referido estudo.
Sobre a profissão do paciente, verificou-se que 46,78% dos participantes eram
aposentados ou do lar. Pelo tipo de profissão dos sujeitos, pode-se estimar a renda fa-
miliar, visto que esta foi o quesito com maior ausência de informação nos documen-
tos. Dos 62 pacientes, a informação sobre a renda estava disponível em apenas 13
casos. Desses, apenas dois pacientes recebiam mais de três salários-mínimos (SM), e
os demais recebiam menos que isso, ou não tinham renda fixa.
Quanto ao local de residência, em todos os formulários havia essa informação:
38,71% moravam em Natal e 61,29%, em outros municípios do estado. Entre os
pacientes que moravam em Natal a maior concentração estava na Zona Norte da
cidade (14,52%) e Zona Oeste (12,90%), as duas regiões que apresentam a menor
renda per capita, sendo a Zona Oeste a mais pobre da cidade.
Nada menos que 83,87% dos pacientes não tinham assistência à saúde privada;
apenas 16,13% possuíam essa assistência.
Verifica-se, nos ensaios clínicos, a predominância de pacientes com menor grau
de instrução e renda11. No estudo realizado, apesar de essa predominância ter se
revelado também, observou-se a participação de pessoas de todos os níveis socioeco-
nômicos, fato que poderia ser explicado pela natureza e característica da doença – o
câncer, e a confiança depositada no Centro estudado, por ser essa uma instituição de
referência na área no estado do RN.
Quando indagados a respeito da razão de terem aceitado o convite para parti-
cipar de uma pesquisa clínica, verificou-se que, em síntese, as respostas giravam em
torno do fato de quererem curar-se do câncer. Ou seja, no caso do câncer, pesou a
gravidade da doença e o fato de as terapias usuais não estarem fazendo efeito, sendo
a pesquisa vista por esses sujeitos como a única alternativa.
Os pacientes também justificaram a razão da participação pela garantia dos
exames e do acompanhamento médico regular e frequente do quadro grave de saú-
de, não garantidos de forma eficaz pelo serviço público. A procura por opções de
tratamento médico pode sinalizar a precariedade de serviços de saúde disponíveis
para a população, fazendo esses participantes buscarem a alternativa das pesquisas

51
Bioética e Humanização em Oncologia

clínicas12. Esse fator, apesar de se fazer mais presente nos países em desenvolvimen-
to13, é encontrado em estudos em todo o mundo14-16. Vale ressaltar que apenas um
único participante apontou o fato de querer contribuir com a ciência, apesar de
estar visando também ao seu próprio bem.

A CONDUÇÃO DA PESQUISA
Durante a condução da pesquisa clínica, vários aspectos deverão ser observados se
se quer falar em ética.
Primeiramente, o rigor científico na elaboração e na condução da pesquisa de-
verá ser um imperativo fundamental. Tal processo deve estar isento de conflitos de
interesse que possam influenciar ou mesmo manipular dados e conduzir a resulta-
dos não verdadeiros, sobretudo, quando se fala em ciência baseada em evidências
científicas.
Em 2005, um artigo publicado na Nature17 divulgou um estudo, em que 35% dos
cientistas norte-americanos declararam ter tido comportamentos e práticas, no míni-
mo, questionáveis nos últimos três anos. Como exemplo do que foi relatado por eles,
tem-se: plágio; utilização de ideia de outras pessoas sem solicitar a devida permissão;
quebra da confidencialidade; falta de importância e desconsideração pelo bem-estar
dos participantes; falsificação, criação e ocultação de dados e modificação do dese-
nho, da metodologia e dos resultados em obediência a pressões dos financiadores.
Outro ponto que merece uma urgente ação contrária é a séria, desumana e
vergonhosa questão de se aceitar um duplo padrão em pesquisa, quando se trata
de países e/ou populações vulneráveis, principalmente, socioeconomicamente. Isso
seria apoiar um relativismo ético, o qual, muitas vezes, pode levar a crueldades e
injustiças, como foi o caso, publicado em 1997 no New England Journal of Medicine,
em que fora revelado o resultado de estudos sobre a transmissão vertical do HIV
realizados com mulheres africanas, por meio de grupos placebo-controlados18. Tal
conduta caracterizou a utilização de um duplo padrão na condução da pesquisa,
pois acredita-se que esse tipo de procedimento jamais teria sido aceito em países
desenvolvidos, a depender do local de sua realização e da vulnerabilidade dos par-
ticipantes envolvidos.
Esse aspecto é algo importante a ser refletido e debatido no âmbito brasileiro,
uma vez que se evidencia um grande número de pesquisas multicêntricas sendo
desenvolvidas no País e no mundo. Nesse sentido, vale ressaltar que, dos estudos
realizados no Centro de Pesquisa em Natal, todos eram patrocinados por indústrias/

52
Capítulo 3 | Pesquisa clínica atual – Um olhar da (bio)ética

laboratórios farmacêuticos; e dentre os pacientes investigados quase todos participa-


vam de estudos propostos por instituições brasileiras (45,16%) ou norte-americanas
(50%), aparecendo também como proponentes instituições da Alemanha (1,61%) e
da Argentina (3,23%).
Com relação aos estudos multicêntricos, propostos e/ou patrocinados pela indús-
tria farmacêutica com sede em outros países e que estão sendo conduzidos no Brasil
e em outros países em desenvolvimento, é importante tecer algumas considerações.
Espera-se que esse tipo de parceria possa, no mínimo, compartilhar benefícios e
conhecimento científico e tecnológico entre os países participantes, conforme pre-
conizado na Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos19. Entretanto,
essa regra não vem sendo respeitada na sua totalidade. Percebe-se que, por vezes, o
centro de pesquisa brasileiro e seus membros/pesquisadores (médicos, enfermeiros
etc.) são muitas vezes pagos para, simplesmente, recrutarem os pacientes brasileiros
(que, na sua maioria, além de se apresentarem vulneráveis pela doença, também
são vulneráveis socioeconomicamente), recebendo por paciente incorporado, e para
aplicarem protocolos. Assim, não lhes são permitidas a participação na elaboração
e no desenho da pesquisa, a plena divulgação dos resultados e a apropriação do
conhecimento e da tecnologia gerados. Há de se perguntar: Existe aí parceria e coo-
peração? Para quem estão sendo gerados os maiores benefícios? Essas são questões,
também, previstas na Resolução CNS 466/125 e precisam ter o controle do Sistema
CEP-CONEP para que possam ser plenamente respeitadas.
Quando os pacientes entrevistados foram questionados como ficaram sabendo
da pesquisa, responderam que tiveram conhecimento no próprio Centro, quando
da consulta de acompanhamento, pela equipe de saúde (usualmente um médico ou
enfermeiro).
Desse modo, outro ponto que merece ser debatido, também, que envolve os
profissionais de saúde/pesquisadores, é o conflito gerado quando, por exemplo,
o profissional de saúde assume a dupla relação com o sujeito de pesquisa, mor-
mente, em estudos clínicos: o de ser cuidador (responsável pelo tratamento do
paciente) e pesquisador ao mesmo tempo. O aparecimento de conflitos de interes-
se, neste caso, é motivo de preocupações e tem se levado, por exemplo, a pensar
que o processo de consentimento e o TCLE, para participação dos pacientes na
pesquisa, deveriam ou poderiam ser conduzidos e aplicados por outra pessoa que
não tivesse relação direta com a pesquisa, diminuindo o impacto potencial desses
conflitos20. Ou, em uma perspectiva mais íntegra, que para muitos pode ser até

53
Bioética e Humanização em Oncologia

uma postura radical, porém, a que seria mais correta e pertinente quando se fala
de ética: as funções de pesquisador e cuidador não deveriam ser exercidas pelo
mesmo profissional unicamente.
Acredita-se, também, que a sobreposição da imagem do médico à do pesquisa-
dor pode fazer com que questionamentos não sejam feitos por parte do pacientes21,
motivado pela relação de confiança e reiterada pela autoridade que esse profissional
exerce22,23, aspectos que puderam ser evidenciados na pesquisa empírica realizada.
Nesse cenário, é oportuno refletir, também, além do duplo papel do médico
como clínico e pesquisador ao mesmo tempo, sobre a confusão entre pesquisa e
tratamento24. Chama a atenção o fato de alguns pacientes terem se referido à pes-
quisa que participaram como um tratamento. Transparece que eles não tiveram a
compreensão, no momento em que aceitaram participar, do que significava ver-
dadeiramente participar de um estudo clínico. Esse fato, somado à necessidade da
garantia de uma boa assistência, no caso de diagnóstico de uma doença grave, leva
ao questionamento a respeito da discussão sobre a verdadeira autonomia e a exi-
gência de uma visão mais crítica com relação ao consentimento obtido de pacientes
em situação de vulnerabilidade. A confusão entre tratamento comprovado e droga
experimental, que deveria ser compreendida pelos pacientes de modo explícito por
meio dos TCLE, pode induzi-los a uma participação inapropriada25.
Beauchamp & Childress26 advertem que o termo “pesquisa terapêutica” é poten-
cialmente enganoso, porque, quando mal interpretado, desvia a atenção do fato de
que a pesquisa está sendo conduzida. No referido estudo, por exemplo, semelhante a
outras pesquisas27, os resultados demonstraram que os participantes, de forma geral,
desconheciam o objetivo da pesquisa clínica, os procedimentos metodológicos e seus
efeitos adversos. Associavam os objetivos da pesquisa ao seu tratamento, acreditan-
do, por vezes, que o protocolo de pesquisa fora desenhado baseado nas suas próprias
necessidades e interesses.
O equívoco terapêutico é um indicador de falha relacionada ao consentimento,
em que se instala um processo baseado em uma tomada de decisão inconsciente,
que compromete a avaliação dos riscos e dos benefícios por parte dos pacientes,
podendo alimentar falsas esperanças, fundamentadas em decisões baseadas em cri-
térios incorretos.
É oportuno falar que publicações recentes têm evidenciado o conflito de interes-
ses e os possíveis efeitos adversos decorrentes da crescente ligação dos pesquisadores,
universidades e serviços de saúde com a indústria farmacêutica28.

54
Capítulo 3 | Pesquisa clínica atual – Um olhar da (bio)ética

Assim, defende-se que todas essas questões elencadas devem ser explicitadas
para os pacientes, para que se possa separar aqueles pesquisadores que realizam
uma ciência ética e humana daqueles que colocam interesses individuais e/ou mer-
cantis acima do respeito aos pacientes/participantes.
Quando se trata da questão do consentimento livre e esclarecido, a escolaridade,
aspecto pouco evidenciado no debate sobre pesquisa clínica sobre novos medica-
mentos, torna-se imprescindível, uma vez que esse tipo de estudo é o que, de modo
geral, oferece mais risco aos sujeitos. Dessa forma, seus participantes deveriam ter
um maior grau de consciência, discernimento e esclarecimento ao aceitarem partici-
par de estudos dessa natureza, tendo-se que encarar, imprescindivelmente, o consen-
timento como um processo, e não, somente, como a assinatura de um papel.
A prevalência de participantes de menor escolaridade e de baixo nível socioeco-
nômico está associada à menor capacidade de formular perguntas e menor confian-
ça para realizá-las durante a obtenção do TCLE27, aspectos importantes para que se
possa obter uma verdadeira participação autônoma.
Na realidade tais fatores tornam-se ainda mais preocupantes quando se anali-
sam os TCLE aplicados nos ensaios clínicos de medicamentos. Esses documentos
são longos, apresentando, por vezes, termos complexos que, mesmo um nível edu-
cacional elevado, pode ser insuficiente para que os sujeitos possam compreender os
significados da linguagem médica e técnica28.
A assinatura do TCLE em si é prática garantida, pois todos os entrevistados do
estudo relataram terem-na feito no início da pesquisa. Entretanto, quando indaga-
dos se teria sido fácil entender o que estava escrito no documento, alguns disseram
que sim, muito embora quase todos relataram que precisaram de ajuda. Alguns
dos entrevistados afirmaram ser fácil, mas, quando algumas questões foram apro-
fundadas na entrevista, percebia-se, claramente, que eles tinham facilidade de re-
latar o motivo que os levou a participar da pesquisa, mas não o entendimento da
pesquisa em si.
Pelo relato dos pacientes/participantes, ficou evidente, então, que o limite do
TCLE é outro ponto que merece destaque na presente análise e em todas as refle-
xões, discussões e práticas que envolvam a ética na pesquisa clínica, tendo em vista,
principalmente, o fato de que a maioria dessas reflexões, discussões e práticas centra
suas observações e críticas no debate sobre o imprescindível respeito à autonomia,
via um consentimento efetivo26. Observa-se, entretanto, que, na realidade concre-
ta, os consentimentos têm ficado no âmbito da informação e assinatura, distantes,

55
Bioética e Humanização em Oncologia

muitas vezes, de significar decisões esclarecidas e conscientes. Pode-se considerar


uma verdadeira “indústria de consentimentos informados” já incorporada de forma
horizontal e acrítica, como se todas as pessoas – independentemente de nível socioe-
conômico e escolaridade – fossem plenamente autônomas29.
A impressão que se tem é de que as discussões na área da ética em pesquisa
permeiam mais o âmbito dos microproblemas, centrada na relação profissional-
-paciente ou investigador-sujeito de pesquisa, não estendendo o olhar para questões
mais amplas que envolvam a justiça social, imprescindível em cenários de desigual-
dades sociais.
Em contextos nos quais as pessoas têm dificuldade de acesso a serviços básicos de
saúde e a medicamentos, aliados a um baixo nível educacional, sem conhecimento
preciso do que consistem as pesquisas clínicas e da diferença entre cuidados médicos
e pesquisas clínicas (concebendo-os muitas vezes como sendo a mesma coisa), existe
aí uma real e enorme vulnerabilidade, configurando como um cenário propício à
repetição de pesquisas com padrões éticos diferenciados. A ciência, ao não visuali-
zar e discutir esse aspecto, de certa forma contribui para sua prática. A realidade
atual mostra que os poucos estudos que visam analisar o perfil dos participantes dos
ensaios clínicos apontam, de modo geral, que apenas as pessoas mais pobres, sem
acesso aos cuidados de saúde, se oferecem a participar de ensaios clínicos30.
Como exemplo, cita-se um estudo com o intuito de analisar estratégias para
aperfeiçoar o recrutamento para ensaios clínicos entre pacientes latino-americanos:
observou que, no grupo com cuidados de saúde mais deficientes e com salários mais
baixos, 96% aceitaram participar (uma taxa muito mais elevada do que se espera e
verifica normalmente)31.
Igualmente, relatos provenientes de vários países indicam que a maioria dos par-
ticipantes dos ensaios clínicos não entende o que significa placebo, não compreen-
dendo que, em um ensaio controlado por placebo, existem 50% de possibilidade de
não estar recebendo medicação alguma32.
Pode-se afirmar que, no estudo realizado em Natal, o TCLE mostrou-se insufi-
ciente para expressar uma decisão autônoma, aspecto já evidenciado em outras pes-
quisas e países33-35, porém, em desacordo com os achados de Lacativa et al.36, em que
os sujeitos demonstraram compreender o que estavam assinando e o seu conteúdo.
Conforme relatado anteriormente, todos os pacientes estavam vivenciando um
quadro clínico grave. Dessa forma, ao se escutar essas pessoas, teve-se a clara im-
pressão de que o consentimento foi dado em situação de pressão e maior vulnera-

56
Capítulo 3 | Pesquisa clínica atual – Um olhar da (bio)ética

bilidade, pois, se assinassem, teriam garantida a assistência que vinham recebendo


no Centro e que todos elogiaram. Caso contrário, teriam que voltar a ser atendidos
pelas regras e sistemática do Sistema Único de Saúde (SUS), sem a garantia de con-
tinuidade efetiva e imediata.
Isto é, pela ausência da garantia de uma assistência eficaz, além da pesquisa clíni-
ca, o paciente não vê alternativa e sente-se “obrigado” a participar e não abandoná-
-la37, mesmo tendo conhecimento de que pode se retirar a qualquer momento, fican-
do esse direito, muitas vezes, só na teoria e com sua validade moral comprometida.
A questão da participação verdadeiramente autônoma, ou não, dos pacientes
fica ainda mais transparente, quando se indaga se eles conhecem os riscos e bene-
fícios a que estavam expostos na pesquisa clínica, visto ser tal conhecimento uma
premissa ética básica. Muitos dos entrevistados do estudo disseram que não conhe-
ciam os riscos; alguns afirmaram que sim, porém não lembravam. Enfim, nenhum
falou com convicção a respeito dos riscos, e com relação aos benefícios associavam
estes apenas aos exames e tratamento de qualidade que vinham recebendo. Esse
desconhecimento dos riscos a que são expostos corrobora a impressão da ineficiên-
cia do alcance do TCLE na referida pesquisa. Esse fato vem ratificar a questão que,
frequentemente, voluntários de ensaios clínicos assinam o documento do consenti-
mento com baixo conhecimento sobre as informações do estudo38,39.

FASE PÓS-ESTUDO
Nesse tópico será trazida para a reflexão uma discussão que merece ser analisada por
todos os envolvidos nas pesquisas e pela sociedade em geral: Quais os cuidados dis-
pensados às pessoas que participam dos estudos após o seu término? Nos ensaios clí-
nicos envolvendo medicamentos (se comprovado o efeito positivo destes), os pacientes
têm tido a garantia de continuidade do tratamento após a conclusão do estudo?
A respeito dos cuidados dispensados aos pacientes/participantes após o término
da pesquisa realizada no Centro em Natal, especificamente, nenhum deles soube fa-
lar sobre os cuidados pós-estudos. A maioria afirmou, inclusive, que nada foi falado
a respeito, e os poucos que disseram que alguma coisa fora falada não se lembravam
do que se tratava. Pelo visto a garantia de cuidado pós-estudos não vem sendo rotina
nas pesquisas do Centro em questão, ou no mínimo não é esclarecida de forma efeti-
va, levantando, assim, uma grave questão ética inserida nos ensaios clínicos. Apesar
de tais resultados não poderem ser generalizados, levanta-se a hipótese de que estes
refletem a maior parcela da realidade brasileira.

57
Bioética e Humanização em Oncologia

Vale ressaltar que as modificações operadas na Declaração de Helsinque da Asso-


ciação Médica Mundial, considerada o principal documento normativo internacional
para a ética da pesquisa, em 2008 e 2012, sobretudo a alteração dos seus antigos tópi-
cos 19, 29 e 30, dirigidos à regulação ética do uso do placebo e ao acesso a benefícios
ao final do estudo, reduzem a proteção de sujeitos e comunidades socialmente vulne-
ráveis nos países periféricos, maximizando interesses das grandes empresas farmacêu-
ticas internacionais40, apesar das crescentes críticas que vêm recebendo.

DIVULGAÇÃO DOS RESULTADOS


Pela Resolução CNS 466/125, a divulgação pública dos resultados é um imperativo.
Nesta fase, também se evidenciam questões de cunho ético, seja com relação à au-
toria (em que os devidos créditos não são estabelecidos de forma correta), ou pelo
fato de se esconder dados que não foram satisfatórios com relação à hipótese inicial;
ou, ainda, a inexistência de estratégias de divulgação dos resultados das pesquisas à
sociedade geral, que não fiquem limitados a periódicos científicos, para que a popu-
lação possa ter acesso mais facilmente ao conhecimento produzido etc.
Nesse sentido, a questão se configura como provocadora, pois: Quem são os
estratos da sociedade que leem os periódicos científicos melhores classificados no
contexto brasileiro (por exemplo – QUALIS A)?. Será que a sociedade em geral tem
acesso a esse conhecimento? Para que e para quem se pesquisa e se publica? Os pa-
cientes/participantes têm tido acesso aos resultados das pesquisas?
Outro fator importante é a não divulgação de dados por inúmeros fatores, inclusi-
ve pelo fato de grande parte das revistas científicas não querer publicar pesquisas com
resultados negativos. Essa conduta vem colocar em xeque a credibilidade da ciência,
principalmente, a baseada em evidência, pois os achados negativos de pesquisa são
parte de um conhecimento e precisam ser divulgados30. A depender do dado “escon-
dido”, em se tratando de ensaios clínicos de medicamentos, podem ser gerados danos
irreversíveis aos pacientes, os quais poderiam se configurar até como crimes.
Como enfrentar essas questões? Esse é o desafio para todos que visam à constru-
ção e à prática de uma ciência ética.

Considerações finais
É indiscutível e evidente a necessidade de se realizar pesquisas clínicas envolvendo
seres humanos, na área da saúde – sobretudo, na área da oncologia; entretanto, tem

58
Capítulo 3 | Pesquisa clínica atual – Um olhar da (bio)ética

que se ter a lucidez de que as normas, apesar de imprescindíveis, por si sós, não têm
garantido pesquisas éticas. A questão envolve aspectos e desafios complexos que re-
querem um enfrentamento complexo e corajoso por parte de todos os envolvidos na
questão, principalmente diante da atual lógica de mercado que permeia a realização
das pesquisas clínicas em cenários de desigualdades sociais.
Evidencia-se que a preocupação demonstrada para se chegar à cura das doenças
e proporcionar o avanço da ciência parece tão ter sido projetada de forma plena
sobre as pessoas que participam dos estudos: a verdade é que pouca atenção é dis-
pensada a eles, mesmo com o aumento do número de pesquisas clínicas realizadas
no Brasil, na América Latina e no mundo nas últimas décadas.
Com base na pesquisa empírica realizada no Centro de Pesquisa em Natal/RN,
observa-se que as decisões a respeito de participar da pesquisa na área da oncologia
giram, principalmente, em torno do fato de o paciente buscar a cura ou melhora da
sua doença e ter acesso e cuidados regularmente garantidos.
Outro ponto importante que merece total atenção é o fato de a assinatura do
TCLE não garantir a expressão da autonomia para todos os participantes de uma
pesquisa clínica, pois as informações essenciais para uma decisão autônoma, como
a devida explicitação dos objetivos do ensaio clínico, riscos e o direito a cuidados
pós-estudos, são, por vezes, praticamente desconhecidas desses participantes. Apon-
ta-se, também, que os participantes da pesquisa tendem a não perceber os efeitos
de investigação ou superestimam os benefícios médicos diretos de sua participa-
ção nos estudos, não tendo uma consciência real dos riscos envolvidos e do que
significa uma pesquisa, confundindo-a com tratamento.
Faz-se necessário, então, que seja estimulada e promovida uma cultura ética na
área da pesquisa clínica, em que os envolvidos possam reconhecer os desafios rela-
cionados a esse processo e tenham a sensibilidade para atuar com equidade, justiça
e respeito, tendo como norte a responsabilidade com as gerações atuais e futuras. O
intuito é de que as intenções éticas se transformem em ações éticas.
Espera-se que as reflexões ora apresentadas possam incitar o exercício e o diá-
logo mais crítico entre os diferentes atores e instituições envolvidos na área da pes-
quisa clínica, promovendo uma ciência consciente e responsável que impeça que
pessoas, principalmente de países pobres e sem acesso aos cuidados de saúde, sejam
colocadas em situação de desigualdade, vulnerabilidade e sofrimento moral, pro-
movendo uma efetiva aliança harmônica entre o desenvolvimento científico e os
valores humanos.

59
Bioética e Humanização em Oncologia

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Bioética e Humanização em Oncologia

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62
Capítulo 4 | Bioética e multi-, inter- e transdisciplinaridade

4
Bioética e multi-, inter- e
transdisciplinaridade
Camilo Hernan Manchola Castillo

Introdução
Quando recebi o convite para ser parte deste projeto sobre bioética e humanização
em oncologia, escrevendo especificamente sobre bioética e multidisciplinaridade,
pensei imediatamente nas enormes mudanças paradigmáticas que esse jovem cam-
po do conhecimento – a bioética – tem alcançado em menos de 50 anos de vida. Isso
porque não é por acaso que a bioética serve de base para a promoção da humaniza-
ção em oncologia; pelo contrário, é possível porque ela é, em si mesma, um campo
profundamente diferente, sendo talvez as características mais marcantes dessa dife-
rença: a sua origem, natureza e finalidade multidisciplinar – recentemente direcio-
nada à interdisciplinaridade, e à sua consequência desejável, a transdisciplinaridade.
Este capítulo parte da constatação anteriormente mencionada para se desenvol-
ver em quatro seções. A primeira apresentará o conceito de multidisciplinaridade
– que, como será visto, deve levar à interdisciplinaridade, e esta última, à transdisci-
plinaridade. A segunda irá localizar esse conceito na bioética, mostrando como a ca-
racteriza, determina e guia. A terceira discutirá as implicações que ter uma bioética
decididamente multidisciplinar (e inter- e transdisciplinar) tem na defesa e existência
da humanização em oncologia. E a quarta, finalmente, trará alguns comentários
finais, cenários possíveis e desafios futuros.

63
Bioética e Humanização em Oncologia

O conceito de multidisciplinaridade
Antes de tocar a questão da multidisciplinaridade, deve-se definir o conceito de dis-
ciplina, originado a partir do latim discipulus e ele, de discere, que significa aprender1.
Por causa disso, uma disciplina é entendida como um campo de conhecimento espe-
cífico, geralmente trabalhado ao interior da universidade – lugar de ensino e apren-
dizagem por definição – e delimitado e legitimado por um conjunto de publicações
científicas. Assim, a disciplina precisa de algumas características, sendo as mais im-
portantes: o delineamento de seu caráter, e o reconhecimento deste por parte da
comunidade científica. Podem-se citar como exemplos de disciplinas: filosofia, artes
e literatura, no âmbito das ciências humanas; antropologia, política e sociologia, no
âmbito das ciências sociais; ou matemática, biologia, química e física, no âmbito das
ciências naturais.
Dito isso, é pertinente destacar que a multidisciplinaridade, da raiz latina multi
(numerosos), defende a necessidade que existe para propor análises que, diante da
complexidade do social, psicológico, biológico ou cultural, não incluam apenas a
visão fornecida por uma disciplina, mas as visões que várias disciplinas podem ofe-
recer2. Em outras palavras, a multidisciplinaridade tem a finalidade de aumentar o
conjunto de ferramentas, perspectivas e entendimentos com os quais se pode abordar
um objeto específico de estudo – seja ele social, psicológico, biológico ou cultural.
Estritamente falando, a multidisciplinaridade pode ser definida como a jun-
ção de várias disciplinas em busca de melhor analisar um objeto ou resolver um
problema. Esse diálogo de várias disciplinas, deve-se esclarecer, não leva à integra-
ção entre elas, uma vez que é, acima de tudo, um compromisso, um desafio, um
convite para usar cada uma dessas disciplinas a partir do seu próprio método, fi-
nalidade e propósito independentemente3. Assim, é proposta uma abordagem das
disciplinas a partir de uma perspectiva cumulativa que não proporciona contato
ou diálogo entre elas.
Isso mostra, então, que a abordagem multidisciplinar decorre da constatação
relativa que, diante da complexidade da realidade com a qual nos deparamos, as
disciplinas sós são insuficientes. Uma abordagem multidisciplinar, assim, acrescenta
a uma única visão de um objeto compressões variadas deste, mediadas, também,
por diversas disciplinas. E faz isso com o objetivo de enriquecer a compreensão que
temos desse objeto – que normalmente é um problema –, para, em seguida, propor
melhores soluções, saídas e aproximações.

64
Capítulo 4 | Bioética e multi-, inter- e transdisciplinaridade

A abordagem multidisciplinar tem rendido muitos frutos, e hoje é praticamente


impossível imaginar o mundo sem ela. Do mundo acadêmico para o mundo prático,
a multidisciplinaridade é onipresente. Universidades, faculdades, profissões, órgãos
governamentais, organizações sociais, entre outros, são “filhos” dessa compreensão
do mundo. Faculdades, departamentos e associações profissionais são exemplos per-
feitos disso4. Em outras palavras, o mundo moderno em que vivemos é absolutamen-
te permeado por essa noção multidisciplinar.
Há especificamente duas profissões modernas nas quais a multidisciplinaridade
se percebe claramente na sua origem: a medicina e o direito. Quanto à medicina,
é o produto de um extenso somatório de disciplinas, entre as quais: biologia, física,
química, matemática, antropologia e psicologia. Quanto ao direito, é o resultado da
soma de disciplinas como sociologia, filosofia, matemática e literatura.
A propósito da menção a essas profissões, é importante dizer que elas têm
transcendido a acumulação e a somatória de disciplinas – tradicionais durante a
modernidade, especificamente durante os séculos XVII e XVIII4 – para alcançar
o diálogo entre elas. Então, hoje, a medicina ou o direito contemporâneos não po-
dem ser entendidos apenas como uma soma de disciplinas, mas como o resultado
de um diálogo entre elas. Assim, a medicina e o direito modernos cumulativos de
disciplinas deram lugar gradualmente à medicina e ao direito contemporâneos,
integradores de disciplinas, e, ao fazê-lo, uma nova expressão tem surgido: a inter-
disciplinaridade.
A interdisciplinaridade5 pode ser entendida como o diálogo entre as várias disci-
plinas envolvidas na multidisciplinaridade. Como resultado desse diálogo, uma disci-
plina pode transferir os seus próprios métodos para outra, a partir do entendimento
de que esses métodos irão enriquecer e melhor fundamentar a disciplina receptora
deles. Vê-se que, contrário à multidisciplinaridade, na interdisciplinaridade existe
uma comunicação ativa entre as disciplinas, produzindo-se alterações na metodolo-
gia e até mesmo nos objetos de estudo de cada disciplina.
A esse respeito, é válido mencionar o cada vez mais rápido aparecimento de
diversas especialidades, tanto médicas quanto legais, uma vez que mostra a impor-
tância que a interdisciplinaridade tem no mundo de hoje6. No caso específico da
medicina, das mais antigas especialidades – cirurgia médica, pediatria –, até as mais
recentes – oncologia, medicina de família –, percebe-se claramente a importância
da interdisciplinaridade. Para o oncologista, sua formação seria impensável sem o
necessário diálogo da física – no caso específico dos radioterapeutas, por exemplo –

65
Bioética e Humanização em Oncologia

ou da química – tão conectada à quimioterapia –, com a base biológica comum que


a medicina moderna contemplava.
Tudo isso é ainda mais válido se situações mais reais forem analisadas, nas quais
as questões técnicas não são as únicas envolvidas – por exemplo, na área da onco-
logia. Assim, se se leva em conta a totalidade da experiência humana, é claro que
a oncologia requer não apenas do diálogo entre física, química e biologia, mas de
diálogos desafiantes dessas disciplinas com disciplinas das humanidades, como a re-
ligião, a filosofia e a ética. Isso explica a existência, hoje, de um campo como o que
este livro propõe: humanização em oncologia, e também de muitos outros relacio-
nados, dos quais os cuidados paliativos são um exemplo concreto.
Seguindo essa mesma linha, e para terminar, é essencial dizer que o caminho
iniciado pela multidisciplinaridade, e seguido pela interdisciplinaridade, não fina-
liza e continua a evoluir. À acumulação não dialógica de disciplinas representadas
pela multidisciplinaridade, seguida da aposta integrativa da interdisciplinaridade,
acrescenta-se uma nova proposta: a proposição de uma abordagem que transcende
as raízes multi e inter, ou seja, a acumulação e o diálogo, e propõe uma abordagem
das disciplinas que defende a construção, a partir delas, de novos conhecimentos,
incluindo novos métodos, propósitos e linguagens: a transdisciplinaridade. Nesse
sentido, essa abordagem supera as disciplinas.
A transdisciplinaridade, como já foi dito, transcende as disciplinas, uma vez que
não só lida com o que existe nelas, entre elas e através delas, mas com o que é possí-
vel para além delas7. A sua aposta é, então, não a construção de uma nova disciplina,
mas de um conhecimento tão completo quanto possível, que ao mesmo tempo que
percebe as particularidades próprias de cada experiência, possa produzir uma es-
trutura que seja capaz de interagir com outros conhecimentos, não necessariamente
científicos, e assim possa dar melhores respostas aos problemas complexos que os
seres humanos enfrentam hoje.
É importante resumir essa breve contextualização do significado de multidisci-
plinaridade, interdisciplinaridade e transdisciplinaridade, com a apresentação de um
caso médico que, dado o tema deste livro, está relacionado com a oncologia – uma
área que, como já foi dito, só pôde surgir de uma leitura multi- e interdisciplinar da
realidade. Trata-se de um homem de 39 anos de idade, viúvo, diagnosticado há dois
dias com câncer de pulmão em estágio IV, sem outros antecedentes, com metástase
para a coluna (carcinoma de células escamosas) e que recusou os cuidados paliativos
que foram oferecidos a ele no momento do diagnóstico. Dessa vez, o paciente con-

66
Capítulo 4 | Bioética e multi-, inter- e transdisciplinaridade

sulta por dor intensa nas costas que o impede de se mover; além disso, relata uma
intensa preocupação com o que irá acontecer com seus três filhos menores quando
ele morrer. O paciente apresenta sintomas de depressão e ansiedade.
A partir de uma perspectiva multidisciplinar, o paciente deve receber cuidados
de uma equipe diversificada de profissionais, incluindo oncologista, enfermeiro, psi-
cólogo, nutricionista, fisioterapeuta, psiquiatra, entre outros. Se essa perspectiva for
complementada por uma abordagem interdisciplinar, esta equipe deverá discutir
entre si, promovendo um intercâmbio de métodos e propósitos para que o alvo (as-
sistência ao paciente da melhor forma) seja atingido. Esse diálogo irá resultar, por
exemplo, em que as rotinas de cuidado do enfermeiro sejam incorporadas pelo on-
cologista, ou em que o psicólogo assuma alguns conhecimentos do oncologista para
melhor entender às necessidades do paciente.
Finalmente, se a perspectiva em questão for complementada por uma aborda-
gem transdisciplinar, não haverá apenas uma apropriação de métodos, objetivos e
propósitos de uma disciplina por parte da outra, mas tentar-se-á ir além das disci-
plinas. Nesse sentido, far-se-á uma tentativa por construir um conhecimento tota-
lizante, longe das disciplinas, aceitando que essas não são capazes de alcançá-lo.
Tender-se-á, nesse sentido, a construir uma rede que inclua não apenas as disciplinas
“filhas” da ciência, mas as áreas que tradicionalmente têm sido abordadas como
pseudocientíficas: espiritualidade, terapias alternativas ou religião. Um exemplo cla-
ro de um campo transdisciplinar fortemente relacionado com o caso clínico apresen-
tado são os cuidados paliativos.

Multi- (inter- e trans-) disciplinaridade e bioética


Antes de começar, é crucial localizar a bioética que será discutida nesta seção. Ela
é inspirada na bioética global que foi defendida pelo criador deste neologismo em
19708 e definida como uma ponte entre as ciências humanas e naturais; diferencia-
-se, assim, da surgida anos mais tarde e hoje conhecida mundialmente como prin-
cipialista; e limita-se geograficamente à América Latina. Estima-se necessário dizer,
brevemente, o que não identifica essa bioética para, em seguida, caracterizá-la com-
pletamente.
A bioética que será discutida aqui não é uma bioética baseada em princípios
ou em teorias valorativas ou normativas. Isso, uma vez que a bioética que será aqui
abordada rejeita formalmente a ética deontológica e as teorias consequencialistas de

67
Bioética e Humanização em Oncologia

David Ross9 e William Frankena10, usadas para demonstrar a base teórica da bioé-
tica principialista; também rechaça os postulados de John Stuart Mill11 e Immanuel
Kant12, que dão sustentação epistemológica única (em termos de autodeterminação,
consequencialismo, universalismo e natureza prima facie de certos deveres) à proposta
principialista13.
A bioética apresentada aqui também se classifica como intensamente prática e
politizada e considera a mais conhecida bioética principialista, como dificilmente
aplicável, uma vez que seu caráter universalista e deontológico impede seu fun-
cionamento14. Nesse sentido, essa bioética, por meio da integração de casos reais
envolvendo a pobreza, a desigualdade, a exclusão ou a discriminação, considera que
as visões de avaliação e política são excedidas pelas circunstâncias do mundo real,
razão pela qual propõe outras referências, que serão discutidas imediatamente.
Em primeiro lugar, a bioética latino-americana defende a multi-inter-transdisci-
plinaridade, enfatizando na transdisciplinaridade, uma vez que supera a disciplina
e a relação entre disciplinas, para tentar ver o que está entre, através e além das
disciplinas. Essa é uma vantagem, pois, ao ver a realidade, a vida e o ser humano
como uma unidade, ocorre uma compreensão mais realista deles. No entanto, isso
pressupõe também uma crítica: para o pensamento clássico o trans é absurdo, visto
que, estando seu objeto além das disciplinas, ele se torna vazio ou inócuo. Diante
disso, a transdisciplinaridade argumenta que essa lacuna é preenchida com vários
níveis de realidade15.
A esse respeito, Nicolescu16 diria que “disciplinaridade, multidisciplinaridade,
interdisciplinaridade e transdisciplinaridade são quatro setas de um único arco: o do
conhecimento” (p. 3), mas acrescentaria que “a transdisciplinaridade é, no entanto,
radicalmente diferente às outras, por causa da sua finalidade: a compreensão do
mundo presente, impossível de ser inserida na pesquisa disciplinar” (p. 5).
Nicolescu acrescenta também que se deve superar a disciplinarização, compar-
timentalização, superespecialização, antropocentrismo, objetivação, determinismo,
reducionismo e racionalização (Platão, Descartes, Bacon, física clássica), uma vez
que a ruptura existente entre as ciências condena as ciências humanas “à incons-
ciência extrafísica” e as ciências naturais à “inconsciência social”.
Em segundo lugar, a bioética latino-americana aproveita a complexidade para se
constituir, uma vez que precisa dela para se articular de um jeito transdisciplinar. Na
verdade, a complexidade, de acordo com Morin17, é uma provocação para lidar com
contingências (Einstein, a física quântica) que o determinismo cartesiano não pode

68
Capítulo 4 | Bioética e multi-, inter- e transdisciplinaridade

explicar; deve-se esclarecer que isso não significa uma rejeição dos desenvolvimentos
feitos pela ciência clássica, mas um convite para lhes dar um contexto apropriado –
oferecido por fatores humanos, como: o imprevisto, a indeterminação e o acaso (o
oposto do individualismo racionalista).
Assim, a complexidade convida a abraçar a desordem, a imprevisibilidade, o
erro, a incerteza e o caos, uma vez que eles são parte da evolução. É assim também
um convite para a humildade, a integração e a aceitação dos limites humanos. Por-
tanto, a complexidade é um desafio, um paradigma diferente, e não uma resposta,
uma receita ou uma teoria15.
Fica claro por que a complexidade é necessária para a bioética: porque, sem dú-
vida, permite estabelecer uma relação entre o conhecimento e os valores humanos18
que possa lidar com uma tecnologia que não é usada apenas por seres humanos,
mas interage com eles, trazendo com isso disparidades sociais, fome e problemas
ambientais.
Da mesma forma, é então imperativo um relacionamento entre bioética e com-
plexidade “a fim de enfrentar as realidades com que se deparam (a fim de que) a
bioética esteja aberta ao diálogo respeitoso com a pluralidade e especificidade das
culturas (...) e a fim de que a bioética possa se comunicar não apenas com especialis-
tas, mas também com os homens e mulheres comuns”17 (p. 497).
Mais importante do que tudo isso é ver que a complexidade representa a che-
gada de uma nova epistemologia, o que, em termos de Morin17, tem a ver com a
consciência-ciência, uma epistemologia de segunda ordem, como a que seria ne-
cessário propor para alcançar a bioética que Potter recomendou: uma bioética pro-
fundamente moral, “ponte”, “global”, “profunda”, “não neutra”, “responsável” e
“humilde”.
Apenas uma nova epistemologia, uma de segunda ordem, produzirá – e será
possível – quando dicotomias cognitivas da ciência moderna (sujeito/objeto, ob-
servador/observado, objetividade/subjetividade, ciências duras/ciências humanas,
cultura científica/humanista, conhecimento científico/outros conhecimentos, saber
dos especialistas/senso comum) forem superadas18.
Essa nova epistemologia “enfatiza a necessidade de contextualizar sempre nos-
sos esforços de pesquisa (...) a necessidade de manter sempre em mente o que afeta
e influencia o modo como o homem-que-pergunta confronta a busca do objeto (de
modo que a epistemologia), em seguida, responda às chamadas da bioética para
conciliar a ciência e a realização da sobrevivência humana”18 (p. 103). Assim, no

69
Bioética e Humanização em Oncologia

mundo real, aberto, não linear, a ordem é o resultado de uma doença, como a pró-
pria vida, e os “problemas da bioética e as emergências bioéticas estão cheias desses
tipos de circunstâncias”18 (p. 106).
A bioética, portanto, “não deve almejar uma ordem ou (...) uma previsibilidade
perfeita”, mas uma visão complexa. Precisa-se de uma reconstrução de segunda or-
dem do conhecimento científico, e de um novo ideal de racionalidade epistemológi-
ca. Necessita-se então “a construção coletiva de um pensamento e a criação de uma
bioética prática que leve em conta as especificidades e peculiaridades do contexto
(social, cultural, histórico)”18 (p. 109).
Em terceiro lugar, a bioética da América Latina propõe a totalidade concreta
para a compreensão da realidade analisada. A esse respeito, Garrafa15 – retornando
ao criador da totalidade concreta, Karol Kosik19 –, diz que a totalidade está relacio-
nada com a realidade, uma vez que o conjunto inclui não só os aspectos fenomenais
da realidade, mas sua essência. Na verdade, de acordo com Kosik19, “a totalidade
não significa um conjunto de fatos, mas a realidade como um todo dinâmico e inter-
-relacionado estruturado” (p. 115).
Assim, a totalidade concreta é entendida como uma única, múltipla, heterogê-
nea e contraditória realidade que se apresenta diante dos olhos, organicamente es-
truturada, que só é entendida como um todo, de modo que apenas é possível extrair
conclusões contextualizando-as, concretizando-as e não o fazendo abstratamente,
de jeito discriminatório, incompleto, aparente e muitas vezes falso.
Por causa disso, Kosik19 enfatiza que o que é estudado deve ser previamente con-
textualizado, respondendo à pergunta: qual a visão/intenção/endereço (histórico e
social) do conhecimento humano? Isso, uma vez que a partir desta “assimilação prá-
tica espiritual do mundo (...) a realidade é percebida como uma entidade indivisível
e os significados são compreendidos implicitamente a partir da unidade de juízos
de existência e valor” (p. 117). Devido a isso, uma “teoria do conhecimento como
reprodução espiritual da realidade” é uma necessidade urgente.
Para concluir esta seção, fica claro que a multi-inter-transdisciplinaridade é
crucial para a bioética discutida aqui. A bioética latino-americana só é possível se
for entendido que é muito mais do que uma disciplina, que várias delas, ou que o
diálogo entre elas; portanto, como foi dito no início deste capítulo, essa área do
conhecimento, com pouco menos de 50 anos, representa uma grande mudança de
paradigma, visto que é construída e opera de uma maneira radicalmente diferente,
defendendo objetos de estudo, estruturas e fins bem distintos. Na próxima seção,

70
Capítulo 4 | Bioética e multi-, inter- e transdisciplinaridade

vamos ver quais as implicações que isso tem sobre a existência e a defesa da huma-
nização em oncologia.

Bioética multi-inter-transdisciplinar
e humanização em oncologia
A humanização em oncologia é um conceito recente, produto do interesse, também
recente, por humanizar o ato médico. A humanização da medicina tem sido espe-
cialmente concebida no âmbito da bioética, por isso não é de estranhar uma relação
entre essas duas esferas20. É importante dizer que, quando falamos em humanização
na medicina, estamos nos referindo a prestar cuidados aos pacientes, respeitando
sua dignidade, e focando os serviços neles mesmos, ou seja, nos indivíduos que estão
doentes e não na sua doença. Em outras palavras, a humanização propõe não dar
atenção exclusivamente à técnica, aos procedimentos ou aos medicamentos, mas
àqueles e às relações humanas envolvidas no ato médico21.
No caso do tratamento do câncer, a humanização ainda tem mais importância,
tendo em conta as particularidades que esse diagnóstico traz22: incerteza, debilida-
de, alta toxicidade do tratamento, prognóstico. A humanização é, assim, especifica-
mente na área da oncologia, especialmente relevante porque a relação profissional-
-paciente está no centro das várias emoções que uma situação como a produzida
pelo câncer produz. Uma oncologia humanizada traria, então, a possibilidade de ver
o paciente não como uma neoplasia, mas como um ser completo, que faz parte de
um contexto social e cultural, e que também é titular de direitos e deveres23.
Dito isso, agora é importante responder como a multi-inter-transdisciplinarida-
de abordada até agora, especificamente em bioética, afeta a humanização em onco-
logia. Essa afetação é feita de quatro maneiras, a saber: produzindo novos métodos
e finalidades que uma abordagem disciplinar não permitiria produzir; validando
a importância de ver o ser humano doente e não apenas a doença que o aflige;
mostrando profissional de saúde, paciente, família, comunidade e sociedade como
totalmente imbuídos, corresponsáveis e protagonistas no tratamento da doença; e le-
gitimando saberes “outros” que uma concepção apenas baseada na disciplinaridade
não teria em conta.
Sobre a produção de novos métodos e propósitos que uma abordagem discipli-
nar não causaria, a multi-inter-trans-disciplinaridade em bioética o consegue es-
timulando a imaginação e a criatividade de ambos, os profissionais de saúde e os

71
Bioética e Humanização em Oncologia

pacientes. Nesse sentido, uma visão desse tipo, como já foi dito, permite que os pro-
tagonistas do ato médico (médico, paciente, família, comunidade e sociedade) pen-
sem em diferentes métodos para alcançar seus objetivos. A disciplinarização pode,
então, ser superada, incluindo o uso de terapias adicionais, como, por exemplo, a
espiritualidade como adjuvante.
Isso é central, uma vez que poderia fazer a relação entre médico e paciente mui-
to mais estreita e plena, conectando suas preocupações, medos e incertezas, e, assim,
potenciando a humanização da oncologia. Agora, repensar os fins também tem um
peso enorme, quando se trata de casos tão comuns em oncologia, nos quais a cura
não é uma opção. Quando a morte é iminente e a cura não parece possível, reavaliar
os efeitos da prática oncológica pode ser libertador e inspirador. Nesse campo, os
cuidados paliativos, tão próximos da oncologia, têm uma experiência valiosa.
Quanto a validar a importância de ver o ser humano doente e não apenas a
doença que o aflige, a multi-inter-trans-disciplinaridade em bioética tem uma gran-
de contribuição a dar, uma vez que propõe a complexidade como um dos paradig-
mas para compreender a realidade e, ao fazer isso, permite que o profissional e o
paciente passem a ver a doença apenas como um elemento, dentre outros, do pano-
rama. Isso é essencial por permitir ao médico ver o paciente como um ser humano
completo, incluindo na análise dele diversas áreas e circunstâncias, e não apenas a
doença ou a esfera física.
Mas, além do anteriormente exposto, dar importância ao ser humano sobre a
doença permite ao profissional ver que seu paciente tem direitos e é dono de sua
própria vida. Características relativas a dignidade, privacidade, autonomia e au-
todeterminação fazem sentido quando entendido que não se trata apenas de uma
neoplasia, mas de um ser humano, dono de emoções, interesses, responsabilidades e
preferências. Isso, naturalmente, é fundamental na construção de um relacionamen-
to pontuado pela humanização do atendimento.
No que diz respeito a mostrar profissional de saúde, paciente, família, comu-
nidade e sociedade como totalmente imbuídos, corresponsáveis e protagonistas no
tratamento da doença, a multi-inter-trans-disciplinaridade em bioética desempenha
um papel decisivo, se visto que outro de seus referenciais é a totalidade concreta,
um conceito que considera a realidade como um conjunto de elementos dinâmicos
e inter-relacionados. Isso tem uma implicação importante, pois inclui a comunidade
no processo terapêutico ou paliativo do paciente, o que provoca necessariamente
que o processo saúde-doença não seja apenas um processo individual e isolado, mas

72
Capítulo 4 | Bioética e multi-, inter- e transdisciplinaridade

realmente social, tendo um grande impacto na criação de políticas públicas que en-
volvem a prevenção de doenças e a promoção da saúde.
Isso também permite ao profissional ter um contato diferenciado com a situa-
ção, percebendo que o paciente não é apenas um titular de direitos, mas também
de deveres e, portanto, tornando-o um verdadeiro protagonista do seu processo. Ao
fazer isso, o profissional não só vê o paciente como um ser humano completo, mas
partilha a responsabilidade, a frustração e a emoção com quem está sendo destina-
tário dos cuidados. Isso, sem dúvida, humaniza o ato médico e reforça a relação mé-
dico-paciente, permitindo que tanto profissional quanto paciente sejam vistos como
seres humanos vulneráveis que sofrem e sentem incerteza e medo.
Enfim, em relação a legitimar conhecimentos “outros” que uma concepção
apenas com base na disciplinaridade não levaria em conta, a multi-inter-trans-dis-
ciplinaridade em bioética desempenha um papel preponderante, permitindo que
o profissional compreenda que as crenças, os conhecimentos, os sentimentos e os
sistemas epistemológicos “não científicos” são tão legítimos quanto os seus. Dessa
forma, contribui para uma oncologia mais humana, uma vez que o profissional e o
paciente vão se identificar como pares, com conhecimentos diferentes, mas igual-
mente válidos.
Isso também pode produzir uma grande ruptura paradigmática, porque tem o
potencial de fazer a oncologia criar novos conhecimentos, utilizando referenciais
desconhecidos por ela, que a ciência tem desqualificado como pseudocientíficos, in-
válidos ou mentirosos. O que se propõe aqui é, portanto, uma grande oportunidade
não só para humanizar a oncologia, mas para repensá-la completamente, abrindo
oportunidades para a imaginação e a criatividade. Como já foi dito, esse é um ca-
minho que uma área como os cuidados paliativos já está andando com resultados
encorajadores24.

Considerações finais
A multidisciplinaridade é uma aposta cada vez mais usada dentro da academia e da
ciência. Seus usos e aplicações são cada vez mais reconhecidos, e as suas vantagens
são amplamente registradas. A evolução das profissões “filhas” da modernidade na
contemporaneidade não poderia ter ocorrido se não tivesse sido pela omnipresença
dessa nova perspectiva. O surgimento de especialidades, subespecialidades e novas
áreas de conhecimento contemporâneo corresponde exatamente a essa nova visão.

73
Bioética e Humanização em Oncologia

Entre as novas áreas (ou territórios) do conhecimento que têm sido o resultado
dessa nova abordagem está a bioética, especificamente a bioética global defendida
pelo criador deste neologismo em 19708, e a bioética que tem resgatado essa aborda-
gem de maneira mais decidida, a partir do século XXI: a bioética latino-americana.
Esta última propôs, no entanto, estruturas mais provocadoras, que não só apresen-
tam a multi-, mas a inter- e transdisciplinaridade para a compreensão da realidade
e a proposição de soluções para os problemas analisados.
É nesse sentido que a bioética, uma área que tem tradicionalmente defendido
uma saúde mais humanizada, pode contribuir para a existência e a salvaguarda da
humanização em oncologia. Ela o faz, propondo, junto com a multi-inter-transdis-
ciplinaridade, os conceitos de complexidade e totalidade concreta, proporcionando
um novo quadro paradigmático para a compreensão da realidade dos profissionais e
pacientes – além de comunidades e sociedade em geral –, que estão imersos dentro
do processo saúde-doença que está no centro da atenção oncológica.
Foram propostas pelo menos quatro maneiras em que essa bioética multi-in-
ter-disciplinar prevê a existência de humanização em oncologia: produzindo novos
métodos e finalidades que uma abordagem disciplinar não produziria; validando
a importância de ver o ser humano doente e não apenas a doença que o aflige;
mostrando profissional de saúde, paciente, família, comunidade e sociedade como
totalmente imbuídos, corresponsáveis e protagonistas no tratamento da doença; le-
gitimando conhecimentos “outros” que uma concepção apenas baseada na discipli-
naridade não teria em conta.
Agora, é necessário apresentar esses caminhos possíveis àqueles que estão en-
volvidos – profissionais, doentes, comunidades, sociedade em geral –, na prática
oncológica todos os dias, porque eles são, finalmente, quem pode julgar se eles: real-
mente respondem às necessidades percebidas; têm potencial para ser operacionais;
e, finalmente, podem ter um impacto na humanização em oncologia, objetivo final
procurado. Esse é o desafio e, também, a oportunidade.

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Capítulo 4 | Bioética e multi-, inter- e transdisciplinaridade

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75
Capítulo 5 | Eutanásia, distanásia, mistanásia: conflitos éticos com a legislação brasileira

5
Eutanásia, distanásia,
mistanásia: conflitos éticos
com a legislação brasileira
Bruno Wurmbauer Junior

Introdução
Os tempos atuais são bem complexos, razão pela qual o filósofo Zygmunt Bauman
defende que a modernidade – e até a própria sociedade – é líquida1. Em outras pala-
vras, direitos, deveres e as relações sociais que eram considerados cristalizados e bem
definidos no passado são, atualmente, fluidos e sem uma forma assentada.
Essa falta de estrutura definida é refletida no constante e crescente questiona-
mento de direitos, deveres, posturas éticas, regras morais e da própria lei. A falta de
parâmetros seguros e consolidados leva os indivíduos e os grupos em questão a uma
constante disputa social, que favorece uma tendência crescente de radicalizar seus
pontos de vista, abandonando soluções consensuais para os conflitos.
Todavia, num Estado Democrático de Direito como o brasileiro, o monopólio
da força é exercido pelo Estado. Isso significa que os cidadãos não podem exercer
arbitrariamente as próprias razões2, ou seja, eles não podem usar a força contra ou-
trem para fazer valer o seu ponto de vista.
1
Bauman Z. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Ed. Zahar, 2001.
2
O tipo penal do exercício arbitrário das próprias razões está previsto no art. 345 do código penal e prevê a
detenção de quinze dias a um mês.

77
Bioética e Humanização em Oncologia

Assim, cabe ao poder judiciário o dever de resolver os conflitos sociais, sejam


eles individuais ou coletivos. O juiz decide pela sentença e tem a possibilidade de
impor os seus termos, inclusive com o uso institucional da força, caso não haja o
cumprimento espontâneo pelas partes.
Por outro lado, as demais facetas do poder estatal não têm a mesma força do
poder judiciário. Dessa forma, atualmente, mesmo quando o Estado atua legitima-
mente por meio do executivo e legislativo para resolver um problema, seja promul-
gando uma lei ou um estabelecendo um programa de governo, tais iniciativas não
raramente acabam sendo discutidas nas barras dos tribunais.
Paralelamente, também há situações em que o legislador ou o titular do poder
executivo preferem omitir-se a regulamentar determinados temas que possam pro-
vocar o desgaste junto a parcelas da opinião pública. Assim, cria-se um vácuo nor-
mativo pela simples inexistência de qualquer diretriz, provocando igualmente o en-
caminhamento do assunto para o judiciário, que não pode deixar se eximir de julgar
um conflito pela falta de norma específica. Mesmo sem uma norma que determine
diretamente o que deve ser feito para o caso concreto, o juiz deve decidir, baseando-
-se em princípios ou recorrendo a outras regras semelhantes, caso já existam.
Esse papel constitucional tão único, central e poderoso, aliado ao contexto
como o atual, de beligerância latente, provoca uma corrida aos tribunais, pois to-
dos querem ter uma decisão judicial para apoiar os seus discursos e resguardar os
seus direitos.
Ocorre que, no âmbito do poder judiciário, a questão também não é tão simples,
pois o ato de decidir envolve a análise de normas constitucionais, legais, éticas e até
morais, tudo dentro de um emaranhado de princípios, leis, decretos, portarias, re-
soluções e toda sorte de atos jurídicos editados pelas autoridades públicas, em todas
as esferas.
Por isso, o cidadão comum, não sem razão, muitas vezes não enxerga coerência
na atuação dos juízes, já que as decisões vêm redigidas num português arcaico que
beira o incompreensível, parecem contraditórias com outras já proferidas e aparen-
tam afrontar a letra clara da lei e da Constituição.
Devido a essas razões, a “judicialização” tem ganhado muita força ultimamente.
Trata-se de fenômeno contemporâneo que reflete a primazia do poder judiciário,
exigindo-se a sua manifestação em qualquer assunto de relevo para a sociedade.
Judicializa-se tudo: da briga de vizinhos à saúde pública, passando pelos mais com-
plexos assuntos, como as condições nas prisões e regras orçamentárias e fiscais.

78
Capítulo 5 | Eutanásia, distanásia, mistanásia: conflitos éticos com a legislação brasileira

No caso da saúde, a judicialização tem a sua faceta mais evidente na questão


do acesso, que é a busca de uma decisão judicial para garantir um medicamento
ou tratamento que não esteja disponível nos hospitais do Sistema Único de Saúde
– SUS. É, na verdade, uma tentativa desesperada de superar a situação calamitosa
da saúde pública.
Todavia, outras discussões relevantes no âmbito da judicialização da saúde também
dependem da manifestação judicial, sendo eclipsadas pela questão do mero acesso.
Caso exemplar é o da eutanásia e suas variantes, como a distanásia e a mistaná-
sia. Nas discussões sobre o tema, diversas situações-limite estão envolvidas: o fim da
vida iminente, o paciente que quase sempre está inconsciente e não tem condições
de decidir sobre o seu destino, a família que deseja interferir na conduta médica ou
o profissional de saúde que muitas vezes exibe uma postura paternalista e superior,
pretendendo impor a sua solução em detrimento dos anseios do próprio enfermo.
Tudo é complexo nas discussões que envolvem o assunto. Em suma, o estudo da
eutanásia é um somatório de conflitos éticos-profissionais-legais que, não raro, são
também transferidos para as barras dos tribunais.
A pretensão do presente trabalho é apresentar como o tema da eutanásia é tra-
tado segundo a legislação brasileira e de que maneira os dilemas éticos e morais daí
decorrentes podem ser superados.

Eutanásia, distanásia, mistanásia e outros conceitos afins


Feita a breve introdução, é importante encontrar uma definição terminológica ade-
quada para prosseguir no estudo do tema. Isso é necessário por causa da evolução da
ideia de eutanásia, “uma prática presente em toda a história da humanidade, sendo,
inclusive, bastante comum na antiguidade”3 e que variou muito ao longo do tempo,
em virtude de mudanças sociais, culturais, éticas e até tecnológicas.
Inicialmente, a expressão era usada somente para os casos de pacientes termi-
nais e não era considerada uma antecipação da morte, mas sim um meio de ameni-
zar o sofrimento deles4. Com o passar do tempo, evoluiu para também se relacionar

3
Bomfim LR. Eutanásia: questões éticas e jurídico-penais relevantes. Revista do CEPEJ. Salvador: Centro
de Estudos e Pesquisas Jurídicas da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia – CEPEJ.
2009;11:295-315.
4
Cabral HLTB, Gregório PVO. Ortotanásia e o PLS nº 116 de 2000 como direito à morte digna. Revista Magister
de Direito Penal e Processual Penal. Porto Alegre: Ed. Magister. 2012;47:34-672.

79
Bioética e Humanização em Oncologia

a situações dos recém-nascidos com malformação congênita ou dos pacientes em


coma irreversível, em estado vegetativo.
Além disso, outras discussões relevantes surgiram, impondo-se conceituação
própria para cada prática, num esforço científico e metodológico de equalizar os
discursos e superar as dificuldades de entendimento de um assunto que já é comple-
xo por si só. Para salvaguardar o direito de morrer com dignidade, utiliza-se uma
variedade ampla de termos para distinguir a diversidade de situações em que se
encontra o doente terminal5.
Atualmente, a bioética emprega nos seus debates termos como eutanásia, dista-
násia, mistanásia, ortotanásia, tratamento fútil, obstinação terapêutica, cuidado pa-
liativo, recusa de tratamento médico e, enfim, suicídio assistido6. Faz-se necessário,
portanto, que sejam apresentados os contornos básicos de cada expressão, para que
não haja confusão.
O termo eutanásia foi cunhado pelo filósofo inglês Francis Bacon, com origens
nas palavras gregas eu (boa) e thanatos (morte), traduzindo uma boa morte ou morte
piedosa7.
Objetivamente, a eutanásia é ação médica intencionalmente praticada, por pura
benevolência, com a finalidade de apressar ou provocar a morte de uma pessoa aco-
metida por doença irreversível e incurável e que esteja sofrendo intensamente, tanto
do ponto de vista físico como psíquico8.
Noutra definição, a eutanásia ocorre quando o agente tira a vida da vítima que
está profundamente angustiada, para abreviar o grave sofrimento provocado por
doença reconhecidamente incurável. A eutanásia também é chamada de homicídio
piedoso, médico, compassivo, caritativo ou consensual9.
A eutanásia pode ser classificada em ativa, quando há a prática de atos comissi-
vos para que se obtenha o resultado desejado, contrapondo-se com a eutanásia pas-
siva, que é retratada como a deliberada omissão dos cuidados em saúde necessários,

5
Rohe A. O paciente terminal e o direito de morrer. Rio de Janeiro: Ed. Lúmen Juris Editora, 2000. p. 109.
6
Barroso LR, Martel LCV. A morte como ela é: dignidade e autonomia individual no final da vida. In: Pereira
TS, Menezes RA, Barboza HH (coords.). Vida, morte e dignidade humana. Rio de Janeiro: GZ editora, 2010.
p. 177-78.
7
Villas-Bôas ME. Um direito fundamental à ortotanásia. In: Pereira TS, Menezes RA, Barboza HH (coords.). Vida,
morte e dignidade humana. Rio de Janeiro: GZ editora, 2010. p. 250.
8
Barroso LR, Martel LCV. op. cit. p. 178.
9
Nucci GS. Código Penal Comentado. 9ª ed. rev., atual. e ampl. Ed. Revista do Tribunais, São Paulo, 2009. p. 581.

80
Capítulo 5 | Eutanásia, distanásia, mistanásia: conflitos éticos com a legislação brasileira

com o que se chega ao óbito antecipado da vítima10. Também há a eutanásia mista ou


de duplo efeito, em que a morte é acelerada por ações médicas que buscam o alívio do
sofrimento do paciente, mas têm a consequência secundária de antecipar o óbito11.
A eutanásia pode ser natural quando a morte que dela decorre sobrevém sem o
emprego de nenhum artifício e provocada, quando são utilizados meios artificiais para
dar fim ao sofrimento do doente.
Ela será autônoma quando for provocada pelo próprio paciente e heterônoma quan-
do couber a um terceiro, que pode ser o profissional de saúde, um familiar ou um
amigo do paciente.
A eutanásia libertadora, também conhecida como terapêutica, é praticada por mo-
tivação solidária. Essa modalidade é considerada a “verdadeira eutanásia”, pois tem
o objetivo de aliviar o sofrimento do paciente que não tem mais vida digna, ao
contrário da eutanásia eugênica, ou selecionadora, e da eutanásia econômica, que estão
despidas desse fim altruísta, não se amoldando ao conceito de “boa morte” da euta-
násia libertadora12.
A eutanásia também pode ser considerada voluntária, quando o paciente manifes-
ta expressamente seu livre consentimento, o que não ocorre nos casos de eutanásia
involuntária, em que a prática se dá contra a própria vontade dele. Neste caso não
há eutanásia, mas sim o crime de homicídio qualificado. Quanto à manifestação do
enfermo, há ainda um terceiro tipo, eutanásia não voluntária, que é comum nos casos
em que o paciente não tem condições de manifestar a sua vontade.
Por fim, cabe a referência à eutanásia neonatal, que se liga ao caso de crianças que
nascem com defeitos congênitos graves e que podem ser mantidas vivas com a ajuda
da formidável tecnologia disponível em alguns hospitais, mas sem garantia de que
sua vida prospectiva prossiga com qualidade mínima após o desligamento dos apa-
relhos. Enquanto estão internadas, a opção da eutanásia neonatal se abre para pais
e médicos, devendo, contudo, ser garantida a mesma conduta ética e médica reser-

10
Minahim MA. O direito e o dever de morrer: a complexidade de um tema. apud Pereira TS, Menezes RA,
Barboza HH. Vida, morte e dignidade humana. Rio de Janeiro: ed. GZ, 2010. p. 224.
11
Um exemplo é o emprego de uma dose de benzodiazepínico para minimizar a ansiedade e a angústia,
gerando, secundariamente, depressão respiratória e óbito. Vide Rudá AS. Direito penal e bioética: o início e
o fim da proteção jurídica da vida humana. Revista Ciência Jurídica. Belo Horizonte: Ed. Ciência Jurídica. Ano
XXIV. 2010;156:119-137, 132.
12
Silva RBB, Campos RT. A eutanásia na processualidade democrática brasileira. Revista Brasileira de Direito
Processual – RBD Pro. Belo Horizonte: Ed. Fórum. 2011;19(73):197-226, 200.

81
Bioética e Humanização em Oncologia

vada a um adulto em situação terminal, sob pena de se incorrer, inclusive, em algum


tipo de eugenia. Vale, nesse momento, a aplicação do princípio in dubio pro vita13.
Em oposição à eutanásia, tem-se a distanásia, palavra que também vem do gre-
go, pela junção de dis (afastamento) e thanatos (morte). Trata-se do prolongamento
artificial da vida do paciente em estado terminal, com o uso de meios tecnológicos
extraordinários e desproporcionais, ainda que não se tenha em vista chance de cura
ou de melhora no seu estado de saúde.
A distanásia, na verdade, é um lamentável e indevido elastecimento do processo
de morte14, às vezes por anos a fio, com o emprego dos substanciais avanços tecnoló-
gicos da medicina. Com a intenção de adiar e evitar o falecimento de determinada
pessoa, mantém-se a vida artificialmente, provocando agonia e dor absolutamente
desnecessários no enfermo.
A correlação da distanásia com a obstinação terapêutica e tratamento fútil é evidente,
havendo quem lhes trate como sinônimos. O combate à morte de todas as formas,
usando todos os recursos ordinários e extraordinários disponíveis15, como se fosse
uma doença curável, redunda numa “luta desenfreada e (ir)racional”16 que despreza
o sofrimento e afronta a dignidade do paciente.
A mistanásia, por sua vez, também é palavra de origem grega, formada pela jus-
taposição do prefixo mis (infeliz) e o radical thanatos (morte). Diz-se que é a eutanásia
social, a morte miserável antes da hora e fora de seu tempo natural.
Trata-se da “morte física por puro abandono estatal”17, ocorrendo o óbito an-
tecipado pela pura inação do Estado. A mistanásia é fruto direto da desigualdade
socioeconômica, decorre do descaso do poder público e não tem uma motivação
premente para ocorrer, somente o abandono absoluto do cidadão.

13
Bomfim LR. Eutanásia: questões éticas e jurídico-penais relevantes. Revista do CEPEJ. Salvador: Centro de
Estudos e Pesquisas Jurídicas da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia – CEPEJ. 2009;11:295-
315, 302.
14
Cabral HLTB, Gregório PVO. Ortotanásia e o PLS nº 116 de 2000 como direito à morte digna. Revista Magister
de Direito Penal e Processual Penal. Porto Alegre: Magister. 2012;47:34-672, 39.
15
Medidas ordinárias de manutenção da vida são aquelas habitualmente disponíveis, pouco dispendiosas,
obrigatórias e menos agressivas, como nutrição e hidratação artificial. Já medidas extraordinárias são aquelas
mais custosas, limitadas, arriscadas e facultativas, sujeitas à aprovação do enfermo. Vide Villas-Bôas ME. Um
direito fundamental à ortotanásia. In: Pereira TS, Menezes RA, Barboza HH (coords.). Vida, morte e dignidade
humana. Rio de Janeiro: GZ editora, 2010. p. 243.
16
Barroso LR, Martel LCV. A morte como ela é: dignidade e autonomia individual no final da vida. In: Pereira TS,
Menezes RA, Barboza HH (coords.). Vida, morte e dignidade humana. Rio de Janeiro: GZ editora, 2010. p. 179.
17
Rudá AS. Direito penal e bioética: o início e o fim da proteção jurídica da vida humana. Revista Ciência
Jurídica. Belo Horizonte: Ed. Ciência Jurídica. 2010;XXIV(156):119-137, 134.

82
Capítulo 5 | Eutanásia, distanásia, mistanásia: conflitos éticos com a legislação brasileira

A mistanásia simplesmente reflete o estado de abandono da saúde pública e do


cidadão, abrangendo a grande massa de doentes e deficientes que não chegam a ser
pacientes, pois não conseguem ingressar no sistema de atendimento médico. Tam-
bém se abate sobre os que conseguem ser pacientes, mas se tornam vítimas de erro
médico e aqueles que são vítimas de má-prática profissional por motivos econômi-
cos, científicos ou sociopolíticos18.
A situação da mistanásia provoca uma incômoda reflexão, na medida em que “tem
a sua importância dentro de uma sociedade que busca a todo custo uma solução acer-
ca do direito a uma morte digna e praticamente esquece o direito a uma vida digna”19.
Mais uma vez recorrendo ao grego, a palavra ortotanásia origina-se da reunião
de orto (certo), e de thanatos (morte). Ela diz respeito à conduta do médico que não
prolonga artificialmente o processo de morte, nem adota tratamento fútil ou mera-
mente protelatório, evitando que o paciente tenha mais sofrimentos e agonias inú-
teis, já que o óbito é inevitável e iminente. Nesse sentido, tem uma semelhança com
a eutanásia passiva, pois não realiza a ação terapêutica que seria indicada na aludida
circunstância, deixando o paciente “entregue ao seu inexorável fim”20.
Não obstante a semelhança, alguns doutrinadores fazem a distinção, estabele-
cendo que na ortotanásia o desejo do agente é não prolongar indevidamente a vida
do paciente, ao passo que na eutanásia passiva há a intenção de abreviar a vida, o
que se dá pela suspensão e omissão das terapias recomendadas21.
Ademais, para além da omissão no agir prevista na eutanásia passiva, a ortotanásia
impõe a aplicação dos cuidados necessários para aliviar os sintomas da doença, evi-
tando que o doente passe por sofrimentos desnecessários22. Com efeito, essa posição
foi abraçada pelo Conselho Federal de Medicina (CFM)23.

18
Bomtempo TV. A ortotanásia e o direito de morrer com dignidade: uma análise constitucional. In: Revista
Síntese de Direito de Família. São Paulo: Ed. Síntese. 2011;68:73-92, 76.
19
Cabral HLTB, Gregório PVO. Ortotanásia e o PLS nº 116 de 2000 como direito à morte digna. In: Revista
Magister de Direito Penal e Processual Penal. Porto Alegre: Magister. 2012;47:34-672, 44.
20
Bomfim LR. Eutanásia: questões éticas e jurídico-penais relevantes. Revista do CEPEJ. Salvador: Centro de
Estudos e Pesquisas Jurídicas da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia – CEPEJ. 2009;11:295-
315, 299.
21
Villas-Bôas ME. Um direito fundamental à ortotanásia. In: Pereira TS, Menezes RA, Barboza HH (coords.). Vida,
morte e dignidade humana. Rio de Janeiro: GZ editora, 2010. p. 252.
22
Bomtempo TV. A ortotanásia e o direito de morrer com dignidade: uma análise constitucional. In: Revista
Síntese de Direito de Família. São Paulo: Ed. Síntese. 2011;68:73-92, 76.
23
Trata-se da resolução nº 1805/2006 do Conselho Federal de Medicina – CFM, que estabeleceu as condições e
pressupostos para a prática da ortotanásia pelos médicos brasileiros.

83
Bioética e Humanização em Oncologia

Os cuidados paliativos se constituem na utilização de todos os recursos tecnoló-


gicos que visem ao conforto do paciente, aplacando o sofrimento físico e psíquico,
como dor e depressão, sem interferência obrigatória na evolução da doença. Os
cuidados paliativos são sempre devidos, mas associados à prática da ortotanásia,
significam uma especial atitude de respeito ao ser humano que padece de uma
doença terminal e incurável24. Vale dizer que os cuidados paliativos não se valem
de procedimentos extraordinários ou inúteis, que não sejam benéficos e tragam o
conforto para o paciente, como o que se colocam na contramão do que se denomi-
na obstinação terapêutica.
Prosseguindo no exame dos conceitos, há recusa ao tratamento médico, que é uma
faculdade do paciente diante das informações completas prestadas pelo profissional
de saúde sobre o objetivo, as características, as circunstâncias, o alcance, os efeitos
colaterais e os resultados esperados para a terapia proposta.
A recusa deve ser livremente prestada pelo paciente, de forma desimpedida e
esclarecida. Em certas circunstâncias especiais, pode até ser prestada pelos seus res-
ponsáveis legais. Além disso, pode ser ampla e alcançar o tratamento como um todo,
ou restrita, referindo-se a apenas alguns aspectos da terapia, com a previsão eventual
de limitações consentidas ao tratamento ou a suspensão de esforço terapêutico no
caso de insucesso total ou parcial da intervenção médica25.
Finalmente, há a figura do suicídio assistido. Nesse tipo de prática, a morte é pro-
vocada pelo próprio doente, sem depender de forma direta da ação de terceiro.
Apenas há o auxílio de interposta pessoa, normalmente comovida com a situação.
O suicídio assistido é semelhante à eutanásia, por causa do sentimento de compaixão
envolvido, com a diferença fundamental de que a participação do médico, familiar
ou terceiro no suicídio assistido é restrita a auxílio, orientação ou observação com os
meios ou conhecimentos necessários para o óbito acontecer26.
Dois casos de suicídio assistido ganharam repercussão internacional. O primei-
ro, do espanhol Ramón Sampedro, que, imobilizado completamente por tetraplegia
traumática, travou longa batalha judicial para conseguir a autorização judicial para

24
Villas-Bôas ME. Um direito fundamental à ortotanásia. In: Pereira TS, Menezes RA, Barboza HH (coords.). Vida,
morte e dignidade humana. Rio de Janeiro: GZ editora, 2010. p. 262.
25
Barroso LR, Martel LCV. A morte como ela é: dignidade e autonomia individual no final da vida. In: Pereira TS,
Menezes RA, Barboza HH (coords.). Vida, morte e dignidade humana. Rio de Janeiro: GZ editora, 2010. p. 180.
26
Bomfim LR. Eutanásia: questões éticas e jurídico-penais relevantes. Revista do CEPEJ. Salvador: Centro de
Estudos e Pesquisas Jurídicas da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia – CEPEJ. 2009;11:295-
315, 301.

84
Capítulo 5 | Eutanásia, distanásia, mistanásia: conflitos éticos com a legislação brasileira

eutanásia. Diante da recusa da justiça espanhola, acabou optando pela prática do


suicídio assistido, fracionando o processo em diversas tarefas específicas, para evitar
a responsabilidade criminal de seus amigos. O drama acabou retratado no filme
intitulado “Mar Adentro” (2004).
O segundo, também famoso, é o do Dr. Morte, o médico Jack Kevorkian, que
inventou uma “máquina de suicídio” e deu apoio a mais de 130 doentes terminais
para a prática de suicídio assistido. Um dos suicídios foi exibido em um dos progra-
mas de maior audiência nos Estados Unidos, o 60 minutes, que valeu condenação do
médico por homicídio qualificado, apesar de ele defender que não havia matado
ninguém diretamente27.

Breve apresentação do ordenamento jurídico brasileiro


Para que se possa compreender como a eutanásia se situa perante o ordenamento
jurídico, deve-se primeiramente saber como ele está estruturado.
No Brasil, o ordenamento jurídico está escalonado em uma estrutura piramidal,
tal como concebido pelo jurista alemão Hans Kelsen28. Isso significa que existe uma
organização normativa hierarquizada, dentro da qual uma norma não pode contra-
dizer o conteúdo daquela que lhe é superior.
No topo da pirâmide hierárquica, está a Constituição Federal, que contém as re-
gras elementares a respeito da organização do Estado Brasileiro, os direitos e garan-
tias fundamentais e também princípios e outras máximas que devem irradiar valores
para todo o ordenamento jurídico nacional. Embora a constituição brasileira seja
considerada analítica, na medida em que examina e regulamenta em detalhe todos
os assuntos que entendam relevantes a formação, destinação e funcionamento do
Estado29, as normas constitucionais não possuem primazia entre elas, ou seja, todas
são consideradas igualmente importantes e equivalentes entre si30.
Em seguida, descendo na hierarquia normativa da pirâmide de Kelsen, figu-
ram as leis. Entre as leis não há uma relação de hierarquia, mas sim de compe-

27
Verbete Jack Kevorkian. Wikipédia. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Jack_Kevorkian>. Acesso
em: 1 nov. 2016.
28
Kelsen H. Teoria pura do direito. 6ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998. p. 155.
29
Moraes A. Direito constitucional. 23. ed. São Paulo: ed. Atlas, 2003. p. 40.
30
Mendes GF, Branco PGG. Curso de direito constitucional. 7. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 67.

85
Bioética e Humanização em Oncologia

tência, isto é, cada uma delas deve cobrir um determinado assunto previsto na
constituição federal.
A lei é “regra geral de direito, abstrata e permanente, dotada de sanção, expres-
sa pela vontade de autoridade competente, de cunho obrigatório e forma escrita”31.
Como é dito na Constituição Federal, ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer,
senão em virtude de lei32. As leis, quando contradisserem as normas constitucionais,
serão consideradas inconstitucionais.
Em um degrau abaixo das leis na pirâmide normativa, encontram-se os de-
cretos, que são expedidos pelos chefes dos poderes executivos – presidente, gover-
nadores e prefeitos – com o objetivo de detalhar a operacionalização das leis. Os
decretos não podem ir além do que foi estabelecido pelas leis, sob pena de serem
considerados ilegais.
Por fim, na última posição da escala normativa, encontram-se todos os demais
atos que são editados pelas autoridades administrativas que estão abaixo do chefe
do executivo, como ministros, secretários, diretores de agências, estatais, autarquias,
etc. São resoluções, portarias, normas operacionais, despachos, enfim, todas as nor-
mas que são editadas pelas normas. Da mesma forma, tais atos normativos também
não podem extrapolar o que foi estabelecido em lei, pois aí padecerão de ilegalidade
e poderão ser contestados na justiça.
Quem decide sobre a ilegalidade de uma norma infralegal ou a inconstitucio-
nalidade de uma lei é o Poder Judiciário, representado por juízes, desembargadores
e ministros.
Para realizar o julgamento, o juiz se debruça sobre o “caso concreto”, isto é,
leva em consideração as particularidades da relação jurídica entre autor e réu para
aplicar as normas jurídicas genéricas e abstratas de forma particularizada, segundo
os elementos e provas que foram apresentados no processo judicial.
Nesse contexto, o magistrado pode afirmar se, para o caso concreto que lhe foi
apresentado, há uma situação de ilegalidade ou inconstitucionalidade. Sua decisão
valerá apenas para os atores daquele processo. Isso justifica por que causas seme-
lhantes, mas que envolvem outras partes, não necessariamente têm o mesmo julga-

31
Venosa SS. Direito Civil. 16ª ed. v. 1. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 33.
32
Trata-se da prescrição do art. 5º, II da Constituição Federal.

86
Capítulo 5 | Eutanásia, distanásia, mistanásia: conflitos éticos com a legislação brasileira

mento. Essa situação é confirmada também por causa da independência dos juízes33,
que não estão vinculados a decisões anteriores de seus colegas.
Se as partes não concordarem com o teor da decisão, poderão recorrer para um
órgão colegiado do tribunal a que pertence o juiz sentenciante, composto por três
juízes mais experientes, comumente denominados desembargadores, que proferem
um acórdão.
Se ainda assim não houver a concordância com o teor da sentença e do acórdão,
a parte pode ainda recorrer aos tribunais superiores, que têm a função principal de
uniformizar a jurisprudência. A exceção reside em certas hipóteses constitucionais
bem definidas, quando tais cortes são incumbidas do julgamento de processos espe-
ciais, funcionando como um tribunal comum34.
Nos tribunais superiores, os ministros somente julgam questões de direito, ou
seja, a interpretação da lei. Ali não se examinam mais as provas, pois essa é uma
tarefa que cabe somente às instâncias originárias – juízes e desembargadores. Isso
acontece, como dito, pois o papel das cortes superiores é uniformizar o entendimen-
to da aplicação da lei pelos tribunais do país.
Mesmo assim, se houver alguma questão constitucional a ser discutida nos pro-
cessos que forem julgados pelos tribunais superiores, a questão ainda pode ser levada
a exame do STF.

Responsabilidade penal, civil e administrativa


Outro aspecto relevante para a compreensão jurídica da prática eutanásia é o modo
pelo qual o Direito Brasileiro atribui as responsabilidades para os atos denominados
ilícitos. Quando alguém pratica determinado ato que é considerado contrário à lei,
pode ser responsabilizado de formas diferentes.
Primeiramente, existe a responsabilidade civil. Ela é estabelecida segundo as leis
civis brasileiras, em especial pelo Código Civil, lei nº 10.406/2002, que consagra a
regra universal de que todo aquele que causa dano a outrem é obrigado a repará-lo35.

33
Segundo o art. 95 da Constituição Federal, os juízes gozam de vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade
de vencimentos.
34
Um bom exemplo é a ação penal 470, o mensalão, quando o STF atuou como corte penal, em substituição
ao próprio juiz de primeira instância, por causa do foro privilegiado, previsto no art. 102, I, “b” a “d” da
Constituição Federal.
35
Gonçalves CR. Direito civil brasileiro, v. 4. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 47.

87
Bioética e Humanização em Oncologia

Em linhas gerais, aquele que causar um dano a terceiro, em virtude de conduta


dolosa (intencional), ou culposa (não intencional, porém imprudente, imperita ou
negligente), deve reparar integralmente o dano36. De preferência, deve-se restaurar
a situação anterior ao evento danoso, ao status quo ante.
Se isso não for possível, preceituam as regras do direito civil em que deve ser
paga uma indenização ao lesado, em valor suficiente para reparar o dano causado.
A indenização terá como elementos balizadores o dano da vítima, já que o principal
objetivo do direito civil, como visto, é a reparação de prejuízos e a restituição ao
status quo ante.
Em casos extremos, contudo, a conduta do causador do prejuízo também pode
ser considerada para a fixação da indenização. Existem dois tipos de indenização:
por danos materiais, estimada com base nas perdas materiais, e os danos morais, os
quais são quantificados em termos do sofrimento, angústia e dor moral pela qual
passa a vítima.
Dessa forma, quando um particular se considera lesado na esfera cível, deve
ajuizar um processo que tramitará pelos tribunais de acordo com as regras previstas
no Código de Processo Civil, lei nº 13.105/15. Esse processo será julgado por um
juiz, cuja sentença poderá ser revista por desembargadores, seguindo o esquema já
apresentado no tópico anterior.
Em segundo lugar, existe a responsabilidade penal ou criminal. Ela decorre das
prescrições das leis penais, notadamente do Código Penal, decreto-lei nº 2.848/1940,
onde estão descritos os crimes, e do decreto-lei nº 3.688/41, Lei de Contravenções
Penais, que são práticas menos gravosas que os crimes, mas também reprovadas pela
sociedade.
Veja-se que, na ótica da responsabilidade penal, o legislador definiu os crimes,
que são condutas consideradas tão gravosas para a sociedade que sua prática pode
impor o afastamento do indivíduo do convívio social. Em outras palavras, o crimino-

36
O art. 927 do Código Civil estabelece que aquele que, por ato ilícito, causar dano a outrem fica obrigado
a repará-lo. O art. 186 do mesmo diploma estabelece também o que é ato ilícito: “Aquele que, por ação
ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que
exclusivamente moral, comete ato ilícito”.

88
Capítulo 5 | Eutanásia, distanásia, mistanásia: conflitos éticos com a legislação brasileira

so, condenado após julgamento na segunda instância, já pode ser preso e começar a
cumprir a pena que lhe foi imposta37.
No caso da ação penal, deve-se ter em mente que o lesado, além da própria
vítima, é a sociedade. Por isso, é o Estado que promove a persecução penal, se-
guindo regras previamente estabelecidas no Código de Processo Penal, decreto-lei
nº 3.689/1941.
Assim, o crime e a sua autoria são investigados primeiramente pelo delegado
de polícia, por meio do inquérito policial. Se os trabalhos indicarem que o suspeito
realmente parece ter cometido o crime, ele é indiciado, e o delegado remete o inqué-
rito para análise do Ministério Público.
No direito brasileiro, são os procuradores e promotores de justiça do Ministério
Público quem detêm a competência para ajuizar as ações penais. Dessa forma, se o
representante do Ministério Público entender que realmente foi praticado um crime,
ele pode apresentar a denúncia ao poder judiciário. O indiciado passa, portanto, à
condição de denunciado.
A denúncia é apreciada preliminarmente ao juiz de primeira instância. O de-
nunciado apresenta uma defesa prévia e, se o magistrado entender que há em tese
um crime, a ação penal começa a tramitar regularmente. O denunciado passa à
condição de Réu no processo penal, que tramitará na justiça de acordo com as
regras processuais, garantindo-se sempre o contraditório e a ampla defesa. Ao final
do processo, depois de produzidas todas as provas necessárias, prolata-se a sentença,
que pode ser condenatória ou absolvitória.
Por fim, existe também a responsabilidade administrativa. Esta não visa à repa-
ração em dinheiro ou à prisão. Ela simplesmente é voltada para a aplicação de uma
penalidade administrativa, que pode variar de acordo com o ente da administração
pública que está atuando à frente do processo investigatório.
Assim, a Receita Federal pode investigar a sonegação de impostos pelo cidadão,
o Conselho Regional de Medicina pode apurar o procedimento do médico em rela-
ção ao código de ética médica, o Departamento de Trânsito pode aplicar uma multa
a um motorista, ou um ministério pode advertir um servidor público concursado por
uma conduta reprovável.

37
Como amplamente noticiado, recentemente o STF definiu que não precisam ser esgotadas todas as
instâncias recursais para que o réu possa começar a cumprir a sentença, bastando que a sentença
condenatória seja confirmada em segunda instância. Isso se deu no julgamento das Ações Diretas de
Constitucionalidade ADC 43 e 44, ocorrido em 5/10/2016.

89
Bioética e Humanização em Oncologia

Via de regra, os procedimentos para a apuração da responsabilidade administra-


tiva são de competência de cada ente da administração pública, de acordo com sua
esfera de atuação. Justo por isso, podem resultar nas mais variadas sanções, como
advertências, censura, multas, suspensões, expulsões, cassação de registro, demissão.
Como existem inúmeras modalidades de processo administrativo, não é possível
descrever o funcionamento geral de cada um. Todavia, no que não forem expressas
as regras em cada ente da administração pública, devem ser obedecidos os preceitos
contidos na Lei do Processo Administrativo, lei nº 9.784/99. Dessa forma, devem ser
prestigiados os princípios administrativos da legalidade, impessoalidade, motivação,
publicidade e eficiência, sempre com respeito ao contraditório e ampla defesa38.
Assim, de modo geral, para a apuração da existência de uma denúncia ou in-
fração administrativa e a imputação da responsabilidade correlata, normalmente
é instaurado um procedimento preliminar, com a convocação do interessado para
manifestação prévia a respeito dos fatos que lhe são imputados. Se for admitida a
denúncia ou a infração, instaura-se a partir daí o procedimento propriamente dito,
com a possibilidade de defesa para o administrado. Caso seja aplicada alguma san-
ção, há a possibilidade de recurso administrativo direcionado para a autoridade ou
colegiado superior àquela que aplicou a penalidade.
É interessante destacar que as instâncias cível, penal e administrativa desenvol-
vem-se de forma relativamente independente umas das outras. Um mesmo ato pode
ter repercussões nas três esferas, com desdobramentos e consequências diversas.
No âmbito do presente artigo, pode-se tomar o exemplo da prática da eutanásia.
Sua realização pode ter consequências diversas para o profissional de saúde envolvi-
do, dependendo da esfera jurídica analisada.
Primeiramente, ele corre o risco de ser processado criminalmente, mediante o
ajuizamento de ação penal por parte do Ministério Público para apurar se houve
o cometimento de um crime – homicídio – pelo profissional, podendo resultar daí
uma pena de prisão que varia de nove a treze anos.
Na esfera cível, o mesmo fato poderá justificar o ajuizamento de uma ação judi-
cial indenizatória por danos materiais e morais sofridos pelos familiares em virtude
da perda do ente querido. Se houver condenação judicial, o patrimônio do profissio-
nal pode ser utilizado para pagar uma pensão vitalícia para os dependentes, além de
38
O art. 2º da Lei 9.784/99 faz menção expressa a legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade,
proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência
que estabelece os princípios mínimos da defesa.

90
Capítulo 5 | Eutanásia, distanásia, mistanásia: conflitos éticos com a legislação brasileira

pagar uma indenização para reparar o sofrimento e os danos morais sofridos pelos
parentes com a morte.
Por fim, na seara administrativa, o médico ainda pode ser processado por seu
conselho profissional – no caso dos médicos, o CRM – por falta ética no exercício da
profissão, cuja consequência mais grave pode ser a própria perda do registro profis-
sional e o impedimento ao exercício da profissão.
Digno de nota que, como são segmentos independentes, a absolvição em uma
esfera não interfere necessariamente nas demais. Do mesmo modo, a condenação em
determinada área não importa automática sanção nas demais. Isso significa que pode
acontecer uma condenação só no âmbito administrativo, sem que haja a punição nas
esferas cível ou penal. Também pode ocorrer que haja uma sanção mais branda na
área cível, com uma pesada condenação administrativa e absolvição penal.
A única exceção a essa regra é a condenação na esfera criminal, que tem o
condão de interferir no pressuposto das responsabilidades cível e administrativa39.
Nesse caso, os processos cível e administrativo não se preocuparão mais em estabe-
lecer a culpa ou dolo do investigado, pois tal prova já foi obtida no processo penal.
A discussão, então, ficará restrita ao valor da indenização ou da escolha da sanção
administrativa a ser aplicada ao infrator.

A eutanásia, distanásia e mistanásia e as leis brasileiras


Fixados os conceitos, pode-se partir para uma explanação de como é entendida a eu-
tanásia e suas variantes pelo Direito Brasileiro. No caso dos crimes, a legislação a ser
seguida é o Código Penal, no qual estão estabelecidos os crimes e as respectivas penas.
A configuração penal da eutanásia como um crime demanda, em primeiro lu-
gar, que o paciente seja terminal e incurável e que padeça de sofrimento intenso, que
não precisa ser físico, mas psíquico ou moral40. Do contrário, a conduta será tratada
como o crime de homicídio puro e simples, cuja pena de seis a vinte anos pode ser
aumentada pelas motivações do criminoso.
Tratando-se de eutanásia praticada na modalidade ativa, o entendimento pre-
valente é a antecipação da morte, que configura homicídio privilegiado por motivo

39
A absolvição penal, curiosamente, não tem o condão de interferir decisivamente na responsabilização cível
ou administrativa, principalmente se ocorrer por falta de provas.
40
Bomfim LR. Eutanásia: questões éticas e jurídico-penais relevantes. Revista do CEPEJ. Salvador: Centro de Estudos
e Pesquisas Jurídicas da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia – CEPEJ. 2009;11:295-315, 297.

91
Bioética e Humanização em Oncologia

relevante de valor moral, tal como tipificado no art. 121, §4º do código penal. Na
verdade, a própria exposição de motivos do Código Penal menciona o “homicídio
eutanásico” como um exemplo de crime que conta com motivo aprovado pela moral
prática41 e que, por isso, recebe uma pena menor do que a do homicídio simples. Isso
significa que o profissional da saúde que vier a praticar a eutanásia pode ser conde-
nado a uma pena que varia de quatro a treze anos42.
Na sua modalidade passiva, a situação é diferente, pois deve ser considerado o
dever jurídico de agir do profissional de saúde, ou seja, ele tem a obrigação legal de
não agir quando a situação do paciente se agrava. Nesse caso, se praticar a eutanásia
passiva, o código penal considera que houve crime omissivo impróprio, não respon-
dendo apenas por sua omissão, mas pelo resultado que vier a causar, qual seja, o
homicídio do enfermo43. Nessa situação, a pena será idêntica àquela prevista para a
eutanásia ativa, ou seja, de quatro a treze anos de prisão.
No caso da eutanásia mista ou de duplo efeito, o profissional de saúde prevê o re-
sultado morte e, embora não o queira propriamente atingi-lo, pouco se importa com
sua ocorrência44, numa conduta classificada como dolo eventual, a qual equivale ao
dolo direto. Nesse quadro, a condenação será igual a das duas outras modalidades
de eutanásia – ativa ou passiva – fixada entre quatro e treze anos de prisão. Todavia,
para alguns juristas, a eutanásia nessas condições não poderia ser penalizada, já que
envolve uma conduta médica socialmente legitimada e envolve um risco permitido,
porque é inerente ao exercício da medicina45.
A eutanásia natural pode decorrer tanto de ato comissivo como omissivo do pro-
fissional de saúde, sendo tal conduta apenada também como um homicídio privile-
giado, seja por dolo direto, se for cometida a conduta, ou crime omissivo impróprio
de homicídio, ambos contando com a pena de quatro a treze anos de prisão.

41
Exposição de motivos do código penal. Disponível em: <https://www.diariodasleis.com.br/busca/exibelink.
php?numlink=1-96-15-1940-12-07-2848-CP>. Acesso em: 2 nov. 2016.
42
O artigo 121 do Código Penal fixa a pena para o homicídio simples de seis a vinte anos. Segundo o parágrafo
quarto, onde está inscrita a redução da pena por causa do motivo de relevante valor moral, há a previsão de
redução da pena de um sexto a um terço.
43
O artigo 13, §2º, do Código Penal estabelece que a omissão é penalmente relevante quando o omitente
devia e podia agir para o resultado. O dever de agir incumbe por lei obrigação de cuidado, proteção ou
vigilância, que é o caso do profissional de saúde com relação ao paciente.
44
Capez F. Curso de Direito Penal 1 – Parte Geral. p. 227.
45
Roxin apud Bomfim LR. Eutanásia: questões éticas e jurídico-penais relevantes. Revista do CEPEJ. Salvador:
Centro de Estudos e Pesquisas Jurídicas da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia – CEPEJ.
2009;11:295-315, 310.

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Capítulo 5 | Eutanásia, distanásia, mistanásia: conflitos éticos com a legislação brasileira

A eutanásia provocada é necessariamente ativa, com a mesma punição deter-


minada pelo código penal, qual seja o estabelecimento da pena de prisão de quatro
a treze anos.
Na eutanásia autônoma, como se sabe, a antecipação do resultado morte é pra-
ticada pelo próprio paciente. Nesse caso, o objeto da persecução penal é a conduta
daquele que auxiliou o paciente no malfadado ato. Para o direito penal, não obs-
tante o suicídio em si mesmo não constitua um crime, induzir ou instigar alguém
ao suicídio, ou prestar auxílio ao suicida para que seu ato seja consumado, é uma
prática criminosa, punível com dois a seis anos, sem que possa ser possível aplicar a
atenuante de relevante valor moral, por já estar incluída no tipo penal46.
A eutanásia heterônoma também tem a mesma pena das modalidades já exami-
nadas, pois pode ser ativa ou passiva.
No caso da eutanásia autônoma não há obviamente condenação, senão aquela
aplicável ao sujeito que auxilia a abreviação da vida, que vai de dois a seis anos de
prisão, como já explanado anteriormente.
A eutanásia libertadora é, como dito, considerada a verdadeira eutanásia. Toda-
via, não há nenhum tipo de vantagem legal nessa classificação, sendo punível com a
pena já apresentada de quatro a treze anos de prisão, já que pode se apresentar em
qualquer das modalidades anteriores.
Já a eutanásia eugênica é consensualmente classificada pelos penalistas como
homicídio triplamente qualificado por motivo torpe, com o emprego de meio insi-
dioso ou cruel e por ser impossível que o paciente se defenda, estando estabelecida
na legislação a pena de doze a trinta anos de prisão47.
Na eutanásia voluntária, em que o paciente dá o seu consentimento para a práti-
ca da eutanásia, persiste a aplicação da pena prevista no código penal, fixada à base
de quatro a treze anos, nas várias modalidades já examinadas. A lei não estabelece
que o consentimento do paciente evita a descriminalização da prática do homicídio,
já que a vida é bem indisponível e inalienável48.

46
Bomfim LR. Eutanásia: questões éticas e jurídico-penais relevantes. Revista do CEPEJ. Salvador: Centro de
Estudos e Pesquisas Jurídicas da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia – CEPEJ.
2009;11:295-315, 310.
47
O homicídio qualificado está tipificado no Código Penal, no artigo. 121, §2º e seus quatro incisos.
48
Rohe A. O paciente terminal e o direito de morrer. Rio de Janeiro: Ed. Lumen Juris Editora, 2000. p. 112.

93
Bioética e Humanização em Oncologia

A eutanásia involuntária se constitui em crime de homicídio qualificado, pois é


executada contra a vontade do paciente, seja pelo motivo fútil, pelo emprego de meio
insidioso ou cruel e, ainda, pela impossibilidade de resistência e defesa do doente.
Na eutanásia não voluntária, o paciente não tem condições de manifestar sua
vontade e, assim, o ato que lhe abrevia a morte é considerado também uma euta-
násia típica a qual, sabe-se, recebe a pena por homicídio praticado por relevante
motivação moral, com prisão de quatro a treze anos.
A eutanásia neonatal só não pode ser autônoma, nem voluntária, ou mesmo in-
voluntária, cabendo no caso em tela a aplicação da pena prevista para o homicídio
privilegiado, que também é de quatro a treze anos.
A distanásia é o prolongamento indevido da vida do paciente, muitas das vezes
a todo custo, sendo conduta de difícil tipificação, já que há a visão geral de que os
esforços empregados para adiar o falecimento do paciente não podem, em princípio,
ser tidos por prejudiciais.
Não obstante, a tentativa de prorrogação da vida a qualquer custo pode trazer
sofrimento e dor para o paciente. Por isso, a distanásia pode levar à condenação do
profissional de saúde a uma condenação pelo crime de maus-tratos contra o pacien-
te, tal qual previsto no art. 136 do Código Penal, e a pena de dois meses a um ano
pode ser majorada a um a quatro anos se houver lesões corporais graves.
Já no caso da mistanásia, igualmente inexiste um tipo que preveja a punição
penal para a maioria de suas configurações, exceto naqueles casos em que as vítimas
são mortas ou lesionadas por erros médicos ou más-práticas. Nesse caso, há condi-
ções para que se apliquem as penas referentes ao homicídio culposo, cuja pena é de
um a três anos, com aumento de um terço da pena, de onde se tem a pena média de
um ano e quatro meses a quatro anos de prisão.
A ortotanásia não é considerada crime por inúmeros doutrinadores, já que o
médico abdica de tratamentos protelatórios que prolongariam por pouco tempo a
vida de pessoa com doença irreversível e fatal, sem reverter o quadro. Nesse caso, a
morte da vítima decorre da doença e não da ação ou omissão do médico49.

49
Gonçalves VER. Direito Penal Esquematizado. p. 86.

94
Capítulo 5 | Eutanásia, distanásia, mistanásia: conflitos éticos com a legislação brasileira

A prática ortotanásica está regulada pela resolução CFM 1805/2006, atualmen-


te em pleno vigor50. Seus termos são reforçados pelo próprio código de ética médica,
que estabelece como princípio fundamental que “nas situações clínicas irreversíveis
e terminais, o médico evitará a realização de procedimentos diagnósticos e terapêu-
ticos desnecessários e propiciará aos pacientes sob sua atenção todos os cuidados
paliativos apropriados”51.
A recusa ao tratamento médico, em princípio, não é tipificada como prática
criminosa, pois se refere a uma posição pessoal do paciente em negar o tratamento.
O problema se refere à situação quando o paciente não pode se manifestar, nem
registrou diretivas antecipadas de vontade52. Nesse caso, como a vida é um bem in-
disponível para terceiros53, há dificuldade em que se deixe de configurar a eutanásia
em alguma de suas modalidades, inclusive com repercussões legais para o profissio-
nal de saúde.
Por último, na questão do suicídio assistido, a configuração penal que classica-
mente se amolda à conduta é o crime de auxílio ao suicídio, já comentado anterior-
mente, e que tem pena prevista de dois a seis anos de prisão.
Do ponto de vista do direito civil, a questão é orientada pela ideia de reparação,
como já visto. Nesse caso, o profissional da saúde que pratica a eutanásia pode ser
processado com vistas ao pagamento de indenização por danos materiais e morais
aos familiares e dependentes do paciente que teve a sua vida abreviada pela euta-
násia. Seu patrimônio poderá ser chamado a responder pelo pagamento da indeni-
zação.
Com relação à distanásia, da mesma maneira o profissional de saúde poderá
ser alvo de processo judicial que objetive a sua condenação por danos materiais e
morais aos familiares e dependentes do paciente que teve a sua vida artificialmente

50
A resolução 1805/2006 foi inicialmente suspensa por ordem judicial, após ter sido classificada pelo
Procurador da República como um artifício homicida, tendo sido declarado em liminar judicial pelo
Magistrado que julgou a causa que existe “aparente conflito entre a resolução questionada e o código
penal”. Em 01/02/2010 foi julgada improcedente a ação e hoje o processo está arquivado. Vide Processo
judicial 2007.34.00.014809-3 no sítio eletrônico do TRF-1. Disponível em: <http://processual.trf1.jus.br/
consultaProcessual/processo.php?secao=DF&opSec=proc&proc=
200734000148093&enviar=Ok>. Acesso em: 5 nov. 2016.
51
Código de Ética Médica, Cap. I – Princípios Fundamentais, Inciso XXII
52
Trata-se do testamento vital, regulado pela resolução CFM nº 1995/2012.
53
Bomfim LR. Eutanásia: questões éticas e jurídico-penais relevantes. Revista do CEPEJ. Salvador: Centro de
Estudos e Pesquisas Jurídicas da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia – CEPEJ.
2009;11:295-315, 307.

95
Bioética e Humanização em Oncologia

prolongada pela eutanásia, naturalmente se houve sofrimento e dor injustificados


para o paciente. Como no caso anterior, o patrimônio deve suportar o pagamento
da indenização fixada judicialmente.
Em condutas como a ortotanásia, a recusa ao tratamento e o suicídio assistido,
inicialmente não se concebe a possibilidade de indenização civil, salvo em situações
muito peculiares.

A dignidade humana como abordagem adequada


para a superação dos conflitos éticos da eutanásia,
distanásia e mistanásia mediante a legislação brasileira
Após ter analisado com mais detalhe como o direito penal encara a prática da euta-
násia e suas derivações, o profissional da saúde fica consciente de que, nas situações
descritas, todas as suas condutas podem ser vistas como criminosas. Ademais, ele
corre o risco de ter que submeter o seu patrimônio para arcar com indenizações
vultosas por causa das condutas eutanásicas praticadas.
Isso ocorre porque a lei brasileira penal data de meados do século passado, ten-
do sido elaborada segundo os modelos social, moral e religioso vigentes há mais de
sessenta anos, os quais privilegiam um modelo que força o médico a adotar condutas
de obstinação terapêutica e a buscar a distanásia em detrimento da própria vontade
do enfermo, deixando de tratá-lo como sujeito de direitos54.
O código civil, não obstante seja uma legislação mais moderna, promulgada em
2002, foi elaborado em meados do século passado e passou mais de vinte e cinco
anos tramitando pelas casas legislativas55, o que também demonstra que as suas pre-
missas estão relativamente desatualizadas.
Ao tempo em que foi concebida a codificação aplicável à eutanásia, por exem-
plo, não existiam os recursos médicos, científicos e tecnológicos capazes de prolon-
gar artificialmente a vida humana, como acontece nos dias atuais.
Ademais, a sociedade mudou bastante e hoje rejeita limitações ao prazer e à
perspectiva de uma sobrevida cheia de agonia e percalços, recusando-se a doar seu

54
Barroso LR, Martel LCV. A morte como ela é: dignidade e autonomia individual no final da vida. In: Pereira TS,
Menezes RA, Barboza HH (coords.). Vida, morte e dignidade humana. Rio de Janeiro: GZ editora, 2010. p. 182.
55
O projeto de lei 634/75, que tratava do código civil, começou a tramitar pela Câmara dos Deputados em
11/06/1975, demorou cerca de 27 anos para ser votado e aprovado, transformando-se na Lei nº 10.406
somente em 10/01/2002.

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Capítulo 5 | Eutanásia, distanásia, mistanásia: conflitos éticos com a legislação brasileira

tempo para compartilhar a dor, preferindo, por razões utilitaristas e egoístas, defen-
der a eutanásia, eis que ela aparece como um meio de libertar-se de uma existência
que assume formas perturbadoras56.
Talvez por isso a questão da dignidade do doente em fase terminal não era
sequer discutida até bem pouco tempo. Não havia debate jurídico que ousasse con-
frontar a sacralidade da vida, mesmo que outros valores éticos pudessem ser invoca-
dos, como a autonomia, a dignidade, o direito de escolha e a própria qualidade de
vida do enfermo.
Quando a lei se torna evidentemente insuficiente, como parece ser o caso da
legislação sobre a eutanásia, deve-se buscar apoio e argumentação na interpretação
constitucional. Isso se justifica porque a discussão relativa à eutanásia é muito com-
plexa e põe em choque direto valores morais significantes, como o direito à vida, à
liberdade religiosa, à saúde e à própria dignidade humana, os quais vão além das
disposições legais.
Segundo Barroso, os processos em que se colocam em confronto os princípios
constitucionais são conhecidos como hard-cases57, sendo evidente que a discussão ju-
dicial da eutanásia é um desses casos difíceis.
Valores morais significantes, na ordem constitucional, são tratados como princí-
pios. Os princípios funcionam como mandatos de otimização58, devendo ser explo-
rados ao máximo e compatibilizados, ponderados e aplicados sem exceção ao caso
concreto, porém com cargas diferenciadas, o que permite que a solução mais justa e
adequada possa ser encontrada, superando o impeditivo legal por uma argumenta-
ção mais relevante do ponto de vista político, ético, econômico e social.
Essa análise constitucional passa, sem dúvida, pelo princípio da dignidade hu-
mana. Tal princípio, elemento fundamental da Constituição Federal de 198859, per-
meia toda a ordem jurídica, proporcionando uma nova orientação dos direitos e
deveres, agora compatíveis com a figura do Estado Democrático de Direito, em

56
Minahim MA. O direito e o dever de morrer: a complexidade de um tema. apud Pereira TS, Menezes RA,
Barboza HH. Vida, morte e dignidade humana. Rio de Janeiro: ed. GZ, 2010. p. 215.
57
Barroso LR. O controle de constitucionalidade no direito brasileiro: exposição sistemática da doutrina e
análise crítica da jurisprudência. 6ª ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 397.
58
Mattos MRG. Administração. In: Martins IGS, Mendes GF, Nascimento CV. (coords.). Tratado de direito
constitucional, v. 1, 2. ed., São Paulo: Saraiva, 2012. p. 1122.
59
Art. 2º, III, da CF.

97
Bioética e Humanização em Oncologia

que as normas jurídicas devem ser não só válidas e eficazes, mas também devem ser
legítimas60.
Analisado o direito constitucional à vida na perspectiva da dignidade humana, não
se pode admitir que o Estado venha legitimamente impor ao paciente terminal uma
situação de profunda agonia, transformando-o num “insuportável dever à vida”61.
Aliás, a prática de submeter o paciente a tratamentos fúteis e invasivos, que lhe
provoquem sofrimento físico e moral desnecessários, pode ser considerada tortura,
vedada pela Constituição Federal em seu art. 5º, III62.
É certo que o direito à vida é realmente especial e não pode ser flexibilizado sem
cautelas múltiplas, mesmo quando as circunstâncias forem extremamente adversas63,
como é o caso do paciente que está em fase terminal.
Todavia, viver de forma digna não é um “simples respirar biológico”64, mas sim
o respeito ao ser humano em sua complexidade, de modo que sua liberdade de
religião, de expressão, de locomoção e de autodeterminação seja respeitada pela
comunidade jurídica e efetivada pelo Estado65.
Na realidade, ao direito à vida, soma-se o princípio fundante da dignidade hu-
mana, fazendo com que haja “garantia não só do direito à vida, mas sim do direito
à vida digna”66, sendo esse o ponto de partida para a interpretação da prática da
eutanásia.
Noutro giro, o princípio da dignidade humana também dá outra coloração ao
direito à saúde, eis que saúde não equivale apenas à mera ausência de doença, mas é
modernamente compreendida como bem-estar físico, mental e social67. Dessa feita,
o adiamento a todo custo da vida significará puro desrespeito à saúde do paciente

60
Silva RBB, Campos RT. A eutanásia na processualidade democrática brasileira. Revista Brasileira de Direito
Processual - RBDPro. Belo Horizonte: Ed. Fórum. 2011;19(73):197-226, 210.
61
Barroso LR, Martel LCV. A morte como ela é: dignidade e autonomia individual no final da vida. In: Pereira TS,
Menezes RA; Barboza HH (coords.). Vida, morte e dignidade humana. Rio de Janeiro: GZ editora, 2010. p. 187.
62
Bomfim LR. Eutanásia: questões éticas e jurídico-penais relevantes. Revista do CEPEJ. Salvador: Centro de
Estudos e Pesquisas Jurídicas da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia – CEPEJ. 2009;11:295-
315, 313.
63
Barroso LR, Martel LCV. op. cit. p. 186.
64
Negri apud, Silva RBB, Campos RT. op. cit. p. 217.
65
Silva RBB, Campos RT. op. cit. p. 218.
66
Silva RBB, Campos RT. A eutanásia na processualidade democrática brasileira. Revista Brasileira de Direito
Processual – RBDPro. Belo Horizonte: Ed. Fórum. 2011;19(73):197-226, 198.
67
Bomtempo TV. A ortotanásia e o direito de morrer com dignidade: uma análise constitucional. In: Revista
Síntese de Direito de Família. São Paulo: Ed. Síntese. 2011;68:73-92, 80.

98
Capítulo 5 | Eutanásia, distanásia, mistanásia: conflitos éticos com a legislação brasileira

terminal, podendo ser interpretado como tratamento desumano e degradante, repe-


lido pela ordem constitucional68.
Por último, ainda se percebe que o princípio da dignidade humana tem ainda liga-
ção com o princípio da igualdade, que também tem assento constitucional, já que os
doentes terminais devem poder dispor sobre suas próprias vidas, assim como acontece
como as pessoas sadias, respeitando-se o direito de morrer com dignidade69.
Dessa feita, o apelo à dignidade humana, dentro da sua perspectiva constitucio-
nal, aparece como uma alternativa de peso aos vetustos comandos legais que penali-
zam a prática da eutanásia. Com isso, garante-se o respeito às escolhas do enfermo,
mesmo nos momentos finais e difíceis de sua vida, não permitindo que ele sofra com
o prolongamento indevido e indefinido do processo de sua morte.

Considerações finais
Finalizando, conclui-se que os tempos atuais são de questionamento permanente
de direitos, deveres e posturas éticas antes estabelecidas. Diante desse quadro – o
Estado Democrático de Direito –, o Poder Judiciário adquiriu protagonismo nunca
antes visto na solução dos conflitos sociais.
A judicialização da saúde, não obstante seja mais evidente quanto à questão do
acesso, também abrange outros temas tão ou mais relevantes, como é o caso da eu-
tanásia e suas variantes, as quais visam a garantir o direito de morrer com dignidade.
Como são muitas as situações em que a prática pode ocorrer, é importante dis-
tinguir conceitualmente cada prática para evitar equívocos. Também é necessário,
para a compreensão de como o judiciário trata o assunto, que se passe por uma bre-
ve explanação de como funciona o ordenamento jurídico e de que maneira, na prá-
tica, acontece a aplicação da norma jurídica relativa à eutanásia e às suas variações.
Essa situação vai revelar alguns conflitos éticos, derivados em grande medida
pelo envelhecimento da legislação, que entra em choque direto com os novos para-
digmas sociais.
Por isso, deve-se apelar para uma nova perspectiva constitucional, da qual aflora
o princípio da dignidade humana como fonte de argumentação jurídica capaz de
superar as dificuldades de interpretação da norma legal.

68
Art. 5º, III, CF.
69
Bomtempo TV. op. cit. p. 86.

99
Bioética e Humanização em Oncologia

Bibliografia
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doutrina e análise crítica da jurisprudência. 6ª ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2012.
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100
Capítulo 5 | Eutanásia, distanásia, mistanásia: conflitos éticos com a legislação brasileira

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101
Capítulo 6 | Bioética e cuidados paliativos

6
Bioética e cuidados paliativos
Marcos Santos, Talita Cavalcante Arruda de Morais

Introdução e definições
Ninguém vive em estado de plena saúde. E a vida, o viver, é enfermidade. É um
estado de contínuo envelhecimento que levará, cedo ou tarde, ao desfecho final: o
óbito. Enfermo, do latim infirmus, significa “não firme”, uma constante na vida do
homem. Saúde é, segundo Jorge Orgaz, que foi Reitor da Universidade de Córdoba,
na Argentina, entre os anos de 1958 e 1964, um estado de perfeita harmonia, que
simplesmente não se realiza1. Estimou-se que, no ano de 2002, houve 57 milhões de
mortes em todo o mundo. E destas, 33 milhões ocorrem como consequência de uma
doença crônico-degenerativa. Teriam, portanto, indicação de receber algum grau
de cuidado paliativo2.
Cuidados paliativos são definidos, pela Organização Mundial da Saúde
(OMS), como uma abordagem que visa melhorar a qualidade de vida do paciente
e de suas famílias, enfrentando o problema secundário à doença que coloca em
risco a vida do indivíduo por meio da prevenção e alívio do sofrimento e da iden-
tificação precoce e tratamento da dor e de outros sinais ou sintomas, de origem
física, psicossocial ou espiritual.
Os cuidados paliativos devem, idealmente:

103
Bioética e Humanização em Oncologia

• Proporcionar alívio da dor e de outros sintomas causadores de angústia;


• Considerar o óbito como um desfecho normal
e esperado do processo de doença;
• Não adiantar nem adiar o óbito;
• Integrar os aspectos psicológicos e espirituais a assistência ao paciente;
• Oferecer suporte para que os pacientes, na medida do possível,
vivam de maneira ativa até o momento da morte;
• Oferecer suporte para a família do paciente, para que possam lidar
com a doença do ente querido e, tal qual, com o luto após o óbito;
• Serem aplicáveis desde o início do tratamento da patologia, em
conjunto com outras terapias que se destinam a prolongar a vida
do enfermo (como cirurgia, quimioterapia ou radioterapia)3.
O foco, ensina Dra. Maria Goretti Sales Maciel, no livro “Cuidado Paliativo”, edi-
tado pelo Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo, em 2008, não deve
ser a doença, mas o doente, que é entendido como ser biográfico, ativo, com direito à
informação e com autonomia plena para decisões a respeito do seu tratamento4.
O termo “paliativo” tem origem do latim pallium, uma espécie de manto usado
para proteger os peregrinos das áridas condições climáticas, durante suas viagens
em direção aos santuários religiosos5. Os “hospices” medievais, por seu turno, abriga-
vam peregrinos e doentes ao longo do caminho que parte do nordeste da Espanha
em direção a Santiago de Compostela, na Galícia, percurso este conhecido como
Caminho de Santiago. Muitos peregrinos morriam nessas hospedarias, recebendo
cuidado leigo e caridoso4. Várias instituições de caridade surgiram na Europa na era
moderna. Ali, abrigavam-se pobres, órfãos e doentes. Essa prática se propagou pelo
continente com o apoio de organizações religiosas, católicas e protestantes, e, no
século XIX, passaram a ter características de hospitais. Em Dublin, na Irlanda, no
ano de 1879, as Irmãs de Caridade Irlandesas fundaram o “Our Lady’s Hospice of
Dying”. Alguns anos depois, em 1905, a Ordem da Irmã Mary Aikenheads fundou
o Saint Joseph’s Hospice, no Reino Unido.
Foi neste último nosocômio que se procedeu o primeiro estudo em larga escala
sobre cuidados paliativos. Foram seguidos 1.100 pacientes com neoplasia avançada,
entre 1958 e 1965. Com os dados coletados durante esse largo período, demons-
trou-se que há efetivo controle da dor quando os pacientes são submetidos a esque-

104
Capítulo 6 | Bioética e cuidados paliativos

mas de administração regular de drogas analgésicas, em comparação com aqueles


doentes que recebiam a medicação sob demanda. Mostrou-se, adicionalmente, que
o uso de opiáceos não levava à dependência nos pacientes estudados e que a oferta
regular desse medicamento não ocasionava problemas advindos do desenvolvimento
de tolerância medicamentosa6.
O termo “paliativo” foi difundido no meio médico pela enfermeira e assisten-
te social inglesa Cecile Saunders, no início da segunda metade do século XX, ao
descrever o que imaginava ser o tratamento ideal para doentes incuráveis. Para a
autora, o sofrimento vivenciado pelo doente terminal era composto por quatro ele-
mentos principais: dor física, dor psíquica, dor social e dor espiritual. O conjunto foi
denominado por ela “dor total”. Assim, os cuidadores deveriam levar em considera-
ção todas essas esferas ao visar aliviar o sofrimento do paciente portador de patolo-
gia incurável, para os quais o desfecho letal se aproximava, dada a impossibilidade
de qualquer tratamento curativo7. Em 1967, Saunders fundou o Saint Christopher
Hospice, em Londres, dando início ao que se convencionou chamar de “Movimento
Hospice Moderno”8.
Em 1982, o Comitê de Câncer da OMS criou um grupo de trabalho para definir
políticas para o alívio do sofrimento dos doentes terminais, objetivando fazer com
que cuidados fornecidos em Hospices fossem recomendados e difundidos no maior
número possível de países ao redor do mundo6.
No Brasil, observou-se o surgimento de vários serviços especializados somente
na virada do milênio, provavelmente estimulados pelo estudo conhecido como “Su-
pport Trial”, publicado no ano de 1995, no Jornal da Associação Médica Americana
(JAMA). Neste estudo, que visava melhorar o critério de decisões tomadas no final
de vida dos doentes, objetivando diminuir a ocorrência de penosos e dolorosos pro-
cessos de morte, verificou-se que havia uma comunicação frequentemente ineficien-
te entre doente e o médico responsável pelo seu tratamento. E que esse problema
não seria facilmente resolvido com intervenções pontuais. Além disso, ressaltava que
os custos envolvidos no tratamento, já naquela ocasião, de doentes no final de suas
vidas não eram desprezíveis e que, finalmente, metade dos pacientes, infelizmente,
vinha a falecer com queixas de dor moderada ou intensa, sem nenhuma prescrição
de analgesia. Maior comprometimento dos indivíduos e da sociedade como um todo
seria necessário para o alívio do sofrimento desses enfermos9.
O primeiro país a reconhecer a Medicina Paliativa como especialidade foi o
Reino Unido, que o fez em 198710. Seguiram-no Irlanda em 1995, Hong Kong em

105
Bioética e Humanização em Oncologia

1998, Polônia em 1999 e Nova Zelândia em 2001. Outros países o fizeram poste-
riormente11. No Brasil, a Medicina Paliativa é especialidade desde o ano de 2011,
assim como a Medicina do Sono, Medicina da Dor e Medicina Tropical12. A Asso-
ciação Brasileira de Cuidados Paliativos foi criada em 1997 e a Academia Nacional
de Cuidados Paliativos, em 2005. O primeiro livro sobre cuidados paliativos, escrito
por brasileiros, foi publicado em 200413.
O médico paliativista exerce, então, uma especialidade relativamente nova.
Busca os objetivos anteriormente descritos em um cenário de impressionante de-
senvolvimento tecnológico. Enfrenta, no exercício de sua especialidade, por isso,
muitos dilemas éticos. Vive em um contexto em que a morte é considerada grande
adversária dos profissionais de saúde. Precisa decidir em que situação não usar toda
a tecnologia que tem disponível14, quando, por outro lado, o uso é estimulado, pela
influência que tem na remuneração do profissional, e passa a ser uma importante
variável a ser considerada15. Mais do que a correta aplicação dos cuidados e da
técnica, que aprende e desenvolve no seu treinamento, o médico paliativista toma
decisões complexas no seu dia a dia, para as quais tão somente o completo domínio
da supramencionada técnica pode não ser suficiente. Este texto pretende discutir
alguns desses dilemas, trazendo para a vida prática alguns dos princípios descritos
no Capítulo 1 deste livro.

Sedação terminal e o princípio do duplo efeito


Um paciente com uma doença incurável, basicamente, passa por três fases durante
a evolução da sua enfermidade: diagnóstico e tratamento, fase de cuidados paliativos
e, por fim, evolução final da patologia. Em cada uma dessas fases, ações com obje-
tivos distintos, mas bem definidos, são necessárias. Com a progressão da doença, a
manutenção do conforto cresce em importância, escalando a escada das prioridades,
o que faz com que a sedação não intencional possa vir a se tornar aceitável16.
Sedação pode ser definida como o ato de “tornar calmo”, de aliviar a dor do
paciente, por meio da diminuição do seu nível de consciência17. Algumas vezes, pa-
cientes, no final de suas vidas, podem sofrer tão profundo desconforto de maneira
que os seus sintomas, não responsivos às medidas convencionais, somente possam
ser aliviados mediante sedação profunda, a qual pode, como consequência, induzir
a parada de suas funções vitais, embora esta não seja a intenção inicial da tera-
pêutica. Dados da OMS indicam que de 10% a 20% dos pacientes com neoplasia

106
Capítulo 6 | Bioética e cuidados paliativos

avançada, vivenciado os últimos dias de suas vidas, experimentam dor excruciante,


pouco ou insuficientemente responsiva à analgesia18. Essa prática, de diminuição
farmacológica do estado de vigília do paciente terminal, é conhecida como “sedação
paliativa”19,20.
A sedação, na iminência da morte, deve ser compreendida em toda a sua di-
versidade e complexidade. O óbito não é o objetivo principal dessa terapia. Mas,
devido ao estresse, ao desconforto e ao cansaço, causados por sintomas refratários,
pacientes e seus cuidadores podem aceitar o risco dessa estratégia, como último
recurso na busca de algum alívio. Médicos podem, por isso, experimentar algum
questionamento ético ao sopesar a beneficência e a não maleficência do seu ato.
Sintomas refratários são aqueles para os quais todos os tratamentos possíveis fa-
lharam, ou para os quais se estima que não existam métodos para paliação no
tempo e com uma relação de risco-benefício em que o paciente possa tolerar21.
Nenhum paciente deve, no entanto, morrer sem o adequado controle dos seus
sintomas. A falha na supressão destes é, pois, uma falha na correta utilização da
terapêutica disponível7. E uma vez que a concentração farmacológica, para deter-
minado efeito, pode variar, segundo características inatas do próprio paciente ou
da sua patologia, demandando, eventualmente, doses que desencadeiem alto grau
de efeitos adversos, se sobrepondo ao que, em condições diversas, seria considera-
do inaceitável, o risco de indução não intencional do óbito é real. Esse risco pode
ser o custo do alívio e deve ser levado em consideração na discussão e na adoção
da supramencionada terapêutica.
Sedação terminal não deve ser confundida com eutanásia, que ocorre quando a
intenção principal é a indução do óbito, a fim de evitar sofrimento para o paciente22.
A sedação paliativa difere na intenção, nas drogas utilizadas (sedativos em doses
necessárias para aliviar o sofrimento, e não fármacos ou doses em combinações
reconhecidamente letais, que visam a uma morte rápida) e no objetivo16. E é poten-
cialmente reversível7. A decisão pela implementação de sedação paliativa não está
sujeita aos rigores da eutanásia, quando aceita, ou a suas interdições, quando não
aceita, porque apoia-se no “princípio do duplo efeito”.
O princípio do duplo efeito é a regra ética que se refere à permissibilidade de
que ações sejam sucedidas por dois efeitos simultaneamente, sendo um deles bom e
o outro, mal. Esse princípio tem sua origem na súmula teológica de São Tomás de
Aquino: “nada impede um ato de ter dois efeitos, um que é intencional, enquanto
que o outro está para além da intenção, visto que é acidental”23. Por exemplo: um

107
Bioética e Humanização em Oncologia

indivíduo, defendendo-se de um agressor que coloca em risco a sua vida, agindo em


legítima defesa, acaba por matar o seu oponente. Não há a intenção de que ocorra
esse segundo desfecho. Mas, no calor da luta, não houve como evitá-lo. Assim, da
ação da legítima defesa, decorrem duas consequências: a preservação da própria
vida (boa) e a perda da vida do agressor (má, mas não intencionada). É importante
esclarecer que algum grau de proporcionalidade é absolutamente fundamental. Ao
agredido, não foi dada a opção de escapar com vida sem dar cabo à vida do agressor.
Caso contrário, matá-lo não estaria eticamente justificado.
No contexto dos cuidados paliativos, não há evidências de que a sedação induza
ou acelere a morte em pacientes em cuidados paliativos, ainda que essa conclusão se
baseie em estudos observacionais, não havendo registro de nenhum estudo rando-
mizado sobre o tema24. Mas trata-se da melhor evidência disponível, porque, dado o
alto grau de sofrimento dos pacientes, um estudo randomizado não estaria justifica-
do e dificilmente será executado, nessas circunstâncias25. Assim, em se aceitando que
a sedação terminal, quando adequadamente implementada, não acelera a morte do
paciente, esta estaria, então, justificada.

NUTRIÇÃO E HIDRATAÇÃO
A decisão de manutenção da nutrição e da hidratação, em paciente sob sedação
terminal, deve ser tomada em separado. Há quem defenda que devam ser continua-
das, uma vez que o paciente está impossibilitado para tanto, e a restrição, esta sim,
significaria uma antecipação do desfecho letal26.
Por outro lado, a continuação da nutrição e hidratação, durante a sedação ter-
minal, pode ser vista como desnecessária, uma vez que não contribui para o alívio de
nenhum dos sintomas, e o alívio dos sintomas é a prioridade nessa fase do cuidado.
Não haveria, tal qual, evidências claras de que a nutrição e a hidratação prolonga-
riam, de maneira significativa, a vida de pacientes cuja morte seja iminente.
Um fato importante a ser considerado é que pacientes, quando colocados em se-
dação paliativa, não infrequentemente já estão sem receber nutrição ou hidratação,
por razões outras, antes que a sedação se inicie. Porém, quando um paciente rece-
bendo nutrição ou hidratação recebe sedação terminal, continuar ou não o suporte
são opções válidas, a depender do objetivo da abordagem e do contexto cultural em
que o paciente está imerso. Essas são variáveis que devem ser levadas em conside-
ração, sempre com o objetivo final de alcançar o máximo conforto possível para o
indivíduo, nos últimos momentos de sua vida.

108
Capítulo 6 | Bioética e cuidados paliativos

Eutanásia e suicídio assistido

A palavra “eutanásia” é de origem grega e significa “boa morte”27. Foi empregada,


pela primeira vez no contexto médico, no século XVII pelo filósofo inglês Francis
Bacon, em referência a uma morte fácil, sem dor, durante a qual seria responsabi-
lidade do médico aliviar os sofrimentos do corpo28. Atualmente, é entendida como
uma prática que objetiva abreviar a vida, a fim de amenizar ou evitar o padecimento
do paciente29. Suicídio assistido é quando o ato de dar cabo da vida é facilitado por
outrem, mas quem causa a ocisão é a própria pessoa, que se mata com o auxílio indi-
reto de terceiros. Assim, se o médico fornece substância letal ao doente, que a ingere
ou a injeta no próprio corpo, morrendo em decorrência dessa prática, a conduta do
médico configura “suicídio assistido”30.
Um elemento importante na diferenciação desses em relação a outros atos pra-
ticados pelo médico paliativista, quando cuidando de pacientes vítimas de grande
sofrimento físico ou psicológico, como a sedação terminal, por exemplo, é a intenção
de indução da morte. O óbito, no caso da eutanásia ou do suicídio assistido, deve ser
intencional e a intenção do ato deve ser uma morte misericordiosa. Deve, portanto,
haver sofrimento importante vivenciado pelo paciente (ou, pelo menos, perspectiva
de sofrimento, como no caso de uma doença degenerativa progressiva). Do contrá-
rio, trata-se apenas de uma forma deliberada de suicídio ou assassinato31.
A eutanásia pode ser classificada como “ativa” ou “passiva”. É ativa quando
planejada entre o paciente (ou responsável legal, na impossibilidade de manifestação
do primeiro) e o profissional de saúde. O procedimento se dá por ação deliberada
do médico. Na eutanásia passiva, o óbito ocorre por omissão no ato de fornecimen-
to ou por interrupção do suporte vital32. É o ato de deixar morrer. E embora haja
uma diferença observada exatamente na passividade do segundo caso, é importante
ressaltar que, não obstante, segue tratando-se de uma subclasse de eutanásia. Uma
vez que o desfecho, secundário ao “não agir”, que é deliberado, é conhecido e obje-
tivado31. O agir e o “não agir”, nessa circunstância, são moralmente equivalentes33.
Mas esse não é o caso, por outro lado, em situações em que tratamos de óbitos por
omissão quando alguém, por exemplo, que seja nadador experiente, ao ver um indi-
víduo se afogando, decide não salvá-lo porque está atrasado para um compromisso
pessoal, quando um patrão decide não fornecer equipamentos de segurança para
seus empregados e um deles é vítima de um acidente fatal, ou quando, para nos
reaproximarmos da bioética clínica, um profissional de saúde não prescreve um

109
Bioética e Humanização em Oncologia

antibiótico para uma infecção tratável e o paciente, sem patologia que comprometa
sua qualidade de vida, vem, finalmente, a falecer por conta da referida infecção34.
Esses não são casos de “não ato” misericordioso. Ao contrário, trata-se de omissão
de socorro ou simples negligência, completamente diversos, do ponto de vista moral.
O código de ética médica vigente no Brasil veda, ao médico, abreviar a vida do
paciente, ainda que a pedido deste ou de seu representante legal. E acrescenta que35:

“Nos casos de doença incurável e terminal, deve o médico oferecer


todos os cuidados paliativos disponíveis sem empreender ações diag-
nósticas ou terapêuticas inúteis ou obstinadas, levando sempre em con-
sideração a vontade expressa do paciente ou, na sua impossibilidade, a
de seu representante legal”.

O Código Penal Brasileiro vigente não é explícito com relação à eutanásia. No


caso de um médico proceder o ato, pode ser condenado por crime de homicídio,
com pena de prisão de 12 a 30 anos. No caso do auxílio ao suicídio, mesmo que a
pedido, a pena de prisão varia de dois a seis anos de reclusão36.
Bioeticistas contrários à prática da eutanásia ou do suicídio assistido argumen-
tam que a autorização dessas práticas levaria, invariavelmente, ao que se conhece
por “ladeira escorregadia”, expandido o acesso a tais procedimentos e, consequen-
temente, à ocorrência de abusos, não evitáveis por restrições legais ou práticas ad-
ministrativas, o que acabaria por expor a camada mais vulnerável da população a
esse tipo de expediente. Eutanásia ou suicídio assistido seriam incompatíveis com o
dever primordial do médico, que é cuidar, mesmo quando a cura não é possível37.
Por outro lado, há quem argumente que a morte, em certas circunstâncias, pode
sim ser um alívio. O papel do médico, para essas pessoas (entre as quais se encontra
este autor), não seria somente preservar a vida a qualquer custo, mas também apli-
car sua expertise para aliviar o sofrimento dos seus pacientes, o que pode significar,
em circunstâncias especiais, prover suporte e conforto no momento da morte, mes-
mo que esta não seja iminente (como no exemplo de um paciente tetraplégico, por
exemplo)38. A morte deixa de ser ruim e passa a ser boa, e manter o paciente vivo
é que passa a ser ruim. Isso quando o enfermo, após avaliação cuidadosa, conclui
que a assistência à sua morte coincide com sua clara preferência e com seu melhor
interesse. Assim, é preciso constatar situações em que os sintomas (que podem não
ser exclusivamente físicos) não podem ser adequadamente controlados clinicamen-
te, lesando de maneira importante a dignidade e a qualidade de vida do indivíduo.

110
Capítulo 6 | Bioética e cuidados paliativos

O suicídio assistido é Legal em alguns países ao redor do globo e em alguns Esta-


dos nos Estados Unidos. E dados secundários a essas experiências mostram que
o contra-argumento da “ladeira escorregadia” não se verifica, desde que algumas
condições inexoráveis sejam observadas39. Em Oregon e no Estado de Washington,
por exemplo, a maioria dos pacientes que requisitam suicídio assistido são homens
brancos com nível elevado de educação, o que não configura uma população tipica-
mente vista como vulnerável40.

DUPLO-STANDARD, “DUPLO-STANDARD INVERTIDO”


E O INVERSO DA “LADEIRA ESCORREGADIA”
Convencionou-se chamar, em ética em pesquisa, de “duplo-standard” a permissibi-
lidade de entrega a um grupo de sujeitos de pesquisa um benefício que estes, final-
mente, não teriam, na ausência da investigação, justificando um desenho de estudo
que não seria aceito nos países ricos41,42. No final dos anos 1990, uma série de estu-
dos avaliando a eficácia da zidovudina (AZT) na prevenção da transmissão vertical
do vírus da imunodeficiência humana (HIV) abalou o mundo da Bioética. A polê-
mica centrava-se na utilização de estudo placebo-controlado quando já se conhecia
um tratamento efetivo, disponível no mundo desenvolvido. A justificativa para a
execução do referido estudo estava no custo do tratamento que havia se mostrado
efetivo em ensaio anterior, financiado pelo NIH (Instituto Nacional de Saúde ameri-
cano, em sua sigla em inglês) nos Estados Unidos e na França. Esse ensaio havia sido
interrompido precocemente devido à demonstração de uma impressionante redu-
ção na taxa da transmissão vertical do HIV com o uso do AZT, em comparação ao
placebo (23% vs. 8%)43. O alto custo do esquema utilizado impossibilitava, segundo
alguns, a aplicação em larga escala no mundo em desenvolvimento. Objetivava-se,
agora, o teste da eficácia de esquemas com menores doses de AZT. Mantinha-se, no
entanto, o grupo controle em tratamento com placebo, visando resultados mais rápi-
dos e menos custosos41,42, quando o mais adequado, sob o ponto de vista ético, seria
um estudo de não inferioridade, com o grupo controle recebendo a dose total da
medicação, tratamento que se tornou standard naquela ocasião. Um estudo com um
grupo recebendo placebo jamais seria aceito ou nem mesmo pleiteado em um país
desenvolvido, porque trata-se, conforme discutido no Capítulo 1, de exploração44.
Exploração da vulnerabilidade de um indivíduo que não tem acesso ao tratamento
que necessita. O grupo “placebo”, neste desenho de estudo, não auferiria nenhum
benefício por participar desse protocolo de pesquisa45.

111
Bioética e Humanização em Oncologia

O paciente com câncer é, claramente, um indivíduo que vivencia um aumento


significativo de sua vulnerabilidade, que pode ser agravada por sua condição social.
Observou-se, nos Estados Unidos, que pacientes do Medcare, programa norte-america-
no de seguro-saúde para pessoas com idade igual ou superior a 65 anos (inclui alguns
indivíduos mais jovens com deficiências ou renais crônicos)46 que não possuem seguro-
-saúde privado, têm menor chance de receber quimioterapia, mesmo após o ajuste de
variáveis como idade, raça, status marital, diagnóstico (tipo de câncer) e estadiamento,
e ainda quando bem indicada. Segundo esses autores, uma possível explicação viria do
fato de que menor remuneração resultaria em menor empenho, por parte dos médicos
assistentes, em tratar esses indivíduos47. A vulnerabilidade social contribuiria para dife-
renças no acesso ao tratamento do câncer mesmo em países com cobertura universal
de saúde, como, por exemplo, o Canadá48, a Itália49,50 ou o Brasil51-55.
Alguns outros estudos publicados na literatura, inversamente, associaram o fato
de o paciente dispor de algum seguro-saúde e isso aumentar a probabilidade de rece-
berem tratamentos mais onerosos, desnecessários ou fúteis. Para Emanuel & Fuchs, a
superutilização de recursos é estimulada, comumente, por um sistema que remunera
o médico pela quantidade de procedimentos efetuados, e não pelo resultado que é
alcançado15. Patton, seguindo na mesma linha, descreve que, no cenário norte-ameri-
cano, médicos eram vistos como seres oniscientes, cujos conselhos nunca eram ques-
tionados. Somente recentemente a autonomia do paciente tem sido mais valorizada,
o que o autor vê como positivo, principalmente quando os médicos são remunerados
pela quantidade de procedimentos que indicam e, por isso, tendem a indicá-los em
excesso56. Sohn et al., por sua vez, em estudo longitudinal efetuado na Coreia do Sul,
também observam uma relação direta entre a posse de seguro-saúde e recebimento
de quaisquer cuidados médicos, quando comparados aos cidadãos daquele país que
dependem, exclusivamente, do sistema de saúde público e universal57.
Inverte-se, assim, o argumento da “ladeira-escorregadia”, enquanto, na defini-
ção tradicional de “duplo-standard”, visa-se conferir a um grupo de pacientes um be-
nefício que estes, finalmente, não teriam, na ausência da investigação, prejudicando
um outro grupo de pacientes que são explorados, recebendo, por exemplo, place-
bo41,42. Faz-se uso, aqui, da capacidade que o paciente tem de pagar para submetê-lo
a um tratamento mais obstinado, mais lucrativo para o prescritor, mas sem nenhum
benefício adicional para quem o recebe. É o outro lado da moeda: ao passo que, no
primeiro caso, aproveita-se da vulnerabilidade de um grupo para alcançar-se um
conhecimento científico que pouco será aproveitado pelo participante da pesquisa,

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Capítulo 6 | Bioética e cuidados paliativos

negando-se ao braço controle o benefício do tratamento; neste caso, utiliza-se da


mesma vulnerabilidade, agora advinda do diagnóstico de doença grave, associada
à maior disponibilidade de recursos, para aferir-se um maior lucro. Cria-se, assim,
uma espécie de “duplo-standard invertido”, uma vez que os pacientes com menos re-
cursos econômicos acabam estando menos sujeitos à obstinação terapêutica, muitas
vezes lucrativa, enquanto os pacientes privilegiados, portadores de seguros-saúde,
podem, por conta de sua distinção, sendo vítimas de um tratamento fútil, com maior
sofrimento no final de suas vidas.
A resistência à prática dos procedimentos aqui discutidos, como cuidados palia-
tivos efetivos, sedação terminal, ou mesmo suicídio assistido ou eutanásia, pode levar
o profissional de saúde a incorrer em distanásia, quando, conforme talentosamente
discutido no Capítulo V pelo Advogado Bruno Wurmbauer Junior, há uso de meios
tecnológicos extraordinários e desproporcionais, ainda que não se tenha em vista
chance razoável de melhora no estado de saúde do paciente. À distanásia, estão
mais expostos aqueles que compõem a população socialmente menos vulnerável. O
que é, correntemente, entendido como proteção efetiva para o sofrimento, no final
da vida, pode, infelizmente, acabar aumentando significativamente o risco de esse
padecimento acontecer. Paradoxalmente.

Considerações finais
Parafraseando Dr. Henrique Gonçalves, então presidente do Cremesp por ocasião
da publicação do supracitado livro: “Cuidado Paliativo”, “a guerra contra a dor e a morte
jamais pode ser considerada como perdida: em todos os estágios da vida humana há, sim, o que ser
feito, para garantir que a trajetória dos nossos acompanhados mantenha-se digna e amparada”58.
Cuidados paliativos são vistos, felizmente, com crescente importância na prática
médica atual. E cada um dos procedimentos aqui discutidos firma-se, cada vez mais, no
armamentário à disposição do profissional de saúde. A interdição de cada um destes,
assim como as objeções de natureza moral, vem sendo vencida, progressivamente, em
nome da preservação da dignidade do doente, o que seria impensável até há bem pouco
tempo. E o argumento em contrário, que se baseia no risco da hiperutilização, paterna-
lista e superprotetor, perde força e sustentabilidade, haja vista a necessidade de respeito
a autonomia, individualidade, direito de escolha e vontade do paciente, quando é cla-
ramente expressa por ele ou por seu representante legal, e quando os cuidados necessá-
rios, que visam evitar abusos ou arrependimento, são rigorosamente observados.

113
Bioética e Humanização em Oncologia

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Capítulo 6 | Bioética e cuidados paliativos

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116
Capítulo 7 | Custos no último ano de vida do paciente

7
Custos no último ano
de vida do paciente
João Paulo dos Reis Neto

Introdução
A escalada dos custos da assistência à saúde tem sido tema constante em todas as
discussões de especialistas em sistemas públicos e privados. Dentre os fatores con-
siderados como responsáveis, alguns preponderam sobre os demais e parecem ser
consenso: tecnologias em saúde (incorporação acrítica e/ou má utilização), gastos
administrativos crescentes (controles, sistemas, impostos, dentre outros) e a transição
demográfica e epidemiológica.
O peso que cada um desses fatores exerce sobre o custo final da saúde depende
de características muito específicas. No Brasil, a redução da mortalidade geral e da
mortalidade infantil e o aumento da expectativa de vida observado nos últimos anos
têm como consequência natural o envelhecimento populacional e o aumento do
número de portadores das doenças crônicas, sendo esse um dos principais desafios
para alocação adequada dos recursos de modo a manter viável o sistema.
A rapidez com que esses fenômenos demográficos e epidemiológicos estão ocor-
rendo constitui uma preocupação adicional, e a busca de alternativas, uma neces-
sidade premente. Estima-se, em 2050, uma população no Brasil de 64 milhões de
indivíduos com 60 anos de idade ou mais1. Países em que essas mudanças ocorreram
de forma mais gradual observaram menores impactos sobre os custos.

117
Bioética e Humanização em Oncologia

A elevação dos gastos com saúde parece estar diretamente associada ao efeito da
idade e a outro fator considerado importante, a proximidade da morte2. Em função
do aumento da idade e da maior concentração de pessoas morrendo em idades mais
avançadas, a proximidade da morte seria, nesses casos, o fator que explicaria grande
parte do aumento nos gastos3.
No Brasil, são poucos os estudos relativos a despesas assistenciais no período que
antecede à morte, mas em outros países observamos algumas publicações consisten-
tes e que, de modo geral, apresentam as seguintes conclusões:
a) Os custos são mais elevados no final da vida por conta principalmente
da deterioração do estado de saúde nesse período.
b) Apesar dos diferentes percentuais encontrados, os gastos
relacionados ao evento morte são um componente
importante das despesas globais com saúde.
c) A maior parte dos gastos relacionados à patologia que
leva à morte ocorre no último ano de vida.
d) Diferentes estudos demonstram que o montante gasto no último
ano de vida decai gradativamente com o aumento da idade.
Haja vista a importância do tema e a pouca literatura sobre o assunto no Brasil,
tivemos oportunidade de realizar um estudo cujo objetivo principal foi de avaliar,
num cenário do mundo real de um plano de saúde brasileiro, o efeito da proximida-
de da morte de beneficiários sobre os gastos com saúde nos cinco anos que antece-
deram o evento fatal, em especial o último ano de vida.

Material e métodos
O estudo consistiu na análise retrospectiva de 1.897 beneficiários com cobertura
integral de um plano de saúde privado, os quais morreram entre janeiro de 2007
e junho de 2009. As informações foram obtidas a partir de dados armazenados no
sistema informatizado do plano de saúde. Os serviços de saúde ambulatoriais e hos-
pitalares utilizados pelos beneficiários e reembolsados pelo plano de saúde no ano
da morte e nos quatro anos que a antecederam foram avaliados, compreendendo,
portanto, o período de 2003 a 2009.
Os valores reembolsados consideraram o preço praticado na data de realização,
em Real Brasileiro (R$). A análise limitou-se aos totais de custos diretos com a assis-

118
Capítulo 7 | Custos no último ano de vida do paciente

tência médico-hospitalar no ano da morte e em cada período de 12 meses anteriores


a esta, sempre na perspectiva da operadora de plano de saúde.
As causas de mortes foram agrupadas de acordo com a lista consolidada de
mortalidade da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Re-
lacionados à Saúde – Décima Revisão (CID-10).
Os dados foram acessados e analisados de modo confidencial e as variáveis (de-
mográficas, clínicas e de custos), tratadas estatisticamente considerando o intervalo
de confiança de 95%.

Resultados
Do total de 1.897 mortes analisadas, 745 (39,3%) ocorreram em 2007, 773 (40,7%)
em 2008 e 379 (20,0%) até junho de 2009. A maior parte dos óbitos ocorreu em ho-
mens (60,4%) e entre indivíduos com 60 anos de idade ou mais (77,0%), conforme
demonstrado na Tabela 1. A média de idade do óbito geral foi de 70,6 anos (IC 95%
69,9-71,4), sendo de 69,2 anos (IC 95% 68,2-70,2) para homens e 72,8 anos (IC
95% 71,6-74,1) para mulheres.
Os beneficiários que morreram (1.897) representam 0,5% do total de vidas co-
bertas pelo plano de saúde (média no período de 161.238 indivíduos), porém seu

Tabela 1. Distribuição dos óbitos ocorridos por gênero e faixas de


idade em 1.897 beneficiários do plano de saúde – 2007-2009
Sexo/Faixa etária Masculino Feminino Total
(anos) n % n % n %
0a9 4 0,3 7 0,9 11 0,6
10 a 19 7 0,6 6 0,8 13 0,7
20 a 29 39 3,4 7 0,9 46 2,4
30 a 39 6 0,5 12 1,6 18 0,9
40 a 49 63 5,5 40 5,3 103 5,4
50 a 59 172 15 72 9,6 244 12,9
60 a 69 212 18,5 119 15,9 331 17,4
70 a 79 307 26,8 180 24 487 25,7
80 e mais 337 29,4 307 40,9 644 33,9
Total 1.147 100 750 100 1.897 100

119
Bioética e Humanização em Oncologia

custo nos 60 meses de estudo foi de R$ 115.970.135,85, o que representa 22,4% do


total gasto pela operadora. Quando considerado apenas o último ano de vida, esse
percentual foi de 14,9%.
Na Tabela 2 está demonstrado o custo total e percentual acumulado no ano da
morte (66,8%) e nos quatro anos anteriores a ela, de acordo com o tipo de gasto,
ambulatorial e com internações. Dentre os gastos com internações nos 12 meses
que antecederam à morte, as internações clínicas corresponderam a 89,2% do total
reembolsado.

Tabela 2. Custo total e percentual acumulado nos meses que antecederam à


morte de beneficiários do plano de saúde, por tipo de despesa – 2007-2009
Meses antes Custo ambulatorial Custo com internações Custo total
da morte R$ % R$ % R$ %
49 - 60 2.330.855,61 9,2 3.142.257,46 3,5 5.473.113,07 4,7
37 - 48 2.743.808,20 10,9 4.682.259,01 5,2 7.426.067,21 6,4
25 - 36 3.526.445,10 14 4.792.565,66 5,3 8.319.010,76 7,2
13 - 24 6.119.043,86 24,2 11.136.667,97 12,3 17.255.711,83 14,9
1 - 12 10.529.574,50 41,7 66.966.658,48 73,8 77.496.232,98 66,8
Total 25.249.727,27 100 90.720.408,58 100 115.970.135,85 100

A distribuição do custo total e relativo por faixa etária, no mesmo período, é


apresentada na Figura 1. Nos últimos 12 meses de vida, beneficiários com 60 anos
de idade ou mais concentraram 83,4% dos gastos.
A Figura 2 demonstra, de acordo com a CID-10, os vinte maiores custos médios
por internação, de alta hospitalar, de eventos ocorridos nos últimos 12 meses de vida
dos beneficiários do plano de saúde, bem como a frequência em que ocorreram.
A Tabela 3 contém o custo médio per capita total do plano de saúde e o custo após
o desconto das despesas dos beneficiários que morreram em cada ano, por faixa etá-
ria. As maiores diferenças são observadas nas últimas décadas de vida.

Discussão
O custo com os cuidados com a saúde no período em que antecede à morte costuma
ser mais elevado que os custos daqueles que permanecem vivos4. Isso porque as pes-
soas, de modo geral, pioram seu estado de saúde gradativamente antes de morrer.

120
Capítulo 7 | Custos no último ano de vida do paciente

35.000.000 - 1 a 12 meses
13 a 24 meses
25 a 36 meses
30.000.000 - 37 a 48 meses
49 a 60 meses
25.000.000 -
Custo total

20.000.000 -

15.000.000 -

10.000.000 -

5.000.000 -

0-
0a9 10 a 19 20 a 29 30 a 39 40 a 49 50 a 59 60 a 69 70 a 79 80 e mais
Faixa etária (anos)

Figura 1. Custo total e relativo nos meses que antecederam à morte


de beneficiários do plano de saúde, por faixa etária – 2007-2009.

120.000 - Causas de internação - 300

Frequência observada de internações


Despesas por internação
100.000 - - 250
Custo médio da internação

80.000 - - 200

60.000 - - 150

40.000 - - 100

20.000 - - 50

0- -0
a
cé f o s e
Do , cav ebrov / SNC

s
ge
S ep ção

s v neum ia
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D o igna ação

Al z m a
D e imer
i a e N e o L i n b e te r i ç ã o
oen sia m a não llitus
i n f a d o g ki n
a p creas

l
íve
isq ora lare

tica sm Acid lose ment


Ate cemi

l a s át i c a a n t e
em

a e o s e x e s d e r at ó r
cas rin

red spo
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um
d
co r

co r

he
ç as idade asc u

p l a fo m s m e
ut
c

n
mi l e fa

Ho
b i o ce r a l o
Leu


a
t

res
n
o

d
o

ia m do

s
r

de
u

ios
n
l

D ia
al
o

te r a l i g
e cc
en
(
u
es

do ual
da
o lá ç as
ing

ub
oc a
en

ça

i te
T

op
en
rov
ia m

en

to p
las

au

str
op

m á t ra n
ud
ões

ga
Ne

las

reu com
op

Les
Ne

rre
Feb cções

D ia
e
Inf
re

Figura 2. Custo médio e frequência observada de internações ocorridas no último ano


de vida de beneficiários do plano de saúde, por tipo de patologia (CID-10) – 2007-2009.

121
Bioética e Humanização em Oncologia

Tabela 3. Custo médio per capita total do plano de saúde e custo após desconto das
despesas dos beneficiários que morreram em cada ano, por faixa etária – 2007-2009
Faixa Mortos em 2007 Mortos em 2008 Mortos até junho
etária (n=745) (n=773) de 2009
(anos) (n=379)
(a) (b) (c) (a) (b) (c) (a) (b) (c)
0a9 304,21 302,87 1 375,87 373,25 1,01 186,53 186,69 1
10 a 19 284,75 283,52 1 350,55 338,04 1,04 155,13 139,81 1,11
20 a 29 624,14 613,53 1,02 661,06 642,93 1,03 371,84 372,67 1
30 a 39 787,14 777,78 1,01 965,40 952,83 1,01 496,20 497,04 1
40 a 49 916,55 863,07 1,06 1.019,29 1.002,20 1,02 525,91 513,68 1,02
50 a 59 1.314,10 1.237,20 1,06 1.632,97 1.497,50 1,09 840,12 783,02 1,07
60 a 69 2.531,88 2.246,04 1,13 2.567,82 2.204,42 1,16 1.367,30 1.176,14 1,16
70 a 79 4.305,93 3.563,87 1,21 4.355,12 3.496,25 1,25 2.552,02 2.147,78 1,19
80 e mais 7.223,04 4.067,11 1,78 7.006,62 4.639,30 1,51 3.803,43 2.790,18 1,36
(a) Custo total (vivos e mortos); (b) Custo descontando valores dos mortos; (c) Relação entre (a) e (b).

Um estudo brasileiro5 analisando o período de quatro anos de despesas de 274 be-


neficiários de plano de saúde demonstrou que 70% dos gastos ocorreram no último
ano de vida, número esse próximo ao que identificamos (67%).
Apesar de o número de pessoas que morrem ser relativamente pequeno, a pro-
porção das despesas com saúde que elas demandam representa uma parcela consi-
derável do total gasto com assistência à saúde. O percentual de gastos relacionados
ao final da vida é variável, com relatos encontrados de 10% a 33%, conforme o
estudo publicado6-8. Em nosso estudo verificamos que 0,5% dos beneficiários do pla-
no de saúde consumiram, em seu último ano de vida, cerca de 15% do total gasto.
Alguns estudos apontam para o fato de que, a partir de certa idade, as despesas
do final da vida tendem a decrescer, em função da tendência na prática médica de
investir menos recursos nas pessoas de idade mais elevada4. Quando considerados,
em nosso estudo, indivíduos com 80 ou mais anos como última faixa etária, não foi
observada redução. Porém, ao desmembrarmos essa faixa em anos individuais, ob-
servamos redução progressiva a partir de 91 anos.
Alguns autores questionam a culpa isolada do envelhecimento sobre os custos da
saúde, argumentando ser injusta a acusação de “grandes gastadores”, normalmente
feita aos idosos, se descontado o último ano de vida do indivíduo9. Em nosso estudo,

122
Capítulo 7 | Custos no último ano de vida do paciente

as maiores diferenças encontradas entre o custo total por beneficiário do plano de


saúde e o custo descontando as despesas dos que morreram, ou seja, somente vivos,
foram observadas nas últimas faixas etárias, em especial dos indivíduos com 60 anos
ou mais de idade (Tabela 3).
Embora exista uma associação entre idade e gastos em saúde, estes últimos po-
dem vir a crescer nos próximos anos em ritmo semelhante ao considerado usual do
plano de saúde. Essa expectativa fundamenta-se pelas observações de que novas
gerações de idosos tendem, nas próximas décadas, a ter mais saúde, uma vez que são
investidos cada vez mais recursos na promoção da saúde e na prevenção do risco de
complicações das doenças.
Dessa forma, resultados de estudos sugerem que os custos no último ano de vida
devem ser considerados nas projeções futuras de custos dos cuidados de saúde, da
mesma forma que o fator envelhecimento4.
Dentre as principais causas de morte, as neoplasias representaram maior peso
nas despesas no último ano de vida (15%), semelhante ao verificado num estudo
holandês10.
Outra observação dos estudos que avaliam o custo do final da vida é de que as
despesas hospitalares representam a maior parcela do custo, em torno de 70%11.
Conforme demonstrado na Tabela 2, os custos das internações em nosso estudo
foram de 73,6%.
Uma das alternativas que parecem importantes no fim da vida são os cuidados
paliativos. Uma revisão sistemática indicou forte a moderada evidência de que esses
procedimentos melhoram aspectos importantes dessa fase que antecede à morte12,13.
Outra possibilidade é de que a introdução desse conceito possa atenuar os custos
no final da vida14,15. Um estudo de revisão sistemática demonstrou a efetividade de
equipes multidisciplinares de cuidados paliativos em diferentes contextos, tanto em
ambientes hospitalares quanto em casa16.
Mesmo com estudos favoráveis e indicações clássicas, a maioria das instituições
resiste em transferir seus pacientes para cuidados paliativos. Um artigo de capa para
a revista Time descreve a experiência do autor, Joe Klein, sobre a fase final de vida
dos seus pais. Ele relata momentos verdadeiramente terríveis e questiona por que
continuamos a recompensar um sistema de saúde que incentiva procedimentos dis-
pendiosos de alto custo em detrimento da qualidade de vida.
Um outro artigo publicado em março de 2015 pela Associação Americana de
Hospitais em seu periódico Hospitals & Health Networks traz uma interessante aborda-

123
Bioética e Humanização em Oncologia

gem quanto a diferentes perspectivas sobre a assistência à saúde, a morte e o mor-


rer. O autor, Ian Morrison, diz que, apesar de ter escrito uma piada há mais de 20
anos, na qual descreve que o escocês vê a morte como iminente, o canadense como
inevitável e o californiano como opcional, até hoje os americanos não se sentem
confortáveis com a inevitabilidade da morte. Afirma que, embora muitos pacientes
e familiares se manifestem a favor de morrer em casa, terminam morrendo nos hos-
pitais altamente medicados e de forma desconfortável.

Considerações finais
Certamente a oferta de serviços de assistência especializada e cuidados paliativos,
em especial quando da proximidade da morte, é fundamental como alternativa para
viabilizar essa trajetória e mantê-la no futuro. Abordagens que possam contribuir
para melhoria da qualidade de vida dos doentes e seus familiares, prevenindo e ali-
viando o sofrimento, nos parece fundamental sob a ótica social e importante para a
questão econômica relativa aos últimos anos de vida.
Este trabalho apresenta algumas limitações inerentes desse tipo de análise. Tra-
ta-se de um estudo retrospectivo, com informações obtidas a partir do sistema infor-
matizado do plano de saúde, realizado sob a perspectiva do pagador e que conside-
rou somente os custos diretos.
A partir deste estudo dos custos nos últimos anos de vida, mesmo quando se
levam em conta algumas limitações, ficou demonstrada a importância de considerar
esse fator na projeção do custo atuarial do plano de saúde, bem como a necessidade
de rever a estratégia de cobertura de benefícios, como, por exemplo, adoção de cui-
dados paliativos na abordagem de algumas patologias, dentre as quais o tratamento
do câncer. Este estudo apresenta subsídio para um debate muito amplo, que envolve
questões técnicas, sociais, culturais e éticas, que a sociedade não poderá se furtar de
realizar, sob pena de buscarmos soluções somente após o colapso do modelo vigente.

Referências bibliográficas
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124
Capítulo 7 | Custos no último ano de vida do paciente

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125
Capítulo 8 | Justiça e alocação de recursos escassos em oncologia

8
Justiça e alocação de recursos
escassos em oncologia
Marcos Santos

Introdução
Diz o artigo 14 da Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos da
­UNESCO1: a promoção da saúde e do desenvolvimento social para sua população
é objetivo central dos governos, partilhado por todos os setores da sociedade. Consi-
derando que usufruir do mais alto padrão de saúde atingível é um dos direitos fun-
damentais de todo ser humano, sem distinção de raça, religião, convicção política,
condição econômica ou social, o progresso da ciência e tecnologia deve ampliar:
• O acesso a cuidados de saúde de qualidade e a medicamentos
essenciais, incluindo especialmente aqueles para a saúde de
mulheres e crianças, uma vez que a saúde é essencial à vida em
si e deve ser considerada como um bem social e humano;
• O acesso à nutrição adequada e água de boa qualidade;
• A melhoria de condições de vida e do meio ambiente;
• A eliminação da marginalização e da exclusão de
indivíduos por qualquer que seja o motivo;
• A redução da pobreza e do analfabetismo.

127
Bioética e Humanização em Oncologia

De origem sânscrita, a palavra saúde é originária de “sarva”, “sarvatâti”, que


significa integridade, conjunto perfeito. Segundo a Organização Mundial da Saúde
(OMS), é um estado de completo bem-estar físico, mental, social (e espiritual). E não
apenas a ausência de doença2. Em 1978, reunidos na cidade Cazaquistão de Alma-
-Ata, conferencistas dessa Organização referendaram a definição que vai acima um
direito fundamental do ser humano, propondo ainda, como objetivo a ser persegui-
do por todos os governos do mundo, até o ano 2000: proporcionar acesso à saúde
a todos os seres humanos, de todos os povos do planeta, de maneira a garantir-lhes
uma vida social e economicamente produtiva3.
A constatação, pela própria OMS, em seu “Relato da Saúde no Mundo em
2006”, de que a esperança de vida nos países mais pobres do globo era, naquele ano,
aproximadamente a metade daquela dos países mais ricos, evidencia que o objetivo
não fora atingido4. As razões são inúmeras. Os custos da saúde apresentaram, nos úl-
timos anos, um crescimento bastante acentuado. E existem sólidos motivos para que
se acredite que esse aumento tende a acelerar-se, representando, progressivamente,
uma fatia cada vez maior do produto interno bruto da maioria (se não da totalida-
de) dos países do mundo. Diversas razões, por sua vez, são citadas como possíveis
causas para esse encarecimento dos custos: as transformações demográficas, com
envelhecimento progressivo da população, o aumento da prevalência de doenças
crônico-degenerativas, a explosão demográfica nos países menos industrializados,
as inovações farmacêuticas e, finalmente, as inovações tecnológicas5,6. Há um con-
senso de que, mantido esse ritmo, os gastos tendem à inviabilidade, o que justifica a
perene reavaliação e discussão da metodologia – e da ética, envolvidas na alocação
de recursos em saúde6.

JUSTIÇA
Todo ser humano é igual, no que concerne à sua dignidade. E, segundo a Declara-
ção Universal sobre Bioética e Direitos Humanos1, em seu artigo 10, essa igualdade
deve ser respeitada, de maneira que todos sejam tratados de forma justa e equita-
tiva1. Este artigo veio ratificar o que já vinha citado na Declaração Universal dos
Direitos Humanos, em seu artigo n° 25, parágrafo um: “todo ser humano tem direi-
to a um padrão de vida capaz de assegurar-lhe, e a sua família, saúde e bem-estar,
inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais
indispensáveis, e direito à segurança em caso de desemprego, doença, invalidez,

128
Capítulo 8 | Justiça e alocação de recursos escassos em oncologia

viuvez, velhice ou outros casos de perda de meios de subsistência em circunstâncias


fora do seu controle”7.
Igualdade, do latim “aequalitate”, é a qualidade daquilo que é igual, uniforme.
No contexto social, é a “igualdade de condições entre os membros de uma mesma
sociedade”. Justiça, do latim “justitia”, é “a virtude que consiste em dar ou deixar de
dar a cada um o que, por direito, lhe pertence”. E equidade, do latim “aequitate”, é a
“disposição para reconhecer, imparcialmente, o direito de cada um”8. A igualdade,
então, é a consequência desejada da equidade, sendo esta o ponto de partida para
aquela. A igualdade não é um ponto de partida ideológico, que tende a anular as
diferenças, mas sim o ponto de chegada da justiça social. A equidade é, por isso, a
base ética que deve guiar o processo decisório da alocação de recursos escassos9.

O que é justo? Quatro teorias tradicionais e


duas teorias modernas sobre a justiça
Ideais de justiça buscam, em geral, aumentar o bem-estar das pessoas e/ou da socie-
dade, respeitar a liberdade dos cidadãos e promover a virtude10. Quatro são as teo-
rias consideradas mais relevantes, chamadas “tradicionais”, que buscam esclarecer
o conceito do que é justo. Vamos a elas:

Utilitarismo
A abordagem utilitarista, surgida no século XIX, a partir das ideias de Jeremy Ben-
tham e, posteriormente, Stuart Mill, entende que justas são as ações que aumentam,
de maneira mais significativa, o bem-estar do maior número de pessoas, pelo maior
período de tempo. Esse bem-estar pode ser medido na forma de “utilidades” que,
segundo Bentham, é tudo aquilo que pode trazer prazer e felicidade, ou evitar dor
e sofrimento. A graduação das ações na forma de utilidades permite eventuais com-
parações e priorizações11. Um exemplo interessante foi um famoso caso citado, entre
outros, por Boyer, em seu artigo publicado em 1986, e que ficou conhecido como
o caso da Mignonette. Quatro náufragos estavam há 19 dias à deriva, sem reserva
de água ou alimentos. Diante da morte iminente de todos os tripulantes, um deles
propôs o seguinte: seria feito um sorteio para que fosse decidido quem seria assassi-
nado pelos demais colegas, para ter seu sangue e carne consumidos, possibilitando,
assim, a sobrevivência dos três tripulantes restantes por mais alguns dias, à espera de
um possível resgate. Um dos náufragos, o taifeiro, justamente aquele que não tinha
dependentes (e, ironicamente, aquele que cuidava da alimentação dos tripulantes

129
Bioética e Humanização em Oncologia

do navio, antes do naufrágio), era justamente o mais frágil, e o que, provavelmente,


morreria primeiro. Progressivamente, formou-se um consenso de que o sorteio não
seria necessário, dada a fragilidade desse referido tripulante. Proporcionar-se-ia al-
gum sofrimento àquela pessoa, é certo. Porém, no cômputo final, a utilidade seria
positiva, porque três pessoas sobreviveriam (em vez de nenhuma). E o taifeiro foi
o escolhido. Dessa forma, e dados sua baixa probabilidade de sobrevivência e seu
estado de saúde debilitado, um menor número de pessoas choraria aquela morte,
proporcionando uma menor quantidade de sofrimento total. Com a discordância de
um dos navegantes, os outros dois assassinaram o referido colega de embarcação e,
apesar das resistências iniciais do primeiro, todos consumiram a carne e o sangue do
morto por mais quatro dias, possibilitando que fossem, finalmente, salvos por uma
fragata alemã. Os dois marinheiros que concordaram (e praticaram) o assassinato fo-
ram, inicialmente, condenados à morte (o terceiro fez parte da equipe de acusação).
Mas, posteriormente, tiveram suas penas aliviadas e transformadas em seis meses de
encarceramento, com o aval da opinião pública local, que acompanhou ativamente
o resolver da situação12.

Liberalismo
Liberais, por sua vez, priorizam a liberdade individual em detrimento do ganho
social e confiam no livre mercado distributivo dos bens disponíveis na Sociedade.
John Locke, filósofo britânico que viveu no século XVII, foi quem concebeu a
ideia de direito natural à liberdade13. Posteriormente, Robert Nozick aprofundou
as ideias de Locke e defendeu, em seu livro “Anarquia, Estado e Utopia”, que toda
ação do Estado estaria justificada se (e somente se) o objetivo fora a proteção da
propriedade dos cidadãos, assim como de seus direitos legais. Um exemplo bas-
tante representativo de suas ideias é a menção de que governos agem de maneira
coercitiva e injusta ao taxar progressivamente, e não de maneira igualitária, as
pessoas, a depender de seus níveis de renda, desde que, ressalta, a riqueza tenha
sido obtida de maneira legítima e por meio de negociações legais, contratualiza-
das. Podemos ir ainda um pouco mais longe: segundo Nozick, a Sociedade não
está moralmente obrigada a garantir o acesso universal dos seus cidadãos à saúde,
que é, segundo esse mesmo autor, uma mercadoria, que deve ser paga pelo indiví-
duo que visa consumi-la, se assim determinar a sua vontade14. Qualquer um que
acredite que a desigualdade econômica seja injusta terá que intervir repetida e
continuamente no mercado, para eliminar o efeito de escolhas feitas pelos próprios

130
Capítulo 8 | Justiça e alocação de recursos escassos em oncologia

indivíduos. Um libertário típico rejeita três tipos de diretrizes e leis que o Estado
moderno normalmente promulga10:
• Nenhum paternalismo: os liberais são contrários às leis que protegem as
pessoas de si mesmas, como, por exemplo, a lei que obriga as pessoas a
usarem cinto de segurança em automóveis, ou capacetes em motocicletas.
• Nenhuma legislação sobre a moral: os liberais são contra
a proibição, por exemplo, da prostituição.
• Nenhuma redistribuição de renda ou de riquezas:
a caridade deve ser facultativa.
Segundo um liberal, o ser humano é dono de si mesmo e poderia, inclusive, ven-
der partes do seu corpo, independentemente da utilização que fosse feita do referido
órgão (vender para um excêntrico colecionador, por exemplo). Poderia, também,
doar o segundo rim, ainda que isso implicasse sua morte por insuficiência renal
(ideia difundida antes do aparecimento das máquinas de hemodiálise). E poderia,
também, sem nenhuma interferência do Estado, solicitar um suicídio assistido, desde
que alguém se dispusesse, livre e autonomamente, a ajudá-lo, ainda que não fosse
um doente terminal ou que não estivesse vivendo um sofrimento que comprometes-
se a sua dignidade10.

Igualitarismo
Por outro lado, a teoria igualitária, de aparecimento contemporâneo às mais antigas
tradições religiosas, e ancorada na ideia de que os seres humanos são iguais porque
feitos à imagem e semelhança de Deus, privilegia acesso também igualitário aos bem
sociais (e à saúde) e julga que toda pessoa tem direito sempre à mesma porção de
liberdade e de bens materiais, resultado de uma divisão justa (e neutra – ou equi-
tativa) dos bens disponíveis naquela Sociedade. E entende, conforme Kant, que o
utilitarismo puro é injusto, porque é errado tratar qualquer ser humano como mero
instrumento da felicidade coletiva. O ser humano é um fim em si mesmo, grafou
o filósofo prussiano15. Alguma diferença na porção de bens materiais que cabe a
cada indivíduo, no entanto, seria aceitável. Mas, para tanto, duas condições devem
ser respeitadas: as diferenças devem beneficiar a todos; e as condições “de parti-
da”, ou seja, as oportunidades de acúmulo de bens, devem ser sempre similares16.
Um exemplo é que seria aceitável, por exemplo, para os igualitários, que médicos
tivessem remunerações superiores aos motoristas de ônibus, porque estes precisam

131
Bioética e Humanização em Oncologia

mais daqueles do que aqueles, destes. Tal diferença propiciaria, em tese, um melhor
atendimento médico aos próprios motoristas, e seria, finalmente, benéfico para a
sociedade em geral10. Não há menção, no entanto, à dimensão máxima que pode
atingir tal diferença, e nem se, em algum momento, esta tornar-se-ia excessiva e, por
isso, ilegítima (e injusta)17. Segundo Rawls, em resumo, princípios justos são aqueles
com os quais estaríamos de acordo, em uma situação inicial de desconhecimento de
nossa condição (raça, classe social, presença ou não de alguma deficiência etc.). Na
presença do conhecimento de particularidades, o desfecho será sempre prejudicial,
ainda que por contingências arbitrárias. O virtual desconhecimento garantiria, en-
tretanto, a equidade16.

Comunitarismo
A justiça comunitária, de inspiração Aristotélica, por fim, evoca princípios de “bem
desenvolvidos na comunidade moral”, e entende que este é seu objetivo fundamen-
tal, que deve ser buscado e recompensado. Segundo Aristóteles, “iguais devem ser
tratados de maneira igual, e desiguais devem ser tratados de maneira desigual”,
dando-se a cada pessoa o que ela merece. E, para determinar e quantificar o me-
recimento de cada um, devemos, em comum acordo, estabelecer quais virtudes são
dignas de honra e recompensa18. Versões mais modernas dessa abordagem serviram
de reação às teorias de Rawls e Nozick. Há um desprezo pela justiça contratual,
vista como pouco engajada no bem comum e, por isso, injusta. O social é sempre
priorizado. Um exemplo interessante dessa abordagem versa sobre a doação de ór-
gãos: segundo alguns comunitários modernos, uma vez constatada a morte cerebral,
o cadáver não pertence mais à família do indivíduo, e a doação de órgãos seria,
então, um procedimento automático, na ausência de objeções registradas, em vida,
pelo próprio paciente, uma vez que é obrigação do indivíduo doar para o benefício
da Sociedade. É a doação presumida, que foi objeto de lei vigente no Brasil entre
1997 e 2001 (Lei 9434, de 1997)19, posteriormente anulada (Lei 10211, de 2001)20,
dada a não ocorrência (esperada pelos formuladores da lei) de um aumento do nú-
mero de órgãos disponíveis para transplante. Muitas equipes médicas recusavam-se
a proceder a coleta dos órgãos sem a autorização expressa da família, exatamente
como ocorria antes da lei. Tal proposta voltou, atualmente, à discussão no Congres-
so Nacional, e está em análise (Projeto de Lei do Senado n° 405, de 2012, de autoria
do Senador Humberto Costa, do PT de Pernambuco)21, na Comissão de Direitos
Humanos e Legislação Participativa. Segundo os teóricos comunitários, nos quais se

132
Capítulo 8 | Justiça e alocação de recursos escassos em oncologia

inspiram os formuladores do referido projeto de lei, o cadáver não pertence à famí-


lia, mas sim à Sociedade, que pode, a depender dos recursos disponíveis, fazer me-
lhor uso dos órgãos que, de outra maneira, não beneficiariam, fisicamente, nenhum
dos sobreviventes daquela Sociedade, se destinados à putrefação22.

Teorias contemporâneas
Duas teorias historicamente mais recentes vêm complementar esses conceitos já bem
estabelecidos e são, fundamentalmente, complementares às anteriores. São elas: a
“teoria das capacidades”, segundo a qual talentos e capacidades são fundamentais
para o desenvolvimento da vida e da humanidade e, portanto, devem ser protegidos
e recompensados. A necessidade de cada indivíduo seria dependente das necessi-
dades para o desenvolvimento dessas capacidades, visando, finalmente, ao bem co-
mum. Um nível mínimo de justiça social requer, segundo essa abordagem teórica,
a disponibilização, para todos os cidadãos, de 10 “capacidades centrais”. São elas:
vida (direito de não morrer prematuramente), saúde física e mental, integridade do
corpo, imaginação e pensamento (liberdade de expressão), emoções (liberdade para
a construção de laços emocionais), razão, família, convivência com outras espécies,
capacidade de recreação e controle sobre o meio ambiente23.
Já a chamada “teoria do bem-estar” enfatiza a dimensão central do próprio
conceito holístico de “bem-estar”, como, por exemplo, a saúde física e mental de
cada indivíduo. Está umbilicalmente ligada com a política que melhora a alocação
de recursos (alocação ótima) e entende que justa é a ação que busca a efetivação
dessa condição. A justiça social deve ser, então, aquela que busca o conforto dos ci-
dadãos. Num nível que se julga suficiente24. Daí deriva a teoria do “Welfare State”,
ou “Estado do Bem-Estar Social”. O Welfare State significou, no mundo pós-guerra,
mais do que um simples incremento nas políticas sociais no mundo desenvolvido.
Na verdade, esse esforço pela construção do “estado de bem-estar” representou um
impulso na reconstrução econômica, moral e política de uma sociedade devastada
pela guerra. Economicamente, significou um abandono da ortodoxia da pura lógica
do mercado, em favor de uma maior atenção a, por exemplo, segurança do emprego
e direitos do cidadão. Moralmente, significou a defesa de ideias de justiça social,
solidariedade e universalismo. E, politicamente, significou a escolha de um caminho
estreito entre dois limites perigosos, representados, naquela ocasião, pelo fascismo e
pelo bolchevismo. O Welfare State visa, em resumo, à promoção de uma integração
social nacional25.

133
Bioética e Humanização em Oncologia

Oportunidades justas: equidade


Se os seres humanos são iguais no que concerne à sua dignidade, o fato é que, na
prática, nascem diferentes, tanto do ponto de vista socioeconômico quanto no to-
cante às características inatas, que “recebe” ao nascer de maneira aleatória. Apesar
de, em alguns casos, tais características serem geneticamente determinadas, o fato
de ser ele, o indivíduo, aquele que as aufere, é absolutamente acidental, sob a pers-
pectiva moral. Exemplos são o gênero (e a orientação sexual), a raça, a pátria natal,
o tom de voz, a beleza física, os gostos e preferências e, segundo alguns, até caracte-
rísticas comportamentais como inteligência, inteligência emocional, disposição para
enfrentar desafios, capacidade de esforçar-se diante de objetivos difíceis, capacidade
de aprendizado, capacidade de trabalhar por horas a fio, resiliência, entre outras.
Virtualmente, todas as habilidades (e deficiências) são resultado de uma loteria na-
tural amplificada por uma loteria social.
A sociedade justa é, então, segundo Rawls, aquela que busca igualar o ponto
de partida dos seus cidadãos. É justo, por exemplo, fornecer educação básica de
qualidade para todas as crianças de uma determinada comunidade, independente
de raça ou sexo. Não é justo, no entanto, não fornecer o suplemento que demanda-
ria um deficiente auditivo ou um deficiente visual, ou qualquer outra pessoa com
necessidades especiais. Segundo Rawls, cabe à Sociedade fornecer meios para que
essa diferença, natural, seja diminuída no limite do que for factível, para que esse
indivíduo tenha, virtualmente, as mesmas oportunidades de sucesso do que seus
semelhantes16. Permitir que todos participem da “corrida” é louvável, mas se os
“corredores” partem de pontos diferentes, alguns mais próximos da linha de chega-
da, esta corrida é, ainda assim, injusta. Uma das formas de remediar essa injustiça
é corrigir, de alguma maneira, as diferenças sociais e econômicas. São exemplos
programas educacionais e de treinamento profissional para pessoas de baixa renda,
para que possam competir, pelo acesso à Universidade, com indivíduos provenien-
tes de famílias mais abastadas; programas compensatórios de nutrição, programas
assistenciais, entre outros.
Mais ainda assim ganhariam os mais velozes. E, como ser mais veloz é resultado
também da distribuição natural de aptidões e talento, como vimos, arbitrária do
ponto de vista moral, todas as ações governamentais citadas anteriormente seriam
suficientes para diminuir os níveis de injustiça, mas não para extingui-los. Remediar
os dotes naturais desiguais é tarefa bem mais complicada. Poderíamos, por exemplo,
fazer os naturalmente mais rápidos partirem de uma linha de largada mais distante.

134
Capítulo 8 | Justiça e alocação de recursos escassos em oncologia

Mas poderíamos também (o que parece ser mais produtivo), segundo Rawls, fazer
os mais talentosos desenvolverem as suas aptidões, mas sempre em benefício da So-
ciedade como um todo. As recompensas pelo sucesso pertenceriam ao grupo, e não
àquele indivíduo apenas16.

Ações afirmativas: políticas de cotas nas universidades públicas


A missão de uma universidade pública, qualquer que seja ela, deve ser a de au-
mentar a diversidade cultural, racial e étnica, primeiro dos seus cursos, e depois,
dos indivíduos que exercem as profissões para as quais esta se dedica a formar pes-
soas. Isso como forma de obter uma representatividade equânime dos membros
das Sociedades em todas as suas próprias instâncias, e de maneira a evitar (ou, ao
menos, não estimular) que haja uma raça dominante, ocupadora de instâncias de
maior poder e de decisão, perpetuando-se ali, em detrimento dos seus concida-
dãos. A diversidade, na Universidade, é útil também como enriquecimento cultu-
ral dos próprios alunos e professores. Uma Universidade formada por pessoas de
uma mesma raça, aquela com maior destreza na busca de respostas em testes de
múltipla escolha, pode representar apenas o grupo que foi melhor treinado para
tanto ou que teve condições de frequentar, com mais competência, o respectivo
treinamento. A questão é saber se essa missão, que inclui a diversidade entre seus
objetivos principais, esbarra ou não no texto constitucional que garante que todos
são iguais perante a lei e detentores dos mesmos direitos legais. O posicionamento
prévio do Supremo Tribunal Federal Brasileiro, embora unânime, não deslegitima
a continuidade da discussão26.
Teríamos nós o direito de ser julgados somente pelo nosso desempenho aca-
dêmico, desprezando características das quais não temos controle (como a raça)?
Segundo Dworkin, esse direito simplesmente não existe. Cabe às Universidades a
determinação de quais métodos de seleção serão, para as suas situações particulares,
os mais adequados, o que pode ir muito além do vestibular, no caso brasileiro. E
nenhum candidato, segundo Dworkin, pode interferir nessa escolha, segundo seus
interesses particulares, menores e menos importantes27. O acesso à Universidade
não pode ser visto como um prêmio pelo bom desempenho em uma prova, nem
pelas melhores notas no ensino secundário.
As ações afirmativas somente não estariam justificadas, segundo essa linha de
raciocínio, se a excelência acadêmica, independente dos sujeitos dessa excelência,
fosse o único objetivo e propósito da Universidade, o que é difícil de imaginar, em se

135
Bioética e Humanização em Oncologia

tratando de uma instituição pública, mantida por meio da arrecadação de parte do


esforço de cada um dos contribuintes.

Os limites da equidade
Mas quais são os limites das correções que são, segundo Rawls, obrigações do Esta-
do? O famoso corredor sul-africano Oscar Pistorius, que frequenta, há alguns anos,
as páginas policiais dos jornais, devido à acusação de assassinato de sua namorada,
também foi o objeto principal de uma intensa discussão a respeito da equidade (ou
não) em relação a outros competidores, quando de sua solicitação de participação
dos jogos olímpicos de verão de Pequim, em 2008. O atleta, biamputado de suas
pernas desde a infância e utilizador de próteses metálicas de forma de “J”, de fibras
de carbono, era vítima de críticas porque havia a desconfiança de que as referidas
próteses, mais do que conferir-lhe igualdade de condições de disputa, poderia, fi-
nalmente, e dada a elevada tecnologia empregada na sua confecção (que o permitia
a economia de 25% da energia total gasta no esforço, quando na velocidade final),
acabar por conferir-lhe vantagens suplementares, colocando-o em posição mais fa-
vorável em comparação com outros corredores. A polêmica estendeu-se por meses,
até que, finalmente, em abril de 2008, poucos meses antes dos referidos jogos olím-
picos, a Corte para Arbitração do Esporte (CAS, em sua sigla em inglês) deu-lhe
decisão favorável, revertendo decisão inicial da IAAF (Associação Internacional das
Associações de Atletas), que lhe havia sido contrária. O atleta pôde, finalmente, can-
didatar-se a uma vaga nos Jogos disputados em solo chinês, o que, infelizmente, não
aconteceu, por uma pequena diferença de tempo na eliminatória final. Participou,
no entanto, dos Jogos Olímpicos de Londres, em 2012. Avançou até as semifinais,
nos 400 metros rasos, e participou da corrida final do revezamento 4 x 100 metros
rasos. A África do Sul ficou em 8º lugar, mas marcou o melhor tempo que o time
daquele país tinha conseguido até aquela ocasião. Participou, assim, da quebra do
recorde nacional. O referido atleta carregou a bandeira do país na cerimônia de
encerramento dos referidos jogos olímpicos28.

RESPONSABILIDADE INDIVIDUAL E PÚBLICA


Em se procurando a equivalência de oportunidades para todos os indivíduos, cabe
agora a pergunta inversa: pode o cidadão perder o direito legítimo a um benefício
suplementar, a depender do tipo de atitude que adota durante a sua vida? Indivíduos
que são infectados por HIV por comportamento de risco (que pode incluir o uso de

136
Capítulo 8 | Justiça e alocação de recursos escassos em oncologia

drogas ilícitas injetáveis, comportamento tido como ilegal na imensa maioria – se


não na totalidade, das sociedades modernas ocidentais), fumantes que desenvolvem
câncer de pulmão ou doença pulmonar obstrutiva crônica, vítimas de acidentes de
trabalho decorrentes do uso inadequado de medidas protetivas, alcoólatras que de-
senvolvem cirrose hepática ou pancreatite crônica etc. são todos exemplos de pato-
logias comprovadamente induzidas pelos comportamentos causadores. E os indiví-
duos, em geral, têm clara consciência dos riscos, ao assumir cada um desses citados
comportamentos.
Para que o nexo causal fique claro e legitime alguma medida que imponha algum
custo ao indivíduo que assume o risco decorrente da sua atitude, seria fundamen-
tal que ficasse comprovado que tal atitude foi tomada de maneira absolutamente
autônoma e intencional. E que o risco era conhecido no momento em que o indi-
víduo adquiriu o hábito ou atitude em questão. Mas ainda assim seria fundamen-
tal um isolamento da causa do infortúnio que, normalmente, é multifatorial. Esse
isolamento é, portanto, infactível. Um indivíduo que fuma tem, estatisticamente,
mais chance de desenvolver uma neoplasia de pulmão. Mas esse risco é ainda mais
elevado a depender de características genéticas da pessoa (nem todos os fumantes
desenvolvem câncer de pulmão, enquanto não fumantes podem ver-se portadores
dessa patologia), eventuais doenças prévias, exposição à poluição, eventuais expo-
sições ocupacionais e situações sociais. Fica, assim, infactível o estabelecimento de
uma relação de culpa. Cada um desses fatores pode, por si só, ser indutor de uma
neoplasia pulmonar. E a escolha que o indivíduo faz de fumar não pode, por isso, ser
considerada o único fator determinante.
Mas existem situações em que, ainda que fatores econômicos não sejam os limi-
tantes fundamentais, os recursos são escassos e devem ser priorizados, isso porque
acontece também em países ricos. Um exemplo é a fila de doentes hepáticos termi-
nais (cirróticos) que aguardam a disponibilização de um órgão para transplante. A
escassez de órgãos independe do PIB e dos recursos destinados, pelo país, à saúde.
Seria justo, então, nessa situação, adotar-se a preferência por aqueles doentes que
não têm “culpa” (ainda que em parte) pela sua patologia?
Existem pesquisadores que, apoiados em argumentos utilitaristas, defendem
que, diante da escassez dos órgãos, cirróticos em decorrência do abuso do álcool
devem receber prioridade mínima na alocação de fígados doados29. Observam que
esses pacientes estão ali, na fila, como consequência de uma atitude consciente, e da
qual são responsáveis, ainda que tal atitude seja a de não procurar tratamento em

137
Bioética e Humanização em Oncologia

tempo hábil para a patologia chamada alcoolismo. O risco elevado de recidiva pode
pôr a perder todo o esforço cirúrgico, além de punir um outro paciente que perma-
nece mais tempo na fila, à espera do próximo órgão disponível.
Esse não é, no entanto, um posicionamento que obtém consenso entre as equi-
pes transplantadoras30, uma vez que existem evidências de que, vencidos seis meses
de abstinência, o resultado do transplante, em pacientes alcoólatras, atinge os mes-
mos níveis de sucesso do que os procedimentos realizados nos demais doentes he-
páticos terminais31. Mas ainda assim estamos diante de uma situação de escassez. A
pergunta permanece: Não haveria, por parte desses doentes, “menos merecimento”
em comparação com os demais?
Vítimas de acidentes automobilísticos, normalmente em situação mais grave
pela falta do uso do cinto de segurança (também uma atitude autônoma, fruto de
uma escolha consciente), são atendidos sem hesitação, nas salas de emergência
de todo o mundo, se em risco de vida. Fumantes recebem pontes de safena ainda
que, diante da clara indicação clínica, mantenham o hábito de fumar, a despeito
da farta orientação em contrário que, normalmente, faz-se presente nessas situa-
ções. Entretanto, em nenhum dos casos descritos anteriormente, há escassez (sal-
vo limitações econômicas) de recursos. Fígados disponíveis para transplante são
escassos, como vimos, mesmo nos países ricos. E os alcoólatras, se não falharam
moralmente ao ingerir álcool, podem ter, segundo alguns, falhado moralmente
ao não buscar tratamento. Então, aqueles que advogam a exclusão desses doentes
das filas de transplante o fazem utilizando-se de um argumento moral. Trata-se,
no mínimo, de um julgamento parcial. E, por isso, injusto. Descontadas todas as
limitações anteriormente citadas a respeito da etiologia da neoplasia pulmonar,
também válidas para a patologia hepática em questão (o desenvolvimento da cir-
rose não é função direta da quantidade de álcool consumida, e está sujeito, por
exemplo, a variações genéticas, resultado da loteria da distribuição gênica que
ocorre no momento da concepção), não há consenso a respeito de quais caracte-
rísticas morais devem ser beneficiadas, no momento de escolha de qual paciente
está mais apto para a recepção de um órgão transplantado30. Não se avalia, por
exemplo, se o candidato a receber um órgão é um pai (ou mãe) opressor e abusivo,
um indivíduo com tendências racistas, sexistas, sonega seus impostos, trai o seu
cônjuge ou é suspeito de ser um pedófilo assassino. Julgamentos morais não são,
por isso, admissíveis, ao se determinar quem (e quem não) receberá um órgão
para transplante.

138
Capítulo 8 | Justiça e alocação de recursos escassos em oncologia

Responsabilidade social
As condições de vida e trabalho dos indivíduos (e grupos da população) estão in-
trinsecamente relacionadas às suas condições de saúde. Daí surge o conceito de
“determinante social em saúde”, que são os fatores sociais, econômicos, culturais,
étnico/raciais, psicológicos e comportamentais que influenciam a ocorrência de
problemas de saúde, ou atuam como agravadores de fatores de risco para algumas
patologias naquela população. Rudolf Virchow, por exemplo, desde o século XIX,
já via a medicina como uma ciência essencialmente social, e intuía que as condições
econômicas (e sociais) exerceriam um efeito importante sobre a saúde e a doença32.
Durante todo o século XX, viveu-se a tensão entre a abordagem social e a aborda-
gem bacteriológica da etiologia das enfermidades, mas o consenso no sentido do en-
tendimento do que vai acima, defendido pelo médico alemão, foi, pouco a pouco, se
consolidando. Nesse sentido, a decisão da OMS de organizar e divulgar seu “Infor-
me sobre Determinantes Sociais de Saúde” estimulou significativamente a discussão
conceitual e política da etiologia social das doenças, no setor social como um todo, e
no setor sanitário, mais especificamente33.
Ausente no primeiro rascunho do texto do artigo 14 da DUB, datado de junho
de 2004, assim como no segundo, de julho daquele mesmo ano, o princípio da res-
ponsabilidade social, que conduziria, então, ao direito de todos à atenção à saúde,
não era tido como imprescindível. Finalmente, por conta da 170ª sessão do Conse-
lho Executivo da U ­ NESCO (outubro de 2004), e graças à insistência dos países lati-
no-americanos e caribenhos, com apoio dos africanos, a demanda dessa inclusão foi,
finalmente, examinada. A atenção a questões de justiça social foi defendida em reu-
niões regionais posteriores, em particular naquela da capital portenha, ocorrida em
novembro 2004, que resultou na “Carta de Buenos Aires”. Especialistas da região
ressaltaram que a Bioética deveria ocupar-se de aspectos concretos da realidade da
maioria da população mundial, como pobreza, fome, exclusão social, guerra e vio-
lência34. O grupo de redação do Comitê Internacional de Bioética (CIB/­UNESCO),
por ocasião da reunião de dezembro de 2004, voltou ao tema e decidiu, por fim,
incluir “Responsabilidade Social” no título do artigo 14. O texto, mais uma vez, foi
alvo de constantes discussões durante a reunião seguinte do CIB, de janeiro de 2005,
e foi, finalmente, aprovado em fevereiro daquele ano. Intensos debates se seguiram
na segunda reunião de especialistas governamentais, em junho. E em outubro de
2005, na Conferência Geral da U ­ NESCO, a solicitação dos países latino-america-
nos foi, enfim, aprovada por aclamação35.

139
Bioética e Humanização em Oncologia

O direito à saúde: fundamentação


A justificativa para o direito dos cidadãos aos cuidados de saúde basear-se-ia, inicial-
mente, em duas premissas: a necessidade de proteção social e a necessidade da busca
pela equidade de oportunidades. Em primeiro lugar, o Estado, tradicionalmente,
sempre proveu proteção contra, por exemplo, crimes e incêndios. A necessidade
de atenção à saúde também pode, então, por similaridade, ser entendida como um
dever do Estado. Ações coletivas de proteção à saúde (que podem incluir proteção
ambiental) existem em, virtualmente, todas as sociedades modernas17. Apenas os
liberais entendem que essa premissa não é válida, porque, segundo estes, o Estado
não teria o dever de prover qualquer tipo de proteção além daquela destinada à
propriedade dos seus cidadãos. E, por isso, sua função estaria adequadamente cum-
prida com policiais, presídios e bombeiros14. Em segundo lugar, além da questão da
proteção social, entende-se que a Sociedade, como um todo, investiu na formação
dos profissionais de saúde e na pesquisa biomédica, se não na forma de universida-
des públicas, o fez por meio das inúmeras estratégias de renúncia fiscal das entidades
privadas. Os benefícios daí advindos devem, portanto, ser compartilhados. E, pela
regra da “oportunidade justa”, formulada por John Rawls, a Sociedade tem o dever
moral de contrabalancear a falta de oportunidade originada de infortúnios para as
quais as pessoas não têm, em absoluto, nenhum controle, e são, sob a ótica moral,
produto da aleatoriedade16. A saúde cumpre mais do que um papel distributivo: tra-
ta-se de um bem fundamental para garantir a igualdade entre as pessoas, e a plena
realização da liberdade, porque sua ausência ataca diretamente a possibilidade de
realização das expectativas de cada um de nós, ao longo de nossas vidas, comple-
menta Normal Daniels36.

A Lei Natural
Mas ainda cabe o questionamento: qual a origem e justificativa do papel do Estado
como protetor (e investidor) social? De acordo com São Tomás de Aquino, teórico
cristão que viveu no século XIII, e que foi profundamente influenciado pelo pen-
samento aristotélico, segundo o qual tudo, no mundo (inclusive os humanos), tem
uma função vital, a natureza humana requer o “florescimento” do indivíduo. Isso
significa o desenvolvimento e o aprimoramento de nossas capacidades inatas como
seres vivos, sociais, sencientes e racionais. E, para tanto, todos os seres humanos têm
uma série de “inclinações naturais”, para buscar o que quer que vejamos como bom,

140
Capítulo 8 | Justiça e alocação de recursos escassos em oncologia

desejável, e útil. A “Lei Natural” seria, então, conforme Aquino, um conjunto de


princípios que, se seguidos, iriam satisfazer essas “inclinações” naturais37.
Teóricos mais modernos como Hughes, por exemplo, estendem a lista de “in-
clinações humanas” para a busca de alimentação, abrigo, tratamento médico ade-
quado, afeto, apoio, e uma função justa e razoável na Sociedade38. Estar vivo e
desfrutando de boa saúde é estado intrinsecamente bom. Então, qualquer atitude
que promova a busca desse mencionado estado dispõe de justificativa suficiente para
ser executada, uma vez que a boa saúde é condição necessária para o mencionado
“florescimento”39. Como consequência, decorre a obrigação negativa: “não matar”;
e também a obrigação positiva: “proteger a vida”, quando factível40. O bom deve ser
feito, e o mau, evitado, como dizia Aquino37. Temos todos, então, o direito de não
ser mortos, mas também o direito de ter nossas vidas protegidas, embora esses direi-
tos possam, eventualmente, entrar em conflito, e situações especiais sejam, inclusive,
admitidas pela própria lei natural41.
O direito à saúde deve ter, é importante ressaltar, prioridade sobre o direito à
assistência médica, porque é mais amplo e envolve, por exemplo, ações de prevenção
de danos. Este último, o direito à assistência, pertence à esfera dos direitos humanos e
sociais. Está submetido a regras e modalidades muito variáveis e é fortemente influen-
ciado por relações contratuais. O sistema de assistência, apesar da posição importan-
te, não pode ser o único implicado na melhoria das condições de saúde dos indiví-
duos. Quando negado, aumenta consideravelmente a parte do sofrimento humano
que é social. E, por isso, tecnicamente evitável. À enfermidade, que já é, por si só, um
tormento, agrega-se um imerecido castigo, com comprometimento da dignidade do
indivíduo9,42. O direito à assistência é, assim, consequência do direito à saúde.

O princípio da responsabilidade de Hans Jonas


Hans Jonas, filósofo judeu-alemão nascido em 1903, parte do princípio de que o
domínio do homem sobre a natureza causa a destruição desta última. Influenciado
pelos anos que passou alistado ao exército inglês na luta contra o nazismo, e sob o
impacto das bombas atômicas explodidas sobre as cidades japonesas de Hiroshima
e Nagasaki, põe em marcha um pensamento na direção de um novo tipo de questio-
namento, amadurecido pelo perigo que representava, para ele, o poder advindo do
desenvolvimento tecnológico. O homem, doravante dominador da natureza (como
nunca antes na história), via-se agora também responsável pelas consequências desse

141
Bioética e Humanização em Oncologia

domínio, haja vista seu poder potencial de destruir o mundo. Derivaria daí o dever
de preservação desse mesmo mundo, para as gerações futuras. Uma nova ética se
fazia, por isso, necessária43.
A filosofia principialista, principalmente voltada para a relação médico-pacien-
te, biomédica e biotecnológica, tem sido vista como, apesar de inegavelmente im-
portante, insuficiente na fundamentação filosófica do direito à saúde, uma vez que
este não envolve apenas indivíduos, mas instituições públicas, responsáveis pela im-
plementação de políticas governamentais44-46. O princípio da responsabilidade pede
que se preserve a condição de existência da humanidade, e daí deriva a responsabi-
lidade ética em relação ao outro, porque o “ser” resulta em “dever”. O ser huma-
no tem a vantagem, em relação aos outros animais, como pensava Jonas, de ser o
único animal capaz de ter responsabilidade. Assim como Aristóteles e São Tomás
de Aquino, Jonas também entendia que os seres vivos devem viver para cumprir
um objetivo. A responsabilidade política seria, segundo esse autor, um dos ramos da
responsabilidade total. E, analogamente à responsabilidade paterna, teria deveres
para com a sociedade como um todo, assim como o pai tem, naturalmente, deveres
para com o seu filho47.

Atenção à Saúde Universal


A filósofa portuguesa Maria do Céu Patrão Neves parte do princípio da responsabi-
lidade para, finalmente, chegar à justificativa moral do direito do acesso universal à
saúde. Uma “intensificação” da responsabilidade para com o outro, imaginando-a
com dimensão coletiva, deve, segundo a autora, ser vista sob três aspectos distintos:
Responsabilidade pessoal: o indivíduo deve responder por sua saúde no que depende
dele próprio, considerando que o financiamento é público, com implicações da sua
atitude para com a sua saúde pessoal. E nos gastos da comunidade.
Responsabilidade social (cívica): entre indivíduos de uma determinada comunidade,
que reconhecem que os seus respectivos estados de saúde não são resultantes de
processos puramente individuais, mas também de um projeto social, que depende
da ação de todos.
Responsabilidade política: o Estado deve, então, assumir este projeto social, que só
poderá ser completamente implementado se organizado por um ente de governo, por
meio de um Sistema Nacional de Saúde, visando ao cumprimento da missão dos go-
vernantes, que é, em última instância, proporcionar o bem-estar dos seus cidadãos.

142
Capítulo 8 | Justiça e alocação de recursos escassos em oncologia

Assim, recorrendo-se ao princípio da dignidade humana (e a constatação de que


seria indigna a negativa ao acesso a cuidados de assistência), associado ao princípio
da participação, que decorre da exigência do esforço de cada um, de acordo com
as suas possibilidades, em vista do bem da sociedade, justifica-se o entendimento de
que é fundamental o direito à saúde. A autora vai um pouco mais longe: cada um de
nós seria sempre devedor do outro, em cada uma de nossas realizações. Assim sendo,
no campo específico da saúde, a solidariedade exige a partilha dos custos financeiros
com a saúde de todos, proporcionalmente ao rendimento de cada um, como forma
de respeito ao princípio da equidade6, sobre o qual discorreremos mais adiante.
Schramm e Kottow, assim como Patrão Neves, veem o princípio da solidariedade,
isoladamente, como insuficiente para resolver os complexos problemas de saúde públi-
ca, por estar obrigado a ser solidário com os outros em situações de profunda diversi-
dade de necessidades. Propõem, então, a associação dos princípios da responsabilidade
ôntica (relativa ao ser), de Jonas, e da responsabilidade diacônica (relativa ao outro), de
Lévinas. E sugerem, finalmente, uma contextualização destes, observado que a aplica-
ção direta da responsabilidade ôntica (de pai para filho, conforme Jonas), no contexto
da saúde pública e em coletividades maiores e mais complexas, implicaria risco elevado
de paternalismo, e que a aplicação da responsabilidade diacônica, de Lévinas, seria ex-
cessiva, dada a demanda de entrega incondicional com subordinação total ao outro (até
o seu próprio desaparecimento), e seria impensável num contexto de políticas públicas.
Tal contextualização conduziria, então, ao princípio da proteção, que pretende, jus-
tamente, evitar essas dificuldades anteriormente descritas. A proteção, a ser oferecida
pelo Estado, deve ser gratuita, voluntária (respeito à autonomia do indivíduo, evitando
o paternalismo) e vinculante (irrenunciável). E visa ao resguardo ou cobertura das ne-
cessidades essenciais44. A saúde é, sem dúvida, uma dessas necessidades.

Bioética de intervenção
Na América Latina, desde o final dos anos 1990, e sob a liderança do Professor Vol-
nei Garrafa, tem-se proposto uma maior aproximação entre a bioética e a política,
com o objetivo do aprofundamento da discussão do problema do acesso à saúde e
da garantia do direito à dignidade da pessoa humana. Tal politização, vista como
desnecessária por alguns48, seria fundamental como forma de construção da almeja-
da justiça social, principalmente numa região onde ficam evidentes profundas desi-
gualdades no acesso aos recursos sanitários. A não politização da bioética derivaria,

143
Bioética e Humanização em Oncologia

segundo o Professor Garrafa, de um preciosismo, que acaba por restringir o escopo


epistemológico da disciplina, associado a um conservadorismo, que impediria, por
fim, os pesquisadores de entender que nem toda gama de conflitos éticos pode ser
restrita, unicamente, ao contexto biomédico45.
O princípio da proteção é visto aqui como necessário, mas também insuficiente,
uma vez que restringir a possibilidade de intervenção na realidade à tão somente a
medida de proteção (aos menos favorecidos, os vulnerados) seria, finalmente, uma
concessão à manutenção da desigualdade, dos privilégios e da exclusão reinantes, por
não dispor de uma matriz transformadora. Acabaria, então, por ajudar a manter o
status quo. A bioética social, para ser efetiva, exige uma militância pragmática, além de
coerência histórica por parte do pesquisador. O autor cita, então, o empoderamento
(derivado do inglês empowerment), a libertação e a emancipação como princípios fun-
damentais na busca desse objetivo. Libertação, baseada nos escritos de Paulo Freire,
corresponde à tomada de consciência (com posterior remoção) das forças opressoras,
que impedem o adequado exercício da autonomia. Empoderamento, baseando-se nas
ideias de Amartya Sen, cientista indiano vencedor do Prêmio Nobel de Economia
no ano de 1998, visa dar ao sujeito condições de fazer escolhas autônomas, quando
dispondo de opções. O sujeito libertado (portanto, menos vulnerável) deveria, então,
ter o legítimo poder de fazer escolhas autônomas e não ser forçado a uma aceitação,
quando sem alternativas. E, por fim, a emancipação, que significa alforria, liberdade,
vem suprimir a dependência, possibilitando escolhas independentes (e responsáveis).
Trata-se do “caminhar” que se inicia com a libertação. Todos esses três princípios
seriam, dessa forma, componentes do fenômeno dinâmico da inclusão social, cuja
construção é fundamental para a verdadeira justiça social em saúde45.
A bioética de intervenção considera, concluindo, que a doença também é social-
mente produzida e decorre de circunstâncias histórico-culturais, que condicionam e
definem a vida social. Busca, assim, tornar-se uma bioética menos biotecnológica e
mais engajada, rompendo o modelo hegemônico. Dadas as gritantes desigualdades fa-
cilmente diagnosticáveis entre os países centrais e periféricos, limitar a discussão bioé-
tica às relações estabelecidas no âmbito da prática clínica/pesquisa de medicamentos
seria, segundo o autor, uma clara demonstração de cegueira e inapetência ética46.

APLICAÇÃO PRÁTICA: A REFORMA SANITÁRIA BRASILEIRA


O processo da reforma sanitária brasileira resultou de uma ampla mobilização de
um conjunto de forças sociais e revela uma aproximação de nosso marco jurídico aos

144
Capítulo 8 | Justiça e alocação de recursos escassos em oncologia

princípios do chamado “Welfare State”, ou “Estado de Bem-Estar Social”, contraposto


à perspectiva liberal que defende a redução do papel do Estado na garantia das con-
dições de vida e saúde da sua população. Nesse sentido, o Sistema Único de Saúde
(SUS) brasileiro é um projeto que assume e consagra os princípios da “equidade”,
“universalidade” e “integralidade” na atenção à saúde, que significa em conceber o
SUS como um sistema de saúde capaz de garantir o acesso universal da população a
bens de serviços que garantam a sua saúde e bem-estar de forma equitativa e integral.

Os princípios da equidade, universalidade e integralidade


Segundo o eminente sanitarista italiano Giovane Berlinguer, falecido no início do
ano de 2015, historicamente, a mesma sociedade que cria as doenças as distribui
desigualmente entre os homens e permite que eles as tratem na proporção direta
de suas riquezas materiais, mas na medida inversa às suas próprias necessidades
de saúde49. Equidade em saúde implica, então, o ideal de que cada pessoa tenha
a mesma oportunidade de obter seu máximo potencial e, mais pragmaticamente,
que ninguém esteja em desvantagem no alcance desse potencial, se isso for viável.
A expressão ativa da equidade em saúde é promover a diminuição das brechas nos
indicadores de saúde que diferenciam grupos sociais por meio da ação de determi-
nantes sociais, econômicos, tecnológicos e culturais que afetam preferencialmente os
grupos mais desfavorecidos50.
Universalidade, na mesma direção, significa que todas as pessoas devem ter
acesso aos cuidados médicos, independentemente de suas condições financeiras.
Para tanto, segundo a OMS, o sistema de saúde deve51:
• Ser eficiente para atingir as prioridades definidas.
• Informar e encorajar as pessoas a manterem-se,
na medida do possível, saudáveis.
• Ser capacitado para o diagnóstico precoce, para tratamentos
complexos e na ajuda a pacientes em sua reabilitação.
• Ser economicamente viável.
• Ser composto por uma equipe de profissionais bem
treinada e motivada, para que os serviços oferecidos
atinjam a necessidade da população atendida.
A integralidade, por fim, é concebida como um conjunto articulado de ações e
serviços de saúde, preventivos e curativos, individuais ou coletivos, em cada caso,

145
Bioética e Humanização em Oncologia

nos níveis de complexidade do sistema. E deve considerar a pessoa como um todo,


atendendo a todas as suas necessidades. A integralidade é um atributo do sistema de
atenção. Um modelo integral é aquele que dispõe de estabelecimentos, unidades de
prestação de serviços, pessoal capacitado e recursos necessários à produção de ações
de saúde, que vão desde ações inespecíficas em grupos populacionais definidos, até
ações específicas de vigilância ambiental, sanitária e epidemiológica, dirigidas ao
controle de riscos e danos, além de ações de assistência e recuperação de indivíduos
enfermos. Para tanto, é de fundamental importância a integração entre as ações de
promoção à saúde, prevenção de doenças, tratamento e reabilitação52.
Aos princípios sobre os quais discorremos anteriormente, que dizem respeito
à natureza do sistema, acrescentam-se os chamados princípios estratégicos, que se
referem às suas diretrizes políticas, organizacionais e operacionais. Neste tópico,
inserem-se a “descentralização” e a “regionalização”:

Descentralização e regionalização
Região de saúde é uma área territorial contínua, provida de identidades culturais,
econômicas e sociais comuns, além de infraestrutura, comunicação e transportes (e
outros insumos) compartilhados. A regionalização, ferramenta indutora da descentra-
lização, é um processo dinâmico, flexível, que figura como estratégia para a saúde bra-
sileira, desde a Constituição de 1988. Descentralização significa a mudança de papel
do governo central por meio de transferência de capacidades fiscais, poder decisório
ou de responsabilidades, para Estados e Municípios, pela implementação e gestão de
políticas definidas centralmente53. Essa transferência ocorre a partir da redefinição de
funções e responsabilidades de cada nível de governo com relação à condução políti-
co-administrativa do sistema de saúde, em seu respectivo território (nacional, estadual
e municipal), com transferência concomitante de recursos financeiros, humanos e ma-
teriais, para controle das instâncias governamentais correspondentes52.
A proposta de organizar sistemas de saúde regionalizados que surgiu, inicial-
mente, na antiga União Soviética, teve, posteriormente, iniciada a sua adaptação
para o Ocidente por Dawson, em 1920. O paradigma dominante tem sido o da
“regionalização autárquica”, no qual, em cada região existe um “município-polo”,
com relativa autonomia, responsável pela gestão do sistema de saúde local. O papel
dos municípios menores é secundário e mais restrito à atenção básica. Trata-se do
modelo adotado também por países como Reino Unido, Itália e Canadá, países
cujos sistemas de saúde serviram de referência para o desenho do SUS nacional54.

146
Capítulo 8 | Justiça e alocação de recursos escassos em oncologia

A implementação desta diretriz, guiada pelo princípio da equidade, possibilita a


construção de sistemas regionais com a participação solidária dos três entes federa-
tivos, visando garantir a integralidade da atenção, uma vez que faz pouco sentido
que municípios pequenos invistam em estratégias de alta complexidade, de elevado
custo, para uma porção ínfima de sua população, o que resultaria, além do óbvio
problema do financiamento, em subutilização do serviço implantado55.

Priorizações: como determinar o que é atingível


Ninguém vive em estado de saúde. E a vida, o viver simplesmente, é enfermidade.
É um estado de contínuo envelhecimento, de adaptação ao mundo exterior, que
levará, cedo ou tarde, ao desfecho letal. Enfermo, do latim “infirmus”, significa “não
firme”, uma constante na vida do homem como espécie. Saúde é, enfim, segundo
Orgaz, um estado de perfeita harmonia, que não se realiza56. Todo indivíduo neces-
sitaria, então, de cuidados perenes do sistema de saúde, buscando a ilusão da saúde
perfeita? A resposta óbvia é “não”, porque o “sim” figura no terreno da utopia. Al-
gum grau de enfermidade faz parte da vida57. O problema é definir, na prática, qual
é o limite a partir do qual a intervenção (com seu respectivo custo para a sociedade)
estaria justificada.
Emanuel & Fuchs enumeram fatores que, em conjunto, têm contribuído, além
dos já anteriormente mencionados, para um perigoso aumento dos custos em saúde,
que poderia levar à sua inviabilização, principalmente no contexto de saúde pública.
São eles: altos custos administrativos, altos salários dos profissionais (médicos) asso-
ciados à sua relativa (e comum) raridade no mercado e, principalmente, a superuti­
lização de recursos, frequentemente para além daquilo que, comprovadamente, ne-
cessita o paciente. Tal superutilização é estimulada, comumente, por um sistema
que remunera o médico pela quantidade de procedimentos efetuados, e não pelo
resultado alcançado pelo seu procedimento. O fato de o paciente não ser o respon-
sável direto pelo pagamento do tratamento também é, reconhecidamente, um fator
estimulante, por ser gerador ativo de demanda58.
Barro, em um texto de 1978 (mas que mantém muito atual), diz que o primei-
ro inimigo a ser identificado na lógica da mudança na direção da consolidação da
saúde como direito é a “ideologia da quantidade”. O novo, segundo o autor, e ainda
novo nos dias de hoje, deve diferenciar-se do velho rechaçando qualquer presunção
de que a sociedade deva responder aos problemas da saúde com mais consultas

147
Bioética e Humanização em Oncologia

médicas, mais análises laboratoriais, mais exames diagnósticos, mais procedimen-


tos, mais tratamentos ou mais medicamentos59. A massificação, com subsequente
mercantilização da medicina, converteu o enfermo em um consumidor como outro
qualquer, cujo direito de requerer segundo seu próprio desejo (e de escolher diante
de possibilidades que ele mesmo julga disponíveis) deve, obviamente, ser limitado (e
pactuado democraticamente), ainda que qualquer política que trabalhe nessa dire-
ção se converta, instantaneamente, em bastante antipática60.
Qual deve ser, então, a função da medicina, compatível com a garantia de um
direito universal à saúde? Quais são os limites deste direito? Em outras palavras, e
como bem pontua Daniels, pessoas razoáveis podem discordar em quanto peso que
deve se dar a diferentes estratégias de tratamento, em um cenário de recursos escas-
sos. Teria o cidadão, por exemplo, direito ao acesso a refinadas técnicas de fertiliza-
ção in vitro, em um contexto de insuficiente distribuição de medicamentos básicos,
de uso contínuo, para doenças crônicas? Ou a cirurgias exclusivamente estéticas,
mas para condições limitantes da qualidade de vida da pessoa, como, por exemplo,
cirurgias de redução (ou aumento) do volume das mamas, quando faltam salas ou
cirurgiões para procedimentos curativos de patologias letais? Ou então, a terapêuti-
cas experimentais que visem, por exemplo, retardar o envelhecimento? O que dizer,
então, de uma gama enorme de medicações com alto apelo e popularidade, mas
sem nenhum efeito prático comprovado60? São exemplos inúmeros suplementos vi-
tamínicos e infindáveis xaropes para tosse que receitamos para crianças com viroses,
mas sem absolutamente nenhuma eficácia comprovada61,62. No ano de 2000, por
exemplo, na Inglaterra, havia mais médicos praticantes de medicina alternativa re-
gistrados do que, por exemplo, clínicos gerais60.
Manter a saúde pública e gratuita exige um processo contínuo de racionaliza-
ção que não pode satisfazer a todos. O mais alto padrão de saúde atingível pode
não incluir os exemplos citados anteriormente e há, ainda, uma infinidade de
outros36. Em um cenário no qual os recursos disponíveis para financiamento são,
como vimos, escassos, e os custos, crescentes, regras para priorizações devem ser
urgentemente definidas. Necessitamos de princípios gerais que possam resolver
essa disputa. Necessitamos, portanto, de limites (justos) para tornar o sistema fi-
nanciável. E, nesse aspecto, a costa oeste dos Estados Unidos é profícua em exem-
plos interessantes.
Inicialmente, citamos o caso de Seattle, principal cidade do Estado de W
­ ashington,
localizada próxima à fronteira com o Canadá, no extremo oeste americano. Nessa

148
Capítulo 8 | Justiça e alocação de recursos escassos em oncologia

comunidade, definiu-se, no final da década de 1960, que, para que fossem selecio-
nados os doentes renais terminais com direito à diálise, uma comissão composta
por um jurista, um sacerdote, uma dona de casa, um empregado, um banqueiro
e um cirurgião faria a seleção. E, na prática, arbitraria sobre a vida e a morte dos
pacientes. Foram, então, privilegiados doentes que tinham filhos (em detrimento
dos que não tinham), empregados (em detrimento aos desempregados), pessoas
que praticassem trabalhos voluntários, que frequentassem a igreja etc. e foram ex-
cluídos pacientes que eram considerados “desviados”, como, por exemplo, doen-
tes mentais ou condenados pela justiça (incluindo aqueles que o foram por haver
participado da luta por direitos civis). Somente depois de muita luta, em 1973, foi
aprovado um programa federal que selecionava, para a diálise, os pacientes basean-
do-se somente no aspecto clínico da patologia e deixando de lado antigos estigmas,
anteriormente valorizados42.
Posteriormente, ficou famosa também a experiência vivida no Estado de Ore-
gon, localizado logo ao sul de Washington. Ali, em 1989, a redução do aporte de
recursos federais, associada a um aumento dos custos assistenciais, obrigou o gover-
no local a formar uma comissão especial, com o objetivo de desenvolver uma lista
de prioridades dos serviços sanitários, principalmente para a população de menos
recursos, atendidas pelo Medicaid, sistema de saúde americano dedicado aos menos
favorecidos. Utilizou-se, então, de critérios utilitaristas, e as medidas com maior po-
tencial de benefício para um maior número de pessoas foram privilegiadas. Chegou-
-se, em pouco tempo, a um ensaio de relação entre a patologia e a eventual culpa do
paciente no seu desenvolvimento. Assim, doentes com cirrose hepática secundária
ao uso crônico de substâncias alcoólicas tinham mais dificuldade de receber um
transplante de fígado do que pacientes com hepatite, por exemplo, porque conside-
rava-se, então, os pacientes “menos culpados”42.
E transportando-nos para os dias atuais, uma das questões mais complicadas a
ser enfrentadas por qualquer sistema de saúde é a decisão a respeito do direito do
paciente, portador de uma doença terminal, de receber ou não tratamentos cuja
eficácia não foi, até aquele momento, comprovada cientificamente, mas faltam al-
ternativas eficazes, dada a condição de terminalidade da patologia em questão. Em
outras palavras, quando não há mais nada a fazer. A decisão aparentemente mais
racional, da não cobertura, ou seja, oferecer cuidados paliativos exclusivos, visando
ao alívio dos sintomas e à diminuição do sofrimento, expõe aquele que toma a deci-
são a demoradas e caras disputas judiciais, cujo fim, a história mostra, tem sido em

149
Bioética e Humanização em Oncologia

benefício da cobertura, com o Estado quase sempre assumindo o prejuízo63. Faltam-


-nos critérios menos emocionais que evitem o que se conhece por “judicialização da
saúde” e que sejam pactuados pela comunidade.
Nesse cenário, a avaliação da efetividade clínica de uma novidade terapêutica
que, usualmente, traz consigo um aumento do custo adquire importância funda-
mental, porém é informação insuficiente. Novas intervenções podem resultar em
um uma vantagem mínima (em comparação com o tratamento já disponível), por
um custo excessivamente elevado, o que comprometeria outras terapêuticas não
relacionadas. Ou, mais raramente, grandes inovações, com melhora considerável
dos resultados do tratamento, podem vir acompanhadas de um custo relativamente
modesto, estando a entidade pagadora (o Estado, se a saúde é pública) disposta a
bancar o custo.
O foco da gestão posicionado exclusivamente no corte de custos pode ser con-
traproducente. A extinção, ou pelo menos, diminuição do desperdício e de serviços
desnecessários é benéfica, mas a redução de custos deve vir de uma melhora na efi-
ciência. Toda conduta médica deve ser analisada e estudada levando em considera-
ção o benefício final para o paciente. Os desfechos são, então, muito mais complexos
do que simplesmente a sobrevida global. E os custos devem ser considerados no ciclo
completo da condição médica. Uma economia imediata, por um procedimento mais
barato, pode significar grande aumento de custo futuro, devido a maiores complica-
ções ou recidiva da patologia. Uma competição centrada nos resultados tenderia a
melhorar a qualidade e, simultaneamente, os custos64, diminuindo, por exemplo, o
índice de erros. Estima-se que até 30% dos gastos em saúde podem ser originários
de baixa qualidade dos procedimentos médicos efetuados65. Um diagnóstico correto,
por exemplo, economizaria exames suplementares desnecessários e tratamentos adi-
cionais inefetivos. Uma terapia rapidamente direcionada à causa da patologia tende
a ser mais barata do que aquela que demanda tempo para ser implementada, com
tratamentos sintomáticos e contestáveis, aplicados durante o tempo que se perde até
a chegada ao diagnóstico correto64.
Métodos de análise conjunta de custo e efetividade fazem-se, então, necessá-
rios, para uma adequada e racional alocação dos recursos. A Economia da Saúde
é uma ciência relativamente nova que vem propor métodos cientificamente funda-
dos de avaliação conjunta de cada nova tecnologia, analisando concomitantemen-
te custo e benefício. Dispõe-se, assim, de parâmetros comparáveis, úteis na tomada
de decisão quando da incorporação ou não de uma determinada tecnologia (ou

150
Capítulo 8 | Justiça e alocação de recursos escassos em oncologia

inovação medicamentosa), por meio de ferramentas como análises de minimiza-


ção de custos, análise de custo-efetividade, custo-utilidade, ou custo-benefício. O
agente público que tem, legitimamente, o poder de tomar decisões pode, assim,
estabelecer parâmetros e decidir, visando não somente ao controle de custos, mas
ao fornecimento da melhor assistência à saúde atingível, dado o poder econômico
e político daquela Sociedade, e mais especificamente, naquele momento histórico
vivido, enquanto se toma a decisão66,67. Tal ferramenta já é respaldada pela utiliza-
ção efetiva em países como Canadá, Inglaterra e Austrália. E, apesar das críticas,
vem se tornando cada vez mais popular68. No Brasil, o órgão responsável pelas
análises governamentais, que visa à avaliação de segurança, eficácia e custo para
incorporação (ou não) de novas tecnologias no SUS, é, desde 2006, a CONITEC:
Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS69.

Considerações finais
Os problemas relativos à alocação de recursos em saúde não são exclusividade
dos países pobres. São dramas vividos, ainda que em menor intensidade, também
nos países ricos. Fundamentados e legitimados os princípios da responsabilidade
social e da atenção à saúde, permanece o desafio da definição do que é aceitável e
factível e, por isso, deve estar disponível. Permanece o problema da necessidade de
financiamento e dos meios para aplicá-lo, haja vista a responsabilidade da huma-
nidade para com aqueles que não dispõem de meios próprios para fazê-lo. Sendo a
dignidade um direito universal, cabe à sociedade buscar meios de ampliar, constan-
temente, o acesso à saúde, até aquelas regiões do mundo onde o mínimo aceitável
ainda não chegou.
A humanidade falhou ao se propor esse objetivo até o ano 2000, nos idos dos
anos 1970. Progressos foram feitos, mas esses progressos são mais visíveis nos países
mais ricos, não menos responsáveis, dada a realidade atual e o contexto histórico em
que vivemos, pela realidade de penúria de determinadas regiões do globo. Países nos
quais não se dispõem de um sistema coerente de atenção à saúde estão destinados
a continuar do rumo do aumento descontrolado dos custos, aumentando, progres-
sivamente, o número de cidadãos desprotegidos. A criação de um sistema eficiente,
por outro lado, com critérios claros de incorporação e de alocação de recursos, não
é a solução definitiva. É tão somente condição mínima necessária para um sistema
viável, universal e equânime a curto, a médio e, quiçá, a largo prazo também.

151
Bioética e Humanização em Oncologia

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154
Capítulo 9 | Como dar más notícias em oncologia

9
Como dar más notícias
em oncologia
Tatiana Strava Corrêa, Suelen Medeiros e Silva

Introdução
O câncer é a mais importante causa de morte no mundo. Considerado um pro-
blema de saúde pública, apresenta significativo aumento de incidência tanto nos
países desenvolvidos como nos em desenvolvimento. Com a internet, os pacientes
têm mais acesso a informações médicas do que nunca. Os avanços tecnológicos tor-
naram algumas decisões ainda mais complicadas. Portanto, na área da Oncologia,
os profissionais precisam aprimorar suas habilidades de comunicação, tanto com
o paciente quanto com seus familiares, para ajudar a interpretar as informações e
adicionar o julgamento clínico e experiência1. Os médicos devem saber integrar o
grande número de informações médicas com valores, esperanças e prioridades dos
seus pacientes2.
A comunicação interpessoal é um processo dinâmico e multidirecional de in-
tercâmbio de informação por meio de diferentes canais sensório-perceptuais. Ela
se divide em comunicação verbal e não verbal. Comunicar eficazmente é simulta-
neamente importante e difícil; constitui um desafio porque implica a utilização e o
desenvolvimento de perícias básicas essenciais à comunicação entre o profissional de
saúde, a pessoa doente e a família3.

155
Bioética e Humanização em Oncologia

Faz diferença uma melhor comunicação


com meu paciente?
As pesquisas mostram que uma comunicação adequada melhora o enfrentamento
da doença, diminui a dor e outros sintomas físicos, aumenta a adesão ao tratamento
e resulta em maior satisfação com o cuidado4. Ainda, uma comunicação adequada
ajuda também o profissional de saúde: está relacionada a menos estresse, menor taxa
de esgotamento e menos reclamações.
O grande objetivo de uma comunicação bem-sucedida em Oncologia pode ser
resumido na frase: “ser honesto sem destruir as esperanças dos pacientes”5.
Apesar de parecer uma arte subjetiva, a comunicação de más notícias requer
conhecimento profundo da doença e terapêuticas disponíveis, além de técnicas espe-
cíficas de comunicação, que auxiliam na melhor transmissão da mensagem6.

E o que seriam más notícias?


Genericamente más notícias podem ser o diagnóstico de uma doença crônica, o
diagnóstico de uma doença grave com risco de óbito, falha do tratamento, prog-
nóstico de determinada doença, e informações médicas desfavoráveis em geral. Se
pudermos ser mais explícitos, seriam informações que têm um efeito adverso e grave
na visão do indivíduo sobre o seu presente e futuro⁷.
A notícia de forma subjetiva afeta de modo diferente cada pessoa na sua indi-
vidualidade8. Por exemplo, quando os oncologistas falam com um paciente sobre a
possibilidade de estudo clínico com nova medicação: um grupo de pacientes reage
de maneira positiva, dizendo que tem mais uma esperança no seu tratamento. En-
tretanto, outro grupo reage de forma negativa, dizendo que a doença está grave ao
ponto de não ter boas alternativas de tratamento, sendo necessária uma “última”
tentativa com a nova droga do estudo6. Portanto, não há um manual para seguirmos
e estar aptos para qualquer comunicação de más notícias, mas o básico de qualquer
comunicação médica é que o profissional reserve o tempo e o espaço adequado para
tal interação médico-paciente.

Protocolos de más notícias


Aprender a comunicação de más notícias é uma tarefa complexa, que envolve fer-
ramentas de comunicação acerca de estabelecer a harmonia, obter informações dos

156
Capítulo 9 | Como dar más notícias em oncologia

pacientes, passar informação em linguagem entendível sem uso de jargões técnicos,


responder às emoções dos pacientes e promover um plano de tratamento para guiar
o paciente no tratamento oncológico2.
Quando falamos em más notícias, a literatura dá especial destaque ao protocolo
elaborado pelo grupo de oncologistas americanos e canadenses ligados ao MD An-
derson Cancer Center, da Universidade do Texas, USA, e ao Sunnybrook Regional
Cancer Center de Toronto, CA. O protocolo resume, no mnemônico “SPIKES”
(Tabela 1), os passos para se fazer uma adequada comunicação de más notícias5,9.

Considerações finais
Ao iniciar uma comunicação de más notícias, certifique-se de que todas as in-
formações estão corretas, revise prontuário e exames. Separe um lugar e tempo
adequados, e dê atenção total ao seu paciente. O ideal é já ter uma boa relação
médico-paciente de confiança, o que muitas vezes não é possível quando é a pri-
meira vez que tal paciente tem contato com o profissional. Sabendo que o paciente
e a família provavelmente já têm uma opinião sobre o que está acontecendo, você,
como profissional, deve sempre dar a palavra a eles ao iniciar qualquer conversa.
Esse ato cria um primeiro vínculo com o paciente e familiares que se sentirão
acolhidos por um profissional que os ouve. Além disso, leva a uma compreensão
do profissional de como está o entendimento da doença e sofrimento por parte do
paciente/familiar até o presente momento. Isso facilita a melhor escolha das pró-
ximas palavras que o profissional terá a dizer. Você pode verificar o que o paciente
já sabe, e o que o preocupa. Em alguns casos, o paciente não deseja saber todas
as informações relacionadas a sua doença. Por isso, é recomendado perguntar se
quer saber de todos os detalhes, ou se prefere que as informações sejam dadas a
um parente próximo.
Ao dar a notícia é importante o máximo de clareza para explicar termos técni-
cos de diagnóstico e prognóstico. Para tanto, o profissional deve sentir-se seguro e
apto naquela área de conhecimento médico.
Dada a notícia, o profissional de saúde deverá exercer empatia com as emoções
geradas no paciente e familiares. Finalmente, deve realizar, junto ao paciente, um
plano estratégico para tratamento dos sintomas e da doença, sempre reforçando
que a equipe manterá o acompanhamento do paciente para evitar sentimentos de
abandono.

157
Bioética e Humanização em Oncologia

Tabela 1. Protocolo SPIKES⁷


Protocolo
SPIKES Estratégias Exemplos
Setting up Use um espaço privado e calmo “Estamos aqui hoje para discutir
Preparando-se onde todos podem sentar-se. Deixe os resultados dos exames.”
para o encontro lenços disponíveis e considere quem “Antes de começar, você
deve estar presente de acordo com tem outras preocupações ou
as preferências do paciente. questões para discutir?
Prepare a equipe e revise o
planejamento das informações com
objetivo de construção de vínculo e
de envolver o paciente no processo.

Perception Avalie o entendimento do “O que outros médicos disseram


Percebendo paciente: determine as lacunas de para você até agora?”
o paciente informações e expectativas. Corrija “Alguns pacientes têm algumas
possíveis informações erradas. Opte ideias sobre o que pode estar
pela escuta ativa, com empatia provocando esses sintomas.
e validação de emoções. Você suspeita alguma coisa?”

Invitation Determine quais informações e como “Você está pronto para falar sobre isso?”
Convidando o paciente quer saber. Reconheça “Você e sua família querem conversar
para o diálogo que as necessidades de informações agora sobre as notícias sérias?”
mudam ao longo do tempo. “Como você gostaria que lhe contasse
os resultados: detalhadamente ou
um resumo do que achamos?”

Knowledge Considere “declarações de aviso”. Use “Infelizmente tenho notícias


Transmitindo poucas informações de cada vez, com preocupantes para você.”
as informações linguagem compreensível e de forma “A biópsia voltou e há algumas
pausada. Cheque o entendimento após informações importantes
cada informação e repita, se necessário. que precisamos discutir.”
Você pode desenhar diagramas e “A patologia mostrou que o câncer
escrever detalhes. Use o silêncio para espalhou na parede do intestino.”
dar ao paciente tempo de responder.

Emotions Valide e acolha emoções fortes. “Essas informações não


Expressando Promova um senso de suporte. são fáceis para você.”
emoções “Eu também estou triste. E tinha
esperanças que não fosse câncer.”
“Você poderia me falar como
está se sentindo?”
“É comum e esperado que
você se sinta assim.”

Strategy and Discuta opções de tratamento. “Nós temos opções de tratamento


summary Avalie o entendimento e que podemos discutir com
Resumindo e futuras necessidades. você no momento devido.”
organizando Reforce o não abandono e “Você poderia nos expressar o que você
estratégias deixe a equipe à disposição. entende de tudo o que conversamos?”
“Nós vamos estar com você sempre.”

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Capítulo 9 | Como dar más notícias em oncologia

Referências bibliográficas
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