Bioética - Miolo
Bioética - Miolo
Bioética - Miolo
e Humanização
em Oncologia
Organizador
Marcos Santos
Colaboradores
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B512
Inclui índice
ISBN: 978-85-352-8901-5
1. Oncologia. 2. Bioética. I. Santos, Marcos.
Marcos Santos
Médico radioterapeuta, chefe do Serviço de Oncologia/Radioterapia, Hospital Universitário
de Brasília. Mestre em Altas Tecnologias em Radioterapia pela Universidade de Murcia,
Murcia, Espanha. Especialização em Economia da Saúde pela Université Paris Descartes, Paris,
França. Doutor em Bioética – Cátedra UNESCO de Bioética – Universidade de Brasília (UnB).
Colaboradores
Volnei Garrafa
Doutor em Ciências pela Universidade Estadual Paulista (UNESP), com p ós-doutorado em
Bioética (Università La Sapienza, Roma/Itália). Coordenador da Cátedra UNESCO e Programa
de Pós-Graduação em Bioética da Universidade de Brasília. Fundador e atual diretor da Área
Internacional da Rede Latino-Americana e do Caribe de Bioética da UNESCO – Redbioética.
Membro do International Bioethics Committee (IBC) da UNESCO/Paris (2010-2017). Presidente
da International Association for Education in Ethics (IAEE), Pittsburgh/EUA (2017-2020).
Sumário
1
Princípios básicos de bioética
Marcos Santos
Contexto histórico
No início da década de 1930, o U.S. Department of Health, equivalente americano ao
Ministério da Saúde brasileiro, patrocinou, numa pequena cidade do Alabama, no
sudeste do país, um estudo que visava acompanhar pacientes com sífilis. O objetivo
era a determinação do curso natural da doença para um melhor conhecimento de
suas temíveis sequelas de largo prazo. Tuskegee, de população majoritariamente
negra, foi o palco da investigação. Em torno de 400 afro-americanos infectados in-
tegraram a coorte, enquanto outros 200 compuseram o grupo controle. Tudo trans-
corria normalmente, com coletas de informação de alta relevância científica, até
que, no início da década de 1950, a penicilina, droga descoberta alguns anos antes,
mostrou-se eficaz no tratamento do Treponema pallidum, agente causador da patologia
estudada. De disponibilidade massiva e de custo acessível, tal droga, surpreendente-
mente, não foi oferecida aos participantes do estudo. Nem mesmo a eles foi disponi-
bilizada a informação de que existiria tratamento para aquela temível enfermidade.
Ao contrário, em 1969, um comitê nomeado especialmente para a avaliação dessa
questão definiu que o procedimento investigacional deveria ser continuado e o trata-
mento, deliberadamente, negado. Apenas em 1972, quando informações referentes
ao estudo foram divulgadas pelo periódico The New York Times, é que se optou, dada
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Bioética e Humanização em Oncologia
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Capítulo 1 | Princípios básicos de bioética
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Bioética e Humanização em Oncologia
O Governo dos Estados Unidos da América, por sua vez, em reação à reper-
cussão negativa do estudo de Tuskegee, criou, em 1974, o “National Commission
for the Protection of Human Subjects of Biomedical and Behavioral Research”
(NCPHS). Tal comissão, após quatro anos de trabalho, elaborou o que ficou conhe-
cido como o Relatório Belmont9. E três eram os princípios que deveriam, a partir
daquele momento, guiar os rumos da Bioética Clínica, aplicados à pesquisa e à
prática médica em geral:
• Respeito pelo sujeito: ou seja, indivíduos devem ser
tratados como agentes autônomos, e pessoas com autonomia
comprometida devem ser objeto de proteção;
• Beneficência: entendia que indivíduos de pesquisa ou sujeitos de
um ato médico devem ser protegidos de qualquer dano e, além disso,
esforço deve ser dirigido no sentido do seu bem-estar. Trata-se de
uma derivação do princípio hipocrático “primum non nocere”, ou seja:
acima de tudo, não causar dano. Ficava, no entanto, plantada a
semente do entendimento de que “algo mais” precisava ser feito;
• Justiça: uma injustiça ocorre quando um benefício que é devido a
alguém lhe é negado sem uma justificativa adequada. Ser justo é dar (ou
deixar de dar) a cada um o que lhe é de direito. Várias teorias filosóficas
foram construídas na tentativa de esclarecer o que é justo, e trata-se,
ainda hoje, de um tema em aberto. Cada caso é passível de discussão.
14
Capítulo 1 | Princípios básicos de bioética
15
Bioética e Humanização em Oncologia
BENEFÍCIO E DANO
Os médicos devem, antes de qualquer outro objetivo, cuidar efetivamente dos seus
pacientes15. Trata-se de uma preocupação presente na prática desses profissionais o
juramento de Hipócrates: “aplicarei os regimes terapêuticos para o bem do doente
segundo o meu poder e entendimento, nunca para causar dano ou mal a alguém”16.
Segundo a DUBDH, em seu artigo 4, os benefícios diretos e indiretos a paciente,
sujeitos de pesquisa e outros indivíduos afetados devem ser maximizados, e qualquer
dano possível a tais indivíduos deve ser minimizado, quando se trate de aplicação e
do avanço do conhecimento científico, das práticas médicas e tecnologias associa-
das13.
De inspiração, à primeira vista utilitarista, esse princípio também pode ser en-
tendido sob uma ótica não consequencialista, em consonância com a filosofia de
Kant, baseando-se em um dos seus imperativos categóricos: “age de tal maneira que uses
a humanidade, tanto na tua pessoa, como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente
como um fim e nunca, simplesmente, como um meio”17. No contexto da Bioética, a definição
de “minimização de risco” assume importância fundamental, haja vista a estratégia
frequentemente utilizada, descrita na Literatura, de fornecimento de informação
inadequada, objetivando uma maior facilitação da inclusão de pacientes em proto-
colos de pesquisa17,18.
Distinguem-se, segundo Frankena, três níveis de beneficência: o mais baixo, da
não maleficência, ou seja, obrigação de não causar dano. Em segundo lugar, há o
nível da supressão do mal já instalado, seguido pelo impedimento do mal. Finalmen-
te, o nível mais alto é o de proporcionar o bem19. No contexto da prática clínica, a
beneficência implica a cura, se esta é possível, o arrefecimento da enfermidade, o
alívio dos sintomas e, permanentemente, os cuidados apropriados. Deve, idealmen-
te, superar a simples supressão ou prevenção do mal. Na medida do possível, deve
aportar um benefício mensurável para o paciente20.
É importante observar que, em todos os tratamentos médicos, assim como na
investigação clínica, a ocorrência do mal fortuito é um risco onipresente. A proteção
absoluta contra esse risco não é atingível, mesmo em condições ideais. A sanção mo-
ral para a aceitação desse risco provém da probabilidade de obtenção de benefício
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Capítulo 1 | Princípios básicos de bioética
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Capítulo 1 | Princípios básicos de bioética
COMPARTILHAMENTO DE BENEFÍCIO
Atesta o artigo 15 da DUBDH que os benefícios de qualquer pesquisa científica e suas
aplicações devem ser compartilhados com a sociedade como um todo e, no âmbito
da comunidade internacional, em especial com países em desenvolvimento. Para dar
efeito a esse princípio, os benefícios podem assumir quaisquer das seguintes formas:
ajuda especial e sustentável e reconhecimento aos indivíduos e grupos que tenham
participado de uma pesquisa; acesso a cuidados de saúde de qualidade; oferta de no-
vas modalidades diagnósticas e terapêuticas ou de produtos resultantes da pesquisa;
apoio a serviços de saúde; acesso ao conhecimento científico e tecnológico; facilida-
des para geração de capacidade em pesquisa; e outras formas de benefício coerentes
com os princípios dispostos na presente Declaração. Os benefícios não devem, tam-
bém, constituir indução inadequada para estimular a participação em pesquisa13.
A investigação científica vem se desenvolvendo progressivamente desde o sé
culo XVIII, quando era uma atividade amadora. Evoluiu para uma prática universi-
tária no século XIX e, finalmente, industrial a partir do quarto final do século XX. A
maioria das populações, nos países pobres, ainda tem muita dificuldade de acesso às
mínimas condições para sua sobrevivência e dignidade. Investimentos na promoção
e acesso a farmacoterapias, por parte das populações desprivilegiadas, é quase que
não existente, implicando no fato de que quase 70% de todas as despesas médicas
estão sob a responsabilidade do indivíduo e não do Estado38. No contexto da inves-
tigação clínica, o financiamento privado supera largamente o investimento público,
o que levou a uma diminuição do poder regulador estatal na definição de políticas
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Bioética e Humanização em Oncologia
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Capítulo 1 | Princípios básicos de bioética
DECLARAÇÃO DE HELSINKI
A Associação Médica Mundial, congregação que, atualmente, representa 102 Asso-
ciações Médicas Nacionais, fundada em 1947, em Paris, e sediada, desde 1974, em
Ferney-Voltaire, nos Alpes Franceses, elaborou, em reunião na Finlândia, em 1964,
a conhecida e muito citada “Declaração de Helsinki”. Trata-se de uma declaração
de princípios éticos cujo objetivo é o fornecimento de recomendações aos médicos
(e demais participantes de pesquisas clínicas) quando os investigados são seres hu-
manos. Ali, ficou definido, por exemplo, que a missão do profissional de saúde é
preservar o bem-estar do ser humano. Este deve agir unicamente no interesse do seu
paciente. E que os interesses da ciência e da sociedade não devem, jamais, prevalecer
sobre os interesses do sujeito de pesquisa4. Esse documento foi, durante muitos anos,
considerado o principal documento normativo internacional da ética em pesquisa42.
No final dos anos 1990, uma série de estudos avaliando a eficácia da zidovudina
(AZT) na prevenção da transmissão vertical do vírus da imunodeficiência humana
(HIV) abalou o mundo da Bioética. A polêmica centrava-se na utilização de estu-
do placebo-controlado quando já se conhecia um tratamento efetivo, disponível no
mundo desenvolvido. A justificativa para a execução do referido estudo estava no
custo do tratamento que havia se mostrado efetivo em ensaio anterior, financiado
pelo NIH (Instituto Nacional de Saúde americano, em sua sigla em inglês) nos Esta-
dos Unidos e na França. Esse ensaio havia sido interrompido precocemente devido
à demonstração de uma impressionante redução na taxa da transmissão vertical do
HIV com o uso do AZT, em comparação ao placebo (23 vs. 8%)43. O alto custo do
esquema utilizado impossibilitava, segundo alguns, a aplicação em larga escala no
mundo em desenvolvimento. Objetivava-se, agora, o teste da eficácia de esquemas
com menores doses de AZT. Mantinha-se, no entanto, o grupo controle em trata-
mento com placebo, visando a resultados mais rápidos e menos custosos44,45.
Encaixa-se aqui, de maneira perturbadora, o argumento utilitarista de que ne-
nhum desses pacientes, na ausência do estudo, poderia se beneficiar do tratamento,
enquanto, na presença deste, pelo menos uma parte dos sujeitos de pesquisa pode-
ria colher alguma vantagem. O problema é que a vantagem que estará disponível
para os pacientes dos países ricos é desproporcionalmente maior. As populações
dos países pobres não têm nem terão, depois de findo o estudo, acesso a cuidados
básicos de saúde, poder político ou entendimento da pesquisa, ou seja, baixo en-
tendimento dos riscos envolvidos. O compartilhamento dos benefícios é, então,
injusto. Há, pois, exploração46.
21
Bioética e Humanização em Oncologia
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Capítulo 1 | Princípios básicos de bioética
DECLARAÇÃO DE CÓRDOBA
Como resposta à reformulação da Declaração de Helsinki, ocorrida em 2008, na
Coreia do Sul, a Red Latino-Americana da Bioética, por meio da Declaração de
Córdoba5, publicada em 14 de novembro de 2008, propõe:
• Rechaçar a 6ª versão da Declaração de Helsinki, aprovada na Coreia
do Sul, em outubro de 2008, pela Associação Médica Mundial.
• Propor, como marco de referência da normativa ética, os
princípios contidos na Declaração Universal sobre Bioética
e Direitos Humanos promulgada por aclamação em outubro
de 2005, na assembleia geral da UNESCO13.
E, voltando-se à DUBDH, vê-se que tal Declaração almeja um ambicioso concei-
to de compartilhamento de benefícios que vai além do compartilhamento direto com
os executores de determinada pesquisa. A DUBDH se baseia em marcos de referência
anteriores, como a Declaração Universal de Direitos Humanos50, que, em seu artigo
27, atesta que todo ser humano tem o direito de participar livremente da vida cultural
de sua comunidade, de fruir das artes e de participar do progresso científico e de seus
benefícios. Assim, todo ser humano, participante ou não da ciência, pesquisa ou inova-
ção, tem o direito inato de compartilhar dos benefícios do avanço científico51.
23
Bioética e Humanização em Oncologia
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Capítulo 1 | Princípios básicos de bioética
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Bioética e Humanização em Oncologia
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2
Capítulo 2 | Histórico e importância da Declaração Universal sobre Bioética e Direitos
Humanos da UNESCO para o desenvolvimento da bioética no século XXI
Histórico e importância da
Declaração Universal sobre
Bioética e Direitos Humanos da
UNESCO para o desenvolvimento
da bioética no século XXI
Volnei Garrafa
Introdução
O ano 2005 foi especial para a Bioética. A aprovação e a homologação da Declara-
ção Universal sobre Bioética e Direitos Humanos (DUBDH), durante a 33a.
Conferência Geral da United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization (Or-
ganização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura – U NESCO),
celebrada em Paris, em 19 de outubro de 2005 , significaram, na prática concreta,
1
27
Bioética e Humanização em Oncologia
28
Capítulo 2 | Histórico e importância da Declaração Universal sobre Bioética e Direitos
Humanos da UNESCO para o desenvolvimento da bioética no século XXI
mais equilibrado, evitando, por um lado, abusos em nome da ciência e, por outro,
proibições descabidas3. Com uma base teórico-conceitual em construção desde o
início dos anos 1970, esse novo “território do saber” – na expressão do filósofo
italiano Francesco Bellino4 – passou a fornecer um rico e diversificado arsenal de
ferramentas teóricas e metodológicas capacitadas a contribuir para a resolução mais
adequada dos conflitos. Sua utilização metódica e aplicada, sustentada no diálogo,
na argumentação e na razão, passou a auxiliar de modo decisivo na construção
de consensos ou, pelo menos, no alcance de respostas eticamente aceitáveis e mais
equilibradas para os conflitos morais constatados nas sociedades hodiernas, princi-
palmente aqueles relacionados com o acelerado desenvolvimento da ciência.
Apesar de algumas controvérsias que deixarei de lado neste escrito, o neologismo
“bioética” surgiu e foi acolhido no mundo universitário e acadêmico no início dos
anos 1970 nos Estados Unidos, com o significado amplo e literal de “ética da vida”.
Gradativamente, no entanto, passou, na prática, a receber outra conotação, reduzi-
da aos assuntos biomédicos e biotecnológicos, característica com a qual acabou sen-
do reconhecido pelos cinco continentes, mais direcionado à relação dos profissionais
de saúde com seus pacientes e ao controle ético das pesquisas desenvolvidas com se-
res humanos. No entanto, passada a fase inicial de consolidação e reconhecimento,
que se estendeu até o final do século XX, estudiosos da área começaram a debater a
necessidade de a base epistemológica e de ação da bioética ser ampliada para outros
campos, especialmente o sanitário (direito à saúde, acesso a novos medicamentos...),
o social (exclusão, analfabetismo, discriminação, estigma...) e o ambiental (direito à
água e oxigênio limpos, respeito à biodiversidade, por exemplo).
As pessoas menos familiarizadas com a bioética poderão se perguntar sobre as
razões da construção de novos referenciais de sustentação conceitual para a discipli-
na, se, ao que parece, pelo menos aos olhos desavisados, ela já estaria definida desde
a sua criação, por Van Rensselaer Potter5, e da adequação dos chamados “quatro
princípios de Georgetown” (respeito à autonomia, não maleficência, beneficência e
justiça) como sua ferramenta metodológica hegemônica que passou a ser conhecida
como “Principialismo”6.
Imediatamente após a apresentação do livro que deu origem à bioética – Bioe-
thics, bridge to the future7, Potter teve sua proposta original utilizada e modificada por
outros pesquisadores, com um escopo essencialmente biomédico aplicado, como já
foi mencionado, principalmente às situações relacionadas com problemas na relação
profissional-paciente e dos investigadores e empresas com os sujeitos participantes
29
Bioética e Humanização em Oncologia
de pesquisas clínicas. Diversamente, seu criador imaginava a bioética com uma visão
de “ponte”, de uma ética que se relacionava com os fenômenos da vida humana no
seu mais amplo sentido, incorporando não somente temas da área médica e tam-
bém social, mas especialmente ambientais ligados à sustentabilidade do planeta.
Um pouco mais adiante, em 1988, para renovar e reforçar suas ideias, ele passou a
denominá-la de “Bioética Global”8.
No início dos anos 1990, no entanto, começaram a surgir críticas ao principia-
lismo e à pretensa universalidade de seus princípios a partir, principalmente, da ne-
cessidade que fossem respeitados os diferentes contextos sociais e culturais existentes
mesmo em um mundo globalizado, mas diversificado e, por extensão, as próprias
interpretações morais autóctones dadas aos diferentes conflitos ou problemas neles
registrados. Vozes discordantes passaram, então, a se manifestar nos próprios Esta-
dos Unidos9,10, na Europa11 e na América Latina12-15.
30
Capítulo 2 | Histórico e importância da Declaração Universal sobre Bioética e Direitos
Humanos da UNESCO para o desenvolvimento da bioética no século XXI
31
Bioética e Humanização em Oncologia
esses temas está, sem dúvida, o da humanização, do qual trata a presente obra.
Entre os 15 princípios que compõem parte dos 28 artigos da DUBDH, vários deles
têm relação direta com o assunto: respeito pela dignidade humana e os direitos hu-
manos (art. 3); respeito pela vulnerabilidade humana e pela integridade individual
(art. 8); igualdade, justiça e equidade (art. 10); não discriminação e não estigmatiza-
ção (art. 11); responsabilidade social e saúde (art. 14).
AU
NESCO, seus Comitês e as três
Declarações Internacionais
A UNESCO dispensou mais de dois anos de intensas discussões até alcançar um do-
cumento final que satisfizesse os interesses e as expectativas das diferentes linhas de
pensamento, muitas vezes conflitivos, além de política e culturalmente antagônicos
entre os diferentes países localizados em regiões geográficas remotas e com hábitos
diversos. A homologação da DUBDH se deu por aclamação, o que significa ter sido
referendada unanimemente pelos 191 países que na época integravam formalmente
as Nações Unidas. O percurso de sua construção, no entanto, foi longo e penoso,
entre avanços e retrocessos, passando por diversas versões preliminares coordena-
das pelo International Bioethics Committee (Comitê Internacional de Bioética – IBC) da
Organização, versões estas que posteriormente tinham ainda que passar pelo crivo
político decisório do Intergovernmental Bioethics Committee (Comitê Intergovernamental
Internacional de Bioética – IGBC).
Tanto o IBC como o IGBC foram criados em 1993, quando a U NESCO era
dirigida pelo geneticista espanhol Federico Mayor, o qual, pela própria formação aca-
dêmica, entendeu como poucos a necessidade de que algum dos organismos da ONU
tomasse a frente com relação ao indispensável estabelecimento de limites e controle no
campo da engenharia genética, que começava freneticamente a despontar com ainda
maior vigor naquele momento histórico. A medida foi vista com reservas (e algum ciú-
me...) pela Organização Mundial da Saúde (OMS), que julgava ter monopólio sobre a
área. Contudo, sem hesitar, a UNESCO foi em frente na empreitada.
O IBC é formado por 36 membros rigorosamente selecionados, com currículos
e perfis científicos sólidos e internacionalmente reconhecidos. O mandato desses
membros é de quatro anos. Já o IGBC é composto por dirigentes diplomáticos e
políticos de 36 diferentes países, que se revezam na sua composição. Enquanto o
primeiro é consultivo e operativo, o segundo é decisivo na revisão das proposições,
32
Capítulo 2 | Histórico e importância da Declaração Universal sobre Bioética e Direitos
Humanos da UNESCO para o desenvolvimento da bioética no século XXI
uma vez que representa as posições oficiais dos países-membros em temas para eles
muitas vezes delicados sob os mais variados ângulos (técnico, cultural, religioso, etc.).
Voltando historicamente à década de 1990, esses dois comitês foram inicial-
mente responsáveis pela Declaração Universal sobre o Genoma Humano e
os Direitos Humanos19, adotada também por unanimidade na 29ª Conferência
Geral da U NESCO realizada, sempre em Paris, em 11 de novembro de 1997. Tal
documento internacional determinou a importante diferença entre descoberta e
invenção, impedindo que pessoas, empresas ou mesmo países patenteassem com
objetivo de lucro as sequências decifradas de DNA (ácido desoxirribonucleico) que
estavam naquele momento sendo pioneiramente decifradas. A diferença exposta na
Declaração é sutil: descoberta é tudo aquilo que está na natureza e, portanto, não
pode ser patenteado. E invenção, por outro lado, é o produto de pesquisas e trabalho
científico desenvolvido a partir de unidades naturais e por isso sim pode ser paten-
teado. O documento, portanto, determinou que o Genoma Humano é propriedade
única do próprio ser humano, seu portador e componente individual, em última
instância, da própria espécie humana.
Logo a seguir, acompanhando a cronologia de atividades da UNESCO nes-
se campo, os dois Comitês elaboraram a Declaração Internacional sobre os
Dados Genéticos Humanos20, aprovada sempre por unanimidade e aclamação,
agora em 16 de outubro de 2003, por ocasião da sua 32ª Conferência Geral. Essa
Declaração determinou, de modo inédito, o direito e a obrigatoriedade de manuten-
ção da confidencialidade dos dados genéticos de cada indivíduo. Tal medida definiu
que os dados genéticos de cada pessoa são de restrita propriedade dela mesma,
impedindo, por exemplo, que empresas inescrupulosas preocupadas exclusivamente
com lucros possam estabelecer restrições e mesmo impedimentos na seleção de tra-
balhadores a partir de características genéticas que possam no futuro virem propor-
cionar o desenvolvimento de doenças (de tratamento geralmente longo e oneroso...)
no seu portador. Em outras palavras, a Declaração impede que os avanços alcança-
dos pela ciência, em vez de incluir pessoas no mercado de trabalho, passem a ser
usados com objetivos exatamente opostos, de alijar, de excluir do sistema produtivo
laboral os indivíduos portadores de alterações genéticas.
Para terminar o presente tópico, é indispensável registrar que as Declarações
discutidas aqui não têm o poder de lei. São consideradas, para fins práticos, “Nor-
mas não Vinculantes”, ou seja, apesar de não terem poder legal na relação com as
legislações dos países que as homologaram, desfrutam no contexto internacional das
33
Bioética e Humanização em Oncologia
nações de um inegável poder moral. Além disso, vêm servindo como luz conduto-
ra segura desses países na elaboração de suas leis internas relacionadas com os mais
variados e delicados temas aqui tratados.
34
Capítulo 2 | Histórico e importância da Declaração Universal sobre Bioética e Direitos
Humanos da UNESCO para o desenvolvimento da bioética no século XXI
35
Bioética e Humanização em Oncologia
Após três intensos dias de discussões, o avanço foi nulo, não tendo sido logrado
alcançar consenso sequer para redigir uma única linha, em uma clara divisão entre
as diferenças existentes.
A postura dos países ricos do hemisfério norte se contrapunha às posições dos
países pobres e em desenvolvimento do hemisfério sul. Na essência, o que estava em
luta era: a posição mais conservadora e mercadológica dos países centrais, preocu-
pados principalmente com as questões biomédicas, seus avanços e a questão do con-
trole ético das pesquisas com seres humanos, tema especialmente caro aos ricos con-
glomerados internacionais de medicamentos; e a posição mais aberta e generosa dos
países periféricos do sul, que defendiam uma proposta que não excluía a anterior,
mas incluía também as questões persistentes constatadas no cotidiano das pessoas
pobres e excluídas do processo desenvolvimentista mundial. No final, ficou decidido
pelo menos que a Declaração não iria comportar uma definição de Bioética e que
esta deveria ser desenvolvida individualmente por cada país ou região.
Esse encaminhamento não deixou de ser uma primeira vitória dos países perifé-
ricos, pois significava, em outras palavras, que a bioética não é única e que não existe
uma só Bioética. E que, nesse sentido, na busca de aproximações possíveis ao seu
conceito, esse não pode prescindir de considerar o respeito à pluralidade moral de
cada cultura. Dessa forma, evitou-se para o futuro a imposição de um imperialismo
moral direcionado do centro à periferia do mundo, das nações mais fortes em relação
às mais frágeis. O resultado da reunião, no entanto, gerou muita insegurança entre os
países participantes no sentido de que a construção da Declaração poderia ser fadada
ao fracasso caso não se alcançasse pelo menos uma base inicial para dar o rumo das
discussões na segunda reunião, prevista para junho. Outro ponto positivo alcança-
do pelos países periféricos foi a proposta vencedora de que se criasse uma comissão
com membros de diferentes países, que teria como referência os drafts anteriores e
as discussões desenvolvidas na primeira reunião, incumbida de elaborar um novo
documento básico. Para coordenador do grupo foi eleito o embaixador do Uruguai.
A 2ª Reunião dos Experts Governamentais, decisiva para o alcance do objetivo
central de todo o processo aqui apresentado, aconteceu entre os dias 20 e 24 de
junho de 2005. Nessa segunda etapa, os ânimos estavam mais serenados, com cada
lado cedendo um pouco na busca de um documento que equilibrasse, na medida
do possível, as posições em confronto. Nessa reunião ficou ainda mais evidenciada
a união de pensamento, das intervenções e especialmente de votos nas decisões sub-
metidas a esse tipo de processo, entre os países da América Latina, África e Índia.
36
Capítulo 2 | Histórico e importância da Declaração Universal sobre Bioética e Direitos
Humanos da UNESCO para o desenvolvimento da bioética no século XXI
As principais diferenças gerais se davam com relação à inclusão (ou não) de certos
temas polêmicos como a solidariedade entre as nações e os benefícios compartilha-
dos com relação aos progressos nas pesquisas, entre outros... O artigo 14, que trata
da Responsabilidade Social e Saúde, foi objeto do embate mais difícil, uma vez que
em países como os Estados Unidos o acesso aos serviços de saúde não constitui um
direito (humano) das pessoas, mas um bem de mercado que possa ser comprado por
quem tenha recursos financeiros. Finalmente, vencidos todos os 28 artigos, um a um,
palavra por palavra, linha após linha, parágrafo após parágrafo, o formato final da
DUBDH foi estabelecido, com a concordância de todos os países presentes. Estava
felizmente salva a Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos.
Seu teor final foi levado à homologação na Conferência Geral da UNESCO
de outubro/2005, como já expressado no início do capítulo, e incorporou definiti-
vamente à agenda bioética do século XXI, além dos temas biomédicos e bio-
tecnológicos, já contemplados desde os debates iniciais, também as questões
sanitárias, sociais e ambientais, fato de grande interesse para as nações do
hemisfério sul do planeta, entendido este como um conceito geopolítico e não mera
e exclusivamente geográfico. Assim, a luta dos países latino-americanos, secundada
pela quase totalidade das nações africanas, por diversos países árabes e pela Índia
e outras nações do sul da Ásia, passou a fazer parte da nova pauta internacional da
bioética, politizando definitivamente seus rumos.
A reunião final de 19 de outubro de 2005, coincidindo com a 33ª Conferência
Geral da U NESCO, serviu festivamente apenas para a homologação do documento
e uma grande confraternização entre os atores que participaram da difícil mas gra-
tificante caminhada em prol de um mundo melhor e mais justo.
37
Bioética e Humanização em Oncologia
nos quais a bioética vem falhando (ou não se manifestando como deveria...); 3. Me-
didas e mudanças necessárias para enfrentar os antigos e novos problemas.
O trabalho começa tomando como referência algumas questões negativas que
então vinham acontecendo no contexto global, como as tentativas (e o êxito...) dos
grandes conglomerados farmacêuticos internacionais – infelizmente, com apoio da
OMS e da Associação Médica Mundial (World Medical Association – WMA) – em in-
troduzir profundas mudanças no conteúdo da Declaração de Helsinque, documento
tido até então como de reconhecido valor moral com relação ao controle ético das
pesquisas com seres humanos em todo o mundo e contra os quais nos manifestamos
de modo veemente por meio de vários artigos publicados em periódicos científi-
cos22-25. Nesse sentido, o artigo anteriormente comentado defendia a necessidade de
que os países componentes do sistema das Nações Unidas passassem a fazer uso mais
firme e crescente da DUBDH para enfrentar esse e outros problemas que foram
tratados no tópico seguinte.
O segundo ponto levantou algumas questões nas quais a bioética vinha falhando
ou se omitindo e sobre as quais nossa equipe de pesquisadores da Cátedra UNESCO
de Bioética da Universidade de Brasília começou nos anos seguintes a se dedicar
criticamente, entre as quais: comercialização dos estudos clínicos e das revisões éti-
cas das pesquisas com seres humanos26; consentimento informado e vulnerabilidade
social27,28; benefícios realmente compartilhados29; responsabilidade social e saúde30;
conflitos de interesse.
O terceiro e último tópico do artigo, por sua vez, apresentava algumas inicia-
tivas que se faziam necessárias para o enfrentamento dos problemas apontados:
utilização efetiva dos princípios e referenciais da DUBDH apresentados e defen-
didos no texto; construção de novos marcos internacionais de proteção humana;
elaboração, revisão e/ou reforço de normas nacionais de controle e dos comitês
de bioética e de ética em pesquisa; e o estabelecimento de referenciais confiáveis e
equilibrados na construção de novo discurso e prática bioética, incluindo: o apro-
fundamento de questões como a busca de diálogo exaustivo entre os participantes
de um debate antes da tomada de decisões; o uso de argumentação coerente nos
embates discursivos; a utilização da racionalidade como objeto de reflexão que
torna os discursos éticos mais harmônicos e equilibrados; a coerência na busca de
respostas moralmente aceitáveis e de aplicação prática; a procura exaustiva da difí-
cil construção de consensos; e, por fim, após esses consensos serem logrados, haver
disposição para a tomada de decisões.
38
Capítulo 2 | Histórico e importância da Declaração Universal sobre Bioética e Direitos
Humanos da UNESCO para o desenvolvimento da bioética no século XXI
39
Bioética e Humanização em Oncologia
plo, passou a ser de fato aceita e citada com regular frequência somente a partir dos
anos 1970, ou seja, quase três décadas depois de sua promulgação. A Declaração de
Bioética da U NESCO, mesmo sendo uma declaração setorial com menor impac-
to e abrangência do que a acima registrada, apenas completou a primeira década
de vida; mas mesmo assim seus resultados já começam gradualmente a aparecer,
conforme foi visto nas reflexões expostas neste capítulo. O conjunto de todos esses
movimentos vem fazendo os países e seus organismos representativos, nos três níveis
político-administrativos (executivo, legislativo e judiciário), mais e mais assumirem
o compromisso de utilizar seus princípios e referenciais, incorporando-os às suas
práticas públicas.
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41
Capítulo 3 | Pesquisa clínica atual – Um olhar da (bio)ética
3
Pesquisa clínica atual –
Um olhar da (bio)ética
Karla Patrícia Cardoso Amorim
Introdução
O incentivo e o apoio à pesquisa clínica são de suma importância, sobretudo, em
se tratando da oncológica, face o alerta e as estimativas da União Internacional
Contra o Câncer (UICC), para um aumento de 50% no número de novos casos de
câncer e o dobro do número de mortes até 2020. No cenário brasileiro, esse desafio
apresenta-se maior, visto que a sobrevida em câncer fica em torno de 2 a 4 anos,
enquanto nos países desenvolvidos esse índice sobe de 12 a 16 anos1.
Entretanto, como se sabe, a ciência, ao longo dos tempos, proporcionou um
acúmulo de conhecimentos, os quais, necessariamente, não se pautaram por um
progresso ético/moral. E esse descompasso, cada vez mais acentuado, repercute ne-
gativamente nas diferentes esferas da vida, e, nesse caso em particular, na atividade
de pesquisa.
A discussão acerca da ética assume, no atual contexto, uma elevada significação,
considerando sua importância diante de uma realidade em que se observa, con-
comitantemente, um avançado desenvolvimento tecnocientífico, convivendo com
uma diversidade de problemas que se apresentam no modelo de sociedade em que
vivemos, tais como: doenças emergentes e persistentes; fome; miséria; violência; ra-
cismo; exclusão social; desrespeitos ao ser humano e ao meio ambiente, entre tantos
43
Bioética e Humanização em Oncologia
outros, que atentam contra a vida. Assim, essa tensão entre progresso científico e
desenvolvimento social traz para o cerne da discussão a ética, tornando tal reflexão
indispensável à formação e à prática em pesquisa.
A ética deve ser incorporada como parte indissociável do saber científico, tendo-
-se a consciência de que ela é a pedra angular de todo o processo para a tomada de
decisões, escolhas e ações daqueles envolvidos nas atividades científicas. O intuito é
buscar, primordialmente, um equilíbrio entre o processo de investigação científica e
a proteção das pessoas e sociedades que dela participam, procurando, nesse curso,
promover o exercício do respeito e da responsabilidade em prol de uma melhor qua-
lidade de vida e dignidade para todos. Seria a busca por uma aliança entre a ciência
e a humanidade, como propôs Potter2 na gênese da bioética.
No cenário atual das pesquisas clínicas, é preciso ter a consciência crítica que
tais pesquisas, especificamente os ensaios clínicos na área de medicamentos, tor-
naram-se no final do século passado e início deste, definitivamente, uma atividade
industrial3, em que vem sobressaindo, para o bem e para o mal, o poder do mercado
farmacêutico.
Dessa forma, o objetivo do presente ensaio é refletir de forma crítica a respeito
do papel da (bio)ética, como fio condutor de todas as etapas do processo da pesquisa
clínica, no contexto de poder do mercado e de desigualdade social, e apontar alguns
impasses, lacunas e questões desafiadoras que deverão ser consideradas e enfrenta-
das, com urgência, por todos que buscam desenvolver e garantir a construção de
uma ciência responsável e consciente, como adverte Edgar Morin4.
Assim, por questões didáticas, optou-se por apresentar as questões (bio)éticas
concretas, que ainda necessitam ser enfrentadas no processo de pesquisa, com base
nos seguintes tópicos: a) Concepção e elaboração da pesquisa clínica; b) Avaliação
e acompanhamento por Comitês de Ética em Pesquisa; c) Os participantes das pes-
quisas clínicas; d) A condução da pesquisa; e) Fase pós-estudo e f) Divulgação dos
resultados.
É importante explicitar que o texto tem como base a experiência da autora
como professora-pesquisadora na área da bioética e ex-coordenadora de um Comitê
de Ética em Pesquisa.
44
Capítulo 3 | Pesquisa clínica atual – Um olhar da (bio)ética
45
Bioética e Humanização em Oncologia
cros, fato que, na maioria das vezes, não está em consonância com as necessidades
prioritárias da sociedade. Angell6 alerta “a respeito da prudência de confiar o de-
senvolvimento de medicamento a uma indústria cuja responsabilidade é totalmente
voltada para investidores, e não para o público (exceto no sentido restrito de que os
medicamentos devem ser seguros e eficazes)” ( p. 65). Urge, então, a necessidade de
maior apoio e incentivo à pesquisa clínica por parte do Estado, respeitando uma
lógica conduzida pela ética e não pelo mercado.
46
Capítulo 3 | Pesquisa clínica atual – Um olhar da (bio)ética
Porém, é salutar expor que, nessa mesma perspectiva, sobretudo, deverão en-
contrar-se os membros dos Comitês de Ética. Esses membros devem ser escolhidos
a partir de um perfil adequado, no qual tenham como o norte principal do seu
trabalho a proteção, o respeito à dignidade dos sujeitos e o fomento de uma cultura
ética na pesquisa. Para tanto, deverão estar dispostos a fazer um contínuo exercício
de crítica e reflexão, buscando fugir das acomodações das respostas uniformes, fá-
ceis e prontas das normas, visto que as pesquisas, nas mais diversas áreas do saber,
trazem questões e desafios diversos que não poderão ser analisados em uma única
perspectiva. Por exemplo, uma pesquisa social na área das humanidades não poderá
ser avaliada sob os mesmos parâmetros utilizados para análise de um ensaio clínico
e vice-versa; ou ainda, mesmo em se tratando de ensaios clínicos, cada um terá pe-
culiaridades éticas, os quais deverão ser avaliados com base nas suas características
particulares.
Atualmente, a questão da consolidação do Sistema CEP-CONEP, também, pas-
sa pela necessidade de valorização e reconhecimento desse trabalho nas instituições.
Observa-se que a demanda do número de pesquisa vem aumentando, progressiva-
mente, e que, por exemplo, pela falta de incentivo que um professor de uma Insti-
tuição de Ensino Superior tem, na maioria das vezes, em participar do CEP, ele se
recusa a fazer parte. Esse fato tem resultado em uma escassez de pessoas qualificadas
e com o perfil, dispostas a atuarem como membros.
Essa questão importante pode provocar, assim, uma queda de qualidade ou
atraso das apreciações éticas e início da pesquisa, pois haverá uma demanda muito
maior do que a real capacidade de trabalho do Comitê. Tal situação concreta provo-
ca uma insatisfação generalizada, podendo afetar (e já está afetando) a credibilidade
de um Sistema tão importante para efetivação da ética na pesquisa.
Essa demora, além do razoável, para uma efetiva avaliação ética por questões de
falta de estrutura do Sistema CEP-CONEP é, em si mesma, uma séria questão ética
a ser enfrentada. Atrasar a liberação do início de uma pesquisa ou mesmo demorar
a aprovar uma nova versão de um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido
(TCLE), na área da oncologia, em que o fator tempo é primordial, suscita questões
éticas importantes para o próprio Sistema CEP-CONEP, permitindo críticas e ata-
ques que poderiam ser evitados, ou mesmo nunca serem feitos, se o Sistema funcio-
nasse dentro de uma estrutura adequada à demanda real vigente.
Assim, a infraestrutura e o processo de trabalho do Sistema CEP-CONEP, em
todos os âmbitos, são pontos que merecem ser revistos urgentemente. Há uma ne-
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Bioética e Humanização em Oncologia
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Capítulo 3 | Pesquisa clínica atual – Um olhar da (bio)ética
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Bioética e Humanização em Oncologia
10 -
8-
Número de pacientes
6-
4-
2-
0-
20 40 60 80 100 120
Idade (anos)
Gráfico 1. Distribuição das idades dos pacientes participantes dos ensaios clínicos
no Centro de Pesquisa.
50
Capítulo 3 | Pesquisa clínica atual – Um olhar da (bio)ética
51
Bioética e Humanização em Oncologia
clínicas12. Esse fator, apesar de se fazer mais presente nos países em desenvolvimen-
to13, é encontrado em estudos em todo o mundo14-16. Vale ressaltar que apenas um
único participante apontou o fato de querer contribuir com a ciência, apesar de
estar visando também ao seu próprio bem.
A CONDUÇÃO DA PESQUISA
Durante a condução da pesquisa clínica, vários aspectos deverão ser observados se
se quer falar em ética.
Primeiramente, o rigor científico na elaboração e na condução da pesquisa de-
verá ser um imperativo fundamental. Tal processo deve estar isento de conflitos de
interesse que possam influenciar ou mesmo manipular dados e conduzir a resulta-
dos não verdadeiros, sobretudo, quando se fala em ciência baseada em evidências
científicas.
Em 2005, um artigo publicado na Nature17 divulgou um estudo, em que 35% dos
cientistas norte-americanos declararam ter tido comportamentos e práticas, no míni-
mo, questionáveis nos últimos três anos. Como exemplo do que foi relatado por eles,
tem-se: plágio; utilização de ideia de outras pessoas sem solicitar a devida permissão;
quebra da confidencialidade; falta de importância e desconsideração pelo bem-estar
dos participantes; falsificação, criação e ocultação de dados e modificação do dese-
nho, da metodologia e dos resultados em obediência a pressões dos financiadores.
Outro ponto que merece uma urgente ação contrária é a séria, desumana e
vergonhosa questão de se aceitar um duplo padrão em pesquisa, quando se trata
de países e/ou populações vulneráveis, principalmente, socioeconomicamente. Isso
seria apoiar um relativismo ético, o qual, muitas vezes, pode levar a crueldades e
injustiças, como foi o caso, publicado em 1997 no New England Journal of Medicine,
em que fora revelado o resultado de estudos sobre a transmissão vertical do HIV
realizados com mulheres africanas, por meio de grupos placebo-controlados18. Tal
conduta caracterizou a utilização de um duplo padrão na condução da pesquisa,
pois acredita-se que esse tipo de procedimento jamais teria sido aceito em países
desenvolvidos, a depender do local de sua realização e da vulnerabilidade dos par-
ticipantes envolvidos.
Esse aspecto é algo importante a ser refletido e debatido no âmbito brasileiro,
uma vez que se evidencia um grande número de pesquisas multicêntricas sendo
desenvolvidas no País e no mundo. Nesse sentido, vale ressaltar que, dos estudos
realizados no Centro de Pesquisa em Natal, todos eram patrocinados por indústrias/
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Capítulo 3 | Pesquisa clínica atual – Um olhar da (bio)ética
53
Bioética e Humanização em Oncologia
uma postura radical, porém, a que seria mais correta e pertinente quando se fala
de ética: as funções de pesquisador e cuidador não deveriam ser exercidas pelo
mesmo profissional unicamente.
Acredita-se, também, que a sobreposição da imagem do médico à do pesquisa-
dor pode fazer com que questionamentos não sejam feitos por parte do pacientes21,
motivado pela relação de confiança e reiterada pela autoridade que esse profissional
exerce22,23, aspectos que puderam ser evidenciados na pesquisa empírica realizada.
Nesse cenário, é oportuno refletir, também, além do duplo papel do médico
como clínico e pesquisador ao mesmo tempo, sobre a confusão entre pesquisa e
tratamento24. Chama a atenção o fato de alguns pacientes terem se referido à pes-
quisa que participaram como um tratamento. Transparece que eles não tiveram a
compreensão, no momento em que aceitaram participar, do que significava ver-
dadeiramente participar de um estudo clínico. Esse fato, somado à necessidade da
garantia de uma boa assistência, no caso de diagnóstico de uma doença grave, leva
ao questionamento a respeito da discussão sobre a verdadeira autonomia e a exi-
gência de uma visão mais crítica com relação ao consentimento obtido de pacientes
em situação de vulnerabilidade. A confusão entre tratamento comprovado e droga
experimental, que deveria ser compreendida pelos pacientes de modo explícito por
meio dos TCLE, pode induzi-los a uma participação inapropriada25.
Beauchamp & Childress26 advertem que o termo “pesquisa terapêutica” é poten-
cialmente enganoso, porque, quando mal interpretado, desvia a atenção do fato de
que a pesquisa está sendo conduzida. No referido estudo, por exemplo, semelhante a
outras pesquisas27, os resultados demonstraram que os participantes, de forma geral,
desconheciam o objetivo da pesquisa clínica, os procedimentos metodológicos e seus
efeitos adversos. Associavam os objetivos da pesquisa ao seu tratamento, acreditan-
do, por vezes, que o protocolo de pesquisa fora desenhado baseado nas suas próprias
necessidades e interesses.
O equívoco terapêutico é um indicador de falha relacionada ao consentimento,
em que se instala um processo baseado em uma tomada de decisão inconsciente,
que compromete a avaliação dos riscos e dos benefícios por parte dos pacientes,
podendo alimentar falsas esperanças, fundamentadas em decisões baseadas em cri-
térios incorretos.
É oportuno falar que publicações recentes têm evidenciado o conflito de interes-
ses e os possíveis efeitos adversos decorrentes da crescente ligação dos pesquisadores,
universidades e serviços de saúde com a indústria farmacêutica28.
54
Capítulo 3 | Pesquisa clínica atual – Um olhar da (bio)ética
Assim, defende-se que todas essas questões elencadas devem ser explicitadas
para os pacientes, para que se possa separar aqueles pesquisadores que realizam
uma ciência ética e humana daqueles que colocam interesses individuais e/ou mer-
cantis acima do respeito aos pacientes/participantes.
Quando se trata da questão do consentimento livre e esclarecido, a escolaridade,
aspecto pouco evidenciado no debate sobre pesquisa clínica sobre novos medica-
mentos, torna-se imprescindível, uma vez que esse tipo de estudo é o que, de modo
geral, oferece mais risco aos sujeitos. Dessa forma, seus participantes deveriam ter
um maior grau de consciência, discernimento e esclarecimento ao aceitarem partici-
par de estudos dessa natureza, tendo-se que encarar, imprescindivelmente, o consen-
timento como um processo, e não, somente, como a assinatura de um papel.
A prevalência de participantes de menor escolaridade e de baixo nível socioeco-
nômico está associada à menor capacidade de formular perguntas e menor confian-
ça para realizá-las durante a obtenção do TCLE27, aspectos importantes para que se
possa obter uma verdadeira participação autônoma.
Na realidade tais fatores tornam-se ainda mais preocupantes quando se anali-
sam os TCLE aplicados nos ensaios clínicos de medicamentos. Esses documentos
são longos, apresentando, por vezes, termos complexos que, mesmo um nível edu-
cacional elevado, pode ser insuficiente para que os sujeitos possam compreender os
significados da linguagem médica e técnica28.
A assinatura do TCLE em si é prática garantida, pois todos os entrevistados do
estudo relataram terem-na feito no início da pesquisa. Entretanto, quando indaga-
dos se teria sido fácil entender o que estava escrito no documento, alguns disseram
que sim, muito embora quase todos relataram que precisaram de ajuda. Alguns
dos entrevistados afirmaram ser fácil, mas, quando algumas questões foram apro-
fundadas na entrevista, percebia-se, claramente, que eles tinham facilidade de re-
latar o motivo que os levou a participar da pesquisa, mas não o entendimento da
pesquisa em si.
Pelo relato dos pacientes/participantes, ficou evidente, então, que o limite do
TCLE é outro ponto que merece destaque na presente análise e em todas as refle-
xões, discussões e práticas que envolvam a ética na pesquisa clínica, tendo em vista,
principalmente, o fato de que a maioria dessas reflexões, discussões e práticas centra
suas observações e críticas no debate sobre o imprescindível respeito à autonomia,
via um consentimento efetivo26. Observa-se, entretanto, que, na realidade concre-
ta, os consentimentos têm ficado no âmbito da informação e assinatura, distantes,
55
Bioética e Humanização em Oncologia
56
Capítulo 3 | Pesquisa clínica atual – Um olhar da (bio)ética
FASE PÓS-ESTUDO
Nesse tópico será trazida para a reflexão uma discussão que merece ser analisada por
todos os envolvidos nas pesquisas e pela sociedade em geral: Quais os cuidados dis-
pensados às pessoas que participam dos estudos após o seu término? Nos ensaios clí-
nicos envolvendo medicamentos (se comprovado o efeito positivo destes), os pacientes
têm tido a garantia de continuidade do tratamento após a conclusão do estudo?
A respeito dos cuidados dispensados aos pacientes/participantes após o término
da pesquisa realizada no Centro em Natal, especificamente, nenhum deles soube fa-
lar sobre os cuidados pós-estudos. A maioria afirmou, inclusive, que nada foi falado
a respeito, e os poucos que disseram que alguma coisa fora falada não se lembravam
do que se tratava. Pelo visto a garantia de cuidado pós-estudos não vem sendo rotina
nas pesquisas do Centro em questão, ou no mínimo não é esclarecida de forma efeti-
va, levantando, assim, uma grave questão ética inserida nos ensaios clínicos. Apesar
de tais resultados não poderem ser generalizados, levanta-se a hipótese de que estes
refletem a maior parcela da realidade brasileira.
57
Bioética e Humanização em Oncologia
Considerações finais
É indiscutível e evidente a necessidade de se realizar pesquisas clínicas envolvendo
seres humanos, na área da saúde – sobretudo, na área da oncologia; entretanto, tem
58
Capítulo 3 | Pesquisa clínica atual – Um olhar da (bio)ética
que se ter a lucidez de que as normas, apesar de imprescindíveis, por si sós, não têm
garantido pesquisas éticas. A questão envolve aspectos e desafios complexos que re-
querem um enfrentamento complexo e corajoso por parte de todos os envolvidos na
questão, principalmente diante da atual lógica de mercado que permeia a realização
das pesquisas clínicas em cenários de desigualdades sociais.
Evidencia-se que a preocupação demonstrada para se chegar à cura das doenças
e proporcionar o avanço da ciência parece tão ter sido projetada de forma plena
sobre as pessoas que participam dos estudos: a verdade é que pouca atenção é dis-
pensada a eles, mesmo com o aumento do número de pesquisas clínicas realizadas
no Brasil, na América Latina e no mundo nas últimas décadas.
Com base na pesquisa empírica realizada no Centro de Pesquisa em Natal/RN,
observa-se que as decisões a respeito de participar da pesquisa na área da oncologia
giram, principalmente, em torno do fato de o paciente buscar a cura ou melhora da
sua doença e ter acesso e cuidados regularmente garantidos.
Outro ponto importante que merece total atenção é o fato de a assinatura do
TCLE não garantir a expressão da autonomia para todos os participantes de uma
pesquisa clínica, pois as informações essenciais para uma decisão autônoma, como
a devida explicitação dos objetivos do ensaio clínico, riscos e o direito a cuidados
pós-estudos, são, por vezes, praticamente desconhecidas desses participantes. Apon-
ta-se, também, que os participantes da pesquisa tendem a não perceber os efeitos
de investigação ou superestimam os benefícios médicos diretos de sua participa-
ção nos estudos, não tendo uma consciência real dos riscos envolvidos e do que
significa uma pesquisa, confundindo-a com tratamento.
Faz-se necessário, então, que seja estimulada e promovida uma cultura ética na
área da pesquisa clínica, em que os envolvidos possam reconhecer os desafios rela-
cionados a esse processo e tenham a sensibilidade para atuar com equidade, justiça
e respeito, tendo como norte a responsabilidade com as gerações atuais e futuras. O
intuito é de que as intenções éticas se transformem em ações éticas.
Espera-se que as reflexões ora apresentadas possam incitar o exercício e o diá-
logo mais crítico entre os diferentes atores e instituições envolvidos na área da pes-
quisa clínica, promovendo uma ciência consciente e responsável que impeça que
pessoas, principalmente de países pobres e sem acesso aos cuidados de saúde, sejam
colocadas em situação de desigualdade, vulnerabilidade e sofrimento moral, pro-
movendo uma efetiva aliança harmônica entre o desenvolvimento científico e os
valores humanos.
59
Bioética e Humanização em Oncologia
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Bioética e Humanização em Oncologia
62
Capítulo 4 | Bioética e multi-, inter- e transdisciplinaridade
4
Bioética e multi-, inter- e
transdisciplinaridade
Camilo Hernan Manchola Castillo
Introdução
Quando recebi o convite para ser parte deste projeto sobre bioética e humanização
em oncologia, escrevendo especificamente sobre bioética e multidisciplinaridade,
pensei imediatamente nas enormes mudanças paradigmáticas que esse jovem cam-
po do conhecimento – a bioética – tem alcançado em menos de 50 anos de vida. Isso
porque não é por acaso que a bioética serve de base para a promoção da humaniza-
ção em oncologia; pelo contrário, é possível porque ela é, em si mesma, um campo
profundamente diferente, sendo talvez as características mais marcantes dessa dife-
rença: a sua origem, natureza e finalidade multidisciplinar – recentemente direcio-
nada à interdisciplinaridade, e à sua consequência desejável, a transdisciplinaridade.
Este capítulo parte da constatação anteriormente mencionada para se desenvol-
ver em quatro seções. A primeira apresentará o conceito de multidisciplinaridade
– que, como será visto, deve levar à interdisciplinaridade, e esta última, à transdisci-
plinaridade. A segunda irá localizar esse conceito na bioética, mostrando como a ca-
racteriza, determina e guia. A terceira discutirá as implicações que ter uma bioética
decididamente multidisciplinar (e inter- e transdisciplinar) tem na defesa e existência
da humanização em oncologia. E a quarta, finalmente, trará alguns comentários
finais, cenários possíveis e desafios futuros.
63
Bioética e Humanização em Oncologia
O conceito de multidisciplinaridade
Antes de tocar a questão da multidisciplinaridade, deve-se definir o conceito de dis-
ciplina, originado a partir do latim discipulus e ele, de discere, que significa aprender1.
Por causa disso, uma disciplina é entendida como um campo de conhecimento espe-
cífico, geralmente trabalhado ao interior da universidade – lugar de ensino e apren-
dizagem por definição – e delimitado e legitimado por um conjunto de publicações
científicas. Assim, a disciplina precisa de algumas características, sendo as mais im-
portantes: o delineamento de seu caráter, e o reconhecimento deste por parte da
comunidade científica. Podem-se citar como exemplos de disciplinas: filosofia, artes
e literatura, no âmbito das ciências humanas; antropologia, política e sociologia, no
âmbito das ciências sociais; ou matemática, biologia, química e física, no âmbito das
ciências naturais.
Dito isso, é pertinente destacar que a multidisciplinaridade, da raiz latina multi
(numerosos), defende a necessidade que existe para propor análises que, diante da
complexidade do social, psicológico, biológico ou cultural, não incluam apenas a
visão fornecida por uma disciplina, mas as visões que várias disciplinas podem ofe-
recer2. Em outras palavras, a multidisciplinaridade tem a finalidade de aumentar o
conjunto de ferramentas, perspectivas e entendimentos com os quais se pode abordar
um objeto específico de estudo – seja ele social, psicológico, biológico ou cultural.
Estritamente falando, a multidisciplinaridade pode ser definida como a jun-
ção de várias disciplinas em busca de melhor analisar um objeto ou resolver um
problema. Esse diálogo de várias disciplinas, deve-se esclarecer, não leva à integra-
ção entre elas, uma vez que é, acima de tudo, um compromisso, um desafio, um
convite para usar cada uma dessas disciplinas a partir do seu próprio método, fi-
nalidade e propósito independentemente3. Assim, é proposta uma abordagem das
disciplinas a partir de uma perspectiva cumulativa que não proporciona contato
ou diálogo entre elas.
Isso mostra, então, que a abordagem multidisciplinar decorre da constatação
relativa que, diante da complexidade da realidade com a qual nos deparamos, as
disciplinas sós são insuficientes. Uma abordagem multidisciplinar, assim, acrescenta
a uma única visão de um objeto compressões variadas deste, mediadas, também,
por diversas disciplinas. E faz isso com o objetivo de enriquecer a compreensão que
temos desse objeto – que normalmente é um problema –, para, em seguida, propor
melhores soluções, saídas e aproximações.
64
Capítulo 4 | Bioética e multi-, inter- e transdisciplinaridade
65
Bioética e Humanização em Oncologia
66
Capítulo 4 | Bioética e multi-, inter- e transdisciplinaridade
sulta por dor intensa nas costas que o impede de se mover; além disso, relata uma
intensa preocupação com o que irá acontecer com seus três filhos menores quando
ele morrer. O paciente apresenta sintomas de depressão e ansiedade.
A partir de uma perspectiva multidisciplinar, o paciente deve receber cuidados
de uma equipe diversificada de profissionais, incluindo oncologista, enfermeiro, psi-
cólogo, nutricionista, fisioterapeuta, psiquiatra, entre outros. Se essa perspectiva for
complementada por uma abordagem interdisciplinar, esta equipe deverá discutir
entre si, promovendo um intercâmbio de métodos e propósitos para que o alvo (as-
sistência ao paciente da melhor forma) seja atingido. Esse diálogo irá resultar, por
exemplo, em que as rotinas de cuidado do enfermeiro sejam incorporadas pelo on-
cologista, ou em que o psicólogo assuma alguns conhecimentos do oncologista para
melhor entender às necessidades do paciente.
Finalmente, se a perspectiva em questão for complementada por uma aborda-
gem transdisciplinar, não haverá apenas uma apropriação de métodos, objetivos e
propósitos de uma disciplina por parte da outra, mas tentar-se-á ir além das disci-
plinas. Nesse sentido, far-se-á uma tentativa por construir um conhecimento tota-
lizante, longe das disciplinas, aceitando que essas não são capazes de alcançá-lo.
Tender-se-á, nesse sentido, a construir uma rede que inclua não apenas as disciplinas
“filhas” da ciência, mas as áreas que tradicionalmente têm sido abordadas como
pseudocientíficas: espiritualidade, terapias alternativas ou religião. Um exemplo cla-
ro de um campo transdisciplinar fortemente relacionado com o caso clínico apresen-
tado são os cuidados paliativos.
67
Bioética e Humanização em Oncologia
David Ross9 e William Frankena10, usadas para demonstrar a base teórica da bioé-
tica principialista; também rechaça os postulados de John Stuart Mill11 e Immanuel
Kant12, que dão sustentação epistemológica única (em termos de autodeterminação,
consequencialismo, universalismo e natureza prima facie de certos deveres) à proposta
principialista13.
A bioética apresentada aqui também se classifica como intensamente prática e
politizada e considera a mais conhecida bioética principialista, como dificilmente
aplicável, uma vez que seu caráter universalista e deontológico impede seu fun-
cionamento14. Nesse sentido, essa bioética, por meio da integração de casos reais
envolvendo a pobreza, a desigualdade, a exclusão ou a discriminação, considera que
as visões de avaliação e política são excedidas pelas circunstâncias do mundo real,
razão pela qual propõe outras referências, que serão discutidas imediatamente.
Em primeiro lugar, a bioética latino-americana defende a multi-inter-transdisci-
plinaridade, enfatizando na transdisciplinaridade, uma vez que supera a disciplina
e a relação entre disciplinas, para tentar ver o que está entre, através e além das
disciplinas. Essa é uma vantagem, pois, ao ver a realidade, a vida e o ser humano
como uma unidade, ocorre uma compreensão mais realista deles. No entanto, isso
pressupõe também uma crítica: para o pensamento clássico o trans é absurdo, visto
que, estando seu objeto além das disciplinas, ele se torna vazio ou inócuo. Diante
disso, a transdisciplinaridade argumenta que essa lacuna é preenchida com vários
níveis de realidade15.
A esse respeito, Nicolescu16 diria que “disciplinaridade, multidisciplinaridade,
interdisciplinaridade e transdisciplinaridade são quatro setas de um único arco: o do
conhecimento” (p. 3), mas acrescentaria que “a transdisciplinaridade é, no entanto,
radicalmente diferente às outras, por causa da sua finalidade: a compreensão do
mundo presente, impossível de ser inserida na pesquisa disciplinar” (p. 5).
Nicolescu acrescenta também que se deve superar a disciplinarização, compar-
timentalização, superespecialização, antropocentrismo, objetivação, determinismo,
reducionismo e racionalização (Platão, Descartes, Bacon, física clássica), uma vez
que a ruptura existente entre as ciências condena as ciências humanas “à incons-
ciência extrafísica” e as ciências naturais à “inconsciência social”.
Em segundo lugar, a bioética latino-americana aproveita a complexidade para se
constituir, uma vez que precisa dela para se articular de um jeito transdisciplinar. Na
verdade, a complexidade, de acordo com Morin17, é uma provocação para lidar com
contingências (Einstein, a física quântica) que o determinismo cartesiano não pode
68
Capítulo 4 | Bioética e multi-, inter- e transdisciplinaridade
explicar; deve-se esclarecer que isso não significa uma rejeição dos desenvolvimentos
feitos pela ciência clássica, mas um convite para lhes dar um contexto apropriado –
oferecido por fatores humanos, como: o imprevisto, a indeterminação e o acaso (o
oposto do individualismo racionalista).
Assim, a complexidade convida a abraçar a desordem, a imprevisibilidade, o
erro, a incerteza e o caos, uma vez que eles são parte da evolução. É assim também
um convite para a humildade, a integração e a aceitação dos limites humanos. Por-
tanto, a complexidade é um desafio, um paradigma diferente, e não uma resposta,
uma receita ou uma teoria15.
Fica claro por que a complexidade é necessária para a bioética: porque, sem dú-
vida, permite estabelecer uma relação entre o conhecimento e os valores humanos18
que possa lidar com uma tecnologia que não é usada apenas por seres humanos,
mas interage com eles, trazendo com isso disparidades sociais, fome e problemas
ambientais.
Da mesma forma, é então imperativo um relacionamento entre bioética e com-
plexidade “a fim de enfrentar as realidades com que se deparam (a fim de que) a
bioética esteja aberta ao diálogo respeitoso com a pluralidade e especificidade das
culturas (...) e a fim de que a bioética possa se comunicar não apenas com especialis-
tas, mas também com os homens e mulheres comuns”17 (p. 497).
Mais importante do que tudo isso é ver que a complexidade representa a che-
gada de uma nova epistemologia, o que, em termos de Morin17, tem a ver com a
consciência-ciência, uma epistemologia de segunda ordem, como a que seria ne-
cessário propor para alcançar a bioética que Potter recomendou: uma bioética pro-
fundamente moral, “ponte”, “global”, “profunda”, “não neutra”, “responsável” e
“humilde”.
Apenas uma nova epistemologia, uma de segunda ordem, produzirá – e será
possível – quando dicotomias cognitivas da ciência moderna (sujeito/objeto, ob-
servador/observado, objetividade/subjetividade, ciências duras/ciências humanas,
cultura científica/humanista, conhecimento científico/outros conhecimentos, saber
dos especialistas/senso comum) forem superadas18.
Essa nova epistemologia “enfatiza a necessidade de contextualizar sempre nos-
sos esforços de pesquisa (...) a necessidade de manter sempre em mente o que afeta
e influencia o modo como o homem-que-pergunta confronta a busca do objeto (de
modo que a epistemologia), em seguida, responda às chamadas da bioética para
conciliar a ciência e a realização da sobrevivência humana”18 (p. 103). Assim, no
69
Bioética e Humanização em Oncologia
mundo real, aberto, não linear, a ordem é o resultado de uma doença, como a pró-
pria vida, e os “problemas da bioética e as emergências bioéticas estão cheias desses
tipos de circunstâncias”18 (p. 106).
A bioética, portanto, “não deve almejar uma ordem ou (...) uma previsibilidade
perfeita”, mas uma visão complexa. Precisa-se de uma reconstrução de segunda or-
dem do conhecimento científico, e de um novo ideal de racionalidade epistemológi-
ca. Necessita-se então “a construção coletiva de um pensamento e a criação de uma
bioética prática que leve em conta as especificidades e peculiaridades do contexto
(social, cultural, histórico)”18 (p. 109).
Em terceiro lugar, a bioética da América Latina propõe a totalidade concreta
para a compreensão da realidade analisada. A esse respeito, Garrafa15 – retornando
ao criador da totalidade concreta, Karol Kosik19 –, diz que a totalidade está relacio-
nada com a realidade, uma vez que o conjunto inclui não só os aspectos fenomenais
da realidade, mas sua essência. Na verdade, de acordo com Kosik19, “a totalidade
não significa um conjunto de fatos, mas a realidade como um todo dinâmico e inter-
-relacionado estruturado” (p. 115).
Assim, a totalidade concreta é entendida como uma única, múltipla, heterogê-
nea e contraditória realidade que se apresenta diante dos olhos, organicamente es-
truturada, que só é entendida como um todo, de modo que apenas é possível extrair
conclusões contextualizando-as, concretizando-as e não o fazendo abstratamente,
de jeito discriminatório, incompleto, aparente e muitas vezes falso.
Por causa disso, Kosik19 enfatiza que o que é estudado deve ser previamente con-
textualizado, respondendo à pergunta: qual a visão/intenção/endereço (histórico e
social) do conhecimento humano? Isso, uma vez que a partir desta “assimilação prá-
tica espiritual do mundo (...) a realidade é percebida como uma entidade indivisível
e os significados são compreendidos implicitamente a partir da unidade de juízos
de existência e valor” (p. 117). Devido a isso, uma “teoria do conhecimento como
reprodução espiritual da realidade” é uma necessidade urgente.
Para concluir esta seção, fica claro que a multi-inter-transdisciplinaridade é
crucial para a bioética discutida aqui. A bioética latino-americana só é possível se
for entendido que é muito mais do que uma disciplina, que várias delas, ou que o
diálogo entre elas; portanto, como foi dito no início deste capítulo, essa área do
conhecimento, com pouco menos de 50 anos, representa uma grande mudança de
paradigma, visto que é construída e opera de uma maneira radicalmente diferente,
defendendo objetos de estudo, estruturas e fins bem distintos. Na próxima seção,
70
Capítulo 4 | Bioética e multi-, inter- e transdisciplinaridade
vamos ver quais as implicações que isso tem sobre a existência e a defesa da huma-
nização em oncologia.
Bioética multi-inter-transdisciplinar
e humanização em oncologia
A humanização em oncologia é um conceito recente, produto do interesse, também
recente, por humanizar o ato médico. A humanização da medicina tem sido espe-
cialmente concebida no âmbito da bioética, por isso não é de estranhar uma relação
entre essas duas esferas20. É importante dizer que, quando falamos em humanização
na medicina, estamos nos referindo a prestar cuidados aos pacientes, respeitando
sua dignidade, e focando os serviços neles mesmos, ou seja, nos indivíduos que estão
doentes e não na sua doença. Em outras palavras, a humanização propõe não dar
atenção exclusivamente à técnica, aos procedimentos ou aos medicamentos, mas
àqueles e às relações humanas envolvidas no ato médico21.
No caso do tratamento do câncer, a humanização ainda tem mais importância,
tendo em conta as particularidades que esse diagnóstico traz22: incerteza, debilida-
de, alta toxicidade do tratamento, prognóstico. A humanização é, assim, especifica-
mente na área da oncologia, especialmente relevante porque a relação profissional-
-paciente está no centro das várias emoções que uma situação como a produzida
pelo câncer produz. Uma oncologia humanizada traria, então, a possibilidade de ver
o paciente não como uma neoplasia, mas como um ser completo, que faz parte de
um contexto social e cultural, e que também é titular de direitos e deveres23.
Dito isso, agora é importante responder como a multi-inter-transdisciplinarida-
de abordada até agora, especificamente em bioética, afeta a humanização em onco-
logia. Essa afetação é feita de quatro maneiras, a saber: produzindo novos métodos
e finalidades que uma abordagem disciplinar não permitiria produzir; validando
a importância de ver o ser humano doente e não apenas a doença que o aflige;
mostrando profissional de saúde, paciente, família, comunidade e sociedade como
totalmente imbuídos, corresponsáveis e protagonistas no tratamento da doença; e le-
gitimando saberes “outros” que uma concepção apenas baseada na disciplinaridade
não teria em conta.
Sobre a produção de novos métodos e propósitos que uma abordagem discipli-
nar não causaria, a multi-inter-trans-disciplinaridade em bioética o consegue es-
timulando a imaginação e a criatividade de ambos, os profissionais de saúde e os
71
Bioética e Humanização em Oncologia
pacientes. Nesse sentido, uma visão desse tipo, como já foi dito, permite que os pro-
tagonistas do ato médico (médico, paciente, família, comunidade e sociedade) pen-
sem em diferentes métodos para alcançar seus objetivos. A disciplinarização pode,
então, ser superada, incluindo o uso de terapias adicionais, como, por exemplo, a
espiritualidade como adjuvante.
Isso é central, uma vez que poderia fazer a relação entre médico e paciente mui-
to mais estreita e plena, conectando suas preocupações, medos e incertezas, e, assim,
potenciando a humanização da oncologia. Agora, repensar os fins também tem um
peso enorme, quando se trata de casos tão comuns em oncologia, nos quais a cura
não é uma opção. Quando a morte é iminente e a cura não parece possível, reavaliar
os efeitos da prática oncológica pode ser libertador e inspirador. Nesse campo, os
cuidados paliativos, tão próximos da oncologia, têm uma experiência valiosa.
Quanto a validar a importância de ver o ser humano doente e não apenas a
doença que o aflige, a multi-inter-trans-disciplinaridade em bioética tem uma gran-
de contribuição a dar, uma vez que propõe a complexidade como um dos paradig-
mas para compreender a realidade e, ao fazer isso, permite que o profissional e o
paciente passem a ver a doença apenas como um elemento, dentre outros, do pano-
rama. Isso é essencial por permitir ao médico ver o paciente como um ser humano
completo, incluindo na análise dele diversas áreas e circunstâncias, e não apenas a
doença ou a esfera física.
Mas, além do anteriormente exposto, dar importância ao ser humano sobre a
doença permite ao profissional ver que seu paciente tem direitos e é dono de sua
própria vida. Características relativas a dignidade, privacidade, autonomia e au-
todeterminação fazem sentido quando entendido que não se trata apenas de uma
neoplasia, mas de um ser humano, dono de emoções, interesses, responsabilidades e
preferências. Isso, naturalmente, é fundamental na construção de um relacionamen-
to pontuado pela humanização do atendimento.
No que diz respeito a mostrar profissional de saúde, paciente, família, comu-
nidade e sociedade como totalmente imbuídos, corresponsáveis e protagonistas no
tratamento da doença, a multi-inter-trans-disciplinaridade em bioética desempenha
um papel decisivo, se visto que outro de seus referenciais é a totalidade concreta,
um conceito que considera a realidade como um conjunto de elementos dinâmicos
e inter-relacionados. Isso tem uma implicação importante, pois inclui a comunidade
no processo terapêutico ou paliativo do paciente, o que provoca necessariamente
que o processo saúde-doença não seja apenas um processo individual e isolado, mas
72
Capítulo 4 | Bioética e multi-, inter- e transdisciplinaridade
realmente social, tendo um grande impacto na criação de políticas públicas que en-
volvem a prevenção de doenças e a promoção da saúde.
Isso também permite ao profissional ter um contato diferenciado com a situa-
ção, percebendo que o paciente não é apenas um titular de direitos, mas também
de deveres e, portanto, tornando-o um verdadeiro protagonista do seu processo. Ao
fazer isso, o profissional não só vê o paciente como um ser humano completo, mas
partilha a responsabilidade, a frustração e a emoção com quem está sendo destina-
tário dos cuidados. Isso, sem dúvida, humaniza o ato médico e reforça a relação mé-
dico-paciente, permitindo que tanto profissional quanto paciente sejam vistos como
seres humanos vulneráveis que sofrem e sentem incerteza e medo.
Enfim, em relação a legitimar conhecimentos “outros” que uma concepção
apenas com base na disciplinaridade não levaria em conta, a multi-inter-trans-dis-
ciplinaridade em bioética desempenha um papel preponderante, permitindo que
o profissional compreenda que as crenças, os conhecimentos, os sentimentos e os
sistemas epistemológicos “não científicos” são tão legítimos quanto os seus. Dessa
forma, contribui para uma oncologia mais humana, uma vez que o profissional e o
paciente vão se identificar como pares, com conhecimentos diferentes, mas igual-
mente válidos.
Isso também pode produzir uma grande ruptura paradigmática, porque tem o
potencial de fazer a oncologia criar novos conhecimentos, utilizando referenciais
desconhecidos por ela, que a ciência tem desqualificado como pseudocientíficos, in-
válidos ou mentirosos. O que se propõe aqui é, portanto, uma grande oportunidade
não só para humanizar a oncologia, mas para repensá-la completamente, abrindo
oportunidades para a imaginação e a criatividade. Como já foi dito, esse é um ca-
minho que uma área como os cuidados paliativos já está andando com resultados
encorajadores24.
Considerações finais
A multidisciplinaridade é uma aposta cada vez mais usada dentro da academia e da
ciência. Seus usos e aplicações são cada vez mais reconhecidos, e as suas vantagens
são amplamente registradas. A evolução das profissões “filhas” da modernidade na
contemporaneidade não poderia ter ocorrido se não tivesse sido pela omnipresença
dessa nova perspectiva. O surgimento de especialidades, subespecialidades e novas
áreas de conhecimento contemporâneo corresponde exatamente a essa nova visão.
73
Bioética e Humanização em Oncologia
Entre as novas áreas (ou territórios) do conhecimento que têm sido o resultado
dessa nova abordagem está a bioética, especificamente a bioética global defendida
pelo criador deste neologismo em 19708, e a bioética que tem resgatado essa aborda-
gem de maneira mais decidida, a partir do século XXI: a bioética latino-americana.
Esta última propôs, no entanto, estruturas mais provocadoras, que não só apresen-
tam a multi-, mas a inter- e transdisciplinaridade para a compreensão da realidade
e a proposição de soluções para os problemas analisados.
É nesse sentido que a bioética, uma área que tem tradicionalmente defendido
uma saúde mais humanizada, pode contribuir para a existência e a salvaguarda da
humanização em oncologia. Ela o faz, propondo, junto com a multi-inter-transdis-
ciplinaridade, os conceitos de complexidade e totalidade concreta, proporcionando
um novo quadro paradigmático para a compreensão da realidade dos profissionais e
pacientes – além de comunidades e sociedade em geral –, que estão imersos dentro
do processo saúde-doença que está no centro da atenção oncológica.
Foram propostas pelo menos quatro maneiras em que essa bioética multi-in-
ter-disciplinar prevê a existência de humanização em oncologia: produzindo novos
métodos e finalidades que uma abordagem disciplinar não produziria; validando
a importância de ver o ser humano doente e não apenas a doença que o aflige;
mostrando profissional de saúde, paciente, família, comunidade e sociedade como
totalmente imbuídos, corresponsáveis e protagonistas no tratamento da doença; le-
gitimando conhecimentos “outros” que uma concepção apenas baseada na discipli-
naridade não teria em conta.
Agora, é necessário apresentar esses caminhos possíveis àqueles que estão en-
volvidos – profissionais, doentes, comunidades, sociedade em geral –, na prática
oncológica todos os dias, porque eles são, finalmente, quem pode julgar se eles: real-
mente respondem às necessidades percebidas; têm potencial para ser operacionais;
e, finalmente, podem ter um impacto na humanização em oncologia, objetivo final
procurado. Esse é o desafio e, também, a oportunidade.
Referências bibliográficas
1. Sem autor. Disciplina. Disponível em: http://etimologias.
dechile.net/?disciplina. Acesso em: 15 jul. 2016.
2. Ander-Egg E. Interdisciplinariedad en educación. Buenos Aires:
Magisterio del Río de la Plata, 1994.
3. Apostel L et al. Interdisciplinariedad y ciencias humanas. Madrid: Tecnos/UNESCO, 1982.
74
Capítulo 4 | Bioética e multi-, inter- e transdisciplinaridade
75
Capítulo 5 | Eutanásia, distanásia, mistanásia: conflitos éticos com a legislação brasileira
5
Eutanásia, distanásia,
mistanásia: conflitos éticos
com a legislação brasileira
Bruno Wurmbauer Junior
Introdução
Os tempos atuais são bem complexos, razão pela qual o filósofo Zygmunt Bauman
defende que a modernidade – e até a própria sociedade – é líquida1. Em outras pala-
vras, direitos, deveres e as relações sociais que eram considerados cristalizados e bem
definidos no passado são, atualmente, fluidos e sem uma forma assentada.
Essa falta de estrutura definida é refletida no constante e crescente questiona-
mento de direitos, deveres, posturas éticas, regras morais e da própria lei. A falta de
parâmetros seguros e consolidados leva os indivíduos e os grupos em questão a uma
constante disputa social, que favorece uma tendência crescente de radicalizar seus
pontos de vista, abandonando soluções consensuais para os conflitos.
Todavia, num Estado Democrático de Direito como o brasileiro, o monopólio
da força é exercido pelo Estado. Isso significa que os cidadãos não podem exercer
arbitrariamente as próprias razões2, ou seja, eles não podem usar a força contra ou-
trem para fazer valer o seu ponto de vista.
1
Bauman Z. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Ed. Zahar, 2001.
2
O tipo penal do exercício arbitrário das próprias razões está previsto no art. 345 do código penal e prevê a
detenção de quinze dias a um mês.
77
Bioética e Humanização em Oncologia
78
Capítulo 5 | Eutanásia, distanásia, mistanásia: conflitos éticos com a legislação brasileira
3
Bomfim LR. Eutanásia: questões éticas e jurídico-penais relevantes. Revista do CEPEJ. Salvador: Centro
de Estudos e Pesquisas Jurídicas da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia – CEPEJ.
2009;11:295-315.
4
Cabral HLTB, Gregório PVO. Ortotanásia e o PLS nº 116 de 2000 como direito à morte digna. Revista Magister
de Direito Penal e Processual Penal. Porto Alegre: Ed. Magister. 2012;47:34-672.
79
Bioética e Humanização em Oncologia
5
Rohe A. O paciente terminal e o direito de morrer. Rio de Janeiro: Ed. Lúmen Juris Editora, 2000. p. 109.
6
Barroso LR, Martel LCV. A morte como ela é: dignidade e autonomia individual no final da vida. In: Pereira
TS, Menezes RA, Barboza HH (coords.). Vida, morte e dignidade humana. Rio de Janeiro: GZ editora, 2010.
p. 177-78.
7
Villas-Bôas ME. Um direito fundamental à ortotanásia. In: Pereira TS, Menezes RA, Barboza HH (coords.). Vida,
morte e dignidade humana. Rio de Janeiro: GZ editora, 2010. p. 250.
8
Barroso LR, Martel LCV. op. cit. p. 178.
9
Nucci GS. Código Penal Comentado. 9ª ed. rev., atual. e ampl. Ed. Revista do Tribunais, São Paulo, 2009. p. 581.
80
Capítulo 5 | Eutanásia, distanásia, mistanásia: conflitos éticos com a legislação brasileira
10
Minahim MA. O direito e o dever de morrer: a complexidade de um tema. apud Pereira TS, Menezes RA,
Barboza HH. Vida, morte e dignidade humana. Rio de Janeiro: ed. GZ, 2010. p. 224.
11
Um exemplo é o emprego de uma dose de benzodiazepínico para minimizar a ansiedade e a angústia,
gerando, secundariamente, depressão respiratória e óbito. Vide Rudá AS. Direito penal e bioética: o início e
o fim da proteção jurídica da vida humana. Revista Ciência Jurídica. Belo Horizonte: Ed. Ciência Jurídica. Ano
XXIV. 2010;156:119-137, 132.
12
Silva RBB, Campos RT. A eutanásia na processualidade democrática brasileira. Revista Brasileira de Direito
Processual – RBD Pro. Belo Horizonte: Ed. Fórum. 2011;19(73):197-226, 200.
81
Bioética e Humanização em Oncologia
13
Bomfim LR. Eutanásia: questões éticas e jurídico-penais relevantes. Revista do CEPEJ. Salvador: Centro de
Estudos e Pesquisas Jurídicas da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia – CEPEJ. 2009;11:295-
315, 302.
14
Cabral HLTB, Gregório PVO. Ortotanásia e o PLS nº 116 de 2000 como direito à morte digna. Revista Magister
de Direito Penal e Processual Penal. Porto Alegre: Magister. 2012;47:34-672, 39.
15
Medidas ordinárias de manutenção da vida são aquelas habitualmente disponíveis, pouco dispendiosas,
obrigatórias e menos agressivas, como nutrição e hidratação artificial. Já medidas extraordinárias são aquelas
mais custosas, limitadas, arriscadas e facultativas, sujeitas à aprovação do enfermo. Vide Villas-Bôas ME. Um
direito fundamental à ortotanásia. In: Pereira TS, Menezes RA, Barboza HH (coords.). Vida, morte e dignidade
humana. Rio de Janeiro: GZ editora, 2010. p. 243.
16
Barroso LR, Martel LCV. A morte como ela é: dignidade e autonomia individual no final da vida. In: Pereira TS,
Menezes RA, Barboza HH (coords.). Vida, morte e dignidade humana. Rio de Janeiro: GZ editora, 2010. p. 179.
17
Rudá AS. Direito penal e bioética: o início e o fim da proteção jurídica da vida humana. Revista Ciência
Jurídica. Belo Horizonte: Ed. Ciência Jurídica. 2010;XXIV(156):119-137, 134.
82
Capítulo 5 | Eutanásia, distanásia, mistanásia: conflitos éticos com a legislação brasileira
18
Bomtempo TV. A ortotanásia e o direito de morrer com dignidade: uma análise constitucional. In: Revista
Síntese de Direito de Família. São Paulo: Ed. Síntese. 2011;68:73-92, 76.
19
Cabral HLTB, Gregório PVO. Ortotanásia e o PLS nº 116 de 2000 como direito à morte digna. In: Revista
Magister de Direito Penal e Processual Penal. Porto Alegre: Magister. 2012;47:34-672, 44.
20
Bomfim LR. Eutanásia: questões éticas e jurídico-penais relevantes. Revista do CEPEJ. Salvador: Centro de
Estudos e Pesquisas Jurídicas da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia – CEPEJ. 2009;11:295-
315, 299.
21
Villas-Bôas ME. Um direito fundamental à ortotanásia. In: Pereira TS, Menezes RA, Barboza HH (coords.). Vida,
morte e dignidade humana. Rio de Janeiro: GZ editora, 2010. p. 252.
22
Bomtempo TV. A ortotanásia e o direito de morrer com dignidade: uma análise constitucional. In: Revista
Síntese de Direito de Família. São Paulo: Ed. Síntese. 2011;68:73-92, 76.
23
Trata-se da resolução nº 1805/2006 do Conselho Federal de Medicina – CFM, que estabeleceu as condições e
pressupostos para a prática da ortotanásia pelos médicos brasileiros.
83
Bioética e Humanização em Oncologia
24
Villas-Bôas ME. Um direito fundamental à ortotanásia. In: Pereira TS, Menezes RA, Barboza HH (coords.). Vida,
morte e dignidade humana. Rio de Janeiro: GZ editora, 2010. p. 262.
25
Barroso LR, Martel LCV. A morte como ela é: dignidade e autonomia individual no final da vida. In: Pereira TS,
Menezes RA, Barboza HH (coords.). Vida, morte e dignidade humana. Rio de Janeiro: GZ editora, 2010. p. 180.
26
Bomfim LR. Eutanásia: questões éticas e jurídico-penais relevantes. Revista do CEPEJ. Salvador: Centro de
Estudos e Pesquisas Jurídicas da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia – CEPEJ. 2009;11:295-
315, 301.
84
Capítulo 5 | Eutanásia, distanásia, mistanásia: conflitos éticos com a legislação brasileira
27
Verbete Jack Kevorkian. Wikipédia. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Jack_Kevorkian>. Acesso
em: 1 nov. 2016.
28
Kelsen H. Teoria pura do direito. 6ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998. p. 155.
29
Moraes A. Direito constitucional. 23. ed. São Paulo: ed. Atlas, 2003. p. 40.
30
Mendes GF, Branco PGG. Curso de direito constitucional. 7. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 67.
85
Bioética e Humanização em Oncologia
tência, isto é, cada uma delas deve cobrir um determinado assunto previsto na
constituição federal.
A lei é “regra geral de direito, abstrata e permanente, dotada de sanção, expres-
sa pela vontade de autoridade competente, de cunho obrigatório e forma escrita”31.
Como é dito na Constituição Federal, ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer,
senão em virtude de lei32. As leis, quando contradisserem as normas constitucionais,
serão consideradas inconstitucionais.
Em um degrau abaixo das leis na pirâmide normativa, encontram-se os de-
cretos, que são expedidos pelos chefes dos poderes executivos – presidente, gover-
nadores e prefeitos – com o objetivo de detalhar a operacionalização das leis. Os
decretos não podem ir além do que foi estabelecido pelas leis, sob pena de serem
considerados ilegais.
Por fim, na última posição da escala normativa, encontram-se todos os demais
atos que são editados pelas autoridades administrativas que estão abaixo do chefe
do executivo, como ministros, secretários, diretores de agências, estatais, autarquias,
etc. São resoluções, portarias, normas operacionais, despachos, enfim, todas as nor-
mas que são editadas pelas normas. Da mesma forma, tais atos normativos também
não podem extrapolar o que foi estabelecido em lei, pois aí padecerão de ilegalidade
e poderão ser contestados na justiça.
Quem decide sobre a ilegalidade de uma norma infralegal ou a inconstitucio-
nalidade de uma lei é o Poder Judiciário, representado por juízes, desembargadores
e ministros.
Para realizar o julgamento, o juiz se debruça sobre o “caso concreto”, isto é,
leva em consideração as particularidades da relação jurídica entre autor e réu para
aplicar as normas jurídicas genéricas e abstratas de forma particularizada, segundo
os elementos e provas que foram apresentados no processo judicial.
Nesse contexto, o magistrado pode afirmar se, para o caso concreto que lhe foi
apresentado, há uma situação de ilegalidade ou inconstitucionalidade. Sua decisão
valerá apenas para os atores daquele processo. Isso justifica por que causas seme-
lhantes, mas que envolvem outras partes, não necessariamente têm o mesmo julga-
31
Venosa SS. Direito Civil. 16ª ed. v. 1. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 33.
32
Trata-se da prescrição do art. 5º, II da Constituição Federal.
86
Capítulo 5 | Eutanásia, distanásia, mistanásia: conflitos éticos com a legislação brasileira
mento. Essa situação é confirmada também por causa da independência dos juízes33,
que não estão vinculados a decisões anteriores de seus colegas.
Se as partes não concordarem com o teor da decisão, poderão recorrer para um
órgão colegiado do tribunal a que pertence o juiz sentenciante, composto por três
juízes mais experientes, comumente denominados desembargadores, que proferem
um acórdão.
Se ainda assim não houver a concordância com o teor da sentença e do acórdão,
a parte pode ainda recorrer aos tribunais superiores, que têm a função principal de
uniformizar a jurisprudência. A exceção reside em certas hipóteses constitucionais
bem definidas, quando tais cortes são incumbidas do julgamento de processos espe-
ciais, funcionando como um tribunal comum34.
Nos tribunais superiores, os ministros somente julgam questões de direito, ou
seja, a interpretação da lei. Ali não se examinam mais as provas, pois essa é uma
tarefa que cabe somente às instâncias originárias – juízes e desembargadores. Isso
acontece, como dito, pois o papel das cortes superiores é uniformizar o entendimen-
to da aplicação da lei pelos tribunais do país.
Mesmo assim, se houver alguma questão constitucional a ser discutida nos pro-
cessos que forem julgados pelos tribunais superiores, a questão ainda pode ser levada
a exame do STF.
33
Segundo o art. 95 da Constituição Federal, os juízes gozam de vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade
de vencimentos.
34
Um bom exemplo é a ação penal 470, o mensalão, quando o STF atuou como corte penal, em substituição
ao próprio juiz de primeira instância, por causa do foro privilegiado, previsto no art. 102, I, “b” a “d” da
Constituição Federal.
35
Gonçalves CR. Direito civil brasileiro, v. 4. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 47.
87
Bioética e Humanização em Oncologia
36
O art. 927 do Código Civil estabelece que aquele que, por ato ilícito, causar dano a outrem fica obrigado
a repará-lo. O art. 186 do mesmo diploma estabelece também o que é ato ilícito: “Aquele que, por ação
ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que
exclusivamente moral, comete ato ilícito”.
88
Capítulo 5 | Eutanásia, distanásia, mistanásia: conflitos éticos com a legislação brasileira
so, condenado após julgamento na segunda instância, já pode ser preso e começar a
cumprir a pena que lhe foi imposta37.
No caso da ação penal, deve-se ter em mente que o lesado, além da própria
vítima, é a sociedade. Por isso, é o Estado que promove a persecução penal, se-
guindo regras previamente estabelecidas no Código de Processo Penal, decreto-lei
nº 3.689/1941.
Assim, o crime e a sua autoria são investigados primeiramente pelo delegado
de polícia, por meio do inquérito policial. Se os trabalhos indicarem que o suspeito
realmente parece ter cometido o crime, ele é indiciado, e o delegado remete o inqué-
rito para análise do Ministério Público.
No direito brasileiro, são os procuradores e promotores de justiça do Ministério
Público quem detêm a competência para ajuizar as ações penais. Dessa forma, se o
representante do Ministério Público entender que realmente foi praticado um crime,
ele pode apresentar a denúncia ao poder judiciário. O indiciado passa, portanto, à
condição de denunciado.
A denúncia é apreciada preliminarmente ao juiz de primeira instância. O de-
nunciado apresenta uma defesa prévia e, se o magistrado entender que há em tese
um crime, a ação penal começa a tramitar regularmente. O denunciado passa à
condição de Réu no processo penal, que tramitará na justiça de acordo com as
regras processuais, garantindo-se sempre o contraditório e a ampla defesa. Ao final
do processo, depois de produzidas todas as provas necessárias, prolata-se a sentença,
que pode ser condenatória ou absolvitória.
Por fim, existe também a responsabilidade administrativa. Esta não visa à repa-
ração em dinheiro ou à prisão. Ela simplesmente é voltada para a aplicação de uma
penalidade administrativa, que pode variar de acordo com o ente da administração
pública que está atuando à frente do processo investigatório.
Assim, a Receita Federal pode investigar a sonegação de impostos pelo cidadão,
o Conselho Regional de Medicina pode apurar o procedimento do médico em rela-
ção ao código de ética médica, o Departamento de Trânsito pode aplicar uma multa
a um motorista, ou um ministério pode advertir um servidor público concursado por
uma conduta reprovável.
37
Como amplamente noticiado, recentemente o STF definiu que não precisam ser esgotadas todas as
instâncias recursais para que o réu possa começar a cumprir a sentença, bastando que a sentença
condenatória seja confirmada em segunda instância. Isso se deu no julgamento das Ações Diretas de
Constitucionalidade ADC 43 e 44, ocorrido em 5/10/2016.
89
Bioética e Humanização em Oncologia
90
Capítulo 5 | Eutanásia, distanásia, mistanásia: conflitos éticos com a legislação brasileira
pagar uma indenização para reparar o sofrimento e os danos morais sofridos pelos
parentes com a morte.
Por fim, na seara administrativa, o médico ainda pode ser processado por seu
conselho profissional – no caso dos médicos, o CRM – por falta ética no exercício da
profissão, cuja consequência mais grave pode ser a própria perda do registro profis-
sional e o impedimento ao exercício da profissão.
Digno de nota que, como são segmentos independentes, a absolvição em uma
esfera não interfere necessariamente nas demais. Do mesmo modo, a condenação em
determinada área não importa automática sanção nas demais. Isso significa que pode
acontecer uma condenação só no âmbito administrativo, sem que haja a punição nas
esferas cível ou penal. Também pode ocorrer que haja uma sanção mais branda na
área cível, com uma pesada condenação administrativa e absolvição penal.
A única exceção a essa regra é a condenação na esfera criminal, que tem o
condão de interferir no pressuposto das responsabilidades cível e administrativa39.
Nesse caso, os processos cível e administrativo não se preocuparão mais em estabe-
lecer a culpa ou dolo do investigado, pois tal prova já foi obtida no processo penal.
A discussão, então, ficará restrita ao valor da indenização ou da escolha da sanção
administrativa a ser aplicada ao infrator.
39
A absolvição penal, curiosamente, não tem o condão de interferir decisivamente na responsabilização cível
ou administrativa, principalmente se ocorrer por falta de provas.
40
Bomfim LR. Eutanásia: questões éticas e jurídico-penais relevantes. Revista do CEPEJ. Salvador: Centro de Estudos
e Pesquisas Jurídicas da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia – CEPEJ. 2009;11:295-315, 297.
91
Bioética e Humanização em Oncologia
relevante de valor moral, tal como tipificado no art. 121, §4º do código penal. Na
verdade, a própria exposição de motivos do Código Penal menciona o “homicídio
eutanásico” como um exemplo de crime que conta com motivo aprovado pela moral
prática41 e que, por isso, recebe uma pena menor do que a do homicídio simples. Isso
significa que o profissional da saúde que vier a praticar a eutanásia pode ser conde-
nado a uma pena que varia de quatro a treze anos42.
Na sua modalidade passiva, a situação é diferente, pois deve ser considerado o
dever jurídico de agir do profissional de saúde, ou seja, ele tem a obrigação legal de
não agir quando a situação do paciente se agrava. Nesse caso, se praticar a eutanásia
passiva, o código penal considera que houve crime omissivo impróprio, não respon-
dendo apenas por sua omissão, mas pelo resultado que vier a causar, qual seja, o
homicídio do enfermo43. Nessa situação, a pena será idêntica àquela prevista para a
eutanásia ativa, ou seja, de quatro a treze anos de prisão.
No caso da eutanásia mista ou de duplo efeito, o profissional de saúde prevê o re-
sultado morte e, embora não o queira propriamente atingi-lo, pouco se importa com
sua ocorrência44, numa conduta classificada como dolo eventual, a qual equivale ao
dolo direto. Nesse quadro, a condenação será igual a das duas outras modalidades
de eutanásia – ativa ou passiva – fixada entre quatro e treze anos de prisão. Todavia,
para alguns juristas, a eutanásia nessas condições não poderia ser penalizada, já que
envolve uma conduta médica socialmente legitimada e envolve um risco permitido,
porque é inerente ao exercício da medicina45.
A eutanásia natural pode decorrer tanto de ato comissivo como omissivo do pro-
fissional de saúde, sendo tal conduta apenada também como um homicídio privile-
giado, seja por dolo direto, se for cometida a conduta, ou crime omissivo impróprio
de homicídio, ambos contando com a pena de quatro a treze anos de prisão.
41
Exposição de motivos do código penal. Disponível em: <https://www.diariodasleis.com.br/busca/exibelink.
php?numlink=1-96-15-1940-12-07-2848-CP>. Acesso em: 2 nov. 2016.
42
O artigo 121 do Código Penal fixa a pena para o homicídio simples de seis a vinte anos. Segundo o parágrafo
quarto, onde está inscrita a redução da pena por causa do motivo de relevante valor moral, há a previsão de
redução da pena de um sexto a um terço.
43
O artigo 13, §2º, do Código Penal estabelece que a omissão é penalmente relevante quando o omitente
devia e podia agir para o resultado. O dever de agir incumbe por lei obrigação de cuidado, proteção ou
vigilância, que é o caso do profissional de saúde com relação ao paciente.
44
Capez F. Curso de Direito Penal 1 – Parte Geral. p. 227.
45
Roxin apud Bomfim LR. Eutanásia: questões éticas e jurídico-penais relevantes. Revista do CEPEJ. Salvador:
Centro de Estudos e Pesquisas Jurídicas da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia – CEPEJ.
2009;11:295-315, 310.
92
Capítulo 5 | Eutanásia, distanásia, mistanásia: conflitos éticos com a legislação brasileira
46
Bomfim LR. Eutanásia: questões éticas e jurídico-penais relevantes. Revista do CEPEJ. Salvador: Centro de
Estudos e Pesquisas Jurídicas da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia – CEPEJ.
2009;11:295-315, 310.
47
O homicídio qualificado está tipificado no Código Penal, no artigo. 121, §2º e seus quatro incisos.
48
Rohe A. O paciente terminal e o direito de morrer. Rio de Janeiro: Ed. Lumen Juris Editora, 2000. p. 112.
93
Bioética e Humanização em Oncologia
49
Gonçalves VER. Direito Penal Esquematizado. p. 86.
94
Capítulo 5 | Eutanásia, distanásia, mistanásia: conflitos éticos com a legislação brasileira
50
A resolução 1805/2006 foi inicialmente suspensa por ordem judicial, após ter sido classificada pelo
Procurador da República como um artifício homicida, tendo sido declarado em liminar judicial pelo
Magistrado que julgou a causa que existe “aparente conflito entre a resolução questionada e o código
penal”. Em 01/02/2010 foi julgada improcedente a ação e hoje o processo está arquivado. Vide Processo
judicial 2007.34.00.014809-3 no sítio eletrônico do TRF-1. Disponível em: <http://processual.trf1.jus.br/
consultaProcessual/processo.php?secao=DF&opSec=proc&proc=
200734000148093&enviar=Ok>. Acesso em: 5 nov. 2016.
51
Código de Ética Médica, Cap. I – Princípios Fundamentais, Inciso XXII
52
Trata-se do testamento vital, regulado pela resolução CFM nº 1995/2012.
53
Bomfim LR. Eutanásia: questões éticas e jurídico-penais relevantes. Revista do CEPEJ. Salvador: Centro de
Estudos e Pesquisas Jurídicas da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia – CEPEJ.
2009;11:295-315, 307.
95
Bioética e Humanização em Oncologia
54
Barroso LR, Martel LCV. A morte como ela é: dignidade e autonomia individual no final da vida. In: Pereira TS,
Menezes RA, Barboza HH (coords.). Vida, morte e dignidade humana. Rio de Janeiro: GZ editora, 2010. p. 182.
55
O projeto de lei 634/75, que tratava do código civil, começou a tramitar pela Câmara dos Deputados em
11/06/1975, demorou cerca de 27 anos para ser votado e aprovado, transformando-se na Lei nº 10.406
somente em 10/01/2002.
96
Capítulo 5 | Eutanásia, distanásia, mistanásia: conflitos éticos com a legislação brasileira
tempo para compartilhar a dor, preferindo, por razões utilitaristas e egoístas, defen-
der a eutanásia, eis que ela aparece como um meio de libertar-se de uma existência
que assume formas perturbadoras56.
Talvez por isso a questão da dignidade do doente em fase terminal não era
sequer discutida até bem pouco tempo. Não havia debate jurídico que ousasse con-
frontar a sacralidade da vida, mesmo que outros valores éticos pudessem ser invoca-
dos, como a autonomia, a dignidade, o direito de escolha e a própria qualidade de
vida do enfermo.
Quando a lei se torna evidentemente insuficiente, como parece ser o caso da
legislação sobre a eutanásia, deve-se buscar apoio e argumentação na interpretação
constitucional. Isso se justifica porque a discussão relativa à eutanásia é muito com-
plexa e põe em choque direto valores morais significantes, como o direito à vida, à
liberdade religiosa, à saúde e à própria dignidade humana, os quais vão além das
disposições legais.
Segundo Barroso, os processos em que se colocam em confronto os princípios
constitucionais são conhecidos como hard-cases57, sendo evidente que a discussão ju-
dicial da eutanásia é um desses casos difíceis.
Valores morais significantes, na ordem constitucional, são tratados como princí-
pios. Os princípios funcionam como mandatos de otimização58, devendo ser explo-
rados ao máximo e compatibilizados, ponderados e aplicados sem exceção ao caso
concreto, porém com cargas diferenciadas, o que permite que a solução mais justa e
adequada possa ser encontrada, superando o impeditivo legal por uma argumenta-
ção mais relevante do ponto de vista político, ético, econômico e social.
Essa análise constitucional passa, sem dúvida, pelo princípio da dignidade hu-
mana. Tal princípio, elemento fundamental da Constituição Federal de 198859, per-
meia toda a ordem jurídica, proporcionando uma nova orientação dos direitos e
deveres, agora compatíveis com a figura do Estado Democrático de Direito, em
56
Minahim MA. O direito e o dever de morrer: a complexidade de um tema. apud Pereira TS, Menezes RA,
Barboza HH. Vida, morte e dignidade humana. Rio de Janeiro: ed. GZ, 2010. p. 215.
57
Barroso LR. O controle de constitucionalidade no direito brasileiro: exposição sistemática da doutrina e
análise crítica da jurisprudência. 6ª ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 397.
58
Mattos MRG. Administração. In: Martins IGS, Mendes GF, Nascimento CV. (coords.). Tratado de direito
constitucional, v. 1, 2. ed., São Paulo: Saraiva, 2012. p. 1122.
59
Art. 2º, III, da CF.
97
Bioética e Humanização em Oncologia
que as normas jurídicas devem ser não só válidas e eficazes, mas também devem ser
legítimas60.
Analisado o direito constitucional à vida na perspectiva da dignidade humana, não
se pode admitir que o Estado venha legitimamente impor ao paciente terminal uma
situação de profunda agonia, transformando-o num “insuportável dever à vida”61.
Aliás, a prática de submeter o paciente a tratamentos fúteis e invasivos, que lhe
provoquem sofrimento físico e moral desnecessários, pode ser considerada tortura,
vedada pela Constituição Federal em seu art. 5º, III62.
É certo que o direito à vida é realmente especial e não pode ser flexibilizado sem
cautelas múltiplas, mesmo quando as circunstâncias forem extremamente adversas63,
como é o caso do paciente que está em fase terminal.
Todavia, viver de forma digna não é um “simples respirar biológico”64, mas sim
o respeito ao ser humano em sua complexidade, de modo que sua liberdade de
religião, de expressão, de locomoção e de autodeterminação seja respeitada pela
comunidade jurídica e efetivada pelo Estado65.
Na realidade, ao direito à vida, soma-se o princípio fundante da dignidade hu-
mana, fazendo com que haja “garantia não só do direito à vida, mas sim do direito
à vida digna”66, sendo esse o ponto de partida para a interpretação da prática da
eutanásia.
Noutro giro, o princípio da dignidade humana também dá outra coloração ao
direito à saúde, eis que saúde não equivale apenas à mera ausência de doença, mas é
modernamente compreendida como bem-estar físico, mental e social67. Dessa feita,
o adiamento a todo custo da vida significará puro desrespeito à saúde do paciente
60
Silva RBB, Campos RT. A eutanásia na processualidade democrática brasileira. Revista Brasileira de Direito
Processual - RBDPro. Belo Horizonte: Ed. Fórum. 2011;19(73):197-226, 210.
61
Barroso LR, Martel LCV. A morte como ela é: dignidade e autonomia individual no final da vida. In: Pereira TS,
Menezes RA; Barboza HH (coords.). Vida, morte e dignidade humana. Rio de Janeiro: GZ editora, 2010. p. 187.
62
Bomfim LR. Eutanásia: questões éticas e jurídico-penais relevantes. Revista do CEPEJ. Salvador: Centro de
Estudos e Pesquisas Jurídicas da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia – CEPEJ. 2009;11:295-
315, 313.
63
Barroso LR, Martel LCV. op. cit. p. 186.
64
Negri apud, Silva RBB, Campos RT. op. cit. p. 217.
65
Silva RBB, Campos RT. op. cit. p. 218.
66
Silva RBB, Campos RT. A eutanásia na processualidade democrática brasileira. Revista Brasileira de Direito
Processual – RBDPro. Belo Horizonte: Ed. Fórum. 2011;19(73):197-226, 198.
67
Bomtempo TV. A ortotanásia e o direito de morrer com dignidade: uma análise constitucional. In: Revista
Síntese de Direito de Família. São Paulo: Ed. Síntese. 2011;68:73-92, 80.
98
Capítulo 5 | Eutanásia, distanásia, mistanásia: conflitos éticos com a legislação brasileira
Considerações finais
Finalizando, conclui-se que os tempos atuais são de questionamento permanente
de direitos, deveres e posturas éticas antes estabelecidas. Diante desse quadro – o
Estado Democrático de Direito –, o Poder Judiciário adquiriu protagonismo nunca
antes visto na solução dos conflitos sociais.
A judicialização da saúde, não obstante seja mais evidente quanto à questão do
acesso, também abrange outros temas tão ou mais relevantes, como é o caso da eu-
tanásia e suas variantes, as quais visam a garantir o direito de morrer com dignidade.
Como são muitas as situações em que a prática pode ocorrer, é importante dis-
tinguir conceitualmente cada prática para evitar equívocos. Também é necessário,
para a compreensão de como o judiciário trata o assunto, que se passe por uma bre-
ve explanação de como funciona o ordenamento jurídico e de que maneira, na prá-
tica, acontece a aplicação da norma jurídica relativa à eutanásia e às suas variações.
Essa situação vai revelar alguns conflitos éticos, derivados em grande medida
pelo envelhecimento da legislação, que entra em choque direto com os novos para-
digmas sociais.
Por isso, deve-se apelar para uma nova perspectiva constitucional, da qual aflora
o princípio da dignidade humana como fonte de argumentação jurídica capaz de
superar as dificuldades de interpretação da norma legal.
68
Art. 5º, III, CF.
69
Bomtempo TV. op. cit. p. 86.
99
Bioética e Humanização em Oncologia
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100
Capítulo 5 | Eutanásia, distanásia, mistanásia: conflitos éticos com a legislação brasileira
101
Capítulo 6 | Bioética e cuidados paliativos
6
Bioética e cuidados paliativos
Marcos Santos, Talita Cavalcante Arruda de Morais
Introdução e definições
Ninguém vive em estado de plena saúde. E a vida, o viver, é enfermidade. É um
estado de contínuo envelhecimento que levará, cedo ou tarde, ao desfecho final: o
óbito. Enfermo, do latim infirmus, significa “não firme”, uma constante na vida do
homem. Saúde é, segundo Jorge Orgaz, que foi Reitor da Universidade de Córdoba,
na Argentina, entre os anos de 1958 e 1964, um estado de perfeita harmonia, que
simplesmente não se realiza1. Estimou-se que, no ano de 2002, houve 57 milhões de
mortes em todo o mundo. E destas, 33 milhões ocorrem como consequência de uma
doença crônico-degenerativa. Teriam, portanto, indicação de receber algum grau
de cuidado paliativo2.
Cuidados paliativos são definidos, pela Organização Mundial da Saúde
(OMS), como uma abordagem que visa melhorar a qualidade de vida do paciente
e de suas famílias, enfrentando o problema secundário à doença que coloca em
risco a vida do indivíduo por meio da prevenção e alívio do sofrimento e da iden-
tificação precoce e tratamento da dor e de outros sinais ou sintomas, de origem
física, psicossocial ou espiritual.
Os cuidados paliativos devem, idealmente:
103
Bioética e Humanização em Oncologia
104
Capítulo 6 | Bioética e cuidados paliativos
105
Bioética e Humanização em Oncologia
1998, Polônia em 1999 e Nova Zelândia em 2001. Outros países o fizeram poste-
riormente11. No Brasil, a Medicina Paliativa é especialidade desde o ano de 2011,
assim como a Medicina do Sono, Medicina da Dor e Medicina Tropical12. A Asso-
ciação Brasileira de Cuidados Paliativos foi criada em 1997 e a Academia Nacional
de Cuidados Paliativos, em 2005. O primeiro livro sobre cuidados paliativos, escrito
por brasileiros, foi publicado em 200413.
O médico paliativista exerce, então, uma especialidade relativamente nova.
Busca os objetivos anteriormente descritos em um cenário de impressionante de-
senvolvimento tecnológico. Enfrenta, no exercício de sua especialidade, por isso,
muitos dilemas éticos. Vive em um contexto em que a morte é considerada grande
adversária dos profissionais de saúde. Precisa decidir em que situação não usar toda
a tecnologia que tem disponível14, quando, por outro lado, o uso é estimulado, pela
influência que tem na remuneração do profissional, e passa a ser uma importante
variável a ser considerada15. Mais do que a correta aplicação dos cuidados e da
técnica, que aprende e desenvolve no seu treinamento, o médico paliativista toma
decisões complexas no seu dia a dia, para as quais tão somente o completo domínio
da supramencionada técnica pode não ser suficiente. Este texto pretende discutir
alguns desses dilemas, trazendo para a vida prática alguns dos princípios descritos
no Capítulo 1 deste livro.
106
Capítulo 6 | Bioética e cuidados paliativos
107
Bioética e Humanização em Oncologia
NUTRIÇÃO E HIDRATAÇÃO
A decisão de manutenção da nutrição e da hidratação, em paciente sob sedação
terminal, deve ser tomada em separado. Há quem defenda que devam ser continua-
das, uma vez que o paciente está impossibilitado para tanto, e a restrição, esta sim,
significaria uma antecipação do desfecho letal26.
Por outro lado, a continuação da nutrição e hidratação, durante a sedação ter-
minal, pode ser vista como desnecessária, uma vez que não contribui para o alívio de
nenhum dos sintomas, e o alívio dos sintomas é a prioridade nessa fase do cuidado.
Não haveria, tal qual, evidências claras de que a nutrição e a hidratação prolonga-
riam, de maneira significativa, a vida de pacientes cuja morte seja iminente.
Um fato importante a ser considerado é que pacientes, quando colocados em se-
dação paliativa, não infrequentemente já estão sem receber nutrição ou hidratação,
por razões outras, antes que a sedação se inicie. Porém, quando um paciente rece-
bendo nutrição ou hidratação recebe sedação terminal, continuar ou não o suporte
são opções válidas, a depender do objetivo da abordagem e do contexto cultural em
que o paciente está imerso. Essas são variáveis que devem ser levadas em conside-
ração, sempre com o objetivo final de alcançar o máximo conforto possível para o
indivíduo, nos últimos momentos de sua vida.
108
Capítulo 6 | Bioética e cuidados paliativos
109
Bioética e Humanização em Oncologia
antibiótico para uma infecção tratável e o paciente, sem patologia que comprometa
sua qualidade de vida, vem, finalmente, a falecer por conta da referida infecção34.
Esses não são casos de “não ato” misericordioso. Ao contrário, trata-se de omissão
de socorro ou simples negligência, completamente diversos, do ponto de vista moral.
O código de ética médica vigente no Brasil veda, ao médico, abreviar a vida do
paciente, ainda que a pedido deste ou de seu representante legal. E acrescenta que35:
110
Capítulo 6 | Bioética e cuidados paliativos
111
Bioética e Humanização em Oncologia
112
Capítulo 6 | Bioética e cuidados paliativos
Considerações finais
Parafraseando Dr. Henrique Gonçalves, então presidente do Cremesp por ocasião
da publicação do supracitado livro: “Cuidado Paliativo”, “a guerra contra a dor e a morte
jamais pode ser considerada como perdida: em todos os estágios da vida humana há, sim, o que ser
feito, para garantir que a trajetória dos nossos acompanhados mantenha-se digna e amparada”58.
Cuidados paliativos são vistos, felizmente, com crescente importância na prática
médica atual. E cada um dos procedimentos aqui discutidos firma-se, cada vez mais, no
armamentário à disposição do profissional de saúde. A interdição de cada um destes,
assim como as objeções de natureza moral, vem sendo vencida, progressivamente, em
nome da preservação da dignidade do doente, o que seria impensável até há bem pouco
tempo. E o argumento em contrário, que se baseia no risco da hiperutilização, paterna-
lista e superprotetor, perde força e sustentabilidade, haja vista a necessidade de respeito
a autonomia, individualidade, direito de escolha e vontade do paciente, quando é cla-
ramente expressa por ele ou por seu representante legal, e quando os cuidados necessá-
rios, que visam evitar abusos ou arrependimento, são rigorosamente observados.
113
Bioética e Humanização em Oncologia
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Capítulo 7 | Custos no último ano de vida do paciente
7
Custos no último ano
de vida do paciente
João Paulo dos Reis Neto
Introdução
A escalada dos custos da assistência à saúde tem sido tema constante em todas as
discussões de especialistas em sistemas públicos e privados. Dentre os fatores con-
siderados como responsáveis, alguns preponderam sobre os demais e parecem ser
consenso: tecnologias em saúde (incorporação acrítica e/ou má utilização), gastos
administrativos crescentes (controles, sistemas, impostos, dentre outros) e a transição
demográfica e epidemiológica.
O peso que cada um desses fatores exerce sobre o custo final da saúde depende
de características muito específicas. No Brasil, a redução da mortalidade geral e da
mortalidade infantil e o aumento da expectativa de vida observado nos últimos anos
têm como consequência natural o envelhecimento populacional e o aumento do
número de portadores das doenças crônicas, sendo esse um dos principais desafios
para alocação adequada dos recursos de modo a manter viável o sistema.
A rapidez com que esses fenômenos demográficos e epidemiológicos estão ocor-
rendo constitui uma preocupação adicional, e a busca de alternativas, uma neces-
sidade premente. Estima-se, em 2050, uma população no Brasil de 64 milhões de
indivíduos com 60 anos de idade ou mais1. Países em que essas mudanças ocorreram
de forma mais gradual observaram menores impactos sobre os custos.
117
Bioética e Humanização em Oncologia
A elevação dos gastos com saúde parece estar diretamente associada ao efeito da
idade e a outro fator considerado importante, a proximidade da morte2. Em função
do aumento da idade e da maior concentração de pessoas morrendo em idades mais
avançadas, a proximidade da morte seria, nesses casos, o fator que explicaria grande
parte do aumento nos gastos3.
No Brasil, são poucos os estudos relativos a despesas assistenciais no período que
antecede à morte, mas em outros países observamos algumas publicações consisten-
tes e que, de modo geral, apresentam as seguintes conclusões:
a) Os custos são mais elevados no final da vida por conta principalmente
da deterioração do estado de saúde nesse período.
b) Apesar dos diferentes percentuais encontrados, os gastos
relacionados ao evento morte são um componente
importante das despesas globais com saúde.
c) A maior parte dos gastos relacionados à patologia que
leva à morte ocorre no último ano de vida.
d) Diferentes estudos demonstram que o montante gasto no último
ano de vida decai gradativamente com o aumento da idade.
Haja vista a importância do tema e a pouca literatura sobre o assunto no Brasil,
tivemos oportunidade de realizar um estudo cujo objetivo principal foi de avaliar,
num cenário do mundo real de um plano de saúde brasileiro, o efeito da proximida-
de da morte de beneficiários sobre os gastos com saúde nos cinco anos que antece-
deram o evento fatal, em especial o último ano de vida.
Material e métodos
O estudo consistiu na análise retrospectiva de 1.897 beneficiários com cobertura
integral de um plano de saúde privado, os quais morreram entre janeiro de 2007
e junho de 2009. As informações foram obtidas a partir de dados armazenados no
sistema informatizado do plano de saúde. Os serviços de saúde ambulatoriais e hos-
pitalares utilizados pelos beneficiários e reembolsados pelo plano de saúde no ano
da morte e nos quatro anos que a antecederam foram avaliados, compreendendo,
portanto, o período de 2003 a 2009.
Os valores reembolsados consideraram o preço praticado na data de realização,
em Real Brasileiro (R$). A análise limitou-se aos totais de custos diretos com a assis-
118
Capítulo 7 | Custos no último ano de vida do paciente
Resultados
Do total de 1.897 mortes analisadas, 745 (39,3%) ocorreram em 2007, 773 (40,7%)
em 2008 e 379 (20,0%) até junho de 2009. A maior parte dos óbitos ocorreu em ho-
mens (60,4%) e entre indivíduos com 60 anos de idade ou mais (77,0%), conforme
demonstrado na Tabela 1. A média de idade do óbito geral foi de 70,6 anos (IC 95%
69,9-71,4), sendo de 69,2 anos (IC 95% 68,2-70,2) para homens e 72,8 anos (IC
95% 71,6-74,1) para mulheres.
Os beneficiários que morreram (1.897) representam 0,5% do total de vidas co-
bertas pelo plano de saúde (média no período de 161.238 indivíduos), porém seu
119
Bioética e Humanização em Oncologia
Discussão
O custo com os cuidados com a saúde no período em que antecede à morte costuma
ser mais elevado que os custos daqueles que permanecem vivos4. Isso porque as pes-
soas, de modo geral, pioram seu estado de saúde gradativamente antes de morrer.
120
Capítulo 7 | Custos no último ano de vida do paciente
35.000.000 - 1 a 12 meses
13 a 24 meses
25 a 36 meses
30.000.000 - 37 a 48 meses
49 a 60 meses
25.000.000 -
Custo total
20.000.000 -
15.000.000 -
10.000.000 -
5.000.000 -
0-
0a9 10 a 19 20 a 29 30 a 39 40 a 49 50 a 59 60 a 69 70 a 79 80 e mais
Faixa etária (anos)
80.000 - - 200
60.000 - - 150
40.000 - - 100
20.000 - - 50
0- -0
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ga
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Les
Ne
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Feb cções
D ia
e
Inf
re
121
Bioética e Humanização em Oncologia
Tabela 3. Custo médio per capita total do plano de saúde e custo após desconto das
despesas dos beneficiários que morreram em cada ano, por faixa etária – 2007-2009
Faixa Mortos em 2007 Mortos em 2008 Mortos até junho
etária (n=745) (n=773) de 2009
(anos) (n=379)
(a) (b) (c) (a) (b) (c) (a) (b) (c)
0a9 304,21 302,87 1 375,87 373,25 1,01 186,53 186,69 1
10 a 19 284,75 283,52 1 350,55 338,04 1,04 155,13 139,81 1,11
20 a 29 624,14 613,53 1,02 661,06 642,93 1,03 371,84 372,67 1
30 a 39 787,14 777,78 1,01 965,40 952,83 1,01 496,20 497,04 1
40 a 49 916,55 863,07 1,06 1.019,29 1.002,20 1,02 525,91 513,68 1,02
50 a 59 1.314,10 1.237,20 1,06 1.632,97 1.497,50 1,09 840,12 783,02 1,07
60 a 69 2.531,88 2.246,04 1,13 2.567,82 2.204,42 1,16 1.367,30 1.176,14 1,16
70 a 79 4.305,93 3.563,87 1,21 4.355,12 3.496,25 1,25 2.552,02 2.147,78 1,19
80 e mais 7.223,04 4.067,11 1,78 7.006,62 4.639,30 1,51 3.803,43 2.790,18 1,36
(a) Custo total (vivos e mortos); (b) Custo descontando valores dos mortos; (c) Relação entre (a) e (b).
122
Capítulo 7 | Custos no último ano de vida do paciente
123
Bioética e Humanização em Oncologia
Considerações finais
Certamente a oferta de serviços de assistência especializada e cuidados paliativos,
em especial quando da proximidade da morte, é fundamental como alternativa para
viabilizar essa trajetória e mantê-la no futuro. Abordagens que possam contribuir
para melhoria da qualidade de vida dos doentes e seus familiares, prevenindo e ali-
viando o sofrimento, nos parece fundamental sob a ótica social e importante para a
questão econômica relativa aos últimos anos de vida.
Este trabalho apresenta algumas limitações inerentes desse tipo de análise. Tra-
ta-se de um estudo retrospectivo, com informações obtidas a partir do sistema infor-
matizado do plano de saúde, realizado sob a perspectiva do pagador e que conside-
rou somente os custos diretos.
A partir deste estudo dos custos nos últimos anos de vida, mesmo quando se
levam em conta algumas limitações, ficou demonstrada a importância de considerar
esse fator na projeção do custo atuarial do plano de saúde, bem como a necessidade
de rever a estratégia de cobertura de benefícios, como, por exemplo, adoção de cui-
dados paliativos na abordagem de algumas patologias, dentre as quais o tratamento
do câncer. Este estudo apresenta subsídio para um debate muito amplo, que envolve
questões técnicas, sociais, culturais e éticas, que a sociedade não poderá se furtar de
realizar, sob pena de buscarmos soluções somente após o colapso do modelo vigente.
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Capítulo 7 | Custos no último ano de vida do paciente
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125
Capítulo 8 | Justiça e alocação de recursos escassos em oncologia
8
Justiça e alocação de recursos
escassos em oncologia
Marcos Santos
Introdução
Diz o artigo 14 da Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos da
UNESCO1: a promoção da saúde e do desenvolvimento social para sua população
é objetivo central dos governos, partilhado por todos os setores da sociedade. Consi-
derando que usufruir do mais alto padrão de saúde atingível é um dos direitos fun-
damentais de todo ser humano, sem distinção de raça, religião, convicção política,
condição econômica ou social, o progresso da ciência e tecnologia deve ampliar:
• O acesso a cuidados de saúde de qualidade e a medicamentos
essenciais, incluindo especialmente aqueles para a saúde de
mulheres e crianças, uma vez que a saúde é essencial à vida em
si e deve ser considerada como um bem social e humano;
• O acesso à nutrição adequada e água de boa qualidade;
• A melhoria de condições de vida e do meio ambiente;
• A eliminação da marginalização e da exclusão de
indivíduos por qualquer que seja o motivo;
• A redução da pobreza e do analfabetismo.
127
Bioética e Humanização em Oncologia
JUSTIÇA
Todo ser humano é igual, no que concerne à sua dignidade. E, segundo a Declara-
ção Universal sobre Bioética e Direitos Humanos1, em seu artigo 10, essa igualdade
deve ser respeitada, de maneira que todos sejam tratados de forma justa e equita-
tiva1. Este artigo veio ratificar o que já vinha citado na Declaração Universal dos
Direitos Humanos, em seu artigo n° 25, parágrafo um: “todo ser humano tem direi-
to a um padrão de vida capaz de assegurar-lhe, e a sua família, saúde e bem-estar,
inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais
indispensáveis, e direito à segurança em caso de desemprego, doença, invalidez,
128
Capítulo 8 | Justiça e alocação de recursos escassos em oncologia
Utilitarismo
A abordagem utilitarista, surgida no século XIX, a partir das ideias de Jeremy Ben-
tham e, posteriormente, Stuart Mill, entende que justas são as ações que aumentam,
de maneira mais significativa, o bem-estar do maior número de pessoas, pelo maior
período de tempo. Esse bem-estar pode ser medido na forma de “utilidades” que,
segundo Bentham, é tudo aquilo que pode trazer prazer e felicidade, ou evitar dor
e sofrimento. A graduação das ações na forma de utilidades permite eventuais com-
parações e priorizações11. Um exemplo interessante foi um famoso caso citado, entre
outros, por Boyer, em seu artigo publicado em 1986, e que ficou conhecido como
o caso da Mignonette. Quatro náufragos estavam há 19 dias à deriva, sem reserva
de água ou alimentos. Diante da morte iminente de todos os tripulantes, um deles
propôs o seguinte: seria feito um sorteio para que fosse decidido quem seria assassi-
nado pelos demais colegas, para ter seu sangue e carne consumidos, possibilitando,
assim, a sobrevivência dos três tripulantes restantes por mais alguns dias, à espera de
um possível resgate. Um dos náufragos, o taifeiro, justamente aquele que não tinha
dependentes (e, ironicamente, aquele que cuidava da alimentação dos tripulantes
129
Bioética e Humanização em Oncologia
Liberalismo
Liberais, por sua vez, priorizam a liberdade individual em detrimento do ganho
social e confiam no livre mercado distributivo dos bens disponíveis na Sociedade.
John Locke, filósofo britânico que viveu no século XVII, foi quem concebeu a
ideia de direito natural à liberdade13. Posteriormente, Robert Nozick aprofundou
as ideias de Locke e defendeu, em seu livro “Anarquia, Estado e Utopia”, que toda
ação do Estado estaria justificada se (e somente se) o objetivo fora a proteção da
propriedade dos cidadãos, assim como de seus direitos legais. Um exemplo bas-
tante representativo de suas ideias é a menção de que governos agem de maneira
coercitiva e injusta ao taxar progressivamente, e não de maneira igualitária, as
pessoas, a depender de seus níveis de renda, desde que, ressalta, a riqueza tenha
sido obtida de maneira legítima e por meio de negociações legais, contratualiza-
das. Podemos ir ainda um pouco mais longe: segundo Nozick, a Sociedade não
está moralmente obrigada a garantir o acesso universal dos seus cidadãos à saúde,
que é, segundo esse mesmo autor, uma mercadoria, que deve ser paga pelo indiví-
duo que visa consumi-la, se assim determinar a sua vontade14. Qualquer um que
acredite que a desigualdade econômica seja injusta terá que intervir repetida e
continuamente no mercado, para eliminar o efeito de escolhas feitas pelos próprios
130
Capítulo 8 | Justiça e alocação de recursos escassos em oncologia
indivíduos. Um libertário típico rejeita três tipos de diretrizes e leis que o Estado
moderno normalmente promulga10:
• Nenhum paternalismo: os liberais são contrários às leis que protegem as
pessoas de si mesmas, como, por exemplo, a lei que obriga as pessoas a
usarem cinto de segurança em automóveis, ou capacetes em motocicletas.
• Nenhuma legislação sobre a moral: os liberais são contra
a proibição, por exemplo, da prostituição.
• Nenhuma redistribuição de renda ou de riquezas:
a caridade deve ser facultativa.
Segundo um liberal, o ser humano é dono de si mesmo e poderia, inclusive, ven-
der partes do seu corpo, independentemente da utilização que fosse feita do referido
órgão (vender para um excêntrico colecionador, por exemplo). Poderia, também,
doar o segundo rim, ainda que isso implicasse sua morte por insuficiência renal
(ideia difundida antes do aparecimento das máquinas de hemodiálise). E poderia,
também, sem nenhuma interferência do Estado, solicitar um suicídio assistido, desde
que alguém se dispusesse, livre e autonomamente, a ajudá-lo, ainda que não fosse
um doente terminal ou que não estivesse vivendo um sofrimento que comprometes-
se a sua dignidade10.
Igualitarismo
Por outro lado, a teoria igualitária, de aparecimento contemporâneo às mais antigas
tradições religiosas, e ancorada na ideia de que os seres humanos são iguais porque
feitos à imagem e semelhança de Deus, privilegia acesso também igualitário aos bem
sociais (e à saúde) e julga que toda pessoa tem direito sempre à mesma porção de
liberdade e de bens materiais, resultado de uma divisão justa (e neutra – ou equi-
tativa) dos bens disponíveis naquela Sociedade. E entende, conforme Kant, que o
utilitarismo puro é injusto, porque é errado tratar qualquer ser humano como mero
instrumento da felicidade coletiva. O ser humano é um fim em si mesmo, grafou
o filósofo prussiano15. Alguma diferença na porção de bens materiais que cabe a
cada indivíduo, no entanto, seria aceitável. Mas, para tanto, duas condições devem
ser respeitadas: as diferenças devem beneficiar a todos; e as condições “de parti-
da”, ou seja, as oportunidades de acúmulo de bens, devem ser sempre similares16.
Um exemplo é que seria aceitável, por exemplo, para os igualitários, que médicos
tivessem remunerações superiores aos motoristas de ônibus, porque estes precisam
131
Bioética e Humanização em Oncologia
mais daqueles do que aqueles, destes. Tal diferença propiciaria, em tese, um melhor
atendimento médico aos próprios motoristas, e seria, finalmente, benéfico para a
sociedade em geral10. Não há menção, no entanto, à dimensão máxima que pode
atingir tal diferença, e nem se, em algum momento, esta tornar-se-ia excessiva e, por
isso, ilegítima (e injusta)17. Segundo Rawls, em resumo, princípios justos são aqueles
com os quais estaríamos de acordo, em uma situação inicial de desconhecimento de
nossa condição (raça, classe social, presença ou não de alguma deficiência etc.). Na
presença do conhecimento de particularidades, o desfecho será sempre prejudicial,
ainda que por contingências arbitrárias. O virtual desconhecimento garantiria, en-
tretanto, a equidade16.
Comunitarismo
A justiça comunitária, de inspiração Aristotélica, por fim, evoca princípios de “bem
desenvolvidos na comunidade moral”, e entende que este é seu objetivo fundamen-
tal, que deve ser buscado e recompensado. Segundo Aristóteles, “iguais devem ser
tratados de maneira igual, e desiguais devem ser tratados de maneira desigual”,
dando-se a cada pessoa o que ela merece. E, para determinar e quantificar o me-
recimento de cada um, devemos, em comum acordo, estabelecer quais virtudes são
dignas de honra e recompensa18. Versões mais modernas dessa abordagem serviram
de reação às teorias de Rawls e Nozick. Há um desprezo pela justiça contratual,
vista como pouco engajada no bem comum e, por isso, injusta. O social é sempre
priorizado. Um exemplo interessante dessa abordagem versa sobre a doação de ór-
gãos: segundo alguns comunitários modernos, uma vez constatada a morte cerebral,
o cadáver não pertence mais à família do indivíduo, e a doação de órgãos seria,
então, um procedimento automático, na ausência de objeções registradas, em vida,
pelo próprio paciente, uma vez que é obrigação do indivíduo doar para o benefício
da Sociedade. É a doação presumida, que foi objeto de lei vigente no Brasil entre
1997 e 2001 (Lei 9434, de 1997)19, posteriormente anulada (Lei 10211, de 2001)20,
dada a não ocorrência (esperada pelos formuladores da lei) de um aumento do nú-
mero de órgãos disponíveis para transplante. Muitas equipes médicas recusavam-se
a proceder a coleta dos órgãos sem a autorização expressa da família, exatamente
como ocorria antes da lei. Tal proposta voltou, atualmente, à discussão no Congres-
so Nacional, e está em análise (Projeto de Lei do Senado n° 405, de 2012, de autoria
do Senador Humberto Costa, do PT de Pernambuco)21, na Comissão de Direitos
Humanos e Legislação Participativa. Segundo os teóricos comunitários, nos quais se
132
Capítulo 8 | Justiça e alocação de recursos escassos em oncologia
Teorias contemporâneas
Duas teorias historicamente mais recentes vêm complementar esses conceitos já bem
estabelecidos e são, fundamentalmente, complementares às anteriores. São elas: a
“teoria das capacidades”, segundo a qual talentos e capacidades são fundamentais
para o desenvolvimento da vida e da humanidade e, portanto, devem ser protegidos
e recompensados. A necessidade de cada indivíduo seria dependente das necessi-
dades para o desenvolvimento dessas capacidades, visando, finalmente, ao bem co-
mum. Um nível mínimo de justiça social requer, segundo essa abordagem teórica,
a disponibilização, para todos os cidadãos, de 10 “capacidades centrais”. São elas:
vida (direito de não morrer prematuramente), saúde física e mental, integridade do
corpo, imaginação e pensamento (liberdade de expressão), emoções (liberdade para
a construção de laços emocionais), razão, família, convivência com outras espécies,
capacidade de recreação e controle sobre o meio ambiente23.
Já a chamada “teoria do bem-estar” enfatiza a dimensão central do próprio
conceito holístico de “bem-estar”, como, por exemplo, a saúde física e mental de
cada indivíduo. Está umbilicalmente ligada com a política que melhora a alocação
de recursos (alocação ótima) e entende que justa é a ação que busca a efetivação
dessa condição. A justiça social deve ser, então, aquela que busca o conforto dos ci-
dadãos. Num nível que se julga suficiente24. Daí deriva a teoria do “Welfare State”,
ou “Estado do Bem-Estar Social”. O Welfare State significou, no mundo pós-guerra,
mais do que um simples incremento nas políticas sociais no mundo desenvolvido.
Na verdade, esse esforço pela construção do “estado de bem-estar” representou um
impulso na reconstrução econômica, moral e política de uma sociedade devastada
pela guerra. Economicamente, significou um abandono da ortodoxia da pura lógica
do mercado, em favor de uma maior atenção a, por exemplo, segurança do emprego
e direitos do cidadão. Moralmente, significou a defesa de ideias de justiça social,
solidariedade e universalismo. E, politicamente, significou a escolha de um caminho
estreito entre dois limites perigosos, representados, naquela ocasião, pelo fascismo e
pelo bolchevismo. O Welfare State visa, em resumo, à promoção de uma integração
social nacional25.
133
Bioética e Humanização em Oncologia
134
Capítulo 8 | Justiça e alocação de recursos escassos em oncologia
Mas poderíamos também (o que parece ser mais produtivo), segundo Rawls, fazer
os mais talentosos desenvolverem as suas aptidões, mas sempre em benefício da So-
ciedade como um todo. As recompensas pelo sucesso pertenceriam ao grupo, e não
àquele indivíduo apenas16.
135
Bioética e Humanização em Oncologia
Os limites da equidade
Mas quais são os limites das correções que são, segundo Rawls, obrigações do Esta-
do? O famoso corredor sul-africano Oscar Pistorius, que frequenta, há alguns anos,
as páginas policiais dos jornais, devido à acusação de assassinato de sua namorada,
também foi o objeto principal de uma intensa discussão a respeito da equidade (ou
não) em relação a outros competidores, quando de sua solicitação de participação
dos jogos olímpicos de verão de Pequim, em 2008. O atleta, biamputado de suas
pernas desde a infância e utilizador de próteses metálicas de forma de “J”, de fibras
de carbono, era vítima de críticas porque havia a desconfiança de que as referidas
próteses, mais do que conferir-lhe igualdade de condições de disputa, poderia, fi-
nalmente, e dada a elevada tecnologia empregada na sua confecção (que o permitia
a economia de 25% da energia total gasta no esforço, quando na velocidade final),
acabar por conferir-lhe vantagens suplementares, colocando-o em posição mais fa-
vorável em comparação com outros corredores. A polêmica estendeu-se por meses,
até que, finalmente, em abril de 2008, poucos meses antes dos referidos jogos olím-
picos, a Corte para Arbitração do Esporte (CAS, em sua sigla em inglês) deu-lhe
decisão favorável, revertendo decisão inicial da IAAF (Associação Internacional das
Associações de Atletas), que lhe havia sido contrária. O atleta pôde, finalmente, can-
didatar-se a uma vaga nos Jogos disputados em solo chinês, o que, infelizmente, não
aconteceu, por uma pequena diferença de tempo na eliminatória final. Participou,
no entanto, dos Jogos Olímpicos de Londres, em 2012. Avançou até as semifinais,
nos 400 metros rasos, e participou da corrida final do revezamento 4 x 100 metros
rasos. A África do Sul ficou em 8º lugar, mas marcou o melhor tempo que o time
daquele país tinha conseguido até aquela ocasião. Participou, assim, da quebra do
recorde nacional. O referido atleta carregou a bandeira do país na cerimônia de
encerramento dos referidos jogos olímpicos28.
136
Capítulo 8 | Justiça e alocação de recursos escassos em oncologia
137
Bioética e Humanização em Oncologia
tempo hábil para a patologia chamada alcoolismo. O risco elevado de recidiva pode
pôr a perder todo o esforço cirúrgico, além de punir um outro paciente que perma-
nece mais tempo na fila, à espera do próximo órgão disponível.
Esse não é, no entanto, um posicionamento que obtém consenso entre as equi-
pes transplantadoras30, uma vez que existem evidências de que, vencidos seis meses
de abstinência, o resultado do transplante, em pacientes alcoólatras, atinge os mes-
mos níveis de sucesso do que os procedimentos realizados nos demais doentes he-
páticos terminais31. Mas ainda assim estamos diante de uma situação de escassez. A
pergunta permanece: Não haveria, por parte desses doentes, “menos merecimento”
em comparação com os demais?
Vítimas de acidentes automobilísticos, normalmente em situação mais grave
pela falta do uso do cinto de segurança (também uma atitude autônoma, fruto de
uma escolha consciente), são atendidos sem hesitação, nas salas de emergência
de todo o mundo, se em risco de vida. Fumantes recebem pontes de safena ainda
que, diante da clara indicação clínica, mantenham o hábito de fumar, a despeito
da farta orientação em contrário que, normalmente, faz-se presente nessas situa-
ções. Entretanto, em nenhum dos casos descritos anteriormente, há escassez (sal-
vo limitações econômicas) de recursos. Fígados disponíveis para transplante são
escassos, como vimos, mesmo nos países ricos. E os alcoólatras, se não falharam
moralmente ao ingerir álcool, podem ter, segundo alguns, falhado moralmente
ao não buscar tratamento. Então, aqueles que advogam a exclusão desses doentes
das filas de transplante o fazem utilizando-se de um argumento moral. Trata-se,
no mínimo, de um julgamento parcial. E, por isso, injusto. Descontadas todas as
limitações anteriormente citadas a respeito da etiologia da neoplasia pulmonar,
também válidas para a patologia hepática em questão (o desenvolvimento da cir-
rose não é função direta da quantidade de álcool consumida, e está sujeito, por
exemplo, a variações genéticas, resultado da loteria da distribuição gênica que
ocorre no momento da concepção), não há consenso a respeito de quais caracte-
rísticas morais devem ser beneficiadas, no momento de escolha de qual paciente
está mais apto para a recepção de um órgão transplantado30. Não se avalia, por
exemplo, se o candidato a receber um órgão é um pai (ou mãe) opressor e abusivo,
um indivíduo com tendências racistas, sexistas, sonega seus impostos, trai o seu
cônjuge ou é suspeito de ser um pedófilo assassino. Julgamentos morais não são,
por isso, admissíveis, ao se determinar quem (e quem não) receberá um órgão
para transplante.
138
Capítulo 8 | Justiça e alocação de recursos escassos em oncologia
Responsabilidade social
As condições de vida e trabalho dos indivíduos (e grupos da população) estão in-
trinsecamente relacionadas às suas condições de saúde. Daí surge o conceito de
“determinante social em saúde”, que são os fatores sociais, econômicos, culturais,
étnico/raciais, psicológicos e comportamentais que influenciam a ocorrência de
problemas de saúde, ou atuam como agravadores de fatores de risco para algumas
patologias naquela população. Rudolf Virchow, por exemplo, desde o século XIX,
já via a medicina como uma ciência essencialmente social, e intuía que as condições
econômicas (e sociais) exerceriam um efeito importante sobre a saúde e a doença32.
Durante todo o século XX, viveu-se a tensão entre a abordagem social e a aborda-
gem bacteriológica da etiologia das enfermidades, mas o consenso no sentido do en-
tendimento do que vai acima, defendido pelo médico alemão, foi, pouco a pouco, se
consolidando. Nesse sentido, a decisão da OMS de organizar e divulgar seu “Infor-
me sobre Determinantes Sociais de Saúde” estimulou significativamente a discussão
conceitual e política da etiologia social das doenças, no setor social como um todo, e
no setor sanitário, mais especificamente33.
Ausente no primeiro rascunho do texto do artigo 14 da DUB, datado de junho
de 2004, assim como no segundo, de julho daquele mesmo ano, o princípio da res-
ponsabilidade social, que conduziria, então, ao direito de todos à atenção à saúde,
não era tido como imprescindível. Finalmente, por conta da 170ª sessão do Conse-
lho Executivo da U NESCO (outubro de 2004), e graças à insistência dos países lati-
no-americanos e caribenhos, com apoio dos africanos, a demanda dessa inclusão foi,
finalmente, examinada. A atenção a questões de justiça social foi defendida em reu-
niões regionais posteriores, em particular naquela da capital portenha, ocorrida em
novembro 2004, que resultou na “Carta de Buenos Aires”. Especialistas da região
ressaltaram que a Bioética deveria ocupar-se de aspectos concretos da realidade da
maioria da população mundial, como pobreza, fome, exclusão social, guerra e vio-
lência34. O grupo de redação do Comitê Internacional de Bioética (CIB/UNESCO),
por ocasião da reunião de dezembro de 2004, voltou ao tema e decidiu, por fim,
incluir “Responsabilidade Social” no título do artigo 14. O texto, mais uma vez, foi
alvo de constantes discussões durante a reunião seguinte do CIB, de janeiro de 2005,
e foi, finalmente, aprovado em fevereiro daquele ano. Intensos debates se seguiram
na segunda reunião de especialistas governamentais, em junho. E em outubro de
2005, na Conferência Geral da U NESCO, a solicitação dos países latino-america-
nos foi, enfim, aprovada por aclamação35.
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Bioética e Humanização em Oncologia
A Lei Natural
Mas ainda cabe o questionamento: qual a origem e justificativa do papel do Estado
como protetor (e investidor) social? De acordo com São Tomás de Aquino, teórico
cristão que viveu no século XIII, e que foi profundamente influenciado pelo pen-
samento aristotélico, segundo o qual tudo, no mundo (inclusive os humanos), tem
uma função vital, a natureza humana requer o “florescimento” do indivíduo. Isso
significa o desenvolvimento e o aprimoramento de nossas capacidades inatas como
seres vivos, sociais, sencientes e racionais. E, para tanto, todos os seres humanos têm
uma série de “inclinações naturais”, para buscar o que quer que vejamos como bom,
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Capítulo 8 | Justiça e alocação de recursos escassos em oncologia
141
Bioética e Humanização em Oncologia
domínio, haja vista seu poder potencial de destruir o mundo. Derivaria daí o dever
de preservação desse mesmo mundo, para as gerações futuras. Uma nova ética se
fazia, por isso, necessária43.
A filosofia principialista, principalmente voltada para a relação médico-pacien-
te, biomédica e biotecnológica, tem sido vista como, apesar de inegavelmente im-
portante, insuficiente na fundamentação filosófica do direito à saúde, uma vez que
este não envolve apenas indivíduos, mas instituições públicas, responsáveis pela im-
plementação de políticas governamentais44-46. O princípio da responsabilidade pede
que se preserve a condição de existência da humanidade, e daí deriva a responsabi-
lidade ética em relação ao outro, porque o “ser” resulta em “dever”. O ser huma-
no tem a vantagem, em relação aos outros animais, como pensava Jonas, de ser o
único animal capaz de ter responsabilidade. Assim como Aristóteles e São Tomás
de Aquino, Jonas também entendia que os seres vivos devem viver para cumprir
um objetivo. A responsabilidade política seria, segundo esse autor, um dos ramos da
responsabilidade total. E, analogamente à responsabilidade paterna, teria deveres
para com a sociedade como um todo, assim como o pai tem, naturalmente, deveres
para com o seu filho47.
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Capítulo 8 | Justiça e alocação de recursos escassos em oncologia
Bioética de intervenção
Na América Latina, desde o final dos anos 1990, e sob a liderança do Professor Vol-
nei Garrafa, tem-se proposto uma maior aproximação entre a bioética e a política,
com o objetivo do aprofundamento da discussão do problema do acesso à saúde e
da garantia do direito à dignidade da pessoa humana. Tal politização, vista como
desnecessária por alguns48, seria fundamental como forma de construção da almeja-
da justiça social, principalmente numa região onde ficam evidentes profundas desi-
gualdades no acesso aos recursos sanitários. A não politização da bioética derivaria,
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Bioética e Humanização em Oncologia
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Capítulo 8 | Justiça e alocação de recursos escassos em oncologia
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Bioética e Humanização em Oncologia
Descentralização e regionalização
Região de saúde é uma área territorial contínua, provida de identidades culturais,
econômicas e sociais comuns, além de infraestrutura, comunicação e transportes (e
outros insumos) compartilhados. A regionalização, ferramenta indutora da descentra-
lização, é um processo dinâmico, flexível, que figura como estratégia para a saúde bra-
sileira, desde a Constituição de 1988. Descentralização significa a mudança de papel
do governo central por meio de transferência de capacidades fiscais, poder decisório
ou de responsabilidades, para Estados e Municípios, pela implementação e gestão de
políticas definidas centralmente53. Essa transferência ocorre a partir da redefinição de
funções e responsabilidades de cada nível de governo com relação à condução políti-
co-administrativa do sistema de saúde, em seu respectivo território (nacional, estadual
e municipal), com transferência concomitante de recursos financeiros, humanos e ma-
teriais, para controle das instâncias governamentais correspondentes52.
A proposta de organizar sistemas de saúde regionalizados que surgiu, inicial-
mente, na antiga União Soviética, teve, posteriormente, iniciada a sua adaptação
para o Ocidente por Dawson, em 1920. O paradigma dominante tem sido o da
“regionalização autárquica”, no qual, em cada região existe um “município-polo”,
com relativa autonomia, responsável pela gestão do sistema de saúde local. O papel
dos municípios menores é secundário e mais restrito à atenção básica. Trata-se do
modelo adotado também por países como Reino Unido, Itália e Canadá, países
cujos sistemas de saúde serviram de referência para o desenho do SUS nacional54.
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Capítulo 8 | Justiça e alocação de recursos escassos em oncologia
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Bioética e Humanização em Oncologia
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Capítulo 8 | Justiça e alocação de recursos escassos em oncologia
comunidade, definiu-se, no final da década de 1960, que, para que fossem selecio-
nados os doentes renais terminais com direito à diálise, uma comissão composta
por um jurista, um sacerdote, uma dona de casa, um empregado, um banqueiro
e um cirurgião faria a seleção. E, na prática, arbitraria sobre a vida e a morte dos
pacientes. Foram, então, privilegiados doentes que tinham filhos (em detrimento
dos que não tinham), empregados (em detrimento aos desempregados), pessoas
que praticassem trabalhos voluntários, que frequentassem a igreja etc. e foram ex-
cluídos pacientes que eram considerados “desviados”, como, por exemplo, doen-
tes mentais ou condenados pela justiça (incluindo aqueles que o foram por haver
participado da luta por direitos civis). Somente depois de muita luta, em 1973, foi
aprovado um programa federal que selecionava, para a diálise, os pacientes basean-
do-se somente no aspecto clínico da patologia e deixando de lado antigos estigmas,
anteriormente valorizados42.
Posteriormente, ficou famosa também a experiência vivida no Estado de Ore-
gon, localizado logo ao sul de Washington. Ali, em 1989, a redução do aporte de
recursos federais, associada a um aumento dos custos assistenciais, obrigou o gover-
no local a formar uma comissão especial, com o objetivo de desenvolver uma lista
de prioridades dos serviços sanitários, principalmente para a população de menos
recursos, atendidas pelo Medicaid, sistema de saúde americano dedicado aos menos
favorecidos. Utilizou-se, então, de critérios utilitaristas, e as medidas com maior po-
tencial de benefício para um maior número de pessoas foram privilegiadas. Chegou-
-se, em pouco tempo, a um ensaio de relação entre a patologia e a eventual culpa do
paciente no seu desenvolvimento. Assim, doentes com cirrose hepática secundária
ao uso crônico de substâncias alcoólicas tinham mais dificuldade de receber um
transplante de fígado do que pacientes com hepatite, por exemplo, porque conside-
rava-se, então, os pacientes “menos culpados”42.
E transportando-nos para os dias atuais, uma das questões mais complicadas a
ser enfrentadas por qualquer sistema de saúde é a decisão a respeito do direito do
paciente, portador de uma doença terminal, de receber ou não tratamentos cuja
eficácia não foi, até aquele momento, comprovada cientificamente, mas faltam al-
ternativas eficazes, dada a condição de terminalidade da patologia em questão. Em
outras palavras, quando não há mais nada a fazer. A decisão aparentemente mais
racional, da não cobertura, ou seja, oferecer cuidados paliativos exclusivos, visando
ao alívio dos sintomas e à diminuição do sofrimento, expõe aquele que toma a deci-
são a demoradas e caras disputas judiciais, cujo fim, a história mostra, tem sido em
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Bioética e Humanização em Oncologia
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Capítulo 8 | Justiça e alocação de recursos escassos em oncologia
Considerações finais
Os problemas relativos à alocação de recursos em saúde não são exclusividade
dos países pobres. São dramas vividos, ainda que em menor intensidade, também
nos países ricos. Fundamentados e legitimados os princípios da responsabilidade
social e da atenção à saúde, permanece o desafio da definição do que é aceitável e
factível e, por isso, deve estar disponível. Permanece o problema da necessidade de
financiamento e dos meios para aplicá-lo, haja vista a responsabilidade da huma-
nidade para com aqueles que não dispõem de meios próprios para fazê-lo. Sendo a
dignidade um direito universal, cabe à sociedade buscar meios de ampliar, constan-
temente, o acesso à saúde, até aquelas regiões do mundo onde o mínimo aceitável
ainda não chegou.
A humanidade falhou ao se propor esse objetivo até o ano 2000, nos idos dos
anos 1970. Progressos foram feitos, mas esses progressos são mais visíveis nos países
mais ricos, não menos responsáveis, dada a realidade atual e o contexto histórico em
que vivemos, pela realidade de penúria de determinadas regiões do globo. Países nos
quais não se dispõem de um sistema coerente de atenção à saúde estão destinados
a continuar do rumo do aumento descontrolado dos custos, aumentando, progres-
sivamente, o número de cidadãos desprotegidos. A criação de um sistema eficiente,
por outro lado, com critérios claros de incorporação e de alocação de recursos, não
é a solução definitiva. É tão somente condição mínima necessária para um sistema
viável, universal e equânime a curto, a médio e, quiçá, a largo prazo também.
151
Bioética e Humanização em Oncologia
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Bioética e Humanização em Oncologia
154
Capítulo 9 | Como dar más notícias em oncologia
9
Como dar más notícias
em oncologia
Tatiana Strava Corrêa, Suelen Medeiros e Silva
Introdução
O câncer é a mais importante causa de morte no mundo. Considerado um pro-
blema de saúde pública, apresenta significativo aumento de incidência tanto nos
países desenvolvidos como nos em desenvolvimento. Com a internet, os pacientes
têm mais acesso a informações médicas do que nunca. Os avanços tecnológicos tor-
naram algumas decisões ainda mais complicadas. Portanto, na área da Oncologia,
os profissionais precisam aprimorar suas habilidades de comunicação, tanto com
o paciente quanto com seus familiares, para ajudar a interpretar as informações e
adicionar o julgamento clínico e experiência1. Os médicos devem saber integrar o
grande número de informações médicas com valores, esperanças e prioridades dos
seus pacientes2.
A comunicação interpessoal é um processo dinâmico e multidirecional de in-
tercâmbio de informação por meio de diferentes canais sensório-perceptuais. Ela
se divide em comunicação verbal e não verbal. Comunicar eficazmente é simulta-
neamente importante e difícil; constitui um desafio porque implica a utilização e o
desenvolvimento de perícias básicas essenciais à comunicação entre o profissional de
saúde, a pessoa doente e a família3.
155
Bioética e Humanização em Oncologia
156
Capítulo 9 | Como dar más notícias em oncologia
Considerações finais
Ao iniciar uma comunicação de más notícias, certifique-se de que todas as in-
formações estão corretas, revise prontuário e exames. Separe um lugar e tempo
adequados, e dê atenção total ao seu paciente. O ideal é já ter uma boa relação
médico-paciente de confiança, o que muitas vezes não é possível quando é a pri-
meira vez que tal paciente tem contato com o profissional. Sabendo que o paciente
e a família provavelmente já têm uma opinião sobre o que está acontecendo, você,
como profissional, deve sempre dar a palavra a eles ao iniciar qualquer conversa.
Esse ato cria um primeiro vínculo com o paciente e familiares que se sentirão
acolhidos por um profissional que os ouve. Além disso, leva a uma compreensão
do profissional de como está o entendimento da doença e sofrimento por parte do
paciente/familiar até o presente momento. Isso facilita a melhor escolha das pró-
ximas palavras que o profissional terá a dizer. Você pode verificar o que o paciente
já sabe, e o que o preocupa. Em alguns casos, o paciente não deseja saber todas
as informações relacionadas a sua doença. Por isso, é recomendado perguntar se
quer saber de todos os detalhes, ou se prefere que as informações sejam dadas a
um parente próximo.
Ao dar a notícia é importante o máximo de clareza para explicar termos técni-
cos de diagnóstico e prognóstico. Para tanto, o profissional deve sentir-se seguro e
apto naquela área de conhecimento médico.
Dada a notícia, o profissional de saúde deverá exercer empatia com as emoções
geradas no paciente e familiares. Finalmente, deve realizar, junto ao paciente, um
plano estratégico para tratamento dos sintomas e da doença, sempre reforçando
que a equipe manterá o acompanhamento do paciente para evitar sentimentos de
abandono.
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Bioética e Humanização em Oncologia
Invitation Determine quais informações e como “Você está pronto para falar sobre isso?”
Convidando o paciente quer saber. Reconheça “Você e sua família querem conversar
para o diálogo que as necessidades de informações agora sobre as notícias sérias?”
mudam ao longo do tempo. “Como você gostaria que lhe contasse
os resultados: detalhadamente ou
um resumo do que achamos?”
158
Capítulo 9 | Como dar más notícias em oncologia
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