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Projeto Consciência

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PROJETO CONSCIÊNCIA NEGRA: CONTRIBUIÇÕES À CONSTRUÇÃO

IDENTITÁRIA AFRO-BRASILEIRA NUMA PERSPECTIVA DECOLONIAL

Isadora Klein Wenzel197


Kátia Renata Quinteiro Juliano198
Fábio Pinto de Melo199
Gilberto Ferreira da Silva200

INTRODUÇÃO

Abordar a influência da África em relação ao Brasil é algo fundamental e de


caráter complexo e doloroso, pois requer dialogar criticamente com um passado
escravagista e um presente onde ainda persistem discursos e práticas racistas, as
quais para serem desconstruídas necessitam de amplo debate. É necessário
desenvolver no contexto escolar um olhar que problematize ainda mais os conteúdos
da disciplina de História, visto que seguidas vezes as lutas e a resistência do povo
africano, advindos ao continente americano na condição de escravizado, são
negligenciados.

Ao ligarmos os jornais ou acessarmos as redes sociais e de comunicação on-


line hoje, em pleno século XXI e em meio a uma pandemia, nos deparamos com dois
focos de notícias: a própria pandemia, que tem arrasado vidas tanto aqui no Brasil
como no mundo todo, e os casos de racismo estrutural201 que vem ceifando vidas de
jovens e crianças pelo fato de serem negras, periféricas, de lares trabalhadores.

197
Professora da EMEF Carlos Drummond de Andrade, Mestranda em História pela Universidade Federal do Rio
Grande do Sul - UFRGS. Formada em História. E-mail: isadorawenzel@gmail.com

198
Professora da EMEF Carlos Drummond de Andrade, Mestranda em Educação pela Universidade La Salle.
Formada em Pedagogia. E-mail: katiaqjuliano@gmail.com

199
Professor da EMEF Carlos Drummond de Andrade. Formado em História. E-mail:
fabio.melo@canoasedu.rs.gov.br

200
Doutor em Educação. Professor do Programa de Pós-Graduação em Educação e do Curso de Pedagogia da
Universidade La Salle. Pesquisador do CNPq. Líder do Grupo de Pesquisa em Educação Intercultural (GPEI). E-
mail: gilberto.silva@unilasalle.edu.br

201
Constitui as relações do racismo no padrão de normalidade. São ações conscientes e inconscientes da
sociedade. (ALMEIDA, 2018)

661
Dizemos isso citando dois casos que tiveram forte repercussão midiática. O
primeiro202 ocorrido em maio de 2020, vitimou um menino de 14 anos que foi baleado
dentro de casa, em São Gonçalo - RJ, durante um confronto com a Polícia Federal e
Civil no Complexo do Salgueiro. O segundo203 incidente foi em junho e trata-se de um
menino de cinco anos, em Recife - PE, que foi junto com sua mãe para o trabalho,
colocado em um elevador pela patroa (que, pelos vídeos, aperta o botão do elevador
referente aos andares mais altos do prédio), sendo levado ao nono andar e vindo a
cair devido a entrada da criança a uma área de peças de ar condicionado. Nenhum
desses casos estão explicitamente ligados ao racismo declarado como se conhece,
mas ao racismo estrutural que rege a sociedade, que menospreza e desumaniza o
indivíduo e que também vem sendo rechaçado em outros países.

A reflexão instaurada neste artigo parte da problemática da formação da


identidade afro-brasileira e do empoderamento da negritude com educandos de uma
escola pública e periférica. Essa situação mobilizou a elaboração de um projeto que
questionasse e combatesse atitudes racistas, mas a partir da valorização do
sincretismo cultural presente, especialmente, da contribuição e participação da
África na nossa história. Com isso, também em vistas de analisar e sistematizar as
contribuições que o projeto proporcionou aos estudantes e docentes envolvidos,
auxiliando para a construção da identidade afro-brasileira e o reconhecimento da
negritude como forma de afirmação, resistência e busca pela tomada de consciência
dos fatos históricos a partir de uma historiografia que foi por séculos invisibilizada.

Iniciamos, portanto, com a análise do povo brasileiro e sua autodeclaração de


cor; a breve explanação do racismo estrutural (Almeida, 2018) tão presente na
sociedade brasileira (e ainda pouco compreendida ou minimizada com a
prerrogativa de vitimismo); as relações da virada decolonial para a construção da

202
Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2020/05/menino-de-14-anos-e-morto-em-casa-
durante-acao-da-pf-no-rio.shtml. Acesso em: 14 de jun. de 2020.

203
Disponível em: https://g1.globo.com/pe/pernambuco/noticia/2020/06/05/caso-miguel-como-foi-a-morte-do-
menino-que-caiu-do-9o-andar-de-predio-no-recife.ghtml. Acesso em: 14 de jun. de 2020.

662
identidade (Maldonado-Torres; 2010, Fanon; 2008, Hall; 2006); as legislações
vigentes que orientam o ensino das culturas africanas no ensino fundamental (LDB,
BNCC, RCC); a análise do campo empírico (por meio dos PPP da escola) e finalizando
com o projeto desenvolvido na escola. Como metodologia, o projeto fez uso da
pesquisa ação, sendo considerada como uma oportunidade significativa de práxis
investigativa.

POPULAÇÃO BRASILEIRA E A EMERGÊNCIA DOS ESTUDOS DECOLONIAIS

Considerando a população brasileira e a autodeclaração de cor apontada pelo


IBGE204, nota-se que a sua grande maioria é composta por pessoas não brancas, que
se consideram pardas (45,06%), pretas (8.86%), amarelas (0,47%) e indígenas
(0.38%). A partir da análise dos dados, é possível constatar o quanto o racismo
estrutural está presente nas relações sociais, pois apesar da maioria da população
não se autodeclarar branca, o sistema vigente é o que privilegia pessoas brancas e
se consolidou historicamente através de ações racistas, possibilitando a um grupo
social se colocar como superior em relação aos demais impondo seu domínio.

Compreender que o racismo estrutural não é uma atitude individual, mas um


sistema de opressão que nega direitos é um dos primeiros desafios que nos compete
enquanto sociedade. Em seu livro O que é racismo estrutural? Almeida (2018) faz
uma reflexão histórica de vários pontos que corroboram de que forma a estrutura
social, política e econômica do Brasil sustenta o racismo mesmo que de maneira
velada. A questão é, portanto, que “pessoas negras estão sobre o domínio de uma
supremacia branca politicamente construída e que está presente em todos os
espaços de poder e de prestígio social” (ALMEIDA, 2018, p.48).

204
Disponível em: https://educa.ibge.gov.br/jovens/conheca-o-brasil/populacao/18319-cor-ou-raca.html. Acesso
em: 14 de jun. de 2020.

663
Falar sobre racismo e buscar meios de desconstruí-lo deve ser pauta em todos
os espaços, mas na escola se torna cada vez mais urgente esse debate que não se
efetuou ampla e satisfatoriamente após a lei 10.639/03. A presente lei defende a
obrigatoriedade do ensino da história da África e afro-brasileira visando fortalecer
os vínculos existentes entre Brasil e África e possibilitando conhecer esse continente
tão diverso e do qual, por uma educação eurocêntrica, pouco sabemos.

Para tanto, os estudos decoloniais surgem como uma alternativa de


problematizar o conhecimento oficial e eurocentrado, permitindo revisitar estes
conhecimentos tomando por pressuposto compreender a perspectiva de quem foi
vítima do trágico processo de colonização, ou seja, buscando-se realizar o que vem a
ser denominado de “Giro Descolonial”, produzindo uma “geoepistemologia”
(ESCOBAR, 2003; BALLESTRIN, 2013). O ponto de partida para esta tomada de
consciência epistêmica aparentemente é simples, procurar localizar o outro lado da
história, só que ao se propor a fazer esse movimento, desloca-se a centralidade de
tudo o que foi produzido pelo continente europeu, designado, por exemplo, como um
conhecimento local e passa-se a reconhecer modos outros de saberes e
conhecimentos. Aqui se localiza um esforço hercúleo, pois ainda que pareça um
movimento simples, o que se coloca em jogo é a tensão de desconstruir o que se
aprendeu como história, informação correta e disponibiliza-se a abrir para outros
modos de compreender. Escobar acaba por sintetizar bem na seguinte questão:

¿Podría ser, sin embargo, que el poder de la modernidad eurocentrada —como


una historia local particular— subyace en el hecho de que ha producido
particulares designios globales de forma tal que ha «subalternizado» otras
historias locales y sus designios correspondientes? (2003, p. 58)

Ao se adotar esta perspectiva de trabalho em sala de aula na educação básica,


valorizando autores oriundos das nações colonizadas, oportuniza-se para o debate e
a consequente aprendizagem, o acesso a outras visões da história, a tantos anos
contadas e recontadas da mesma forma e no contexto escolar, atribuindo,

664
reconhecendo e enaltecendo a autoridade a uma visão que se tornou hegemônica.
Esse movimento, segundo Maldonado-Torres (2008), vem sendo disseminado nos
Estados Unidos e América Latina em comunidades de imigrantes, afrodescendentes
e indígenas, como também em países da Europa, tendo como exemplo as revoltas nos
subúrbios de Paris.

A principal questão é pensar criticamente como se sucedeu às colonizações o


desenvolvimento dos povos tidos como subalternizados, atribuindo a esse processo
a herança produzida por anos de exploração, violência e barbárie entre
colonizadores e colonizados, assim como, a valorização da cultura dos povos
originários e escravizados que compõem a população brasileira:

En conclusión, el giro des-colonial se trata pues de una revolución en la forma


en que variados sujetos colonizados percibían su realidad y sus posibilidades
tras la caída de Europa en la Segunda Guerra Mundial. Ya las bases del giro
des-colonial estaban planteadas de antemano en el trabajo de intelectuales
racializados, en tradiciones orales, en historias, canciones, etc., pero, gracias
a eventos históricos particulares, se globaliza a mitad del siglo XX.
(MALDONADO-TORRES, 2008, p.70)

A construção da identidade racial, perpassa o cotidiano de dominação e


opressão no qual diariamente as pessoas negras no Brasil vivenciam, sendo
constantemente questionada e menosprezada. Frantz Fanon, em sua obra Pele negra,
máscaras brancas (2008) acentua a necessidade de uma desalienação colonial e
uma tomada de consciência das condições sociais e políticas da negritude, o que por
vezes faz com que negros tenham vergonha da própria cor da sua pele.

Ao compreender a violência causada pelo racismo na própria identidade, o


sujeito passa pelo processo de “libertar o homem de cor de si mesmo” (FANON, 2008,
p.26). Por outro lado, podemos pensar o fato de que os efeitos do processo colonizador
se estendem para além dos grupos formados por negros e indígenas, atinge também
as populações descendentes do que resultou desta violência sobre os primeiros
grupos. O lugar de colonizado, de uma forma abrangente, é enfaticamente
caracterizada por Fanon: “O colonizado é um invejoso” (1968, p.29), o querer ser, estar
665
e usufruir do que representa o colonizador é um desses efeitos que perdura e se
traduz em diferentes campos da organização de nossas sociedades contemporâneas.
Inclui desde o universo acadêmico, expressado na busca pelo reconhecimento por
aqueles que representam a manutenção de um poder colonial até as práticas
culturais deslocadas do hemisfério norte para o sul, ocupando espaços de
importância no cotidiano, geralmente em detrimento e invisibilização de outras
locais.

Essa homogeneização cultural e dos corpos, que ainda permanece no século


XXI, influenciando diretamente nas construções da identidade brasileira, traz luz ao
debate dos efeitos da globalização. Para Hall (2006), mesmo sendo um movimento
global, a forte influência Ocidental é uma determinante imperativa na formação do
sujeito, agindo de “mão única”, do centro do sistema global para as periferias.

Portanto, quando se observa essa sociedade globalizada, com referências


culturais do mundo todo, ainda prevalecendo a branquitude como ápice da beleza e
do sucesso, a identidade acaba sofrendo fortemente essa pressão social. Almeida
(2018) aponta esse estranhamento, quando há pouca representatividade negra em
cargos de chefia e na academia, por exemplo. A mídia e o capitalismo alimentam
essa necessidade estética da branquitude, assim como a constante afirmação e
aprovação que faz com que muitos negros procurem “demonstrar aos brancos a
riqueza do seu pensamento, a potência respeitável do seu espírito” (FANON, 2008,
p.27).

O INÍCIO DO PROJETO CONSCIÊNCIA NEGRA

Tendo em vista a necessidade de dar visibilidade ao tema do racismo numa


comunidade majoritariamente formada por pessoas negras e pardas, desde 2016 é
desenvolvido o projeto sobre a Consciência Negra na EMEF Carlos Drummond de
Andrade, no bairro Guajuviras, município de Canoas-RS. O objetivo dessa proposta é

666
abordar temáticas relacionadas à História afro-brasileira, conforme consta na lei
10.639/03, mas principalmente, dialogar com esta a partir de uma
interseccionalidade cultural. Ao trazer essa perspectiva sobre o conhecimento
histórico do continente africano e da sua relação com o Brasil, a intenção é provocar
nas alunas e alunos interesse em conhecer e se reconhecer na História afro-
brasileira.

Desde a sua idealização, o projeto foi criando corpo devido a adesão dos
educandos por considerarem as aulas provenientes dessa temática diferentes e
instigantes, fazendo com que as edições seguintes mobilizassem mais educandos,
mais áreas de conhecimento e mais convidados para trabalharem a negritude e a
identidade afrodescendente. Como o projeto é desenvolvido com todos alunos dos
anos finais do Ensino Fundamental (6° ao 9° ano) o que se percebe por meio desse
processo contínuo é que a compreensão e a interação vão se transformando. Sendo
assim, educandos que participaram no 6° ano e seguem na escola, chegam ao 9° ano
com outra percepção sobre questões históricas e identitárias que envolvem a África,
muitas vezes possibilitada pelo trabalho que desenvolveram ao longo de quatro anos.

Como mencionado anteriormente, a lei n° 10.639/03, “altera a Lei no 9.394205,


de 20 de dezembro de 1996” que estabelece a inclusão no currículo oficial da Rede
de Ensino a obrigatoriedade da temática "História e Cultura Afro-Brasileira", assim
como o estudo das lutas dos negros em terras brasileiras, “a cultura negra brasileira
e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo
negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à História do Brasil.”
(BRASIL, 2003, art. 26-A). No entanto, após dezesseis anos da alteração da legislação,
as privações oriundas do preconceito racial, o conhecimento pouco aprofundado dos
docentes e dos currículos escolares, além da sujeição da cultura africana, limitada
por um saber colonizado, seguem permeando as práticas pedagógicas.

205
LDB - Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional

667
A Base Nacional Comum Curricular206, logo no início do seu texto sobre o
ensino de História aborda a necessidade de um educador que proporcione a reflexão
acerca “do passado como uma maneira de impulsionar a dinâmica do ensino-
aprendizagem no Ensino Fundamental, sendo aquele que dialoga com o tempo atual”
(BRASIL, 2017, p. 397). Também aborda a relevância de se trabalhar a criticidade,
levantar questionamentos da sua construção enquanto sujeito e do conhecimento do
“outro” como parte constituinte de uma sociedade. Da mesma forma faz alusão à lei
11.645/08 com:

a inclusão dos temas obrigatórios definidos pela legislação vigente, tais como
a história da África e das culturas afro-brasileira e indígena, deve ultrapassar
a dimensão puramente retórica e permitir que se defenda o estudo dessas
populações como artífices da própria história do Brasil. A relevância da
história desses grupos humanos reside na possibilidade de os estudantes
compreenderem o papel das alteridades presentes na sociedade brasileira,
comprometerem-se com elas (...). (BRASIL, 2017, p.401)

Outro documento de direcionamento aos estudos do ensino de história e


utilizado nas escolas como parâmetro é o Referencial Curricular de Canoas207 que faz
um percurso orientador do conteúdo a ser trabalhado em História, de maneira que a
organização do documento está separada em: unidades temáticas; objetos de
conhecimento; habilidades a serem desenvolvidas (sistematizado por ano).

Por fim, nos cabe aqui analisar também o Projeto Político-Pedagógico208 da


escola, a fim de conhecer o campo empírico no qual o projeto da Consciência Negra
está sendo desenvolvido no decorrer desses quatro anos. Segundo o documento, a
escola está situada em um bairro de vulnerabilidade social, onde 78% das famílias
possuem renda mensal de um a dois salários mínimos (que atualmente podem ter

206
Base Nacional Comum Curricular - BNCC (2017)

207
Referencial Curricular de Canoas RCC (2018)

208
PPP - 2019

668
sofrido alterações significativas devido a pandemia do Covid19209) de maioria
autodeclarada evangélica e católica (77% em relação a religiões afro, que
corresponderam a 10%).

O PPP também traz no seu texto como parte integrante da diretriz pedagógica
dos anos finais a incumbência de se trabalhar as leis acima citadas, assim como
primar pelo:

Desenvolvimento das diferentes capacidades humanas através dos


conhecimentos social e culturalmente construídos, com base nos princípios
da igualdade, liberdade e pluralismo de ideias que garantam o acesso, a
equidade, a qualidade e a permanência dos/as alunos/as, a fim de concluir o
ensino fundamental. (CANOAS, 2019, p. 43

Ao analisar esses documentos, se enfatiza a necessidade de investigação e


desenvolvimento nas escolas das temáticas da africanidade e da construção étnica
brasileira, para conhecimento, reconhecimento, criticidade e reflexão acerca das
nossas origens. Aquela visão de sujeito na qual sua identidade é unificada tende a
ficar cada vez mais no passado, sendo que há um constante movimento de
transformação e fragmentação, que é definido historicamente (Hall, 2006). Outra
reflexão importante é compreender que nesse país grande, de proporções
continentais e com o histórico de abolição tardia (a qual não assegurou qualidade
de vida aos libertos), um país que ainda hoje possui uma mentalidade de viés
escravocrata, a branquitude se sobrepõe, potencializando posturas segregacionistas.

Uma constatação recorrente que se tem em sala de aula quando é debatida a


escravidão é que os povos escravizados eram “necessariamente negros”. Essa
temática210 é abordada desde 6° ano, uma vez que pertence aos conteúdos previstos

209
Bairro contendo maior número dos casos de contágio pelo vírus no município de Canoas, 35,9% em
19/06/2020. Fonte: Prefeitura Municipal.

210
Objeto de conhecimento: Senhores e servos no mundo antigo e no medieval; Escravidão e trabalho livre em
diferentes temporalidades e espaços (Roma Antiga, Europa medieval e África). (p. 217-218)

669
pelo RCC. Não é uma situação diretamente relacionada ao que ocorre durante projeto,
mas em sala de aula, enquanto se problematizam os conceitos, como por exemplo, o
de imperialismo. Em geral, os apontamentos dos alunos nesse sentido surgem
quando são questionados sobre quem eram os escravizados e, automaticamente
respondem: os negros.

No entanto, é possível provocar essa constatação quando se faz a relação do


escravizado com a cor da pele durante Antiguidade, pois havia povos que
escravizavam e também eram escravizados, mas não eram negros, como os gregos
e os romanos. Revela-se assim, o quanto do racismo estrutural está presente,
inclusive, nos saberes escolares que seguem falhando ao não debaterem a visão de
como a condição de escravizado está associada ao povo negro. Tal percepção
engendra a ideia de escravizado não como uma condição imposta, mas como algo
natural, concluindo que se é escravo, logo, é negro.

A partir desse ponto, inicia-se um lento processo de desconstrução de


estereótipos e de sistemas de dominação. Ao trazer à tona e didaticamente as
crueldades da escravidão é comum que os alunos se fechem ao invés de querer
debater essa prática. A assimilação da ideia do escravizado ser inferior é algo
presente na percepção dos alunos, mas de modo velado, é, também, o principal a ser
problematizado, uma vez que houve uma construção ideológica e biológica europeia
para tentar justificar o racismo. Mas, ao longo do ano, essa relação vai se
modificando e não raras vezes eles buscam autonomamente conhecer sua
ancestralidade e passam a combater falas e posturas racistas que surgem nas aulas.

O objetivo geral do projeto, que também está presente como parte constituinte
do PPP da escola, é compreender e resgatar a diversidade da cultura afro-brasileira
a fim de abordar aspectos positivos e debater estereótipos. Problematizando a partir
de uma perspectiva decolonial, as implicações históricas que condicionaram o povo
negro a uma situação de subalternidade, e resgatando a sua resistência que das mais
variadas formas sempre se opôs ao status quo da branquitude. Como ressalta Fanon,
a sociedade tem extrema responsabilidade na formação do ser e, portanto, “o

670
prognóstico está nas mãos daqueles que quiserem sacudir as raízes contaminadas
do edifício” (FANON, 2008, p.27).

Os objetivos específicos do projeto compreendem: investigar o conhecimento


dos estudantes a respeito do que sabem previamente sobre a cultura africana;
realizar a valorização da identidade cultural e aprofundar o conhecimento sobre a
relação Brasil-África; conscientizar a respeito do racismo existente na sociedade e as
formas de combatê-lo a partir de elementos identitários positivos. A metodologia da
pesquisa ação foi pensada pela sua característica de coleta de dados, registro
coletivo, ao “discuti-los e contextualizá-los, já se está caminhando para a construção
de saberes e para seu compartilhamento, num processo único, dialético,
transformador dos participantes e das condições existenciais.” (FRANCO, 2005,
p.499).

A maioria dos estudantes que frequentam a escola são pardos e negros, a


questão do desenvolvimento da autoestima foi desde o início um elemento central
durante a concepção do projeto, no sentido de incentivá-los a se colocarem como
sujeitos históricos ao se identificarem com importantes figuras negras que
contribuíram e contribuem para a formação social brasileira. Assim como, a
participação, integração e interesse dos alunos não negros era fundamental para
estabelecer o diálogo e, também, construir um conhecimento que partisse das
referências de pessoas não brancas e que, devido ao racismo estrutural -
consequência também de uma história eurocêntrica - sempre ocuparam posições
subalternizadas.

Desde a sua primeira edição, nas aulas de História orientadas pela professora
Isadora, o projeto envolveu todas as turmas da área, do 6° ao 9° ano. Devido a sua
abrangência, foi necessário negociar com os colegas das outras disciplinas períodos
em que os alunos pudessem, caso fosse necessário, desenvolver o trabalho. Essa
estrutura segue até a edição mais recente, mas à medida que o projeto foi se
consolidando, mais colegas aderiram. Esse acolhimento foi muito importante, pois a
pesquisa requer dialogar com outras áreas multidisciplinares de conhecimento.

671
O material pesquisado sempre é trazido para a aula e debatido com cada
grupo. Além da pesquisa é elaborado um cartaz em aula, que propicia aos alunos
uma troca que torna o projeto vivo e atrativo, pois se aplica uma metodologia
diferenciada das demais aulas ao longo do ano.

O projeto de 2019, ano no qual houve mais mobilização na escola de


estudantes e colaboradores, foi planejado para contemplar as temáticas citadas a
seguir.

PESQUISA E CONFECÇÃO DE CARTAZES PARA A EXPOSIÇÃO

Quadro 1. Temáticas de pesquisa do projeto

ANO TEMÁTICA ABORDADA

6° ano Personalidades negras: escritores/as, poetas,


poetisas, cantores/as, atletas, entre outros.

7° ano Religiosidade africana: orixás do panteão


africano, nesse caso, segue-se a linha das
religiões de matriz afro (as nações e o
candomblé)

8° ano Ritmos afro-americanos: blues, funk, jazz, samba,


reggae e axé

9° ano O movimento negro e as políticas públicas


afirmativas: o histórico da data do 20 de
novembro (porque essa data, contexto em que ela
foi evocada) e as políticas públicas afirmativas
(cotas raciais)
Fonte: Wenzel (2019).

Quadro 2. Temáticas de palestras do projeto.

PALESTRAS

672
ANO TEMÁTICA ABORDADA

1° ano Oficina confecção de cartaz coletivo sobre a


cultura afro-brasileira e combate ao racismo

6° e 7° ano A influência da música negra

8° e 9° ano Religiosidade africana

9° ano Movimento negro e políticas públicas afirmativas


Fonte: Wenzel (2019).

Quadro 2. Cronograma das atividades do projeto.

CRONOGRAMA
28/10 a Sorteio dos grupos e do tema; entrega da folha contendo
01/11 as orientações para o trabalho e o material necessário.

04/11 a Confecção dos cartazes em aula, pesquisas acerca do


08/11 tema sorteado; tensionamentos surgidos durante as
pesquisas; registro no caderno das pesquisas e
impressão/criação das imagens; elaboração dos cartazes;
confecção de máscaras tribais.

11/11 a 14/11 Continuação dos cartazes e finalização

18/11 a 22/11 Palestras com convidados referentes aos temas:


influência musical, religiosidade, políticas públicas
afirmativas. Oficinas de capoeira, confecção de
abayomis211, tranças afro, danças relacionadas às
tradições afro-brasileiras.

23/11 Culminância do projeto


Fonte: Wenzel (2019).

211
As bonecas, símbolo de resistência, ficaram conhecidas como Abayomi, termo que significa ‘Encontro
precioso’, em Iorubá, uma das maiores etnias do continente africano cuja população habita parte da Nigéria,
Benin, Togo e Costa do Marfim. Disponível em http://www.afreaka.com.br/notas/bonecas-abayomi-simbolo-de-
resistencia-tradicao-e-poder-feminino/. Acesso em 24 de jun. de 2020.

673
A culminância do projeto se deu no dia 23 de novembro com a exposição dos
trabalhos no ginásio (cartazes e máscaras); apresentação de dança coreografada da
música Ginga – Iza; apresentação de dança ensaiada e preparada pelos estudantes;
e venda de quitutes de origem africana pelos formandos dos 9° anos. Os educandos
foram avaliados pela organização e capacidade para realizar o trabalho em grupo,
pelas informações selecionadas durante a pesquisa (e problematizações surgidas ao
longo do processo formativo) e pelas atividades complementares e autônomas como
a apresentação de dança.

A ideia da dança por parte dos alunos surgiu após terem sido convidados a
contribuir, na medida do possível, para trazer um grupo de dança de rua, o Restinga
Crew, que se apresentaria na escola. A possibilidade de ter a apresentação já motivou
um pequeno grupo de estudantes do sétimo ano (quatro integrantes, sendo duas
meninas e dois meninos), a querem criar e apresentar a sua coreografia no sábado
do evento. Durante o contraturno, ou seja, pela manhã, o grupo ia à escola para
ensaiar e, certamente, foi um dos momentos mais emocionantes e de retorno. A
iniciativa da ideia, a criação da dança, a disciplina nos ensaios e a coragem e
segurança de se apresentarem diante da escola foi possibilitada devido ao projeto,
eles não só tiveram espaço, mas também se identificaram.

A sistematização da pesquisa nos cartazes, assim como as noções estéticas e


a presença no dia da exposição, também compõe a nota.

674
Fig. 1 e 2. Registros fotográficos

Fonte: Arquivo pessoal Juliano e Wenzel (2018; 2019)

É necessário refletir sobre o racismo a partir de uma perspectiva histórica e


tendo a consciência de que dos quatro autores deste texto, três são brancos e ocupam
um lugar, que a priori, garante privilégios. Um desses privilégios, em uma sociedade
racista, é o de não ser vítima de racismo. Conforme Ribeiro (2018) problematiza, não
se deve ter medo das palavras ‘branco’, ‘negro’, ‘racismo’, ‘racista’. Dizer que uma
determinada atitude foi racista é apenas uma forma de caracterizá-la e definir seu
sentido e implicações. Torna-se fundamental trazer essas palavras ao campo de
discussão para definir o locus social de cada um, ou, ainda referenciando Djamila
Ribeiro, o lugar de fala que cada pessoa ocupa num sistema que exclui uma boa parte
da sociedade, mas que envolve a todos.

CONCLUSÃO/CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em sala de aula, a complexidade do tema requer cada vez mais diálogo, pois
sua invisibilidade acaba reforçando posturas e opiniões racistas que já se tornaram
naturalizadas. O racismo por estar engendrado à estrutura do sistema, nem sempre
é perceptível, mas isso não diminui a responsabilidade de todos nós, mais

675
especificamente de educadoras e educadores de identificar essa estrutura opressora
e debater, ao contrário, essa invisibilidade torna essa tarefa imprescindível.

A pluralidade cultural brasileira levanta questões relevantes a serem


questionadas e dialogadas no currículo escolar, desmistificando o saber colonizado
que ainda hoje é difundido nas escolas. Para a construção da identidade brasileira,
mais especificamente a legitimação da ancestralidade africana, é primordial que
seja fomentado o debate, a representatividade e a tomada de consciência como
deveres éticos e políticos de todos os cidadãos, sejam eles negros ou não. Nessa
direção, o Projeto Consciência Negra acabou constituindo um espaço privilegiado em
que as discussões puderam acontecer de forma planejada no ambiente escolar,
propiciando aos alunos outros modos de fazer leituras do mundo a partir de aspectos
históricos.

No caso do nosso país, que teve sua base econômica assentada por mais de
300 anos na utilização do escravizado como principal mão de obra, falar sobre
escravidão se torna essencial. Dessa forma, compreende-se que os debates em torno
do empoderamento negro se consolidaram a partir da valorização da influência
africana que aqui ingressou de maneira compulsória, mas, ainda assim, sobreviveu
e contribuiu muito para o enriquecimento da nossa identidade.

Referências

ALMEIDA, Silvio. Racismo estrutural. Pólen Produção Editorial LTDA, 2019.

BALLESTRIN, Luciana. América Latina e o giro decolonial. Revista Brasileira de Ciência Política, nº11. Brasília,
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