Location via proxy:   [ UP ]  
[Report a bug]   [Manage cookies]                

28584-Texto Do Artigo-75478-1-10-20160701

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 10

Revista Eletrônica Espaço Teológico ISSN 2177-952X. Vol. 10, n.

17, jan/jun, 2016,


p. 84-93

PARA UMA CORRETA COMPREENSÃO


DO HOMEM, COMPOSTO DE
CORPO, ALMA E ESPÍRITO
(For a correct understanding of man as composed of body, soul and spirit)

Renato Arnellas Coelho


Mestre em Teologia pela PUC/SP
E-mail: renatoac83@gmail.com

RESUMO ABSTRACT
O autor analisa a questão da composição do homem The author analyzes the question about man’s com-
em três, corpo, alma e espírito, tendo como referên- position of three parts, body, soul and spirit, based
cia as próprias Escrituras, bem como a teologia on the Scriptures as well as on the theology devel-
posterior e o Magistério. Através da explicação de oped afterwards and on the Magisterium. Through
como entender corretamente essa visão do homem, the explanation about how to understand correctly
bem como a visão bipartida, do homem composto this way of viewing man, as well as the bipartite
apenas de corpo e alma, evita-se, assim, as possí- way, of man as only composed of body and soul,
veis confusões geradas por uma má compreensão one can avoid confusions created by a wrong com-
de ambas as visões. prehension of each one of these both views.

Palavras-chave: Homem; Corpo: Alma; Espírito; Keywords: Man; Body; Soul; Spirit; Tripartite.
Tripartido.

INTRODUÇÃO
Em alguns lugares se fala que o homem é composto apenas de corpo e alma, em outros, que
ele é composto de corpo, alma e espírito. O primeiro modo é conhecido como visão bipartida
ou dualista do homem e, o outro modo, como antropologia tripartida. Afinal, qual dessas duas
visões descreve melhor o homem?
A Igreja, ao tratar da questão, aceita ambas as visões, contanto que sejam bem compreendidas
para evitar possíveis erros, tanto em relação ao homem, como em relação ao próprio homem-
Deus, Jesus Cristo.
Em primeiro lugar, será vista brevemente a passagem que dá origem à visão tripartida do ho-
mem na epístola de Paulo, para logo em seguida se verificar como ela foi entendida por um
teólogo que segue a visão bipartida do homem, como é o caso de Tomás de Aquino, e um
teólogo que professa a visão tripartida, Henri de Lubac.

http://revistas.pucsp.br/index.php/reveleteo 84
Revista Eletrônica Espaço Teológico ISSN 2177-952X. Vol. 10, n. 17, jan/jun, 2016,
p. 84-93

No final, ver-se-á qual o posicionamento do Magistério da Igreja relativo ao tema e o que se


pode aprender dessa questão que pode servir de modelo emblemático de como uma questão
teológica deve ser tratada com cuidado para ser utilizada com proveito e não criar divisões ou
confusões desnecessárias que desservem à própria teologia e à Igreja. Para tanto, serão consi-
derados também os problemas que devem ser evitados por uma compreensão equivocada des-
sas duas visões, definindo os limites a serem respeitados.

1. A VISÃO TRIPARTIDA NO APÓSTOLO PAULO


A questão de o homem ser composto de corpo, alma e espírito remonta à passagem escriturís-
tica de 1Ts 5,23: “O Deus da paz vos conceda santidade perfeita; e que o vosso ser inteiro, o
espírito, a alma e o corpo sejam guardados de modo irrepreensível para o dia da Vinda de
nosso Senhor Jesus Cristo”1. Como em muitas outras passagens da Bíblia, ela foi interpretada
de diversos modos por diversos leitores.
Paulo, contudo, como outros autores das Escrituras, escreve com o intuito de transmitir a
mensagem da salvação obtida em Jesus Cristo aos seus leitores e ouvintes. Seu vocabulário
busca expressar o conteúdo daquilo que se deve crer e fazer para obter tal salvação sem, toda-
via, utilizar um vocabulário em sentido científico, nem filosófico. A passagem de 1Ts 5,23
não deve ser entendida como um ponto final sobre a questão de como o homem realmente é,
nem lida com um rigor próprio aos termos filosóficos, mas sim entendida em seu contexto
como será visto nos comentários feitos pelos teólogos nos séculos posteriores.
Pode-se ler em outra passagem escriturística os termos espírito e alma usados sem rigor filo-
sófico em Lc 1,46 no Magnificat de Maria: “Maria, então, disse: Minha alma engrandece o
Senhor, e meu espírito exulta em Deus em meu Salvador”. Aqui ambos são utilizados em sen-
tido poético, empregando o paralelismo sinônimo que, conforme consta no dicionário do An-
tigo Testamento de Longman e Enns, pode ser descrito como:
[o paralelismo sinônimo] Ocorre quando linhas poéticas repetem “o mesmo
sentimento... em termos diferentes, mas equivalentes” (Lowth 1839, 205). O salmo
24 (23),1 possui um excelente exemplo: “De Iahweh é a terra e o que nela existe, o
mundo e seus habitantes;”. As duas linhas ecoam a mesma ideia: tudo no mundo
pertence a Deus. Elas o fazem através de elementos paralelos: a “terra” corresponde
ao “mundo”; “o que nela existe” corresponde a “seus habitantes”. 2
O dicionário de palavras do Antigo e Novo Testamento de Vine, no verbete “Corpo”, faz um
breve comentário à passagem de 1Ts 5,23 dizendo que: “Soma, corpo, e pneuma, espírito,
podem ser separados; pneuma e psyche só podem ser distinguidos”3. Poder ser separado im-

1
Todas as citações da Bíblia, diretas ou em citações feitas em obras de outros idiomas, são tiradas da
Bíblia de Jerusalém.
2
LONGMAN III, T.; ENNS, P. Dictionary of the Old Testament: Wisdom, Poetry and Writings.
Downers Grove: InterVarsity Press, 2008, p. 503. Tradução nossa.
3
VINE, W. E. Diccionario expositivo de palabras del antiguo y nuevo testamento exhaustivo de Vine.
Traduzido por Guillhermo Cook, S. Escuain e Editorial CLIE. Nashville: Grupo Nelson, 2007, p. 223.
Tradução nossa.

http://revistas.pucsp.br/index.php/reveleteo 85
Revista Eletrônica Espaço Teológico ISSN 2177-952X. Vol. 10, n. 17, jan/jun, 2016,
p. 84-93

plica serem dois elementos constitutivos distintos da essência humana (o elemento material e
o elemento espiritual), enquanto que poder ser distinguido, refere-se a uma simples distinção
entre potências ou qualidades de um mesmo elemento constitutivo do ser humano, no caso, o
elemento espiritual.
Já nos primeiros séculos, Irineu de Lião interpreta pneuma como sendo o Espírito de Deus
habitando no homem que está em estado de graça, não sendo algo presente em todos os ho-
mens invariavelmente. Na sua obra Contra as Heresias, Irineu interpreta Paulo ao dizer que
“o homem perfeito é composição e união da alma que recebe o Espírito do Pai e está unida à
carne”4 e continua a explicar que:
quando, porém, este Espírito mistura-se com a alma e se une à obra modelada, pela
efusão deste Espírito, realiza-se o homem espiritual e perfeito, e é este mesmo que
foi feito à imagem e semelhança de Deus. Se, porém, falta o Espírito à alma, este
homem será verdadeiramente psíquico e carnal, mas imperfeito, porque possuiria a
imagem de Deus enquanto criatura modelada, mas não teria recebido a semelhança
por meio do Espírito.5
Pode-se notar, en passant, que Irineu interpreta aqui também o Gênesis quanto ao significado
do homem ter sido criado à imagem e semelhança de Deus (Cf. Gn 1,26). A imagem de Deus
corresponde ao homem puro e simples, isto é, corpo e alma, enquanto que a semelhança é
adquirida quando o homem se une ao Espírito (Deus) pela graça santificante, sendo então cor-
po, alma e espírito.
Todavia, a má compreensão das palavras de Paulo e a defesa de uma visão do homem como
composto de três elementos constitutivos distintos possibilitou o surgimento de visões sobre o
homem e sobre Jesus Cristo conflitantes com os ensinamentos do Magistério da Igreja, como
foi o caso do apolinarismo.
Apolinário de Laodiceia (310-390), autor do apolinarismo, ao falar de Cristo, negava a exis-
tência de um espírito humano em Cristo, porque, na sua óptica, via como incompatível a pre-
sença do Verbo Divino, santo e santificador, junto a um espírito humano responsável e livre,
que possuiria, assim, a fonte do pecado.6 Ele interpreta de modo particular os termos espírito
e alma de 1Ts 5,23, pois Cristo teria apenas o corpo e a alma humanos, mas não o espírito, o
qual seria substituído pelo Verbo Divino que desempenharia as suas funções. Cristo, sem o
espírito humano, responsável e livre, estaria livre da fonte dos pecados e das tentações. Ses-
boüé, ao tratar de Apolinário, explica que, segundo esse pensamento, seria impossível dois
seres intelectuais e voluntários coabitarem, uma vez que poderiam se opor um ao outro. Tal
posição rendeu a Apolinário censuras do bispo de Roma e também do I Concílio de Constan-
tinopla, em 381.7

4
IRINEU DE LIÃO. Contra as Heresias. Tradução de Lourenço Costa. São Paulo: Paulus, 1995, p.
530.
5
Ibidem.
6
Cf. SESBOÜÉ, B. (org.); WOLINSKI, J. Historia de los dogmas. Tomo I (El Dios de la Salvación).
Traduzido por Alfonso Ortiz García. Salamanca: Secretariado Trinitario, 1995, p. 282.
7
Cf. Ibidem, p. 281.

http://revistas.pucsp.br/index.php/reveleteo 86
Revista Eletrônica Espaço Teológico ISSN 2177-952X. Vol. 10, n. 17, jan/jun, 2016,
p. 84-93

Afastando-se de uma leitura tripartida estrita do homem, encontra-se João Damasceno (675-
749), que em seu livro Uma Exposição Exata da Fé Ortodoxa diz: “já que a natureza do ho-
mem tem duas partes, que consiste em corpo e alma, a purificação que Ele [Cristo] nos deu
também é dupla, através da água e do Espírito”8. Todavia, a leitura bipartida do homem, assim
como a tripartida, também possui seus perigos. Se acaso ela for entendida sob o viés de uma
oposição entre corpo e alma, em que o corpo é visto como mau (pois é composto de matéria) e
a alma está como que aprisionada no corpo do qual deve se libertar, então também incorre-se
na condenação feita aos gnósticos dos primeiros séculos da Igreja.9

2. TOMÁS DE AQUINO E A VISÃO BIPARTIDA DO HOMEM


O teólogo Tomás de Aquino (1225-1274), em suas diversas obras, trata da natureza humana
sob a visão bipartida. No seu comentário à I Epístola aos Tessalonicenses, Tomás de Aquino
discorre sobre os termos alma e espírito usados por Paulo do seguinte modo:
À ocasião dessas palavras [corpo, alma e espírito], alguns disseram que no homem
uma coisa é o espírito e outra a alma, colocando no homem duas almas, uma que
anima [dá vida], outra que raciocina. Tal visão foi reprovada pelas sentenças
eclesiásticas. Deve-se saber que as duas coisas [alma e espírito] não se diferenciam
segundo a essência, mas segundo a potência. Na nossa alma estão certas forças que
são próprias para os atos dos órgãos corpóreos, como é o caso das potências da parte
sensitiva. Outras forças não pertencem aos atos de tais órgãos corpóreos, pois são
separadas deles, como é o caso das potências da parte intelectiva. A essas últimas
chamamos de espírito, que são como que imateriais e separadas de certo modo do
corpo, na medida em que não pertencem aos atos do corpo, e que podem ser
chamadas também de mente [mens]: “renovar-vos pela transformação espiritual da
vossa mente” (Ef 4, 23). Quanto às primeiras, as que animam [o corpo], chama-se
alma, pois tal é próprio a ela. E aqui [em 1Ts 5, 23] Paulo fala corretamente, pois
para ocorrer um pecado três coisas colaboram entre si: a razão, a sensualidade e a
execução do corpo.10
Nessa visão, o homem possui apenas corpo e alma, a qual pode ser vista sob dois aspectos nos
termos paulinos de 1Ts 5,23, seja como forças que animam o corpo, utilizando-se então o
termo alma, seja como forças imateriais, donde o termo espírito.
Em outras obras, Tomás de Aquino refuta a existência de uma multiplicidade de entidades
para explicar aquilo que pode ser explicado com menos entidades, como se pode ler na Suma
Teológica: “aquilo que se pode suficientemente fazer por meio de uma só coisa, melhor se for
[por] meio de uma só do que por meio de várias”11. Isso se reflete na sua visão antropológica,

8
JOÃO DAMASCENO. A select library of Nicene and post-Nicene Fathers of the Christian Church.
Second Series. Volume IX. Nova Iorque: Charles Scribner’s sons, 1908, p. 78. Tradução nossa.
9
Cf. THOMSETT, M. C. Heresy in the Roman Catholic Church: A History. Jefferson: McFarland,
2011, p. 20.
10
TOMÁS DE AQUINO. Super I Epistolam B. Pauli ad Thessalonicenses lectura. Disponível em:
<http://www.corpusthomisticum.org/c1t.html>. Acesso em: 19 mai 2016. Cap. 5, l. 2. Tradução nossa.
11
TOMÁS DE AQUINO. Suma contra os Gentios. Volume I. Tradução de D. Odilão Moura. Porto
Alegre: Escola Superior de Teologia de São Lourenço de Brindes, 1990, c. 42, n. 3.

http://revistas.pucsp.br/index.php/reveleteo 87
Revista Eletrônica Espaço Teológico ISSN 2177-952X. Vol. 10, n. 17, jan/jun, 2016,
p. 84-93

pois Tomás de Aquino combate a coexistência de múltiplas almas no homem, isto é, de uma
alma vegetal, outra animal e outra racional, mas haveria apenas uma só alma que possui as
potências próprias das almas inferiores (vegetal e animal):
a alma humana possui certas forças ou potências que são princípios das operações
que se exercem pelo corpo, e convém que essas forças sejam atos de certas partes do
corpo, tais são as potências da parte vegetativa e sensitiva. Há também certas
potências que são princípios das operações que se exercem sem o corpo, tais são as
potências da parte intelectiva.12
Tal visão se baseia também no pensamento aristotélico em que, para uma dada matéria, há
apenas uma forma que lhe corresponde para formarem, juntas, uma substância corporal, como
seria o caso do homem. Nesse sentido, Tomás de Aquino conclui que “se aceitamos que a
alma está unida ao corpo como uma forma, é totalmente impossível que haja em um mesmo
corpo várias almas essencialmente diferentes”13.
Apesar das abundantes precisões filosóficas típicas do estilo de Tomás, não é negligenciado o
aspecto místico da vida humana, sobretudo na Suma Teológica, em que o estudo do homem se
dá tendo em vista seu fim sobrenatural na bem-aventurança divina. Desse modo, mesmo ao
estudar o homem segundo a sua natureza limitada, abre-se espaço para tentar entender como
os dons do Espírito Santo agem na alma.14

3. HENRI DE LUBAC E A VISÃO TRIPARTIDA DO HOMEM


O teólogo francês Henri de Lubac (1896-1991), em seu livro Théologie dans l’Histoire [Teo-
logia na História], trata do tema paulino de espírito, alma e corpo, ressaltando logo de início
que esses três elementos não devem ser entendidos como sendo três substâncias no homem ou
três faculdades.15 Para Henri, essa tripartição diz respeito a uma tríplice zona de atividade no
homem, cujo significado merece ser aprofundado, não sendo de modo algum uma mera ex-
pressão da época do apóstolo Paulo, nem apenas algo de uso banal, como certos autores tenta-
ram indicar.
Paulo não estaria falando em 1Ts 5,23 de três elementos bem distintos no homem, pois seu
linguajar seria fluido demais para tal, mas haveria uma intenção particular ao citar três ele-
mentos (não dois, nem quatro) ao tratar do homem em sua totalidade (ὁλοτελεις), em sua inte-
gralidade (ὁλόκληρον).
Henri de Lubac critica certos autores por não tratarem com atenção o fato de Paulo não falar
apenas de alma, mas de alma e espírito. Alguns autores teriam uma “fobia do platonismo”16
que vê no homem uma tricotomia em três princípios distintos no homem. Para eles, Paulo não

12
TOMÁS DE AQUINO. Compendium Theologiae. Disponível em:
<http://www.corpusthomisticum.org/ott101.html>. Acesso em: 19 mai 2016. Livro I, cap. 92. Tradu-
ção nossa.
13
TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. I pars, q. 76, a. 3, corpus.
14
Cf. LUBAC, Henri de. Théologie dans l’Histoire. Tomo I. Paris: DDB, 1990, p. 157.
15
Cf. LUBAC, Henri de. Théologie dans l’Histoire. Tomo I. Paris: DDB, 1990, p. 115.
16
Ibidem, p. 118. Tradução nossa.

http://revistas.pucsp.br/index.php/reveleteo 88
Revista Eletrônica Espaço Teológico ISSN 2177-952X. Vol. 10, n. 17, jan/jun, 2016,
p. 84-93

poderia de modo algum estar falando no sentido platônico dos termos, seria apenas um hápax,
um caso único e excepcional, não uma aceitação da filosofia grega no pensamento de Paulo.
Alguns chegaram até mesmo a traduzir a passagem por: “que toda vossa pessoa, [isto é] alma
e corpo...”17 que faz desaparecer por completo a tripartição feita por Paulo. Todavia, Henri
ressalta que a tripartição encontrada em Platão se encontra na alma dividida em: razão, irascí-
vel e concupiscível, o que a distingue daquilo que foi expresso por Paulo.
Para mostrar a importância da distinção entre alma (psyche) e espírito (pneuma) no pensa-
mento de Paulo, Henri de Lubac faz outra referência a um texto que segue a visão paulina do
homem em Hb 4,12: “[a Palavra de Deus] penetra até dividir alma e espírito”. Em 1Cor 2,14-
15, Paulo fala também da superioridade do homem espiritual sobre o homem psíquico, que
não compreende as coisas do Espírito de Deus, sendo, assim, limitado. O termo pneuma usado
por Paulo não teria origem grega, mas sim semítica, referindo-se à imagem de Deus posta no
homem, àquilo que faz o homem ser mais do que um simples ser vivo, composto de corpo e
alma, sendo princípio de vida superior e lugar da comunicação do homem com Deus.18 Logo,
a distinção não é uma mera banalidade linguística, mas serve para ressaltar a importância do
pneuma no homem.
Outros autores recentes citados por de Lubac tentam explicar o pneuma paulino, mas suas
explicações não chegam a um consenso. Tomando como exemplo o comentário feito por Mi-
chel Leturmy da Bible de la Pléiade [Bíblia da coleção La Pléiade], o termo psyche se refere à
vida animal, enquanto que o termo pneuma se refere ao sopro divino citado em Gn 2, 7. Em
outro sentido, Buzy diz que o termo psyche não se refere apenas à parte animal do homem,
mas também à parte superior, só que sem a graça divina.
Diante dessas dificuldades, Henri conclui em uníssono com outro autor, M.-A. Chevalier, que
o conceito de pneuma em Paulo é um conceito “que nossas antropologias modernas não po-
dem de modo algum dar conta”19.
A importância do pneuma em Paulo teria servido de base constante para as doutrinas místicas
e espirituais da tradição cristã. Há uma vida espiritual quando há uma relação com Deus e
haveria “um ponto secreto no homem que é permanentemente o lugar dessa relação [...], o
lugar da presença divina”20.
No entender de Henri de Lubac, os filósofos e teólogos mais preocupados com a racionalidade
do que com a mística tendem a reduzir a tricotomia a uma dicotomia no homem, enquanto que
os espirituais preferem ressaltar a tricotomia. Para os espirituais, é a boa conduta moral que
prepara o homem a receber as “visitas do Logos”21, a alma e a busca das virtudes deve ser
ordenada ao espírito e à sua vida contemplativa.

17
Cf. Ibidem, p. 119.
18
Cf. Ibidem, p. 123.
19
Ibidem, p. 126. Tradução nossa.
20
Ibidem, p. 179. Tradução nossa.
21
Ibidem, p. 180. Tradução nossa.

http://revistas.pucsp.br/index.php/reveleteo 89
Revista Eletrônica Espaço Teológico ISSN 2177-952X. Vol. 10, n. 17, jan/jun, 2016,
p. 84-93

A psyche mencionada em 1Ts 5,23, para Henri de Lubac, é “bem mais do que apenas o prin-
cípio que anima o corpo”22, pois é a partir da orientação escolhida pela alma que o ser huma-
no se tornará carnal ou espiritual.
Na conclusão da sessão que trata da antropologia tripartida, Henri enfatiza que deve ser evita-
do tanto o racionalismo que se fecha ao transcendente, em uma antropologia que recusa ao
homem toda faculdade superior, sufocando assim o espírito, bem como um misticismo (ligado
ao pneuma) que ignora a moral (ligado à psyche), pois ela é a etapa do caminho espiritual que
precede a vida segundo o espírito. Para o homem perfeito, a alma não deve se esquecer do
espírito, nem o espírito deve se esquecer da alma ou desprezá-la.
Enfim, Henri de Lubac destaca a importância de se manter a distinção entre a zona do psíqui-
co (alma) e a zona espiritual (espírito) no homem, reconhecendo ocorrer, em sentido oposto,
um vocabulário que confunde o espiritual com o psíquico em Teilhard de Chardin, na obra O
Fenômeno Humano.23 A antropologia paulina da primeira epístola aos Tessalonicenses seria,
então, um chamado à alta vida espiritual e um aviso contra seus desvirtuamentos.

4. O MAGISTÉRIO DA IGREJA E O SENTIDO DE CORPO,


ALMA E ESPÍRITO
O Magistério da Igreja se pronuncia usualmente quando ocorrem equívocos no modo de com-
preender a doutrina cristã. Nesse sentido, o IV Concílio de Constantinopla advertiu:
enquanto o Antigo e o Novo Testamento ensinam que o homem tem uma só alma
racional e intelectiva, e todos os Padres e mestres da Igreja, falando por Deus,
sustentam esta mesma doutrina, alguns, entregues a imaginar o mal, chegaram a tal
grau de impiedade que ensinam despudoradamente que ele tenha duas almas e
[...]pretendem confirmar a própria heresia.24
O Catecismo da Igreja Católica, por sua vez, fornece um resumo sintético da antropologia
católica, das relações entre alma e corpo:
A pessoa humana, criada à imagem de Deus, é um ser ao mesmo tempo corporal e
espiritual. A narrativa bíblica exprime esta realidade numa linguagem simbólica,
quando afirma que “Deus formou o homem com o pó da terra, insuflou-lhe pelas
narinas um sopro de vida, e o homem tornou-se num ser vivo” (Gn 2, 7). [...] Muitas
vezes, a palavra alma designa, nas Sagradas Escrituras, a vida humana, ou a pessoa
humana no seu todo. [...] A unidade da alma e do corpo é tão profunda que se deve
considerar a alma como a “forma” do corpo; quer dizer, é graças à alma espiritual
que o corpo, constituído de matéria, é um corpo humano e vivo. No homem, o espí-
rito e a matéria não são duas naturezas unidas, mas a sua união forma uma única na-
tureza.25
Logo em seguida, o Catecismo trata da distinção feita por Paulo em 1Ts 5,23:

22
Ibidem, p. 185. Tradução nossa.
23
Cf. Ibidem, p. 198.
24
Denzinger-Hünermann, n. 657.
25
Catecismo da Igreja Católica, n. 362-365.

http://revistas.pucsp.br/index.php/reveleteo 90
Revista Eletrônica Espaço Teológico ISSN 2177-952X. Vol. 10, n. 17, jan/jun, 2016,
p. 84-93

Encontra-se às vezes uma distinção entre alma e espírito. São Paulo, por exemplo,
ora para que “todo o nosso ser, o espírito, a alma e o corpo”, seja guardado sem
mancha até à vinda do Senhor (1Ts 5,23). A Igreja ensina que esta distinção não
introduz uma dualidade na alma, “Espírito” significa que o homem é ordenado,
desde a sua criação, para o seu fim sobrenatural, e que a alma é capaz de ser
gratuitamente sobre-elevada até à comunhão com Deus.26
Portanto, no que concerne à natureza humana, continua em vigor o que já foi dito no Catecis-
mo de São Pio X, no item 49, “que é o homem?”, em que se responde: “O homem é uma cria-
tura racional, composta de alma e corpo”.
Em tempos mais recentes, na Constituição Pastoral Gaudium et Spes, fala-se também do ho-
mem sob a visão bipartida: “O homem, ser uno, composto de corpo e alma” (GS 14), afastan-
do logo em seguida uma possível visão dualista gnóstica ao defender o valor do corpo: “[o
homem] não pode, portanto, desprezar a vida corporal; deve, pelo contrário, considerar o seu
corpo como bom e digno de respeito, pois foi criado por Deus e há de ressuscitar no último
dia” (Ibidem).

CONCLUSÃO
Após terem sido feitas as devidas considerações, pode-se ver em que sentido se entende corre-
tamente o homem como sendo tripartido ou bipartido, evitando os excessos possíveis de am-
bas as visões.
Do ponto de vista científico e filosófico, vê-se o predomínio no contexto católico de uma vi-
são bipartida do homem como sendo composto de corpo e alma. Tal visão está em conformi-
dade com os ensinamentos do Magistério antigo e recente, bem como com as Escrituras, co-
mo se pode ler em Mt 10,28, em que Cristo fala apenas de corpo e alma: “Não temais os que
matam o corpo, mas não podem matar a alma. Temei antes aquele que pode destruir a alma e
o corpo na geena”.
Do ponto de vista místico, sem o rigor científico que restringe a definição e o sentido de cada
termo utilizado, permitindo uma abordagem mais poética, pode-se usar a visão tripartida do
homem como um motivador a fazer o homem buscar algo além das suas limitações, isto é, a
buscar a Deus que eleva sua natureza através da graça santificante, de modo que o homem
deixa de ser apenas o que ele é por si mesmo para se tornar um homem perfeito, ou melhor
dizendo, um homem segundo os projetos eternos de Deus. Nas palavras de Henri de Lubac:
“perfeição moral e santidade, vida virtuosa e vida mística são distintas, elas estão hierarquiza-
das, mas ao mesmo tempo estão unidas na caridade”27.
O tema é complexo e não deve ser considerado como esgotado, mas sim capaz de ser ainda
muito aprofundado, contanto que se tenha em mente como interpretar a visão bipartida e tri-
partida do homem de modo coerente com textos aprovados pela Igreja para assim poder pro-

26
Ibidem, n. 367.
27
LUBAC, Henri de. Théologie dans l’Histoire. Tomo I. Paris: DDB, 1990, p. 161.

http://revistas.pucsp.br/index.php/reveleteo 91
Revista Eletrônica Espaço Teológico ISSN 2177-952X. Vol. 10, n. 17, jan/jun, 2016,
p. 84-93

gredir nos estudos da antropologia e teologia sem temer repetir antigas teses já condenadas
pelo Magistério, como a gnóstica e a apolinarista.
É exatamente essa a missão e o desafio do teólogo, progredir nos estudos ao mesmo tempo
em que se mantém unido ao Magistério da Igreja, pois de outro modo apenas contribuirá para
distorcer as Escrituras e prejudicar a comunhão eclesial28, isolando-se numa teoria privada
sem função eclesial29, divergindo, em consequência, do próprio entender de Paulo, autor da
expressão “corpo, alma e espírito”. Para se manter fiel aos dizeres de Paulo, isto é, para se
manter fiel à Tradição Apostólica, é preciso, nos dizeres da Comissão Teológica Internacio-
nal, “o estudo da Sagrada Escritura, da liturgia e dos escritos dos Padres e Doutores da Igreja,
além da atenção ao ensinamento do Magistério”30. Desse modo, pode-se produzir um verda-
deiro progresso no estudo do que Paulo realmente quis dizer com sua expressão, sem distor-
ções ou erros.

BIBLIOGRAFIA
BÍBLIA: Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2002.
CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA. São Paulo: Loyola, 2000.
COMISSÃO TEOLÓGICA INTERNACIONAL. Teologia hoje: perspectivas, princípios e
critérios. 2012. Disponível em:
<http://www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/cti_documents/rc_cti_doc_201111
29_teologia-oggi_po.html>. Acesso em: 19 mai 2016.
DENZINGER-HÜNERMANN. Compêndio dos símbolos, definições e declarações da fé e
moral. São Paulo: Paulinas: Edições Loyola, 2007.
IRINEU DE LIÃO. Contra as Heresias. Tradução de Lourenço Costa. São Paulo: Paulus,
1995.
JOÃO DAMASCENO. A select library of Nicene and post-Nicene Fathers of the Christian
Church. Second Series. Volume IX. Nova Iorque: Charles Scribner’s sons, 1908.
LONGMAN III, T.; ENNS, P. Dictionary of the Old Testament: Wisdom, Poetry and
Writings. Downers Grove: InterVarsity Press, 2008.
LUBAC, Henri de. Théologie dans l’Histoire. Tomo I. Paris: DDB, 1990.
SESBOÜÉ, B. (org.); WOLINSKI, J. Historia de los dogmas. Tomo I (El Dios de la
Salvación). Traduzido por Alfonso Ortiz García. Salamanca: Secretariado Trinitario, 1995.
THOMSETT, M. C. Heresy in the Roman Catholic Church: A History. Jefferson: McFarland,
2011.
TOMÁS DE AQUINO. Compendium Theologiae. Disponível em:
<http://www.corpusthomisticum.org/ott101.html>. Acesso em: 19 mai 2016.

28
Cf. COMISSÃO TEOLÓGICA INTERNACIONAL. Teologia hoje: perspectivas, princípios e cri-
térios. 2012. N. 14. Disponível em:
<http://www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/cti_documents/rc_cti_doc_20111129_teolo
gia-oggi_po.html>. Acesso em: 19 mai 2016.
29
Cf. Ibidem, n.37.
30
Cf. Ibidem, n.32.

http://revistas.pucsp.br/index.php/reveleteo 92
Revista Eletrônica Espaço Teológico ISSN 2177-952X. Vol. 10, n. 17, jan/jun, 2016,
p. 84-93

TOMÁS DE AQUINO. Suma contra os Gentios. Volume I. Tradução de D. Odilão Moura.


Porto Alegre: Escola Superior de Teologia de São Lourenço de Brindes, 1990.
TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. São Paulo: Edições Loyola, 2002.
TOMÁS DE AQUINO. Super I Epistolam B. Pauli ad Thessalonicenses lectura. Disponível
em: <http://www.corpusthomisticum.org/c1t.html>. Acesso em: 19 mai 2016.
VATICANO II – MENSAGENS, DISCURSOS, DOCUMENTOS. São Paulo: Paulinas,
1998.
VINE, W. E. Diccionario expositivo de palabras del Antiguo y Nuevo Testamento exhaustivo
de Vine. Traduzido por Guillhermo Cook, S. Escuain e Editorial CLIE. Nashville: Grupo
Nelson, 2007.

http://revistas.pucsp.br/index.php/reveleteo 93

Você também pode gostar