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A Doutrina Do Estado

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JOHANN GOTTLIEB FICHTE

FRIEDRICH VON SCHELLING

,,,_

ESCRITOS FILOSOFICOS

Tradução de RUBENS RODRIGUES TORRES FILHO

EDITOR: VICTOR CIVITA


Títulos originais:
J. G . Fichte: Über den Begriff des Wissenschaftslehre oder des sogenannten
Philosophie - Versuch eines neueren Darstellung der
Wissenschaftslehre ( 1. Abschnitt) - "Seit sechs Jahren lieg die
Wissenschaftslehre . .. " - Sonnenklarer Bericht an das grõssere Publikum über
das eigentliche Wesen der neusten Philosophie - Darstellung der
Wissenschaftslehre - Aus dem Jahren 1801 (Erster Teil)- Die Staatslehre, oder
über das Verhãltniss des Urstaates zum Vemunftreiche - Erster
Abschnitt: Allgemeine Einleitung.
F. v. Schelling: Philosophische Briefe über 'Dogmatismus
und Kritizismus' - Darstellung der allgemeinen ldee der Philosophie überhaupt
und der Naturphilosophie insbesondere ais notwendigen und integranten
Teils der ersteren - Vorrede zur ersten Auflage---:- "Von der
Weltseele" - Bruno oder über das gõttliche und natürliche Prinzip der
Dinge - Zur Geschichte der neueren Philosophie.

1.ª edição - setembro 1973

© - Copyright desta edição, 1973 , Abril S.A. Cultural e Industrial, São Paulo.
Direitos exclusivos desta tradução, 1973, Abril S.A. Ctilfüral eindustrial, São Pau lo.
JOHANN GOTTLIEB FICHTE

INTRODUCAO
-
'
A TEORIA DO ESTADO*
.

* A Staatslehre de Fichte é constituída por uma série de conferências feitas na Universidade de Berlim, com
o subtítulo: Sobre a Relação do Estado Originário com o Reino da Razão. A primeira edição , já póstuma,
é de G. Reimer (1820). Esta "Introdução Geral" é seu 1. 0 capítulo. (N. do T.)
Conferências sobre diversos conteúdos da filosofia aplicada foi o que anunciamos.
Quanto a saber, em primeiro lugar, o que é filosofia e o que é aplicada, sobre isso não
podemos tornar-nos claros por enquanto e em poucas palavras. Como, além disso , che-
gamos aos diferentes conteúdos indicados, é o que se verá. .
Se aplicamos a filosofia, a questão é: o que é em geral a filosofia? Respondemos a
isso antes de qualquer outra coisa, pois sem isso não se pode difundir nenhuma clareza
sobre tudo o que diremos futuramente.
O nome, na significação originária da palavra, já toma verossímil que se procura
algo que não se conhece, impelido pela insatisfação com o conhecido e por um obscuro
pressentimento. - Se já ultrapassamos esse estado, cabe então a nós explicar, àqueles
que ainda se encontram nele, seu pressentimento, e dizer-lhes com precisão o que
propriamente querem. Nessa situação, poderíamos defrontar-nos com o seguinte:
a. Que ninguém, que até agora falou sobre isso, se explicou desse modo, pois preci-
samente todos apenas buscaram, mas não encontraram.
b. Que, portanto, nossa explicação não é algo já conhecido e, por isso, já inteligível,
mas que é preciso aprender a entendê-la, construindo-a, descrevendo-a para si, no pensa- J70
mento livre. - Portanto, agora mesmo, já no início, temos de desempenhar um tal pen-
sar autônomo. A história diria: "J.,fas tu conheces! "Nós não.
c. Que outros, que até agora já falaram sobre isso e que ainda falam, fiquem irrita-
dos; porque, se tivéssemos razão, viria à luz que, até agora, eles não souberam algo, mas
teriam antes de aprendê-lo, coisa que um mestre jamais gosta que lhe digam. Mas esse
destino temos de suportar, e resignar-nos a ele, como inseparável do assunto!
1) Conhecer, saber, representar-se - isto cada um conhece, conhece-o imediata-
mente e tem de conhecê-lo, simplesmente por sê-lo; e se alguém não o conhecesse por si,
esse conhecimento não poderia ser-lhe trazido de fora. Mas observem bem o postulado:
não conhecer em geral, mas conhecer, por sua vez, o conhecer, projetá-lo diante de si
como particular, como algo que é, que aí está. - Ora, isto cada um tem de fazer em pes-
soa; cada um tem de construir e intuir algo por si mesmo: só com isso ele está em nosso
método, e só se trata daquilo que é assim construído, não de algo alheio, meramente nar-
rado; ninguém pode captá-lo assim, isso é contra todo método filosófico.
2) Ora, filosofia seria, por certo, conhecimento, saber; mas não todo saber, e sim
um saber particular, pertencente a um certo genus, com sua diferença específica: - um
saber determinado, em contraposição com outro. Qual, então? A rigor, só poderia ser
conhecido pela sua posse; agora, por seu contrário.
Todo conhecimento fornece e tem seu mundo, seu sistema do ser. Em contraposição
ao mundo habitual e ao seu sistema do ser, o conhecimento de que falamos fornece um
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mundo inteiramente novo: ele próprio é órgão criador, novo olho, justamente para um
novo mundo de visão.
Pensem em um cego de nascença: para ele, há apenas aquilo que é dado pelo tato,
mas não há luz nem cor, e nenhuma das relações formadas por elas. Pensem que a visão
371 lhe é restituída. É precisamente isso que ocorre na filosofia. - Pelo nascimento somos
depostos em um certo conhecer e em uma certa consciência - das coisas, do mundo
dado da experiência. Por esse conhecimento, o que se conhece, aquilo de que se toma
consciência, são justamente as coisas: nem sequer se toma consciência da própria cons-
ciência ou se conhece o conhecer: este é, nele nós nos absorvemos, ele é o supremo e o
último, o ser absoluto: - isto, de acordo com a comparação acima, deve ser denomi-
nado o sentido interior do tato. Ora, o homem pode permanecer nele, ou também elevar-
se acima dele: - conhecer, justamente, o próprio conhecer e a própria consciência,
assim como exigi que fizessem já no início. - Com isso, já os elevei de fato ao domínio
da filosofia. Este é o novo mundo, dado pelo novo órgão. Ele deve ser mais explicitado:
seu lugar teríamos encontrado.
3) Mas alguém pode captar distraidamente essa observação de que ele, justamente,
sabe - representa - o mundo da experiência, e entretanto permanecer na primeira
. perspectiva, de que há coisas em si; alguém pode considerar ambas como verdadeiras,
porque não unifica seu conhecimento em uma unidade, e é insensato e dilacerado. -
Mas, se o conhecimento deve chegar à unidade, não podem ser ambas verdadeiras: ou
somente coisas, ou então somente imagens. As coisas estão perfeitas com seu ser: de
onde vêm, então, suas imagens? De onde vem um saber delas? - Mas, inversamente,
das imagens decorrem necessariamente as coisas, justamente como as afiguradas nas
imagens, como o objeto da imagem, que é, ela mesma, conhecida como imagem e que se
dá pura e simplesmente como tal.
E com isso o mundo se transformou para nós em um mundo inteiramente outro: lá,
coisas; aqui, apenas conhecimentos, conceitos; lá, mundo material e mundo espiritual,
para nós vale somente este último como o verdadeiro e o único; e sobre isso cada qual
tem de estar de acordo consigo mesmo. - Portanto, isto deve ser bem estabelecido: 1)
que só é admitido um mundo espiritual, conceitual, nunca em nenhum sentido 'possível
da palavra, um mundo material; 2) conhecemos isto, não em decorrência de um raciocí-
nio, mas de uma consciência imediata. Justamente só há consciência das imagens, das
determinações do saber, e absolutamente de nada outro, em decorrência da elevação
empreendida.
3n Logo, filosofia seria uma consciência imediata, que não pode ser imposta por argu-
mentos, assim como não se pode impor ao cego o olho; que não pode ser demonstrada,
mediada, ou algo assim, mas somente formada e desenvolvida.
Para maior esclarecimento:
1) A visão do mundo da filosofia, enunciada claramente, é esta: a) algo é, firme,
irrecorrivelmente determinado. - Pensa-se, talvez, que o filósofo não admite nenhum
ser: isso é um mal-entendido grosseiro. b) Mas este ser não é um sistema de coisas mate-
riais permanentes, que repousam sobre si, mas um sistema de imagens, no qual, justa-
mente, um tal sistema de coisas é afigurado. É uma consciência que repousa sobre si
mesma e é determinada por si mesma, e absolutamente nada outro. (Creio ter-lhes pres-
tado um grande serviço, mesmo se entenderem apenas este ponto e o imprimirem firme-
mente em si. - Apenas para alguns poucos observo: nós, que nos consideramos filóso-
fos, dizemos isto inteiramente a sério e sem rodeios, e não, digamos, como um mero
INTRODUÇÃO À TEORIA DOESTADO 161

modo de dizer, que possa ser interpretado e distorcido em si, ou acomodado. Sabemo-lo
imediatamente, assim como temos consciência de nossa vida: só parece estranho para
aqueles em quem ainda não despertou aquele olho.)
2) Qual é, então, a distinção interior própria entre aquela visão primeira, natural,
do mundo e esta visão do mundo aumentada, filosófica: isto é, o que propriamente ocor-
reu com o homem na passagem da primeira para a segunda? (Isto é decisivo para a clare-
za da doutrina e tem as mais importantes conseqüências.) As imagens, expondo-se como
tais, põem seu afigurado. Nessa operação da consciência o homem natural se absorve,
com seu ser inteiro: por isso, a imagem mesma e o ser dessa imagem não se tornam visí-
veis para ele. Ele se absorve: isto é, seu ser é um produto das leis da consciência, inteira-
mente ocultas a ele: está preso e embaraçado nessa legislação que permanece obscura
para ele. Nela repousa seu ser formal. - Em contrapartida, a consciência filosófica se
desvencilha desse embaraço e, oscilando livremente sobre ele, eleva-se a uma consciência
dele.
De passagem: liberdade de uma lei qualquer dá a consciência dessa lei. (Esta pró- 373
pria relação é uma lei fundamental. Lei: embaraço, cegueira, mecanismo. Consciência:
um ver, adquirido por libertação.)
Esta é a essência e o mundo da filosofia, absoluta e e·specificamente diferente. Quem
adquiriu isto, está no domínio da filosofia e é apto para ela, embora, sem dúvida, ainda
não tenha adquirido nenhum conhecimento material propriamente filosófico; disto trata-
remos bem mais adiante!
Agora apenas duas observações que podem ser antecipadas:
1) Quem deixa subsistir de uma maneira qualquer, mesmo que seja com o mundo
espiritual e ao lado dele, um mundo material - eles o chamam de dualismo-, não é
filósofo. Raciocinar, ligar uma multiplicidade de conhecimentos, não é filosofar: isto
pode ocorrer na consciência mais habitual. A isto se refere a expressão: vamos filosofar
sobre isso; de hábito, tagarelar sonhos e ficções sortidos. - A diferença está na perspec-
tiva fundamental. Um raciocinar, mover-se no conhecimento, construindo livremente e
ligando conceitos, pode certamente ser um filosofar; mas não é por isso que se torna filo-
sofar, e sim por sua perspectiva fundamental. Isto costuma-se não saber, não admitir,
levar a mal, não lhe dar crédito; mas tudo isso não adianta nada: assim é.
2) Por isso, teríamos de desistir daquele nome insignificante: obviamente ela seria
saber, teoria, doutrina; e, aliás, enquanto a outra se chamava doutrina-da-coisa, doutri-
na-do-ser, doutrina-do-mundo (e até "mundi-sapiência"), esta teria de chamar-se
doutrina-do-conhecimento, da consciência, doutrina-da-ciência. a) A propósito do ser de
que se tem consciência imediata, aquela diz: é um mundo material; esta: é uma cons-
ciência determinada de tal e tal maneira. b) Se ambas analisam, aquela afirma: o mundo
contém isto e isto; esta: a consciência originária contém isto. - Por isso, filosofia não
significa propriamente nada; somente quando se toma doutrina-da-ciência sua tarefa lhe
é indicada com determinação: a palavra poderia perfeitamente ser formada de outro
modo; mas um outro conceito não pode ser aplicado à tarefa obscuramente proposta há 374
milênios.
Seriam mal-entendidos: a) pensar que a doutrina-da-ciência é apenas o nome para
meus escritos, aulas, e assim por diante, para designar algo historicamente dado, assim
como: teoria da faculdade-de-representar, crítica da razão. - Não, ela é aquilo que é
atribuído pura e simplesmente a todos e aquilo que todos procuraram desde que se come-
çou a pensar com um certo grau de clareza. Poderiam objetar-me que meus escritos ou
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aulas não são a doutrina-da-ciência: isso é outra coisa. Que a doutrina-da-ciência em


geral não seja, e não seja a filosofia - (o conhecimento procurado sob essa denomina-
ção vacil.ante e que vai além de todo conhecimento conhecido)-, isso não podem saber,
nem entender, justamente por serem cegos; mas não podem contestá-lo. Em tal contro-
vérsia ~u absolutamente não me envolvo; assim como não posso provar a ninguém sua
próprfa existência. (Está é, de fato, a existência espiritual superior de cada um, que não
pode ·s.er dada a ele.) b) Também não sou o primeiro a pensar assim sobre a filosofia, nem
o único. Kant pensava precisamente assim: só que não o declarou com esta precisão.
Idealismo transcendental significa exatamente o mesmo. Simplesmente não o entenderam
(entenderam-no, sim, sobre algum ponto particular, mas não sobre os pensamentos
fundamentais); mas, há bom tempo, o abandonaram inteiramente, mergulharam mais
profundamente que nunca no materialismo e quiseram encontrar neste, fazendo ligações
com o raciocínio, uma filosofia: filosofia-da-natureza. c) Nossa denominação é um
neologismo. Sim: pois o conhecimento é novo, e nunca existiu anteriormente. - Não se
devem forjar neologismos. Correto - se já há palavras antigas: "mundi-sapiência", por
exemplo! Mas de quando data esta palavra; e que significa "novo", para eles? Ela foi
fabricada pelos wolffianos, e com rrtuita infelicidade. Seu despropósito foi tão universal-
mente sentido que quase ninguém mais a pronuncia, fora da Biblioteca Universal de
375 Nicolai. - De resto, é bom que, enquanto não se chega à compreensão, se fique com a
palavra que designa a incerteza, a palavra filosofia.
*
Antes de prosseguir, quero mostrar, ainda por outro lado, a distinção fundamental
entre· a perspectiva não-filosófica e a filosófica. (Distinções fundamentais características
estendem-se sobre o todo e vão até o fundo.)
Para aquela, o último é um ser material, dizia eu. E este - um ser que justamente
é, que aí está, sem ser algo qualquer, e aliás um ser que persiste e subsiste morto, ao qual
são aplicadas as propriedades, como algo inerente, não se sabe nem mesmo como e atra-
vés de que: a mera substância pura, sem todos os acidentes - e que contudo é: (justa-
mente o afigurado e o objetivo em geral de uma imagem).
Para. esta pura e simplesmente não há tal ser, mas somente um ser espiritual, isto é,
livre, vivo, que somente pela delimitação da liberdade e da vida, nele, se torna uma ima-
gem determinada. - Ambos, portanto, estão entre si assim como a pura morte está para
a pura vida; porque aqueles não percebem em si mesmos a vida, o afigurar como ativo,
esta vida não está, de fato, neles, mas na lei do representar, que os governa e constitui.
Encontra-se aqui um novo meio para expor a perspectiva que a doutrina-da-ciência
tem do ser. - Alguns não-filósofos admitem uma força natural viva, uma alma do
mundo, que, por assim dizer, detém seu livre figurar em configurações determinadas e
fixa sua força de formação em planta, animal, homem e assim por diante. Que esta repre-
sentação em si, do ponto de vista da filosofia, é totalmente incorreta e nula, é o que se
entende; pois absolutamente não há, em si e como ser último, configurações tais como a
planta, e assim por diante. Mas usemos essa imagem. Uma tal vida que forma absoluta-
mente a si mesma certamente há; - somente a ela nos dirigimos; não a configurações
376 objetivas - a imagens, que se entendem como imagens e que não são unificadas a não
ser com esse conceito. Ora, essa força de formação configura-se, certamente, segundo
leis anteriores, em tais e tais imagens; e a soma dessas imagens é a consciência de todos
nós, a única que é imediatamente e que já se encontra como sendo. - (Com essas ima-
gens há um duplo relacionamento: ou se é elas mesmas, ou se é sua imagem: ou persistir
INTRODUÇÃO À TEORIA DOESTADO 163

no ser-imagem, ou tornar-se imagem desse próprio ser-imagem. - Tudo isto é tão sim-
ples que só é possível o mal-entendido por não acreditarem poder captá-lo nessa simplici-
dade e procurarem por trás disso algo muito mais remoto.)

*
Ficou claro: para a não-filosofia há, como o ser último, coisas. Para a filosofia,
assim como a expusemos até agora, conhecimentos ou imagens, que, em si mesmos , ao
serem entendidos, põem coisas, como aquilo que é afigurado neles.
Eu digo - levando mais adiante minha investigação: - mal se ganharia algo com
isso, se em vez de coisas que, determinadas de uma maneira inconcebível, são tais - ár-
vore, e assim por diante - houvesse imagens de uma árvore, e assim por diante determi-
nadas de uma maneira igualmente inconcebível. No máximo, isso seria uma perspectiva
mais espiritual, mais viva e vivificante, do mesmo inconcebível. - Seu senso de verdade
me dá razão, que agora tenho de legitimar.
Como não se ganhou nada; e quem pode dizê-lo? Aquele cujo conhecimento não
quer contentar-se com a determinidade dada, mas quer conceber o como e o por que, os
fundamentos dela: que deseja ter em si mesmo um conceito (conhecimento) da conexão
do conhecimento. - O que deseja este? Uma imagem (conhecimento) de uma lei, pela
qual seja determinada a essência-imagem que se apresenta imediatamente, e que esta se
deixe conhecer como determinada por essa lei.
Isto será primeiramente analisado, em seguida esclarecido com um exemplo:
São-nos dadas imagens ou conhecimentos, como determinações da consciência: 377
estas são, e são o único ser para a perspectiva filosófica fundamental. - Mas, em pri-
meiro lugar, há duas espécies delas: 1) as que se apresentam imediatamente pela exis-
tência natural; que, pelos não-filósofos, são tomadas por coisas e, pela filosofia, são
conhecidas como imagens. 2) As que não se apresentam imediatamente, e cuja essência
consiste em, através delas, ser conhecido o fundamento da determinidade das primeiras.
Como exemplo, utilizaremos aquele que também já foi usado antes: - os corpos
repousam, eles se movem: os mesmos que repousavam se movem; o repouso tem um
grau de firmeza, o movimento uma certa velocidade. - O que lá eram coisas são, para
nós, imagens, e aliás imagens que se fazem pura e simplesmente assim. - Ora, pergun-
ta-se se é forçoso permanecer no fato absoluto (assim é, e pronto), sem que fosse possível
um conhecimento para além dele, no qual ele se mostrasse como conseqüência: - assim
como a coisa se mostra a nós como conseqüência da imagem imediata. - Pelo menos
exigimos que seja deste último modo. - Suponha-se, agora, que alguém encontrasse a
lei da gravidade, da atração universal dos corpos e, a partir dela, concebesse todo e qual-
quer repouso, todo e qualquer movimento, tanto em seu ser em geral quanto em ter ele
exatamente essa força ou velocidade: assim este teria, para uma imagem da primeira
espécie - o caso, ou o repouso-, uma imagem da segunda espécie, uma imagem da lei
desse figurar. (Claramente: a força de figuração seria intuída como estando sob uma lei,
que, ela mesma, é uma imagem.)
E se o filósofo, além de imagens da primeira espécie, encontrasse imagens da segun-
da, com isso, de fato, algo estaria ganho, o conhecimento seria ampliado. Mas em parti-
cular - o que pode ser notado e esclarecido aqui mesmo - isto estaria ganho: 1) Essas
imagens das leis para outras imagens se dão, diretamente e sem precisar de atenção,
como puras imagens e conceitos: leis puras, não um ser subsistente, mas apenas determi-
nando esse ser. - Gravidade, atração - é, onde está, onde tem sua sede? É apenas o
determinante do ser. Assim somos poderosamente elevados à perspectiva espiritual. Se 378
164 FICHTE

algo assim ocorre a uma cabeça não-filosófica, e esta o corporifica outra vez, o que se
pode fazer? - 2) Com isso, o ser absoluto e último é recuado para mais alto: pois é
claro que as outras imagens - ou fenômenos, como podemos chamá-las - só são para
que se explicite nelas a primeira imagem, a lei: a lei só se torna figurada e figurável em
seu caso. Por isso, os fenômenos não são propriamente imagens autônomas, sendo em
função de si mesmas, mas apenas figurações da lei - sua visibilidade.
E com isso a visão filosófica do mundo se tornaria mais elevada. O fenômeno ime-
diato, isto é, tudo aquilo que se faz para o homem pela sua existência natural - quer
seja tomado como um sistema de coisas ou como um sistema de representações-, não
é o objeto próprio e verdadeiro do conhecimento; mas é somente manifestação de algo
outro, das leis; e estas seriam aqui o objeto último.
Notem isto desde já, pois aqui, por sua abstração, salta aos olhos com a maior cla-
reza possível: - Certamente a profissão-de-fé da filosofia, que eu por exemplo professo,
e à qual desejo elevar a todos, e que não escondo, mas procuro declarar tão sem rodeios
quanto for possível, é que o mundo dado - quer seja tomado como um sistema de coi-
sas, quer como um sistema de determinações da consciência - absolutamente não existe
em nenhum sentido forte da palavra, e na sua base e fundamento não é nada: - e isto
é para mim tão transcendentalmente claro que, diante de uma pretensa filosofia-da-na-
tureza, e de todas as filosofias da mesma espécie, só posso compadecer-me de sua ceguei-
ra. - A saber, se perguntarem a mim ou à filosofia: - Então o mundo não aparece; ele
não é, para aquele que se abandona ao fenômeno, a essa aparição natural? - eu digo,
sem dúvida: - Sim. Mas se perguntarem: - Para o conhecimemto intelectual, o mundo
é o entender-se e o conceber-se desse fenômeno a partir de si, como fundamento? - a
resposta é: - Absolutamente não! - Somente uma imagem que repousa em si mesma
379 - que não tem nenhum fundamento fora de si - anuncia um verdadeiro ser. O mundo
é inteiramente exposição das leis, seu espelho; somente as leis são. Quem o toma de outro
modo, o faz justamente porque não adquiriu aquele entendimento, ainda não elevou a
essência-imagem que traz em si ao entendimento de si mesma.
Este é um outro caráter da filosofia: ela é conhecimento que se vê vir a ser, conheci-
mento genético. Antes: somente o conhecimento é, não as coisas; aqui: o conhecimento
vem a ser. - Lá - reconhecimento do conhecimento em seu ser exclusivo; aqui - o
entendimento do conhecimento em sua origem: conhecimento intelectual do próprio
conhecer. Isto - entendimento filosófico; aquilo - intuição filosófica.
Com isso descrevi em geral a forma da visão genética ou intelectual do ser (mas,
para o olhar filosófico, não há nada senão conhecimento). Apliquemos isto mais adiante:
Deste ponto de vista, leis, e, aliás, leis que se expõem no fenômeno, naquilo que apa-
rece e é dado imediatamente (na natureza) - leis naturais-, tomaram-se o ser último
e absoluto. - Mas, se se verificasse que, com esse ser = y, o conhecimento ainda não
se satisfizesse e aparecesse uma lei superior = x, cuja mera exposição seria a lei natural,
da qual a mera exposição é z - a própria natureza - , então, com essa elevação acima
de seu primeiro ponto terminal, se ampliaria o conhecimento intelectual.
Dois casos são possíveis: ou esse elevar-se do fenômeno - daquilo que, em algum
entendimento, é posto como ser último e absoluto - a seu fundamento superior continua
ao infinito: para esse x há ainda um u, que pode outra vez ser tomado, ininteligivelmente,
pelo Absoluto, mas, penetrado pelo entendimento, é outra vez reduzido a um t - e assim
por diante, ao incondicionado.
O resultado disso não seria, de nenhum modo, um ser absoluto, que detivesse o
entendimento e o satisfizesse: não seria um último; mas apenas um ser tal que, durante
um certo tempo, por erro e desentendimento, seria tomado por ele.
INTRODUÇÃO À TEORIA DOESTADO 165
1

ou ENTAÕ: há um fundamento último e absoluto (um ser absoluto), que satisfaz


completamente o entendimento, e não somente o conhecimento provisório: um último, 380

cuja aparição seria a proto-imagem, a imagem em geral, da qual x seria, por sua vez,
entendido como o fenômeno, e assim regressivamente, até o fenômeno que aparece pura
e simplesmente.
A pressuposição de uma filosofia admite: que não é da primeirà maneira, mas da
segunda.
Pois - a filosofia levada a cabo, perfeita, a aplicação completa do olhar filosófico ,
é justamente o conhecimento daquela parte absolutamente última da imagem (do conhe-
cimento, da consciência) em geral e dessa sua índole. - Por isso, esta é sua perspectiva:
- Há certamente um Absoluto, originando-se por, de, a partir de si mesmo - Deus-,
cuja revelação é o conhecimento (que é entendido como tal). E esse conhecimento é tal
(expõe-se nessas formas determinadas) porque somente dessa maneira pode tornar-se
visível: é determinado assim por si mesmo e sua essênCia própria é determinada assim, de
maneira inteligível, e entendida pela filosofia.
Logo - agora o conceito está perfeito - , filosofia ou doutrina-da-ciência seria
conhecimento do conhecimento em seu conjunto, do conhecimento como um sistema -
e, aliás, conhecimento pelo entendimento, ou genético.
Eu digo: 1) ela é conhecimento pelo entendimento: pela visão do fundamento. -
Ou seja: todo conhecimento é imagem, e por isso põe seu afigurado; o persistir nele é
intuição: (conhece-se, por certo, mas não se conhece intelectualmente). Assim, a admis-
são de um ser dado é mera intuição sem nenhum entendimento. Em contrapartida, o
conhecimento intelectual vê a imagem e, com ela, o afigurado virem a ser e originarem-se
a partir de seu fundamento. Este é o conceber (conceito em um sentido superior: o intér-
prete e exponente da essência).
2) Ela é um tal conhecimento (intelectual) - do conhecimento em geral,
em sua forma universal. - Em contraposição, torna-se mais claro: o conhecimento da
natureza por sua lei e como visibilidade e figuração dessa lei é conhecimento genético de
um certo conhecimento por um outro, dez por y. Caso essa lei, por sua vez , seja conhe- 38 1
cida a partir de uma lei superior, digamos, da lei moral, há aqui, outra vez, um conheci-
mento conhecido a partir de outro conhecimento, mas não o conhecimento em geral, e,
por isso, nunca a doutrina-da-ciência perfeita. - O conhecimento mesmo só poderia ser
conhecido a partir do que não é conhecimento, nem imagem, nem mero fenômeno ou
aparição de algo que permanece por detrás, mas é este próprio algo: o ser absoluto -
sem dúvida, também, um ser absoluto conhecido pelo entendimento, mas absolutamente
não posto pelo conhecimento, uma vez que, ao contrário, este é posto por ele.
Notem: 1) Opusemos a filosofia à não-filosofia nisto: esta última admite um ser
permanente, enquanto a primeira só admite imagem, só conhecimento. Agora termina-
mos a própria filosofia com a admissão de um ser absoluto. Não nos contradizemos?
Não; pelo contrário, com isso temos a ocasião de determinar o sentido de nossa afirma-
ção. - O ser do não-filósofo é um ser dado na consciência imediata; ora, esse nós nega-
mos inteiramente, vendo que, justamente por estar dado na imagem, ele é o figurado e o
sabido. O nosso, em contrapartida, é o ser dado unicamente pelo entendimento, que
transcende toda consciência fática. - Assim, tudo aquilo que põe pura e simplesmente
a si mesmo: - o eu é o modelo disso. (Aqui concentramos resultados da mais alta
importância. Quem já os conhece, o perceberá; quem ainda não, acredite nisto por
enquanto e fixe estas proposições, para que lhe sirvam de guia.)
166 FICHTE

Assim como nos pontos de vista anteriores, também neste último e supremo quere-
mos enunciar com clareza a perspectiva da doutrina-da-ciência, dando nossa adesão a
uma certa perspectiva: - Deus é: correto! (Deixamos em suspenso, entretanto, um certo
ponto.) - Ele se manifesta, se revela: correto! - a saber, no conhecimento, única e
exclusivamente nele. O que é, é Deus em si mesmo e sua revelação: esta última - conhe-
cimento! - Aquilo que, além disso, ainda parece ser, justamente apenas parece ser, ou
seja, no conhecimento. - Não há um mundo, a não ser neste; porque ele é justamente
382 imagem de Deus e como imagem em geral é entendido. - Deus mesmo é no conheci-
mento; mas não como algo imediatamente dado nele, posto nele, mas somente pelo
entendimento do conhecimento, entendido justamente como o entendemos aqui. Imedia-
tamente, no conhecimento, Deus absolutamente não está (não há uma intuição dele), mas
está apenas no entendimento desse próprio conhecimento como sua revelação.

*
Caráter fundamental da doutrina-da-ciência: o conhecimento com o caráter da
intuição - seja ele qual for - é embaraço em uma lei qualquer, e produto dessa lei.
Doutrina-da-ciência - entender completo, ver levado a cabo (em contrapartida, em toda
parte fora dela, há algo que permanece oculto, que ainda está por ser visto), portanto
completa liberdade. É conhecimento intelectual de todo conhecimento, na medida em
que vê o saber, tanto em geral (que ele é) quanto em particular (assim como ele é), origi-
nar-se de seu fundamento e de sua lei. - Ora, essa visão é liberdade do conhecimento
em relação à lei; é um pairar indiferente acima dessa lei; em contrapartida, todo outro
conhecimento que não se entende assim e que é, nessa medida, intuição, é por um cego
abandono à lei. Esta determina, exatamente como uma força natural cega, o representar.
Desse modo, doutrina-da-ciência é conhecimento completamente livre, que tem a si
mesmo em seu poder. - A completude e perfeição da liberdade decorre justamente de
que o conhecimento mesmo, em sua forma, é entendido a partir daquilo que, em si
mesmo, não é conhecimento e imagem. - E é sob esse caráter de completa liberdade que
a doutrina-da-ciência deve ser considerada preferencialmente aqui: este é o propósito de
nossas conferências.

*
Aqui falamos sempre apenas de conhecimentos, de imagens que põem, fora de si,
um ser, que só é em decorrência do enunciado da imagem. - Ora, o cognoscente, o eu,
não se encontra apenas conhecendo - com esta observação passamos a uma nova
383 investigação-, mas também como agindo, atuando: não apenas como tendo imagens,
mas também como sendo fundamento autônomo de determinações desse ser que, segun-
do a perspectiva habitual, põe suas imagens no interior do conhecimento. (Eu empreendo
este discurso, conheço este escrito, assim como vocês, imediatamente.)
Mas - como, de acordo com a perspectiva fundamental da doutrina-da-ciência,
esse agir também não é um agir em si, mas um agir em imagem - é somente em uma
imagem, que por sua vez põe outras imagens, como os efeitos do agir, que vocês podem,
caso tenham entendido bem o que foi dito acima, pensar esse agir em sua universalidade.
Explicitá-lo em particular não é nosso projeto mais imediato; isso ocorre nas partes pró-
prias da doutrina-da-ciência. - Mas importa-nos o seguinte:
O homem pode agir (do mesmo modo que, segundo o que foi dito acima, pode
representar) impelido por alguma lei que reina sobre ele e que lhe está oculta. - É claro
que, nesse caso, ele absolutamente não age, não é livre. O eu age? Não; isso é uma ílu-
são: Lei J. age - J é apenas um elo na cadeia da necessidade natural.
INTRODUÇÃO À TEORIA DOESTADO 167

Pode bem ser que o agir do homem comum seja inteiramente assim. - Pensem
numa planta: ela conserva a si mesma, se retrai , se expande, descreve as formas que tem
de descrever, segundo suas leis. Dêem-lhe consciência, e permaneça oculta a ela a lei: ela,
então, pensará, e se desenvolverá com liberdade. Aqui começa o movimento para sua
consciência; por isso, este é para ela o início, aquilo sem o qual todo o restante não seria.
- Houve raciocinadores que negaram a liberdade humana, alegando como exemplo
uma esfera dotada de autoconsciência. Ela está parada: movam a mesa e surgirá nela a
inclinação de mover-se para baixo. Isso é inteiramente claro e, pressupondo-se as forças
sem consciência, inteiramente correto: o homem, também, é apenas um elo na série das
forças naturais, e, assim, está irresistivelmente condicionado: não há liberdade.
Não há liberdade; pois não há um início do acontecimento, um ser-princípio. 384
(Assim deve ser pensada a liberdade, assim a pensamos. Todo o resto é pura insensatez.)
Ora, deveria, entretanto, haver liberdade nesse sentido. Como teria esta de ser?
Temos de pensá-la, construí-la. Esse é nosso postulado. Solicito sua atenção para isso:
não é exatamente difícil, mas é sumamente significativo. Assim como na semana ante-
rior, quero também agora tentar apresentar com clareza resultados que abrangem todas
as pesquisas de minha vida e que, além disso, não são muito conhecidos. Ao mesmo
tempo, espero poder, com facilidade, desvencilhá-los de uma série de escrúpulos e confu-
sões, em que talvez estejam embaraçados.
Era no desconhecimento da força propulsora que repousava a consciência da liber-
dade. Se agora aquela fosse conhecida, e sua lei, com isso se ganharia a liberdade?
Obviamente não: 'ª ilusão se desfaria; ganhar-se-ia a contemplação do vir-a-ser, e mais
nada. Também isso é sempre muito bom; e é justamente o que visam todos aqueles
raciocínios.
Por que o eu não é livre? Porque está posta uma força superior, em relação à qual
a determinação da vontade do eu se comporta como efeito, como principiado.
Uma tal força teria de ser inteiramente eliminada: não haveria lei natural. Mas lei
natural é uma lei cujo estar-posta põe irresistivelmente e com absoluta necessidade um
certo outro ser. Portanto, isso exclui, pura e simplesmente, no interior de seu domínio, a
liberdade (o iniciar): esta é uma proposição puramente analítica. - O eu ou a vontade,
portanto, teria de ser, ele mesmo, a força natural absoluta: não haveria ser sem ele, todo
ser só seria por ele e como seu principiado. (Isto está contido no iniciar absoluto, no ser-
primeiro, e é necessariamente pensado assim. Vocês absolutamente não podem pensá-lo
de outro modo e também nunca o pensaram de outro modo, se alguma vez o pensaram
com clareza: agora, isto deve ser apenas reconhecido claramente e mantido em mente
para a vida.)
Portanto, liberdade significa: não há natureza acima da vontade, esta é sua única
criadora possível; por isso, em geral, não há uma natureza absoluta, não há natureza a
não ser co~ principiado. Quem afirma uma natureza absoluta pode, no máximo, deixar 385
para a inteligência a contemplação. Isto é claro, como mera proposição analítica. -
Aqui não defendemos diretamente nenhuma das duas posições, mas meramente a coerên-
cia. Como uma filosofia-da-natureza pode admitir liberdade!
Vou deter-me aqui, para tornar mais claro, desde já, este pensamento, insólito para
a perspectiva habitual, pois precisaremos muito dele e de nossa familiaridade com ele.
Não há natureza e não há ser, senão pela vontade; os produtos da liberdade são o
verdadeiro ser. - Uma vez que poderemos vir a afirmar a liberdade, tal poderia ser exa-
tamente nossa opinião. - O mundo-dos-sentimentos dado se reduziria com isso à visibi-
lidade, representabilidade do superior, das criações da liberdade; esse mundo, com todas
168 FICHTE

as suas leis, só está aí para isso - para s~r a matéria-prima, a esfera à qual a liberdade
se aplica; também não é posto em si, mas pelá possibilidade de figurar , de expor a liber-
dade. Aquilo que a liberdade lhe aplica, permanece o verdadeiro. - Intuam-no na ima-
gem! O que cria a natureza? Vão à selva mais primitiva, que nunca fo i pisada por um pé
humano: mal poderiam encontrar algo que os atraia e satisfaça. Entre nós a vegetação é
ordenada, determinada, enobrecida; assim também os animais; por toda parte como que
novas criações: habitações humanas e edifícios, a fala e a escrita. Onde, em tudo aquilo
que nos cerca, se esconde a menor coisa que fosse puro produto da natureza; onde ainda
poderíamos encontrá-la? Será que os filósofos-da-natureza nunca lançaram um olhar se-
quer àquilo que os cerca, e não encontraram nele nenhum outro princípio, além da morta
lei natural?
A vontade - princípio absolutamente criador, que engendra puramente a partir de
si mesmo um mundo particular e uma esfera própria do ser. A natureza - mera matéria
passiva, sem nenhum impulso. Sua conformidade à lei, seu impulso ao desenvolvimento
são mortos para carregar a nova vida e o espírito da liberdade. Esse é o primeiro ponto !
Mas vamos adiante : - Na medida, entretanto, em que esta.vontade absolutamente
386 criadora é fundada e antecipada por imagens (conceitos-de-fim) de sua causalidade (que
e por que isto é assim e tem de ser assim, é algo que não temos de investigar aqui ; basta
pressupô-lo e encontrá-lo confirmado na percepção efetiva de nós mesmos, na autocons-
ciência), estas imagens são tais que não enunciam nenhum ser nem o põem imediata-
mente, mas só poderiam obter o ser correspondente a elas pela causalidade livre. (O dis-
curso que quero pronunciar, o texto que quero escrever, a ordem que quero produzir nos
utensílios de um aposento ou mesmo em uma sociedade de homens: tudo isto são ima-
gens ou conceitos puros.)
1) Livre, absolutamente criador é somente aquele cujo agir tem por fundamento
tais conceitos, que não se originam da esfera do ser dado: - que age nessa esfera por
conceitos que pairam claros e translúcidos diante dele e os expõe no mundo do dado. (Do
contrário, é a natureza-dos-sentidos, que, apenas repetida na imagem, repete-se também
no ser.) Esta é a segunda característica.
2) Esta é a mesma visão do mundo que adquirimos acima, em nome da doutrina-
da-ciência; só que aqui ela está ampliada e esclarecida. Do conhecimento das imagens do
ser dado elevamo-nos à sua lei = x; julgamos: em verdade só a lei é, e o ser que aparece
é exclusivamente o caso singular (o concreto) que torna possível intuir e representar a lei.
Mas eu dizia, além disso: essa própria lei, com todos os seus fenômenos, poderia bem,
por sua vez, ser somente a visibilidade de algo superior = y, da lei moral. Isto, lá, era
uma expressão inteiramente inexplicada; agora está clara. Aquela se espelha e se expõe
nos conceitos puros, que estão no fundamento de uma vontade absolutamente livre, que
não leva avante o ser natural, mas faz sair de si um ser próprio.
Portanto , como fica agora a relação? Aqui o verdadeiro ser; ali somente a vi sibili-
dade para ele, justamente a esfera de ação, matéria a que é aplicado e na qual é realizado.
38 7 Desse modo - um conhecimento que não enuncia nenhum ser, mas algo que, por toda
eternidade, deve somente vir a ser. - Há verdade em nosso conhecimento? Sim: mas
não no conhecimento daquilo que aí está, e sim no conhecimento daquilo que deve eter-
namente vir a ser, por nós e por nossa liberdade; deve vir a ser puramente a partir do
espírito, criado e exposto no dado, que somente para isso aí está. Não somente dizer isto,
mas acreditar com toda seriedade, viver dentro disto, conceber seu contrário como uma
visão lamentável, digna de compaixão - é a perspectiva da doutrina-da-ciência. Esta a
enuncia exatamente assim e sem rodeios, não como uma mera afirmação sensacionalista,
INTRODUÇÃO À TEORIA DOESTADO 169

pela qual se quer ganhar prestígio, sem, entretanto, acreditar nela e sem considerá-la
verdadeira. - É, não aquilo que nos aparece como sendo, nem sequer aquilo que todos
nós, e os mais nobres e melhores de nós, somos, mas aquilo pelo que lutamos e eterna-
mente lutaremos. - O que te tornaste é apenas o degrau, a condição para o momento;
tão logo te deténs e fazes menção de ser, cais no nada.
Conhecimento é imagem do ser - de Deus: mas não o conhecimento que põe outra
vez um ser a partir de si mesmo, e sim o que põe um vir-a-ser: a imagem da liberdade
eternamente criadora, pairando acima, com suas leis que se enunciam por toda eterni-
dade em conceitos puros - este é o mundo; e querer satisfazer-se com um mundo infe-
rior é um disparate deplorável. - Mas aquele mundo verdadeiro está unicamente na
imagem-modelo, não sendo, mas devendo vir a ser. Isto confirma perfeitamente a pers-
pectiva da filosofia, que enunciamos antes: só o conhecimento é, e nada fora dele. - A
imagem de um mundo, e não, porventura, um mundo mesmo, é a aparição , o fenômeno
do ser absoluto. (Isto foi ignorado, a realidade posta no ser dado, e a ética recuperada
apenas como um apêndice maravilhoso.)

*
Essa é a convicção e a visão-do-mundo da doutrina-da-ciência. As palavras, penso
eu, são claras, e não se prestam a mal-entendidos. Só é dificil acreditar que isto é dito a 388
sério e que não é afirmado nada mais do que isso, assim tão simples. Além disso, esse
modo-de-pensar inspira naturalmente respeito: pode dar ocasião a dúvidas, calúnias, mas
dificilmente ser seriamente desprezado. - Não se pode ser assim, o homem é fraco , a
sensibilidade sempre volta a impor-se a nós! Muito bem, sois portanto um povo desprezí-
vel, indigno, vós que falais assim e confessais em voz alta: além disso, sois lastimáveis
tolos; pois quem vos pediu essa confissão de vossa indignidade? - Quem tem tal modo-
de-pensar adapta-se mal ao mundo, cria para si mesmo desgostos por toda parte! Seres
desprezíveis! Por que cuidais mais de adaptar-vos aos outros, do que de adaptá-los a vós
e corrigi-los para vós? Quem está direito não deve adaptar-se ao que não está, mas,
inversamente, aqueles que não estão direitos devem ajustar-se a quem está; e este não
quer a aprovação dos maus - para isso ele mesmo teria de tornar-se um deles-, mas
quer formar e corrigir os maus, para que estes possam ter sua aprovação. Sem dúvida,
quem está direito tem também de trazer consigo a habilidade e a coragem; mas sem estas
também não se chega ao que é direito. - Mas alguém poderia admitir que assim é, e, no
entanto, perguntar: - Como chegar a isso? - Somente pela formação de seu próprio
olho interior. De fora, pela mera crença, isto não advém: ele tem de tê-lo em si mesmo!
Lei moral, portanto, é a imagem de um supra-sensível, puramente espirtual ~ ou seja ~
de algo que não é, mas deve, apenas, vir a ser, por obra do iniciador absoluto do ser, a
vontade.
Verdadeiramente livre, como agente, é somente aquele que age segundo tais concei-
tos puros. Pois uma lei natural que o impelisse não poderia ocultar-se, já que o critério
do conceito ético é o seguinte: não conter, absolutamente, algo que é, mas expressamente
aquilo que não é. E somente assim, também, ele está seguro de sua liberdade.
Se compararmos isto com a filosofia ou doutrina-da-ciência, sabemos: chama-se
filósofo, para nós, aquele cujo conhecimento é inteiramente livre e perfeito. - Aquele
que aqui foi descrito como verdadeiramente livre tem esse conhecimento supremo e per- 389
feito; penetrou até o conhecimento puro do verdadeiro ser; é, por isso, um homem de
·ciência, um teórico. Mas o que mais? Ele vive e pratica o conhecimento filosófico: aquilo
que, lá, estava em repouso e inativo, tornou-se aqui impulso e determinação de uma vida
170 FICHTE

criadora do mundo. Nele a filosofia é criadora do ser, portanto aplicada. Aplicação da


filosofia é uma vida ética.
(Uma vida ética: não meramente uma vida que não seja contrária à ética, que não
seja injusta, viciosa - essa neutralidade ainda é confundida, pela maioria, com a ética
- , mas uma vida verdadeiramente, positivamente ética, que cria o mundo ético, isto é,
aquele que está contido no conhecimento como devendo ser pura e simplesmente, e que
o aplica ao mundo dado, que está aí apenas para isso. Mas, para isto, o olho interior deve
estar formado para ver esse supra-sensível: e essa formação do olho é a doutrina-da-
ciência.)
Assim: absoluta elevação acima da natureza, vida a partir do puro espiritual conhe-
cido, é a filosofia ou doutrina-da-ciência convertida na própria vida e em seu estímulo. A
filosofia, em sua aplicação, significa: a filosofia na vida, na ação e na criação, como
força fundamental própria, formadora do mundo; ela se coloca no ápice da formação do
mundo, em seu sentido mais próprio e mais elevado.
Essa filosofia aplicada só pode ser vivida; não pode ser comunicada em um discur-
so, em uma nova imagem. - Por isso, conferências de filosofia aplicada, assim como
anunciei, propriamente não há. (Fazer conferências, como um meio de despertar outros
para essa convicção arrebatadora e para a vida que decorre dela, isto pode certamente
ser, do ponto de vista de uma pessoa, sua vida espiritual, a obra proposta a ela. Mas isto
não vem ao caso aqui.)
Mas, em um sentido diferente e derivado, conferências sobre a vida espiritual como
aplicação da filosofia, imagens de uma tal vida, também teriam de chamar-se filosofia
390 aplicada Uustamente em imagem, em um mero conhecimento, que não põe seu ser
imediatamente, como o conceito-de-natureza, mas apenas o exige. E esse teria sido, por-
tanto, o sentido de meu anúncio.) - A doutrina-da-ciência deveria ser considerada por
nós como sabedoria, guia da vida e da ação; - o que, de resto, também se chama: filo-
sofia prática. E, com efeito, é a esse domínio que se referirão nossas investigações; era
isso, também, que estava anunciado. Contudo, deixei indeterminada sua esfera mais res-
trita, embora para mim ela estivesse bem determinada; pois não queria atrair a mera
curiosidade e não queria despertar nenhum outro interesse que não o puramente cientí-
fico, sem nenhuma referência ao objeto particular - até que, nas próprias conferências,
eu tivesse encontrado a ocasião para dispor meus ouvintes à seriedade necessária e fazê-
los esperar apenas por essa rigorosa seriedade.
Com efeito, o objeto particular destas conferências me é prescrito com rigorosa
necessidade, da seguinte maneira: Se eu quisesse efetivamente tratar, de maneira cabal e
completa, do objeto que acaba de ser descrito e deduzido, ou se pudesse fazê-lo neste es-
paço de tempo, ou seja, fornecer a descrição completa da vida do espírito, eu teria de
fazer preceder essa descrição e colocar à sua frente a investigação sobre as condições
exteriores dessa vida inteiramente livre e espiritual; a descrição de um estado-do-mundo
que deveria estar previamente dado, caso se deva chegar universalmente à liberdade ética
exigida. - E como, por certo, não quero perfazer, mas começar, tenho de iniciar pelo
começo natural: tenho de fornecer aquela investigação, que faz parte dos capítulos
preparatórios; portanto, é este propriamente meu projeto nestas conferências: expor as
condições externas da liberdade ética, que se encontram no mundo dado.
Captemos mais uma vez, com rigor, aquele conceito. A vontade é o princípio abso-
lutamente criador do verdadeiro mundo; este - seus produtos e ef~itos. Aquela tem seu
conteúdo dado, seu alvo a ser visado, na lei moral: nesta estão prefigurados os efeitos;
391 mas esses efeitos são novas determinações do mundo-dos-sentidos previamente dado. -
INTRODUÇÃO À TEORIA DO EST ADO i . 171

Pergunta-se, então: - Sob esse aspecto , está este apto para acolher a marca de uma von-
tade livre e espiritual? Ou como teria de ser, caso não o fosse pura e simplesmente, e
como, nesse caso, deveria ser tornado apto? - Portanto, é ao mundo circundante, como
esfera do agir livre, e, portanto, de certo modo, à natureza, e, aliás, quanto à sua adequa-
ção para uma atuação ética livre, que teríamos de dirigir a atenção. Este, universalmente,
o lugar da investigação.
Primeiramente, então: esta investigação - embora, pelo que foi visto até agora,
tenha aparecido como preliminar à filosofia aplicada - é também uma parte desta. Pois,
caso o mundo, em seu estado dado, não se encontrasse apto para aquela atuação, a pri-
meira de todas as exigências da lei moral - e, desta vez, a única que está na ordem do
dia - é dar-lhe a configuração adequada. Esta mesma é, portanto, a primeira exigência
feita à vontade moral: logo, ensinamos a ética mais imediata do tempo. - Isto de modo
geral. Agora, mais perto do assunto:
O mundo dado, na medida em que é determinado unicamente pela lei natural, é,
com toda certeza, adequado à liberdade; pois, segundo a lei originária da aparição e da
essência-imagem em geral, ela é apenas a visibilidade do ético, da liberdade. - A liber-
dade é o mais alto princípio, pelo qual a natureza desaparece no nada: esta pode desen-
volver-se por si, mas não pode resistir ao princípio superior: este começa, justamente, por
matar aquele desenvolvimento vazio, para a acolhida da Idéia. Sob esse aspecto, portan-
to, não é preciso nenhuma investigação particular sobre a aptidão; essa investigação está
excluída de antemão. O que a liberdade deve, somente ela pode, não a natureza; mas
tudo o que ela pode, esta acolhe sem resistência. - Mas a liberdade só pode atuar sobre
ela; e está dividida entre vários indivíduos, cada um dos quais, em referência à natureza,
é incondicionalmente livre. Essa liberdade incondicionada de diversas vontades pode 392
obstruir-se e tolher-se; e assim surge não-liberdade para o indivíduo, porque todos que-
rem ser incondicionalmente livres.
Portanto: Uma vontade de acordo-consigo, e não haveria, em parte nenhuma, obs-
trução da liberdade: todo o nosso problema seria eliminado. Mas são várias vontades,
possivelmente conflitantes entre si; daí a possibilidade da obstrução da liberdade.
A lei natural - eventualmente, uma certa organização natural - não pode conci-
liar esse conflito; pois a natureza não comanda, em geral, a liberdade: portanto, tem de
ser uma lei ética; uma lei que se dirigisse à liberdade de todos, estivesse deposta no
conhecimento de todos, a lei fundamental e, por assim dizer, o fiador de toda lei moral
- pois determina até que ponto pode ir a liberdade de cada indivíduo sem perturbar a
dos demais. Assim, o domínio da liberdade é como que dividido em duas esferas: a) a es-
fera da causalidade livre de cada indivíduo; b) a esfera que nenhum deles poderia tocar
imediatamente. - Por essa lei, aquele conflito é apartado e, desse modo, o único perigo
com que se defrontava a liberdade é suprimido.
Ora, essa é a lei do Direito: está pura e simplesmente aí, como condição externa da
liberdade ética; portanto, tem de reinar, como absolutamente firme e dada, como pura e
simplesmente obrigatória, do mesmo modo que uma lei da natureza. - Aquela condição
extrn~ é, portanto, o Direito, o mundo jurídico; a primeira lei tem de produzir, prelimi-
narmente, o estado de Direito. A investigação daquelas condições preliminares, portanto,
teria de descrever exatamente isso: seria doutrina-do-Direito.
Ora, também esse não é o meu propósito: ensinei a doutrina-do-Direito no ano pas-
sado e, além disso, escrevi um livro sobre ela; - mas: poderíamos não considerar a lei
jurídica como pondo um estado já dado, portanto apenas teoricamente, mas considerá-la
praticamente, como um mandamento ético a todos, como aquilo que todos nós devemos
conceber em primeiro lugar, para depois cada um passar à sua parte.
172 FICHTE

Mas isso só seria possível se, no mundo presente, o estado de Direito perfeito ainda
393 não estivesse inteiramente introduzido; e somente na medida em que o creio, eu poderia
anunciar uma tal investigação.
Ora, essa é certamente minha opinião, que eu, mais tarde, tenho de provar. O Direi-
to reina no presente estado do mundo, sem dúvida, até um certo ponto, reina também no
todo (algumas incursões passageiras da prepotência não são levadas em consideração)
mais do que nunca em um estado anterior do mundo; mas ainda falta muito para que es-
teja estabelecido sem exceção: em parte, porque extremamente poucos conhecem a fundo
o conceito-de-Direito; em parte, porque, no presente estágio cultural do gênero humano,
seria impossível executá-lo; em parte, finalmente, também - não vamos dissimular-nos
isso - porque é vantagem para muitos que ele não seja executado e que mesmo seu
conhecimento permaneça obscurecido. Assim são os dispositivos jurídicos existentes. -
Dispositivos de emergência, os melhores que agora são possíveis, apenas provisórios,
degraus. Não se deve permanecer neles - e também não se permanecerá; por certo, não
estaremos vivos para vê-lo, e também não devemos desejar isso.
Portanto, aquilo que é mandamento ético para o Direito, no presente e para o
tempo, faz parte de nossa investigação; portanto, aquela parte do conceito-de-Direito
que, por ora, ainda não tem validade. Notar bem isso!
De resto, quanto ao espírito de indulgência e seriedade científica, puramente desin-
teressada, com que nossa investigação tratará esse objeto - atribuindo, portanto, tam-
bém a seus ouvintes esse mesmo espírito, se, em vez de um dom bem intencionado, não
quiser fazer-lhes um dom perigoso-, diremos ainda algumas palavras. Em referência a
isto, queremos, por assim dizer, estipular as condições: produzir em nós a disposição
para tal.
Ao puramente científico opõe-se o imediatamente prático, que funda a ação, o que
se liga imediatamente à história do presente. - Essa distinção, embora freqüentemente
enunciada, nunca foi, ao que eu saiba, bem ponderada. Vamos fazê-lo aqui:
394 a) Tudo o que deve acontecer no mundo (propriamente, tudo o que verdadeira-
mente acontece; pois o que é errado não são posições, mas apenas negações) funda-se na
lei ética. - b) Cada acontecimento particular faz parte de uma série, em que a possibili-
dade do seguinte é condicionada pela efetividade do anterior. - c) Suponham que a
efetividade, a história dos homens, em um certo lugar, está dada, efetivada, em algum
ponto dessa série; então, a partir desse ponto, só deve e pode ser efetivado o imediata-
mente seguinte. O preceito que diz que este deve ser efetivado é imediatamente prático -
mesmo sua compreensão o é. - Este é seu earáter: só ver o imediatamente urgente. -
d) A ciência continua essa série, vê pontos mais remotos - que são igualmente práticos,
mas não imediatamente. - Mas, ao mesmo tempo, procura os meios, as condições para
aquele (fim) mais remoto; estes meios - embora não o que é condicionado por eles, seu
efeito mais próximo - podem certamente ocorrer no presente, e assim a ciência pode,
apesar de tudo, tornar-se, também, imediatamente prática. (Em outro sentido, por certo,
ela o é sempre: a saber, tão logo um conhecimento é fundado por ela, este deve ser
conservado, ampliado, aclarado; e essa própria transmissão e difusão do conhecimento
pode tornar-se imediatamente fim para alguém.) -- e) Assim, pura e simplesmente toda
ciência tem tendência prática e é fundamento de ação. O pensamento teórico indica os
meios para a realização de um alvo ainda remoto; o puramente prático visa o fim absolu-
tamente mais próximo. A doutrina-da-ciência penetra a ambos em sua relação de um
com o outro - assim como acabamos de enunciá-la: fornece, justamente, a norma para
o uso científico do entendimento na vida.
INTRODUÇÃO À TEORIA DOESTADO 173

Portanto:
1) Toda ciência é fundamento de ação; uma ciência vazia, sem nenhuma referência
à prática, não há: isso se mostrou impositivamente.
2) Disto resultam duas categorias sociais fundamentais: o povo e os teóricos, os 395
homens de ciência - que, sem dúvida, não devem, exteriormente, ser rigorosamente
separadas e cujos componentes podem mesmo entrecruzar-se em pessoas singulares (ou
seja, a mesma pessoa pode, sob certo aspecto, ser povo, em relação a muitas idéias que
fundam atos, mas, sob outro aspecto, ser um teórico). - Para o primeiro existe somente
aquilo que funda imediatamente a ação; aos últimos compete a visão prospectiva: são li-
vres artistas do futuro e de sua história, lúcidos arquitetos do mundo, a partir do primei-
ro, tomado como matéria sem consciência.
3) Assim, a expressão: Isso pode ser verdadeiro na teoria, mas não vale na prática
- só pode significar: Para agora não; mas deve valer com o tempo. - Quem tem outra
opinião, não tem nenhuma perspectiva do progresso, toma o contingente, condicionado
pelo tempo, por eterno e necessário: é povo ou, mais propriamente, plebe. Pois o povo se
funda na pura insciência de seu próprio ponto de vista, porque não conhece outro, não
tem o contrário, oúnico que torna possível toda distinção. Mas quem conhece o contrá-
rio, o combate e se apresenta positivamente como o que está certo, é plebe, e sua essên-
cia, orgulho de camponês. Quem cultiva a gleba e vive com os animais não pode ter a
elasticidade dos membros e o hábito de asseio que convêm; mas quem exigirá isso dele?
Mas se ele põe nessa grosseria, nesse mergulho no lodo, a ponto de respingá-lo por todos
os lados, a honra e a bravura, se ele o exagera propositadamente, despreza os brandos e
asseados, contrapondo-os a si como efeminados; então isso é plebeísmo; assim também
aqueles que se orgulham precisamente de sua cegueira espiritual e de sua total insciência.
Ora, aqui falamos meramente daquilo que se chama, para nós, no sentido designa-
do, puramente científico: o objeto anunciado faz parte, portanto, do âmbito daquilo que
por ora não vale, não está na história (portanto, não faz parte de c:) e também não pode
estar nela (portanto, não faz parte de d), mas é um dos pontos mais afastados.
Ao dizermos: não pode valer para agora - dizemos: deve valer para agora? Vá e 396
execute-o! - Contradizemo-nos frontalmente? Quem o capta assim, o distorce. O que
quer que dissermos, não importa aos que estão vivos. Deixai que cuidem de sua execução
imediata aqueles que viverão quando for tempo, ou que eles protestem contra isso: mas
tu, homem do presente, cala-te; absolutamente não me dirijo ao presente e não falo do
presente.
Ma~ isto, talvh, dizemos: tem de ser posto, desde logo e desde já, no presente (c),
algo a partir do qual possa desenvolver-se, termo a termo e passo a passo, aquilo que
agora é totalmente impossível, para que venha a ser possível. Não o alvo, o estado perfei-
to, mas apenas o meio mais próximo para alcançá-lo, é o que temos em mente.
Talvez seja bom nomear desde logo o meio: o estado de Direito deve tornar-se pura
e simplesmente o estado de todos; para isso nem todos estão aptos; portanto, é exigida,
de imediato, uma formação de todos para esse fim, educação - uma educação esclare-
cida, à qual seja indicado seu alvo determinado. (Não se pense que a educação para a
cidadania permanece unilateral: tudo está contido nela, contanto que seja pensada a ver-
dadeira cidadania. Isso também se mostrará.)
Talvez nem mesmo isso seja imediato: portanto, tem de ser tornado possível, é pre-
ciso pensar sobre isso. Em todos os casos, portanto, isso deve ser conhecido, e também
o que se segue disso: portanto, seu conhecimento e sua doutrina são, com toda certeza,
imediatamente práticos, mas, por ora, nada mais o é. Assim permanecemos puramente
em nosso campo doutrinário, e também o executamos imediatamente.
174 FICHTE

Mas, em seguida, dissemos: não podia ser de outro modo; um estado de emergência,
ocasionado pela insciência e o despreparo geral, e também pela insciência própria do
indivíduo - que não tem culpa, enquanto não lhe foi fornecido o ensinamento. - Não
nos queixamos disso, não repreendemos os homens, mas reconhecemos a emergência.
397 Seja o que for que mostremos a seguir, quem se sentir atingido pode suportá-lo: ele é ino-
cente e puro, contanto que não se oponha à doutrina e não se obstine contra ela.
Não digo isto para, eventualmente, resguardar-me de perigos, mas para resguardar
vocês, e mostrar-lhes o espírito que os preserva dos sentimentos de malevolência, escár-
nio, inveja, e assim por diante, que poderiam ser suscitados, nos menos instruídos, por
muitas das considerações seguintes; na medida em que tantas coisas, que o povo (for-
mado pela mera história) venera, poderiam aparecer sob outra luz.
A fonte dessas paixões é justamenté aquela cega veneração do meramente histórico,
e a inveja por não estar naqueles lugares venerados. - Quem verdadeiramente entrou no
âmbito da clara compreensão e no esplêndido prazer que esta proporciona não tem de
invejar a nenhum homem, e não deseja nenhum outro destino. O seu é o mais glorioso e
o mais empolgante. Por isso, nenhuma consideração que coloque os outros sob uma luz
desfavorável pode elevá-lo ao orgulho: ele tem seu lugar inalterável.
Somente quem ainda não se apropriou do conhecimento, quem o vislumbra como
um relâmpago, como um componente que ainda não faz parte dele, e, por isso, ainda o
separa de si mesmo pode, através dele e das verdades que nele contempla, ser tirado de
seu equilíbrio e levado ao orgulho, à altivez e a todas as suas conseqüências. Aquele cuja
vida própria e constante é o conhecimento, para quem este constitui seu próprio ser, não
se vê mais separado dele: o olhar dele é o seu. Mas, nesse olhar, ele é tomado, pelo
contrário, de profunda melancolia, e de compaixão pela sorte dos que são forçados, pelas
relações históricas, a guiar os destinos dos povos e a tomá-los a seu cargo, sem entre-
tanto terem em si mesmos a perfeita clareza; aos quais, muitas vezes, deve impor-se a
398 compreensão de que precisam de conselhos e que, no entanto, não encontram fora de si
nenhum conselho que os satisfaça.
Nesse espírito vejo as relações atuais do mundo; nele direi tudo o que direi sobre
elas. Nele desejaria também que o recebessem. Desejaria elevá-los ao éter puro da ciên-
cia, e preenchê-los com os nobres e altos sentimentos que ali se encontram; mas não for-
necer matéria nova para paixões menos nobres, que as relações de todos nós, acima das
quais, justamente, queremos elevar-nos, já engendram e alimentam suficientemente.
Portanto, é aos estudantes da ciência, não ao povo, que se dirige este ensino, e
somente nesse sentido puramente científico.

*
Mas se alguém, mesmo sob essa condição, não quisesse admiti-lo: - Por quê?
Nesse caso as coisas se tornariam diferentes e melhores; isso não deve acontecer, em ne-
nhum futuro possível! - o que deveríamos fazer? Todo desvio da justiça é desculpado
pela emergência. Quem quer perpetuar essa emergência, quer a injustiça por si mesma. É
inimigo do gênero humano: isto deve ser dito e ele deve ser tratado como tal. É preciso
pura e simplesmente abrir caminho para a justiça; se ele, de modo nenhum, quiser sair do
caminho, esse caminho deve prosseguir, mesmo por sobre ele.
Mas, ainda que não fosse assim, poder-se-ia temer que isto, mesmo no presente,
viesse a causar prejuízos. - Desordem! - Como assim? - "Dizes, sem dúvida, que
não é para o presente: mas, e se não derem atenção a isso, não o respeitarem?" - Muito
bem: então a culpa é deles. Coíbam esses desordeiros com as mesmas armas com que
coíbem outros, com a aprovação e mesmo com o consentimento da ciência.
INTRODUÇÃO À TEORIA DOESTADO 175

.. Mas podem lidar com isso sem precaução; podem difundi-lo entre o povo - no
sentido indicado acima!" - Mesmo contra isso a ciência os previne com toda seriedade.
Já enunciei acima o fundamento dessa advertência: quero também enunciar a adver- 399
tência ainda mais determinadamente. Por exemplo, os teólogos que trazem ao púlpito
controvérsias sobre a autenticidade dos livros canônicos - explicações conflitantes -
e recitam diante do povo seus cadernos críticos e exegéticos são inábeis, ridículos e,
penso eu, objeto de riso geral. Não menos ridículo seria o estudante da ciência que, para
fazer o povo admirar sua arte, usasse nossas proposições para fins polêmicos. Isso são
travessuras juvenis, alheias à seriedade da ciência: o estudante da sabedoria nunca as
deixará de lado cedo demais. Felizmente, aqueles são objeto de riso mesmo para o povo,
que toma o que é pelo absolutamente necessário. O próprio mal traz consigo seu remé-
dio. - Além disso, quem é capaz daquilo já mostra que tem tino científico, e terá tam-
bém a perspicácia que o acompanha.
"Sim: contudo, ainda não está provada a impossibilidade absoluta de ocorrer um
daqueles abusos; o que, sem teu ensino, não ocorreria." Não, certamente não! Se sabes
de outros meios, além dos indicados, que eu deva usar, comunica-os a mim, que tu pos-
sas usar, usa-os. - Não, diz aquele: tu absolutamente não deves ensinar; assim aquilo
seguramente não se realizará, este é o verdadeiro meio! - Perdão! E esse é o único que
não pode ser usado. - Isso vem a dar exatamente no mesmo que antes: a inimizade con-
tra o homem, e sobre esta nós já falamos. Em função do abuso, suprimir o uso - signifi-
ca, justamente, sentenciar a humanidade a que tudo permaneça no estado antigo. -
Tudo foi mal usado, tudo pode sê-lo, e seguramente o será; com isso não acontece nada
de novo.
*
Mas também essa liberdade de ensino existe efetivamente, por tradição e historica-
mente, em nossa Europa cristã; e quem a prova não quer conservar esse (dado) histórico,
mas introduzir algo inteiramente novo e inédito. Por toda parte instituições de ensino, e 400
um símbolo filosófico, que não deve ser transmitido inalterado, mas ampliado; para isso,
portanto, liberdade, e conservar a esta é dever do ensinante. Este pode errar; nesse ponto
outros podem contestá-lo. O assunto permanece no domínio da doutrina. - Esse é nosso
Paládio; e quem o quer de outro modo, teria de ser inimigo da humanidade. Uma tal
disposição seria pura e simplesmente injusta, e nenhum homem poderia, com boa cons-
ciência, permanecer nela.
Este é o rigor doutrinal; mas de fato não é assim. Eu já disse em outra ocasião que
mesmo aqueles, com os quais estamos envolvidos em uma justa guerra, não provaram
aquele princípio em sua universalidade.
Isto como introdução.

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