Miolo Fique! 15x21cm
Miolo Fique! 15x21cm
Miolo Fique! 15x21cm
Editor-chefe
Lucas Almeida Dias
Projeto gráfico
Paulo Ricardo Cavalcante da Silva
Diagramação
Tatiane Santos Galheiro
Inclui bibliografias.
978-65-88496-69-5
CDD
800
Mensagem do autor
O
preconceito é notório a cada passeio de mãos dadas e a cada gesto
mais solto. As pessoas crescem com conceitos pré-determinados,
imaginando um mundo preto e branco, sem variações, sempre com o mesmo
padrão para tudo. Mas essa sanha por uma vida sem cor, sem graça, que inibe
as diferenças, é o que faz do mundo um lugar, para tantos, sombrio e inóspito.
Mas, todo esse sofrimento pelo que eu e tantos passamos, ele não
precisava ser assim! O amor é a melhor parte da vida, e ele é o mesmo
independentemente da orientação sexual, religião, cor ou peso. O amor é
universal e único. Sendo o sentimento mais puro, gratificante e genial que
Deus inventou, o amor vence barreiras e quebra paradigmas.
Fique 3
vingança são violências que podem custar a vida humana. Sendo assim, em
um mundo onde já há tantas maneiras de se matar e morrer, o homem faz do
preconceito mais uma delas.
Com carinho,
Matheus Dumalak.
4 Fique
Capítulo 1: Ironia é coisa do diabo
M
uitos me perguntam como ou quando eu me tornei
homossexual. Esse é um questionamento complicado, que
sempre me incomodou. Eu nunca soube responder com precisão, mesmo
depois de vários anos estudando o comportamento da mente humana.
Até porque não é uma coisa simples para se abordar, ainda mais quando a
pergunta é feita em ambientes quase inóspitos, como na casa de uma tia de
quarenta anos, ou em reuniões de amigos naquele bar cheio de “machões”.
Aos dez anos, eu já olhava mais para os garotos da minha escola do que
para as garotas. Um dia, na terceira ou quarta série, fiz um plano infalível para
dar um beijo em meu amigo. É claro que não sentia atração sexual naquela
época. Em minha cabeça, tratava-se de uma simples brincadeira, como
quando as meninas brincavam com as bonecas e seus castelos encantados.
Sim, eu também tinha as minhas fantasias.
Fique 5
No ensino médio, as coisas ficaram mais delicadas. Tentei me envolver
com algumas meninas, até as beijei, mas não senti nada. Quem olhava podia
afirmar que era uma menina beijando uma parede. Entendi, finalmente, o que
estava acontecendo e resolvi me entregar e começar a minha verdadeira vida.
Com isso, assumi-me para mim mesmo e decidi arcar com as consequências
de minha “decisão”.
Quanto aos meus pais, bem... tenho a certeza de que perderam algumas
noites de sono, talvez até pensando em abandonar a responsabilidade que
tinham sobre mim. No entanto, no final, como nasceram prontos para amar,
deixaram todo o pré-conceito de lado. Confesso que tenho certa dificuldade
de entender o motivo dessa raiva tão gigantesca que alguns, diferentemente
de meus pais, possuem. O amor deveria ser maior do que qualquer coisa.
O que quero que entendam é que algumas coisas não têm começo
pontual. Algumas coisas apenas surgem. É fácil você definir a que horas
acordar, a que horas comer ou a que horas trabalhar. Até planejar uma grande
viagem torna-se simples. Agora, saber quando ser homossexual não é uma
equação de primeiro nem de segundo grau.
6 Fique
Quando Guilherme nasceu, houve uma grande comemoração. Ele era o
primeiro neto de Tereza e, também, de Lúcia. As avós receberam o pequeno
com os braços abertos e com todo o amor que se pode imaginar.
Não digo que a infância do menino foi totalmente perfeita, mas ele teve
muitos momentos bons para recordar. Guilherme foi privilegiado, nasceu e
cresceu em uma família cheia de amor. No que diz respeito ao dinheiro, pode-
se dizer que era privilegiado. Estudou em escola particular desde os oito anos.
Ia ao cinema, teatro, viajava com os pais, tinha tudo o que precisava para
crescer saudavelmente.
Seu pai, Rodrigo, também esteve presente, ou pelo menos até antes de
as coisas começarem a ficar mais turbulentas. Rodrigo possuía fisionomia
distinta, com um cabelo que ninguém saberia dizer se era encaracolado ou
ondulado. Com seus 1,60 metros e com alguns quilos além do ideal, não
aparentava boa forma. Guilherme em nada o puxou.
Fique 7
Ser gay é complicado. Não acredite naqueles que dizem que não há
nenhuma desvantagem. Porque existem várias: o preconceito, a dificuldade
emocional, os parceiros, as doenças, o fim da idealização de uma família
“convencional” etc. Ser homossexual gera vários desafios.
Guilherme não soube o que era sofrer por causa da sua orientação sexual
até andar, pela primeira vez, de mãos dadas com outro homem. “Veado! Bicha!
Vou enfiar um pau no seu...!”. Eram alguns dos típicos insultos dirigidos a ele. O
preconceito que sentia e a dificuldade de lidar com os insultos custaram-lhe
muito, como custa a tantos de nós.
O pouco amor que restou à humanidade está nos detalhes. Nas coisas
mais comuns, no carinho e atenção doados ao ajudar uma senhora a carregar
as compras do mercado, ou ao cumprimentar o porteiro do prédio antes de
ir ao trabalho. Assim como a atenção, o respeito não deixa de ser também
uma forma de amor. Mais do que isso, respeitar as diferenças é a mais pura
demonstração de afeto.
8 Fique
Atencioso com a família, fazia de tudo para acolher Guilherme como um filho.
Fique 9
perfeitos, enquanto ele estaria perdido, condenado ao inferno por suas
transgressões imperdoáveis.
— Guilherme, você sabe o que isso pode provocar? Eu estou com outra
pessoa agora. — Ele sempre estava com outra pessoa.
— Eu quero que seja o que Deus achar melhor. — Foi a resposta que
encontrou para livrar-se daquela injusta responsabilidade de decidir
qualquer coisa. Rodrigo relaxou e jogou-se na cadeira, satisfeito.
O pai provavelmente sentiu-se feliz. Ele não queria voltar com Rosa.
A mãe também ficaria contente ao saber da resposta, porque, assim como o
ex-marido, não achava conveniente reatar o relacionamento. Deus, em nada
interferiu, possivelmente porque estava ocupado cuidando de assuntos mais
importantes, quem sabe manipulando os resultados dos jogos de futebol
do campeonato brasileiro devido ao grande número de rezas da torcida do
Corinthians. Enquanto isso, Guilherme sentia-se impotente e triste, engoliu
seco e sorriu como se posasse para alguma foto da G Magazine.
10 Fique
de uma forma de Deus mostrar toda a sua compaixão e confiança por aquele
rapazinho. Eu, no entanto, penso que aquilo tudo não passou de um belo de
um espetáculo a quem assistisse. Pense comigo...
***
Se Deus existisse, não faria esse tipo de indagação a alguém com o nível
de confusão mental que Guilherme tinha naquele tempo. Além do divórcio,
o garoto desejava que o pai fosse mais presente em sua vida, isso também o
fez chorar quando ficou sozinho naquela mesma noite. De qualquer forma,
Fique 11
Rosa e Rodrigo não poderiam ficar juntos. O relacionamento deles parecia
acontecer no mesmo século que a história dos Flintstones.
No fundo, o garoto esperava escutar que estava curado, que a sua doença
tinha acabado e que ele estava liberto. E saiu de lá torcendo para que Deus não
fizesse nenhuma bobagem. O pai achou tudo aquilo divertido após perceber
que havia escapado, por um triz, de ser obrigado a voltar com Rosa.
— Como assim?
12 Fique
— Imagina se ela cai!
***
“Isso é um absurdo!”
***
Fique 13
Rodrigo sempre foi categórico ao afirmar: “filho meu não vai ser gay”.
Uma vez, enquanto jogavam comida para os patos no lago do horto florestal,
avistaram dois homens caminhando de mãos dadas pela trilha ali por perto. É
claro que Rodrigo não perdeu a oportunidade de expor o que pensava:
— Olha isso, Guilherme, que ridículo aqueles dois. Eles vão queimar no
fogo do inferno. — Guilherme tinha dez anos quando isso aconteceu.
Cada um tem a sua religião, é claro, mas o que me revolta é saber que
tantas crianças e adolescentes são treinadas para pregarem o ódio. Elas
crescem em ambientes preconceituosos ao invés de serem educadas para o
amor. Elas aprendem que o inferno está repleto de pessoas más, pecadoras,
e igualam o homossexual ao pedófilo, igualam o assassinato ao amor entre
dois homens ou duas mulheres. O amor é divino independentemente de sua
forma. Mesmo assim eles nos empurram o ódio, camuflado de ressurreição.
Pregam a intolerância, camuflada de obediência. Disseminam o preconceito,
camuflado de religião.
O falso poder de decisão que Guilherme teve naquele dia é o mesmo que
eles pregam a nós. Perguntam-nos se queremos mudar. Perguntam-nos se
queremos seguir a Deus e aceitá-Lo como o nosso único salvador. Obrigam-
14 Fique
nos a ser quem não somos. Fazem isso com a certeza de que a nossa essência
vai mudar.
Mas não, ela não vai. Deus nos criou assim e permaneceremos assim.
Ninguém escolhe ser gay, ou lésbica, ou trans, ou bi, ou seja lá o que for.
Apenas nascemos assim. Alguns tentam criar um desejo forçado e se passam
por heterossexuais. Casam-se, têm filhos. Mas a essência permanece lá,
guardada, esperando uma oportunidade para se libertar.
***
Fique 15
Para piorar a situação, Guilherme começou a criar as suas próprias
expectativas. Deixar de ser gay estava no topo da lista. Evidentemente, isso
o fez adoecer.
***
Assim, de uma hora para a outra, tudo o que estava bem some, sem
mais nem menos. A respiração começa a acelerar. Não demora até
16 Fique
que lhe falte o ar. O corpo começa a tremer. As mãos a formigarem.
Aos poucos ele desaparece.
Tudo começa a girar. Uma forte dor de cabeça lhe causa náuseas.
Mesmo solto, ele se sente amarrado. Confuso, dentro de uma caixa
suficientemente pequena, minúscula, seu sentimento é de estar em
queda livre e, ao mesmo tempo, enterrado a dez palmos.
Fique 17
Capítulo 2: A doutrina mata
C
onfiar, segundo algum dicionário, significa “acreditar na
verdade das intenções ou das palavras de alguém”. Guilherme
confiava em Deus. Para ele, o recado que Deus transmitia era o fim de sua
homossexualidade. O garoto acreditava, com todas as suas forças e fé, que
deixaria de ser gay.
Quando você confia, você espera, você acredita e luta. O garoto guerreou
e perdeu anos de sua vida. Guilherme viveu na sombra de um ideal pregado
pela igreja, aquele padrão tão santo e imaculado que nem o mais correto
conseguiria alcançar. Ele cresceu com a certeza de que iria para o inferno se
continuasse a trilhar aquele caminho.
Fique 19
A certeza de que beijar outro rapaz era um pecado imperdoável acabou
por transformá-lo em um menino depressivo, inexpressivo e que lutava
contra as próprias emoções. A batalha diária contra aquilo tornou-o amargo
e insensível. No final das contas, aquele Deus que o pai de Guilherme pregava
acorrentou-o, em vez de libertá-lo.
20 Fique
É sempre um ponto delicado falar sobre suicídio. Contudo, você deve
entender que o suicídio não é frescura ou uma fase. Suicídio é uma doença, é
um “câncer”. Ele destrói não só quem se foi, mas também aqueles que ficaram.
Alguns de nós não tiveram a coragem de chegar até o fim, mas vontade
não faltou. Se você desiste, além de tudo, ainda é preciso lidar com a sensação
de impotência que o invade. Sejam bem-vindos ao mundo do Guilherme
daquele tempo.
“Eu sou fraco”, ele pensava. Mas era forte. Na verdade, todos nós somos.
O fim não é a melhor saída. Nós podemos e conseguimos continuar. Ser o que
nós somos não é um pecado, pecado é matar a essência da vida por causa das
superficiais opiniões alheias.
***
Fique 21
apressadas sem que o notassem. Todas aquelas pessoas... talvez
alguma delas houvesse se perguntado o que ele fazia ali. Outras nem
o notaram mesmo. A vida é corrida, é normal não notar a presença
de alguém que precisa de ajuda.
Era perfeita porque era perto de casa e era alta. Ele apenas esperava
que o movimento diminuísse. Afinal, não queria pular em cima de
nenhum carro e assustar um motorista. Ele só queria ir embora.
A essa altura ela já devia ter lido a carta que ele deixou. Ele pensa
que não tem mais volta, que voltar seria a maior covardia de sua
vida. Pelo menos no dia anterior conseguiu despedir-se. Abraçou-a
fortemente, chorou em seus ombros. Ela estranhou, é claro, mas não
disse nada além do eu te amo.
O eu te amo não foi o suficiente para lhe fazer ficar em casa e esperar
a van escolar. Ele até que tentou, mas as suas palavras não foram
o suficiente. Lembrou-se do seu rosto. De todos os anos que ela
dedicou para educá-lo e protegê-lo. Ela fez o melhor que pôde. Ela
é a melhor mãe de todas.
Ele achava que não tinha mais volta, seria um covarde se não
pulasse. Sentou-se na beirada. Inclinou-se. Um carro buzinou, era a
sua mãe. Ela o olhou por um instante. Suas pernas fraquejaram, ele
desistiu no último segundo, e escolheu a vida.
***
22 Fique
Para Guilherme,
Você não está sozinho. Você não precisa ser forte o tempo todo. Eu
quero e vou estar aqui. Eu vou ajudá-lo a superar o que for. Apenas
não desista dessa efêmera vida. As coisas já passam tão rápido, então
por que encurtá-las ainda mais?
Você não é fraco. Você tem que lutar. A vida é assim mesmo... existem
horas que a gente só quer sumir e aparecer em outro lugar. Deixar
tudo de lado. Desistir. Mas você é forte! E agora eu estarei sempre ao
seu lado. Não desista, por mim!
Por mais que, um dia, o destino resolva nos separar, por mais que
o meu abraço não consiga encontrá-lo... eu estarei com você, eu
estarei no céu olhando para você. Torcendo por você.
Por muito tempo, desejei tê-lo encontrado antes. Desejei ter estado
com você naquela época em que quase partiu. Mas sabemos que
não estávamos prontos um para o outro. Meu amor, Deus sabe,
Fique 23
exatamente, o que faz. Não deixe a sua fé ser apagada. Não deixe que
o deus que eles pregam acabe com a sua fé.
Com amor,
***
24 Fique
Na realidade, o menino empobrecia-se cada vez mais, tanto
financeiramente como espiritualmente. Hipócrita e triste, sem nenhum
suporte emocional. Aos 16 anos, a vida de Guilherme estava totalmente de
cabeça para baixo. “Deus vai intervir”, dizia para si mesmo. E, assim, lutava de
todas as maneiras para esquecer a homossexualidade. Em alguns momentos
chegou até mesmo a se pronunciar contra os homossexuais.
Enquanto isso, o pai passava por uma crise financeira grave e era quase
despejado. O pastor da igreja foi quem ajudou-os, emprestando uma quantia
considerável de dinheiro. Ele tinha uma filha, chamada Margarida. A garota
possuía 16 anos, a mesma idade de Guilherme, e também era solteira. Era tão
magra que apresentava raquitismo. Depois de certa pressão e fanatismo do
pai, Guilherme decidiu gostar de Margarida. Era a solução mais evidente para
combater a homossexualidade.
De qualquer forma, o rapaz entrou num beco sem saída. Por mais que
quisesse transar com a menina para seguir o caminho correto, ele não podia, já
que a igreja não permitia o sexo antes do casamento. Irônico é saber que, para
se livrar de um pecado, teria que cometer outro.
Ele não sentia atração por ela. Ele sentia tesão quando olhava os meninos
musculosos da escola, desejando-os. É claro que, depois de pecar, ele pedia
Fique 25
perdão a Deus e subia no púlpito para pregar o evangelho. Simples assim, não
é mesmo? Guilherme tentava mascarar a sua essência, e nós sabemos que
isso não é uma boa maneira de se levar a vida. O namoro com Margarida foi
um extremo fracasso, não durando quatro meses completos.
Confesso que, se o menino não tivesse passado por tudo o que estou
relatando, as coisas poderiam ter outro final. Talvez ele não me salvasse tantas
vezes, como salvou. Afinal, se conto essa história, é só porque Guilherme
existe, porque, se ele não tivesse me encontrado, eu não estaria aqui.
***
26 Fique
subir naquele altar para derrubar o pastor e fazê-lo sangrar até a
morte. Virou-se calmamente e, em alto e bom som, sem microfone,
sem pudor, sem vergonha e sem mais raiva, disse, pausadamente, a
verdade:
— Espero que, na próxima vez em que você quiser liberar esse ódio,
não seja comigo de quatro na cama.
***
Fique 27
como Deus o veria. Mas é claro que tudo aquilo era difícil para o Guilherme.
Criado na igreja, cresceu doutrinado e com uma visão muito limitada de
mundo. Isso causava-lhe medo de ter que deixar tudo para trás e viver por
conta própria a partir dali.
A pequena irmã foi sua grande alegria, mas não foi o suficiente para
ajudá-lo por muito tempo. O nascimento de Elis foi só o primeiro passo para
sua mudança. Era hora de ser quem ele era e sentir o que deveria sentir. A
partir de agora, apresento a vocês o Guilherme que conheci.
28 Fique
Joana ajudou a trocar fraldas e a dar comida quando Guilherme ainda
era pequeno. Ajudou-o com a mudança de cidade e sempre se manteve
presente. Casada com Pedro, seu único namorado desde a adolescência. Ela
foi a primeira a ter uma ideia do que estava acontecendo. Dois meses depois
que Guilherme mudou-se de cidade, ela o visitou. O menino decidiu se abrir
nessa ocasião.
Joana fingiu retirar um pelo da roupa e desviou o olhar. Ela disse que
entendia, mesmo sem compreender nada. Guilherme aguardou que a tia
retomasse a compostura.
Fique 29
— Guilherme, eu estou aqui e, independentemente, de quem você goste
ou deixe de gostar, eu sempre vou estar aqui para te apoiar — afirmou Joana,
retomando o olhar diretamente para Guilherme.
O lugar tinha cinco poltronas, sendo duas delas iguais de cor vermelha,
uma poltrona dupla escura, uma chaise também escura e uma última poltrona
marrom, ao lado de um pequeno criado mudo, na qual Noemi já se encontrava
30 Fique
sentada. Guilherme escolheu uma das vermelhas, agradecendo a simpatia da
mulher.
— Bem ruim, eu acho. Não conversamos muito, ele não me liga para
saber se estou bem. Ele não me ligou nem no meu aniversário este ano. Ele
não se importa com as coisas da faculdade, por sinal. Acha que estudar é
perda de tempo. Mas ele me ama, eu acho — explicou afobado, disparando
tudo o que lembrava.
— Com toda a certeza ele o ama. — Noemi sorriu, mantendo uma voz
suave e doce. — Você já tentou fazer algo para se aproximar dele?
Fique 31
O menino estranhou ouvir o seu nome tantas vezes em perguntas tão
“egoístas”, mas aceitou o desafio. Ela levantou-se, abraçou-o rapidamente e
despediu-se. Noemi era a pessoa certa para guiá-lo em suas descobertas, bem
como para fortalecê-lo nas questões familiares e sexuais.
***
Eu achava a vida tão fácil, mas descobri que não é bem assim.
O outro, o que quase morreu, passava por algo parecido. Mas era a
mãe que o espancava. O pai foi morto umas semanas antes de ele
nascer. A mãe era a sua única família. Então, ele tentou desistir e
acabou por tomar uns comprimidos a mais.
32 Fique
Às vezes você tem a sorte de continuar respirando. Às vezes, não.
Será que aquele belo garoto que morreu não estaria, agora, casado?
Será que a mãe não estaria a salvo? E o pai? E as pobres crianças que
poderiam ter sido adotadas? Tudo acabou, porque o ódio permeia
todos os relacionamentos humanos.
Foi quando percebi que a vida é dura. Ela é difícil porque as pessoas
são más. As pessoas matam. Elas roubam a esperança e destroem
a liberdade do outro. A vida é dura porque os homens ignorantes e
preconceituosos ainda existem. Mas como eles deixariam de existir?
A cultura é essa. A tradição é essa, desde sempre, desde o livro de
Gênesis. Ser ignorante e preconceituoso é aceitável. Eles podem
matar e matam. Eles podem agredir e agridem. Como eles deixariam
de existir, se o conceito de sociedade cresceu a partir deles?
***
Fique 33
discreta. Guilherme sorriu e gaguejou a próxima frase como se estivesse
sendo vítima de vários golpes consecutivos no estômago.
— Eu acho que... talvez... bem provável... não sei... talvez, eu... talvez...
eu... goste de... meninos! Falei!
Tudo! Tudo o levava a pensar daquela forma. O jeito que ele olhava para
os meninos, a forma em que ele desviava o olhar quando os amigos olhavam
pornô heterossexual na escola, a atração sexual que pulsava em seu corpo
quando avistava um musculoso com um shortinhos e regata de academia e,
até, quando ficava excitado assistindo os filmes do Ashton Kutcher.
Porém, isso não significava que Guilherme queria ser gay! Segundo o
seu pensamento, estava fadado ao inferno, e Deus o condenaria e pagaria com
a sua alma esse pecado diabólico.
— Você vai para o inferno por gostar de outros homens? — Ela levantou
as sobrancelhas, arregalando os olhos, estupefata.
— Sim, é o que meu pai fala... quer dizer, é o que a igreja prega — ele
respondeu desconcertado.
— Sim. — Respondeu.
— Entendo. Mas você não acha que existem algumas coisas que o homem
34 Fique
não pode controlar? Como é o seu caso... não se tem o poder de escolher
gostar de homem ou mulher, nós nascemos com isso.
— Eu sou um fracasso para eles. Como vai ser quando eles descobrirem?
— Eles?
— Então o problema não é o que Deus acha de você, mas o que seus
pais acham? — indagou-o, pousando o copo no criado-mudo delicadamente.
Se o copo fosse um sapato de cristal, e estivéssemos vivendo um conto de
fadas, talvez se encaixasse perfeitamente em seus pés, tamanha a sutiliza do
momento.
Noemi sorriu, a sessão mais uma vez chegava ao fim. Ela estava satisfeita
com o progresso.
Fique 35
Capítulo 3: Essa saliva não é minha
D
epois de um ano inteiro de terapia, e conforme as instruções de
Noemi, Guilherme tentou se abrir um pouco mais ao “mundo
gay”. Porém, ele acabou por entender errado o que a psicóloga queria dizer
e resolveu instalar um aplicativo de encontros no celular. Um daqueles que
os usuários colocam nomes engraçados nos perfis, como Sonho de toda
sogra, Sou Corinthians de coração ou Quincas Borba (sim, já vi um perfil com
esse nome). Nele, marcou de encontrar-se com outro rapaz, após trocarem
algumas mensagens de texto.
— Oi — o outro respondeu.
— Tudo bem?
Fique 37
ficou interessado, já imaginando milhões de coisas, como um beijo, um filme,
os dois agarrados, um final de semana em Cancun, casamento na praia em
Filipinas. Nada muito impossível de se realizar.
— Faz tempo que você mora aqui? — perguntou Bruno, enquanto eles
subiam as escadas do prédio onde Guilherme morava.
38 Fique
experimentar o gosto da boca de Bruno. Ele queria provar o fruto proibido.
Então, sussurrou, perto de seu ouvido:
Eca, que vulgar! Ainda bem que ele nunca agiu dessa forma comigo, eu
ficaria assustado e não excitado. Mas com Bruno funcionou. Ele, sem hesitar,
segurou o pescoço de Guilherme, fitou-o por um instante, provocando-o, e
aproximou-se dele até que os seus lábios se encostassem.
Por ser o seu primeiro beijo gay, deve ter sentido o seu corpo bombear
mais sangue e a adrenalina invadir cada célula. Ele se excitou, gostou da
sensação.
A saliva era quente, a língua e os lábios eram macios. Bruno já havia feito
aquilo inúmeras vezes, estava acostumado e tinha uma boa desenvoltura. Ele
sabia como provocar o parceiro. Os dois ficaram ofegantes e a respiração
ficou mais pesada. Então, a mão de Bruno tocou Guilherme, que suspirou
baixinho, rendendo-se. Ele nunca havia ficado tão “no clima” quando beijava
uma menina.
***
Fique 39
Não foi fácil ter a certeza de que eu era gay. Aquilo significava
vários desafios pela frente. Perder uma entrevista de emprego, uma
oportunidade de estudo. Ser gay significava mais tribulações do que
coisas boas.
Guilherme tentou cuspir tudo fora. Lutou para não ser o que a
natureza lhe fadou a ser. Mas descobriu que é impossível ir contra
a criação. Também descobriu que tentar evitar fazia-lhe sofrer. De
qualquer jeito, nós sofremos.
Essa era a única escolha que nos deram: sofrer ao evitar, ou sofrer
por aceitar. No fim, escolhemos ser felizes e livres. Decidimos que
o preconceito era fraco em comparação ao amor. Decidimos que o
linchamento em uma esquina qualquer não se igualava a um “eu o
amo” dito com carinho.
Ser feliz tem que ser uma das opções. Tentaram nos fazer escolher
de qual ponte pular, nós escolhemos voar. Voar para a liberdade
que o amor oferece, para os limites dos céus e dos sonhos. Voar para
sermos felizes, para amar e respeitar um ao outro.
40 Fique
***
Toda aquela reflexão aparentou ter demorado mais do que qualquer aula
de física já ministrada na história do universo. Mas, na realidade, passaram-
se segundos. Guilherme lutava internamente: deveria aproveitar o momento
ou rejeitar-se? No fim, ele cedeu. Deixou que o desejo falasse mais alto e
entregou-se. Seu corpo arrepiava-se, sentia prazer e a vontade aumentava.
Ele nunca havia tocado, nem ao menos, beijado outro homem. Aquela
sensação liberava mais endorfina do que um gol aos quarenta e cinco do
segundo tempo no final da copa do mundo, ou até mais do que aquela lasanha
saborosa que a sua mãe fazia aos domingos. O beijo ficava mais intenso,
Bruno arrancou-lhe a camiseta e a jogou no chão, Guilherme imitou-o. Em
pouco tempo, os dois estavam apenas de cueca.
***
Fique 41
— Eu sou gay — disse Guilherme, logo ao sentar-se em uma das poltronas
vermelhas na sessão seguinte de terapia.
42 Fique
***
Nós merecemos respeito, amor e paz. Não é tão difícil assim deixar-
nos passar.
Mas não joguem pedras, não xinguem, não nos machuquem ainda
mais. Nós já estamos suficientemente feridos.
***
Fique 43
educada, criou algumas confusões no decorrer da faculdade por causa de sua
personalidade forte.
Letícia era meiga. Muito meiga. Pelo menos, até antes de conhecê-la mais
a fundo. Namorava, há uns anos, um rapaz mais velho. Os dois se davam bem.
Inteligente e muito focada. A sua relação com Guilherme, no começo, foi um
pouco complicada, os dois brigavam por causa dos trabalhos da faculdade.
Mas adaptaram-se e tornaram-se bons amigos.
Por fim, Kléber. Bissexual, jogava nos dois times. Não era assumido e
preferia continuar assim. Guilherme descobriu que o menino era bi depois de
uma conversa com um outro rapaz no aplicativo de encontro. Nada ético, o
rapaz entregou alguns nomes e o de Kléber estava no meio.
— Foda-se.
— Você é gay??!! Diz que sim! Eu ia adorar ter um amigo gay — Fátima
gritou no meio do bar, um pouco alterada por causa dos dois copos de cerveja,
o suficiente para deixá-la alegre.
— Acha menina, deixa ele contar, não brinca com essas coisas. — Letícia
riu, sóbria, já que era a motorista da rodada.
44 Fique
Guilherme passou a divertir-se com a situação e resolveu criar um
suspense. Ele brincou que era uma coisa séria, e achava que elas iriam fugir
depois disso.
— Pare, Fátima, deixa ele falar, vai que ele está com câncer — Letícia
repreendeu.
— Não! Você está quase certa, eu sou gay, mas não estou ficando com
ninguém!
***
Certa vez, li uns versos. Algo sobre a indiferença. Mas era uma
indiferença boa.
Achei meio esquisito. Como assim tanto faz? Pensei uns dias sobre os
versos e sobre a música. Perdi meu tempo.
Fique 45
No fim, entendi o que eles queriam dizer. Que diferença faz? Eu ser
negro ou branco? Ter olhos verdes ou castanhos? Cabelo enrolado ou
liso? Ter o dente do “juízo” ou não? Que diferença faz para o outro?
***
46 Fique
Foram aquelas conversas de sempre: e o tempo? Choveu? Essa semana
vai esfriar. Faculdade? Normal. Provas? Ok. Graças a Deus. Tereza apareceu.
— Ele está sem combustível e não tem dinheiro, o que a gente pode fazer?
— Tereza defendeu-o depois de Joana e Guilherme trocarem comentários
inapropriados sobre a situação.
— Ai, mãe, são cinquenta quilômetros. Ele mora na cidade aqui do lado.
Qualquer coisa, a gente colocava combustível para ele voltar — Joana rebateu.
Fique 47
— Aquele assunto está sendo confirmado.
48 Fique
Guilherme gaguejou e empalideceu. Ainda não era o momento de contar
a ninguém sobre aquilo. A sua voz entalou-se na garganta e fez com que ele
respirasse com dificuldade. Pedro percebeu.
— Eu sei, o seu pai vai surtar. — Ele soltou uma risada estranha, quase
engasgando-se.
— Eu não vou, e isso é uma promessa. — Ele fez o sinal da cruz com os
dois dedos indicadores e beijou-os. Apesar de Guilherme não ter entendido
muito bem o motivo do gesto, resolveu calar-se, levantando-se da cadeira e
sentando-se no sofá da sala, tentando recuperar-se da surpresa.
***
***
Fique 49
— Ele não vai falar nada para ninguém, já conversei com ele — Joana
apaziguou, tentando tranquilizá-lo.
— Ele disse que não ia falar para ninguém e já correu para te contar.
Como você me garante que ele não vai contar para todo mundo? — Guilherme
estava desesperado.
— Eu sei, eu não ia deixar, mas ele insistiu. Será que ele não vai falar nada
para mais ninguém mesmo?
50 Fique
Capítulo 4: Prazer,
o meu nome é Gustavo
J
á de volta às aulas, Guilherme estava decidido a experimentar
mais daquele mundo inexplorado e novo. Conheceu Alexandre
naquele mesmo aplicativo e começaram a conversar. Agora, Guilherme já
tinha o seu objetivo traçado e não haveria mais surpresas.
Fique 51
um “peteleco” na cabeça de Guilherme, qualquer coisa que não deixasse a
próxima cena acontecer.
***
Mas ele foi solto menos de duas horas após sua prisão. Era filho de
um político importante. Não podia ficar preso ali nem em lugar
nenhum.
52 Fique
sala de aula novamente, estudando as leis e debochando da tal
justiça.
***
Fique 53
Não caia nessa, por favor! Ele só quer sexo! Você merece alguém
melhor... você merece... bem... merece a mim!
— Oi. Antes de falar sobre a vida, não acha melhor começarmos pelo
mais simples? Qual é o seu nome?
54 Fique
— Eu sei, é que eu não sabia o que fazer, então resolvi procurar alguém
para conversar.
Foi aí que, sem saber bem por que, eu passei o meu número de celular
para ele. Eu queria conhecê-lo melhor, escutar outras histórias e confirmar
o que eu suspeitava: ele era um menino perdidamente meigo procurando
viver o clichê do amor eterno. Guilherme explicava os seus objetivos de
relacionamento, quase igualando-os aos de um livro de romance.
Fique 55
Fernanda quem o alertou sobre o “tipo” de Alexandre. Ela só precisou de uma
oportunidade para manifestar-se.
56 Fique
encaixe no que você procura. — Imagino o seu discurso metódico.
***
***
Fique 57
Guilherme queria amar. Entregar-se a alguém de corpo e alma e deixar-
se levar pelo coração. Alexandre não podia ser compatível com o menino, mas
quem seria?
Nesse mesmo dia, eu me assustei, quando meu celular vibrou perto das
dez da noite. Era uma mensagem de um número desconhecido, um simples
“oi”. Eu respondi, perguntando quem era, já com certa expectativa.
— Mas é claro — respondi, agradecendo aos céus por ele ter me chamado.
Pedi para que ele continuasse, então ele confessou que não se chamava
Jefferson mas, sim, Guilherme. Tentei descontrair e brinquei:
— Não, bobo, você tem que parar de acreditar tão fácil nas coisas. — Eu
ri.
58 Fique
Guilherme enviou:
— É obvio que não, isso só se você estivesse aqui, para ver pessoalmente.
— O teu sorriso, porque, pelas fotos que eu vi... ele é lindo — eu disse,
desconcertando-o.
***
Fique 59
A rebeldia é uma coisa engraçada. Há pessoas que chegam a ser fofas
de tão rebeldes. Mas há pessoas que merecem dar as mãos para o
Capeta de tanta besteira que fazem.
Nada de mais até que a vida do outro acabe. Mas isso ainda não é
nada de mais, é só mais uma vida que se perde. É só mais um que
morre. A vida do restante se segue.
***
60 Fique
— Será? — Guilherme quase acreditou.
— Estou curioso... Eu sempre quis fazer uma, mas ainda não tive coragem
— Kléber comentou.
Ele tinha medo que os pais descobrissem, por isso estava tentando
esconder por mais um tempo. Guilherme entendia. Ele também se sentia
dessa forma. Não era o momento certo para contar aos pais, mas talvez fosse
o tempo exato para falar a um dos seus melhores amigos:
Fique 61
garotos levantaram-se imediatamente, levemente assustados com o grito, e
seguiram as instruções.
— Sim, estou.
— Bi ou gay?
— Sabe — confessou.
62 Fique
Capítulo 5: A morte é inevitável
E
ram três da tarde quando o telefone tocou. Rosa nunca
ligava nesse horário, então Guilherme resolveu sair da aula
para atender, com uma voz preocupada e mais aguda do que a normal, já
perguntando se algo havia acontecido. E aconteceu.
Ao escutar a notícia, ele ficou pálido, sua pressão caiu e uma dor
insuportável tomou conta de sua cabeça e estômago. Apesar de não ser o seu
verdadeiro pai, Jorge sempre o acolheu como filho, muitas vezes contribuindo
para a sua formação moral e humana.
Voltou correndo para a sala de aula, juntou o seu material e saiu, sem
dar satisfações, pelo corredor. Nenhum dos amigos tiveram tempo de ir atrás
do garoto. Ele correu escada abaixo, ligando para um táxi e verificando os
horários de voos. Foi tudo de repente, ele nunca havia perdido ninguém tão
próximo, ele estava em estado de choque.
Andar de avião nunca tinha sido tão sem graça. Guilherme ficou olhando
pela janela, escutando algumas músicas preferidas de Jorge, imaginando
como as coisas seriam a partir dali. Era dolorido pensar que a mãe tinha
perdido a pessoa que mais amava. Guilherme tinha a certeza de que o seu
jeito de enxergar as coisas mudariam com aquele acontecimento.
Fique 63
Tudo pode acabar, sem aviso. No fim, é outro livro fechado. Uma página
virada. Um último ponto final.
***
64 Fique
cada momento feliz, reviver as coisas boas e perdoar Deus por tal
brincadeira de mau gosto.
***
— Eu também não. Ele estava tão feliz hoje de manhã, contando sobre a
nova aquisição que tinha feito na empresa. Agora não está mais aqui. — Rosa
deixava-se relaxar nos braços do filho.
Fique 65
— Você não tem obrigação de nada, Gu. Você é um excelente amigo.
***
66 Fique
Ele não encontrou lugar melhor para despedir-se que não fosse ali.
São tantas lembranças boas. Jorge, que tinha feito parte de sua vida de uma
forma especial, de repente, partiu. Ele se relembra de que corriam naquele
parque quase todos os dias. Jorge dizia que correr fazia bem para a saúde e
incentivou-o a praticar o esporte.
Tragicamente, foi o seu coração que não resistiu. Rosa lhe contou sobre
as preocupações na empresa. Guilherme compreendeu, é claro, afinal Jorge
estava com os nervos à flor da pele em sua última semana. Conseguiram uma
excelente aquisição e foi ele quem comandou a equipe para fechar o negócio.
Do que adiantou todo esse esforço? Valeu a pena permitir que Deus lhe
tirasse a vida por uns milhares de reais? Jorge tinha tanto pela frente... tantas
coisas boas... Eu sei que o trabalho é indispensável, todos nós temos que lutar
por nossos objetivos, mas esse objetivo custou-lhe mais do que algumas
noites mal dormidas ou dores de cabeça no final do dia.
***
— Meus sentimentos, Gui. Não é fácil lidar com a morte, só o tempo pode
amenizar a nossa dor — eu disse.
Fique 67
— Eu estou cansado das pessoas me desejarem seus sentimentos, eu
estou com raiva, de Deus, do mundo — ele explodiu.
— Eu entendo.
— Não, você não entende! As coisas não precisavam ser tão difíceis
assim, a vida podia ser mais simples, mais fácil.
— Sabe, eu acreditei, por muito tempo, que Deus tinha um plano para
cada um de nós. Que nós somos destinados a cumprir os Seus sonhos, mas
não é isso o que acontece. Deus permite que tantas coisas ruins aconteçam
em nossa vida... Eu não escolhi viver dessa forma, eu não tive escolha, você
entende isso?!
— Eu nunca vou ser normal, eu vou sofrer com o preconceito das outras
pessoas, talvez apanhar na rua ou algo do tipo. Eu precisava dele, era para o
Jorge me ajudar com tudo isso, porque o meu pai está a cada dia mais distante
e, agora, Jorge também se foi... e eu não posso fazer absolutamente nada!
Deus me tirou o livre arbítrio, me fez homossexual, me afastou de meu pai e,
ainda, levou uma das pessoas mais importantes da minha vida. Isso não é o
meu destino. É, no mínimo, um massacre. Será que Ele está se divertindo lá de
cima? Será que é engraçado me ver chorar e se desesperar, noite após noite,
implorando para ter uma vida normal?
— Não! Não ama! Tudo o que eu sempre pedi a Deus foi uma vida comum,
com um emprego razoável e a minha família por perto. Eu queria ter filhos!
68 Fique
Eu queria ser pai, mostrar a eles que eu posso ser um bom pai. E tudo isso foi
por água abaixo. Como se não bastasse, Ele ainda leva uma das peças mais
importantes da minha vida. Como isso pode ser amor?!
— Esse não é o seu destino, nós é que construímos o nosso futuro. A única
certeza é o amor! O amor é o que pode vencer todas as barreiras que você
acabou de me descrever. É com ele que o preconceito perde o sentido, que a
saudade acarreta motivação e que o ódio é derrotado. Não existe nenhuma
forma de ser feliz de que o amor não faça parte. Desde uma relação entre
pai e filho até um casamento, sem o amor, nada faz sentido. Não existe uma
fórmula mágica para se viver, não existe um manual de instruções explicando
o passo a passo para se alcançar a felicidade. Porém, com o amor, a alegria
torna-se possível.
Fique 69
culpe-O por tentar alegrar o seu dia fazendo-o sentir-se amado. Ele sempre
estará do seu lado!
***
É claro que eu não pensava em me casar, ter dois filhos, cinco cachorros
e oito gatos, morar em um condomínio fechado e fazer uma viagem
internacional por ano, mas eu queria mais do que amizade.
Então passei a me expor a ele, dizia que estava com saudades de ouvi-
lo, mesmo conversando todos os dias. Arrastava a minha voz nas falas mais
simples, para seduzi-lo. Perguntava sobre o seu dia a dia, querendo saber de
todos os detalhes. Estive presente, mesmo estando distante. Ele notou:
— Cuidado, essa confiança toda pode se virar contra você — ele disse
70 Fique
cauteloso e sondando a minha reação.
— Ah! Assim não vale, você sempre encontra um jeito de se sair por cima.
— Ok.
— Ok?!
— Sim, eu prometo que um dia vou a Mato Grosso te ver — ele disse,
fazendo-me suspirar do outro lado da linha.
Meu único desejo naquele momento era viver o suficiente para que
aquilo acontecesse.
— Você é quase que um namorado para mim, sabia? — ele falou sem
pensar. — Quer dizer, amigo, um excelente amigo, perfeito — tentou corrigir.
— Poderia? — gaguejou.
Fique 71
— Nós estamos tão longe... — ele disse, triste.
— Um quase perfeito.
— Eu acho que nós estamos viajando demais com essa história, é hora de
voltar para a terra. — Ele cortou a minha empolgação.
— Sim, você tem razão — menti, pois o que eu queria dizer era: vamos
complicar as coisas!
— Então está bem. Não quero que nada estrague a nossa amizade, ok?
***
Por favor, não complique as coisas. Por favor, não me ame. Não
estrague a nossa amizade. Não se permita gostar do que eu falo
ou do que eu penso. Nosso relacionamento é tão perfeito sem a
complicação do amor.
72 Fique
Eu imploro que, se pensar em entregar-se ao amor, antes me deixe.
Deixe-me pensar que você se foi por algo mais simples, por uma
opinião pela qual discordamos ou por um ideal diferente. Faça-me
pensar que você trocou de número e perdeu o meu. Ou, quem sabe,
que foi morto em um tiroteio durante um assalto a banco.
Não me ame, é só isso que eu peço. As coisas são simples quando não
há amor. Eu o olho feliz, sem culpa. Não deixe que eu o olhe com
peso na consciência por ter mentido sobre onde eu estava no último
sábado, quando eu disse que estava em casa enquanto bebia mais
uma dose de tequila no bar da esquina.
Mais uma vez, eu lhe imploro. Deixe-me assim, sem amor. Afinal,
e se eu também o amar? Se eu o amar, você não vai poder mais sair
na sexta e voltar no domingo. Vai ter que deixar de lado aqueles dez
livros que você lia todos os meses. Talvez consiga ler um ou dois.
Talvez, com isso, a sua imaginação e a sua eloquência diminuam.
Não quero ser o culpado.
Amar vai fazer com que o nosso tempo se encurte. Nós não podemos
nos dar esse luxo. Eu vou querer você e você vai me querer. A família
Fique 73
vai reclamar. Os amigos vão reclamar. Possivelmente o seu melhor
amigo vai criar um plano para nos separar, ou a minha melhor
amiga me matará por ciúmes.
Será que, ao pensar tudo isso, eu deva confessar que eu o amo? Acho
que não. Porque o amor é complicado. Vamos manter as coisas simples
e continuar nossas discussões intermináveis sobre os livros de Mark
Manson. Ou deveríamos “tocar o foda-se” e deixar que o amor nos
leve para algum lugar desconhecido? O que você acha? Devo amá-lo
ou devo fingir que as coisas são simples?
74 Fique
Capítulo 6: Uma tequila no bar
O
período de férias da faculdade chegou, o segundo ano estava
completo. Guilherme voltou para a casa dos pais, e eu pude
relaxar e colocar em dia as séries que acompanhava na televisão. A faculdade
em que eu estudava se encontrava na mesma cidade onde nasci, por isso ainda
morava com os meus pais e tinha o privilégio de estudar em uma universidade
federal.
Eu sei que o meu curso não era tão concorrido como o de Guilherme,
porém eu me orgulhava de estudar psicologia. Sempre foi a minha paixão.
Isso tudo era motivo suficiente para Guilherme me provocar logo no primeiro
dia de férias:
— Você mora com os seus pais, Gu.... Você nunca precisa cozinhar.
— Ah! Isso não vale. Apesar de não precisar, eu os ajudo, ok?! — Fingi ter
ficado ofendido.
— Mesmo assim, você pode estudar quando quer. Comigo não é muito
bem dessa forma, tem dia em que deixo de comer para conseguir finalizar
um trabalho ou estudar para uma prova — ele insistiu, sempre dramático,
martirizando-se como se fosse vítima de alguma guerra.
— Eu sei disso, meu anjo, estou brincando com você. Nem imagino o
quão difícil deve ser estar longe de sua família.
Fique 75
— Nós já conversamos sobre isso...
— Nossa, Gui, apenas te elogiei. Pode ficar tranquilo, não quero nada a
mais com você — expliquei, um pouco chateado com a fixação de Guilherme.
Por outro lado, a culpa não é inteiramente de Deus, por termos nascidos
longe. Às vezes eu tinha a impressão de que Guilherme estava indiferente
em relação a nós dois. Quanto mais eu tentava aproximar-me, mais ele se
afastava. Vai entender essa lógica!
***
76 Fique
sobre a onda de assassinatos na cidade em que o neto estudava. Rodrigo
aproveitou a oportunidade:
— Ué, mãe, o moleque era gay, com toda a certeza deve ter feito alguma
coisa para merecer. Mais cedo ou mais tarde, Deus vai castigar esses veados.
— Rodrigo era enfático e mantinha uma postura ereta, transparecendo o
orgulho em sua fala.
— Vocês duas também vão defender essa espécie de pessoa? Todos eles
vão para o inferno! — ele rebateu.
Fique 77
Deus tem esse papel. Não é isso que você prega lá na igreja? Que a salvação é
para todos?
***
Ele diz isso porque não sabe a verdade. Nenhum pai iria preferir ver
o filho morto a ser gay.
78 Fique
Ele se sente ameaçado. É medroso, covarde, acha que espancar é a
solução para todos os problemas.
Raiva gera mais raiva. Eles revidam. E onde está o amor? Com um
grito desesperado, alguém lhes explique que o amor tudo pode
resolver.
Porque nós queremos parar com esse ciclo de violência. São vidas!
Todos merecem viver.
Fique 79
***
— É perfeita — eu concordei.
— Entendo.
— Não, mas não custa nada sonhar. E você? Aposto que está cheio de
meninas aos seus pés — ele perguntou, cutucando o meu braço com o cotovelo.
— Então, meninos?
80 Fique
— Talvez. — Ri.
— Entendi, a sua praia é outra — ele falou, tentando soar como um jovem.
***
— Você gosta dele, não é? — ela perguntou, notando que, após a terceira
dose de tequila, eu estava um pouco tristonho, pensando na vida.
— Talvez — eu balbuciei.
— Acho que está na hora de você conhecer mais alguém. Já que você não
toma uma iniciativa, eu farei isso por você, vejamos...
Fique 81
— Tome — disse sorridente, entregando-me um pedaço de guardanapo
com um telefone. — Ele se chama Mateus e ficou muito interessado em você.
— Eu falei que você estava de olho nele a noite toda e que queria conhecê-
lo pessoalmente. Inclusive, disse que você o achou muito bonito e elogiou a
roupa que estava vestindo.
— Tudo bem, então, mas eu não respondo mais pelos meus atos —
brinquei, bebendo a tequila do outro copo.
***
82 Fique
— São quase dez. — Senti uma mão acariciar o meu cabelo.
— Eu apostei com ela que você não ia lembrar quem eu era e ganhei. —
Ele explicou, triunfante.
— Não, rapaz. — Ele riu alto. — Eu apostei que você perguntaria isso...
Mas não, nós não transamos. Você e a Samira estavam suficientemente
bêbados para não conseguirem ligar para um táxi, então eu chamei um e os
deixei dormir aqui.
— Ufa. — Relaxei.
Fique 83
— Você perdeu, Samira, me deve cem reais. — Mateus falou gabando-se
enquanto saia do quarto e deixava-nos a sós.
— Eu não acredito que você perguntou para ele se vocês tinham transado!
— Ela não aliviou, batendo de leve em meu ombro.
— Sério?
— Sério. Acho que o meu amigo vai deixar de ser virgem — ela provocou,
cutucando a minha barriga.
— Eu falei para ele que você era virgem, assim ele não teria a coragem de
ficar com você, já que você estava totalmente bêbado.
***
84 Fique
comandos, ele adquire vida própria. Todo o resto fica sem sentido, e
o seu coração bate mais rápido.
O problema é que o meu amor está longe, ele não quer se entregar,
não quer deixar-se sentir. A distância é a desculpa de que ele
precisava para fingir não me notar.
***
Ele, ainda cordial, cumprimentou-me. Fingi não saber quem era. Mateus
se identificou, percebendo que havia sido de proposito, e ainda brincou sobre
o tanto que tínhamos bebido. Depois do papo-furado, Mateus convidou-me
para sair:
Fique 85
***
86 Fique
— Mas eu não posso me apaixonar dessa forma... Eu quero alguém que
esteja do meu lado, para crescermos juntos.
O que Guilherme deveria entender é que estar do meu lado não significava
me abraçar todos os dias. O amor transpõe limites físicos, ele não tem olhos
para ver a distância. Talvez... seja medo! Medo de se apaixonar?! Noemi
também pensou isso e o indagou sobre do que ele tinha medo.
— Eu sou pouco para ele. Ele merece alguém melhor e alguém que esteja
perto. — Guilherme fechou os olhos, pensativo.
— Então você quer dizer que merece alguém pior? — Noemi insistiu
implacável.
— Mas todos têm defeitos. Você não acha que seus pontos positivos são
maiores que seus pontos negativos?
Fique 87
Eu nunca havia o visto pessoalmente e saberia listar várias!
Noemi, também:
— Você tem qualidades excelentes. Sei que é difícil perceber
isso em meio a tantos problemas emocionais, mas você é uma
pessoa incrível. Defeitos todos têm, uns mais, outros menos,
mas todas as pessoas são dignas do amor, todas merecem ser
amadas. Você é uma delas, com toda a certeza. Não deixe de
viver por causa de alguns erros, faça o contrário, viva mais
intensamente para poder esquecê-los. A vida é uma só e é você
que vai abrir ou fechar portas para o amor. Afinal, o que é a vida
sem esse sublime sentimento?
Arrasou, Noemi!
88 Fique
Capítulo 7: O amor é inevitável
D
epois da primeira prova do semestre, os amigos resolveram
sair para espairecer a cabeça e colocar a conversa em dia.
Encontraram-se todos em uma lanchonete. É claro que Guilherme me contou
a conversa daquele dia.
— Eu vi! Ele não parece ser um cara muito ético. — Fátima comentou.
— E pior, alguns deles falam que a culpa é da mulher, que usa roupas
curtas ou seduz o homem — Fernanda completou.
Fique 89
conhecidos internacionalmente como o país do carnaval e do futebol, que até
parece que eles se esquecem de que o Brasil é um dos países mais violentos do
mundo — Guilherme discursou.
A turma ficou alvoroçada com a fala de Fátima, afinal, não era sempre
que o grupo a escutava falar tantas coisas sentimentais. Kléber foi o primeiro
a zombar, dizendo que Fátima havia sido substituída por um extraterrestre.
— Ela está sentimental, Kléber, deve ter assistido a algum filme triste
com cachorros. Não seria a primeira vez... — Fernanda relembrou, referindo-
se a quando elas assistiram a “Marley & Eu”, e Fátima não conseguia parar de
chorar.
90 Fique
***
***
Fique 91
— Por que platônico? — indaguei-o.
— É só que... — hesitou.
— Eu conheci um cara!
— Sim, um cara.
— Você está ficando com um cara que conheceu no bar? Percebe o quão
estranho isso soou?
92 Fique
com as palavras.
— Mesmo?
— Mesmo!
Cedi, fingindo que tinha acreditado. Então perguntei qual era a sua
novidade.
— Sim! — Afinal, quem é esse cara que tem a coragem de ficar com o
meu... meu, o quê? Namorado? Amigo? O que o menino era meu? O que eu
queria que ele fosse? A minha cabeça doeu, de repente. Fiquei confuso e, por
uns segundos, perdi-me em meus pensamentos.
— Gu.... Você ainda está aí? — ele me chamou depois de um silêncio longo.
— Continuamos?
***
Fique 93
Acreditar no destino nada mais é que saber quais serão as consequências
de sua decisão. Se você acelera o carro acima do limite de velocidade, o seu
destino pode ser um acidente; se você infringe uma lei, o seu destino pode ser
a cadeia, e assim por diante. Nós fazemos o nosso próprio destino, de acordo
com qual caminho decidimos seguir.
***
94 Fique
Samira foi a única que não concordou com a minha insistência em
Guilherme. Era de se entender, afinal, fora ela quem arranjara esse outro (e
ótimo) partido quando saímos para beber. E faltou tão pouco para Mateus me
conquistar, para eu abandonar a ideia de casar-me com o príncipe encantado
e contentar-me com um quase príncipe encantado... Mas Mateus não tinha o
sorriso bonito de Guilherme, ou sua facilidade em levar-me a outro mundo
quando conversávamos. Samira ainda tentou me convencer a não me abrir
com Guilherme.
Samira disse que Mateus parecia ser um bom partido, e que eu estava
escolhendo a pessoa errada.
— Tudo bem, Gu, você venceu. Se é isso que você quer... vou te apoiar. —
Não parecia sincera.
Fique 95
***
— Como?
— Combinado — confirmou.
96 Fique
***
Fique 97
Esse não é o estilo de vida de Guilherme, muito menos é o meu. Por isso
seríamos perfeitos um para o outro, frequentaríamos os mesmos lugares,
beberíamos os mesmos drinques, nada de loucuras e dirigir alcoolizado;
álcool e direção não combinam, todo o mundo sabe disso, menos Alexandre.
— Eu gosto daquele sabor que parece com sua boca — Alexandre disse
baixinho.
— E qual seria?
— Não sei. Ainda não descobriram algo tão bom quanto você.
Achei brega e ri, mas, no fundo, invejei-o, pois eu era quem deveria estar
lá. Não era possível que Guilherme estava tão apaixonado por um tipo desses.
Alexandre era encantador? Sim! Mas não era eu!
98 Fique
***
— Gustavo gosta de você. Isso está tão claro quanto à luz que ilumina
esta sala. Não entendo por que você se revolta tanto ao pensar sobre isso,
tenho a certeza de que já percebeu que ele tem um carinho especial por você.
— A pessoa para a vida toda é aquela que nos ama de verdade, lembre-
se disso. É aquela que se preocupa conosco, mesmo estando a mais de mil
quilômetros de distância. É aquela que escuta as suas histórias chatas sobre
outras aventuras amorosas e faz disso um livro a ser apreciado. O amor
transpõe qualquer tipo de barreira física.
Fique 99
— O amor nunca vai escolher lugar, ou tempo, ou pessoas para acontecer.
Nem tudo é feito de concreto.
Guilherme estava “meio” feliz. E, o que era pior, contentava-se com isso.
É claro que nada mudava o fato de eu estar longe, mas, se o menino deixasse
de olhar os empecilhos e começasse a trabalhar por sua própria felicidade,
veria que metade de sua atual alegria aflorava quando falava comigo.
— Quem sabe o Gustavo não venha para cá, para te encontrar, e vocês
vivam felizes para sempre?
— Nunca se sabe. — Ele sorriu maroto, sem saber que era exatamente
100 Fique
isso que aconteceria e, se dependesse de mim, a parte do “feliz para sempre”
não faltaria.
***
— Não!
— Não! — eu confirmei.
Pronto! Falei! Com todas as letras e todo o sentimento que esse momento
poderia exigir. Eu gostava, de uma forma absurda, daquele menino. Do seu
jeito, de seu charme sedutor. Das palavras bonitas e das histórias engraçadas.
Ele é, simplesmente, perfeito, para mim.
Fique 101
Meu coração disparou de uma forma inexplicável. Um sorriso tomou-
me de orelha a orelha, fazendo o meu maxilar doer. Minha boca secou. Tudo o
que eu queria ouvir há meses, finalmente, aconteceu.
— Por que você está tão surpreso? — ele perguntou divertido, fingindo
que não tinha me rejeitado no último ano inteiro.
— Eu não imaginei que você cederia assim, ainda mais depois de tanto
tempo afirmando que seria apenas amizade. Eu já havia me preparado com
vários argumentos para lhe mostrar como você estava sendo burro... Quer
dizer, não burro de burro... Ééé....
***
Para Guilherme,
O seu sorriso, seus olhos nas fotos, suas mensagens e nossas conversas
intermináveis são apenas pequenos motivos para eu querer encontrá-
lo. A verdade, meu querido Guilherme, é que eu preciso de você. Você
me entende, você me conhece e conhece a minha história.
Por que não, meu amor, viver uma história só? Quero parar de contar
fragmentos soltos e sem sentidos e amarrar as minhas palavras
102 Fique
preferidas às suas para, juntos, escrevermos um texto tão sublime que
cause inveja a quem leia.
Se bem me entende, deve ter notado que tudo isso não é, nada mais
nada menos, que um apelo desesperado, pedindo para que esteja
sempre por perto. Já posso até rabiscar alguns rascunhos, sonhar com
algumas estrofes. Talvez, quando você decidir me encontrar, eu já
tenha alguns parágrafos planejados.
Fique 103
Capítulo 8: Oi
E
ra esse o momento certo, estava na hora de ver aquele sorriso
lindo pessoalmente. Finalmente, eu veria Guilherme cara a
cara e poderia comprovar todas as minhas expectativas em relação ao rapaz.
Comprei as passagens de avião para São Paulo, pois seria o meio mais rápido.
Mesmo assim, os minutos pareciam estar congelados. O tempo simplesmente
não passava. A minha ansiedade crescia a cada segundo. A previsão de
chegada era às 20 horas.
— Uma hora!
— É ele. — Eu corei.
Fique 105
Eu gargalhei. Ela continuou:
— Ser gay é normal. Conheço vários gays, sabia? Tenho um neto gay,
uma sobrinha sapatona e, às vezes, acho que o meu cachorro tem uma certa
queda pelo labrador do vizinho — disse ela, cochichando o final da frase,
como se fosse um segredo importante.
— Vou vê-lo pela primeira vez esta noite. Espero que dê certo.
— Nossa, fico feliz por vocês. Viu, rapaz, quando se aproveita a vida, o
tempo passa rápido. Já são sete e quinze. Agora, se me der licença, vou puxar
mais uma soneca, preciso estar no meu auge quando esse avião pousar,
porque, hoje, eu vou rever o meu velho e ninguém me segura. — Ela balançou
as mãos no alto e inclinou a sua poltrona para voltar a dormir.
Ela rebateu, dizendo que o amor nunca é uma burrice. Dizendo que eu
106 Fique
só saberia o resultado se tentasse, e que, mesmo não dando certo, teria valido
a pena, pois nunca devemos desperdiçar uma chance de conquistar a pessoa
que amamos.
— Posso te escrever.
— Pois assim o faça. — Ela fuçou em sua bolsa, tirou uma caneta e um
pedaço de papel amaçado, anotando o endereço. — Mande-me uma carta.
— Sério?
— Cala a boca, Horácio, ninguém aguenta mais ouvir você falar — ela
gritou. — Ele é aquele neto gay que te falei — sussurrou para mim.
Fique 107
— Não, apenas estou com pressa e não me atentei a isso, perdoe-me —
expliquei-me sorrindo.
— Um amigo.
— Já fui uma vez para lá, o Cristo Redentor é lindo — ele comentou,
tentando mostra-se conhecedor. Preferi não o corrigir e balancei a cabeça,
concordando.
— Apenas vá.
— Ok. Se isso for uma pegadinha, você vai pagar caro — ele enviou, junto
com os emoticons de raiva.
— Oi — eu disse.
108 Fique
— Oi. — Ele sorriu. O sorriso dele era o mais lindo que eu já tinha visto na
vida, deixou-me ofegante e me tirou o chão.
Fique 109
Carne na carne. Senti o úmido de seu rosto encostar em meu nariz.
Senti a sua língua invadir a minha boca em um pedido desesperado de amor.
Retribuí. Toquei o seu pescoço delicadamente. Ele sorriu. Eu aumentei a
intensidade e lhe arranquei suspiros. Excitei-me ao ouvi-lo gemer.
— Vamos.
E a primeira delas, claro, não poderia deixar de ser: “Por que você
decidiu vir me ver?”
Ele riu, mas de uma forma que eu nunca tinha presenciado em nenhuma
das chamadas de vídeo ou ligações. O som de sua gargalhada ecoou pelo
apartamento, deixando-me envergonhado.
— É sério — insisti.
110 Fique
Encaramo-nos por um tempo. Olhar para o Guilherme tranquilizava-
me. Notei que ele corou. Sem dizer nada, levantou-se, parou ao meu lado e
beijou os meus lábios de forma a umedecê-los, acariciando os meus cabelos
com as pontas dos dedos. Arrepiei-me.
— Você está com fome? Vamos pedir algo para comer? — ele sugeriu
com um sorriso lindo no rosto.
— Estou sim, sou taurino, lembra? Sempre estou com fome — brinquei.
— Eu também sou taurino e nem por isso sou esfomeado... Quer dizer,
não sou tão esfomeado.
— Pizza?
— Pizza.
***
— Tenho. Venha, vou te dar uma toalha, caso você queira tomar banho.
Guilherme foi até o quarto e voltou, pouco depois, com uma toalha
rosa choque, dizendo que a cor era em minha homenagem, debochando de
minha masculinidade. Eu não resisti e rebati o seu comentário, brincando,
Fique 111
chamando-o de idiota. Guilherme aproximou-se, sensual, provocante,
deslizando suas mãos em meus ombros, com a voz doce e sedutora. Sem
demonstrar nenhum nervosismo, sentindo-se a vontade com minha presença.
— Vá logo para o banho, antes que eu mesmo tire sua roupa — ele brincou.
Não podia ser um sonho. Desta vez, tinha que ser real. Eu estava ali,
conhecendo o garoto que tanto pedi a Deus, podendo alcançá-lo com as
minhas mãos, tocá-lo, sentir o seu perfume. Fui tão imprudente por achar
que tudo seria perfeito? De que casaríamos e viveríamos felizes para sempre?
Não imaginava que tudo seria resolvido em um terraço.
— Eu não imaginava que isso ia acontecer tão cedo — falei, com os olhos
fechados e relaxando com as suas carícias.
112 Fique
Guilherme aproximou-se e me beijou, deixando-me sem ar. Virou-
me e envolveu os seus braços ao meu redor, encostando cada centímetro
do seu corpo no meu. Eu suspirei. Ele sussurrou boa noite em meu ouvido,
arrepiando-me; eu retribuí e dormi quase que instantaneamente.
***
No fim, é você quem me faz querer amar, sempre foi. Os seus olhos,
quando me fitam, fazem a minha alma rugir, desesperada pelo amor
que apenas você pode oferecer.
***
Fique 113
concluí que ele já havia escovado os dentes. Guilherme estava vestido apenas
com a calça do pijama e cueca, deixando o seu abdômen e peito definidos à
mostra.
114 Fique
— Daremos um jeito, certo?! — testei.
— Você vai.
***
— Conversei, e pessoalmente.
Fique 115
— Noemi! — Guilherme exclamou envergonhado. Até posso imaginar o
seu rosto corando e inclinando-se sutilmente para o lado.
***
116 Fique
Esperança, porque o sonho de envelhecer juntos traz um novo
objetivo para a vida. Andar de mãos dadas aos oitenta, comemorando
cinquenta anos de casados, torna o mundo um lugar melhor, com
mais paz, suavizando o ódio.
O amor é a vida. A vida nada é sem o amor, mas ele pode existir sem
que a vida exista.
***
— Ele é lindo.
— Como assim?
Fique 117
— Fala-me como ele é... Como se você estivesse dando um depoimento
na delegacia e fazendo um retrato-falado de um ladrão que roubou a sua
carteira.
— Samira, você está impossível! Mas ok. Ele tem a minha altura, cabelo
castanho meio bagunçado, olhos negros, a pele lisa e branca, barba por fazer,
corpo definido... Sei lá, Samira, ele é perfeito. — Eu suspirei.
— Você viajou horas e nem viu o que o rapaz tinha embaixo da cueca...
Estou decepcionada — ela debochou.
— Madrinha do quê?
118 Fique
Samira não resistiu, disse que formaríamos um belo casal e tentou
apertar, novamente, as minhas bochechas. Dessa vez, eu a segurei,
gentilmente, acabando com o seu plano maligno de deixar-me roxo.
Fique 119
Capítulo 9: Doce liberdade
O
mês de julho chegou, e Guilherme amadurecia a ideia de se
assumir para sua mãe. Rosa o visitaria pela primeira vez, e
Guilherme achou que esse seria o momento certo para contar a verdade.
Apesar de a ansiedade lhe consumir, o mundo parecia mágico.
***
Fique 121
A batalha aproxima-se na quietude da noite. A paz, que antes
inundava os sonhos, agora, é substituída por uma inquietação quase
palpável. Os olhos atentos captam cada movimento aos redores. O
coração começa a bater mais rápido, bombeando o sangue quente
para cada extremidade do corpo.
***
Essa era a primeira visita que Rosa fazia-lhe. A mãe do menino o abraçou
demoradamente, ao encontrá-lo na rodoviária. Guilherme estava empolgado
para mostrar os pontos turísticos que havia na cidade.
Elis, sua irmãzinha, também estava ali. Tímida, esperou que a mãe
desgrudasse do irmão e o olhou desconfiada. O garoto abraçou-a e rodou-a
no ar. Ela e Rosa riram. Foi então que, em um momento de ansiedade e alegria,
122 Fique
uma premonição de que algo perfeito aconteceria invadiu a mente do menino,
aquele era o dia certo.
***
Fique para mostrar que o seu amor é maior do que o meu amor.
Fique e mostre o quão puro ainda me olha e quão disposta está a
continuar do meu lado. Fique para mostrar para os outros, sim, para
os outros (por que não?), que o amor não mudou.
Fique 123
Eu preciso de você. Não quero e nem posso enfrentar todo o
preconceito sozinho. Fique do meu lado, não do lado deles. Não
me exclua da sua vida. Deixe todo o preconceito de lado, deixe-me
mostrar a você que ainda sou o mesmo.
Fique, finalmente, apenas por ficar. Fique pelo amor. Fique, porque,
ainda que diferente, ainda que desajustado e abalado, ainda que
totalmente perdido e desorientado, eu sou seu filho e eu a amo.
***
— Vai dar tudo certo. E, se algo acontecer, eu estarei aqui com você —
encorajei-o.
— Sempre?
124 Fique
Um silêncio tranquilo tomou conta da ligação. Guilherme avisou-me de
que iria à sala conversar com a mãe. Despediu-se e colocou o telefone, ainda
ligado e no viva-voz, no bolso direito.
— Lá vou eu.
Eram 22 horas, Elis já dormia. Rosa assistia a uma repórter que noticiava
algo sobre a comida preferida dos ursos panda. Guilherme respirou fundo,
bebeu um copo de água. Caminhou pela casa, provavelmente verificando se
Elis realmente dormia. Puxou uma cadeira da cozinha até a sala, arrastando-a
no chão, chamando a atenção de Rosa e, então, fez o seu destino.
Fique 125
— Eu ouvi tantas histórias de amigos que tiveram que sair de casa.
Outros cujos pais nunca mais estiveram presentes. E tinha tanto medo de que
isso acontecesse com a gente... Então, eu peço desculpas por não ter falado
antes e por ter mentido por tanto tempo para você. Mas, sabe, chegou uma
hora em que eu, realmente, tive a certeza de quem sou e do que quero. E, por
mais que doa muito pensar em que eu posso estar sozinho de uma hora para
a outra, por mais que me machuque imaginar a dor que você pode sentir,
depois de ouvir o que tenho a dizer...
— Eu posso garantir que isso não vai acontecer. — Ela sorriu. — E, caso
você não queira me contar, tudo bem.
— Mãe, eu sou gay. Faz tempo que eu sei, mas eu queria ter certeza antes
de contar. Por favor, desculpe-me por ser assim, eu não queria, eu realmente
não queria. Eu quero ter filhos, eu quero me casar, ter uma vida normal. Lutei
muito para não ser assim. Eu não queria ser gay. Desculpe-me por decepcioná-
la e não ser aquele filho com que você tanto sonhou. Eu sou grato por você ter
126 Fique
cuidado tão bem de mim até aqui, mas ficaria mais grato se você continuasse
a cuidar de mim, porque, mãe, é tão difícil.
— Eu não sei o que dizer, você é a melhor! Desculpe-me por tudo isso.
— É claro que vai ser difícil, mas eu estarei aqui. Você vai sofrer
preconceitos. Talvez xinguem e maltratem você, talvez até batam em você,
mas eu estarei aqui. E, por favor, não peça desculpas por ser quem você é. Não
se desculpe por uma coisa que você não escolheu. Eu te amo, filho, e nada,
absolutamente nada do que você me falasse hoje, ia mudar isso.
***
Fique 127
Os casais se abraçam nos versos principais
***
***
128 Fique
— Você sabe que vai ser difícil falar para o seu pai, não é?
***
Para Guilherme,
Deixo esta carta, para que leia antes de partirmos, porque nunca
sabemos quando nossa canção vai acabar. Às vezes, ela termina sem
avisar. E se essa fosse a minha despedida desse salão que é a vida, eu
escolheria dançar a última vez com você.
Gustavo.
Fique 129
***
— Ai, Gustavo, larga do meu pé. E você, rapaz.... Você é lindo! — ela o
elogiou.
130 Fique
refeição, Samira fez questão de confidenciar-me que havia amado o seu jeito,
e, é claro, eu não pude deixar de concordar, já aproveitando a oportunidade
para lhe pedir um favor. Ela não poderia responder de outra maneira, a não
ser me provocando:
— Não! Não é isso! Credo! Com o capeta seria melhor do que com você.
— Você ainda está ficando com ele? — João era um contato fixo de Samira
e, sempre que surgia uma chance, eles dormiam juntos.
— Meu querido! Eu não quero namorar! — ela disse em tom de voz agudo,
quase em falsete.
— Está bem! Mas só esta noite — ela cedeu, jogando uma chave por cima
da mesa.
Fique 131
— Achei que estávamos no lugar errado — ele brincou, menosprezando
a minha habilidade com fechaduras.
Eu peguei sua mão e o levei até o quarto de visitas. Ele me fez sentar
no colchão, sentando-se no meu colo. Inclinei-me e o beijei, intensamente,
fazendo-o suspirar. Ele passou a mão em meu peito, eu retribuí e segurei a
sua cintura, puxando-o para mais perto. Excitei-me, ele me sentiu e gemeu,
acariciando o meu cabelo. Eu tirei a sua camiseta, jogando-a no chão. Ele me
imitou.
132 Fique
de sua boca, ficando sobre o seu peito. Eu senti a sua mão tocar-me. Logo
depois, a sua língua, dando-me um prazer indescritível. Nessa posição ele me
chupou por uns minutos, então deite-me totalmente por cima dele, sentindo
os nossos corpos se tocarem. Beijei-o, saboreando o nosso gosto e acelerando
a sua respiração.
***
Fique 133
receber uma vista. Guilherme desconversou, dizendo que, antes, precisava
contar algo importante. Rodrigo, ansioso e eufórico, pediu para que o garoto
continuasse.
— Pai, eu não tenho uma forma simples de falar isso e não sei como
abordar o assunto com você. Nós nunca fomos muito próximos e tenho certeza
de que as coisas vão ficar mais complicadas a partir de agora. Desde de que
eu era criança, eu olhava diferente para os meninos da escola. Achei que era
uma fase boba e resolvi não contar para ninguém. Então, eu fui crescendo e,
cada vez mais, os rapazes atraiam-me. Tentei fazer campanhas na igreja, orei
e pedi para Deus me libertar disso. Até fui morar com você aquele ano, para
tentar mudar. Porém, nada funcionou. Então, comecei a ir à terapia. Comecei
a entender um pouco melhor as coisas e tive minhas primeiras experiências.
Hoje, eu tenho certeza de quem eu sou. Contei para a minha mãe, e estou te
contando agora. Pai... eu sou gay.
Dizer pela segunda vez aquela frase em menos de um mês para alguém
importante deixou-o exausto. Por que ele precisava dar tantas explicações
por ser diferente?
— Menos mal, né, Guilherme! Que absurdo! — repetiu. — Filho meu não
vai ser gay não. Você vai vir para cá imediatamente. Vai largar a faculdade e
vai morar comigo, agora mesmo! E vamos dar um jeito nessa palhaçada.
134 Fique
— O quê?! — A reação foi espontânea. Guilherme elevou a voz. — Não
é assim que funciona. Eu tenho uma vida em São Paulo e não vou mudar só
porque você quer.
— Você tem uma vida? É isso que você chama de vida? — o pai gritava
— Você é um imprestável, você nem trabalha ainda! E agora vem com essa
história de que é veado... era só o que me faltava.
— Pai o caramba! Filho meu não é gay! E se for gay não é meu filho.
Ou você se converte e deixa esse pecado, ou não precisa mais gastar os seus
créditos para me ligar.
— Eu não quero mais saber de papo furado. Se você não voltar para cá
agora... eu não vou te considerar mais como meu filho.
— Adeus, pai, espero que um dia você mude de ideia. — Não houve
resposta, Rodrigo já havia desligado.
Fique 135
— Eu te amo... — ele disse cauteloso.
136 Fique
Capítulo 10: Olho roxo
S
eis meses se passaram e a notícia de que Guilherme era gay
espalhou-se rapidamente pela família. O menino quase não
conseguiu contar pessoalmente a notícia para seus avós. Ele teve várias
surpresas positivas e ficou satisfeito, no geral, com as reações.
***
Toda vez que eu pensava sobre ser gay, uma confusão invadia-
me e me torturava. Foi difícil entender que não era uma escolha.
Depois que percebi que eu morreria homossexual, comecei a buscar
alternativas para sentir-me feliz.
Fique 137
Por onde eu andava, a cada balada ou gota de álcool que derramava
em minha boca, eu me afundava ainda mais. Não tinha como fugir
ou como evitar. Eu seria homossexual por toda a eternidade, e nada
poderia mudar isso.
***
138 Fique
primeiras provas estavam chegando. Ele não perdeu a oportunidade de me
caçoar, perguntando como eu estava com matéria acumulada se nem a louça
eu precisava lavar. Óbvio que não perdi a oportunidade de bajulá-lo:
— Estou em casa.
— Infelizmente, não. Mas existe algo que podemos fazer, vi isso num
filme, uma vez.
***
Fique 139
Assim que possível, Guilherme foi a Mato Grosso. Como das outras
vezes, eu o busquei no aeroporto e o levei até o apartamento de Samira. Ela
nos esperava ansiosa. Enquanto eu e ela conversávamos, sentados ao redor
da mesa na cozinha, Guilherme resolveu preparar o jantar, comentando que
estava fazendo o meu prato favorito.
— Você tem que casar logo — Samira cochichou para mim. — O menino
sabe cozinhar, não precisa de mais nada.
— Guilherme! — Eu corei ainda mais, sem saber para onde olhar. — Até
você?!
140 Fique
— O que você está aprontando? — Eu perguntei ansioso e desconfiado.
— Gustavo... Eu tenho pensado muito sobre isso, e faz quase um ano que
nós estamos juntos... acho que está na hora de oficializarmos tudo isso.
— Guilherme! Não! Não... Quer dizer... sim! Claro que sim! — Eu me perdi
nas palavras.
— Eu aceito.
— Ah! Por favor! Vocês são impossíveis de tão doces. Acho que está na
hora de nós jantarmos. — Samira levantou-se e, propositalmente, passou entre
Fique 141
mim e Guilherme, separando-nos. Nós dois sorrimos, ainda concentrados um
no outro.
***
142 Fique
***
— Essa não valeu, amor! Você não esperou até que eu estivesse pronto
— eu rebati divertido.
Fique 143
— Não, não! Não existe essa história, quem precisa se preparar para
isso?!
— Guilherme!
***
144 Fique
Toda a vez que eu vejo um prato de comida de que eu gosto, eu me
lembro de você. Ontem mesmo, comi lasanha no almoço. Lembrei-
me de você. Hoje, tomei um sorvete em sua homenagem, porque
me lembrei de você. Será que você consegue me explicar por que as
coisas boas me fazem lembrar do seu beijo? Ou do seu cheiro?
***
Fique 145
Depois de quase uma semana comigo, no Mato Grosso, Guilherme
viajou para o interior de São Paulo.
Ao voltar Gui me contou sobre como Elis estava diferente desde a última
vez que a tinha visto. Agora ela sabia algumas palavras novas que usava
em sentenças sem muito sentido, como quando afirmou que o irmão era ‘o
amaciante dos sonhos’ e ‘o hipopótamo fofinho’.
— Gay nasce para sofrer, não para dar opiniões — o outro contestou.
146 Fique
Não houve resposta. O rapaz partiu para cima de Guilherme,
derrubando-o da cadeira e fazendo-o bater as costas e a cabeça no chão.
Guilherme tentou levantar-se, inutilmente, já que o outro o chutou na altura
do estômago. Guilherme soltou um grito de dor, enquanto recebia outro
golpe, agora na virilha.
***
Fique 147
Depois de alguns segundos, ele discou o meu número, porém a ligação
foi direto para a caixa de mensagens. Reclamou, em voz alta, que o meu
celular estava desligado. Rosa, que sabia o motivo, sondou o filho:
— Oi, filho — Rodrigo começou, enquanto tocava com uma das mãos na
cama de Guilherme, buscando aproximar-se.
148 Fique
— Eu tenho tanta coisa para lhe falar... Não sei por onde começar. —
Rodrigou estava envergonhado.
— Faz seis meses que você não entra em contato comigo! Isso é mais do
que se afastar! — Ele se elevou, tentando sentar-se na cama. Rodrigo teve a
intenção de ajudá-lo. Guilherme rejeitou, aprumando-se sozinho.
— Desculpe-me por ter deixado de falar com você, foi um grande choque
para mim...
— Eu tentei, pai! Eu fiz de tudo para ser o que você esperava de mim, mas
eu não nasci para ficar dentro da igreja, eu sou gay, e isso não vai mudar! —
Guilherme disparou.
— Gay!
Fique 149
— Eu me lembro de que era você quem me levava até a escola, todos os
dias, antes de mudar de cidade — Guilherme quebrou o silêncio. — Foi uma
época boa.
— Então, por que você sumiu? — disse, em um tom de voz mais elevado
do que pretendia, que fez com que seu maxilar, ferido, latejasse. Guilherme
levou a mão para o rosto, irritado com a situação.
— Não utilize esse termo, pai, isso não é uma doença. E eu falava contra
os homossexuais por causa de você! Você colocou isso na minha cabeça e
me fez acreditar que era o correto a se fazer. Você me forçou a namorar uma
menina, a lutar contra a minha essência e a acreditar que Deus abomina o que
eu sou.
— Mas o erro não foi só meu, você deveria ter conversado comigo... —
Rodrigo tentou amenizar a sua responsabilidade.
— Filho...
150 Fique
— Eu estava inseguro e confuso, e tudo o que eu escutava eram instruções
rigorosas sobre como seguir a Deus e não pecar.
— Então mostre.
***
Fique 151
***
Assim que entrei no quarto onde Guilherme estava, logo pela manhã
do outro dia, meu coração apertou-se e não consegui evitar as lágrimas.
Ele estava extremamente machucado, com hematomas por todo o corpo, e
o seu olho estava inchado e roxo. Rosa encontrava-se sentada na poltrona,
enquanto o filho dormia inquieto.
— O prazer é todo meu. Realmente, ele sabe ser chato quando quer
— entrei na brincadeira, dando um sorriso demorado e observando meu
namorado na cama.
152 Fique
os lugares, arrancando vidas, ceifando um campo colorido das mais belas
flores, dando lugar à dor e à paisagem acinzentada.
— Nunca mais quero ver você assim, por favor! — eu confessei mais alto
do que deveria.
— Fique tranquilo, amor, não vou dar-me ao luxo de ficar mais feio que
você de novo — ele amenizou, descarregando o ambiente.
— Eu tentei ligar a você ontem à noite, para acalmá-lo, mas o seu celular
estava desligado — Guilherme disse, passando, lentamente, o indicador nas
linhas da palma de minha mão.
Fique 153
Um barulho, vindo da entrada do quarto, chamou a nossa
atenção. Rodrigo estava parado, junto à porta, esperando ser
convidado para entrar no local. Eu saltei da cama, colocando-
me de pé o mais rápido que consegui. Guilherme não se moveu,
apenas encarou o pai, atento, preparando-se para uma fuga.
— Bom dia. — Rodrigo cumprimentou firme, mas calmo.
— Bo... a... bom... da... — eu gaguejei.
— Pai, esse é o Gustavo, meu namorado — Guilherme
interveio convicto e confiante.
Rodrigo andou em minha direção vagorosamente, vi a
morte diante dos meus olhos. Mas ele apenas apertou a minha
mão com firmeza.
— É um prazer conhecê-lo, Gustavo.
— O prazer é meu — respondi, enquanto Rodrigo acomodava-se na
poltrona.
***
154 Fique
— Eu nunca achei que iria sofrer uma agressão física por ser homossexual.
Foi tão rápido, não pude nem ao menos me defender. A cada golpe, eu sentia
uma dor extremamente aguda. Minha cabeça começou a rodar e, de repente,
apaguei. Minha mãe falou que chamaram uma ambulância. Ligaram para ela
quando eu já estava no hospital.
— Você fica lindo quando tenta ficar bravo comigo — eu disse, fazendo-o
sorrir.
Fique 155
— E você sempre encontra uma forma de me fazer sorrir — ele concluiu,
segurando a minha mão e apertando-a carinhosamente.
— Porque a mamãe não sabe contar até dez. — Elis pareceu satisfeita
com a resposta.
***
156 Fique
Guilherme respondeu, em tom meigo, que logo estaria lá para me visitar.
Fiz ele prometer. Nesse instante, Rosa, na entrada do quarto, pegou-nos de
surpresa:
Guilherme agradeceu, ainda sem reação. Rosa pediu para que não
fizéssemos muito barulho por causa de Elis, cumprimentou-nos e voltou para
o seu quarto. Assim, aninhei-me em seus braços, sentindo um beijo de leve no
meu pescoço, e a sua mão direita sobre a minha coxa.
Fique 157
Capítulo 11: Estou aqui
O
tempo passava rápido, e assim eu desejava. Logo terminaríamos
a faculdade e poderíamos decidir sobre o nosso futuro. Sem
mais distância, lado a lado. Porém, na véspera do natal daquele mesmo ano, o
penúltimo semestre de Guilherme, horas antes da ceia, algo não previsto no
meu roteiro aconteceu.
— Gustavo, certo?
Fique 159
— Onde estão os meus pais?? — eu indaguei, não conseguindo controlar
a minha inquietação.
***
É tão simples, óbvio e fácil de entender: não mate! Não acabe com a
vida do próximo por causa de trinta reais com o táxi. Dinheiro se luta
para conquistar. Agora, a vida é uma só.
***
160 Fique
A mesa para a ceia de natal já estava arrumada: arroz, lentilha, pernil,
Chester, peru, leitoa, pavê de frango, torta e saladas. Não havia um espaço
vazio. A família de Rosa estava toda reunida, como em todos os anos. A noite
de natal era um ritual sagrado. Anualmente, no dia 24 de dezembro, à noite,
eles se encontravam e celebravam aquela data tão especial.
— Para, filho, tadinha. Tenho a certeza de que ele trouxe, mas antes
de vermos, nós vamos comer. — Ela bateu palmas para chamar a atenção e
gritou. — Podem comer, família!
Não foi necessário avisar duas vezes. Até pareceu uma família de
taurinos. Entretanto, o genuíno do signo de touro, Guilherme, não estava com
tanta fome.
Fique 161
— Estou preocupado com Gustavo. — Guilherme contou a história para
a mãe.
— Isso seria uma ótima ideia! — Rosa não tardou em responder. — Acho
que você deve ir sim, afinal, aqui não vai ter festa nenhuma.
***
Logo depois que recebi a notícia de que os meus pais haviam falecido,
liguei para Samira, a única cujo número de telefone eu sabia de cabeça, já
que o meu celular tinha quebrado ao cair, minutos antes. Pedi, gentilmente,
que ela avisasse Guilherme. Ela recebeu a notícia em choque, chorando ao
telefone.
— Eu não posso imaginar como você está. É véspera de natal, pelo amor
de Deus! — ela lamentou.
— Apenas ligue para o Gui, por favor, meu celular está quebrado —
instruí.
162 Fique
— Fique tranquilo, eu o avisarei. Você precisa de alguma coisa?
Fique 163
Dirigi até um famoso bar da cidade. Respirei fundo, ainda dentro
do carro. Desejei ligar para Guilherme através de alguma rede social, eu
precisava apenas de um computador para fazer isso, mas escutar a sua voz,
naquela hora, seria aceitar que os meus pais se foram. Para ajudar, o meu
celular estava quebrado, sem sinal.
— Ouvi dizer que aqui é um ótimo lugar para fugir do mundo — Comentei,
sem saber ao certo como pedir.
***
164 Fique
— Você está aqui? — perguntei, com o tom de voz alto, pensando estar
no meio de um sonho.
— Estou, seu bobo — ele disse deixando-se relaxar, mas seu rosto estava
cansado, parecia que não dormia há dias.
— Há poucas horas.
— Sim, ela me ligou. — Ele fez uma pausa, pensando no que dizer. — Eu
sinto muito.
Fique 165
Deveria ter me ligado. — Guilherme estava extremamente irritado e, ao
mesmo tempo desolado e preocupado.
— Eu sei, eu deveria ter lhe ligado, mas não sabia o que dizer, eu perdi o
meu rumo... Me desculpe... — falei cabisbaixo.
***
É fácil dizer aos outros o que fazer. É fácil ouvir dos outros conselhos
certos. Mas não existe nenhuma fórmula para superar a dor. Ela corrói
a nossa alma, consome a nossa alegria e leva nossas esperanças.
166 Fique
eu sei! Mas morrer não é a solução! Nunca é! Busque amigos. Busque
objetivos. Renasça e sopre as cinzas para longe. Sorria novamente.
Brinde as novas conquistas. Dedique-as ao seu passado. Viva!
Ressurja! Tenha esperanças e lute, fazendo o seu próprio destino!
***
O dia de natal não foi igual ao dos outros anos. Eu fui liberado do
hospital às duas da tarde. Guilherme, segurando a minha mão, guiou-me até
o meu carro, que estava estacionado por ali, explicando que alguns amigos o
haviam trazido até ali.
— Não tem o que agradecer. Vamos, vou levá-lo para a casa para
tomarmos um banho, depois vamos encontrar Samira para o enterro — ele
disse chateado com todas as situações que tinham surgido nas últimas vinte
e quatro horas.
***
Fique 167
Às quatro horas, eu, Guilherme, Samira e alguns amigos da família
caminhávamos, lentamente, dentro do cemitério, até o local do enterro. Eu
ajudava a carregar o caixão de minha mãe, e Guilherme, do meu pai. Ele me
observava atento. Um padre acompanhava-nos com um olhar triste.
168 Fique
As lágrimas voltaram a escorrer pelo meu rosto. Vagarosamente, por cada
coveiro sobre um túmulo, a terra começou a ser jogada, atormentando-me.
***
Sei que é natural ver os pais partirem, mas não dessa forma
prematura. Sem reação, entreguei-me à vasta solidão que a vida me
proporcionou. E tudo isso por causa de uma irresponsabilidade, de
um ato impensado.
É difícil não ter raiva de uma situação como essa. Odiar o motorista
que estava bêbado foi a saída mais evidente, para que eu pudesse
aceitar aquela tragédia. Porém, depois de pouco tempo, aquele
sentimento não era o suficiente para segurar-me de pé. Foi então
que o amor me fortaleceu. Guilherme fortaleceu-me.
Fique 169
O amor a tudo vence. Repetir isso traz-me a paz. O amor a tudo
vence. Repetir isso traz-me a esperança. O amor a tudo vence. Por
fim, repetir isso traz-me a vontade de continuar vivo.
***
Foi maravilhoso tê-lo ali. Eu me sentia tão só... com Guilherme por
perto, aos poucos, eu voltei a pisar em solo firme. E o carinho e amor que
ele demonstrava era simplesmente espetacular. Todos os seus beijos
prolongados, todos os abraços apertados, dormir de conchinha. O rapaz foi
um romântico nato. Fez-me acreditar em que as coisas poderiam melhorar.
Fez-me enxergar que eu não estava sozinho.
— Meu anjo, você quer ir a algum lugar ver os fogos? Ou vamos ficar em
casa? Sinceramente... ainda estou desanimado para sair.
— Na verdade, eu quero. Mas não é longe... venha cá... — ele disse maroto,
segurando as minhas mãos e me puxando em direção à porta.
170 Fique
— Você não precisa estar bem vestido para o lugar aonde nós vamos.
Confia em mim?
— Isso não é nada perto do que eu farei por você. Eu precisava dar um
jeito de animá-lo, nem que fosse um pouquinho.
— Bobo! — brinquei.
Fique 171
De repente, um barulho surgiu lá de baixo. Os fogos subiram e
iluminaram todo o céu. Um novo ano começava. Um ano cheio de promessas
não ditas e de amor. Guilherme beijou-me demoradamente e sussurrou:
— Eu também te amo.
172 Fique
Aproximou-se lentamente, sensual, tão perto ao ponto de escutar a sua
respiração. Encostou seus lábios nos meus e, involuntariamente, suspirou.
Peguei em sua nuca e deixei que nossas línguas dançassem. Guilherme
aconchegou-se mais, seu corpo encostava no meu. Ele quase implorava para
que eu o tomasse.
***
Fique 173
beijou meus lábios e me encarou. — É sério... isso só depende de você. Você
tem que se cuidar, Gustavo. Nada de outro susto como esse, ok?!
***
Para Guilherme,
Eu escolhi você. Com todos os seus defeitos e erros. Com aquela cara
amassada que você tem pela manhã e com a sua gargalhada feia que
solta enquanto lhe faço cócegas. E agradeço aos céus, porque você
foi a escolha certa. Você se tornou o meu anjo, meu protetor. Cuida
de mim quando estou doente. Acaricia meu cabelo nas manhãs de
domingo, fazendo-me acordar preguiçoso. Beija o canto dos meus
lábios com carinho depois de um dia exaustivo.
De Gustavo.
174 Fique
Capítulo 12: Você e eu
C
onforme a primeira semana do ano findava-se, Guilherme
continuava a dedicar-se a mim. O rapaz prometeu passar
as férias inteiras da faculdade ao meu lado, ou seja, dois meses com ele só
para mim. Mas as coisas não foram só mil maravilhas, o vazio em meu peito
continuava fazendo-me contorcer de dor. Eu chorava pelos cantos, não
conseguia dormir, com saudade dos meus pais.
Muitas vezes ele não sabia como reagir, apenas sentava-se ao meu
lado, ou acariciava o meu cabelo, mas isso já bastava. Tê-lo por perto era
incrível e indescritível. Mesmo assim, ficou claro que eu precisava de ajuda
profissional. Não estava conseguindo lidar com todas aquelas mudanças e
não queria desistir de viver, nem, muito menos, partir para as drogas.
— Ótimo. Depois do café, ligamos para ela — ele disse satisfeito, servindo
minha xícara com café e entregando dois pães tostados.
Fique 175
— Você vai ir comigo? — perguntei manhoso.
***
Quando lhe perguntam se você está bem... você responde que sim, finge
um meio sorriso e bola para frente. Você se arrasta em vez de andar. Você se
levanta da cama porque é obrigado a trabalhar. Você come para não morrer
de fome. Você vive em um teatro sorrindo quando há plateia, chorando
quando está sozinho.
E como foi difícil olhar aquele rosto brilhando de esperança sem poder
retribuir. Por mais amoroso que eu fosse, estava na cara que eu estava com
problemas. O garoto foi compreensível, ajudou-me a marcar uma consulta
com Mariana e ficou do meu lado o máximo de tempo que pôde.
Porém, faltavam apenas três semanas para ele voltar a São Paulo. As
aulas começariam novamente, eu precisava me esforçar para conseguir
focar na faculdade. Já Guilherme começaria seu tão sonhado TCC. Eu estaria
176 Fique
sozinho. Portanto, precisava de me concentrar para vencer aquela fase ruim
sem a companhia constante de meu namorado.
Fique 177
— Vai ficar tudo bem.
***
A sala de Mariana era azul, muito azul. Duas poltronas apenas, também
azuis. Alguns quadros distribuídos ao longo das quatro paredes e um vaso
de flor em um dos cantos. A psiquiatra estava bem vestida, com uma camisa
preta e uma calça de grife. Seus óculos lhe concediam uma imagem séria e, de
certa forma, carrancuda.
— Noto uma leve confusão. — Ela riu. — Espero que você não esteja lelé
da cuca. Recebo vários aqui — ela sussurrou a última frase, como se alguém
pudesse ouvi-la.
178 Fique
— Ainda bem que as coisas podem mudar. Às vezes a gente se enfia
em uns lugares estranhos mesmo, mas é normal. Eu, quando perdi meu
pai, resolvi largar a faculdade e começar uma banda de rock. Apesar de ser
péssima, aquilo me ajudou por um tempo. Às vezes, é disso de que a gente
precisa.
Então falei sobre como não achava justo eles terem morrido tão jovens,
ainda mais em um acidente como aquele. Ela concordou:
— Sim. — Eu não soube o que falar, a não ser concordar. Ela continuou:
Fique 179
— Pense comigo, se você está indo mal na faculdade, mas está feliz,
então ok. Se sua vida amorosa está um fracasso, mas a sua autoestima está
lá em cima, ok. Se o emprego está ruim, mas você se diverte e dá risada todos
os dias, ok. Se sua conta bancária está quase zerada, mas você se diverte,
arrumando os mais estranhos passatempos, ok. A realidade é que a vida
pode estar péssima, mas podemos ser felizes mesmo com tudo isso. Eu sei
que é injusto você considerar ser feliz enquanto seus pais não estão ao seu
lado. Eu sei disso. Eu também pensei nisso e vivi isso. A minha banda de rock
fracassou não porque eu cantava mal, ela fracassou porque eu estava infeliz.
— Eu não acho injusto ser feliz, apenas não consigo aceitar que eles
partiram antes do tempo — tentei posicionar-me.
— Eu entendo, mas sempre vamos ter alguém do nosso lado que nos
ama. Então viva, saia por aí rindo à toa. Brigue contra todas as atitudes ruins.
Peça seu boy em casamento. Lute, com unhas e dentes, contra a tristeza. Você
é novo, o seu namorado é novo. Vocês podem conquistar muitas coisas boas.
Apegue-se às coisas que ainda estão vivas. Tenha guardado em seu coração
as mais boas lembranças de seus pais. Chore quando precisar, mas não deixe
isso atrapalhar o seu futuro. O futuro é maravilhoso, Gustavo, basta olharmos
para frente e sermos felizes.
— Nós vamos tentar, porque, a partir de hoje, estou junto com você
nessa. — Ela ergueu a mão fechada para o alto, igual à capa do filme do Rocky
Balboa.
***
180 Fique
O queixo de Guilherme caiu quando contei os detalhes da consulta. O
garoto perguntou se eu estava brincando, e, depois de afirmar que não, ele
comentou que eu parecia mais confiante.
Expliquei que sim, porém era algo fraco, apenas para ajudar-me a
dormir e melhorar o meu humor. Guilherme testou-me, questionando se eu
estava bem com o fato de ter que tomar medicação. Óbvio que não era o meu
desejo, porém eu precisava daquilo. Reconhecer isso era um grande passo.
***
— Pode deixar, meu anjo. Em breve estarei indo a São Paulo lhe fazer
uma visita. Obrigado por tudo. — Eu não o soltava do meu abraço.
Fique 181
Uma voz metálica anunciou a última chamada para embarque do voo de
Cuiabá para São Paulo pelo portão D. Guilherme cochichou que era o seu voo,
e estava na hora de ir embora. Eu concordei, triste.
— Eu te amo, Gui.
— Eu te amo, Gu.
***
A vida é injusta, sim! Mas isso não pode ser motivo suficiente para
nos desanimar. Coisas boas também acontecem. O sol nasce todas
as manhãs, fornecendo uma chance para um recomeço, para uma
nova conquista. Ainda que as coisas não deem certo, no outro dia ele
estará lá, de novo, pronto para iluminar a terra.
A morte é injusta, sim! Mas não deve fazer com que a esperança
de um futuro melhor desapareça. O legado é passado de geração
para geração. Os ensinamentos, as coisas boas, o amor! Ele sempre
prevalece. Não importa quanto tempo se passe, o amor sempre
estará lá.
***
182 Fique
A saudade é uma coisa engraçada. Existem horas em que nós sorrimos
ao nos lembrarmos de algo que nos faz falta, como um abraço carinhoso no
final do filme, ou um beijo no final de uma transa. Mas existem horas em que
a saudade dói. Ela machuca quando nos faz lembrar que as coisas boas podem
não acontecer novamente.
Sabe aquele ditado que tantas pessoas falam? Minha cantora predileta
canta uma música sobre isso, sobre aproveitar cada momento bom porque
nunca sabemos quando a tragédia vai chegar. Alegro-me em dizer que
nenhuma outra tragédia aconteceu por enquanto, porém a saudade que eu
sentia dos meus pais era gigantesca, eu nunca os abraçaria novamente.
Fique 183
A vida tem uma forma engraçada de nos mostrar o quanto o amor é
importante. Ela afasta as pessoas de que gostamos e nos obriga a enxergar
que, sem elas, o resto não vale nada. Porque essa foi a minha visão. Do que
adiantaria estar formado sem Guilherme ao meu lado? Do que adiantaria
ganhar dinheiro se eu não fizesse parte de sua vida?
Por mais que essa visão pareça destrutiva, ela me manteve de pé. O amor
me fez olhar além da dor da perda, além de qualquer obstáculo, e me mostrou
o futuro. Futuro este que eu já desenhava. Imaginei nosso casamento, nossos
filhos correndo pela casa e nosso cachorro latindo no quintal.
***
184 Fique
— Olha, Gui, conhecendo as tantas histórias que você já me contou,
torna-se impossível que não se sinta mal com tudo isso.
— Mas uma coisa é certa: vocês são fofos juntos, um completa o outro.
— Próximo passo?
Essa era uma ótima pergunta e eu adoraria saber a resposta, mas Noemi
exagerou ao pressioná-lo dessa forma. Guilherme fechou o semblante e
confessou que não havíamos conversado sobre isso, indagando-a se não era
muito cedo para pensar nesse tipo de coisa.
Fique 185
situação, segundo ela. Guilherme contentou-se em concordar e, depois de
refletir por alguns segundos, manifestou-se:
186 Fique
— Poucos buscam fazer o que realmente amam. Porque música não
dá dinheiro, porque escrever é perda de tempo. A sociedade exige que você
seja perfeito, ganhe dinheiro, seja o melhor, mas o que você ama de verdade?
Hoje, o que move o mundo, é a ganância e a soberba, mas o que deveria mover
é o amor. É por isso que eu torço tanto por você e pelo Gustavo. Vocês dois
são o mais puro exemplo de que a vida não é feita só de dinheiro, ou coisas,
ou conquistas. A vida é feita de pessoas, momentos especiais, um toque, um
abraço, um carinho, uma palavra de incentivo. A vida é, nada mais nada
menos, que o próprio amor em sua forma mais incorruptível.
Fique 187
Capítulo 13: Uma parte
sempre vai faltar
Q
uatro meses haviam se passado desde que os meus pais tinham
falecido. Semanalmente, eu ia ao consultório de Mariana
conversar sobre o assunto. Aos poucos, o sentimento de revolta foi sendo
dissipado, dando lugar para a saudade e o vazio. No fundo, o meu coração
ainda não entendia o motivo de tamanha distância, era estranho imaginar
que nunca os veria novamente.
De qualquer forma, viver sem meus pais mudou a minha rotina e até
afetou a minha saúde, de várias formas. Eu não estava alimentando-me de
forma correta, perdi quase dez quilos. Parei as atividades físicas e diminuí as
horas de estudo, tentando conseguir tempo para trabalhar e cuidar da casa,
afinal, o dinheiro da herança não duraria para sempre.
Fique 189
— Você está vendo apenas o lado negativo das coisas! Tente se focar no
que há de bom. Eu sei que o mundo perdeu um pouco do brilho, mas ainda
existem pessoas que o amam e estão por perto. Samira e Guilherme, por
exemplo — Mariana explicou.
— Eu ainda não sei, recebi uma proposta para fazer mestrado aqui no
Mato Grosso.
— Eu não quero ter que decidir entre a minha carreira e continuar com
Guilherme! — Falei, fazendo uma carranca.
190 Fique
***
Fique 191
— Não estou, mas confesso que eu gostaria muito de fazer esse mestrado.
— Faça! Eu não vou decidir isso por você! — ele disse implacável.
— Não é assim, você ainda pode vir morar comigo — eu lancei a proposta,
na esperança de que a resposta fosse positiva.
— Não é bem assim mesmo, tem a Elis e a minha mãe... elas precisam de
mim.
— Eu também preciso de você, achei que você ficaria feliz com essa
notícia — entristeci-me.
— Você pode se mudar para cá, vamos dar um jeito. — Eu quase chorava.
— Não se faça de vítima! Meus pais estão vivos e precisam de mim. Você
não tem nada aí, só esse sonho estúpido... É... eu não quis dizer isso... — ele
notou o erro em sua fala e tentou amenizar.
Meu coração bateu mais rápido e uma tristeza súbita e profunda invadiu-
me. Desliguei o telefone sem dar uma resposta. Em menos de um minuto, meu
celular vibrou: Guilherme. E assim se seguiu pelas próximas horas.
192 Fique
No fim, ninguém ficaria satisfeito e acabaria por desgastar-se o nosso
relacionamento. Alguém teria que decidir o que fazer e, de alguma maneira,
eu sabia que a escolha seria minha.
O garoto era privilegiado. Ter todo aquele amor por perto era quase
injusto. Sua família tinha suas brigas, é claro, mas, no geral, era unida e,
de certa forma, abençoada por Deus. Isso fez-me tremer, imaginando se
Guilherme tivesse que escolher entre mim e a família. Não havia dúvidas de
que ele optaria pela segunda opção.
Por outro ângulo, caso eu fosse para o interior de São Paulo, seria
possível eu me adaptar àquele mundo tão amoroso e feliz no qual o menino
vivia? Então, pela primeira vez, desde que eu tinha recebido a proposta do
mestrado, eu me senti egoísta e injustiçado.
Senti-me egoísta por querer roubar aquela relação que Guilherme tinha
com a mãe e com a irmã e com todo o restante da família. Porém, senti-me
injustiçado por ele ter tanto e eu não ter nada. Talvez até tenha sentido um
pouco de ciúmes... sim, senti ciúmes. A vida que eu tanto implorei a Deus
estava ali, mas não era minha. Guilherme esbanjava-se daquele amor de que
eu necessitava.
***
Fique 193
Enquanto isso, Guilherme já começava a despedir-se dos amigos. Sua
formatura aproximava-se, então ele resolveu almoçar com o Kléber, que,
ironicamente, também tinha uma decisão para tomar: contar ou não para os
pais que era bissexual. Guilherme o incentivou, dizendo que deveria contar,
pois seria uma sensação incrível de liberdade.
— Nem todos os pais são tão compreensíveis como os seus, Gui — Kléber
rebateu. — Eu queria apresentar meu namorado para eles. Mas eu sinto que
ou escondo isso pelo resto da minha vida ou estrago minha relação com eles.
— Ele diz que eu não posso perder o amor da minha vida por causa de
um possível preconceito que minha mãe pode manifestar.
— Uma parte sempre vai faltar. Não tem jeito. O importante é você sair
de cima do muro e decidir, porque você corre o risco de sua mãe descobrir o
seu namoro por outros métodos, então você pode perder as duas coisas.
194 Fique
— Você tem razão. Acho que vou ter que aprender a lidar com a falta de
algo. Mas já sei o que vou escolher: o amor. Dane-se o preconceito — Kléber
decidiu.
***
— Você vai começar uma nova fase, Gui. Estou muito feliz por você estar
se formando. Vida nova! — Ela bradou, sorrindo.
— Vou deixar tantas coisas para trás, não sei se estou pronto para ir
embora.
— Isso é bom. Isso quer dizer que valeu a pena ter vindo para cá. Você
fez amigos, construiu uma vida, viveu paixões... é normal sentir-se inseguro
com a mudança.
— Não, tudo vai ficar aqui — Noemi falou, apontando para o coração e,
depois, para a cabeça. — Você vai levar tudo com você, todas as lembranças,
risadas e lágrimas... tudo vai estar com você para sempre.
— Eu estou com medo de recomeçar em outro lugar. Por mais que seja
perto de minha família, eu não queria abandonar tudo o que eu vivi aqui. — Os
olhos de Guilherme encheram-se de lágrimas.
Fique 195
— Mais uma vez... Você não vai abandonar nada, Gui. Você vai continuar
crescendo e, dependendo de suas atitudes, conquistando coisas boas. Perto
de sua mãe e de Elis, você vai ter a oportunidade de experimentar mais de
perto esse amor maternal, agora mais maduro e mais certo de quem você é.
196 Fique
— Obrigado por tudo, Noemi. Obrigado por me ajudar a ser feliz — ele
soluçou.
***
De Gustavo,
Noemi, Fernando, Adriana, Mariana, Néri. Seja lá qual for seu nome,
obrigado por nos ajudar e dar a oportunidade para enxergarmos a
vida com um olhar alegre. Devemos a você muito do que temos hoje.
A você, dedico este texto. A você, dedico parte de meu livro e minha
memória.
Para Noemi.
Fique 197
Capítulo 14: Fique
C
oloquei a minha melhor roupa. Rosa vestiu o melhor vestido.
Elis parecia uma princesa. E Guilherme estava maravilhoso, era
a primeira vez que eu o via de social. A gravata azul marinho se destacava e
combinava com o menino. Ele parecia um galã de novela pronto para salvar o
primeiro mocinho que aparecesse a sua frente.
— O que foi, bobo? Você não parou de me encarar desde que saímos de
casa — Guilherme comentou.
— Não chore, amor. Pelo menos, ainda não. Vai estragar a make —
brinquei, passando, gentilmente, o indicador no rosto dele, acariciando-o. Ele
corou ainda mais.
Fique 199
e Pedro também foram prestigiá-lo. Os três já aguardavam sentados na
segunda fileira de poltronas.
Sei que tudo isso parece exagero e um baita de um clichê. Talvez você já
tenha lido algo parecido em outros livros de romances, quem sabe com um
casal heterossexual protagonizando. Mas histórias de amor são assim mesmo,
sempre únicas e idênticas com seus únicos e idênticos desafios, suspenses,
escolhas e felicidades.
200 Fique
agradar o companheiro, a complexas, como ajudar a pessoa que você ama a
se recuperar de uma depressão. Não pense, como eu já pensei, que escolher o
amor em detrimento de outras coisas é errado, porque não é!
***
Fique 201
— Eu estou tão orgulhosa por você, Gui. Não é, filha?
— O que, mamãe?
— Não é verdade que nós estamos felizes por causa do seu irmão? —
Rosa explicou.
— Sim, mamãe. Eu estou muito feliz e gosto muito do meu irmão. — Elis
pulou da cadeira e correu até Guilherme, abraçando-o.
— Amor... — tentei.
— Ok — concordei.
202 Fique
— Vou ser direta com você — ela começou encarando-me enfurecida. —
Eu não vou deixar que o Guilherme perca a vida dele por causa de você.
— Você está surdo ou o quê?! Você vai ficar no Mato Grosso e fazer o seu
mestrado longe do Guilherme. Termine com ele, imediatamente!
— Não importa, eu não vou deixar que ele destrua a vida dele por causa
de você, seu veadinho abusado — ela me xingou.
— Ele é gay, Joana, nunca vai querer ficar com uma mulher — tentei
rebater.
— Então, que fique solteiro, mas não vou deixá-lo perder oportunidades
de trabalho e de ganhar dinheiro por causa dessa escolha terrível.
— Não tem mais. E eu vou ajudá-lo com esse término, já pensei em tudo
— ela disse, apontando para a entrada do salão, por onde um moço acabara
de entrar.
Fique 203
— Isso não é verdade, ele me ama.
— Ama tanto que está com outro e o convidou para a sua festa de
formatura.
— Joana...
Cheguei cansado, ofegante por ter corrido tanto. Eram mais de cinco
quilômetros de distância. Abri o portão, saltei os degraus, passando direto
pelo andar em que Guilherme morava, e subi mais oito andares, até a porta do
terraço. Estava trancada. Chutei-a, sem sucesso. Então, tomei certa distância
e corri, batendo com os ombros e quebrando a frágil fechadura.
204 Fique
ainda de pé, com o coração acelerado pela adrenalina. Pensei na traição de
Guilherme e em todos os momentos juntos que tivemos. Lembrei-me da
morte dos meus pais. Mergulhei num mar profundo de mágoas e tristeza.
Fique 205
— Chega, Guilherme, hoje esse problema será resolvido de uma vez por
todas — Esbravejei.
— Amor, eu não...
— Gustavo, eu te amo. Estou aqui, para você e com você. Nunca passou
pela minha cabeça traí-lo. Eu quero você para sempre, e isso eu posso provar.
— Mãe, preciso que você repita o que nós conversamos nessa manhã.
— Está bem! Você me disse que iria se mudar para o Mato Grosso, para
que o Gustavo fizesse o mestrado. E me perguntou o que eu achava disso.
— Eu respondi que seria ótimo você ir para lá, e que eu o apoiava, pois
206 Fique
eu gosto muito dele e quero que dê tudo certo. Eu não estou entendendo o que
está acontecendo, Guilherme!
— Eu...
— Amor, eu te amo — ele repetiu. — Eu não fiz nada e vou provar assim
que conversarmos com a Joana. Ela vai dizer a verdade.
— Ela não vai, pelo jeito, ela tem planejado isso há semanas.
— Guilherme...
— Eu... eu... não sei. Como você vai largar tudo, para seguir o meu sonho?
Você tem os seus próprios sonhos para buscar.
— O meu único sonho é você. Sem você, todo o resto não faz sentido.
Eu quero ter filhos com você, construir uma casa com você e conhecer outros
países com você. Principalmente, eu quero cuidar de você.
Fique 207
— Você confia em mim? — Ele deu mais um passo, de maneira que, se eu
estendesse a mão, o alcançaria.
208 Fique