Location via proxy:   [ UP ]  
[Report a bug]   [Manage cookies]                

Contos Clarice Lispector

Fazer download em odt, pdf ou txt
Fazer download em odt, pdf ou txt
Você está na página 1de 20

Object 1

ATIVIDADES DE LÍNGUA PORTUGUESA

Conto: A menor mulher do mundo – Fragmento


Clarice Lispector
Nas profundezas da África Equatorial o explorador francês Marcel
Pretre, caçador e homem do mundo, topou com uma tribo de pigmeus
de uma pequenez surpreendente. Mais surpreso, pois, ficou ao ser
informado de que menor povo ainda existia além de florestas e
distâncias. Então mais fundo ele foi.
No Congo Central descobriu realmente os menores pigmeus do
mundo. E — como uma caixa dentro de um caixa — entre os menores
pigmeus do mundo estava o menor dos menores pigmeus do mundo,
obedecendo talvez à necessidade que às vezes a Natureza tem de
exceder a si própria.
Entre mosquitos e árvores mornas de umidade, entre as folhas
ricas do verde mais preguiçoso, Marcel Pretre defrontou-se com uma
mulher de quarenta e cinco centímetros, madura, negra, calada.
"Escura como um macaco", informaria ele à imprensa, e que vivia no
topo de uma árvore com seu pequeno concubino. Nos tépidos humores
silvestres, que arredondam cedo as frutas e lhes dão uma quase
intolerável doçura ao paladar, ela estava grávida.
Ali em pé estava, portanto, a menor mulher do mundo. Por um
instante, no zumbido do calor, foi como se o francês tivesse
inesperadamente chegado à conclusão última. Na certa, apenas por
não ser louco, é que sua alma não desvairou nem perdeu os limites.
Sentindo necessidade imediata de ordem, e dar nome ao que existe,
apelidou-a de Pequena Flor. E, para conseguir classificá-la entre as
realidades reconhecíveis, logo passou a colher dados a seu respeito.
[...]
A fotografia de Pequena Flor foi publicada no suplemento colorido
dos jornais de domingo, onde coube em tamanho natural. Enrolada
num pano, com a barriga em estado adiantado. O nariz chato, a cara
preta, os olhos fundos, os pés espalmados. Parecia um cachorro.
Nesse domingo, num apartamento, uma mulher, ao olhar no jornal
aberto o retrato de Pequena Flor, não quis olhar uma segunda vez
"porque me dá aflição".
Em outro apartamento uma senhora teve tal perversa ternura pela
pequenez da mulher africana que — sendo tão melhor prevenir que
ATIVIDADES DE LÍNGUA PORTUGUESA

remediar — jamais se deveria deixar Pequena Flor sozinha com a


ternura da senhora. Quem sabe a que escuridão de amor pode chegar
o carinho. A senhora passou um dia perturbada, dir-se-ia tomada pela
saudade. Aliás era primavera, uma bondade perigosa estava no ar.
Em outra casa uma menina de cinco anos de idade, vendo o
retrato e ouvindo os comentários, ficou espantada. Naquela casa de
adultos, essa menina fora até agora o menor dos seres humanos. E se
isso era fonte das melhores carícias, era também fonte deste primeiro
medo do amor tirano. A existência de Pequena Flor levou a menina a
sentir — com uma vaguidão que só anos e anos depois, por motivos
bem diferentes, havia de se concretizar em pensamento — levou a
sentir, numa primeira sabedoria, que "a desgraça não tem limites".
Em outra casa, na sagração da primavera, a moça noiva teve um
êxtase de piedade:
— Mamãe, olhe o retratinho dela, coitadinha! Olhe só como ela é
tristinha!
— Mas — disse a mãe, dura e derrotada e orgulhosa — mas é
tristeza de bicho, não é tristeza humana.
— Oh! Mamãe — disse a moça desanimada.
Foi em outra casa que um menino esperto teve uma ideia esperta:
— Mamãe, e se eu botasse essa mulherzinha africana na cama
de Paulinho enquanto ele está dormindo? Quando ele acordasse, que
susto, hein! Que berro, vendo ela sentada na cama! E a gente então
brincava tanto com ela! A gente fazia ela o brinquedo da gente, hein!
A mãe dele estava nesse instante enrolando os cabelos em frente
ao espelho do banheiro, e lembrou-se do que uma cozinheira lhe
contara do tempo de orfanato. Não tendo boneca com que brincar, e a
maternidade já pulsando terrível no coração das órfãs, as meninas
sabidas haviam escondido da freira a morte de uma das garotas.
Guardaram o cadáver num armário até a freira sair, e brincaram com a
menina morta, deram-lhe banhos e comidinhas, puseram-na de castigo
somente para depois poder beijá-la, consolando-a. Disso a mãe se
lembrou no banheiro, e abaixou mãos pensas, cheias de grampos. E
considerou a cruel necessidade de amar. Considerou a malignidade de
nosso desejo de ser feliz. Considerou a ferocidade com que queremos
brincar. E o número de vezes em que mataremos por amor. Então
ATIVIDADES DE LÍNGUA PORTUGUESA

olhou para o filho esperto como se olhasse para um perigoso estranho.


E teve terror da própria alma que, mais que seu corpo, havia
engendrado aquele ser apto à vida e à felicidade. Assim olhou ela, com
muita atenção e um orgulho inconfortável, aquele menino que já estava
sem os dois dentes da frente, a evolução, a evolução se fazendo, dente
caindo para nascer o que melhor morde. "Vou comprar um terno novo
para ele", resolveu, olhando-o absorta. Obstinadamente enfeitava o
filho desdentado com roupas finas, obstinadamente queria-o bem
limpo, como se limpeza desse ênfase a uma superficialidade
tranquilizadora, obstinadamente aperfeiçoando o lado cortês da beleza.
Obstinadamente afastando-se, e afastando-o, de alguma coisa que
devia ser "escura como um macaco". Então, olhando para o espelho do
banheiro, a mãe sorriu intencionalmente fina e polida, colocando, entre
aquele seu rosto de linhas abstratas e a cara crua de Pequena Flor, a
distância insuperável de milênios. Mas, com anos de prática, sabia que
este seria um domingo em que teria de disfarçar de si mesma a
ansiedade, o sonho, e milênios perdidos.
Em outra casa, junto a uma parede, deram-se ao trabalho
alvoroçado de calcular com fita métrica os quarenta e cinco centímetros
de Pequena Flor. E foi aí mesmo que, em delícia, se espantaram: ela
era ainda menor que o mais agudo da imaginação inventaria. No
coração de cada membro da família nasceu, nostálgico, o desejo de ter
para si aquela coisa miúda e indomável, aquela coisa salva de ser
comida, aquela fonte permanente de caridade. A alma ávida da família
queria devotar-se. E, mesmo, quem já não desejou possuir um ser
humano só para si? O que, é verdade, nem sempre seria cômodo, há
horas em que não se quer ter sentimentos:
— Aposto que se ela morasse aqui terminava em briga — disse o
pai sentado na poltrona, virando definitivamente a página do jornal. —
Nesta casa tudo termina em briga.
— Você, José, sempre pessimista — disse a mãe.
— A senhora já pensou, mamãe, de que tamanho será o
nenenzinho dela? — disse ardente a filha mais velha de treze anos.
O pai mexeu-se atrás do jornal.
— Deve ser o bebê preto menor do mundo — respondeu a mãe,
derretendo-se de gosto. — Imagine só ela servindo a mesa aqui de
casa! E de barriguinha grande!
ATIVIDADES DE LÍNGUA PORTUGUESA

— Chega de conversas! — engrolou o pai.


— Você há de convir — disse a mãe inesperadamente ofendida —
que se trata de uma coisa rara. Você é que é insensível.
E a própria coisa rara?
Enquanto isso na África, a própria coisa rara tinha no coração —
quem sabe se negro também, pois numa Natureza que errou uma vez
já não se pode mais confiar — enquanto isso a própria coisa rara tinha
no coração algo mais raro ainda, assim como o segredo do próprio
segredo: um filho mínimo. Metodicamente o explorador examinou com
o olhar a barriguinha do menor ser humano maduro. Foi neste instante
que o explorador, pela primeira vez desde que a conhecera, em vez de
sentir curiosidade ou exaltação ou vitória ou espírito científico, o
explorador sentiu mal-estar.
É que a menor mulher do mundo estava rindo.
Estava rindo, quente, quente. Pequena Flor estava gozando a
vida. A própria coisa rara estava tendo a inefável sensação de ainda
não ter sido comida. Não ter sido comida era que, em outras horas, lhe
dava o ágil impulso de pular de galho em galho. Mas, neste momento
de tranquilidade, entre as espessas folhas do Congo Central, ela não
estava aplicando esse impulso numa ação — e o impulso se
concentrara todo na própria pequenez da própria coisa rara. E então
ela estava rindo. Era um riso como somente quem não fala, ri. Esse
riso, o explorador constrangido não conseguiu classificar. E ela
continuou fruindo o próprio riso macio, ela que não estava sendo
devorada. Não ser devorado é o sentimento mais perfeito. Não ser
devorado é o objetivo secreto de toda uma vida. Enquanto ela não
estava sendo comida, seu riso bestial era tão delicado como é delicada
a alegria. O explorador estava atrapalhado.
Em segundo lugar, se a própria coisa rara estava rindo, era
porque, dentro dessa sua pequenez, grande escuridão pudera-se em
movimento.
É que a própria coisa rara sentia o peito morno do que se pode
chamar de Amor. Ela amava aquele explorador amarelo. Se soubesse
falar e dissesse que o amava, ele inflaria de vaidade. Vaidade que
diminuiria quando ela acrescentasse que também amava muito o anel
do explorador e que amava muito a bota do explorador. E quando este
ATIVIDADES DE LÍNGUA PORTUGUESA

desinchasse desapontado, Pequena Flor não compreenderia por quê.


Pois, nem de longe, seu amor pelo explorador — pode-se mesmo dizer
seu "profundo amor", porque, não tendo outros recursos, ela estava
reduzida à profundeza — pois nem de longe seu profundo amor pelo
explorador ficaria desvalorizado pelo fato de ela também amar sua
bota. Há um velho equívoco sobre a palavra amor, e, se muitos filhos
nascem desse equívoco, tantos outros perderam o único instante de
nascer apenas por causa de uma suscetibilidade que exige que seja de
mim, de mim! que se goste, e não de meu dinheiro. Mas na umidade da
floresta não há desses refinamentos cruéis, e amor é não ser comido,
amor é achar bonita uma bota, amor é gostar da cor rara de um homem
que não é negro, amor é rir de amor a um anel que brilha. Pequena
Flor piscava de amor, e riu quente, pequena, grávida, quente.
O explorador tentou sorrir-lhe de volta, sem saber exatamente a
que abismo seu sorriso respondia, e então perturbou-se como só
homem de tamanho grande se perturba. Disfarçou ajeitando melhor o
chapéu de explorador, corou pudico. Tornou-se uma cor linda, a sua, de
um rosa-esverdeado, como a de um limão de madrugada. Ele devia ser
azedo.
Foi provavelmente ao ajeitar o capacete simbólico que o
explorador se chamou à ordem, recuperou com severidade a disciplina
de trabalho, e recomeçou a anotar. Aprendera a entender algumas das
poucas palavras articuladas da tribo, e a interpretar os sinais. Já
conseguia fazer perguntas.
Pequena Flor respondeu-lhe que "sim". Que era muito bom ter
uma árvore para morar, sua, sua mesmo. Pois — e isso ela não disse,
mas seus olhos se tornaram tão escuros que o disseram — pois é bom
possuir, é bom possuir, é bom possuir. O explorador pestanejou várias
vezes.
Marcel Pretre teve vários momentos difíceis consigo mesmo. Mas
pelo menos ocupou-se em tomar notas e notas. Quem não tomou
notas é que teve que se arranjar como pôde:
— Pois olhe — declarou de repente uma velha fechando o jornal
com decisão — pois olhe, eu só lhe digo uma coisa: Deus sabe o que
faz.
LISPECTOR, Clarice. A menor mulher do mundo. In: Laços de família.
10. ed. Rio de Janeiro. José Olympio, 1978. p. 77-86.
ATIVIDADES DE LÍNGUA PORTUGUESA

Fonte: livro Língua e Literatura – Faraco & Moura – vol. 3 – 2º grau –


Edição reformulada 9ª edição – Editora Ática – São Paulo – SP. p. 247-
251.

Entendendo o conto:

01 – De acordo com o texto, qual o significado das palavras abaixo:


02 – Qual a principal característica física de Pequena Flor?
03 – Como Pequena Flor é vista pelos outros personagens e pela
sociedade?
04 – Quais são os sentimentos de Pequena Flor em relação à sua
condição?
05 – Qual o impacto do encontro de Marcel Pretre com Pequena Flor?
06 – Como a relação entre Marcel Pretre e Pequena Flor se
desenvolve?
07 – Como as diferentes pessoas reagem à notícia sobre Pequena
Flor?
08 – Qual a crítica social presente nas reações das pessoas?
09 – Quais os temas principais do conto?
10 – Qual a importância da natureza no conto?
11 – Qual a mensagem final do conto?
ATIVIDADES DE LÍNGUA PORTUGUESA

Conto: As caridades odiosas


Clarice Lispector
Foi uma tarde de sensibilidade ou de suscetibilidade? Eu passava pela
rua depressa, emaranhada nos meus pensamentos, como às vezes acontece.
Foi quando meu vestido me reteve: alguma coisa se enganchara na minha
saia. Voltei-me e vi que se tratava de uma mão pequena e escura. Pertencia a
um menino a que a sujeira e o sangue interno davam um tom quente de pele.
O menino estava de pé no degrau da grande confeitaria. Seus olhos, mais do
que suas palavras meio engolidas, informavam-me de sua paciente aflição.
Paciente demais. Percebi vagamente um pedido, antes de compreender o seu
sentido concreto. Um pouco aturdida eu o olhava, ainda em dúvida se fora a
mão da criança o que me ceifara os pensamentos.
-- Um doce, moça, compre um doce para mim.
Acordei finalmente. O que estivera eu pensando antes de encontrar o
menino? O fato é que o pedido deste pareceu cumular uma lacuna, dar uma
resposta que podia servir para qualquer pergunta, assim como uma grande
chuva pode matar a sede de quem queria uns goles de água.
Sem olhar para os lados, por pudor talvez, sem querer espiar as mesas
da confeitaria onde possivelmente algum conhecido tomava sorvete, entrei, fui
ao balcão e disse com uma dureza que só Deus sabe explicar: Um doce para
o menino.
De que tinha eu medo? Eu não olhava a criança, queria que a cena,
humilhante para mim, terminasse logo. Perguntei-lhe: que doce você…
Antes de terminar, o menino disse apontado depressa com o dedo:
Aquelezinho ali, com chocolate por cima. Por um instante perplexa, eu me
recompus logo e ordenei, com aspereza, à caixeira que o servisse.
-- Que outro doce você quer? Perguntei ao menino escuro.
Este, que mexendo as mãos e a boca ainda esperava com ansiedade
pelo primeiro, interrompeu-se, olhou-me um instante e disse com delicadeza
insuportável, mostrando os dentes: não precisa de outro não. Ele poupava a
minha bondade.
-- Precisa sim, cortei eu ofegante, empurrando-o para a frente. O menino
hesitou e disse: Aquele amarelo de ovo. Recebeu um doce em cada mão,
levantando as duas acima da cabeça, com medo talvez de apertá-los. Mesmo
os doces estavam tão acima do menino escuro. E foi sem olhar para mim que
ele, mais do que foi embora, fugiu. A caixeirinha olhava tudo:
-- Afinal uma alma caridosa apareceu. Esse menino estava nesta porta há
mais de uma hora, puxando todas as pessoas que passavam, mas ninguém
quis dar.
ATIVIDADES DE LÍNGUA PORTUGUESA

Fui embora, com o rosto corado de vergonha. De vergonha mesmo? Era


inútil querer voltar aos pensamentos anteriores. Eu estava cheia de um
sentimento, gratidão, revolta e vergonha. Mas como se costuma dizer, o Sol
parecia brilhar com mais força. Eu tivera a oportunidade de…E para isso fora
necessário um menino magro e escuro…E para isso fora necessário que
outros não lhe tivessem dado um doce.
E as pessoas que tomavam sorvete? Agora, o que eu queria saber com
autocrueldade era o seguinte: temera que os outros me vissem ou que os
outros não me vissem? O fato é que, quando atravessei a rua, o que teria sido
piedade já se estrangulara sob outros sentimentos. E, agora sozinha, meus
pensamentos voltaram lentamente a ser os anteriores, só que inúteis.
LISPECTOR, Clarice. As caridades odiosas. In: A descoberta do mundo. Rio
de Janeiro. Nova Fronteira, 1984. p. 380-3.
Fonte: livro Língua e Literatura – Faraco & Moura – vol. 3 – 2º grau – Edição
reformulada 9ª edição – Editora Ática – São Paulo – SP. p. 233-4.
Entendendo o conto:
01 – Qual a principal emoção experimentada pela narradora ao longo do
conto?
02 – Como a narradora descreve seus próprios pensamentos antes de
encontrar o menino?
03 – Qual a atitude inicial da narradora em relação ao pedido do menino?
04 – Qual o papel do menino na narrativa?
05 – Como a narradora descreve o menino?
06 – Por que a narradora se sente envergonhada após ajudar o menino?
07 – Qual a diferença entre a caridade da narradora e a caridade esperada
pela sociedade?
08 – Qual o tema central do conto "As caridades odiosas"?
09 – Qual a crítica social presente no conto?
10 – Qual a importância do título "As caridades odiosas"?
ATIVIDADES DE LÍNGUA PORTUGUESA

Crônica social
Clarice Lispector
Era um almoço de senhoras. Não só a anfitrioa como
cada convidada parecia estar satisfeita por tudo estar
saindo bem. Como se houvesse sempre o perigo de
subitamente revelar-se que aquela realidade de garçons
mudos, de flores e de elegância estava um pouco acima
delas - não por condição social, apenas isso: acima
delas. Talvez acima do fato de serem simplesmente
mulher e não apenas senhoras. Se todas tinham direito a
esse ambiente, pareciam no entanto recear o momento
da gafe. Gafe é a hora em que certa realidade se revela.
O almoço estava bem servido, inteiramente longe da
ideia de cozinha: antes da chegada das convidadas
haviam sido retirados todos os andaimes.
O que não impediu que cada uma tivesse que
perdoar um pequeno detalhe, a bem dessa entidade: o
almoço. O detalhe a perdoar de certa mente no seu
penteado, o que lhe dava um desses sobressaltos que
pressagiam catástrofe. Havia dois garçons. O que servia
esta senhora ficou-lhe invisível o tempo todo. E não se
acredita que ele tivesse visto o rosto dessa senhora.
Sem a possibilidade de se conhecerem jamais, suas
relações se estabeleciam através de periódicos toques
no penteado. E ele sentia. Através do penteado sentia-se
ATIVIDADES DE LÍNGUA PORTUGUESA

aos poucos odiado e ele mesmo começou a sentir


cólera.
Supõe-se que cada conviva teve sua pequena veia
de sangue no meio do grande almoço. Cada uma deve
ter tido, por um momento ao menos, esse aviso urgente
e pungente de um penteado que pode desabar -
precipitando o almoço em desastre.
A anfitrioa usava de uma ligeira autoridade que não
lhe ficasse mal. Às vezes, porém, esqueça que a
observavam e tomava expressões um pouco
surpreendentes. Como seja, um ar de cansaço excitado
e de decepção. Os então como em certo momento - que
pensamento vago e angustiado passou-lhe pela cabeça?
- olhou inteiramente ausente a vizinha da direita que lhe
falava. A vizinha lhe disse: "A paisagem lá é soberba!" E
a anfitrioa, com um tom de ânsia, sonho e doçura,
respondeu pressurosa:
- Pois é... é mesmo... não é?
Quem dentre todas aproveitou melhor foi a senhora
X, convidada da honra que, sempre convidadíssima por
todos, já reduzira o almoço a apenas almoçar. Entre
gestos delicados e grande tranquilidade, devorou com
prazer o cardápio francês - mergulhava a colher na boca,
e depois olhava-a com muita curiosidade, resquícios da
infância.
ATIVIDADES DE LÍNGUA PORTUGUESA

Mas em todas as outras convidadas, uma


naturalidade fingida. Quem sabe, se fingissem menos
naturalidade ficassem mais naturais. Ninguém ousaria.
Cada uma tinha um pouco de medo de si própria, como
se se achasse capaz das maiores grosserias mal se
abandonasse um pouco. Não: o compromisso fora o de
tornar o almoço perfeito.
E nem havia como se abandonar, a menos que fosse
admitido o ocasional silêncio. O que seria impossível.
Mal um assunto vinha por acaso e natural, era
truculentamente que todas lhe caíam em cima,
prolongando-o até às reticências. Como todas o
exploravam no mesmo sentido - pois todas estavam a
par das mesmas coisas - e como não ocorreria uma
divergência de opinião, cada assunto era de novo uma
possibilidade de silêncio.
A senhora Z, grande, sadia, com flores no corpete,
50 anos, recém-casada. Tinha o riso fácil e emocionado
de quem casou tarde. Todas pareciam em cumplicidade
achá-la ridícula. O que aliviava um pouco a tensão. Mas
ela era um pouco claramente ridícula demais, não devia
ser essa a sua chave - se a nossa vizinha do lado nos
desse tempo de procurar qualquer chave que fosse. Não
dava tempo: falava.
O pior é que uma das convidadas só falava francês.
O que fazia com que a senhora Y estivesse em
ATIVIDADES DE LÍNGUA PORTUGUESA

dificuldades. A desforra vinha quando a estrangeira dizia


uma daquelas frases que, como resposta, podem ser
exatamente repetidas, apenas com uma mudança de
entonação. "Il n'est pas mal", dizia a estrangeira. Então a
senhora Y, segura de que estaria falando certo, repetia
enfim a frase, bem alto, cheia de espanto e do prazer de
quem pensou e descobriu: "Ah, il n'est pas mal, il n'est
pas mal." Pois, como disse outra convidada sem ser
estrangeira e a propósito de outra coisa: "C'est le tan qui
fait la chamon."
Quanto à senhora K., vestida de cinza, estava
sempre disposta a ouvir e a responder. Sentia-se bem
em ser um pouco apagada. Descobriria que sua melhor
era a da discrição e usava-a com certa abundância.
"Desse modo de ser que arranjei ninguém me tira",
diziam seus olhos sorridentes e maternais. Arranjara
mesmos sinais para a sua discrição, como a história dos
espiões que usavam distintivos de espiões. Assim,
vestia-se claramente com roupas chamadas discretas.
Suas joias eram francamente discretas. Aliás, as
discretas formam uma corporação. Elas se reconhecem
a um olhar, e, louvando uma a outra, louvam-se ao
mesmo tempo.
A conversa começou sobre cachorros. A conversa
final, na hora do licor, não se sabe por que tendência ao
círculo perfeito, tratou de cachorros. A doce anfitrioa
tinha um cão chamado José. O que nenhuma da
ATIVIDADES DE LÍNGUA PORTUGUESA

corporação das discretas faria. O cachorro delas se


chamaria Rex, e, ainda assim, em algum momento
discreto, elas diriam: "Foi meu filho quem deu o nome."
Na corporação das discretas usa-se muito falar dos filhos
como de adoráveis tiranos das casas. "Meu filho acha
este meu vestido horrível." "Minha filha comprou
entradas para o concerto mas acho que não vou, ela vai
com o pai." De um modo geral uma dama pertencente à
corporação das discretas é convidada por causa de seu
marido, homem de altos negócios, ou de falecido pai,
provavelmente jurista de nome.
Levantam-se da mesa. As que dobram ligeiramente o
guardanapo antes de se erguer é porque assim foram
ensinadas. As que o deixam negligentemente largado
têm uma teoria sobre deixar guardanapos
negligentemente largado.
O café suaviza um pouco a copiosa e fina refeição,
mas o licor mistura-se aos vinhos anteriores, dando uma
vaguidão arfante às convidadas. Quem fuma, fuma:
quem não fuma, não fuma. Todas fumam. A anfitroa sorri,
sorri, cansada. Todas enfim se despedem. Com o resto
da tarde estragada. Umas voltam para a casa com a
tarde partida. Outras aproveitam o fato de já estarem
vestidas para fazer alguma visita. Só Deus sabe, se não
de pêsames. Terra é terra, come-se, morre-se.
ATIVIDADES DE LÍNGUA PORTUGUESA

De um modo geral o almoço foi perfeito. Será preciso


retribuir em breve. Não.

Entendendo o texto

01. Qual é a atmosfera predominante descrita na crônica


durante o almoço das senhoras?
02. Como as convidadas parecem se comportar durante
o almoço?
03. Qual é o papel da anfitriã nesse contexto social?
04. Como a crônica retrata as relações entre as
convidadas e os garçons?
05. Qual é a ironia presente na maneira como as
senhoras interagem entre si durante o almoço?
06. Como a crônica retrata a preocupação das senhoras
com a aparência e o comportamento social?
07. Qual é o contraste entre a convidada especial,
senhora X, e o restante das convidadas?
08. Que tipo de conversas predominam durante o
almoço?
09. Como a crônica utiliza detalhes como a maneira de
dobrar os guardanapos para transmitir nuances sociais?
10. Qual é a mensagem central transmitida pela crônica
em relação às convenções sociais e à natureza
humana?
ATIVIDADES DE LÍNGUA PORTUGUESA

Crônica: Vitória nossa


Clarice Lispector
O que temos feito de nós e a isso considerado vitória nossa de
cada dia?
Não temos amado, acima de todas as coisas. Não temos aceito o
que não se entende porque não queremos ser tolos.
Temos amontoado coisas e seguranças por não nos termos, nem
aos outros.
Não temos nenhuma alegria que tenha sido catalogada.
Temos construído catedrais e ficado do lado de fora, pois as
catedrais que nós mesmos construímos tememos que sejam
armadilhas.
Não nos temos entregue a nós mesmos, pois isso seria o começo
de uma vida larga e talvez sem consolo.
Temos evitado cair de joelhos diante do primeiro que por amor
diga: teu medo.
Temos organizado associações de pavor sorridente, onde se
serve a bebida com soda.
Temos procurado salvar-nos, mas sem usar a palavra salvação
para não nos envergonharmos de ser inocentes.
Não temos usado a palavra amor para não termos de reconhecer
sua contextura de amor e de ódio.
Temos mantido em segredo a nossa morte.
Temos feito arte por não sabermos como é a outra coisa.
Temos disfarçado com amor nossa indiferença, disfarçado nossa
indiferença com a angústia, disfarçando com o pequeno medo o grande
medo maior.
Não temos adorado, por termos a sensata mesquinhez de nos
lembrarmos a tempo dos falsos deuses.
ATIVIDADES DE LÍNGUA PORTUGUESA

Não temos sido ingênuos para não rirmos de nós mesmos e para
que no fim do dia possamos dizer “pelo menos não fui tolo”, e assim
não chorarmos antes de apagar a luz.
Temos tido a certeza de que eu também e vocês todos também, e
por isso todos sem saber se amam.
Temos sorrido em público do que não sorrimos quando ficamos
sozinhos.
Temos chamado de fraqueza a nossa candura.
Temo-nos temido um ao outro, acima de tudo.
E a tudo isso temos considerado a vitória nossa de cada dia…

Entendendo o texto

01. O que a crônica "Vitória Nossa" de Clarice Lispector destaca como


algo que consideramos vitória em nosso cotidiano?
02. Segundo a crônica, qual é a razão pela qual evitamos cair de
joelhos diante do primeiro que, por amor, nos diz "teu medo"?
03. Quais são algumas das coisas que temos feito para evitar
reconhecer a verdadeira natureza de nossos sentimentos, como o
amor e o ódio?
04. De acordo com a crônica, por que construímos catedrais, mas
ficamos do lado de fora temendo que se tornem armadilhas?
05. Como a crônica aborda a relação entre a arte e a falta de
conhecimento sobre "a outra coisa"?
06. Qual é a atitude destacada na crônica em relação à morte, e por
que isso é mencionado como algo que temos mantido em segredo?
07. Como a crônica aborda a ideia de reconhecer a inocência,
especialmente em relação ao uso da palavra "salvação"?
ATIVIDADES DE LÍNGUA PORTUGUESA

Conto: Os bichos da minha casa – Fragmento


Clarice Lispector.
Antes de começar, quero que vocês saibam que meu
nome é Clarice. E vocês, como se chamam? Digam baixinho o
nome de vocês e o meu coração vai ouvir.
Peço que leiam esta história até o fim. Vou contar umas
coisas: minha casa tem bichos naturais. Bichos naturais são
aqueles que a gente não convidou nem comprou. Por exemplo,
nunca convidei uma barata para lanchar comigo.
s a Deus, porque tenho medo e nojo deles. Quase todas as
mães têm medo de rato. Os pais não: até gostam porque se
divertem caçando e matando esse bicho que detesto. Vocês
têm pena de rato? Eu tenho porque não é um bicho bom pra
gente amar e fazer carinho. Vocês fariam carinho num rato? Vai
ver vocês nem tem medo e em muitas coisas são mais
corajosos do que eu.
Tenho um amigo que, quando era menino, criou um rato
branco. Fiquei com tanto nojo que só quero apertar a mão de
meu amigo quando passar o susto. Seu rato era, na verdade,
uma rata e se chamava Maria de Fátima.
Maria de Fátima morreu de um modo horrivelzinho (eu
digo horrivelzinho porque no fundo estou bem contente): um
gato comeu ela com a rapidez com que comemos um
sanduíche
Como eu ia dizendo, os bichos naturais de minha casa
não foram convidados. Apareceram assim, sem mais nem
menos.
Por exemplo: tenho baratas. E são baratas muito feias e
muito velhas que não fazem bem a ninguém. Pelo contrário,
elas até roem a minha roupa que está no armário. [...]
Barata é outro bicho que me causa pena. Ninguém gosta
dela, e todos querem matá-la. Às vezes o pai da criança corre
ATIVIDADES DE LÍNGUA PORTUGUESA

pela casa toda com um chinelo na mão, até pegar uma e bate
com o chinelo em cima até ela morrer. Tenho pena das baratas
porque ninguém tem vontade de ser bom com elas. Elas só são
amadas por outras baratas. Não tenho culpa: quem mandou
elas virem? Eu só convido os bichos que eu gosto. E, é claro,
convido gente grande e gente pequena.
Sabem de uma coisa? Resolvi agora mesmo convidar
meninos e meninas para me visitarem em casa. Vou ficar tão
feliz que darei a cada criança uma fatia de bolo, uma bebida
bem gostosa, e um beijo na testa.
Outro bicho natural de minha casa é... adivinhem!
Adivinharam? Se não adivinharam não faz mal, eu digo a
vocês. O outro bicho natural de minha casa é a lagartixa
pequena. São engraçadas e não fazem mal nenhum. Pelo
contrário: elas adoram comer moscas. E mosquitos, e assim
limpam minha casa toda. [...]
O que eu não entendo é o paladar horrível que a lagartixa
tem por moscas e mosquitos. Mas é claro: como não sou
lagartixa, não gosto de coisas que ela gosta, nem ela gosta de
coisas que eu gosto. [...]
Agora vou falar de bichos convidados, igual ao meu
convite para vocês. Às vezes não basta convidar: tem-se que
comprar.
Por exemplo, convidei dois coelhos para morar com a
gente e paguei um dinheiro ao dono deles. Coelho tem uma
história muito secreta, quero dizer, com muitos segredos.
Eu até já contei a história de um coelho num livro para
gente pequena e para gente grande. Meu livro sobre coelhos
se chama assim: O Mistério do Coelho Pensante. Gosto muito
de escrever histórias para crianças e gente grande. Fico muito
contente quando os grandes e os pequenos gostam do que
escrevi.
ATIVIDADES DE LÍNGUA PORTUGUESA

Se vocês gostam de escrever ou desenhar ou dançar ou


cantar, façam porque é ótimo: enquanto a gente brinca assim,
não se sente mais sozinha, e fica de coração quente.
Clarice Lispector. A mulher que matou os peixes. 13. Ed. Rio de
Janeiro: Rocco, 1999. (Fragmento adaptado).
Fonte: Coleção Desafio Língua Portuguesa – 5° ano – Anos
Iniciais do Ensino Fundamental – Roberta Vaiano – 1ª edição –
São Paulo, 2021 – Moderna – p. MP090-MP093.
Entendendo o conto:

01 – Leia três vezes as palavras do quadro abaixo para


aprimorar sua leitura.
Horrivelzinho – sozinha – contrário – segredos – lagartixa –
rapidez – carinho – sanduiche – secreta – engraçadas –
chinelo – corajosos.
a) Leia em voz alta estas palavras, observando as letras
destacadas.
Lagartixa – chinelo – sanduiche.
· O que essas palavras têm em comum?
· O que elas têm de diferente?
b) Agora, observe a escrita destas palavras, observando as
letras destacadas.
Chinelo – sanduiche – sozinha.
· O que essas palavras têm em comum?
c) Volte ao quadro acima em negrito e circule outras palavras
com dígrafos formados com a letra h na escrita.
02 – Logo no início do texto, percebe-se a intenção da
narradora de estabelecer um diálogo com o leitor. Copie um
trecho que comprove essa afirmação.
ATIVIDADES DE LÍNGUA PORTUGUESA

· Em sua opinião, qual é a importância desse recurso


para a construção do texto?
03 – A narradora afirma que gosta de escrever para crianças e
gente grande. Para quem você acha que ela escreveu essa
história? Por quê?
04 – Nesse texto, a narradora conta para o leitor a diferença
entre ter bichos naturais e bichos convidados.
a) Pinte de azul os bichos naturais e de verde os bichos
convidados.
Rato – barata – cachorro – gato – passarinho – pulga – coelho
– hamster – formiga – lagartixa.
b) Explique a diferença entre esses tipos de bicho.
c) Você tem ou conhece alguém que tenha bichos convidados?
Conte sobre eles.
05 – Ratos e baratas provocam na narradora três sensações:
medo, nojo e pena. Como ela explica essas sensações
contraditórias?
06 – Qual a vantagem, segundo o texto, de se ter lagartixa
em casa?
07 – Por que você acha que a narradora convidou dois
coelhos para morar com ela?

Você também pode gostar