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Por uma comunidade Atlântico Sul

For a South Atlantic Community

Keli Cristina Pacheco1

Abstract: The short story “O enterro da bicicleta” (“The burial of the bicycle”), by Mozambican writer Nelson
Saúte, in the book O rio dos bons sinais (2007) (The river of good signs), makes use of a metaphor that allows us
to think about the specificity of a country that went through a long and painful colonial process and sees itself
precariously facing the need to create contacts with the outside world. The narrative foregrounds the story of a
congressman in an African village who, devoured by a lion, evinces the fragility of the contact of this community
with the outside world. Just like Kafka’s short story “An imperial message”, we have the theme of
incommunicability, or the need for certain preconditions for a minimal communication, notably when the outside
is expressively stronger, establishing an unequal relation. I use a reading of “O enterro da bicicleta” to explore
a debate around the literature produced in a peripheral context, so as to think about a South Atlantic
community, as proposed by Alfredo Cesar Barbosa de Melo (2016), who locates in the contact between
Brazilian and African literatures a form of deviation from the north/south power asymmetries. However, the
short story itself can lead us to problematize and evince the ambiguous role of the literature produced in such
contexts, ambiguities identified by Edward Said, when he discusses the literature produced by exiles, and by
Giorgio Agamben, when he examines the literature of/as testimony.
Keywords: Portuguese-language literatures, Mozambican literature, Nelson Saúte, (in)commuicability,
testimony.

Resumo: O conto “O enterro da bicicleta”, do moçambicano Nelson Saúte, do livro O rio dos bons sinais
(2007), traz uma metáfora que nos permite pensar a especificidade de um país que passou por um longo e
doloroso processo colonial e que se vê, precariamente, diante da necessidade de criar contatos com o exterior. A
narrativa coloca em primeiro plano a história de um deputado em uma aldeia na África que, devorado por um
leão, deixa evidente a fragilidade do contato dessa comunidade com o exterior. Tal como o conto de Franz
Kafka, “Uma mensagem imperial”, temos o tema da incomunicabilidade, ou da necessidade de certas condições
prévias para que esta minimamente se dê, notadamente quando o fora é expressivamente mais forte,
estabelecendo uma relação desigual. Pretendo, a partir da leitura de “O enterro da bicicleta”, explorar um debate
em torno da literatura produzida em contexto periférico para pensar em uma comunidade Atlântico Sul, tal como
propõe Alfredo Cesar Barbosa de Melo (2016), quando localiza no contato entre as literaturas brasileira e
africanas uma forma de desvio das assimetrias de poder norte/sul. Porém, o próprio conto pode nos levar a
problematizar e evidenciar o papel ambíguo da literatura produzida nesses contextos, ambiguidades estas
apontadas por Edward Said ao tratar da literatura produzida por exilados, e por Giorgio Agamben ao abordar a
literatura de/como testemunho.
Palavras-Chave: literaturas de língua portuguesa, literatura moçambicana, Nelson Saúte, (in)comunicabilidade,
testemunho.

1 Introdução
René Wellek, no final de década de 1950, ao escrever um texto sobre a literatura
comparada, aborda seu contexto de escrita, a crise permanente no mundo após 1914. Wellek,
justamente após o fim da segunda guerra mundial, quando todas as catástrofes se tornaram
visíveis, ergue-se, solicitando e sugerindo uma saída para “A crise da literatura comparada”
(título de seu ensaio).
Das lições que lega, há um pedido de uma não redução da disciplina de literatura às
balizas nacionais, esta já adotada em muitos currículos de Letras, e um pedido, aos estudiosos
da área de literatura, de menos senso de propriedade, uma vez que Wellek acredita no olhar
do não especialista como sendo fonte de uma possível sensibilidade e maior raio de ação,
“cuja perspectiva mais ampla e discernimento mais agudo podem muito bem suprir anos de
intensa dedicação” (1994, p. 116).

1
Doutora em Literatura pela UFSC. Professora do departamento de Estudos da Linguagem e do Programa de
Pós-graduação em Estudos da Linguagem na Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG). E-mail:
<kelipacheco@hotmail.com>.

184
Rita Chaves (2006), entre outros pesquisadores, já escreveu sobre a presença da
literatura brasileira, principalmente a partir de 1940, na formulação do imaginário nacionalista
africano. A pesquisadora é cuidadosa e evita cair na armadilha da fonte-influência ao afirmar
que se trata de um diálogo entre estas literaturas, e que tal diálogo não nos autoriza

[...] a atribuir ao repertório brasileiro um papel maior do que o que efetivamente foi
seu, isto é, não devemos acreditar que ele alterou o quadro cultural dos países
africanos, mas apenas reconhecer a importância dessa relação que se instaurou e a
sua potencialidade no processo de dinamização das reflexões que internamente
ganhavam força. (CHAVES, 2006, p. 43)

Salvato Trigo (1984), teórico português, menos de 10 anos após as descolonizações


dos países africanos de língua portuguesa, também reconhece, principalmente nas décadas de
30 e 40, a presença considerável da literatura brasileira nos países africanos, que têm a língua
portuguesa como oficial, vendo nela uma forma de o colonizado afirmar a sua diferença ante
o sistema estético-político que o dominava. Porém, diferentemente de Rita Chaves, que
solicita que conheçamos a literatura africana por conta da dívida histórica com os povos que
espoliamos, Salvato Trigo percebe que estudar uma literatura é de certa forma estudar a outra,
porém a brasileira ainda pouco reconhece a presença das literaturas africanas em seu próprio
corpo.
Mais recentemente, Alfredo de Melo (2016) problematiza o eurocentrismo da visão da
origem da instituição literatura ao observar que

Em seu recente Enlightenment Orientalism, Srinivas Aravamudan argumenta que


não se pode explicar a ascensão do romance na Europa sem levar em conta as
narrativas orientais (oriental tales) que circulavam pelo Velho Continente no século
18. Aravamudan vai de encontro às versões exclusivamente europeias da origem do
romance. (MELO, 2016, p. 53)

Antes ainda, em relação à forma narrativa do romance, acrescentamos que Walter


Benjamin, em “O narrador”, já identificava a forma romanesca como testemunho da morte do
primitivo narrador oral, presente nas mais diversas tradições, deixando movediço, de certa
forma, o espaço de surgimentos do romance, ou melhor, sua possibilidade de pertença a uma
única tradição (Ver BENJAMIN, 1994).
Com essa problematização genealógica, Melo fundamenta seu olhar destituído de
hierarquias entre as literaturas, e vê o estudo e ensino das literaturas africanas em língua
portuguesa como um meio de desestabilizar a dualidade travejada pelas narrativas forjadas
pelo trabalho africano e a história ocidental desterrada nas Américas (ou oralidade x escrita),
além de ensejar o surgimento de uma reflexão sobre a cultura brasileira a partir do que
nomeará de “comunidade Atlântico Sul”2:

com todas as suas precariedades -, mostrando as imensas semelhanças que unem


brasileiros e africanos, com seus vários problemas, encruzilhadas ideológicas e
potencialidades. Certamente tal abordagem engendraria no público leitor brasileiro
empatia por um continente que foi historicamente subalternizado e marginalizado no
processo histórico e do controle de sua narrativa acerca dessa história. (Idem, p. 53-
54)

2
Apesar de Moçambique ser banhado pelo Oceano Índico, e no presente artigo estudaremos um escritor
moçambicano, entendo que a proposta de Melo inclui toda literatura de escrita portuguesa produzida em África,
assim tomo a região mais ao oriente para começo de conversa.

185
A partir de tais pressupostos, neste artigo, pretendo realizar uma leitura do conto “O
enterro da bicicleta”, de Nelson Saúte 3 , para explorar um breve debate em torno das
diferenças da literatura produzida em países periféricos de língua portuguesa.

2 O enterro da literatura
O conto, segundo do livro Rio dos bons sinais, publicado em 2007 pela editora
brasileira Língua Geral,4 inicia com uma morte. Aliás, essa é a temática premente no livro,
repleto de enterros, que mais apontam para um desencontro com a Morte, como irá confirmar
Mia Couto em texto da contracapa: “os mortos permanecem vivos, eternos sussurradores de
luzes e lendas” (COUTO apud SAÚTE, 2007, contracapa). São mortes irresolutas, pois
lançam questões que ficam em aberto, haja vista que “o final de uma vida não oferece sua
unidade e seu sentido completo; pelo contrário, nesse ponto pode estar o início de uma
interrogação sobre uma delimitação difícil: o que ao longo dela foi importante?”
(SEDLMAYER & GINZBURG, 2012, p. 8). Em “O enterro da bicicleta” não é diferente,
inicia com a morte de um deputado, “única personalidade carismática” da aldeia. A morte
assim logo estabelece a exigência da narrativa:

Não era a primeira vez que empreendia aquela viagem de bicicleta até à vila, onde
apanhava o machimbombo [ônibus] que o levava ao distrito e, de lá, para a capital
da província, de onde saía um boeing para a capital do país, onde se situava o
parlamento. Nenhum dos habitantes daquelas terras alguma vez ouvira falar de
leões. Falava-se, sim, de crocodilos que, não raro, devoram crianças desprevenidas
que tentavam atravessar para a margem adversa do rio. Contava-se inclusive a
história de uma mãe que velou a cabeça do filho, dado que o corpo fora engolido por
um crocodilo no rio. Aquele leão foi o primeiro de que se ouviu falar, e
provavelmente, ouvir-se-á falar por muitos anos. Parece que o deputado ainda
revelou alguma bravura quando se confrontou com a situação. Não fugiu, olhou
frontalmente o anima, sem medo da sua juba e dos seus rugidos. Mas não estavam
em igualdade de circunstâncias: as forças e as armas eram tremendamente desiguais.
O leão levou a melhor, tanto mais que do homem apenas restou a bicicleta retorcida
e alguns farrapos da sua roupa. A aldeia parou durante dias para os seus funerais.
(SAÚTE, 2007, p. 23-24)

O périplo é imenso para sair da aldeia: estes corpos que vivem na aldeia são a aldeia, e
o deputado, representante daquela comunidade isolada, dá testemunho da aldeia ao mundo. A
sua morte fica em suspensão por conta de uma dupla ausência: do cadáver e do corpo que
daria o testemunho do acontecimento fatídico, restando apenas suposições, como a seguinte:
“parece que o deputado ainda revelou certa bravura quando se confrontou com a situação”,
etc.
Aos poucos, o narrador sugestiona que o deputado não comunica a experiência total
daquela comunidade, haja vista sua origem e seu modo de vida:

Era um homem predestinado, indubitavelmente: não teve uma infância como as


outras, cedo os seus ombros carregavam a pátria. Não se falava, como os outros

3
Autor moçambicano, Nelson Saúte (1967) é jornalista, escritor/editor e professor de Ciências da Comunicação
em Maputo, viveu os anos de guerra em Moçambique na década de 1980, tinha apenas 07 anos quando o país se
tornou independente. Publicou poesias, contos e romances, bem como coletâneas de contos e poesias de autores
moçambicanos.
4
O conto que aqui motivou o estudo também foi publicado na coletânea Contos Africanos dos países de língua
portuguesa, em 2008, com seleção e organização de Rita Chaves. Essa coletânea conta com autores que
escrevem em português das mais diversas regiões da África, são eles: Albertino Bragança, Boaventura Cardoso,
José Eduardo Agualusa, Luandino Vieira, Luís Bernardo Honwana, Mia Couto, Odete Costa Semedo, Ondjaki e
Teixeira de Sousa.

186
meninos, de uma pueril passagem de pastor de gado. Fora professor, isso sim, dizia-
se com ênfase, uma profissão nobre. (Idem, p. 25)

O deputado envolveu-se em atividades políticas, lutou pela independência e retornou


para a aldeia: “Na verdade, aquela aldeia já não era a aldeia que deixara” (Idem, p. 25), casou-
se, transitava da aldeia para a capital, hospedava-se em hotel do partido, andava em um Lada
– carros protocolares muito usados nos países africanos, por conta do apoio da União
Soviética à independência –, com motorista, que o pegava e deixava no parlamento, enfim
nada lhe faltava, “mesmo quando lá fora tudo escasseava. Era tempo de bichas [filas] e do
cartão do racionamento” (Idem, p. 26).
Na aldeia, não havia automóvel: ao chegar de bicicleta, o deputado era recebido com
festejos, e quando mais tarde encontrava personalidades locais, contava entusiasticamente
sobre as vitórias da revolução. E o contraste de sua vida com a da população é enfim
evidenciado:

O homem era o orgulho daquela remota aldeia, que vivia das machambas [parcela
de terra para cultivo], de algum gado, mais do que nada. A água escasseava, mas
havia um rio não muito longe, pelo qual as mulheres percorriam aqueles quilômetros
com bidões à cabeça. As casas eram de adobe [tijolo de argila, palha e capim seco],
muitas delas caiadas, hieráticas. Na varanda uma cama feita de palha, onde os
homens se deitavam na modorra das tardes do tempo do calor, havia ali um posto
sanitário, muito precário, onde a velha parteira atendia a todo tipo de doentes. A
árvore mais frondosa tinha uma gigante copa que fazia uma sombra enorme, capaz
de albergar crianças que aprendiam acocoradas. Era uma aldeia pobre, mas os seus
habitantes eram felizes. O deputado gostava de o referir nos encontros em que
participava quando relatava os progressos da sua terra. (Idem, p. 28, grifo nosso)

A descrição realça a oposição entre o povo e seu representante, contudo, o narrador


ameniza a miséria e os sofrimentos da aldeia ao afirmar, junto ao deputado, que os habitantes
eram felizes. Tal afirmação ainda é agravada pela menção da suposta felicidade em meio a
relatos de “progressos de sua terra”. O efeito se dá através da descrição intercalada por
adjetivos compensatórios que mascaram/revelam a miséria da aldeia.
O deputado figura assim como um meio, uma forma, de conferir uma aura de
dignidade a uma experiência indigna, o ethos dessa população esquecida, exilada, à margem
da capital nacional. Edward Said, ao tratar da literatura produzida por exilados, afirma que a
literatura confere dignidade ao exílio, “uma condição criada para negar a dignidade – e à
identidade às pessoas” (SAID, 200, p. 48). O narrador, como vimos, faz isso em linguagem,
aproximando-se da personagem do deputado que, de igual modo, em suas viagens ao exterior
da aldeia confere certa dignidade àquela comunidade, ou seja, seu testemunho nunca será
total, tal como escreve Giorgio Agamben, em O que resta de Auschwitz, quando revela que o
testemunho total não tem língua, estando na imagem do menino judeu sem nome que morre
pouco tempo depois e só existe no testemunho de Primo Levi. Nesse sentido está o papel
ambíguo da representatividade, tanto do deputado quanto do próprio narrador do conto: ao
mesmo tempo em que dão testemunho de não vidas, esse testemunho nos chega como uma
versão, espelho que projeta a imagem reversa; nesse caso, podemos pensar que, de algum
modo, a literatura produzida em contexto periférico dá um ar de dignidade para uma situação
indigna.
A bicicleta velha retorcida é sintomática imagem, elo de comunicação com o fora que
irá sobrar, elo imprescindível, embora invisível ao exterior, elo frágil, fundamento do contato
e que, caso visto, poderia dar um testemunho da indignidade das vidas representadas pelo
deputado. (Metáfora do que seria a literatura em contexto periférico?) É essa bicicleta não
vista, agora retorcida, que então os moradores da aldeia decidem enterrar.

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Os madodas [indivíduos maduros, dignos de respeito] foram unânimes: um funeral
condigno impunha-se. Mas antes de tudo era preciso resgatar o que sobrara do
infausto encontro entre o homem e o animal naquela viagem fatídica do deputado.
As notícias não eram animadoras. Só havia a bicicleta para testemunhar a violência
da refrega. Mesmo a bicicleta, havia quem asseverasse, já vinha muito desfigurada.
A peleja tinha sido de meter medo. Mas tinha que haver um funeral. Porém, não
havia corpo para enterrar. (SAÚTE, 2007, p. 29)

A população começa a pensar no evento, qual afinal seria o funeral merecido para “o
deputado da Nação”? E a (in)comunicabilidade começa:

- Ele merece um funeral de Estado!


Quase ninguém entendeu aquela frase desabrida, aquela enfática proclamação. As
idéias sucediam-se:
- Temos que construir um mausoléu.
Também ninguém sabia o que significava aquela palavra que encerrava uma
evidente grandiloqüência. Apenas o professor, que era uma lenda da aldeia, se
recordava do significado daquela estranha coisa que tinha sido invocada. Ele
explicaria complicando:
- Mausoléu é um sepulcro suntuoso.
Mais confusão [...]. (Idem, p. 30)

A comunicação não se dá; na discussão, fica evidente que a linguagem (compreendida


por poucos) não possui traduzibilidade possível para a realidade da aldeia: novamente a
imagem da condição indigna dos habitantes à margem da possibilidade de imaginar, de criar,
ou seja, de materializar a imaginação. É significativo quando, ao fim, alguém fala em
depositar o cadáver/bicicleta numa cripta, e surge a questão: “- Essa coisa de cripta faz-se
com adobe e se cobre com capim?” (Idem, p. 31).
Assim, a aldeia se prepara belamente para receber as figuras importantes que o
deputado conhecia. Uma enorme urna disforme, entre cânticos, elogios, chega carregada e é,
enfim, enterrada. Ninguém vê a bicicleta. Após o enterro acontece o tradicional ritual da
lavagem de mão na casa do defunto, e o ritual do chá, porém, no momento de despedida dos
forasteiros, entra em cena um misterioso mensageiro:

De repente, surgiu um burburinho e um mensageiro. O homem fizera tudo para


chegar antes dos funerais da defunta bicicleta. Porém, houve percalços que o
atrasaram pelo caminho. A sua volta estavam apenas os homens que haviam
comparecido àquele último ritual de despedida do deputado. As mulheres
mantinham-se num grupo à parte. O mensageiro caiu fatigado, sempre com a língua
de fora. Ainda tentaram reanimá-lo. Estava morto antes de revelar o que lhe trouxera
de tão longe. (Idem, p. 34)

Com essa passagem “O enterro da bicicleta” se encerra. É possível ver nela um


diálogo em absconso com o conto “Uma mensagem imperial”, de Franz Kafka, em que um
imperador moribundo sussurra uma mensagem ao súdito, e o despacha até “você, o só, o
súdito lastimável, a minúscula sombra refugiada na mais remota distância do sol imperial”
(KAFKA, 1999, p. 41). O mensageiro, incansável, atravessa todos os obstáculos que lhe
surgem no caminho para chegar à capital do mundo, porém ali ninguém consegue passar,
“muito menos com a mensagem de um morto” (Idem, p. 42). No conto de Saúte, o
mensageiro retorna, porém em atraso, como um signo equivalente à bicicleta enterrada, o
mensageiro morto expressa e reafirma a incomunicabilidade com o exterior. Em Kafka, o
mensageiro também comunica a impossibilidade de comunicar, ou a incomunicabilidade da
literatura, para outro externo à narrativa, o leitor, que ao final apenas imagina essa mensagem

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inalcançável: “Você no entanto está sentado junto à janela e sonha quando a noite chega”
(Idem, p. 42).
A temática da (in)comunicabilidade da literatura, ou da capacidade de
transmissibilidade do testemunho através da literatura, parece também ser preocupação de
Saúte. A bicicleta retorcida, veículo que dá possibilidade de futura comunicação das
subjetividades invisibilizadas, é ambígua, uma vez que dá testemunho da aldeia não às regiões
externas, que não a veem, nem quando “morta”, mas ao leitor, esse terceiro que sempre
recebe a mensagem en retard e duvidando dela, pois ela habita o espaço da ficção e parte da
voz de um narrador letrado, distante da aldeia. De certa forma, podemos analogamente
perceber a literatura em língua portuguesa na metáfora da bicicleta que, em um país de
múltiplos grupos etnolinguísticos, figura como “instrumento do progresso”, “expressão da
soberania nacional” e “tragicamente, uma língua minoritária”, 5 como afirma Luís Bernardo
Honwana,6 em artigo de 2006, e tem o papel de forjar, na língua do colonizador, a imaginação
de um país atravessado por conflitos inúmeros, como o conto parece ocultar e revelar ao
mesmo tempo.

3 Considerações finais
Diferentemente da geração de escritores ligados às lutas pela descolonização de
Portugal, – como Honwana, por exemplo, que buscava a literatura como meio para retratar
formas ocultas de vida e espraiar uma acusação, fazendo de Nós matamos o Cão-Tinhoso um
livro denúncia das mais diversas camadas da violência, desde a ação até o silêncio ante ela –
Nelson Saúte parece, em sua prosa, notadamente no conto acima estudado, refletir sobre seu
próprio espaço do dizer, percebendo o binômio potência/impotência do seu ato criativo. Sua
narrativa elabora, ao menos no conto aqui analisado, uma metacrítica. Em entrevista, ao ser
perguntado sobre o tema da produção na língua do colonizador em contexto moçambicano,
Saúte responde:

Nós convivemos num tecido muito mais complexo e adverso em termos culturais e
linguísticos. Pode colocar-se essa questão. Pode ser um elemento de dificuldade,
principalmente na autenticidade de certas obras. Quando tentamos retratar um
mundo que não é o nosso, podemos ter dificuldade em traduzi-lo, em entendê-lo.
Até pode acontecer não termos entendido nada desse mundo que julgamos estar
a traduzir. (SAÚTE, 2014)

A imagem do escritor como tradutor de outro texto que é invisível, qual seja, as vidas
que ele não vive das aldeias isoladas moçambicanas, com uma população à margem da
escolarização, escassas de tudo, impõe um problema que a ficção de Saúte enfrenta, expondo
assim o lado sombrio/luminoso do produzir literatura em contextos periféricos, preocupação
esta que não estava presente na produção de seus antecessores. Como exemplo já
mencionado, a prosa de Luís Bernardo Honwana, escritor que viveu a guerra colonial,
membro da FRELIMO7 e produziu um único livro de contos, Nós matamos o Cão-Tinhoso,

5
Vale ainda acrescentar que, em Moçambique, “atualmente, o português é a língua oficial, mas o macua, do
grupo linguístico banto, é o idioma mais falado pela população. Também significativos são os idiomas
xichangana, elomuê, cisena. O número geral de falantes de português cresceu de 25% para 39% entre 1980 e
1997, e vem aumentando” (CHAVES, 2009, p. 135).
6
Escritor moçambicano, autor de um único livro até o momento que o consagrou. Engajou-se na luta pela
independência, foi preso em 1960. Em 1990 foi ministro da cultura em Moçambique.
7
Frente para a Libertação de Moçambique, criada em 1962. “Em 1975, depois de conflitos com Portugal,
declarou-se a independência do país, com o partido socialista FRELIMO no poder. Foi então que Moçambique
mergulhou em uma guerra civil entre seus dois principais partidos, FRELIMO e RENAMO (Renovação
Nacional Moçambicana). [...] Nos anos 1990, a população moçambicana enfrentou uma severa fome – resultado

189
de 1964, bastante premiado. Em Honwana, a visão que transparece não é do escritor como
tradutor e, por isso, consciente de seu fazer como uma versão diferida, como testemunha,
como vimos em Saúte, mas a do escritor como porta-voz, aquele que denuncia, acusa, através
da exposição da violência em situações múltiplas: desde o espaço escolar, contexto do conto
de abertura homônimo ao título da obra; às formas de vida no interior das casas pobres; da
fome sentida e, com isso, a exploração aviltante da força de trabalho dos moços e do corpo
das jovens que têm na prostituição a única forma de manutenção da sobrevivência.
Dessa forma, concordo com Alfredo Melo, quando afirma que pensar em uma
comunidade Atlântico Sul é atentar para suas precariedades. De fato, os dilemas e as
encruzilhadas ideológicas de Brasil e África apresentam suas semelhanças, no entanto, é
preciso perceber a pergunta suscitada pela construção narrativa que se modifica de geração
para geração, de escritor para escritor e, por vezes, de obra para obra. Um caminho possível,
que tentei traçar aqui, é perceber que o pensar a comunidade Atlântico Sul não isenta um
refletir sobre o próprio lugar que a literatura ocupa nesses contextos, especialmente o caráter
paradoxal de seu testemunho.

Referências:
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Assmann. São Paulo: Boitempo, 2008. p. 25-48.
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190
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