Gustavo Cruvinel 2023
Gustavo Cruvinel 2023
Gustavo Cruvinel 2023
TOLEDO, PR
2023
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GUSTAVO HENRIQUE RONDIS CRUVINEL
TOLEDO, PR
2023
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DECLARAÇÃO DE AUTORIA TEXTUAL E DE INEXISTÊNCIA DE PLÁGIO
5
À minha avó, Vanda, presença amorosa,
concretude da esperança e da fidelidade.
6
7
AGRADECIMENTOS
À minha avó, Vanda, pela dedicação e zelo que sempre teve para
comigo.
8
“O ser busca o outro ser, e ao conhecê-lo
acha a razão de ser, já dividido. São dois
em um: amor, sublime selo que à vida
imprime cor, graça e sentido.”
9
CRUVINEL, Gustavo Henrique Rondis. Encarnação e transcendência: Gabriel Marcel e o
mistério da (co)existência 2023. 126 p. Dissertação (Mestrado em Filosofia) – Universidade
Estadual do Oeste do Paraná, Toledo, PR, 2023.
RESUMO
O objetivo central deste trabalho é o de perscrutar, via obra de Gabriel Marcel (1889-
1973), o tema da encarnação e da transcendência. De fato, este é o ponto central de
toda a filosofia do autor: a encarnação como a condição existencial concreta do ser
humano no mundo numa perspectiva real de transcendência. Portanto, parte-se da
seguinte problemática: Como se estabelece a relação entre encarnação e
transcendência no sentido de uma experiência ontológica? Buscaremos, aqui,
reconstituir essa temática correlata partindo de uma crítica ao racionalismo e ao
cientificismo modernos; crítica essa encampada pelo reportado filósofo francês
mediante a teoria fenomenológico-existencial do corpo como mistério ontológico.
Nesse sentido, Marcel reconfigura a noção de mistério via uma interrogação
ontológica de base que comporta a pergunta pelo ser (existência) daquele que se
questiona, o homem. Sendo assim, interpelar o que é o ser é o mesmo que
perguntar-se: quem sou eu? Ora, diante de tal questão chegamos à revelação da
existência como encarnação (“eu sou meu corpo”). A encarnação se manifesta, hic
et nunc, como dado mais tangível da existência, o ponto desde o qual o ser humano
participa do mundo, o signo mais palpável de uma abertura a uma comunhão
ontológica, projetando-se como mediação entre o eu, o mundo e os outros
(intersubjetividade). Em suma, esse preliminar alcance oriundo das meditações
marcelianas do corpo próprio como experiência de ser conduz precisamente a uma
questão ontológica (mistério do ser), que consequentemente nos remete ao mundo,
a outrem e ao transcendente no coração da existência como coexistência. Tal
coexistência nos é revelada imediata e inconfundivelmente nos termos mesmos de
uma consciência do eu em um corpo, num movimento radical de transcendência. O
corpo se desvela, nesse contexto, como um ser de fenômeno, expressão máxima de
um mistério vivo, comunhão ontológica com o mundo e com outrem a título, pois, de
uma participação originariamente carnal. É nessa perspectiva, que o fenômeno da
encarnação e da transcendência perfazem o sentido último da coexistência na
medida em que, para Marcel, ser (esse) é coexistir (coesse).
Palavras-chave: Gabriel Marcel. Encarnação. Mistério. Transcendência.
Coexistência.
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ABSTRACT
CRUVINEL, Gustavo Henrique Rondis. Incarnation and transcendence: Gabriel Marcel and
the mystery of (co)existence 2023. 126 p. Dissertation (Master’s in Philosophy) – State
University of Western Paraná, Toledo, PR, 2023.
The central objective of this work is to scrutinize, through the work of Gabriel Marcel
(1889-1973), the theme of incarnation and transcendence. In fact, this is the central
point of the author's entire philosophy: the incarnation as the concrete existential
condition of the human being in the world in a real perspective of transcendence. To
do so, we will seek, here, to reconstitute this related theme starting from a critique of
modern rationalism and scientism; This criticism was taken up by the reported French
philosopher through the phenomenological-existential theory of the body as an
ontological mystery. In this sense, Marcel reconfigures the notion of mystery through
a basic ontological interrogation that involves the question for the being (existence) of
the one being questioned, man. Therefore, questioning what being is, is the same as
asking yourself: who am I? Therefore, in the face of such a question, we arrive at the
revelation of existence as incarnation (“I am my body”). Incarnation manifests itself,
hic et nunc, as the most tangible data of existence, the point from which the human
being participates in the world, the most palpable sign of an opening to an ontological
communion, projecting itself as mediation between the I, the world and others
(intersubjectivity). In short, this preliminary reach from Marcel's meditations on the
body itself as an experience of being leads precisely to an ontological question
(mystery of being), which consequently refers us to the world, the other and the
transcendent at the heart of existence as coexistence. Such coexistence is revealed
to us immediately and unmistakably in the very terms of an awareness of the I in a
body, in a radical movement of transcendence. The body reveals itself, in this
context, as a being of phenomenon, the maximum expression of a living mystery,
ontological communion with the world and with others as, therefore, an originally
carnal participation. It is in this perspective that the phenomenon of incarnation and
transcendence make up the ultimate meaning of coexistence insofar as, for Marcel,
to be (esse) is to coexist (coesse).
INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 13
12
INTRODUÇÃO
1
A influência foi de fato direta. Em seu apartamento, na Rue de Tournon, às sextas-feiras à noite,
reuniam-se alguns jovens para discutir sobre filosofia. Dentre eles, os já acima citados Jean-Paul
Sartre e Paul Ricœur e, ainda, Emmanuel Levinas, entre outros. O próprio Ricœur relata: “Durante
as famosas noitadas de sexta-feira, que comecei a frequentar desde 1934, se escolhia um tema de
13
passo que se põe como uma proposta totalmente nova no que tange ao pensamento
da existência humana em sua concretude mais real, qual seja, a própria encarnação,
visando, pois, uma restituição ontológica à experiência em seu peso mais
radicalmente humano, numa perspectiva de transcendência. Tendo em vista esses
fatores, e dado a importância que tem sua tese para a corrente fenomenológica e
para a filosofia como um todo, cumpre-nos perguntar: quem é, pois, Gabriel Marcel?
Qual a novidade do seu pensamento? Onde, dentro da tradição filosófica, se
inscreve sua filosofia? Convém, então, apresentar o pensador e pontuar alguns
aspectos de sua vida que contribuíram para a formação de sua obra.
Ainda pouco abordado no meio acadêmico de maneira geral, é tido por alguns
como simples dramaturgo, ou ainda rotulado como místico. Gabriel Honoré Marcel é
um pensador multifacetado, como veremos adiante. Exímio dramaturgo, escritor,
poeta, músico, graduou-se em Filosofia aos vinte anos. Convertido ao catolicismo
em 1929 é tido, embora sempre se recusasse ao termo, como expoente do dito
“existencialismo cristão” 2.
Ademais, sabe-se acerca do fato de que Marcel atuara como voluntário da
Cruz Vermelha na Primeira Grande Guerra, engajamento este que exercerá
influência substancial em sua obra. É diante do sofrimento humano e da
incumbência de comunicar as famílias dos combatentes sobre as mortes e os
desaparecimentos em campo, que Marcel se pergunta sobre o verdadeiro
significado da vida. Nesse momento, ele se percebe em um “mundo partido”3 onde o
sentido verdadeiro da existência perdeu sua significância, quer dizer, onde o homem
passou a ser mero objeto e não sujeito de sua própria existência. Ou, ainda, onde o
discussão, e a regra era sempre partir de exemplos, analisá-los e não recorrer a doutrinas senão
como apoio às posições defendidas. Eu desfrutava ali de um espaço de discussão que fazia
inteiramente falta na Sorbonne. Na casa de Marcel, tinha-se a impressão de que o pensamento era
vivo [...]. Discutíamos assim todas as semanas, durante duas ou três horas, de maneira bastante
ativa, tendo-se a audácia de pensar por si mesmo, o que em muito compensava a cultura histórica
dispensada pela Sorbonne”. (MARCEL, 1998a, p. 15).
2
É digno de nota o fato de que os termos “existencialismo” / “existencialista”, frequentemente
atribuídos a Gabriel Marcel e sua filosofia, foram rótulos que o filósofo (e não somente ele, mas
ainda Sartre, Jaspers e Heidegger) sempre se recusou a aceitar. Marcel sempre foi avesso àquilo
que ele denominava “ismos” (existencialismo, racionalismo, etc.), que, para ele, acabam por
enclausurar em um sistema concatenado de fórmulas o pensamento de determinado autor,
fechando-se em si mesmo. Marcel nunca pretendeu, de fato, criar qualquer sistema que pudesse
ser denominado marcelianismo. Se, entretanto, fosse para adotar alguma nomenclatura, de acordo
com ele, seria a de neosocratismo-cristão, justamente pelo caráter itinerante e interrogativo de seu
modo de fazer filosofia, que se assemelha ao de Sócrates.
3
Como veremos adiante, as palavras fazem referência a uma das obras dramatúrgicas de Marcel.
14
ter prevalece o ser, onde as relações humanas parecem se estabelecer da maneira
mais indiferente e calculista possíveis.
A experiência na guerra o fez voltar-se para uma filosofia da existência, isto é,
um gênero de reflexão concreta que não estivesse fechada em um sistema ideal ou
em fórmulas milimetricamente concatenadas, mas que fosse voltada para o real,
para a existência concreta, que a seu ver se encontrava completamente
fragmentada. Segundo ele, as questões fundamentalmente humanas, os dramas
humanos, apenas poderiam ser compreendidos por meio de uma imersão radical na
própria existência, isto é, para além das respostas prévias e superficialidades pré-
estabelecidas pelos sistemas filosóficos.
Veremos que a questão filosófica central posta por Marcel é a pergunta pelo
ser; pergunta essa que já havia sido postulada pela tradição, porém, de maneira
equivocada, na visão do autor, ao tomar o ser sob o estatuto de um problema puro e
simples, acabando, com isso, através de um processo de abstração, por definir o ser
como objeto da metafísica, como um conceito meramente formal. O filósofo francês,
por sua vez, afirma que a pergunta pelo ser comporta a pergunta pelo ser daquele
que se questiona, isto é, o ser (a existência) daquele que se pergunta pelo ser está
implicada nesta mesma pergunta. Sobre isto, nos esclarece o próprio Marcel (1935,
p. 169)4: “Convém, por outra parte, assinalar que eu, que pergunto pelo ser, não sei,
em primeiro lugar, se sou, nem a fortiori o que sou – nem se quer sei claramente o
que significa esta pergunta que sou?, que ainda assim me obceca”. Neste sentido,
antes mesmo de questionar-se sobre o ser deve-se, segundo Marcel, questionar
sobre o ser do eu, que está se perguntando. Se sou, de que maneira o sou? Isto
significa dizer que perguntar “O que é o ser?” é o mesmo que perguntar “Quem sou
eu?”, na medida em que, pela existência, eu estou envolvido neste mistério que é o
ser.
4
Poucas obras de Gabriel Marcel encontram-se traduzidas e editadas em português. Neste trabalho,
cotejamos as edições originais com a versão portuguesa de Fragmentos Filosóficos (1909-1914)
(Trad. Claudinei Aparecido de Freitas da Silva, 2018, Edunioeste) e Os Homens Contra o Humano
(Trad. Claudinei Aparecido de Freitas da Silva, 2023, Edunioeste). As demais obras foram
consultadas diretamente no original francês, tendo-se cotejado também com as respectivas traduções
disponíveis em língua espanhola. As citações respeitam as normativas propostas pela ABNT. Os
dados bibliográficos de todas as obras e autores citados podem ser consultados nas referências, ao
final do trabalho.
15
Para além de todo o idealismo filosófico, que funda suas explicações do que
seja o homem e o mundo numa perspectiva ideal (como o próprio nome sugere), o
pensamento marceliano interroga o homem a partir de sua existência concreta, ou
seja, a partir da própria realidade do sujeito. De fato, o que move esta busca
filosófica é, pois, compreender a realidade existencial humana em seu aspecto mais
concreto. Ora, essa compreensão se radica numa crítica de fundo recorrente ao
longo das reflexões do filósofo. Sua filosofia, portanto, se insere como um
contraponto radical ao idealismo pós-kantiano, bem como ao cartesianismo
filosoficamente cultural. Nesta perspectiva, Marcel aponta sempre, em sua obra, os
limites da tradição metafísica para, desde este ponto de vista, explorar e
desenvolver novas possibilidades. As críticas marcelianas podem, de uma maneira
geral, classificar-se tendo como alvo quatro frentes, quais sejam: o racionalismo
como obstáculo existencial; a insuficiência do dualismo; o subjetivismo abstrato e o
aviltamento da experiência vivida.
Assim, diferentemente da concepção racionalista-idealista totalmente objetiva e
abstrata, aqui trata-se da busca pela compreensão da realidade humana em toda a
sua concretude existencial, ou, se quiser, a realidade do homem enquanto inserido
no mundo. Tal existência nos é revelada imediata e inconfundivelmente como
encarnação, ou seja, a consciência do eu em um corpo.
Se, para a tradição filosófica, o corpo é abstraído a título de uma ideia ou
objeto, Marcel introduz uma nova concepção quando propõe o corpo como o próprio
ser existencial do homem. Isto significa dizer que, diferentemente de tudo que já foi
formulado até então, o homem não tem seu corpo, no sentido de um objeto ao qual
detém ou possui, mas é seu corpo. Pois bem, é a partir desse novo estatuto
ontológico que o homem, em sua condição existencial, se compreende a partir de
suas relações com os outros e com o mundo.
A concepção marceliana de homem é, portanto, a de homo viator5, quer dizer,
um ser itinerante, um viajante, um ser inacabado, que está em um contínuo
processo de criação de si mesmo, um viandante que se depara com um “mundo
partido”, onde as relações humanas, por se darem na mais total objetividade e
impessoalidade, encontram-se fragmentadas. Esse mundo partido é a expressão
5
O termo alude à uma das obras de Marcel, de 1944, Homo viator: prolégomenès a une
métaphysique de l’espérance (Homo viator: prolegômenos para uma metafísica da esperança).
16
cabal de uma existência desprovida de sentido, onde os homens se vêm como
simples realizadores de funções. Trata-se de um mundo onde a posse (ter) devora a
existência (ser), onde a vida, reduzida à verificação e ao cálculo, perde seu estatuto
ontológico. O dever da filosofia é, então, diz Marcel, o de “restituir à experiência
humana seu peso ontológico” (MARCEL, 1935, p. 149). A verdadeira tarefa filosófica
consiste em fazer ver que, a vivência do concreto, através do mergulho na
concretude existencial que é o mistério de ser, num mundo com outrem, numa
abertura ontológica, é capaz de restituir ao ser humano o sentido mais genuíno da
vida.
Um dos desafios na leitura da obra de Gabriel Marcel é o fato de que ela se
apresenta de forma assistemática, por intermédio de seus diários, conferências, e
mesmo das obras dramatúrgicas e musicais6. De fato, o filósofo, ao propor uma
filosofia itinerante, um pensamento pensante, sempre recusou qualquer rotulação à
sua filosofia, ou ainda qualquer definição que pudesse reduzir-se nos termos de um
sistema fechado e acabado. Ler os escritos de Marcel é deparar-se com um
pensamento em curso, vivo, itinerante, que se inventa e reinventa ao longo das
páginas. Neste sentido, o que se pretende não é sistematizar o pensamento do
autor, mas, metodologicamente organizar os elementos mais caros à filosofia
marceliana a fim de lançar luz ao tema da encarnação e da transcendência, tão
essenciais a esse pensamento. Para tanto, dispõe-se o presente trabalho em três
capítulos, a saber:
O primeiro capítulo, no qual se visa introduzir e melhor situar o tema central
de nossa pesquisa, se compõe de três partes. Na primeira, propõe-se a análise, em
linhas gerais, de como a concepção de corpo foi sendo desenvolvida ao longo da
história do pensamento filosófico, até consolidar-se, na modernidade, num cenário
onde o racionalismo, cientificismo e idealismo ganham força e espaço, na noção de
Körper (“corpo-objeto”), noção fortemente predominante no cenário, não só
filosófico, bem como do senso comum. Na segunda seção, procuramos analisar a
distinção entre dois termos essenciais na filosofia marceliana, a saber: “problema” e
“mistério”. Por meio de tal distinção, chega-se à crítica do racionalismo e
cientificismo, bem como ao fato de que a filosofia, especialmente o idealismo, tenha
6
Marcel é um pensador multifacetado, no sentido de desenvolver não apenas um pensamento
filosófico, mas também por atuar nas áreas da dramaturgia, literatura, teatro e música.
17
se apropriado do método científico, e ainda, à constatação de que o ser não se
circunscreve no âmbito do problemático, mas, sim, se revela como um mistério com
o qual se entra em comunhão a partir de uma presença, ou seja, de uma
participação na concretude do real. A terceira parte capitular encerra outra distinção
decorrente dessa, qual seja, a diferenciação entre o “ter” e o “ser” no horizonte de
uma nova ontologia viva acerca do corpo. Nota-se como a acentuação da posse (ter)
gera uma existência inautêntica, desprovida de qualquer sentido.
O segundo capítulo, “Existência e transcendência”, objetiva compreender outro
estatuto da existência no sentido de radicalizar aquilo que Marcel chama de “mistério
da encarnação”. Nesta perspectiva é que se desenvolve o primeiro subcapítulo,
intitulado “Existência e essência: um limite tenso”. Aqui encontra-se a tese
marceliana propriamente dita acerca da existência humana: a encarnação. Aqui,
cabe observar que, de acordo com o filósofo, o corpo não é objeto, mas, sujeito, e,
sob esse prisma, está inscrito num âmbito do mistério, isto é, de uma experiência
ontológica por excelência. Ele (o corpo) é o ponto desde o qual se participa
diretamente, enquanto presença viva, do ser. Não pode ser, por isso, reduzido a
mero instrumento, mas é o “imediato não mediatizável” (MARCEL, 1927, p. 240). O
corpo próprio configura-se, numa “síntese indefectível” (MARCEL, 1927, p. 311),
com a existência, como encarnação. Ademais, a existência humana e suas relações
se dão na corporeidade, que é, em última análise, o homem concreto. Este corpo,
que sou eu mesmo, é o meu ponto de inserção no mundo, meu ponto de referência.
Existir, neste sentido, é o mesmo que perceber-se ligado a um corpo (ser
encarnado). E ainda, o sujeito (corpo) se relaciona, se conhece, conhece o mundo e
os outros justamente porque é um ser que sente, ou seja, as relações do homem se
dão na corporeidade à medida que ele é um ser senciente. O segundo momento se
dirige a um esclarecimento da “experiência da transcendência”. Trata-se de
compreender a transcendência como esse movimento humano, radicado na
encarnação, é claro, mas num sentido de superação da condição humana. Por fim, o
capítulo encerra com o subtópico, “O existir livre como transcendência”. O que se
almeja, nesta parte do trabalho, é desvelar um aspecto do pensamento marceliano
referente à liberdade como condição de possibilidade para a experiência ontológica,
isto é, para transcendência. A liberdade, o existir livre, é condição para uma abertura
18
ao transcendente, que se radica na experiência, com o mundo, com outrem e, por
fim, com Deus, o Tu absoluto. Sob essa perspectiva, “existir é coexistir”.
Por fim, o terceiro capítulo se orienta na direção de vislumbrar um dos
desdobramentos mais importantes da tese encarnacional, no contexto mesmo de
uma “fenomenologia da esperança” em seu movimento de transcendência, a saber,
a intersubjetividade. No intuito de contemplar tal tema dentro do pensamento
marceliano, e como este se apresenta intimamente ligado à sua teoria do homem
como ser encarnado, procuraremos analisar o papel do outro na filosofia de Marcel.
Sob este olhar, a primeira seção deste último capítulo está intimamente ligada com o
capítulo segundo, visto que nela atentamos para o fato de que o outro é “participante
de meu corpo” (MARCEL, 1927, p. 261), na medida em que participa da mesma
realidade existencial concreta que eu mesmo. Dessa forma, enquanto ser corporal, o
homem mantém, pelo mistério da encarnação, um elo intersubjetivo com outrem
num só regime de comunhão ontológica. Aqui, perceber-se como existente não é
apenas existir para si, mas existir-com. A segunda seção visa abordar o tema da
intersubjetividade de maneira dialógica, ou seja, do modo com o qual estabeleço
relações com o outro. A terceira seção aborda dois temas caros à obra de Marcel,
quais sejam, as noções de comunhão e participação. Trata-se, essencialmente, de
compreender qual é o alcance e os limites de uma fenomenologia da comunhão.
Ora, esse primeiro estabelecimento do tema não se compreende, em termos
marcelianos, se prescindirmos de outro importante debate suscitado desde os
primeiros escritos: a teoria da participação ontológica. Em suma, o capítulo se
encerra com a investigação acerca das aproximações ao ser: esperança, amor e
fidelidade. Ao retomar o tema da condição humana como ser itinerante no mundo
(homo viator) sujeito às contingências do mundo constata-se de que ele é o campo
desde o qual surge a noção marceliana de esperança. Diante do fato de sua finitude,
frente à limitação temporal, o homem é chamado a transcender, por meio da
abertura ao amor e à fidelidade, superando o desespero pela esperança. Sob tal
prisma, um novo modo de conhecer se desvela aqui como uma aproximação ao
mistério; aproximação essa que se dá, de maneira profunda e efetiva por intermédio
da esperança, do amor e da fidelidade.
19
1. O MISTÉRIO DA ENCARNAÇÃO
20
Os que primeiro filosofaram, em sua maioria, pensaram que os
princípios de todas as coisas fossem exclusivamente materiais. De
fato, eles afirmam que aquilo de que todos os seres são constituídos
e aquilo de que originariamente derivam e aquilo em que por último
se dissolvem é elemento e princípio dos seres, na medida em que é
uma realidade que permanece idêntica mesmo na mudança de suas
afecções. [...] De fato, deve haver alguma realidade natural (uma só
ou mais de uma) da qual derivam todas as outras coisas, enquanto
ela continua a existir. (ARISTÓTELES, 2013, p. 15-16).
21
da filosofia da physis, não se atribuía ao homem lugar privilegiado,
ou melhor, não se compreendia nem se justificava este lugar
privilegiado. (REALE, 2002, p. 177; grifo nosso).
7
O início de tal processo já constata Aristóteles na Metafísica: “Com base nesses raciocínios, poder-
se-ia crer que exista uma causa única: a chamada causa material. Mas, enquanto esses
pensadores procediam desse modo, a própria realidade lhes abriu o caminho e os obrigou a
prosseguir na investigação [...] Ora, investigar isso significa buscar o outro princípio, isto é, como
diríamos nós, o princípio do movimento.” (ARISTÓTELES, 2013, p, 19).
22
Empédocles, e ainda dos pitagóricos8, entre outras, que descreverão o corpo de
maneira depreciativa, isto é, como princípio imperfeito, impuro e ilusório. É,
sobretudo, em Platão, que se encontra, de maneira abrangente e sistemática, a
célebre cisão dualista acerca da relação entre a alma e o corpo que será posta como
centro de todo o pensamento deste autor e influenciará de forma contundente a
filosofia do Ocidente de maneira geral.
Ao analisar-se a perspectiva platônica de corpo é importante recordar, mesmo
que de maneira sucinta, uma das doutrinas que influenciaram tal concepção. Trata-
se do já acima citado, orfismo9, chamado também de “religião dos mistérios”. O
orfismo foi um movimento místico, baseado no poeta da Trácia, Orfeu, de onde
deriva o termo da escola ou movimento. Seus poemas teciam uma trama oposta ao
modus vivendi dos heróis descritos por Homero, justamente porque propunham um
modo de vida espiritual, mais voltado ao cuidado interior da alma. É com o orfismo
que nasce a primeira teoria dualista acerca da alma e do corpo. Nessa concepção, o
corpo se torna um lugar de purificação, de expiação da alma. Aqui, pela primeira
vez, tem-se a noção de uma luta, no interior do homem, entre dois princípios
postulados como opostos (alma e corpo), precisamente porque o corpo é entendido
como o cárcere da alma.
Na verdade, Platão incorpora ao seu arcabouço filosófico muitos aspectos da
doutrina órfica, especialmente o conhecido dualismo corpo-alma, onde a alma,
imaterial, é em muito superior ao corpo material. Aliás, trata-se do verdadeiro eu
aprisionado neste cárcere que é o corpo. É o que constatamos nas Leis:
8
Para um estudo mais aprofundado das teorias destes filósofos pré-socráticos ver: REALE, 2002. E
ainda: HIRSCHBERGER, 1969.
9
Reale (2002, p. 24) define a doutrina órfica: “a) No homem vive um principio divino, um demônio,
caído num corpo por causa de uma culpa originária; b) Esse demônio, preexistente no corpo, é
imortal e, portanto, não morre com o corpo, mas é destinado a reencarnar-se sempre de novo em
corpos sucessivos através de uma série de renascimentos para expiar sua culpa; c) A vida órfica,
com sua práticas de purificação, é a única que pode pôr fim ao ciclo das reencarnações; d) Por
consequência, quem vive a vida órfica (os iniciados) goza, depois da morte, do merecido prêmio no
além (a libertação); para os não iniciados há uma punição”. Para um estudo mais aprofundado deste
tema e dos autores acima, ver: (REALE, 2002).
23
certo quem diz que o corpo sem vida não é senão a imagem do
morto e que o eu real de cada um de nós, que chamamos de alma
imortal parte para prestar contas perante outros deuses [...]
(PLATÃO, 2010, p. 496).
10
Com o advento do cristianismo a noção de homem como parte do cosmo mostrou-se insatisfatória.
O homem passou a ser visto, haja vista sua natureza pessoal e espiritual, “como um universo em si
mesmo, isto é, como um microcosmos (ideia cara ao renascimento) (GRASSI, 2008, p. 24).
11
Dentre os pensadores contemporâneos que reconhecerá esse estatuto, além de Gabriel Marcel,
estão Sartre, Merleau-Ponty, Levinas, entre outros.
24
desprovida de qualquer aspecto concreto ou material visto que fundamenta toda a
realidade e, portanto, a existência do próprio homem no cogito.
De fato, o que nos interessa aqui saber é que, “a partir [desta] tradição de
pensamento que se inicia com Platão, mas que, com Descartes, toma um assento,
de fato e de direito, consolidado, que o corpo é abstraído a título de um objeto, isto
é, uma ‘matéria extensa’.” (SILVA, 2017b, p. 157). Tal corpo é tomado como objeto
no sentido de ser considerado tão somente em seu aspecto físico, ou mesmo
orgânico. “Trata-se do corpo do ponto de vista de seu agenciamento interno
funcional, orgânico”. (SILVA, 2017b, p. 157), como descreve o próprio Descartes em
seu clássico tratado O Homem:
Suponho que o corpo não seja outra coisa senão uma estátua ou
máquina de terra, que Deus forma intencionalmente para torná-lo o
mais possível semelhante a nós. De modo que ele não apenas lhe dá
externamente a cor e a figura de todos os nossos membros, como
também coloca dentro dela todas as peças que são necessárias para
fazer que ela ande, coma, respire e, enfim, imite todas as nossas
funções que possam ser imaginadas como procedentes da matéria e
que só dependem da disposição dos órgãos. (DESCARTES, 2009, p.
120).
Eis o postulado cartesiano acerca do corpo: o de que ele não é o ser próprio
do homem, e ainda mais, o que o excerto acima evidencia é o fato de que o corpo
mesmo não é algo próprio do homem, mas algo exterior a este e que apenas
obscuramente se “assemelha” ao homem real. O pensamento de Descartes, como
bem retrata Merleau-Ponty (2011, p. 268), “nos habituou a desprender-nos do
objeto, purificando a noção comum de ‘corpo’ e de ‘alma’”. Ora, “nesse esforço de
25
depuração, a tradição cartesiana define o corpo como uma ‘soma de partes sem
interior’, e a alma como um ‘ser inteiramente presente a si mesmo sem distância’.”
(SILVA, 2010, p. 96). É o que podemos constatar nas Meditações Metafísicas
quando Descartes afirma:
26
Isso mostra que toda a modernidade está marcada por grandes avanços nas
ciências naturais, especialmente na medicina, com todas as descobertas da
anatomia humana. Trata-se de avanços que serão essenciais à construção da
concepção de corpo enquanto máquina, ou objeto orgânico12 desprovido de
qualquer estatuto ontológico, conforme sacramentado, como vimos, pela metafísica
cartesiana. Sobre esta noção de corpo como objeto avalia Merleau-Ponty (2011, p.
111):
12
É digno de nota o seguinte: abordagem do corpo em seu aspecto material, orgânico e funcional não
é um problema em si. Os estudos científicos são válidos e de suma importância. O ponto essencial
em análise é o fato de o mesmo ter sido tomado como única via possível de explicação de tal
realidade.
27
Fato é que, a tradição, culminando no cientificismo e racionalismo modernos
e, tendo como seu principal expoente Descartes, deixa como legado a ideia de um
corpo objeto, haja vista que este filósofo pautará toda a existência como
dependente, essencialmente, do pensamento (cogito), como afirma em sua famosa
conclusão: “cogito, ergo, sum”. Todo o fundamento da realidade é posto aqui sob a
base da certeza indubitável do cogito, reservando ao corpo o caráter de
obscuridade, desprovido, pois, como um conhecimento confuso e indistinto. Mais: o
corpo se define, pura e simples, como uma máquina. Como relembra Azevedo
(2012, p. 48): “a ambição do racionalismo é a explicação do mundo a partir da razão,
num processo de redução do mesmo à unidade, verificando-o a partir daquilo que
lhe confere estatuto: a racionalidade”.
Diante de tudo o que vimos até aqui, no que concerne à tradição metafísica e
ao pensamento cientifico-filosófico, pergunta-se então: o que é o corpo? Como
retrata Silva (2017b, p. 157):
28
título secundário ou de maneira depreciativa, mas antes, como condição originária
de participação no ser. É precisamente o que põe, em questão, o filósofo:
13
Trata-se de uma expressão alemã, que remonta à doutrina tradicional do corpo enquanto objeto. O
termo reaparecerá e será melhor explorado no capitulo 2, seção 2.1 “Existência e transcendência:
um limite tenso”. A propósito da questão conferir SILVA, 2017c.
29
últimas décadas, sobretudo por conta do idealismo abstrato, se encontra destituída
de sua função primordial, “sobretudo num momento em que se assiste a um notável
prestígio da ciência como discurso paradigmático por excelência.” (SILVA, 2018, p.
188). Ora, distinguir estes dois pontos de divergência, no intuito de caracterizar qual
é o estatuto específico filosófico, se torna estritamente importante na medida em que
nos direciona para aquele que será o ponto central da tese de Gabriel Marcel: a
encarnação.
A encarnação, como veremos, é o pivô da filosofia marceliana. Há, no
entanto, aqui, de se ter um cuidado: “ela não deve ser interpretada à maneira como
se fosse um dado estático, fossilizado, petrificado”. (AZEVEDO, 2012, p. 28). Isto
significa dizer que a encarnação não pode ser tomada objetivamente, de modo a ser
considerada como um fato inerte, o que a transformaria, como bem lembra Ricœur,
em um “túmulo” (RICŒUR, 1996, p. 61). Sob este prisma, analisar a distinção da
díade “problema” e “mistério”, abordada por Marcel, é imprescindível na medida em
que viabiliza a compreensão de toda a tese marceliana da encarnação, e do homem
conforme veremos, como ser de “mistério”.
Ademais, o contexto histórico em que Marcel propõe a diferenciação entre
problema e mistério é precisamente o do advento do método científico como
arquétipo e modelo de todo e qualquer conhecimento que se pretenda verdadeiro.
De fato, a exaltação das ciências frente ao total desprestígio e abandono do método
peculiar da filosofia cria, de acordo com Marcel (1999, p. 12), nos próprios filósofos,
um “sentimento de inferioridade” diante “do progresso das ciências particulares”.
Seguindo os passos do filósofo, pior ainda que esse “complexo de inferioridade do
filósofo diante do cientista” (MARCEL, 1999, p. 95), é a traição que alguns destes
filósofos incorrem à medida em que se apropriam do método científico utilizando-o
na filosofia. Como bem nos assinala Silva (2018, p. 189):
33
circundante, que se apresenta no concreto da vida como um valor intersubjetivo.
Note-se que, nesta perspectiva, o mistério se projeta para além da compreensão
comum que se tem como algo no sentido de segredo ou que está confiado a alguém
de forma sigilosa e restrita. Ainda, “toda confusão entre o mistério e o incognoscível
deve ser cuidadosamente evitada: o incognoscível não é, com efeito, senão um
limite do problemático que não pode ser senão atualizado sem contradição”
(MARCEL, 1935, p. 169). Isto é, o mistério não se caracteriza como algo irresolúvel:
afinal, a ciência também possui inúmeros problemas aguardando alguma resolução
e, nessa medida, antes, apresentando-se como um “espírito de abertura ou
engajamento mais efetivamente concreto diante de questões que, longe de serem
incompreensíveis ou insondáveis, nos tocam intimamente” (SILVA, 2010, p. 94). É o
que nos assegura o próprio Marcel (1999, p. 218-219):
O que o filósofo nos faz atentar neste trecho lapidar, é para o erro de sentido
que se tornou frequente no idealismo clássico e que consiste em confundir os níveis
do “misterioso” e do “problemático”. Ora, Marcel tratará tal confusão, conforme bem
vimos acima, como uma “degradação”, um “procedimento vicioso”, uma “espécie de
corrupção da inteligência”.
De tudo o que se disse até aqui e, seguindo o pensamento de Gabriel Marcel,
não existe nada de errado com o método problemático em si. O erro consiste
fundamentalmente em postular tal método como único e exclusivo modo de
conhecer, tomando-se o método problemático como modelo epistemológico
exclusivo por excelência, como se fosse a fonte absoluta do conhecimento. Ou
ainda, “o limite do cientificismo reside apenas na absolutização de sua prática como
parâmetro exclusivo a partir do qual todo conhecimento (como o filosófico) deva
adotar como critério.” (SILVA, 2018, p. 197). Ora, é sob esse aspecto, por exemplo,
que viria observar Merleau-Ponty (2002, p. 14-15):
35
A crítica incisiva de Marcel dirigida à tradição filosófica se fundamenta no fato
de que os filósofos têm se utilizado de categorias do problemático para tratar de
temas puramente metafísicos, degradando assim tais temas, objetivando-os,
coisificando-os. Exemplo claro desta degradação é citado pelo próprio filósofo em
sua obra Os homens contra o Humano, é o que fora tratado pela tradição filosófica
nos termos de um “problema do mal”.
40
não posso me pôr a refletir sobre esses problemas sem perceber que
se abre aos meus pés um novo abismo: eu, que me ponho a
perscrutar o ser, posso estar seguro de que eu sou? Que títulos
tenho eu para fazer tais investigações? Se eu não sou, como posso
esperar vê-las concluir? Ainda admitindo que eu seja, como posso
estar seguro de que sou?
A pergunta pelo ser posta por Marcel como central e indispensável no âmbito
de sua filosofia se torna parte de um quadro mais amplo. Trata-se de uma discussão
estabelecida no interior da corrente fenomenológica e que ganha espaço e vigor na
primeira metade do século XIX, ao pôr no centro da discussão o estatuto relativo à
questão ontológica. De fato, ao lado de pensadores como Heidegger, Jaspers, entre
outros, o filósofo francês circunscreve seu pensamento em torno deste eixo,
dirigindo uma assídua crítica àquilo que ele chama de “saber absoluto”,
desenvolvido numa extensa tradição filosófica de pensamento e que possui suas
raízes no idealismo. Ora, isso tudo no sentido de denunciar que, “[...] ao reduzir a
existência à ordem do objeto, a teoria clássica do conhecimento abstrai um ‘sentido’
da ‘experiência’ sem reconsiderar nesta, uma densidade ontológica mais
proeminente.” (SILVA, 2014, p. 161-162). Gabriel Marcel se encampa na tarefa de
“restituir à experiência14 humana seu peso ontológico.” (MARCEL, 1935, p. 149).
Essa tarefa prima pela exigência de uma nova “teoria do ser”.
Como vimos, no capítulo anterior, a imputação posta por Marcel à tradição
metafísica se deve ao fato de que esta parece ter desenvolvido e reduzido seu labor
primordial ao estabelecer os mesmos padrões de objetividade e imparcialidade
requeridos pela ciência positiva em sua investigação. É que tal tradição tratara,
assim, a questão do ser como algo alheio à própria existência, ou ainda, como se
não estivessem imbuídos, nesta mesma realidade existencial, que o ser pelo qual se
14
A noção de “experiência” dentro do pensamento marceliano vai tomando forma ao longo do
desenvolvimento do seu trabalho. Inicialmente influenciado pela corrente idealista inglesa, e avesso
à tradição empirista, relegou, em um primeiro momento, a experiência, tratando-a a título de
recepção cognitiva de impressões sensíveis. Ao passo que o pensamento de Marcel se desenvolve
e se expande numa perspectiva ontológico-existencial sua acepção da experiência passa do mero
registro empírico para o fenomenológico, do “experimental” para o “experiencial”. A experiência
recebe, aqui, um estatuto proeminentemente ontológico. Não é simples recepção de impressões
sensoriais, mas abertura aos acontecimentos fenomênicos. Em uma nota de 23 de maio de 1910,
assim ele escreve: “A experiência é inerente à natureza própria do espírito e ela só é possível em
relação a uma finalidade que a orienta. Sob a condição de tomar a palavra num sentido amplo,
pode-se dizer que a experiência é o espírito mesmo exercendo sua atividade” (MARCEL, 2018, p,
20-21).
41
perguntam, estando, deste modo, indiferentes à própria realidade. É diante de tais
constatações que o filósofo busca a redefinição da função própria da investigação
metafísica, isto é, da filosofia. Esta não pode ser uma simples curiosidade
“extravagante e transcendente” já que ela se caracteriza como uma busca pelo ser,
ou ainda, uma necessidade profundamente humana de apetência. O humano tem,
no profundo de seu ser essa necessidade ou, esse “apetite do ser” 15. Como afirma
Silva (2014, p. 163-164):
15
A necessidade metafísica é uma carência que emerge no “coração do homem”, como veremos no
tópico 2.2 Experiência da transcendência, o qual abordará o tema da metafísica como responsável
por saciar esta sede, este apetite de transcendência, particularmente humano.
42
que são exteriores a mim, no sentido de que, embora sejam minhas propriedades,
elas independem de mim. Como afirma Marcel (1927, p. 301):
Neste sentido, o ter supõe sempre uma apropriação, quer dizer, a posse de
algo que se fragmenta. Aqui impera uma postura caracteristicamente rasa e
imediatista. É por isso que, na categoria do ter, o pesquisador coloca-se como um
expectador, imparcial, “tomando distância do mundo, para num segundo momento,
assimilá-lo teoricamente. Não há mais apetite, ele se considera saciado demais no
interior de seu sistema em meio aos seus conceitos e fórmulas” (SILVA, 2014, p.
171). Marcel, por fim, não tarda em observar:
43
objetivável, exibível aos outros, é a exteriorização do ser, o seu
fazer-se espetáculo; ele é o ‘coisificar-se’ do ser, o seu vir para fora,
o seu epifanizar-se, fragmentar-se, mumificar-se.
Por este ângulo, o ter é capaz de destruir o existente humano à medida que o
domina. Becker compreende isto da seguinte maneira:
O ter, pois, deve ser buscado enquanto meio numa ascensão ao ser, e não
como fim último. Ao deixar-se dominar pelo ter, pela posse dos objetos, acabamos
por nos perder em meio às coisas. O próprio homem torna-se um objeto.
Segundo Marcel, vivemos em um mundo partido (cassé), isto é, num mundo
onde o tecnicismo e o pragmatismo da ciência fragmentaram o homem, tornando a
existência vazia de qualquer sentido real. Trata-se de um mundo onde o “ter”
prevalece e sufoca o “ser”. Nesse contexto, a angústia e o desespero são frutos de
uma existência inautêntica; existência essa fundada tão somente no campo do ter.
Outrossim, numa sociedade consumista, onde a cultura técnica se impõe, perde-se
o verdadeiro sentido da existência, que é “devorada” pela posse dos objetos.
Sobre este estado de fragmentação, Marcel, em uma de suas obras
dramatúrgicas16 mais notáveis, Le Monde Cassé17, compreende aquilo que seja,
16
Como vimos na parte introdutória deste trabalho Marcel é, além de filósofo, músico e dramaturgo.
Suas obras literárias exercem grande influência em sua filosofia, ou melhor, elas se mesclam, se
complementam, é como se, de acordo com o próprio autor, em suas obras dramatúrgicas a sua
filosofia se encontrasse em todo seu vigor, purificadas de qualquer esquema ou simplificação
racionalista que pudessem afastá-las do real. Sobre este aspecto, atesta o autor, em uma de suas
entrevistas: “É ali que meu pensamento se encontra em estado natural, e como que em seu jorro
inicial [...]. O teatro, entretanto, é em vários casos um protesto contra tudo o que, no pensamento
filosófico, tende a ser demasiado esquemático, demasiado simplificador, e, por isso mesmo, a
prejudicar a parte da realidade que é contraditória e inesgotável.” (MARCEL, 1970, p. 141-142).
17
No original francês Le Monde Cassé, “O Mundo Quebrado” ou, numa melhor tradução, “O mundo
Cindido” ou “Partido”. Trata-se de uma das peças mais famosas e premiadas do autor, vinda à
44
segundo ele, a situação atual do homem moderno. Na obra, em uma das principais
personagens, Christiane, encontramos, por assim dizer, o estereótipo do homem
contemporâneo. Desassossegada, aborrecida com o seu enfadonho matrimônio com
Laurent Chesnay (um homem tão absorto ao mundo dos negócios ao ponto de
negligenciar o próprio casamento) se vê imersa numa trama de traições, segredos e
superficialidades. Ela, então, faz uma confissão à sua amiga Denise:
público em 1933. Nela, Marcel propõe a reflexão sobre a fragmentação do mundo hodierno, isto é, a
perda do sentido da existência humana no mundo e suas relações.
45
de homem impede o reconhecimento de sua própria essência.
(SILVA, 2010, p. 102).
Isto significa dizer que o sentido da própria existência, da vida, perde sua
significação mais essencial à medida que o homem se encontra imbuído num mundo
tecnicista, ou seja, numa trama de relações superficiais e funcionais, altamente
burocráticas, chegando ao extremo de ser desconhecido para si mesmo. “O que
está em jogo aqui”, observa ainda Silva, “não é só uma crise do mundo técnico-
cientifico. É uma crise desde sempre instalada no coração da própria metafísica, a
metafísica do ‘sujeito’.” (SILVA, 2010, p. 102).
47
Entre as coisas, há uma em particular, a primeira de todas, que goza
de uma prioridade absoluta sobre as demais: meu corpo. A tirania
que exerce sobre mim depende não já completamente, mas em
proporção considerável, ao apego que lhe tenho. No entanto, o mais
paradoxal dessa situação é que, finalmente parece como se eu
mesmo me aniquilasse nesse apego, me deixasse absorver nesse
corpo ao qual adiro; parece como se meu corpo, literalmente, me
devorasse, e o mesmo ocorre com todas as minhas posses que, de
algum modo, se acham como suspensas ou penduradas nele. De
modo que – e isto constitui, para nós, uma visão nova –, o ter como
tal parece tender a anular-se na coisa possuída inicialmente, mas
que agora absorve àquele mesmo que, em princípio acreditava
dispor dela. Parece ser próprio da essência de meu corpo ou de
meus instrumentos tratados como posse tender a suprimir-me a mim
mesmo. (MARCEL, 1951d, p. 118).
Sendo assim, o filósofo francês sublinha que não posso me opor ao meu
corpo. Na medida em que trato meu corpo como posse minha e, como objeto, o
mesmo se torna estranho a mim. No momento em que postulo o meu corpo como
um objeto ele “deixa de ser meu”. Assim, pois, de acordo com Marcel, eu não tenho
meu corpo, mas, sou meu corpo. Isso significa que o corpo, enquanto fenômeno de
mistério se situa no horizonte do “ser” (ordem do “mistério”) e não do “ter” (ordem do
“problemático”).
48
2. EXISTÊNCIA E TRANSCENDÊNCIA
18
Não se almeja aqui detalhar, pormenorizadamente, a tradução do termo haja vista a complexidade
que a significação da noção Leib, em seus diversos desdobramentos de sentido, pode conter, seja no
que diz respeito à própria conjuntura gramatical alemã, seja no que tange ao desenvolvimento do
tema dentro da fenomenologia.
19
Para um estudo mais aprofundado sobre a noção de “corpo próprio” e seu desenvolvimento, Cf.
GRASSI, 2008. Especialmente a terceira seção, intitulada: Introdução à problemática do corpo
próprio no século XX.
50
corpo “desde seu interior”. Trata-se, pois, da experiência propriamente humana que
faz sentir-se no mundo, em comunhão com o outro.
Segundo Husserl, existe no Leib duas propriedades que o definem enquanto
tal, a saber: a cinestesia e o aspecto originário. A primeira caracteriza-se como
aquilo que distingue o corpo próprio enquanto tal na medida em que “[...] há, pelo
tocar, inserção de sensações” (HUSSERL, 1982, p. 214). Isto significa dizer que o
corpo próprio tem como característica fundamental a faculdade de sentir. Já o
aspecto originário diz respeito ao corpo como uma “‘localização’ originária desde
onde todas as sensações são produzidas e se distinguem” (HUSSERL apud SILVA,
2017, p. 322), ou seja, a concepção de Leib ultrapassa a de Körper à medida que
aprofunda certo grau de sensibilidade radical e originária.
Ora, este corpo próprio, o corpo da carne, apresenta-se como misto de coisa
física, isto é, matéria e sensações. É o corpo com o qual o eu é vivenciado, por meio
de certa “experiência originária” (HUSSERL, 1982, p. 10), e participa do mundo e
percebe as coisas. Apresenta-se, precisamente, como “uma corporeidade que o
sujeito nunca deixou de ser, ou seja, um eu-corpo (Ichleib)” (SILVA, 2017, p. 323). É
o que afirma Husserl (2005 apud GRASSI, 2008, p. 40; grifo nosso):
51
O pensamento de Gabriel Marcel, como logo veremos, organiza-se não
apenas no entorno da distinção germânica entre as noções de Körper e Leib tão
somente. Marcel aprofunda a própria ideia de Leib desde uma perspectiva que
incide sobre o discurso fenomenológico existencial vigente. O que Marcel opera é
um aprofundamento, uma radicalização fenomenológica, na medida em que, não
apenas ultrapassa a concepção de Körper caracterizado como uma exterioridade
objetiva, mas leva ao extremo a ideia de Leib como corpo vivido dentro de uma
experiência originária, a experiência do sentir. O que se estabelece é uma
compreensão de corpo que não só ultrapassa a ideia de corpo como objeto, como
coisa, mas que radicaliza a noção de Leib, o corpo próprio, corpo-sujeito.
Como vimos, Marcel desenvolve seu pensamento na direção de uma crítica à
tradição metafísica e ao método científico e ainda, ao racionalismo e idealismo, por
meio da afirmação de que a existência e, por conseguinte, a experiência, quando
objetificadas, perdem seu significado mais profundo, isto é, ficam desprovidas de
seu estatuto ontológico. Sobre o empreendimento filosófico de Marcel, sintetiza
Azevedo (2012, p. 10):
Quando afirmo que uma coisa existe é porque a considero tal como
vinculada ao meu corpo, como suscetível de entrar em contato com
ele, por indiferente que seja. Unicamente é preciso ter muito em
conta que essa prioridade, que dessa maneira atribuo ao meu corpo,
52
se deve ao fato de que esse me é dado de modo não exclusivamente
objetivo, pelo fato de que é meu corpo [...]. Isso significa que
realmente não se pode dissociar a existência e a consciência de si
como existente. Consciência de si como ligado a um corpo, como
encarnado. (MARCEL, 1935, p. 20).
53
Por meu corpo, estou em simpatia com as coisas. É minha
encarnação como ser em situação no mundo. “O ser encarnado,
referência central da reflexão filosófica”, escreve Gabriel Marcel. E
acrescenta: “A essência do homem é de ser em situação”. As duas
fórmulas entrelaçam-se e completam-se. Significam que tudo o que
existe, no mundo ou na história, acha-se situado em relação a meu
corpo, ao final de uma série de mediações que podem ser
numerosíssimas; tudo isso se encontra na minha órbita existencial e
implica, seja em que grau for, na minha presença, na minha
existência. Reciprocamente, só posso existir situado, hic et nunc,
inserido num lugar bem definido do mundo, o de meu corpo. Para lá
da reflexão primária, que me excluía das coisas, reconheço minha
aderência carnal ao mundo, os laços nupciais entre o mundo e eu. A
noção de existência ganha precisão ao mesmo tempo que a noção
de encarnação, central na obra de Gabriel Marcel. Por ela se define
toda existência. A sensação, como dado sofrido por um corpo-objeto,
é uma abstração. A relação entre o mundo e mim, entre meu corpo-
sujeito e o ser no qual se banha, é ao mesmo tempo dom e obra; é
participação. Não sou espectador do mundo, mas participante.
É o próprio Marcel quem enuncia, inúmeras vezes, esta tese central: “eu sou
meu corpo”. Isto significar dizer que ele, “meu corpo”, é o meu ponto de inserção no
mundo, é o dado que me faz estar situado no mundo, minha forma de existência.
Este corpo, não é mais para mim uma ferramenta minha, não é algo que eu possuo,
sou eu mesmo, “é a consciência de mim no meu corpo” ( MARCEL, 1935, p. 20). O ser
encarnado é, pois, a condição de acesso ao real e referência central da reflexão
metafísica (MARCEL, 1935, p. 11), na medida em que é aquilo que põe o sujeito em
situação no mundo e em contato com o mesmo e com os outros.
Desde este fundamento, Marcel apontará para a “encarnação como dado
central da metafísica” (MARCEL, 1935, p. 11). Quer dizer, o dado da encanação é o
ponto de partida de toda a filosofia do pensador francês. Este postula que toda a
filosofia que se pretenda verdadeira deva partir desde esta realidade existencial
primeira e mais evidente, na medida em que ele [o corpo] se caracteriza como “uma
situação fundamental que, em rigor, não pode ser dominada, rotulada e analisada”
(MARCEL, 1935, p. 12). A encarnação é o “imediato, não mediatizavel” ponto desde
o qual é possível todas e qualquer reflexão filosófica, condição fundamental do ser
humano no mundo, como descreve o próprio filósofo:
54
dizer que é meu corpo, nem que não é, nem que é para mim (objeto).
A oposição entre sujeito e objeto é transcendida. Mas, ao contrário
se parto desta oposição tratada como fundamental, não haverá mais
truque lógico para reunir esta experiência; inevitavelmente terá
passado ou foi recusada, o que é a mesma coisa. Não se deve
objetar que esta experiência apresenta um caráter contingente; na
verdade toda a investigação metafísica requer um ponto de partida
deste gênero. Só pode partir de uma situação que reflete sobre si
mesma seu poder compreender-se. Examinar se a encarnação é um
fato; não me parece que o seja. É um dado a partir do qual um fato é
possível (o que não é verdade a partir do cogito). É uma situação
fundamental que, a rigor, não pode ser dominada, rotulada e
analisada. É precisamente esta impossibilidade que eu afirmo
quando declaro, confusamente, que sou meu corpo, ou seja, que não
posso conceber como um termo distinto do meu corpo, que se
mostra numa relação determinável. Como já disse, no momento em
que o corpo é tratado como objeto da ciência, eu me exilo no infinito.
(MARCEL, 1935, p. 11-12)
Isto é, todo labor propriamente filosófico, segundo o filósofo, deve partir, não
de abstrações especulativas mas, de um concreto existencial e, não há, segundo ele
mesmo, algo mais indubitável do que o fato de ser o homem um corpo, no sentido
fenomenológico do termo, ao modo de um princípio originário através do qual toda
experiência é possível. Esse dado, enquanto âmbito central metafísico se transfigura
como uma abordagem em torno do mistério, tema decisivo, como vimos, na filosofia
de Marcel. Afirmar a encarnação como dado central da metafísica é, pois, dizer que
ela é a mediação entre o sujeito e o mundo e os outros. Tudo se passa como se as
coisas no mundo se apresentassem como que prolongamentos do meu corpo e não
como objetos do espírito. Dizendo de outro modo, viver é abrir-se à uma realidade
com a qual se estabelece intima comunhão. Isto significa dizer que o homem,
enquanto consciência de si mesmo num corpo e, enquanto presença no mundo, é a
referência, o centro orbital de toda existência. A encarnação é o dado concreto da
existência, ela “[...] é o campo transcendental aberto vivificado pelo corpo, inscrição
originária de nossa finitude” (SILVA, 2010, p. 99).
Ademais, é justamente pelo fato de se caracterizar em “oposição ao cogito”, e
por ser essa “situação fundamental que, em rigor, não pode ser dominada, rotulada
e analisada”, como vimos na passagem acima, que a encarnação se inscreve no
âmbito de um mistério, ao passo que não é passível de qualquer mensuração
sistemática ou exata que não a faça perder sua vivacidade ontológica. Estamos aí
envoltos por “um mistério fundamental: o corpo se revela como um ser, um
55
fenômeno. Por isso, há uma transcendência da ordem do ‘ter’ para a ordem do ‘ser’.
O corpo não se ‘tem’ mas se ‘é’” Silva (2017c, p. 329). Bem observa Marcel:
[...] meu corpo não é algo que tenho, eu sou meu corpo. O sentido
dessa frase só pode ser esclarecido negativamente. Dizer que sou
meu corpo significa, antes de tudo, que eu não estou em condições
de definir um tipo de relação qualquer que uniria estes dois termos,
eu de um lado e meu corpo de outro [...]. Eu sou meu corpo é, na
realidade, uma afirmação central, uma afirmação pivô que só pode
ser parcialmente elucidada conforme as perspectivas que eu posso
ter em adotar, alternativamente, mas sem que alguma delas possa
ser admitida exclusivamente ou definitivamente. Isto é o que eu
tenho em vista quando falo de um mistério da encarnação num
sentido que não tem absolutamente nada de teológico. (MARCEL,
1959, p. 185).
Ao afirmar que “não tenho um corpo, mas sou meu corpo”, Marcel desloca a
ideia de corpo enquanto objeto para a noção de corpo sujeito, imerso no campo do
mistério e não do problema e ainda, do ser e não do ter. Nessa direção, “a
experiência mostra, a todo tempo, que a relação com o corpo é uma relação
singularmente ontológica. Está aquém de qualquer teoria ou psicologia do
conhecimento, já que o corpo não é objeto, mas, antes, fonte e experiência de
mistério.” (SILVA, 2010, p. 98). Se, outrora, o idealismo-racionalista, tratara o corpo
in abstrato, isto é, a título de objeto do campo problemático, Marcel compreende o
corpo in concreto, como mistério do campo do ser, ou seja, um fenômeno revestido
da mais alta dignidade ontológica. Ainda de acordo com o filósofo, “a distinção entre
corpo-objeto e corpo-sujeito não é espacializável” (MARCEL, 1974, p. 389), no
sentido de que é uma distinção que pode ser pensada, porém, não pode ser figurada
(MARCEL, 1974, p. 389). Sob esta perspectiva,
Sendo assim, na afirmação “eu sou meu corpo” a oposição entre sujeito e
objeto desaparece. Isto quer dizer que “[...] eu não posso me colocar em face do
meu corpo (como se faz para pensar um objeto) e me perguntar o que é ele em
56
relação a mim. Meu corpo pensado deixa de ser meu” (MARCEL, 1927, p. 253).
Nesta perspectiva, de acordo com o pensamento de Marcel, eu e meu corpo somos
uma só e mesma coisa. “Eu sou meu corpo’ mostra o eu (homem) e o corpo como
constituindo um só, integrado (GRZIBOWSKI, 2017, p. 345). O que se percebe na
tradição metafísica, especialmente no que tange ao racionalismo cartesiano é que
“[...] o corpo é abstraído como um termo de relação enquanto o Eu, outro termo”
(SILVA, 2017c, p. 329). Isto posto, “reconhecer que não ‘tenho, mas, antes, ‘sou’
corpo presume outro nível de inteligibilidade: o de uma presença viva, originária”
(SILVA, 2017c, p. 330).
Quando eu digo que eu sou meu corpo, isso significa que nenhuma
relação de coisa a coisa (ou mesmo de ser a ser) é aplicada aqui: eu
não sou o senhor, o proprietário ou o conteúdo de meu corpo, etc.
Por isso, imediatamente, quando eu trato o meu corpo como uma
coisa, eu me exilo de mim mesmo ao infinito (MARCEL, 1927, p.
252).
Aqui surge, na tentativa de “[...] trazer à tona a acepção exata dessa fórmula
ambígua: eu sou meu corpo”20 (SILVA, 2017c, p. 330), um ponto fundamental da
filosofia de Marcel. Trata-se do fato de que, como nota Urabayen (2000, p. 48): “o
corpo próprio goza de uma prioridade absoluta no âmbito da sensação, pois sem a
sensação do próprio corpo não há possibilidade de sentir outra coisa como
existente”. Isto significa dizer que, eu só percebo meu corpo enquanto meu na
medida em que este sente e é capaz de sentir. De acordo com Saint Aubert (2003,
p. 85), a afirmação ambígua de Marcel, “eu sou meu corpo”, “surge do fato de que
meu corpo é sensível, em dois sentidos, imanente e transitivo, do ‘sensível’:
enquanto ele é sentido e senciente”. A propósito, vejamos o que afirma Marcel
(1927, p. 236):
Vê-se, então, que meu corpo é meu somente à medida em que ele
for, tanto quanto possível, confusamente sentido. A abolição radical
da cinestesia, supondo que seja possível, seria a destruição de meu
corpo enquanto é meu. Só sou meu corpo enquanto eu sou um ser
senciente.
20
Sobre este aspecto ambíguo da afirmação “eu sou meu corpo”, Cf. SILVA, 2013.
57
De acordo com o filósofo, o “[...] corpo, por meio da sensação, permite ao
sujeito que se reconheça como um existente.” (MARCEL, 1935, p. 241). Em outras
palavras, se, por um lado, a encarnação, isto é, a consciência de mim como ligado a
um corpo, é o dado indubitável da minha existência no mundo e, portanto, aquilo que
me faz participar do mistério do ser, por outro, é na experiência do sentir, que está
radicada tal existência corporal. Ora, se me fosse “tirada” esta propriedade de sentir,
“supondo que isso seja possível”, afirma Marcel, o que aconteceria “seria a
destruição do meu corpo enquanto é meu”, ou seja, “sem esta dimensão cinestésica,
é impossível falar em acepção estrita e plena, de corpo” (SILVA, 2017c, p. 330).
Neste sentido, “o ‘sentir’, vinculando a sensação ao sentimento-de-si, revela uma
pertença e uma participação originárias ao mundo que o corpo-próprio realiza”
(BEATO, 2017, p. 280).
58
capacidade de sentir que condiciona toda e qualquer forma de experiência sensível,
por outro ele é, como afirma Marcel, não “especificável”, “incaracterizável”
(MARCEL, 1927, p. 320). Por essa razão, destaca o filósofo em duas passagens do
Journal:
59
Ora, nessa medida, o sentir não é, “[...] um evento orgânico” (MARCEL,
1935, p. 156), tão somente físico ou material. Trata-se antes de um sentir originário,
fundamentalmente ontológico. Sob estre prisma, avista Silva (2017c, p. 332; 333):
60
qual se participa diretamente, enquanto presença viva, do ser. Não pode ser, nessa
medida, reduzido a mero instrumento, mas é o “imediato não mediatizável”
(MARCEL, 1927, p. 240). Ele configura-se, numa “síntese indefectível” (MARCEL,
1927, p. 311) com a existência, como encarnação. Ademais, a existência humana e
suas relações se dão na corporeidade, que é, em última análise, o homem concreto.
Este corpo, que sou eu mesmo, é o meu ponto de inserção no mundo, meu ponto de
referência. Existir, neste sentido, é o mesmo que perceber-se ligado a um corpo (ser
encarnado). E ainda, o sujeito (corpo) se relaciona, se conhece, conhece o mundo e
os outros por que é um ser que sente, ou seja, as relações do homem se dão na
corporeidade à medida que ele é um ser senciente.
Por fim, a encarnação, como participação no mistério do ser, não se revela de
forma isolada, mas, é comunhão, com o mundo, com os outros e com o Tu Absoluto.
Isto significa dizer que, o mistério do ser é vivenciado como uma “via de mão dupla”.
Ao mesmo tempo em que faz a experiência de si como ser encarnado (consciência
de si em um corpo), o homem percebe-se em relação com um tu, o outro
(intersubjetividade) e, em última instância, com o Tu Absoluto (Deus). A encarnação
mantém uma íntima unidade entre corporeidade e existência, figura-se não como um
“estar” espacialmente localizado, mas antes, um “estar” racionalmente situado a
outrem. Desta maneira, muito longe de ser um “fechar-se em si mesmo” (como
acontece, por exemplo, ao cogito cartesiano), a encarnação é abertura ao mistério
do ser. É o ponto desde o qual se torna possível uma “experiência de
transcendência”.
61
Em 17 de outubro de 1922, em uma das passagens do Journal Métaphysique,
Marcel escreve sobre esta que deve ser a ocupação primeira da metafísica: “Trata-
se de desenraizar a interpretação segundo a qual a necessidade metafísica não é
mais que uma curiosidade transcendente; ela é, antes, um apetite (appétit), o apetite
do ser.” (1927, p. 279).
Viu-se, nos tópicos precedentes, que a corporeidade é a condição
existencialmente humana de ser no mundo e que ser encarnado é participar de um
mistério, o mistério do ser. O ser quando sistematizado, dito em linguagem técnico-
científica degrada-se em simples objeto do pensamento. É necessário, antes, que se
afirme o ser como participante de um mistério, o que exige um mergulho radical, um
engajamento existencial. O ser é, destarte, experienciado no concreto da vida, e
não criteriologicamente descrito por meio de observações racionais. A encarnação é
o dado indubitável, porém, a indubitabilidade repousa não mais na racionalidade,
mas na existencialidade.
Neste contexto da experiência investida por um caráter ontológico, o corpo,
quando não tratado de maneira objetiva, torna-se signatário do gesto transcendental
por excelência, revestindo-se de uma experiência transcendental, desde a qual toda
e qualquer experiência é possível. Na experiência da encarnação há uma
transcendência.
Ao vislumbrar a tradição filosófica é comum encontrar certa oposição entre os
termos “experiência” e “transcendência”. Isto porque “experiência”, aparentemente
se apresenta, por estar comumente relacionada com a corrente empirista, como uma
realidade empírica, imediata, ou mesmo, científica. Ora, ao referir-se ao gesto
transcendental Marcel utiliza justamente, não por acaso, a expressão: “experiência
da transcendência”. Qual é então, dentro do pensamento marceliano, o verdadeiro
sentido destes termos? Como se estabelece a relação entre encarnação e
transcendência no sentido de uma experiência ontológica?
Remontamos à questão central, não apenas de nosso trabalho, bem como da
filosofia de Marcel, de forma geral, como já vimos na parte introdutória desta
dissertação. Trata-se da questão do ser, agora sob a ótica da transcendência.
Cumpre perguntar qual a cognoscibilidade peculiar na esfera existencial. Ou melhor,
ao pergunta-se pelo ser, como se dá o processo de conhecimento do mesmo? De
que maneira é possível pensar e dizer o ser, que é mistério?
62
Há, segundo Marcel, uma necessidade no homem. A condição propriamente
humana, isto é, a situação de ser encarnado, é marcada por uma exigência que
emerge do mais íntimo do humano. Trata-se de uma exigência de transcendência,
motivada por certo espírito de inquietude que, por sua vez é motivado pela
objetificação existencial, ou melhor, pela transformação da realidade existencial em
objeto, através do pensamento, da técnica. Em outras palavras, existe em nós, no
mais profundo de nosso ser, uma exigência de transcendência que se configura, no
pensamento marceliano, como “apetite do ser”. Sob este prisma, Marcel faz notar
que o ponto de partida desta exigência transcendental é certa insatisfação, ou
inquietude, instalada no “interior do humano”. Ora, o mundo, submerso pelo
tecnicismo, esfacelado, como se viu anteriormente, pela superficialidade em que a
vida é rotulada como qualquer outro objeto, ou ainda, devorada pela falta de sentido
ontológico, é a força motriz desta insatisfação, desta inquietude. É a falta de sentido
o ponto desde o qual vê-se a necessidade de um transcender, uma exigência de
transcendência. É o que o filósofo ilustra quando observa agudamente: “[...] A crise
que atravessa hoje o homem ocidental é uma crise metafísica [...] na medida em que
ela emerge de uma inquietude que vem mais profundamente do ser” (MARCEL,
1951d, p. 35).
Diante desta crise existencial, criada pela “abstração do ser”, e na tentativa de
recuperação do estatuto mais proeminentemente ontológico da existência humana,
“nas mãos de Marcel, a ontologia ganha novo alento sob outro acento, o ‘concreto’.
Da abstração do ter, trata-se agora, de restituir a concreção do ser” (SILVA, 2014, p.
171). É de suma importância dissipar aqui qualquer confusão entre “concreto” e
“empírico”. O que aqui se enuncia é, segundo Marcel (1998a, p. 45-46), uma “noção
de pensamento experiencial em oposição ao pensamento empírico”. Resgatar o
“concreto” significa lançar-se no âmago da experiência humana por excelência, é
deixar-se envolver pela realidade que o circunda, “reconciliar-se com aquilo que, no
seio mesmo da experiência, traz à tona o que há de mais paradoxal, ambíguo,
trágico, misterioso” (SILVA, 2014, p. 172). Sendo assim, o que seria, para Marcel
“filosofar concretamente”? Azevedo (2012, p. 14), torna mais compreensível:
Ou ainda, citando mais diretamente o próprio Marcel (1940, p. 89): “De minha
parte, estou inclinado a negar a qualidade propriamente filosófica de qualquer
trabalho que não se deixa tocar pelo que eu chamo a mordedura do real”. Quer
dizer, a filosofia concreta é aquela que, instigada por este “apetite”, deixa “alimentar-
se”, pela realidade na qual está imbuída. Em vista disso, o filósofo francês
descreverá este “movimento” exercido pela filosofia, isto é, o fato de deixar-se
morder pelo real, como uma “abertura a um campo de transcendência, o território
desde onde a reflexão é possível” (SILVA, 2014, p. 173), na medida em que ela se
estabelece como uma profunda “tensão criadora” entre o eu e o próprio ser. É o que
nos assegura o filósofo:
[...] não pode haver, em minha opinião, filosofia concreta sem uma
tensão continuamente renovada e criadora entre o eu e as
profundezas do ser no qual e pelo qual nós somos ou, mesmo sem
pensar da maneira mais rigorosa possível, ser ela exercida sobre a
experiência mais intensamente vivida. (MARCEL, 1940, p. 89).
64
o mistério do ser e dirigir-se à concretude da experiência” (AZEVEDO, 2012, p. 15).
Marcel se dirige sempre no intuito de transpor qualquer aspecto idealista que possa
degradar a existência em mero objeto do espírito. É impossível, segundo ele, tratar
da existência de forma objetiva sem que se perca o real sentido da mesma. Por isso,
o existir toma proporções de primeiro plano. Nesta perspectiva, o labor
primordialmente filosófico deve caracterizar-se por meio de outro modus operandi. A
filosofia, para além de um instrumento de apreensão e sistematização do ser, passa
a se configurar como um perscrutar metafísico do mistério que é o ser, no qual se
participa via corporeidade.
Cabe, antes de tudo, perceber que o tema da transcendência surge, no
pensamento de Marcel, não como uma conclusão sistemática e lógica de suas
reflexões, mas antes como necessidade profundamente humana. A transcendência
configura-se, neste ponto, como uma exigência do ser. A encarnação, dado
existencial concreto do humano, jamais é um aprisionar-se em si mesmo, mas ao
contrário, um ir além de si mesmo, é abertura, é o ponto desde onde se pode haver
uma comunhão com o ser do qual o próprio eu participa: a encarnação é
transcendência. O ser só existe ali onde há transcendência. Neste sentido:
66
Afinal, o que significa, para Marcel, transcender? Primeiramente faz-se
necessário compreender que transcender implica sempre um movimento além, como
superação no seio mesmo da finitude, da existência, enfim, da própria encarnação.
Nesta perspectiva, Marcel retoma a oposição tradicional entre imanente e
transcendente.
21
O tópico 2.3 abordará o embate entre Marcel e Sartre, especialmente no que tange ao tema da
transcendência, sob a ótica da noção de liberdade.
67
transcendência enquanto tal. Somente assim tem sentido a palavra.
Desde já, não ocultarei que à primeira vista tal afirmação corre o
risco de parecer contraditória, porém o certo é que isto ocorre
somente por nossa tendência a formarmos, sem darmos conta, uma
ideia muito restrita da experiência. (MARCEL, 1951, p. 55).
68
O sujeito marceliano não corresponde em nada ao sujeito cartesiano, fundado pelo
cogito, imerso em uma subjetividade solipsista, isto é, voltado para si mesmo. Em
Gabriel Marcel, a possibilidade de transcendência se dá, justamente porque a
situação encarnada é abertura ao ser, ao outro, e, por fim a Deus. Ser é relacionar-
se, ou melhor, participar. Destarte, afirmar a existência nos moldes de uma
intersubjetividade é lançar as bases para uma existência por meio da qual, o próprio
eu é transformado, na medida em que é afetado por outrem via o diálogo.
Em suma, a experiência da transcendência se manifesta como ato metafísico
por excelência no âmago da existência encarnada. Isso tudo em virtude da
experiência do corpo próprio: “sem reduzir-se ao plano imediato da objetividade, o
corpo radica um gesto ontológico transcendental de primeira grandeza.” (SILVA,
2015b, p. 341). O pensamento, por ultrapassar o dado imediato, empírico, se
configura como transcendência via esse gesto encarnado que já não tem nada a ver
com o “espírito de abstração”. O pensar, desde uma perspectiva propriamente
metafísica, deve ser compreendido não como apreensão categorial de um dado
como objeto, mas como mergulho na experiência existencial. É nessa perspectiva,
que a experiência, por sua vez, não reduzida ao âmbito objetivo, toma aqui o caráter
de uma plenitude da própria existência. Transcender, nesta ótica, é um aprofundar
da experiência propriamente humana.
Por fim, o modo como eu mesmo decido me abrir ou não a esta experiência
transcendental, radicada na encarnação enquanto situação humana, singular,
estabelece minha situação existencial. Isto porque, esse contexto de exigência
ontológica do ser implica um ato livre de escolha. Em outras palavras, o homem é
livre diante dessa exigência de transcendência. Ele se encontra livre para escolher
viver em um âmbito do problemático, do ter, da técnica ou, pelo contrário, do
mistério do ser. A liberdade emerge aqui como desdobramento decisivo da
experiência de transcendência.
Cumpre-nos questionar, então, se essa liberdade não incorreria em numa
atitude de angústia e desespero diante da possibilidade de objetificação do ser? De
pronto compreende que não! (e este é o ponto divergente com a filosofia de Sartre).
Mas então, qual é, de fato, o papel da liberdade no pensamento marceliano? Quais
os desdobramentos desta noção? É o que passaremos a investigar desde um
69
embate travado com Sartre sobre a natureza mesma da assim chamada “corrente
existencialista”.
71
a existência precede a essência, ou, se se quiser, que é preciso
partir da subjetividade. (SARTRE, 1996, p. 26)
72
E, quando nós dizemos que o homem é responsável por si mesmo,
não queremos dizer que o homem é responsável por sua estrita
individualidade, mas que ele é responsável por todos os homens. Há
dois sentidos para a palavra subjetivismo e nossos adversários
jogam com esses dois sentidos. Subjetivismo quer dizer, por um
lado, escolha do sujeito individual por si mesmo, e, por outro,
impossibilidade para o homem de ultrapassar a subjetividade
humana. É esse segundo o sentido profundo do existencialismo.
73
toma ao dizer isto, existentia e essentia no sentido da Metafísica que, desde Platão,
diz: a essentia precede a existentia. Sartre inverte esta frase. Mas a inversão de
uma frase metafísica permanece uma frase metafísica” (HEIDEGGER, 1979, p. 157).
A respeito desta querela filosófica e do ponto crucial de discordância entre os
pensadores sintetiza Silva (2022, p. 60):
74
“Eis porque ao tentar operar o salto da ‘existência’, essa segue se mantendo, sob
certo aspecto, ‘essencializada’, por mais que se aparte da ‘essência’”.
O ponto fulcral da divergência entre os filósofos é o postulado do cogito
cartesiano como pano de fundo da teoria existencialista. Com efeito, parte da crítica
marceliana desenvolve-se na direção do humanismo postulado por Sartre nos
moldes de um relativismo que toma o homem como centro de todas as coisas,
retornando assim, em certa medida, ao equívoco de considerar o homem como
medida de todas as coisas. É o que o filósofo afirma:
O embate entre Marcel e Sartre tem como uma das principais chaves de
leitura o fato de que o primeiro sempre foi avesso a qualquer estereótipo escolar da
filosofia e, por conseguinte, da existência. Com efeito, Marcel caracterizará seu
pensamento como “existencial” e não “existencialista” justamente por ver no dito
“existencialismo” anunciado por Sartre um princípio de sistematização e
absolutização do pensamento. É o que ele afirma no prefácio de sua peça teatral,
Um Homem de Deus acerca da posição sartriana: “Note-se que não digo
existencialista: cada vez mais estou convencido de que o existencialismo, como tal,
é contraditório, porquanto tende a converter em sistema um modo de pensar que
exclui, por natureza, qualquer sistematização.” (MARCEL, 1964b, p. 7).
Toda querela filosófica repousa sobre a maneira como ambos os pensadores,
compreendem o homem em sua situação fundamental. É bem verdade que Marcel
sempre se mostrou um crítico ferrenho do pensamento sartriano. Tal fato não
denota, como pode parecer, inimizade22 entre os filósofos, menos ainda discordância
22
Apesar de bastante discordante com a filosofia sartriana, Marcel a elogia também muitas vezes,
especialmente no que se refere a sua obra dramatúrgica. Sabe-se ainda da relação estabelecida
pelos dois filósofos, como já citado acima, nos encontros à casa de Marcel às noites de sexta-feira,
junto a outros pensadores, para um diálogo filosófico. O próprio Sartre em uma carta destinada a
75
total no que tange às formas de pensamento. Sem dúvida, as teorias se tocam, se
entrecruzam e, por fim, tomam rumos diferentes. Entre os principais pontos
convergentes entre eles está o fato de que ambos subentendem a realidade
existencial concreta, isto é, a situação do homem como ser concreto no mundo. Este
modo próprio de estar no mundo ganha, contudo, caráter totalmente oposto na
filosofia de Marcel, pois, como lembra Carmona (1988, p. 31):
Marcel, que fora publicada recentemente, agradece, com admiração e reconhecimento, a influência
e a colaboração deste em sua obra (Cf. Sarte, 2019).
76
título de A Existência e a Liberdade Humana em Jean-Paul Sartre que, como
podemos ver, é inteiramente dedicada ao filósofo de O Ser e o Nada e ao tema da
liberdade, sobre a qual disserta em uma frase que sintetiza a disparidade entre
ambos: “A liberdade que defendemos, in extremis, não é uma liberdade prometeica;
não é a liberdade de um ser que seria ou que pretenderia ser para-si” (MARCEL,
1951d, p. 187).
Diante de tal crítica, evoca-se, então, a questão: o que, para Marcel, é a
liberdade? Quem nos responde é o próprio filósofo, em uma passagem de Mystère
de l’Être II, na qual está impressa sua marca característica, a saber, a transmutação
da pergunta pela liberdade como conceito filosófico para uma questão posta desde o
concreto existencial, isto é, desde a realidade humana: “Parece que antes de tudo
devemos nos perguntar até que ponto, ou dentro de que limites, posso afirmar-me
ou não como um ser livre, tendo em conta minha própria experiência vital”
(MARCEL, 1951, p. 110). A liberdade, além de não ser um conceito puro e simples,
mas uma realidade concretamente humana, aparece aqui não como a condição que
possibilita toda existência, quer dizer, como um ponto de partida desde o qual toda a
existência é possível, mas antes, ela precisa ser conquistada (URABAYEN, 2000, p.
02). Ora, e é existencialmente por isso que, em Marcel, a liberdade é, antes de tudo
uma decisão, a decisão pelo ser: “[...] minha liberdade não é nem pode ser algo que
constato, senão algo que decido e que decido sem nenhuma apelação possível”
(MARCEL, 1951, p. 114).
Neste sentido, a expressão primeira da liberdade é a de ser uma conquista,
alcançada por meio da decisão pessoal. Esta decisão é evidenciada na situação de
crise existencial, diante da angustiosa possibilidade de fechar-se em si mesmo. Com
isso, o homem é livre para decidir por libertar-se desta terrível condenação, “[...] a
liberdade é, em primeiro lugar e, antes de tudo, poder afirmar-se ou negar-se a si
mesmo” (MARCEL, 1940, p. 40). A liberdade apresenta-se como a capacidade do
homem de, diante do desespero e da angústia, decidir pela esperança 23.
Outro aspecto primordial na inflexão com Sartre reside no postulado da
liberdade como ponto de partida da existência. Como recorda Garaudy (1968, p.
147-148):
23
A íntima relação entre liberdade e esperança ficará mais evidente no último tópico do terceiro
capítulo Esperança, amor e fidelidade: as aproximações concretas ao mistério do ser.
77
A partir de sua concepção do ser e do nada, Sartre construía uma
filosofia da liberdade que tornava dificílima a determinação das
relações com os outros, senão como relações de hostilidade entre
liberdades insulares. Gabriel Marcel, em vez de partir da liberdade
para esforçar-se por ir ter com outrem, procura, de início, realizar a
comunicação com outrem e com isso a participação no ser para
situar a liberdade no interior dessa participação, como um de seus
momentos
24
O tema da participação, um dos primeiros conteúdos abordados por Marcel em sua obra filosófica
como fundamento da experiência ontológica por excelência, será tema do terceiro tópico do terceiro
capítulo, intitulado Comunhão e participação.
25
É bem verdade que, páginas adiante, Sartre arrogará, para sua obra, certa intersubjetividade ao
afirmar que “Outrem é indispensável a minha existência, tanto quanto, aliás, ao conhecimento que
eu tenho de mim mesmo. Nestas condições, a descoberta de minha intimidade descobre para mim
ao mesmo tempo outrem como uma liberdade colocada diante de mim, que só pensa e só quer a
favor ou contra mim. Assim, descobrimos imediatamente um mundo que chamaremos a
intersubjetividade, e é neste mundo que o homem decide o que ele é e o que são os outros.”
(SARTRE, 1996, p. 58). Há, todavia, uma grande divergência com relação ao que Gabriel Marcel
propõe como intersubjetividade nos termos de uma comunhão participativa.
78
3. EXISTÊNCIA CARNAL E INTERSUBJETIVIDADE
26
Como vimos, o termo é, como afirma Marcel, deveras inapropriado, haja vista que, se trata, antes,
de uma participação ontológica do que uma justaposição propriamente dita.
80
A existência está dada com relação à própria corporeidade, porém,
isso não significa que se trate de uma tomada de contato cognitiva,
de modo que o homem conhecesse através de sua corporeidade a
existência, senão de uma relação muito mais íntima [...] Assim,
propriamente, não é uma relação, mas uma participação: o homem
participa da existência por sua corporeidade e a existência do mundo
e dos outros se faz patente na própria existência, participando de sua
mesma prioridade, de sua mesma condição de indubitável.
Afirmar que outrem participa do meu corpo significa dizer que ele usufrui da
mesma prioridade ontológica de ser no mundo como encarnação. Nesta medida,
está em comunhão comigo visto que participamos do mesmo mistério do ser. Assim,
portanto, existir é abrir-se à realidade concreta. Viver é estabelecer laços de
comunhão com esta realidade que me circunda e na qual estou mergulhado, ou
melhor, encarnado.
83
Antes de tudo, atentemo-nos para o contexto histórico em meio ao qual surge
o tema da intersubjetividade no pensamento de Marcel. Durante a Primeira Grande
Guerra, o jovem filósofo atuou como voluntário junto à Cruz Vermelha num serviço
que consistia em levar as notícias dos mortos e feridos em combate aos seus
familiares. Marcel revela que é nesse convívio diário e direto com a aflição e o
flagelo da guerra que suscita seu primeiro encontro com a “intersubjetividade”. Ora,
ao ter que dar tais notícias, Marcel começa a se indagar profundamente sobre as
relações entre os seres humanos e como estas se encontram degradadas,
indiferentes, desprovidas de qualquer sentido mais profundo.
O que o autor pretende mostrar é que as nossas relações com outrem se dão
nos termos de uma comunicação, de um diálogo. Trata-se de ver que o diálogo é
muito mais que uma informação dada por alguém a outrem, ou ainda, é mais que
mero interrogatório onde alguém pergunta e outro alguém responde. Tudo repousa
sobre a esfera do nós: eu e outrem como pessoas numa unidade supra-relacional.
Ainda, “[...] embora possa parecer assim, o ‘nós’ não é uma soma de dois ‘eu’, mas,
ao contrário, uma comunhão autêntica, em que cada sujeito pode sempre olhar em
si-mesmo a fim de se encontrar” (CAIFFA, 2017, p. 432). Sob este olhar, na filosofia
de Gabriel Marcel, a intersubjetividade encontra o seu valor fundamental no interior
do sujeito: ela é “[...] na realidade, interior ao sujeito por si mesmo; cada um é para
ele próprio um nós, que não pode ser por si senão muitos, de tal modo que o valor
só é possível nesta condição” (MARCEL, 1959, p. 159).
Ao instaurar a noção de relação dialógica, o filósofo afirma que a minha
relação com outrem se caracteriza a partir do diálogo que eu estabeleço com ele. A
minha comunicação com o outro pode se dar em um nível de tratamento de um “eu”
para com um “ele” ou de um “eu” para com um “tu”. Na primeira, a relação é
totalmente impessoal, objetiva. Ela se encontra no âmbito do problemático. Já na
segunda, existe uma abertura a existência enquanto comunhão no ser pelo amor. A
segunda é uma relação autêntica, fundada na comunhão e na reciprocidade,
enquanto que a primeira é inautêntica, fundada na exterioridade, no ter. Sendo
assim, a reflexão acerca de outrem não se situa no âmbito do problemático, mas do
mistério. Trata-se de uma questão ontológica porque, originariamente, se refere à
coexistência de um ser para outro ser. Antes de explanarmos a diferença entre o
84
diálogo “eu-ele” e “eu-tu” 27
, precisemos que a noção de diálogo aqui proposta vai
além de uma simples conversa entre dois sujeitos, é mais que um um trivial “bate-
papo”:
O diálogo é, acima de tudo, reconhecimento do outro como outro. Ele
é a admissão da alteridade, reconhecimento do outro, em sua própria
alteridade. No diálogo autêntico, eu aceito o outro como interlocutor,
eu o ligo a mim no seio do diálogo, e o confirmo em seu ser como
meu próximo (GRANADE, 2008, p. 4).
27
Notemos que, neste ponto, a filosofia de Marcel se assemelha a de Martin Buber (1878-1965),
filósofo austríaco, naturalizado israelita, de família judaica ortodoxa. No prefácio de sua obra, escrito
por Marcel, encontramos o seguinte: “Martin Buber e eu sentimos uma surpresa análoga quando
cada um de nós constatou que outrem, paralelamente a si e no seu desconhecimento, tinha
perseguido uma investigação idêntica sobre a originalidade do tu” (MARCEL, 1969b, p. 5).
85
Em que condição empregarei a segunda pessoa? O postulado é
inverso daquele que mencionei anteriormente. Eu me refiro à
segunda pessoa que é vista por mim como provável de me
responder, de qualquer maneira que seja – mesmo se esta resposta
for um “silêncio inteligente”. Ali onde nenhuma resposta é possível,
só há espaço para o “ele” (MARCEL, 1927, p. 137-138).
87
se como um diálogo autêntico entre eu e outrem ao passo em que eu me descubro
ser com outrem que se me apresenta. Não o julgo a partir de suas funções, mas, me
percebo implicado em sua existência, ou melhor, em nossa existência, visto que,
neste encontro, neste autêntico diálogo ontológico o “eu” e o “tu” acabam por
desaparecer e o que se percebe é a presença do “nós”.
Nenhuma relação autêntica pode se produzir se a alteridade não for
reconhecida, isto é, nenhum diálogo verdadeiramente autêntico pode se estabelecer
sem o elemento da reciprocidade. Por isso, a reciprocidade é a fundadora de toda e
qualquer relação entre o “eu” e o “tu”. A intersubjetividade, enquanto comunhão,
nesta medida, se estabelece como uma realidade interior e essencial para a
formação de si mesmo, do próprio ser. Existir é co-existir! Quando “o homem deixa
de ser a consciência pura ou o eu infinito do idealismo, quando o assumo como eu
concreto e limitado, é reconduzido à descoberta do outro, à dinâmica da correlação
e da reciprocidade” (PEREIRA, 1986, p. 3 apud BEATO, 2017, p. 302). Por essa
razão,
88
nosso próprio, num verdadeiro encontro. Nessa direção, retornamos aqui à segunda
seção do primeiro capítulo desta pesquisa:
Ora, esse encontro de que fala Marcel, que se dá por meio da abertura
outrem, numa atitude de recolhimento só é possível, seguindo o pensamento do
filósofo, por meio do amor. A relação própria para com o tu é a do amor.
“Efetivamente, quanto mais se ama um ser e mais participamos de sua vida, mais
renunciamos cada vez mais em possuí-lo e julgá-lo” (CAIFFA, 2017, p. 439).
Somente o amor é capaz de acessar a autenticidade de outrem. Pelo amor,
acessamos outrem como um tu. Apenas o amor dá acesso à realidade outrem, como
afirma Marcel (1927, p. 145-146):
89
3.3 Comunhão e participação
28
O processo metafísico do conhecimento se fundamenta não nos tempos de uma apropriação
objetual, abstração de certo conteúdo do pensamento, mas, de aproximações ao ser. Aproximação,
90
próprio ser com o qual se enseja estabelecer esta relação (participação) não é um
espetáculo, isto é, algo exterior ao eu. Ao contrário, são existentes nos quais o
próprio eu, enquanto participante do ser, se encontra originariamente encarnado.
Pois bem, tal participação “aparece, essencialmente, como mistério, isto é, como
escapando a todo método de análise que a converteria em objeto” (MARCEL, 2018,
p. 47).
O pontapé inicial das reflexões marcelianas acerca da existência como
participação ontológica é dado por meio da crítica àquilo que já no manuscrito XII
dos Fragmentos Filosóficos ele descreve como “saber absoluto”. Trata-se da posição
da tradição filosófica que encontra no idealismo crítico sua representação exemplar,
e que possui como mote programático a dita “doutrina da intuição”. O que pretende
tal saber? Ora, este se caracteriza essencialmente pela tentativa de apreensão do
ser de um ato imanente por meio do qual o ser mesmo, como algo que ultrapassa a
própria consciência, é sistematicamente abstraído como objeto. O que Marcel
problematiza, já no primeiro parágrafo do manuscrito XII, é se a realidade pode ser
concebida como saber absoluto, como um sistema inteligível que compreenderia,
em sua unidade concreta e indivisível, todos os elementos particulares do saber?”
(MARCEL, 2018, p. 23).
Nesta perspectiva, a participação emerge “em oposição à objetividade do
saber abstrato. Ou seja, participamos exclusivamente do ser na medida em que nos
constituímos, portanto, como individualidades” (MARCEL, 2018, p. 65). Estamos
implicados no ser, ou melhor, participamos do ser. De que forma se estabelece essa
participação? Como ela está estruturada? É apenas a partir da corporeidade que
posso me afirmar enquanto participante do ser?
Mais de vinte anos após os seus primeiros escritos, Marcel discorrerá sobre
certa aderência que envolve, segundo ele, a questão da gênese do eu e da gênese
do mundo em um mesmo estado de questão:
eis um termo caro ao pensamento de Gabriel Marcel. O próximo tópico, Esperança, amor e fidelidade:
as aproximações concretas ao mistério do ser, visa explicar melhor essa noção
91
Aqui percebe-se a implicação, ou melhor dizendo, uma aderência ao ser que
se firma por meio da encarnação. Há, como afirma acima Marcel, uma
“insolubilidade” entre o homem e o mundo. Só é possível falar em participação a
partir deste dado concreto existencial radicado na corporeidade. Nesta perspectiva,
ser encarnado é participar do ser. Existem, entretanto, dois níveis pelos quais se dá
esta participação. O primeiro, que acabamos de citar, refere-se à condição mesma
do ser enquanto ser que, pelo fato de ser a experiência mesma da encarnação
instaura a permeabilidade entre o mundo e eu mesmo, e os outros seres. O outro
nível de participação é aquele que é aprofundada pela consciência, como bem
interpreta Beato (2009, p. 155):
Por este viés, o ser, aqui, não é abordado como uma substância ou essência,
O ser só pode ser fenomenologicamente descrito, em Marcel, como algo no qual eu
estou implicado. O ser é, antes de tudo, comunhão, relação, melhor ainda,
participação. Neste sentido, afirma o próprio filósofo: “A participação não pode ser
pensada na medida em que o pensamento pode se despojar de todo elemento
reflexivo, na medida em que ele pode se renunciar a si próprio, fazendo, por assim
dizer, abstração de si.” (MARCEL, 2018, p. 46). Se assim o é, a pergunta emergente
desta colocação é a seguinte: o ser, tomado como participação, num âmbito de
mistério e não de uma linguagem objetiva, pode ser dito?
O que se encontra, na raiz desse estado de questão é a crítica de Marcel
àquilo que ele denomina como “saber absoluto” desenvolvida sobretudo através da
“doutrina da intuição” presente no idealismo kantiano e pós-kantiano. O saber
absoluto tem a pretensão de apreender o próprio ser, por meio de um ato imanente,
como algo que ultrapassa a própria consciência. Conforme esse procedimento, uma
vez apreendido, o ser é rigorosamente sistematizado e categorizado como objeto. O
grande equívoco, como nota Marcel, é o fato de que “a intuição para poder se
92
exercer supõe que o ser seja dado e não dado por ela” (MARCEL, 1912: 644). Silva
(2015a, p. 125), por exemplo, ilustra esse argumento:
É em tal contexto que a distinção entre ser e ter cumpre um papel importante
nesse debate. Marcel mostra acima que a doutrina do saber absoluto se revela
ingênua à medida que toma o “ser” a título do “ter”. Ela visa criteriologicamente
definir ou caracterizar o ser ao nível de um simples e puro objeto.
O que não se reconhece em tal doutrina é outro nível no qual o ser
fenomenologicamente se manifesta, ou seja, a título de uma experiência misteriosa
que, aliás, desarma toda teoria do conhecimento clássica via uma participação muito
íntima:
Ora, de acordo com o nosso filósofo, “todo conhecimento implica, como sua
condição necessária, um incognoscível” (MARCEL, 2018, p. 39), ou ainda, um
“inverificável”. Isto significa dizer que, o processo do conhecimento,
fenomenologicamente manifesto, pressupõe uma base que não se pode verificar
pelo cálculo e pela sistematização intuitiva ou epistêmica. Há, no conhecimento,
uma dimensão que não pode ser dita em linguagem lógico-racional, mas apenas
possível de ser vivida, no concreto. Afirmar que o “pensamento participa do ser” é
apontar para uma realidade do conhecimento que se dá como mistério a ser vivido,
e não criteriologicamente categorizado. Esta participação só pode ser pensada para
além do dualismo sujeito-objeto.
Nessa medida, o ser não pode ser pensado, dissecado, analisado como algo
exterior a nós, ao eu. Sendo algo no qual se está implicado, por uma participação
94
ontológica, ele é, antes de tudo, experienciado no mais profundo de uma comunhão
que se revela como um “nós”. Reiteramos que existe uma participação do
pensamento ao ser. Mas de que forma se dá essa relação, ou melhor, essa
participação?
Ora, de pronto já sabemos que, conforme Marcel, a participação compreendida
aqui em acepção ontológica não se dá da maneira que pretendia o idealismo e
realismo, quer dizer, nos termos de um saber absoluto, que abstrai o ser a título de
objeto do conhecimento. “No fundo, a verdade que chamamos ‘ser’ não é
comunicável como uma verdade científica; outra ‘ordem’ de inteligibilidade se
apresenta: ‘Uma participação real não se deixa traduzir pela linguagem objetiva’”
(MARCEL, 1927, p. 80). Outrossim,
Se, por um lado, o ser não pode ser abordado desde o âmbito do
problemático num esforço que visa apreendê-lo via um ato lógico-racional, como
objeto do intelecto ou do espírito; por outro, a filosofia recebe, em Marcel, a tarefa de
restituir à experiência humana seu peso ontológico. Nos cabe, então, questionar: A
filosofia é possível? Como se estabelece a filosofia, haja vista que sua ocupação
95
fundamental é a existência que, por sua vez, não pode ser tratada, segundo Marcel,
sistematicamente? Urabayen (2001, p. 31), quanto a isso, bem observa:
96
ser compreendida, da reflexão. Daí resulta o termo “intuição reflexiva”. Assim afirma
o filósofo:
97
que facilitam a inserção do homem no mundo e, uma vez
estabelecidos e assimilados, passam a formar parte da cultura, da
ciência e da tradição. Em último lugar, é insubstituível, pois o homem
não pode prescindir dela. Não há ser humano sem capacidade
racional dessa ordem. (URABAYEN, 2001, p. 57).
98
Fidelidade, esperança e amor são as três modalidades fundamentais
da aproximação concreta ao mistério ontológico, vivências que não
se reduzem a meros estados de consciência, mas constituem, antes
atos de alcance metafísico nos quais a inteligência comunga da
afetividade da vontade num surto de superlativação da existência. A
primeira constituía a trama essencial das outras, sendo que as três
se situam no plano da intersubjetividade: a experiência de comunhão
ontológica.
3.4.1 A Esperança
29
Trata-se do terceiro capítulo da obra, Esquisse d’une phenomenologie et d’une métaphysique de
l’esperance.
99
momento, como uma resposta a esta inquietação humana diante da solidão e do
desespero, criados pelo contexto problemático no qual está mergulhado o mundo,
onde o ter impera sobre o ser e a técnica sobre o mistério.
Marcel buscou articular uma “filosofia do concreto” que, radicada na realidade
existencial eminente, escapasse ao pensamento objetivo e sistemático. Ora, o ponto
de partida aqui não poderia ser outro. Ao falar da esperança, o filósofo não o faz a
partir de conceitos abstratos, mas a partir de um fato concreto, de certa experiência
ontológica vivida por aquele que espera, qual seja, o homem. Isto porque, de acordo
com o filósofo, “apelar a certa experiência que se faz necessário supor presente
àquele a quem se dirige” (MARCEL, 1944, p. 39).
Assim, portanto, falar de esperança, segundo Gabriel Marcel, não é tratar de
um conceito meramente formal, mas antes de uma experiência ontológica vivida
desde uma situação fundamental: a encarnação. É por isso que já no início do
capítulo Esboço de uma Fenomenologia e de uma Metafísica da Esperança, o
filósofo atenta para o fato de que o estudo sobre os fundamentos da esperança,
para evitar maiores equívocos, deve partir desde um ponto concreto: “a experiência
do ‘eu espero’” (MARCEL, 1944, p. 39).
Antes de mais nada, é preciso apontar para o fato de que a esperança aqui
retratada não deve ser confundida com nenhuma questão psicológica como o
otimismo, o desejo ou a crença. É justamente na intenção de esquivar-se dessas
classificações que Marcel, partindo da situação concreta do homem, procura
desenvolver uma “fenomenologia e metafísica da esperança”, reconduzindo a
questão para uma experiência concreta de transcendências, no intuito de desvelar
um sentido mais profundo, um peso ontológico no ato de esperar. Neste sentido,
afirma Azevedo (2018, p. 144):
100
outro, como uma possibilidade metafísica de resposta ao ser. Beato (2013, p. 75)
nos mostra como compreender a questão:
A esperança constitui, antes de tudo, como diz Marcel, uma luta ativa
contra o desespero – desespero ante a doença, à separação, o
exílio, à servidão, mas também ante à clausura, o tédio, e à
degradação da vida quotidiana funcionalizada num mundo partido.
30
Em Homo Viator: Prolégomènes a une Métaphysique de l’esperance os termos provação, cativeiro,
prisão, trevas e factum, são recorrentemente utilizados por Marcel para ilustrar o sofrimento capaz de
colocar o homem diante de uma situação de escolha entre desespero e esperança.
31
Tais reflexões tomaram consistência durante a Ocupação, na Segunda Guerra Mundial. Neste
sentido, o momento histórico-cultural da guerra possibilitou evidenciar a abrangência primordial desta
experiência de cativeiro no concreto existencial.
101
situação-limite de sofrimento que é possível ao homem escutar o brado ontológico
convocando-o a uma resposta autêntica, a esperança. Vejamos, então, de que
maneira se dá essa experiência de cativeiro, e como ela convoca, em nós a
esperança.
102
segundo o qual ela aparece como “cativeiro” 32
e precisamente assim se apresenta
com esse perfil, segundo o qual está, assim se pode dizer, sujeita à esperança.”
(MARCEL, 1944, p. 50). Trata-se da constatação de um “vazio”, uma carência de
plenitude no interior do sujeito, que se percebe em um mundo sem sentido e cuja
responsabilidade de significá-lo depende dele mesmo. É o que ilustra o filósofo:
32
Marcel faz questão de observar que esta noção de cativeiro não possuí quaisquer semelhanças
com a teoria dualista platônica e/ou espiritualista tradicional, que se desenvolvem em termos
totalmente distintos dos aqui abordados. Cf. MARCEL, 1944, p. 50.
103
mistério que desvela para o sujeito. A não observação destes pressupostos acaba
por “turvar” a reflexão racional, impedindo o acesso ao ser, haja vista a
impossibilidade de redução conceitual. O que se torna incabível, aqui, é a tentativa
de coisificação da esperança em pretender considerá-la a parte da experiência
cotidiana, como uma categoria de um possível “eu puro”, como pretendia o
idealismo.
Marcel propõe uma distinção capital entre “eu espero que” e “eu espero”. O
ponto elementar da diferença é o fato de que o “eu espero que” pressupõe uma
determinação específica a ser colocada logo após o pronome relativo “que”. Neste
sentido, o ato de esperar fica condicionado e, portanto, limitado ao desejo do sujeito.
Há, aqui, a indicação da formulação de um objeto definido do desejo. Por outro lado,
a estrutura do “eu espero” suspende qualquer definição possível, fundando-se no
incondicionado e, portanto, permanecendo aberta ao insondável (mistério).
A abordagem da esperança enquanto experiência ontológica, conforme nosso
autor, deve fugir a dois extremos: o primeiro é caracterizado como uma “física da
esperança”, isto é, a partir de uma realidade puramente material; o outro é o de
assemelhá-la a um conteúdo essencialmente espiritual, o qual se pode dar conta por
meio de conceitos psicológicos. A esperança pertence, pois, ao campo do mistério,
e como tal distingue-se de qualquer redução ao simples otimismo, seja ele material
ou espiritual.
104
como vimos, a atitude do “eu espero” permanece aberta à realidade misteriosa e,
consequentemente, a outrem, possibilitando uma aliança, uma participação. Por
outro lado, o otimista é aquele que se mantém aquém, alheio e, portanto, não
permite nada além de uma relação objetiva e superficial. Nesta perspectiva, “aquele
que diz eu espero, aparece-se a si mesmo implicado em um processo e imbricado
nas relações eu-próximo-mundo-encarnação. Desta maneira, o eu está numa
espécie de simbiose na postura de esperança” (AZEVEDO, 2018, p. 148)
Tendo visto alguns aspectos fundamentais que constituem a esperança, na
trilha do nosso autor, atentemos agora, um pouco mais, à natureza própria daquele
que é o campo desde o qual o fenômeno do esperar é possível: o desespero. O ato
de desesperar é relacionado por Marcel a certo tipo de rendição, é o ceder, ou
ainda, o “desfazer-se em presença [...] dessa situação” (MARCEL, 1944, p. 51), qual
seja, a situação de cativeiro. Vejamos:
107
Diante de tudo que se expôs até aqui sobre a noção de esperança e suas
estruturas básicas, segundo Gabriel Marcel, passamos agora a um ponto peculiar e
crucial para o entendimento da esperança: o fato de que “a esperança não é um
simples estimulante subjetivo” (MARCEL, 1944, p. 79), mas se projeta no campo da
intersubjetividade, haja vista que o “eu” que espera pressupõe sempre estar diante
de um tu. Nesta medida, afirma Marcel, a forma mais autêntica do “eu espero” é, na
realidade, esta: “eu tenho esperança em ti” (MARCEL, 1944, p. 54).
3.4.2 O Amor
33
Visamos aqui apenas retomar a noção, de forma breve, em um primeiro momento na mútua
implicação esperança-amor e, posteriormente, em seu aspecto fundacional do próprio ser nos
termos de um eu que, estando aberto a outrem cria um nós, comunhão participativa, através da
presença e da disponibilidade. A experiência do amor, por sua vez, encontra-se fundamentada em
uma Presença Absoluta de um amor divino que permite a participação.
109
amor e esperança são consubstanciais. Afirmará Marcel que “a esperança é um
protesto ditado pelo amor” (MARCEL, 1935, p. 115). Isto porque a esperança se
assenta e se dirige, como vimos, em uma comunhão incondicional.
O amor, por sua vez, vive, se alimenta da esperança. Ela é “o estofo onde
nosso amor é produzido” (MARCEL, 1935, p. 117). Amar alguém, como afirmou o
filósofo, é estar aberto ao outro, via o ato de esperar, e esperar sempre o indefinível,
o imprevisível, esperar o outro mesmo em sua concretude real. Amar é um ato de
esperança que não apenas acolhe o outro, mas se dá ao outro na disponibilidade
como presença.
Presença significa mais que algo diferente do fato de estar aí; com
todo rigor, não se pode dizer de um objeto que ele está presente.
Digamos que na presença está sempre implícita uma experiência por
sua vez irredutível e confusa que é o sentimento mesmo de existir,
de estar no mundo. (MARCEL, 1944, p. 18).
110
estou com um ser indisponível, tenho consciência de estar com
alguém para quem não existo; vejo-me rechaçado e, portanto, me
dobro em mim mesmo [...]. Deve-se perguntar, igualmente, se o tu,
como valor ou como realidade, não possui a função do que chamo
minha disponibilidade interior. (MARCEL, 1935, p. 105; 107).
111
afirmação assume uma dimensão que ultrapassa as categorias de espaço e tempo.
O amor, todavia, deseja sempre a eternidade. Esse anseio pela eternidade do ser
amado o vemos estampado na exclamação de Le mistère de l’être: foi et réalité:
“Amar um ser é dizer-lhe: Tu não morrerás jamais! Significa: há em ti, por que te
amo, porque te afirmo como ser, algo que me permite transpor o abismo disso que
chamo indistintamente a morte” (MARCEL, 1964, p. 62).
Parece-me que não há amor humano digno de tal nome que não
constitua, aos olhos de quem o pensa, um compromisso e, por sua
vez, uma semente de imortalidade; de outra parte, não é possível
pensar este amor sem descobrir que se supera e transcende em
todos os sentidos; que exige, no fundo, para ser plenamente ele
mesmo, uma comunhão universal. Por nossa comunhão, espero a
indestrutibilidade, e a esperança resiste, aqui, a todo desalento com
a convicção de que se se admitisse como possível esta destruição,
trairia a fidelidade essencial que serve de laço à comunidade. A
Transcendência é o fundamento da relação intersubjetiva no plano
humano e o Tu Absoluto é a garantia e a realidade em que se
encontram os sujeitos humanos. (MARCEL, 1944, p. 200-201).
112
quem faz possível que um amor incondicional não somente se contrate, mas que se
mantenha” (2000, p. 102).
Ao mesmo tempo, é curioso o fato de que Gabriel Marcel não tenha dedicado
nenhuma obra específica sobre o amor. O tema, entretanto, aparece ao longo de
toda a sua obra de maneira bastante clara. Se poderia dizer ainda que mesmo as
entrelinhas de toda a obra de Marcel são perpassadas pela noção de amor, que é
tida pelo filósofo como “o dado ontológico essencial” (MARCEL, 1935, p. 244).
3.4.3 A Fidelidade
113
implica ou exige uma história, por oposição à permanência inerte ou
formal de um puro válido, de uma lei. (MARCEL, 1935, p. 173-174).
115
CONSIDERAÇÕES FINAIS
116
“ter” visaram servir como uma introdução, ao modo de um preâmbulo, no intuito de
melhor situar o leitor.
Neste seguimento, adentramos a proposta fenomenológico-existencial de
Marcel que consiste, em suma, na afirmação do corpo como um fenômeno, ou, se
quiser, como um ser de mistério, por meio do qual se participa, via um sentir
originário, do mundo e de outrem numa mesma comunhão ontológica. Há, no
coração do homem, uma necessidade de transcendência, ou melhor, uma exigência
de transcendência que só pode ser satisfeita a partir de um mergulho livre e radical
na existência como mistério. A liberdade figura-se aqui não como condenação, mas
como condição de possibilidade para a abertura de sentido, uma aproximação
concreta ao ser.
Existir, como vimos, não é um ato solipsista, uma descoberta individual de um
eu que se percebe a si mesmo como fundamento da própria existência. Existir é,
conforme Marcel, co-existir. Destarte a existência está perpassada pela
intersubjetividade. A noção da intersubjetividade repousa sobre a fundação de uma
existência compartilhada, como expressão comunitária, o ágape do amor fraterno.
Outrem é carne da minha carne, participante da mesma indubitabilidade existencial
que eu como “prolongamento do meu ser”.
O fato de que o “eu” esteja implicado em uma mesma realidade existencial
que outrem não garante, entretanto, uma relação autêntica entre ambos. Surge
então a noção de relação dialógica, isto é, a minha relação com outrem se permeia
no diálogo que com ele estabeleço. Tal comunicação pode se dar em um nível de
tratamento de um “eu-ele” ou “eu-tu”. A primeira é uma relação impessoal, deveras
objetiva, pertencente ao âmbito do problemático. A segunda, por sua vez, pressupõe
uma abertura existencial que se concretiza em comunhão no ser, pelo amor.
Já o terceiro capítulo se encerra, então, com o levantamento de um tema que
emerge das concepções da encarnação e da intersubjetividade: o da comunhão
ontológica. Tomada nos termos de uma participação de mistério, ela se estabelece
como acesso ao mistério do ser por meio de aproximações concretas, dentre as
quais, se destacam as principais: esperança, amor e fidelidade. Diante do fato de
sua finitude, o homem é chamado a transcender, por meio da abertura ao amor e à
fidelidade, superando o desespero pela esperança.
117
Eis porque, ao apontar os limites da tradição metafísica, Marcel nos indica o
exercício concreto da filosofia como aproximação ao mistério do ser. Ao articular seu
pensamento desde o dado encarnado torna possível a compreensão do
reconhecimento do sujeito como existente a partir de um movimento de participação
ontológica como presença e comunhão. Nesse sentido, o mergulho livre por meio da
vivência da esperança, do amor e da fidelidade a outrem são capazes de
estabelecer uma profunda relação de intersubjetividade que levam à restituição da
experiência ontológica propriamente humana. E a concretude desta experiência é
justamente esta: o fato de que a existência não pode ser objetificada, abstraída,
mas, antes, vivida como mistério de participação.
Partindo da existência concreta, ele propõe o dado da encarnação como
ponto de partida de toda a reflexão filosófica. Com isso, o filósofo pretende resgatar
o sentido próprio da existência humana que fora perdido pelo racionalismo e
cientificismo, na medida em que estes ora tratam as ideias e o próprio homem de
forma abstrata e impessoal, fugindo da realidade mesma da existência, ora fazem do
homem e de suas relações meros objetos desprovidos de todo e qualquer sentido.
Sendo assim, pensar a realidade humana em sua existência concreta, se traduz na
tarefa que implica em restituir, em certa medida, ao próprio homem, o sentido próprio
de seu existir, a saber: que é ser encarnado, e que, pela fidelidade e o amor,
vincula-se aos outros e ao mundo e ao transcendente, comprometendo-se de forma
pessoal e completa.
Tais são, em suma, as veredas existenciais percorridas na companhia de
Marcel. Ao termo desta estrada, talvez o sentimento que advenha não seja o de
encontrar um destino definitivamente alcançado, mas de modo inverso, um lugar de
partida. Um lugar desde o qual se vê descortinar no horizonte um sem número de
caminhos de possibilidade abertos do que propriamente conclusões. Acredito ser
essa a função essencial da Filosofia. E Marcel a desempenhou com maestria.
Ler Gabriel Marcel é refazer a experiência de uma filosofia inacabada. Não no
sentido de que seja ela incompleta, mas, sim em acercar ou aproximar
concretamente com um pensamento vivo, itinerante, que se inventa e reinventa ao
longo das páginas. Ler Gabriel Marcel é mais que simplesmente ler. O estudo de
suas obras nos instiga, nos interpela, nos desafia a dialogar com ele e a partir dele,
nos incita, enfim, a filosofar. Nesta perspectiva, este momento derradeiro do nosso
118
trabalho não se estrutura como um fechamento. Para além de pretender esgotar um
pensamento que se propôs desde sempre assistemático e itinerante, a presente
dissertação se tenciona na direção de uma abertura, uma via de acesso a um
pensamento realmente vivo.
Não nos ativemos, ao longo do trabalho, a desenvolver uma postura mais
crítica, estabelecendo os contrapontos ao pensamento de Marcel. Isso porque nossa
busca concentrou esforços na construção de um caminho metodológico que
tornasse possível a compreensão das principais ideias do filósofo no tocante ao
tema da encarnação e da transcendência. Entretanto, como a filosofia se faz
justamente onde há a possibilidade do erro e da controvérsia, há que se levar em
conta ainda, ao menos uma consideração a ser feita neste sentido. E a nossa
observação crítica coaduna-se com o apontamento feito por Paul Ricœur (1947, p.
153-154):
119
Por outra parte, o pensamento de Marcel se mostra muito atual. Ao dissertar
sobre a situação de esfacelamento do mundo frente à técnica, de um vazio
ontológico gerado pela adoção do problemático como mote programático da vivência
existencial, o filósofo parece fazer um “raio-x” da sociedade hodierna. É certo que
essas características estavam já presentes no contexto sociocultural da época de
Marcel. Mas é fato também que se mostram agora, na contemporaneidade. Talvez,
de certa maneira mais velada, menos evidente que no período vivido por ele.
Entretanto, como não pensar em toda a teoria marceliana frente à insurreição de
governos e ideologias do mais alto nível totalitário como temos presenciado nos
últimos anos? Ou ainda, diante do mau uso das novas tecnologias, criadas, muitas
vezes, no intuito de aproximar as pessoas, criar laços, mas que acabam por separar,
dividir, distanciar-nos uns dos outros, permitindo todo tipo de absurdos por meio das
falsas notícias disseminadas, que ganham força frente à impessoalidade das telas.
Como, ainda, não pensar na necessidade urgente de uma proclamação livre de
esperança, pela fidelidade e no amor, fundada na intersubjetividade? Vemos que o
brado marceliano de uma exigência de transcendência continua urgente:
120
REFERÊNCIAS
REFERÊNCIAS PRIMÁRIAS
_____. Les hommes contre l’humaine. Préface de Paul Ricœur. Paris: Éditions
Universitaires. 1951d.
_____. Pour une sagesse tragique e son au-dela. Paris: Plon, 1968.
_____. Entrevista: Encontro com Gabriel Marcel. In: Kourim, Z. Revista Brasileira
de Filosofia. Trad. Nelson Saldanha. São Paulo: Instituto Brasileiro de Filosofia, v.
20, nº 78, p. 133-146, 1970.
REFERÊNCIAS SECUNDÁRIAS
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de Coimbra, 2009, 229 p. [Dissertação de Mestrado]
REALE, G. História da filosofia antiga, I: das origens a Sócrates. 4. ed. São Paulo:
Loyola, 2002.
_____. “Carta de Jean-Paul Sartre a Gabriel Marcel [1943]”. Trad. Luiza Helena
Hilgert. In:
Trilhas Filosóficas: Dossiê em comemoração aos 130 anos do nascimento de
Gabriel Marcel,
UERN, Caicó, v. 12, n. 3, p. 197-200 (2019). Disponível em:
http://periodicos.apps.uern.br/index.php/RTF/article/view/1246 DOI:
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_____. “A pessoa, em carne e osso: Gabriel Marcel, para além do personalismo”. In:
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Festschrift aos 20 anos do Simpósio de Filosofia Moderna e Contemporânea
da UNIOESTE. Cascavel, PR: Edunioeste, 2016, p. 161-197.
_____. “Entre 'Körper' e 'Leib': Gabriel Marcel e o corpo como 'Ur-Gefühl'”. In: SILVA,
C. A. F.; RIVA, F. (Org.). Compêndio Gabriel Marcel: homenagem aos 90 anos de
publicação do 'Diário Metafísico'. Cascavel, PR: Edunioeste, 2017c, p. 317-341.
_____. “Las sendas del pensamiento hacia el mistério del ser: la filosofía concreta de
Gabriel Marcel”. In: Cuadernos de Anuario Filosófico, n. 137, Pamplona, 2001.
126