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Gustavo Cruvinel 2023

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO OESTE DO PARANÁ-UNIOESTE

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA

GUSTAVO HENRIQUE RONDIS CRUVINEL

ENCARNAÇÃO E TRANSCENDÊNCIA: GABRIEL MARCEL E O


MISTÉRIO DA (CO)EXISTÊNCIA

TOLEDO, PR
2023
1
GUSTAVO HENRIQUE RONDIS CRUVINEL

ENCARNAÇÃO E TRANSCENDÊNCIA: GABRIEL MARCEL E O


MISTÉRIO DA (CO)EXISTÊNCIA

Dissertação apresentada ao Programa de


Pós-Graduação (Stricto Sensu) em
Filosofia do Centro de Ciências Humanas
e Sociais da Universidade Estadual do
Oeste do Paraná para a obtenção do título
de Mestre em Filosofia.

Área de concentração: Filosofia Moderna


e Contemporânea.

Linha de pesquisa: Metafísica e


Conhecimento

Orientador: Prof. Dr. Claudinei Aparecido


de Freitas da Silva

TOLEDO, PR
2023

2
3
4
DECLARAÇÃO DE AUTORIA TEXTUAL E DE INEXISTÊNCIA DE PLÁGIO

Eu, GUSTAVO HENRIQUE RONDIS CRUVINEL, pós-graduando do PPGFil da


Unioeste, Campus de Toledo, declaro que este texto final de dissertação é de minha
autoria e não contém plágio, estando claramente indicadas e referenciadas todas as
citações diretas e indiretas nele contidas. Estou ciente de que o envio de texto
elaborado por outrem e também o uso de paráfrase e a reprodução conceitual sem
as devidas referências constituem prática ilegal de apropriação intelectual e, como
tal, estão sujeitos às penalidades previstas na Universidade e às demais sanções da
legislação em vigor.

Toledo - PR, 25 de Julho de 2023

5
À minha avó, Vanda, presença amorosa,
concretude da esperança e da fidelidade.
6
7
AGRADECIMENTOS

Creio que palavras não seriam suficientes para transcrever o reconhecimento


e gratidão das experiências vividas no mais profundo de uma comunhão ontológica,
no concreto dos mistérios do amor e da esperança. Entretanto, não fazê-lo é
injustiça com aqueles que, de forma muito particular, pela presença fiel, contribuíram
neste processo de pesquisa. Sendo assim, minha eterna gratidão:

Ao Tu Absoluto, que por benevolência nos permite participar da


excelsa sabedoria.

À minha mãe, Susimara, pelo dom da minha vida.

À minha avó, Vanda, pela dedicação e zelo que sempre teve para
comigo.

À minha amada, Talita, pela presença amorosa ao longo de todo esse


processo.

Ao estimado orientador, Professor Dr. Claudinei Aparecido de Freitas


da Silva, pelo incansável zelo na construção deste trabalho.

À minha família, pelo apoio em todas as circunstâncias.

A todos os meus amigos, e em especial: Pe. Pedro, Pe. Murilo, Fábio e


Thiago Sitoni.

8
“O ser busca o outro ser, e ao conhecê-lo
acha a razão de ser, já dividido. São dois
em um: amor, sublime selo que à vida
imprime cor, graça e sentido.”

(DRUMOND, 2018, p.20)

“O ser que eu amo é o menos possível um


terceiro para mim; e ao mesmo tempo ele
descobre-me a mim-mesmo, porque a
eficácia da sua presença é tal que eu sou
cada vez menos um ele para mim; as
minhas defesas interiores caem ao mesmo
tempo que as barreiras que me separam de
outrem.”

(MARCEL, 1927, p. 145-146)

9
CRUVINEL, Gustavo Henrique Rondis. Encarnação e transcendência: Gabriel Marcel e o
mistério da (co)existência 2023. 126 p. Dissertação (Mestrado em Filosofia) – Universidade
Estadual do Oeste do Paraná, Toledo, PR, 2023.

RESUMO
O objetivo central deste trabalho é o de perscrutar, via obra de Gabriel Marcel (1889-
1973), o tema da encarnação e da transcendência. De fato, este é o ponto central de
toda a filosofia do autor: a encarnação como a condição existencial concreta do ser
humano no mundo numa perspectiva real de transcendência. Portanto, parte-se da
seguinte problemática: Como se estabelece a relação entre encarnação e
transcendência no sentido de uma experiência ontológica? Buscaremos, aqui,
reconstituir essa temática correlata partindo de uma crítica ao racionalismo e ao
cientificismo modernos; crítica essa encampada pelo reportado filósofo francês
mediante a teoria fenomenológico-existencial do corpo como mistério ontológico.
Nesse sentido, Marcel reconfigura a noção de mistério via uma interrogação
ontológica de base que comporta a pergunta pelo ser (existência) daquele que se
questiona, o homem. Sendo assim, interpelar o que é o ser é o mesmo que
perguntar-se: quem sou eu? Ora, diante de tal questão chegamos à revelação da
existência como encarnação (“eu sou meu corpo”). A encarnação se manifesta, hic
et nunc, como dado mais tangível da existência, o ponto desde o qual o ser humano
participa do mundo, o signo mais palpável de uma abertura a uma comunhão
ontológica, projetando-se como mediação entre o eu, o mundo e os outros
(intersubjetividade). Em suma, esse preliminar alcance oriundo das meditações
marcelianas do corpo próprio como experiência de ser conduz precisamente a uma
questão ontológica (mistério do ser), que consequentemente nos remete ao mundo,
a outrem e ao transcendente no coração da existência como coexistência. Tal
coexistência nos é revelada imediata e inconfundivelmente nos termos mesmos de
uma consciência do eu em um corpo, num movimento radical de transcendência. O
corpo se desvela, nesse contexto, como um ser de fenômeno, expressão máxima de
um mistério vivo, comunhão ontológica com o mundo e com outrem a título, pois, de
uma participação originariamente carnal. É nessa perspectiva, que o fenômeno da
encarnação e da transcendência perfazem o sentido último da coexistência na
medida em que, para Marcel, ser (esse) é coexistir (coesse).
Palavras-chave: Gabriel Marcel. Encarnação. Mistério. Transcendência.
Coexistência.

10
ABSTRACT
CRUVINEL, Gustavo Henrique Rondis. Incarnation and transcendence: Gabriel Marcel and
the mystery of (co)existence 2023. 126 p. Dissertation (Master’s in Philosophy) – State
University of Western Paraná, Toledo, PR, 2023.

The central objective of this work is to scrutinize, through the work of Gabriel Marcel
(1889-1973), the theme of incarnation and transcendence. In fact, this is the central
point of the author's entire philosophy: the incarnation as the concrete existential
condition of the human being in the world in a real perspective of transcendence. To
do so, we will seek, here, to reconstitute this related theme starting from a critique of
modern rationalism and scientism; This criticism was taken up by the reported French
philosopher through the phenomenological-existential theory of the body as an
ontological mystery. In this sense, Marcel reconfigures the notion of mystery through
a basic ontological interrogation that involves the question for the being (existence) of
the one being questioned, man. Therefore, questioning what being is, is the same as
asking yourself: who am I? Therefore, in the face of such a question, we arrive at the
revelation of existence as incarnation (“I am my body”). Incarnation manifests itself,
hic et nunc, as the most tangible data of existence, the point from which the human
being participates in the world, the most palpable sign of an opening to an ontological
communion, projecting itself as mediation between the I, the world and others
(intersubjectivity). In short, this preliminary reach from Marcel's meditations on the
body itself as an experience of being leads precisely to an ontological question
(mystery of being), which consequently refers us to the world, the other and the
transcendent at the heart of existence as coexistence. Such coexistence is revealed
to us immediately and unmistakably in the very terms of an awareness of the I in a
body, in a radical movement of transcendence. The body reveals itself, in this
context, as a being of phenomenon, the maximum expression of a living mystery,
ontological communion with the world and with others as, therefore, an originally
carnal participation. It is in this perspective that the phenomenon of incarnation and
transcendence make up the ultimate meaning of coexistence insofar as, for Marcel,
to be (esse) is to coexist (coesse).

Key-words: Gabriel Marcel. Incarnation. Mystery. Transcendence. Coexistence.


11
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 13

1. O MISTÉRIO DA ENCARNAÇÃO ..................................................................... 20

1. 1. A concepção clássica de corpo ..................................................................... 20

1.2. A distinção entre “problema” e “mistério” .................................................... 29

1.3. Ser e ter: a ontologia do corpo vivo ............................................................... 40

2. EXISTÊNCIA E TRANSCENDÊNCIA ................................................................ 49

2.1. Existência e essência: um limite tenso .......................................................... 49

2.2. Experiência da transcendência ....................................................................... 61

2.3. O existir livre como transcendência ............................................................... 70

3.1. Existir é coexistir .............................................................................................. 79

3.2. Intersubjetividade carnal ................................................................................. 83

3.3 Comunhão e participação................................................................................. 90

3.4 Esperança, amor e fidelidade: as aproximações concretas ao mistério do


ser ............................................................................................................................. 98

3.4.1 A Esperança .................................................................................................... 99

3.4.2 O Amor .......................................................................................................... 109

3.4.3 A Fidelidade .................................................................................................. 113

CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................... 116

REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 121

12
INTRODUÇÃO

O trabalho que aqui, em curso, constitui o desdobramento da pesquisa por


ocasião da conclusão da graduação em filosofia, dispõe-se no intuito de investigar,
via a obra de Gabriel Marcel, o tema da encarnação e seu respectivo movimento
de transcendência como mistério ontológico por meio do qual há uma participação
íntima, originária, no ser. Nesta perspectiva, prõpo-se a seguinte
problemática:como se estabelece a relação entre encarnação e transcendência no
sentido de uma experiência ontológica?
Antes de tudo, dado o fato de que os termos “encarnação” e “transcendência”
são especialmente caros à teologia cristã, sendo utilizados por essa, inúmeras vezes
num contexto bem específico, faz-se necessário um esclarecimento. A expressão
“encarnação” abordada pelo cristianismo, especialmente o católico, refere-se ao
dogma da encarnação do Filho de Deus, o qual, em suma, afirma que Jesus Cristo,
a segunda Pessoa da Santíssima Trindade, fez-se participante da natureza humana
na unidade da pessoa. “Transcendência” aqui, aparece referindo-se ao movimento
de uma ação ou ascensão espiritual divina pela qual o humano se eleva ou
contempla o mistério da encarnação, bem como os demais mistérios de fé.
“Encarnação”, por sua vez, refere-se à própria vinda do Filho de Deus que, sendo
ser divino, assumiu, segundo tal doutrina, a condição humana. O presente estudo
visa a explicitar que os termos aqui utilizados (“encarnação” e “transcendência”) não
encontram seus significados abordados pela ciência teológica, mas, sim, referem-se,
antes, ao tema da existência humana à medida que essa se exprime como
participação no mistério do ser, em sua concretude real, tal qual postulada
filosoficamente por Gabriel Marcel.
Nesse contexto, a obra de Gabriel Marcel possui uma originalidade e
perspicácia ímpares. O seu pensamento exerce enorme influência sobre pensadores
notáveis como Jean-Paul Sartre, Merleau-Ponty, Paul Ricœur1, entre outros, ao

1
A influência foi de fato direta. Em seu apartamento, na Rue de Tournon, às sextas-feiras à noite,
reuniam-se alguns jovens para discutir sobre filosofia. Dentre eles, os já acima citados Jean-Paul
Sartre e Paul Ricœur e, ainda, Emmanuel Levinas, entre outros. O próprio Ricœur relata: “Durante
as famosas noitadas de sexta-feira, que comecei a frequentar desde 1934, se escolhia um tema de
13
passo que se põe como uma proposta totalmente nova no que tange ao pensamento
da existência humana em sua concretude mais real, qual seja, a própria encarnação,
visando, pois, uma restituição ontológica à experiência em seu peso mais
radicalmente humano, numa perspectiva de transcendência. Tendo em vista esses
fatores, e dado a importância que tem sua tese para a corrente fenomenológica e
para a filosofia como um todo, cumpre-nos perguntar: quem é, pois, Gabriel Marcel?
Qual a novidade do seu pensamento? Onde, dentro da tradição filosófica, se
inscreve sua filosofia? Convém, então, apresentar o pensador e pontuar alguns
aspectos de sua vida que contribuíram para a formação de sua obra.
Ainda pouco abordado no meio acadêmico de maneira geral, é tido por alguns
como simples dramaturgo, ou ainda rotulado como místico. Gabriel Honoré Marcel é
um pensador multifacetado, como veremos adiante. Exímio dramaturgo, escritor,
poeta, músico, graduou-se em Filosofia aos vinte anos. Convertido ao catolicismo
em 1929 é tido, embora sempre se recusasse ao termo, como expoente do dito
“existencialismo cristão” 2.
Ademais, sabe-se acerca do fato de que Marcel atuara como voluntário da
Cruz Vermelha na Primeira Grande Guerra, engajamento este que exercerá
influência substancial em sua obra. É diante do sofrimento humano e da
incumbência de comunicar as famílias dos combatentes sobre as mortes e os
desaparecimentos em campo, que Marcel se pergunta sobre o verdadeiro
significado da vida. Nesse momento, ele se percebe em um “mundo partido”3 onde o
sentido verdadeiro da existência perdeu sua significância, quer dizer, onde o homem
passou a ser mero objeto e não sujeito de sua própria existência. Ou, ainda, onde o

discussão, e a regra era sempre partir de exemplos, analisá-los e não recorrer a doutrinas senão
como apoio às posições defendidas. Eu desfrutava ali de um espaço de discussão que fazia
inteiramente falta na Sorbonne. Na casa de Marcel, tinha-se a impressão de que o pensamento era
vivo [...]. Discutíamos assim todas as semanas, durante duas ou três horas, de maneira bastante
ativa, tendo-se a audácia de pensar por si mesmo, o que em muito compensava a cultura histórica
dispensada pela Sorbonne”. (MARCEL, 1998a, p. 15).
2
É digno de nota o fato de que os termos “existencialismo” / “existencialista”, frequentemente
atribuídos a Gabriel Marcel e sua filosofia, foram rótulos que o filósofo (e não somente ele, mas
ainda Sartre, Jaspers e Heidegger) sempre se recusou a aceitar. Marcel sempre foi avesso àquilo
que ele denominava “ismos” (existencialismo, racionalismo, etc.), que, para ele, acabam por
enclausurar em um sistema concatenado de fórmulas o pensamento de determinado autor,
fechando-se em si mesmo. Marcel nunca pretendeu, de fato, criar qualquer sistema que pudesse
ser denominado marcelianismo. Se, entretanto, fosse para adotar alguma nomenclatura, de acordo
com ele, seria a de neosocratismo-cristão, justamente pelo caráter itinerante e interrogativo de seu
modo de fazer filosofia, que se assemelha ao de Sócrates.
3
Como veremos adiante, as palavras fazem referência a uma das obras dramatúrgicas de Marcel.
14
ter prevalece o ser, onde as relações humanas parecem se estabelecer da maneira
mais indiferente e calculista possíveis.
A experiência na guerra o fez voltar-se para uma filosofia da existência, isto é,
um gênero de reflexão concreta que não estivesse fechada em um sistema ideal ou
em fórmulas milimetricamente concatenadas, mas que fosse voltada para o real,
para a existência concreta, que a seu ver se encontrava completamente
fragmentada. Segundo ele, as questões fundamentalmente humanas, os dramas
humanos, apenas poderiam ser compreendidos por meio de uma imersão radical na
própria existência, isto é, para além das respostas prévias e superficialidades pré-
estabelecidas pelos sistemas filosóficos.
Veremos que a questão filosófica central posta por Marcel é a pergunta pelo
ser; pergunta essa que já havia sido postulada pela tradição, porém, de maneira
equivocada, na visão do autor, ao tomar o ser sob o estatuto de um problema puro e
simples, acabando, com isso, através de um processo de abstração, por definir o ser
como objeto da metafísica, como um conceito meramente formal. O filósofo francês,
por sua vez, afirma que a pergunta pelo ser comporta a pergunta pelo ser daquele
que se questiona, isto é, o ser (a existência) daquele que se pergunta pelo ser está
implicada nesta mesma pergunta. Sobre isto, nos esclarece o próprio Marcel (1935,
p. 169)4: “Convém, por outra parte, assinalar que eu, que pergunto pelo ser, não sei,
em primeiro lugar, se sou, nem a fortiori o que sou – nem se quer sei claramente o
que significa esta pergunta que sou?, que ainda assim me obceca”. Neste sentido,
antes mesmo de questionar-se sobre o ser deve-se, segundo Marcel, questionar
sobre o ser do eu, que está se perguntando. Se sou, de que maneira o sou? Isto
significa dizer que perguntar “O que é o ser?” é o mesmo que perguntar “Quem sou
eu?”, na medida em que, pela existência, eu estou envolvido neste mistério que é o
ser.

4
Poucas obras de Gabriel Marcel encontram-se traduzidas e editadas em português. Neste trabalho,
cotejamos as edições originais com a versão portuguesa de Fragmentos Filosóficos (1909-1914)
(Trad. Claudinei Aparecido de Freitas da Silva, 2018, Edunioeste) e Os Homens Contra o Humano
(Trad. Claudinei Aparecido de Freitas da Silva, 2023, Edunioeste). As demais obras foram
consultadas diretamente no original francês, tendo-se cotejado também com as respectivas traduções
disponíveis em língua espanhola. As citações respeitam as normativas propostas pela ABNT. Os
dados bibliográficos de todas as obras e autores citados podem ser consultados nas referências, ao
final do trabalho.

15
Para além de todo o idealismo filosófico, que funda suas explicações do que
seja o homem e o mundo numa perspectiva ideal (como o próprio nome sugere), o
pensamento marceliano interroga o homem a partir de sua existência concreta, ou
seja, a partir da própria realidade do sujeito. De fato, o que move esta busca
filosófica é, pois, compreender a realidade existencial humana em seu aspecto mais
concreto. Ora, essa compreensão se radica numa crítica de fundo recorrente ao
longo das reflexões do filósofo. Sua filosofia, portanto, se insere como um
contraponto radical ao idealismo pós-kantiano, bem como ao cartesianismo
filosoficamente cultural. Nesta perspectiva, Marcel aponta sempre, em sua obra, os
limites da tradição metafísica para, desde este ponto de vista, explorar e
desenvolver novas possibilidades. As críticas marcelianas podem, de uma maneira
geral, classificar-se tendo como alvo quatro frentes, quais sejam: o racionalismo
como obstáculo existencial; a insuficiência do dualismo; o subjetivismo abstrato e o
aviltamento da experiência vivida.
Assim, diferentemente da concepção racionalista-idealista totalmente objetiva e
abstrata, aqui trata-se da busca pela compreensão da realidade humana em toda a
sua concretude existencial, ou, se quiser, a realidade do homem enquanto inserido
no mundo. Tal existência nos é revelada imediata e inconfundivelmente como
encarnação, ou seja, a consciência do eu em um corpo.
Se, para a tradição filosófica, o corpo é abstraído a título de uma ideia ou
objeto, Marcel introduz uma nova concepção quando propõe o corpo como o próprio
ser existencial do homem. Isto significa dizer que, diferentemente de tudo que já foi
formulado até então, o homem não tem seu corpo, no sentido de um objeto ao qual
detém ou possui, mas é seu corpo. Pois bem, é a partir desse novo estatuto
ontológico que o homem, em sua condição existencial, se compreende a partir de
suas relações com os outros e com o mundo.
A concepção marceliana de homem é, portanto, a de homo viator5, quer dizer,
um ser itinerante, um viajante, um ser inacabado, que está em um contínuo
processo de criação de si mesmo, um viandante que se depara com um “mundo
partido”, onde as relações humanas, por se darem na mais total objetividade e
impessoalidade, encontram-se fragmentadas. Esse mundo partido é a expressão

5
O termo alude à uma das obras de Marcel, de 1944, Homo viator: prolégomenès a une
métaphysique de l’espérance (Homo viator: prolegômenos para uma metafísica da esperança).
16
cabal de uma existência desprovida de sentido, onde os homens se vêm como
simples realizadores de funções. Trata-se de um mundo onde a posse (ter) devora a
existência (ser), onde a vida, reduzida à verificação e ao cálculo, perde seu estatuto
ontológico. O dever da filosofia é, então, diz Marcel, o de “restituir à experiência
humana seu peso ontológico” (MARCEL, 1935, p. 149). A verdadeira tarefa filosófica
consiste em fazer ver que, a vivência do concreto, através do mergulho na
concretude existencial que é o mistério de ser, num mundo com outrem, numa
abertura ontológica, é capaz de restituir ao ser humano o sentido mais genuíno da
vida.
Um dos desafios na leitura da obra de Gabriel Marcel é o fato de que ela se
apresenta de forma assistemática, por intermédio de seus diários, conferências, e
mesmo das obras dramatúrgicas e musicais6. De fato, o filósofo, ao propor uma
filosofia itinerante, um pensamento pensante, sempre recusou qualquer rotulação à
sua filosofia, ou ainda qualquer definição que pudesse reduzir-se nos termos de um
sistema fechado e acabado. Ler os escritos de Marcel é deparar-se com um
pensamento em curso, vivo, itinerante, que se inventa e reinventa ao longo das
páginas. Neste sentido, o que se pretende não é sistematizar o pensamento do
autor, mas, metodologicamente organizar os elementos mais caros à filosofia
marceliana a fim de lançar luz ao tema da encarnação e da transcendência, tão
essenciais a esse pensamento. Para tanto, dispõe-se o presente trabalho em três
capítulos, a saber:
O primeiro capítulo, no qual se visa introduzir e melhor situar o tema central
de nossa pesquisa, se compõe de três partes. Na primeira, propõe-se a análise, em
linhas gerais, de como a concepção de corpo foi sendo desenvolvida ao longo da
história do pensamento filosófico, até consolidar-se, na modernidade, num cenário
onde o racionalismo, cientificismo e idealismo ganham força e espaço, na noção de
Körper (“corpo-objeto”), noção fortemente predominante no cenário, não só
filosófico, bem como do senso comum. Na segunda seção, procuramos analisar a
distinção entre dois termos essenciais na filosofia marceliana, a saber: “problema” e
“mistério”. Por meio de tal distinção, chega-se à crítica do racionalismo e
cientificismo, bem como ao fato de que a filosofia, especialmente o idealismo, tenha

6
Marcel é um pensador multifacetado, no sentido de desenvolver não apenas um pensamento
filosófico, mas também por atuar nas áreas da dramaturgia, literatura, teatro e música.
17
se apropriado do método científico, e ainda, à constatação de que o ser não se
circunscreve no âmbito do problemático, mas, sim, se revela como um mistério com
o qual se entra em comunhão a partir de uma presença, ou seja, de uma
participação na concretude do real. A terceira parte capitular encerra outra distinção
decorrente dessa, qual seja, a diferenciação entre o “ter” e o “ser” no horizonte de
uma nova ontologia viva acerca do corpo. Nota-se como a acentuação da posse (ter)
gera uma existência inautêntica, desprovida de qualquer sentido.
O segundo capítulo, “Existência e transcendência”, objetiva compreender outro
estatuto da existência no sentido de radicalizar aquilo que Marcel chama de “mistério
da encarnação”. Nesta perspectiva é que se desenvolve o primeiro subcapítulo,
intitulado “Existência e essência: um limite tenso”. Aqui encontra-se a tese
marceliana propriamente dita acerca da existência humana: a encarnação. Aqui,
cabe observar que, de acordo com o filósofo, o corpo não é objeto, mas, sujeito, e,
sob esse prisma, está inscrito num âmbito do mistério, isto é, de uma experiência
ontológica por excelência. Ele (o corpo) é o ponto desde o qual se participa
diretamente, enquanto presença viva, do ser. Não pode ser, por isso, reduzido a
mero instrumento, mas é o “imediato não mediatizável” (MARCEL, 1927, p. 240). O
corpo próprio configura-se, numa “síntese indefectível” (MARCEL, 1927, p. 311),
com a existência, como encarnação. Ademais, a existência humana e suas relações
se dão na corporeidade, que é, em última análise, o homem concreto. Este corpo,
que sou eu mesmo, é o meu ponto de inserção no mundo, meu ponto de referência.
Existir, neste sentido, é o mesmo que perceber-se ligado a um corpo (ser
encarnado). E ainda, o sujeito (corpo) se relaciona, se conhece, conhece o mundo e
os outros justamente porque é um ser que sente, ou seja, as relações do homem se
dão na corporeidade à medida que ele é um ser senciente. O segundo momento se
dirige a um esclarecimento da “experiência da transcendência”. Trata-se de
compreender a transcendência como esse movimento humano, radicado na
encarnação, é claro, mas num sentido de superação da condição humana. Por fim, o
capítulo encerra com o subtópico, “O existir livre como transcendência”. O que se
almeja, nesta parte do trabalho, é desvelar um aspecto do pensamento marceliano
referente à liberdade como condição de possibilidade para a experiência ontológica,
isto é, para transcendência. A liberdade, o existir livre, é condição para uma abertura

18
ao transcendente, que se radica na experiência, com o mundo, com outrem e, por
fim, com Deus, o Tu absoluto. Sob essa perspectiva, “existir é coexistir”.
Por fim, o terceiro capítulo se orienta na direção de vislumbrar um dos
desdobramentos mais importantes da tese encarnacional, no contexto mesmo de
uma “fenomenologia da esperança” em seu movimento de transcendência, a saber,
a intersubjetividade. No intuito de contemplar tal tema dentro do pensamento
marceliano, e como este se apresenta intimamente ligado à sua teoria do homem
como ser encarnado, procuraremos analisar o papel do outro na filosofia de Marcel.
Sob este olhar, a primeira seção deste último capítulo está intimamente ligada com o
capítulo segundo, visto que nela atentamos para o fato de que o outro é “participante
de meu corpo” (MARCEL, 1927, p. 261), na medida em que participa da mesma
realidade existencial concreta que eu mesmo. Dessa forma, enquanto ser corporal, o
homem mantém, pelo mistério da encarnação, um elo intersubjetivo com outrem
num só regime de comunhão ontológica. Aqui, perceber-se como existente não é
apenas existir para si, mas existir-com. A segunda seção visa abordar o tema da
intersubjetividade de maneira dialógica, ou seja, do modo com o qual estabeleço
relações com o outro. A terceira seção aborda dois temas caros à obra de Marcel,
quais sejam, as noções de comunhão e participação. Trata-se, essencialmente, de
compreender qual é o alcance e os limites de uma fenomenologia da comunhão.
Ora, esse primeiro estabelecimento do tema não se compreende, em termos
marcelianos, se prescindirmos de outro importante debate suscitado desde os
primeiros escritos: a teoria da participação ontológica. Em suma, o capítulo se
encerra com a investigação acerca das aproximações ao ser: esperança, amor e
fidelidade. Ao retomar o tema da condição humana como ser itinerante no mundo
(homo viator) sujeito às contingências do mundo constata-se de que ele é o campo
desde o qual surge a noção marceliana de esperança. Diante do fato de sua finitude,
frente à limitação temporal, o homem é chamado a transcender, por meio da
abertura ao amor e à fidelidade, superando o desespero pela esperança. Sob tal
prisma, um novo modo de conhecer se desvela aqui como uma aproximação ao
mistério; aproximação essa que se dá, de maneira profunda e efetiva por intermédio
da esperança, do amor e da fidelidade.

19
1. O MISTÉRIO DA ENCARNAÇÃO

1. 1. A concepção clássica de corpo

Cabe, antes de tudo, a explicação do título da presente seção, tendo em vista


que o mesmo parece ser um tanto quanto pretencioso. Não se trata aqui de expor
pormenorizadamente todas as teorias sobre o corpo ao longo da história do
pensamento no Ocidente, haja vista que, tal feito constituiria um esforço um tanto
homérico e sem fim, trabalho imenso de uma pesquisa mais ampla. Trata-se de uma
tentativa de apresentar, em linhas gerais, a noção clássica de corpo, conforme Silva
(2017b, p. 157), “[...] a partir de uma tradição de pensamento que se inicia com
Platão, mas que, com Descartes, toma um assento, de fato e de direito,
consolidado”.
Retomar a concepção clássica de corpo, reconstituindo-a, dentro da tradição
filosófica, torna-se fundamental a fim de melhor situar a virada de pensamento feita
por Marcel no tocante ao tema, bem como de, posteriormente, localizar o
pensamento do filósofo francês e, como este se apresenta de maneira totalmente
inovadora e original. Isso, ainda, levando em conta em que medida essa
reconstituição contribui para a reflexão acerca da existência humana enquanto, em
termos marcelianos, existência encarnada.
Ora, a filosofia, em seus primórdios, como se sabe, se desenvolve como uma
busca pela compreensão da physis no intuito de aprofundar o conhecimento deste
mundo, desta realidade que se descortina diante dos olhos, a fim de aprofundá-la e
desvendá-la em seus mistérios essenciais. Podemos perceber, no início da tradição
filosófica, particularmente, via a leitura de Aristóteles, a preocupação com a causa
material das coisas no mundo, como vemos, por exemplo, em Tales de Mileto e
todos os pré-socráticos. De fato, o que estes filósofos buscavam, era definir a
origem da realidade a partir de um elemento fundamental da natureza. É o que nos
assinala Aristóteles, em sua Metafísica:

20
Os que primeiro filosofaram, em sua maioria, pensaram que os
princípios de todas as coisas fossem exclusivamente materiais. De
fato, eles afirmam que aquilo de que todos os seres são constituídos
e aquilo de que originariamente derivam e aquilo em que por último
se dissolvem é elemento e princípio dos seres, na medida em que é
uma realidade que permanece idêntica mesmo na mudança de suas
afecções. [...] De fato, deve haver alguma realidade natural (uma só
ou mais de uma) da qual derivam todas as outras coisas, enquanto
ela continua a existir. (ARISTÓTELES, 2013, p. 15-16).

Nesta perspectiva, é preciso recordar ainda que a filosofia nascente procurou,


desde Tales, compreender racionalmente o cosmo no intuito de encontrar a arché, o
princípio universal de explicação da realidade. Essa foi a tarefa fundamental dos
primeiros séculos da filosofia. Ou seja, os primeiros filósofos, buscando, por meio de
argumentação racional, o princípio fundamental, a explicação do ser de todas as
coisas em sua totalidade, isto é, do cosmo, postularam sua origem em causas
materiais.
Sobre esta percepção primeira do homem em relação ao mundo, afirma
Grassi (2008, p. 23):

Tal mundo ou realidade, se apresenta ao homem, em primeira


instância, como sendo “material”, ocupando um espaço e
desenvolvendo-se em um tempo, levando em seu seio, ao mesmo
tempo, cores, sons, odores, gostos, figuras e formas, asperezas e
suavidades.

Neste sentido, a percepção primeira que o homem tem acerca do mundo se


dá por meio da constatação de uma realidade material das coisas que o cercam.
Onde então, na compreensão dos primeiros filósofos, se encontra a especificação
sobre o ser do homem propriamente? Ora, a filosofia, parece ter descuidado desta
especificação própria do ser do homem, ou ao menos tratou da questão como nota
secundária ao passo que não se preocupou com a compreensão racional da
natureza específica do homem. Isto porque, dentro desta concepção:

[...] também o homem faz parte do cosmo, e a physis, buscada de


Tales em diante, ao explicar todas as coisas, também explicava, em
certo sentido, o homem; mas – e este é o ponto sobre o qual se deve
prestar atenção – explicava-o só como coisa ao lado das outras
coisas, ou seja, como objeto e não como sujeito. De fato, no âmbito

21
da filosofia da physis, não se atribuía ao homem lugar privilegiado,
ou melhor, não se compreendia nem se justificava este lugar
privilegiado. (REALE, 2002, p. 177; grifo nosso).

Em outras palavras, dentro da óptica das primeiras teorias filosóficas, o


homem estava subentendido como um objeto inserido dentro do cosmo, uma “coisa
ao lado das outras coisas”. Compreende-se, então, que o homem, por possuir a
mesma natureza material do cosmo, participa concretamente desta realidade
material. Isto significa dizer que, por possuir um corpo material, inserido neste
mundo, também material, o homem faz parte deste mesmo mundo. É por meio de
sua participação na extensão e temporalidade que o homem se encontra aqui em
“certa comunhão com o cosmos” (GRASSI, 2008, p. 23). É desde este ponto de
partida que a filosofia se se desenvolve, pouco a pouco7, em um “trabalho
ascendente que culmina na metafísica, ciência do ente enquanto ente, do ser
enquanto ser, e cujo nível de abstração é supremo.” (GRASSI, 2008, p. 23). Fato é
que a filosofia foi gradativamente preterindo a materialidade como uma característica
particular do homem e do mundo, o que culminou no deslocamento da antropologia
filosófica para uma esfera mais ampla, a da filosofia da natureza. Em outras
palavras, o aspecto material da existência foi sendo relegado, através desse
processo progressivo rumo à abstração do ser, como dispositivo periférico.
Percebemos, portanto, que até então, na tradição dos “filósofos da natureza”,
embora haja, em certo grau, a percepção de uma realidade concreta, não
encontramos nenhuma definição mais específica acerca do homem, da natureza
constituinte de seu ser, e muito menos acerca da corporeidade, sendo este (o
homem) incluído em um contexto mais amplo, a saber, o da explicação do cosmo.
No que tange ao tema abordado nesta seção, isto é, o do corpo e o seu
estatuto clássico, encontraremos, no desenrolar da filosofia nascente, por grande
influência do orfismo, algumas teorias, como por exemplo, a de Heráclito, ou a de

7
O início de tal processo já constata Aristóteles na Metafísica: “Com base nesses raciocínios, poder-
se-ia crer que exista uma causa única: a chamada causa material. Mas, enquanto esses
pensadores procediam desse modo, a própria realidade lhes abriu o caminho e os obrigou a
prosseguir na investigação [...] Ora, investigar isso significa buscar o outro princípio, isto é, como
diríamos nós, o princípio do movimento.” (ARISTÓTELES, 2013, p, 19).
22
Empédocles, e ainda dos pitagóricos8, entre outras, que descreverão o corpo de
maneira depreciativa, isto é, como princípio imperfeito, impuro e ilusório. É,
sobretudo, em Platão, que se encontra, de maneira abrangente e sistemática, a
célebre cisão dualista acerca da relação entre a alma e o corpo que será posta como
centro de todo o pensamento deste autor e influenciará de forma contundente a
filosofia do Ocidente de maneira geral.
Ao analisar-se a perspectiva platônica de corpo é importante recordar, mesmo
que de maneira sucinta, uma das doutrinas que influenciaram tal concepção. Trata-
se do já acima citado, orfismo9, chamado também de “religião dos mistérios”. O
orfismo foi um movimento místico, baseado no poeta da Trácia, Orfeu, de onde
deriva o termo da escola ou movimento. Seus poemas teciam uma trama oposta ao
modus vivendi dos heróis descritos por Homero, justamente porque propunham um
modo de vida espiritual, mais voltado ao cuidado interior da alma. É com o orfismo
que nasce a primeira teoria dualista acerca da alma e do corpo. Nessa concepção, o
corpo se torna um lugar de purificação, de expiação da alma. Aqui, pela primeira
vez, tem-se a noção de uma luta, no interior do homem, entre dois princípios
postulados como opostos (alma e corpo), precisamente porque o corpo é entendido
como o cárcere da alma.
Na verdade, Platão incorpora ao seu arcabouço filosófico muitos aspectos da
doutrina órfica, especialmente o conhecido dualismo corpo-alma, onde a alma,
imaterial, é em muito superior ao corpo material. Aliás, trata-se do verdadeiro eu
aprisionado neste cárcere que é o corpo. É o que constatamos nas Leis:

Como em outras matérias, é mister confiar no legislador, o que nos


induz também a nele acreditar quando nos sustenta que a alma é
plenamente superior a o corpo e que nesta própria vida o que faz
com que cada um de nós seja o que é nada mais é do que a alma,
enquanto que o corpo é para nós a imagem concomitante , estando

8
Para um estudo mais aprofundado das teorias destes filósofos pré-socráticos ver: REALE, 2002. E
ainda: HIRSCHBERGER, 1969.
9
Reale (2002, p. 24) define a doutrina órfica: “a) No homem vive um principio divino, um demônio,
caído num corpo por causa de uma culpa originária; b) Esse demônio, preexistente no corpo, é
imortal e, portanto, não morre com o corpo, mas é destinado a reencarnar-se sempre de novo em
corpos sucessivos através de uma série de renascimentos para expiar sua culpa; c) A vida órfica,
com sua práticas de purificação, é a única que pode pôr fim ao ciclo das reencarnações; d) Por
consequência, quem vive a vida órfica (os iniciados) goza, depois da morte, do merecido prêmio no
além (a libertação); para os não iniciados há uma punição”. Para um estudo mais aprofundado deste
tema e dos autores acima, ver: (REALE, 2002).
23
certo quem diz que o corpo sem vida não é senão a imagem do
morto e que o eu real de cada um de nós, que chamamos de alma
imortal parte para prestar contas perante outros deuses [...]
(PLATÃO, 2010, p. 496).

O que percebemos, pois, é que, em detrimento do corpo, a alma é posta


como o verdadeiro “eu”. Esse “eu” é, em essência, imortal, fundamento do ser e da
existência do homem, enquanto que o corpo é considerado tão somente em sua
materialidade e tomado simplesmente como princípio confuso e obscuro da
realidade, ou ainda, o não-ser, prisão do verdadeiro ser do homem.
De fato, em Platão, e em boa parte do pensamento ocidental herdado dele,
notamos claramente o corpo, por ser participante da materialidade, como “princípio
potencial e obscuro da realidade [...] princípio caótico e informe que recebe seu
ordenamento da ideia ou forma.” (GRASSI, 2008, p. 24). Assim, portanto, ao longo
da história do pensamento filosófico, a materialidade e, consequentemente, a
carnalidade, foram sendo aos poucos, lançadas para o campo geral de problemas
antropológicos.
Nessa perspectiva, a tradição metafísica se desenvolve no sentido de ir,
gradualmente, preterindo a materialidade como aspecto secundário do homem e da
natureza, abandonando “o concreto-material através do processo de abstração”
(GRASSI, 2008, p. 24). Perpassando pela filosofia medieval, de cunho cristão,
constatamos a inovadora concepção do homem enquanto persona10. O corpo,
entretanto, não recebe, aqui, nenhum estatuto ontológico mais proeminente 11, visto a
alma lhe ser superior.
Chegamos, pois, à modernidade. É o momento “solene” em que a figura de
Descartes impacta todo um novo cenário trazendo, à tona, uma importante
descoberta: o cogito. Como veremos nos capítulos que seguem, a subjetividade será
um aspecto fundamental tanto para as concepções fenomenológicas-existenciais
como para o próprio Marcel; contudo, a subjetividade proposta por Descartes está

10
Com o advento do cristianismo a noção de homem como parte do cosmo mostrou-se insatisfatória.
O homem passou a ser visto, haja vista sua natureza pessoal e espiritual, “como um universo em si
mesmo, isto é, como um microcosmos (ideia cara ao renascimento) (GRASSI, 2008, p. 24).
11
Dentre os pensadores contemporâneos que reconhecerá esse estatuto, além de Gabriel Marcel,
estão Sartre, Merleau-Ponty, Levinas, entre outros.

24
desprovida de qualquer aspecto concreto ou material visto que fundamenta toda a
realidade e, portanto, a existência do próprio homem no cogito.

Ora, o “sujeito” que Descartes descobre é aquele intuído mediante a


certeza do cogito, ou seja, a subjetividade cartesiana se tece em
duplo sentido: por um lado, o cogito se apresenta como paradigma
do sentido último da existência, como ponto arquimediano de toda a
compreensão sobre a realidade, onde tudo deve ser afirmado com a
evidência que o cogito sum exige. De outro, existe uma significação
do cogito no plano metafísico: há uma coincidência, pelo
pensamento, de algo que subsiste, de uma substância, e, nesse
sentido, resulta daí um desdobramento natural e espontâneo do
“penso, logo existo” para “existo como coisa pensante”. (AZEVEDO,
2012, p. 47).

De fato, o que nos interessa aqui saber é que, “a partir [desta] tradição de
pensamento que se inicia com Platão, mas que, com Descartes, toma um assento,
de fato e de direito, consolidado, que o corpo é abstraído a título de um objeto, isto
é, uma ‘matéria extensa’.” (SILVA, 2017b, p. 157). Tal corpo é tomado como objeto
no sentido de ser considerado tão somente em seu aspecto físico, ou mesmo
orgânico. “Trata-se do corpo do ponto de vista de seu agenciamento interno
funcional, orgânico”. (SILVA, 2017b, p. 157), como descreve o próprio Descartes em
seu clássico tratado O Homem:

Suponho que o corpo não seja outra coisa senão uma estátua ou
máquina de terra, que Deus forma intencionalmente para torná-lo o
mais possível semelhante a nós. De modo que ele não apenas lhe dá
externamente a cor e a figura de todos os nossos membros, como
também coloca dentro dela todas as peças que são necessárias para
fazer que ela ande, coma, respire e, enfim, imite todas as nossas
funções que possam ser imaginadas como procedentes da matéria e
que só dependem da disposição dos órgãos. (DESCARTES, 2009, p.
120).

Eis o postulado cartesiano acerca do corpo: o de que ele não é o ser próprio
do homem, e ainda mais, o que o excerto acima evidencia é o fato de que o corpo
mesmo não é algo próprio do homem, mas algo exterior a este e que apenas
obscuramente se “assemelha” ao homem real. O pensamento de Descartes, como
bem retrata Merleau-Ponty (2011, p. 268), “nos habituou a desprender-nos do
objeto, purificando a noção comum de ‘corpo’ e de ‘alma’”. Ora, “nesse esforço de

25
depuração, a tradição cartesiana define o corpo como uma ‘soma de partes sem
interior’, e a alma como um ‘ser inteiramente presente a si mesmo sem distância’.”
(SILVA, 2010, p. 96). É o que podemos constatar nas Meditações Metafísicas
quando Descartes afirma:

Fecharei agora os olhos, tamparei meus ouvidos, desviar-me-ei de


todos os meus sentidos, apagarei de meu pensamento todas as
imagens de coisas corporais [...], e, considerando meu interior,
empreenderei tornar-me pouco a pouco mais conhecido e mais
familiar a mim mesmo. Sou uma coisa que pensa. (DESCARTES,
1979, p. 231)

Ou seja, em Descartes, o ato de voltar-se para o interior no intuito de


desprender-se da realidade material circundante e, dos sentidos, e, portanto, da
própria realidade corporal possibilita um encontro com o próprio eu (alma enquanto
coisa pensante) através do exercício da razão. O corpo, sob este prisma, é o que
obscurece o verdadeiro conhecimento como fonte de engano. Existir não é outra
coisa senão pensar.
É justamente este caráter de objeto inanimado, por definição, que a filosofia
cartesiana irá imprimir na noção de corpo. E não só ele como, grosso modo, o
pensamento moderno de formal geral. Vemos isto claro na ilustre obra de
Rembrandt de 1632, Lição de Anatomia do Dr. Tulp, onde pode-se visualizar o Dr.
Tulp ocupando o centro da tela, dissecando um cadáver humano à vista de seus
alunos à medida que parece os ensinar sobre os músculos do antebraço. Como nota
ainda Silva (2017c, p. 318): “Não deixa de ser curioso observar que a nudez e a
posição rígida contrastam com o corpo das demais personagens. O foco em tela é o
cadáver. Chega a ser notável certa indiferença diante da morte”. O que o clássico
quadro de Rembrant espelha é uma noção desfigurada do corpo. Trata-se do corpo
não vivo, corpo esse, de fato, que nada mais é do que um fragmento de matéria
inanimada, como volta a comentar Silva (2017b, p. 318):

Em suma: o que se pincela? É retratado o ideário renascentista-


moderno que se prolonga em nossa cultura científica: a abstração do
corpo como “objeto”, “matéria extensa”. Ou, numa só caricatura: o
corpo físico que figura ou (des)figura, neste estado, como uma
matéria inerte, já sem vida.

26
Isso mostra que toda a modernidade está marcada por grandes avanços nas
ciências naturais, especialmente na medicina, com todas as descobertas da
anatomia humana. Trata-se de avanços que serão essenciais à construção da
concepção de corpo enquanto máquina, ou objeto orgânico12 desprovido de
qualquer estatuto ontológico, conforme sacramentado, como vimos, pela metafísica
cartesiana. Sobre esta noção de corpo como objeto avalia Merleau-Ponty (2011, p.
111):

A definição de objeto [...] é a de que ele existe partes extra partes e


que, por conseguinte, só admite entre suas partes ou entre si mesmo
e outros objetos relações exteriores e mecânicas, seja no sentido
estrito de um movimento recebido e transmitido, seja no sentido
amplo de uma função variável.

Não se pode deixar de considerar a escola empirista que buscou a


valorização do aspecto material do mundo e do homem. Poderíamos destacar aqui
diversos autores como Locke, Hobbes, ou mesmo, na era medieval, o filósofo
franciscano Guilherme de Ockham. Não se pretende aqui fazer uma “genealogia do
empirismo”, mas apenas lembrar desta disposição de retorno ao aspecto imediato e
concreto da realidade. Não obstante esta aspiração, no empirismo “podemos
apreciar que o concreto mesmo se perde infalivelmente, [...] em uma massa caótica
de sensações sem sustento real.” (GRASSI, 2008, p. 24). Sob este prisma, segue
Grassi (2008, p. 25):

Seja como for, a materialidade sofreu durante a história do


pensamento uma desvalorização acentuada. O ponto indicativo desta
subestimação é dado pelas diversas reflexões antropológicas acerca
do homem, nas quais se tenta resolver como é possível uma unidade
formada por princípios tão heterogêneos como são o espírito e a
carne. Sem subestimar ditas reflexões, se pode observar que a
carnalidade do sujeito humano foi relegada a um problema
propriamente antropológico, sem nenhuma incidência importante no
pensamento metafísico ou filosófico em geral. E ainda em seu âmbito
antropológico, a corporeidade foi tida – excetuando as posições
materialistas, que perdem o homem mesmo – quase como um mero
acidente do homem, como algo quase anedótico na vida humana.

12
É digno de nota o seguinte: abordagem do corpo em seu aspecto material, orgânico e funcional não
é um problema em si. Os estudos científicos são válidos e de suma importância. O ponto essencial
em análise é o fato de o mesmo ter sido tomado como única via possível de explicação de tal
realidade.
27
Fato é que, a tradição, culminando no cientificismo e racionalismo modernos
e, tendo como seu principal expoente Descartes, deixa como legado a ideia de um
corpo objeto, haja vista que este filósofo pautará toda a existência como
dependente, essencialmente, do pensamento (cogito), como afirma em sua famosa
conclusão: “cogito, ergo, sum”. Todo o fundamento da realidade é posto aqui sob a
base da certeza indubitável do cogito, reservando ao corpo o caráter de
obscuridade, desprovido, pois, como um conhecimento confuso e indistinto. Mais: o
corpo se define, pura e simples, como uma máquina. Como relembra Azevedo
(2012, p. 48): “a ambição do racionalismo é a explicação do mundo a partir da razão,
num processo de redução do mesmo à unidade, verificando-o a partir daquilo que
lhe confere estatuto: a racionalidade”.
Diante de tudo o que vimos até aqui, no que concerne à tradição metafísica e
ao pensamento cientifico-filosófico, pergunta-se então: o que é o corpo? Como
retrata Silva (2017b, p. 157):

Este (o corpo) se define como um organismo vivo, material. É essa


caracterização que, em alemão, a noção de Körper traduz. Trata-se
do corpo do ponto de vista de seu agenciamento interno funcional,
orgânico. Ora, até aqui, em princípio, não há qualquer problema. O
problema surge à medida em que essa definição se torna um modelo
exclusivo quando se trata de compreender o fenômeno da
corporeidade tendo em vista outros aspectos que interagem nela.

É preciso considerar ainda o fato de que o pensamento de Gabriel Marcel se


inscreve numa oposição ao cartesianismo, bem como ao idealismo pós-kantiano. É
desde este ponto, ou melhor, contraponto, que Marcel desenvolve sua Filosofia do
Concreto, voltada à realidade imediata existencial. De acordo com o nosso filósofo,
ao considerar a existência “[...] no processo geral do conhecimento e isso em vias de
determinações racionais de toda índole” (MARCEL, 1927, p. 309), os filósofos
idealistas acabam por tratar a existência como “[...] algo em que o pensamento se
apoia, porém, que, sem dúvida, e pela mesma razão, tende a perder-se de vista
cada vez mais completamente” (MARCEL, 1927, p. 309).
Marcel tomará, por meio de sua “filosofia concreta”, um rumo totalmente
oposto ao traçado pela tradição acima, ao passo que aborda a corporeidade, não a

28
título secundário ou de maneira depreciativa, mas antes, como condição originária
de participação no ser. É precisamente o que põe, em questão, o filósofo:

Qual será, desde então, o ponto de partida da pesquisa assim


concebida? Será a consideração da situação fundamental na qual
me encontro situado enquanto humano – não dizemos ainda
enquanto criatura –, por minha própria condição humana. Aqui
aparece, em plena luz, a oposição entre uma filosofia de tipo
existencial e uma filosofia de tipo cartesiano – ainda que haja talvez
em Descartes, mas não em seus sucessores, indicações que
poderiam ser exploradas em um sentido não cartesiano. A situação
ou a condição humana não é, para tal pensamento impessoal, senão
um objeto de consideração como qualquer outro, tratado como não o
afetando; mas nessa medida, ela se suprime como situação ou
condição. Supressão fictícia; abstração pela qual o pensamento se
interdita o acesso ao ser. (MARCEL, 1959, p. 20-21).

Sob o prisma do pensamento marceliano, considerar o corpo tão somente em


seus aspectos orgânico e material acaba por transformar este mesmo corpo em
simples objeto do estudo cientifico, alheio e exterior ao próprio eu e, com isso, à
própria existência. Ora, o erro da tradição consiste exatamente na objetificação do
corpo, retirando todo e qualquer sentido ontológico do mesmo e, desprovendo
assim, a própria existência humana de qualquer sentido, “interditando o acesso ao
ser”.

1.2. A distinção entre “problema” e “mistério”

Tendo-se analisado a noção clássica de corpo, e como esta se apresenta e


se consolida na tradição filosófica enquanto Körper13 (“corpo-objeto”), cabe agora,
antes de adentrarmos à concepção marceliana de corpo, propriamente, analisarmos
um ponto fundamental dentro da filosofia deste pensador francês. Trata-se da
distinção entre “problema” e “mistério”.
O núcleo das divergências entre estes dois âmbitos metodológicos se dirige
no sentido de assinalar qual é o estatuto próprio da filosofia e de como esta, nas

13
Trata-se de uma expressão alemã, que remonta à doutrina tradicional do corpo enquanto objeto. O
termo reaparecerá e será melhor explorado no capitulo 2, seção 2.1 “Existência e transcendência:
um limite tenso”. A propósito da questão conferir SILVA, 2017c.
29
últimas décadas, sobretudo por conta do idealismo abstrato, se encontra destituída
de sua função primordial, “sobretudo num momento em que se assiste a um notável
prestígio da ciência como discurso paradigmático por excelência.” (SILVA, 2018, p.
188). Ora, distinguir estes dois pontos de divergência, no intuito de caracterizar qual
é o estatuto específico filosófico, se torna estritamente importante na medida em que
nos direciona para aquele que será o ponto central da tese de Gabriel Marcel: a
encarnação.
A encarnação, como veremos, é o pivô da filosofia marceliana. Há, no
entanto, aqui, de se ter um cuidado: “ela não deve ser interpretada à maneira como
se fosse um dado estático, fossilizado, petrificado”. (AZEVEDO, 2012, p. 28). Isto
significa dizer que a encarnação não pode ser tomada objetivamente, de modo a ser
considerada como um fato inerte, o que a transformaria, como bem lembra Ricœur,
em um “túmulo” (RICŒUR, 1996, p. 61). Sob este prisma, analisar a distinção da
díade “problema” e “mistério”, abordada por Marcel, é imprescindível na medida em
que viabiliza a compreensão de toda a tese marceliana da encarnação, e do homem
conforme veremos, como ser de “mistério”.
Ademais, o contexto histórico em que Marcel propõe a diferenciação entre
problema e mistério é precisamente o do advento do método científico como
arquétipo e modelo de todo e qualquer conhecimento que se pretenda verdadeiro.
De fato, a exaltação das ciências frente ao total desprestígio e abandono do método
peculiar da filosofia cria, de acordo com Marcel (1999, p. 12), nos próprios filósofos,
um “sentimento de inferioridade” diante “do progresso das ciências particulares”.
Seguindo os passos do filósofo, pior ainda que esse “complexo de inferioridade do
filósofo diante do cientista” (MARCEL, 1999, p. 95), é a traição que alguns destes
filósofos incorrem à medida em que se apropriam do método científico utilizando-o
na filosofia. Como bem nos assinala Silva (2018, p. 189):

Tudo se passa como se o filósofo ambicionasse adotar certa prática


científica, qual seja, incorresse ingenuamente no insuperável vício de
exercer, à distância, certo domínio sobre o real. O filósofo, via esse
modus operandi, realizaria certa apreensão puramente objetiva e,
portanto, indevida da experiência do mundo.

A fim de melhor diagnosticar o que seja este “complexo de inferioridade” e


como ele leva o filósofo a trair a natureza própria de seu labor, Marcel (1951d, p.
30
136) trata de distinguir outros dois termos não muito fáceis de precisar: “abstração” e
“espírito de abstração”:

De início, convém distinguir abstração e espírito de abstração, mas


essa distinção não é fácil de precisar. A abstração considerada em si
mesma é uma operação mental processual indispensável para
chegar a um fim determinado qualquer que seja. A psicologia tem
perfeitamente trazido à luz a ligação interna entre a abstração e a
ação. Abstrair é, em suma, proceder a uma terraplanagem prévia,
terraplanagem essa que pode apresentar um caráter propriamente
racional. Isso significa dizer que o espírito deve conservar uma
consciência precisa e distinta das omissões metódicas necessárias
para alcançar o fim visado, distinta das omissões metódicas que são
requeridas para que o resultado visado possa ser obtido. É possível,
porém, que, cedendo a uma espécie de fascinação, o espírito perca
a consciência dessas condições prévias e cometa abuso sobre a
natureza do que, em si, é apenas um procedimento; pode-se quase
afirmar, um expediente. O espírito de abstração não é separável
deste erro; eu até tomaria a liberdade de dizer que ele é este erro
mesmo.

De acordo com Marcel, a abstração é um instrumento indispensável no que


tange ao campo da ciência, precisamente porque possui como dever próprio de seu
ofício aspirar à objetividade como princípio de pesquisa. A ciência, tal qual pensada
positivamente carece de uma precisão objetiva de seus termos para alcançar os
resultados esperados. Ao prescindir desse modus operandi que lhe é fundamental
ela deixa de cumprir sua função fundamental. Ou seja, de antemão, a crítica de
Marcel à abstração não se dirige ao fato de que a ciência se utiliza dela, visto que é
próprio da ciência, por buscar certa objetividade em sua atuação, lançar mão deste
instrumento. Em outras palavras, a abstração é “o que define propriamente o labor
científico, pois abstrair demarca um ponto de interrupção da pesquisa ao atingir, com
êxito, um resultado ou objetivo, via, é claro, critérios racionais.” (SILVA, 2018, p.
190). O que Marcel põe como injustificável é, pois, o “espírito de abstração”,
segundo ele, de “essência passional”, visto que o “passional produz o abstrato”. O
espírito de abstração caracteriza-se como fundamentalmente dogmático, ao passo
que não leva em consideração o processo envolvido na atividade do pensamento.
Justamente por desconsiderar as condições prévias no processo de conhecimento é
um “espírito desencarnado da realidade” (SILVA, 2018, p. 190).
Frente a este “quadro sintomático”, adentramos agora à questão propriamente
dita da distinção entre problema e mistério tomando uma das anotações de Gabriel
31
Marcel (1935, p. 145), em seu Diário Metafísico, escrita em 22 de outubro de 1932,
onde o filósofo esclarece:

Distinção entre o misterioso e o problemático. O problema é algo que


se encontra e que obstaculiza o caminho. Acha-se inteiramente
diante de mim. Por outro lado, o mistério é algo em que me encontro
comprometido, cuja essência consiste, por conseguinte, em não
estar inteiramente diante de mim. É como se nessa zona de distinção
o entre mim e o diante de mim perdesse a sua significação [...]. É
próprio dos problemas o poder de detalha-los. O mistério, ao
contrário, é aquilo que não pode ser detalhado.

Percebemos que o problema é caracterizado por ser algo com o qual eu me


deparo, ou seja, o que está ou se coloca “diante de mim” e que é passível de
resolução, de ser logicamente detalhado. Outro aspecto essencial do problema é
justamente a cisão que este opera entre sujeito e objeto, como exemplifica o próprio
Marcel (1951d, p. 84): “Há problema de tudo o que está posto diante de mim e, de
outra parte, este eu, cuja atividade entra em jogo para resolver o problema,
permanece fora ou aquém, como se quer, dos dados que se trata para tratá-lo e
manipulá-lo a fim de fazer aparecer a solução buscada”. Por outro lado, o mistério é
algo com o qual eu estou comprometido, quer dizer, que está “em mim”, algo que
não pode ser logicamente sistematizado. Se, no campo do problema, o sujeito se
depara com algo diante dele que, por meio de uma manipulação, é suscetível de ser
resolvido, no campo do mistério, o sujeito se encontra imerso, engajado, pois, em
algo que faz parte dele, com o qual cria certa comunhão. Assim assinala Azevedo
(2012, p. 28):

O que Marcel põe a nu é que, o primeiro nível, o do problema, se


caracteriza exatamente em termos objetivos, predicativos, imediatos.
Ou seja: é algo dado, uma vez que, objetivamente, já se encontra aí
para ser dissolvido, resolvido, requerendo, o mais imediatamente
possível, uma solução. Noutra direção, o nível do mistério
corresponde justamente àquilo que não se liquida, ou seja, aquele
âmbito da experiência que envolve, compromete, perturba, inquieta,
desassossega.

O campo do problemático é próprio das ciências positivas, as quais, para


sanar algum problema com o qual se deparam e que solucionam, reduzem ou
mesmo dissolvem o quanto antes por meio da técnica e da lógica, com a máxima
32
precisão possível. O mistério, que é o campo próprio do saber filosófico, pelo
contrário, não é passível desta objetivação que ocorre no campo da ciência, antes,
“transcende, por definição, toda técnica concebível” (MARCEL, 1935, p. 169).
Conforme atenta Silva (2010, p. 94):

A ciência trabalha com problemas; objetiva pragmaticamente


solucioná-los. Por isso, ela, se prescindir da mais estrita precisão e
previsão quanto aos seus resultados, não consegue operar. Ora,
bem ao contrário, o discurso filosófico, nos termos de uma ontologia
aqui orientada, se move noutra esfera de questionamento. Seu
modus operandi não é o do verificacionismo puro e simples. Não
aguarda soluções imediatas, mas se vê, antes, envolto em enigmas
ou mistérios.

Destarte, o plano do mistério é totalmente diverso do plano do problemático,


visto que, neste último, o problema está diante de mim, objetivado, suscetível à
decomposição, enquanto que, no plano do mistério, há a possibilidade de
transcendência entre a oposição sujeito-objeto, comum na tradição clássica da
epistemologia. A transposição desta noção clássica do contraponto entre sujeito e
objeto é o que possibilita um mergulho profundo na realidade mesma que se desvela
como meta-problemática. Mistério aqui se caracteriza como “aquilo que escapa à
lógica da objetivação” ou, se quiser, é a experiência que “está aquém ou transcende
todo formalismo lógico ou o monitoramento de um veredicto abstrato.” (SILVA, 2010,
p. 94). Como atesta Marcel (1951d, p. 85):

O que é, pois, o mistério? Por oposição ao mundo do problemático


que, ainda uma vez, está todo inteiro diante de mim, o mistério é
alguma coisa onde eu me encontro engajado. Com isso,
acrescentaria, não engajado parcialmente por algum aspecto
determinado e especializado de mim-mesmo, mas, ao contrário,
engajado inteiramente, enquanto eu realizo uma unidade que,
inclusive, por definição, jamais pode apreender-se a si própria e nem
se tornar objeto de criação e de fé. Ao se pôr, o mistério abole essa
fronteira entre o em-mim e o diante de mim que, a toda hora, poderia
bem ser reportada ou adiada, mas sem jamais cessar de se
reconstituir a cada momento da reflexão.

A experiência efetivamente filosófica configura-se, neste âmbito do mistério,


como um esforço incessante e continuo por penetrar a estruturas dos
acontecimentos vividos como experiência do mundo habitual, da realidade

33
circundante, que se apresenta no concreto da vida como um valor intersubjetivo.
Note-se que, nesta perspectiva, o mistério se projeta para além da compreensão
comum que se tem como algo no sentido de segredo ou que está confiado a alguém
de forma sigilosa e restrita. Ainda, “toda confusão entre o mistério e o incognoscível
deve ser cuidadosamente evitada: o incognoscível não é, com efeito, senão um
limite do problemático que não pode ser senão atualizado sem contradição”
(MARCEL, 1935, p. 169). Isto é, o mistério não se caracteriza como algo irresolúvel:
afinal, a ciência também possui inúmeros problemas aguardando alguma resolução
e, nessa medida, antes, apresentando-se como um “espírito de abertura ou
engajamento mais efetivamente concreto diante de questões que, longe de serem
incompreensíveis ou insondáveis, nos tocam intimamente” (SILVA, 2010, p. 94). É o
que nos assegura o próprio Marcel (1999, p. 218-219):

O mistério não é interpretado como é, entre os agnósticos, como se


fosse uma lacuna do conhecer, como um vazio a ser preenchido,
mas, ao contrário, como uma plenitude, eu diria mais: como
expressão de uma vontade, de uma exigência tão profunda que se
conhece em si mesma [...] o mistério antes se transcende doque
satisfaz aquele apetite de conhecer.

Cabe aqui observar que, diferentemente do campo problemático, o mistério se


projeta como um horizonte que reivindica uma tomada de posição, um engajamento
efetivo, causado por certo estado de inquietude que rejeita toda e qualquer
imparcialidade diante da vida. Para a compreensão do que seja o engajamento,
segundo Marcel, é preciso ter em vista o vinculo fundamental existente entre
mistério e valor, no sentido de que aquilo que é misterioso é capaz de despertar meu
interesse, que se apresenta a mim como algo de valor (MARCEL, 1927, p. 160). Isto
significa dizer que estar engajado é o mesmo que deixar-se envolver por algo pelo
qual o sujeito se sente impelido e no qual se vê implicado como que em um enigma.
Neste sentido, “quem interpela se situa não como espectador de um problema tão
somente, mas, antes, se encontra em sinérgica experiência com o mundo e com as
coisas, tomando o ali posto numa atitude de avalição e de comprometimento”.
(SILVA, 2018, p. 193).
Para aprofundar ainda mais esta perspectiva dual entre problema e mistério
Marcel (1935, p. 169-170) escreve:
34
Parece, com efeito, que entre um problema e um mistério, há uma
diferença essencial: a de que um problema é algo com o qual me
enfrento, algo que encontro por inteiro ante mim, que se pode cercar
e reduzir, enquanto que um mistério é algo com o qual eu mesmo
estou comprometido e que, em consequência, não é pensável se não
como uma esfera na qual a distinção de em mim e ante mim perde
seu significado e seu valor inicial. Enquanto um problema autêntico
pode ser submetido a certa técnica apropriada em função da qual se
define, um mistério transcende, por definição, toda técnica
concebível. Sem dúvida, sempre é possível (lógica e
psicologicamente) degradar um mistério para convertê-lo em
problema, porém, tal procedimento é profundamente vicioso e sua
origem deveria ser buscada, talvez, em uma espécie de corrupção da
Inteligência. O que os filósofos têm chamado o problema do mal nos
proporciona um exemplo particularmente instrutivo dessa
degradação.

O que o filósofo nos faz atentar neste trecho lapidar, é para o erro de sentido
que se tornou frequente no idealismo clássico e que consiste em confundir os níveis
do “misterioso” e do “problemático”. Ora, Marcel tratará tal confusão, conforme bem
vimos acima, como uma “degradação”, um “procedimento vicioso”, uma “espécie de
corrupção da inteligência”.
De tudo o que se disse até aqui e, seguindo o pensamento de Gabriel Marcel,
não existe nada de errado com o método problemático em si. O erro consiste
fundamentalmente em postular tal método como único e exclusivo modo de
conhecer, tomando-se o método problemático como modelo epistemológico
exclusivo por excelência, como se fosse a fonte absoluta do conhecimento. Ou
ainda, “o limite do cientificismo reside apenas na absolutização de sua prática como
parâmetro exclusivo a partir do qual todo conhecimento (como o filosófico) deva
adotar como critério.” (SILVA, 2018, p. 197). Ora, é sob esse aspecto, por exemplo,
que viria observar Merleau-Ponty (2002, p. 14-15):

Não se trata de negar ou de limitar a ciência; trata-se de saber se ela


tem o direito de negar ou de excluir como ilusórias todas as
pesquisas que não procedam como ela por medições, comparações
e que não sejam concluídas por leis, como as da física clássica,
vinculando, determinadas consequências e determinadas condições.

35
A crítica incisiva de Marcel dirigida à tradição filosófica se fundamenta no fato
de que os filósofos têm se utilizado de categorias do problemático para tratar de
temas puramente metafísicos, degradando assim tais temas, objetivando-os,
coisificando-os. Exemplo claro desta degradação é citado pelo próprio filósofo em
sua obra Os homens contra o Humano, é o que fora tratado pela tradição filosófica
nos termos de um “problema do mal”.

Eu problematizo o mal quando eu o trato como um acidente ocorrido


no interior de uma certa máquina ou ainda como um defeito ou como
um vício de funcionamento. Ao contrário, o mal se revela, para mim,
como mistério quando reconheci que eu não posso me tratar como
exterior a ele, como tendo simplesmente que constatá-lo ou observá-
lo de fora, mas que estou, diversamente, implicado, no sentido em
que se está implicado num processo criminal, por exemplo. O mal
não está, unicamente, sob os meus olhos; ele está também em mim.
exemplo, em uma causa crime. Não está somente à minha vista, está
em mim. (MARCEL, 1951d, p. 85).

Fato é que “o mal não é, em sentido próprio, um objeto ou pontualmente um


problema diante do qual eu me deparo” (SILVA, 2018, p. 194), tampouco é algo
“impessoal no sentido de que eu mesmo ficasse em relação a ele indiferente ou não
fosse chamado à responsabilidade” (SILVA, 2018, p. 194). É neste sentido que
adverte Marcel (1951d, p. 113):

A expressão “mal radical”, de que se serviram Kant e Schelling,


corresponde a uma realidade profunda; isso quer dizer ainda que, se
eu sou inteiramente sincero, devo reconhecer que o mal não está
somente diante de mim, mas também em mim; ele me cerca, de
alguma maneira, ele me envolve.

Além da questão do mal, há diversas outras questões que foram sendo


tratadas por meio do método problemático, mas que, na verdade, pertencem ao
campo do mistério, como por exemplo: a liberdade, o amor, a presença, etc. A mais
importante delas é, entretanto, a questão do ser, como nota Azevedo (2012, p. 31;
grifo nosso).

[...] o campo do mistério é amplo, vindo abarcar todo um âmbito de


realidades recônditas, como, por exemplo, a questão do mal, a
relação corpo-alma, a liberdade, o conhecimento, o amor, o tempo, a
presença, a imortalidade. Por outro lado, todos esses âmbitos de
36
questões, radicalmente misteriosos, desvelam tão somente aspectos
de um só mistério fundamental: o mistério do ser. Reiterando a sua
tese central, Marcel postula que o ser não é um objeto que se projeta
objetivamente, uma vez que nós mesmos somos ser, pois
participamos no ser.

Ao longo da história do pensamento filosófico foram formuladas diversas


teorias a respeito do ser, isto é, diversos pensadores propuseram um estudo acerca
das realidades do ser como tal. Marcel (1968, p. 77), por seu turno, situa tal ordem
de questão de uma maneira bem peculiar. Escreve ele:

Eu posso dizer que a reflexão sobre o ser está, desde a origem, no


coração de todo o meu pensamento, e, sabe-se que ela se traduz,
em particular, pela distinção entre problema e mistério. Essa
distinção, eu não tenho razão de renunciar, senão enquanto, aos
meus olhos, ela tiver valor ou permanecer um instrumento de
pensamento, ou ainda, para empregar uma metáfora mais precisa,
se ela for como um canal aberto a uma certa navegação intelectual
ou espiritual.

O filósofo, entretanto, refuta a clássica formulação acerca deste tema ao


passo que é absolutamente equivocada quando se apresenta como “problema do
ser”. O erro aqui consiste precisamente em situar o ser no campo do problemático.
Ora, o ser não se caracteriza como um problema que se põe diante de mim como
um obstáculo, algo a ser resolvido, mas, uma situação com a qual eu estou como
que em certa comunhão. Abordar a ontologia sob uma perspectiva puramente
técnica ou problemática termina por desfigurar, lacerar o aspecto primordial do ser.
Isto significa dizer que o ser não pode ser abordado à mesma maneira que o método
científico trata os seus problemas, isto é, de forma objetiva, a título, pura e simples,
de um objeto, uma coisa.
Ora, Marcel entende que a questão sobre o ser é uma questão que
transcende o campo do meramente problemático e que se projeta no plano do meta-
problemático, isto é, se situa para além de qualquer objetificação que possa ser
feita, ou ainda para além de qualquer coisa que possa ser tomada e solucionada
como um objeto qualquer. O ser é tal ordem de experiência que se transfigura como
um “mergulho” na própria existência, uma experiência de mistério.
Não se trata, em rigor, do “problema do ser”, mas do “mistério do ser”. Isto
porque o ser, segundo o autor, é acessado não via uma sistematização direta e
37
positiva, pela qual se exige um resultado pragmático, mas por meio de diversas
experiências que possibilitem uma imersão no recolhimento, condição fundamental
para o reconhecimento do próprio mistério. Neste sentido, um pensamento genuíno
é aquele que se exprime como avesso a qualquer possibilidade de “posse do ser” a
título de um objeto. Ora, a filosofia é este autêntico pensamento, que opera via o
plano do mistério. Sendo assim, se, por um lado, o problema assume um caráter
disjuntivo, ao passo que presume uma separação prévia e abstrata; o mistério é
inclusivo, integral, porque tem como pano de fundo o encontro, a presença, enfim, a
participação. É tendo em vista esta concepção que podemos dizer que o mistério do
ser implica determinada comunhão com o real, quer dizer, com o concreto da vida.
Por conseguinte, a pergunta pelo ser comporta a pergunta pelo ser daquele
que se questiona, isto é, o ser (a existência) daquele que se pergunta pelo ser está
implicada nesta mesma pergunta pelo ser. Sobre isto, nos esclarece o próprio
Marcel (1935, p. 169): “Convém, por outra parte, assinalar que eu, que pergunto pelo
ser, não sei, em primeiro lugar, se sou, nem a fortiori o que sou – nem se quer sei
claramente o que significa esta pergunta que sou?, que ainda assim me obceca”.
Em outras palavras, o sujeito que se questiona sobre o ser encontra-se imerso,
envolvido nessa mesma questão, num campo que é próprio do mistério. Deste
modo, perguntar “o que é o ser?” é o mesmo que perguntar “quem sou eu?”, na
medida em que, pela existência, participo do ser. Outrossim, o que se destaca na
passagem acima, de Être et Avoir, é a perplexidade diante da própria condição
existencial humana. Não se trata de partir de fórmulas concatenadas e sistemáticas,
para então descrever o ser. O movimento que Marcel opera é totalmente diverso, o
ponto de partida é outro. Não se trata de “partir de fora”, de uma perspectiva ideal,
como se o homem estivesse além, ou melhor, aquém daquilo que se questiona que
é o próprio o ser. É o que bem elucida Silva (2018, p. 200):

Há, aqui, um acontecimento extraordinário: aquele que é o porta-voz


de seu questionamento encontra-se inseparável do próprio
questionamento. Com isso, se torna impossível dissociar as
perguntas O que é o ser? e Quem sou eu?, já que se trata de dois
contextos existencialmente implicados (SILVA, 2018, p. 200).

É nessa perspectiva que o ser se coloca no âmbito do mistério como


presença. Assim, a pergunta pelo ser não pode ser posta em termos de problema,
38
haja vista que o ser não é um objeto com o qual eu me deparo. O ser não pode ser
filtrado nos termos de uma decomposição lógica, de um exercício de abstração,
prestes a ser liquidado, resolvido. Ao contrário, o ser se encontra sob o signo do
mistério, no interior do qual aquele que está implicado em determinada situação
pode, não via operação abstrata, mas, por meio de comunhão com o concreto
vivencial, encontrar um significado para a existência. “O pensamento marceliano
retira o ser do nicho de abstração em que parecia confinado, para trazê-lo à luz a
partir de experiências elementares da existência, sem perda de sua densidade
metafísica.” (SANTOS, 2017, p. 225). Como retrata o filósofo:

Poder-se-ia dizer numa linguagem inevitavelmente aproximada, que


minha interrogação sobre o ser pressupõe uma afirmação onde eu
estaria de alguma maneira passivo e da qual eu seria a sede antes
que o sujeito. Isso, porém, só é apenas um limite de modo que eu
não posso realizar senão sem contradição. Eu me oriento, portanto,
rumo à posição ou ao reconhecimento de uma participação que
possui uma realidade de sujeito. Essa participação não pode, por
definição mesma, ser objeto de pensamento; ela não pode atuar
como uma solução, mas figura para além do mundo dos problemas:
ela é metaproblemática. Inversamente se pode ver que se um
metaproblemático pode ser afirmado, é como transcendente à
oposição de um sujeito que afirmaria o ser e do ser enquanto
afirmado por este sujeito – e como fundando de alguma maneira
essa oposição. Por um metaproblemático, é pensar o primado do ser
em relação ao conhecimento (não do ser afirmado, mas, antes, do
ser se afirmando), de reconhecer que o conhecimento é envolvido
pelo ser, que ele lhe é de algum modo interior (MARCEL, 1998b, p.
204).

Em outras palavras, o ser é mistério no qual desde um ponto específico se


está imerso numa realidade que me afeta, e este ponto é, segundo Marcel, meu
corpo, o signo mais palpável e real da minha comunhão com o mundo, como
veremos adiante. Afirmar o ser como mistério é orientar-se para essa posição de
participação a qual funda a realidade do sujeito como tal, e desde a qual todo
conhecimento é possível.
Ao tratarmos, pois, desta díade terminológica descrita por Gabriel Marcel
percebemos melhor a sua crítica incisiva à tradição metafísica, especialmente ao
idealismo e ao realismo. Ora, tal tradição sintomaticamente terminou por “degradar”
a formulação fundamental da pergunta sobre o ser, que se assenta, não no âmbito
do problemático, mas, do mistério. Em tal direção, que consequências tal
39
procedimento traz para o concreto da vida humana? Que sociedade gera este
pensamento abstrato e impessoal, ansioso por uma posse? É o que trataremos na
seção que segue, antes de adentrarmos na teoria sobre o corpo, propriamente dita.

1.3. Ser e ter: a ontologia do corpo vivo

Isso posto, abordaremos, outro tema capital, a bem da verdade, decorrente do


anterior, posto por Marcel, qual seja, o “ter” e o “ser”. Não é difícil reconhecer, de
saída, como a acentuação da posse (ter) produz uma existência inautêntica,
desprovida de qualquer sentido. Na segunda seção, veremos, então, a concepção
fenomenológico-existencial de corpo tal como proposta por Gabriel Marcel. Aqui,
cabe observar que, de acordo com o filósofo, o corpo não é objeto, mas, sujeito, e,
sob esse prisma, está inscrito num âmbito singularmente misterioso, isto é, de uma
experiência ontológica por excelência. Ele (o corpo) é o ponto desde o qual se
participa diretamente, enquanto presença viva, do ser. Não pode ser, por isso,
reduzido a mero instrumento, mas é o “imediato não mediatizável” (MARCEL, 1927,
p. 240). O corpo próprio configura-se, numa “síntese indefectível” (MARCEL, 1927,
p. 311), com a existência, como encarnação. Ademais, a existência humana e suas
relações se dão na corporeidade, que é, em última análise, o homem concreto. Este
corpo, que sou eu mesmo, é o meu ponto de inserção no mundo, meu ponto de
referência. Existir, neste sentido, é o mesmo que perceber-se unido
indissoluvelmente a um corpo (ser encarnado). E ainda, o sujeito (corpo) se
relaciona, se conhece, conhece o mundo e os outros justamente porque é um ser
que sente, ou seja, as relações do homem se dão na corporeidade à medida que ele
é um ser senciente.
Do que até aqui se disse, podemos afirmar que a pergunta pelo ser, uma vez
orientada no nível do mistério, implica numa interrogação radical e pessoal: Quem
sou eu, que me pergunto pelo ser? De que maneira eu, que interpelo pelo ser, sou?
Isto é, qual é o estatuto mais proeminente da existência daquele que se pergunta
por ela, o ser humano? Marcel (1935, p. 248-249) descreve:

Refletindo sobre o que comumente se considera como problemas


ontológicos (Existe o ser? Que é o ser?, etc.) cheguei a observar que

40
não posso me pôr a refletir sobre esses problemas sem perceber que
se abre aos meus pés um novo abismo: eu, que me ponho a
perscrutar o ser, posso estar seguro de que eu sou? Que títulos
tenho eu para fazer tais investigações? Se eu não sou, como posso
esperar vê-las concluir? Ainda admitindo que eu seja, como posso
estar seguro de que sou?

A pergunta pelo ser posta por Marcel como central e indispensável no âmbito
de sua filosofia se torna parte de um quadro mais amplo. Trata-se de uma discussão
estabelecida no interior da corrente fenomenológica e que ganha espaço e vigor na
primeira metade do século XIX, ao pôr no centro da discussão o estatuto relativo à
questão ontológica. De fato, ao lado de pensadores como Heidegger, Jaspers, entre
outros, o filósofo francês circunscreve seu pensamento em torno deste eixo,
dirigindo uma assídua crítica àquilo que ele chama de “saber absoluto”,
desenvolvido numa extensa tradição filosófica de pensamento e que possui suas
raízes no idealismo. Ora, isso tudo no sentido de denunciar que, “[...] ao reduzir a
existência à ordem do objeto, a teoria clássica do conhecimento abstrai um ‘sentido’
da ‘experiência’ sem reconsiderar nesta, uma densidade ontológica mais
proeminente.” (SILVA, 2014, p. 161-162). Gabriel Marcel se encampa na tarefa de
“restituir à experiência14 humana seu peso ontológico.” (MARCEL, 1935, p. 149).
Essa tarefa prima pela exigência de uma nova “teoria do ser”.
Como vimos, no capítulo anterior, a imputação posta por Marcel à tradição
metafísica se deve ao fato de que esta parece ter desenvolvido e reduzido seu labor
primordial ao estabelecer os mesmos padrões de objetividade e imparcialidade
requeridos pela ciência positiva em sua investigação. É que tal tradição tratara,
assim, a questão do ser como algo alheio à própria existência, ou ainda, como se
não estivessem imbuídos, nesta mesma realidade existencial, que o ser pelo qual se

14
A noção de “experiência” dentro do pensamento marceliano vai tomando forma ao longo do
desenvolvimento do seu trabalho. Inicialmente influenciado pela corrente idealista inglesa, e avesso
à tradição empirista, relegou, em um primeiro momento, a experiência, tratando-a a título de
recepção cognitiva de impressões sensíveis. Ao passo que o pensamento de Marcel se desenvolve
e se expande numa perspectiva ontológico-existencial sua acepção da experiência passa do mero
registro empírico para o fenomenológico, do “experimental” para o “experiencial”. A experiência
recebe, aqui, um estatuto proeminentemente ontológico. Não é simples recepção de impressões
sensoriais, mas abertura aos acontecimentos fenomênicos. Em uma nota de 23 de maio de 1910,
assim ele escreve: “A experiência é inerente à natureza própria do espírito e ela só é possível em
relação a uma finalidade que a orienta. Sob a condição de tomar a palavra num sentido amplo,
pode-se dizer que a experiência é o espírito mesmo exercendo sua atividade” (MARCEL, 2018, p,
20-21).

41
perguntam, estando, deste modo, indiferentes à própria realidade. É diante de tais
constatações que o filósofo busca a redefinição da função própria da investigação
metafísica, isto é, da filosofia. Esta não pode ser uma simples curiosidade
“extravagante e transcendente” já que ela se caracteriza como uma busca pelo ser,
ou ainda, uma necessidade profundamente humana de apetência. O humano tem,
no profundo de seu ser essa necessidade ou, esse “apetite do ser” 15. Como afirma
Silva (2014, p. 163-164):

A real condição humana é movida, continuamente, por uma


insaciável “apetência” ontológica. Essa apetência é o que
existencialmente a qualifica [...] Para além do regime de “posse do
ser pelo pensamento”, Marcel desconstrói a metafísica reorientando
outra práxis filosófica: o filósofo é aquele que deve se envolver
pessoalmente na pesquisa, uma vez que o seu ser, o seu conhecer,
o seu querer são conduzidos diretamente para a questão.

Seguindo a perspectiva dual entre mistério e problema, por meio da


interrogação sobre a existência humana e aquilo que é próprio do ser humano, isto
é, que o constitui de fato, Marcel nos apresenta um segundo par de categorias do
pensamento: o “ter” e o “ser”. Trata-se de dois temas também muito caros ao filósofo
e indispensáveis para a compreensão do movimento que ele opera em seu
pensamento. Afinal, como ele próprio retrata: “[...] no fundo, tudo se reduz à
distinção entre o que se tem e o que se é.” (MARCEL, 1927, p. 301). Ao passo que o
problema é determinado metafisicamente como um objeto ideal, uma posse
intelectual. Já, diversamente, o horizonte do mistério “é o campo de uma experiência
concreta resistente a toda intelecção pura e, em rigor, irredutível a qualquer
experimentação ou controle” (SILVA, 2014, p. 165). Isto significa dizer que, enquanto
que o âmbito do problemático caracteriza-se como uma posse ôntica (ter), o mistério
configura-se no campo de uma experiência ontológica (ser).
A dimensão do ter resguarda a mesma impessoalidade contida no campo do
problemático. Aqui as coisas estão “fora de mim” e se me apresentam como objetos
estranhos à medida que me “relaciono” com elas como sendo posses minhas. Fato é
que, uma vez se situando no âmbito do problemático, o ter diz respeito às coisas

15
A necessidade metafísica é uma carência que emerge no “coração do homem”, como veremos no
tópico 2.2 Experiência da transcendência, o qual abordará o tema da metafísica como responsável
por saciar esta sede, este apetite de transcendência, particularmente humano.
42
que são exteriores a mim, no sentido de que, embora sejam minhas propriedades,
elas independem de mim. Como afirma Marcel (1927, p. 301):

O que alguém tem apresenta evidentemente certa exterioridade a


respeito de si mesmo. Esta exterioridade não é, contudo, absoluta.
Em princípio, o que se tem são coisas (ou algo que pode assimilar às
coisas e precisamente na medida em que esta assimilação seja
possível). Não posso ter, no sentido estrito da palavra, mais que algo
que possua uma existência até certo ponto independente de mim.
Em outros termos: o que tenho se acrescenta a mim; mais ainda: o
fato de ser possuída por mim se acrescenta a outras propriedades,
qualidades, etc., pertencentes à coisa que tenho.

Neste sentido, o ter supõe sempre uma apropriação, quer dizer, a posse de
algo que se fragmenta. Aqui impera uma postura caracteristicamente rasa e
imediatista. É por isso que, na categoria do ter, o pesquisador coloca-se como um
expectador, imparcial, “tomando distância do mundo, para num segundo momento,
assimilá-lo teoricamente. Não há mais apetite, ele se considera saciado demais no
interior de seu sistema em meio aos seus conceitos e fórmulas” (SILVA, 2014, p.
171). Marcel, por fim, não tarda em observar:

Parece-me evidente que a ordem do ter se confunde com a do


problemático e também, por isso mesmo, com aquela com a qual as
técnicas são possíveis. O metaproblemático é, com efeito,
metatécnico. Toda técnica supõe um conjunto de abstrações prévias
que a condicionam, porém, se revela impotente ali onde se trata do
ser em sua totalidade. (MARCEL, 1935, p. 252)

O ser, pelo contrário, em oposição ao ter, é do campo do mistério e, portanto,


se encontra no interior mesmo daquela experiência concreta e mais íntima. De fato,
enquanto que o domínio do ter se ocupa de problemas, o âmbito do ser se ocupa de
mistérios. O ser não suporta nenhum tipo de “espírito de abstração”, mas, nele tudo
se encontra na concretude do real. Como afirma Marcel, o ser é “concreção”, em
oposição à abstração. Ao acentuar-se o ter acaba por suprimir o ser; se se tornar
instrumento, pelo contrário, viabiliza uma ascensão ao campo do ser. Como
subscreve o Azevedo (2010, p. 111):

Na categoria do ter, a existência é ‘devorada’ pelos objetos, o ter


conduz ao desespero e à falta de sentido. O ter é aquilo que é

43
objetivável, exibível aos outros, é a exteriorização do ser, o seu
fazer-se espetáculo; ele é o ‘coisificar-se’ do ser, o seu vir para fora,
o seu epifanizar-se, fragmentar-se, mumificar-se.

Por este ângulo, o ter é capaz de destruir o existente humano à medida que o
domina. Becker compreende isto da seguinte maneira:

No contínuo criar, o ter tende a sublimar-se ou a transformar-se em


ser. [...]. Quando permanecemos no âmbito do puro ter,
permanecemos no plano do problema e nos tornamos sujeitos às
coisas. Exemplo disso tende a ser o ideólogo, o qual, uma vez
dominado pelo conhecimento exterior e abstrato, permite o domínio
sobre si próprio, passando a adotar a condição de escravo de suas
ideias e convicções. O filósofo, ao contrário, tende a se manter num
espirito criador, já que, constantemente, questiona sua própria
reflexão. (BECKER, 2013, p. 122).

O ter, pois, deve ser buscado enquanto meio numa ascensão ao ser, e não
como fim último. Ao deixar-se dominar pelo ter, pela posse dos objetos, acabamos
por nos perder em meio às coisas. O próprio homem torna-se um objeto.
Segundo Marcel, vivemos em um mundo partido (cassé), isto é, num mundo
onde o tecnicismo e o pragmatismo da ciência fragmentaram o homem, tornando a
existência vazia de qualquer sentido real. Trata-se de um mundo onde o “ter”
prevalece e sufoca o “ser”. Nesse contexto, a angústia e o desespero são frutos de
uma existência inautêntica; existência essa fundada tão somente no campo do ter.
Outrossim, numa sociedade consumista, onde a cultura técnica se impõe, perde-se
o verdadeiro sentido da existência, que é “devorada” pela posse dos objetos.
Sobre este estado de fragmentação, Marcel, em uma de suas obras
dramatúrgicas16 mais notáveis, Le Monde Cassé17, compreende aquilo que seja,

16
Como vimos na parte introdutória deste trabalho Marcel é, além de filósofo, músico e dramaturgo.
Suas obras literárias exercem grande influência em sua filosofia, ou melhor, elas se mesclam, se
complementam, é como se, de acordo com o próprio autor, em suas obras dramatúrgicas a sua
filosofia se encontrasse em todo seu vigor, purificadas de qualquer esquema ou simplificação
racionalista que pudessem afastá-las do real. Sobre este aspecto, atesta o autor, em uma de suas
entrevistas: “É ali que meu pensamento se encontra em estado natural, e como que em seu jorro
inicial [...]. O teatro, entretanto, é em vários casos um protesto contra tudo o que, no pensamento
filosófico, tende a ser demasiado esquemático, demasiado simplificador, e, por isso mesmo, a
prejudicar a parte da realidade que é contraditória e inesgotável.” (MARCEL, 1970, p. 141-142).
17
No original francês Le Monde Cassé, “O Mundo Quebrado” ou, numa melhor tradução, “O mundo
Cindido” ou “Partido”. Trata-se de uma das peças mais famosas e premiadas do autor, vinda à
44
segundo ele, a situação atual do homem moderno. Na obra, em uma das principais
personagens, Christiane, encontramos, por assim dizer, o estereótipo do homem
contemporâneo. Desassossegada, aborrecida com o seu enfadonho matrimônio com
Laurent Chesnay (um homem tão absorto ao mundo dos negócios ao ponto de
negligenciar o próprio casamento) se vê imersa numa trama de traições, segredos e
superficialidades. Ela, então, faz uma confissão à sua amiga Denise:

Tu não tens a impressão, às vezes, de que vivemos [...] se isso pode


chamar viver [...] num mundo quebrado? Sim, quebrado como um
relógio. A corda não funciona mais. Aparentemente nada mudou.
Tudo está em seu lugar. Se, porém, aproximarmos o relógio do
ouvido [...] já não se ouve mais nada. Compreende? O mundo, aquilo
que chamamos mundo, o mundo dos homens [...] devia ter um
coração em outra época, mas dir-se-ia que deixou de bater.
(MARCEL, 1956, p. 14-15).

A passagem acima evidencia a situação da sociedade hodierna, que sofre


com certa crise em seus valores, o que, por sua vez, vai evidenciando,
paulatinamente, seu aspecto de esfacelamento, onde existe uma busca incansável
do “ter” que acaba por sufocar o “ser”. Assim, entretanto, “tudo se passa aqui como
se estivéssemos diante, [...] não só de um drama cósmico puro e simples, mas do
drama essencialmente humano lançado numa espécie de roleta russa.” (SILVA,
2010, p. 101). Ou seja, a fragmentação do mundo, posta aqui por Marcel, via obra
dramatúrgica, retrata não somente a crise do mundo ou da sociedade, mas, uma
crise do próprio homem que se encontra perdido, sem sentido. Isto porque “esse
mundo que se estilhaça, ante nossos olhos, não é senão o sintoma de uma
subjetividade que, num dado momento, acreditara, a todo custo, assenhorar-se da
natureza, pela técnica” (SILVA, 2010, p. 102). O que alerta Silva é para o fato de
que:

Não se trata, tão somente, de pôr em xeque o aparato mecanicista


das noções de mundo e de corpo. O que é preciso compreender é o
estatuto metafísico de base que dá suporte a uma cosmovisão de
realidade como um sistema mecânico, automatizado, sem vida
própria. Quer dizer, o caráter sintomaticamente objetivante da noção

público em 1933. Nela, Marcel propõe a reflexão sobre a fragmentação do mundo hodierno, isto é, a
perda do sentido da existência humana no mundo e suas relações.
45
de homem impede o reconhecimento de sua própria essência.
(SILVA, 2010, p. 102).

Isto significa dizer que o sentido da própria existência, da vida, perde sua
significação mais essencial à medida que o homem se encontra imbuído num mundo
tecnicista, ou seja, numa trama de relações superficiais e funcionais, altamente
burocráticas, chegando ao extremo de ser desconhecido para si mesmo. “O que
está em jogo aqui”, observa ainda Silva, “não é só uma crise do mundo técnico-
cientifico. É uma crise desde sempre instalada no coração da própria metafísica, a
metafísica do ‘sujeito’.” (SILVA, 2010, p. 102).

Não é demais insistir sobre a impressão de sufocante tristeza que


emerge de um mundo baseado na função. Me limitaria a evocar aqui
a imagem desoladora do aposentado, e também outra conexa, dos
domingos citadinos nos quais os passeantes dão precisamente a
sensação de serem aposentados da vida. (MARCEL, 1998b, p. 195).

De acordo com o filósofo, os homens modernos são, de maneira geral, meros


realizadores de funções. Definem-se, muitas vezes pelas funções que exercem na
sociedade, seja no trabalho, na vida familiar ou social. Pois bem: Marcel foi um
crítico contundente do funcionalismo que, segundo ele, é fruto do já acima citado,
“espírito de abstração”. Paul Ricœur, por exemplo, como bem lembra Santos, chega
a fazer uma observação peculiar a respeito da obra marceliana: que ela transitaria
“[...] entre uma ‘metafísica da luz’, que anuncia o mistério do ser, e uma ‘sociologia
das trevas’, que denuncia o espírito de abstração responsável pelas mais diversas
formas de inumanidade subjacentes à civilização moderna” (SANTOS, 2017, p. 233).
E se Marcel desenvolve esta “metafísica da luz” e denuncia certa “sociologia
das trevas” não é com base em sistemas idealizados do que seria um mundo
perfeito. São as experiências concretas vividas pelo filósofo que consolidam e
avigoram sua filosofia. É desde o campo vivido que Marcel desenvolve seu
pensamento. Nesta direção, um relato feito por ele sobre sua experiência como
voluntário na guerra oferece uma síntese lapidar sobre a sua aversão ao espírito de
abstração, bem como a necessidade de um mergulho na realidade concreta.

Então veio a guerra. Não estou convencido de que tivesse um


pressentimento, mas senti o mesmo que meus compatriotas e fiquei
tão cego quanto eles. Dizia-me a mesma coisa que tantos outros:
46
“Um horror como este não pode acontecer num tempo tão luminoso
como o nosso”. Essas foram as minhas ilusões, mas a guerra veio e
a minha maneira de pensar foi se transformando. Algo muito preciso
se deu: não fui combatente porque o meu estado de saúde não me
permitiu; e tão pouco eu queria, porque a ideia do combate me dava
horror e me sentia totalmente incapacitado para tomar parte numa
batalha. Como também não me atraía a ideia de trabalhar num
escritório; no entanto, queria fazer alguma coisa, queria contribuir de
alguma forma para o bem comum. Entrei em contato com a Cruz
Vermelha. Tive de me ocupar de um problema horrível: o dos
desaparecidos. Diariamente tinha que ver mulheres, moças e
crianças que me pediam notícias de seus maridos, seus irmãos e
seus filhos. Procurei me tornar o menos burocrata possível. Cada
caso para mim era absolutamente real, absolutamente patético.
Aqueles seres eram reais e graças a eles tive mais consciência do
horror da guerra, não só pelo sangue que era derramado, mas pelo
rastro de dor e de aflição que ia deixando. Creio que foi isto que
determinou em mim uma espécie de fobia à abstração, o sentimento
de que a abstração era algo depreciável e que sempre era
necessário penetrar numa experiência concreta, isto é, numa
experiência do outro, uma abertura do outro. Foi talvez quando,
então, nasceu em mim a ideia da intersubjetividade. (MARCEL,
1974b, p. 209; grifo nosso).

Sendo assim, é a experiência concreta com a angústia e o sofrimento que


produz em Marcel um sentimento avesso ao espirito de abstração, que acaba por
objetificar a existência humana. Neste sentido, ao que tange à questão da
corporeidade e sua relação entre “ter” e “ser", encontramos em Être et Avoir, na
anotação de 27 de março de 1931, a seguinte passagem:

A corporeidade como zona fronteiriça entre o ser e o ter. Todo ter se


define, de certa maneira, em função do meu corpo, ou seja, de algo
que, sendo um valor absoluto, cessa pela mesma razão, de ser um
ter em qualquer sentido que seja. Ter é poder dispor de ter poder
sobre algo; me parece manifesto que esta disposição ou este poder
implica sempre a interposição do organismo, ou seja, de algo que,
pelo simples fato, já não é exato dizer que posso dispor. (MARCEL,
1935, p.102).

Sob este prisma, o primeiro “objeto”, pois, com o qual eu pareço me


relacionar, no intuito de identificar-me, é meu corpo. Nas palavras do próprio Marcel:
“O objeto primeiro, o objeto-modelo com o qual me identifico, e que, portanto, me
escapa, é meu corpo. Parece que aqui estamos no reduto mais secreto e profundo
do ter. O corpo é o ter-modelo” (1935, p. 237). Nessa extensão,

47
Entre as coisas, há uma em particular, a primeira de todas, que goza
de uma prioridade absoluta sobre as demais: meu corpo. A tirania
que exerce sobre mim depende não já completamente, mas em
proporção considerável, ao apego que lhe tenho. No entanto, o mais
paradoxal dessa situação é que, finalmente parece como se eu
mesmo me aniquilasse nesse apego, me deixasse absorver nesse
corpo ao qual adiro; parece como se meu corpo, literalmente, me
devorasse, e o mesmo ocorre com todas as minhas posses que, de
algum modo, se acham como suspensas ou penduradas nele. De
modo que – e isto constitui, para nós, uma visão nova –, o ter como
tal parece tender a anular-se na coisa possuída inicialmente, mas
que agora absorve àquele mesmo que, em princípio acreditava
dispor dela. Parece ser próprio da essência de meu corpo ou de
meus instrumentos tratados como posse tender a suprimir-me a mim
mesmo. (MARCEL, 1951d, p. 118).

Sendo assim, o filósofo francês sublinha que não posso me opor ao meu
corpo. Na medida em que trato meu corpo como posse minha e, como objeto, o
mesmo se torna estranho a mim. No momento em que postulo o meu corpo como
um objeto ele “deixa de ser meu”. Assim, pois, de acordo com Marcel, eu não tenho
meu corpo, mas, sou meu corpo. Isso significa que o corpo, enquanto fenômeno de
mistério se situa no horizonte do “ser” (ordem do “mistério”) e não do “ter” (ordem do
“problemático”).

48
2. EXISTÊNCIA E TRANSCENDÊNCIA

2.1. Existência e essência: um limite tenso

A presente seção constitui-se, ao tratar da concepção marceliana de corpo,


como parte nuclear de todo o trabalho. Considerando o que até então se disse sobre
a noção clássica do corpo, bem como sobre as díades marcelianas “problema” e
“mistério” e “ter” e “ser”, voltamo-nos agora para o aspecto que é o ponto central
desta pesquisa e que, igualmente, revela-se como dado fundamental a partir do qual
se articula todo o pensamento de Gabriel Marcel: o corpo ou, o homem enquanto ser
encarnado. Antes, porém, cumpre ressaltar que a obra de nosso autor “[...] se situa
como um projeto de vanguarda em meio à tradição fenomenológico-existencial”
(SILVA, 2017c, p. 317). Sendo assim, investigaremos, de maneira sucinta, em um
primeiro momento, a discussão em torno do corpo como Leib (corpo-sujeito),
desenvolvida pela corrente fenomenológica, mais exatamente, por seu fundador,
Husserl, para então, num segundo momento, adentrarmos na teoria marceliana
propriamente dita.
Como vimos no primeiro capítulo, embora a temática do corpo tenha sido
abordada ao longo da história do pensamento filosófico, ela foi sendo relegada a
segundo plano. Ou seja, se por um lado, a filosofia não descartou por completo a
reflexão sobre o corpo ao longo da história do pensamento, até o século XIX, por
outro, “[...] não se pode ignorar que o seu estatuto é subordinado ora ao caráter
absoluto e universal da consciência (conforme a tradição intelectualista), ora ao
caráter meramente objetivante, sensualista ou empírico (segundo a escola
empirista)” (AZEVEDO, 2012, p. 35). Neste sentido, a corporeidade, na maioria das
vezes, foi tratada e investigada ao modo de um objeto exterior. É dentro da tradição
fenomenológico-existencial que o corpo obtém, de maneira contundente, um
estatuto teórico mais propriamente dito.
É seguro afirmar, pois, que a noção de corpo enquanto Körper (corpo-objeto),
tal qual fundada por Descartes, tenha se estabelecido e sido assumida como
estereótipo ao longo da história do pensamento. Tanto é, que os fenomenólogos, em
49
sua totalidade, desde Husserl, estabelecem como ponto de início de sua crítica essa
noção-limite cunhada por Descartes. Essa noção, entretanto, parece ser insuficiente
na medida em que não compreende a possibilidade última de um sentido do corpo
que vai muito além da noção naturalista ou mecanicista.
Sob este espectro, a fenomenologia, a partir de Husserl, busca desenvolver,
em oposição ao Körper (corpo-objeto), a noção de Leib (corpo-sujeito)18. A respeito
da distinção entre estes dois conceitos, observa Silva (SILVA, 2017c, p. 320):

Etimologicamente, Körper é uma germanização do latim corpus,


implicando sempre um corpo físico qualquer, material, inanimado,
sem vida, e Leib deriva do alemão lîp, remetendo, pois, à ideia de um
corpo animado, indiferenciado à vida.

Duas concepções parecem, todavia, traduzir, de maneira apropriada, apesar


de insuficiente, a noção de Leib: corpo próprio19 e carne. A primeira possibilita uma
aproximação maior à noção de uma vivencia íntima “– o corpo próprio é o que se
vive, é o corpo que se sente de dentro” (HUSSERL, 1982, p. 408), enquanto que a
segunda:

[...] é essa não manifestação sensível da origem como constitutivo de


todo aparecer corporal [...] o Leib como carne, em efeito, não
aparece, não torna objeto de uma doação intuitiva, mas envolve uma
reconstrução, uma reconstituição fenomenológica (DEPRAZ, 2001, p.
392).

Ambas as noções caracterizam o Leib como corpo, não objetivamente dado e


abstraído pelo pensamento, mas, experiencialmente vivido, o corpo com o qual
estou inserido no mundo, isto é, uma experiência do corpo por meio do qual eu me
percebo, através das sensações, como existente neste mesmo mundo. Trata-se do
corpo não matéria orgânica pura e simplesmente, tampouco do corpo pensado como
conceito filosófico e, sistematicamente absorvido e explicado pela razão, mais o

18
Não se almeja aqui detalhar, pormenorizadamente, a tradução do termo haja vista a complexidade
que a significação da noção Leib, em seus diversos desdobramentos de sentido, pode conter, seja no
que diz respeito à própria conjuntura gramatical alemã, seja no que tange ao desenvolvimento do
tema dentro da fenomenologia.
19
Para um estudo mais aprofundado sobre a noção de “corpo próprio” e seu desenvolvimento, Cf.
GRASSI, 2008. Especialmente a terceira seção, intitulada: Introdução à problemática do corpo
próprio no século XX.
50
corpo “desde seu interior”. Trata-se, pois, da experiência propriamente humana que
faz sentir-se no mundo, em comunhão com o outro.
Segundo Husserl, existe no Leib duas propriedades que o definem enquanto
tal, a saber: a cinestesia e o aspecto originário. A primeira caracteriza-se como
aquilo que distingue o corpo próprio enquanto tal na medida em que “[...] há, pelo
tocar, inserção de sensações” (HUSSERL, 1982, p. 214). Isto significa dizer que o
corpo próprio tem como característica fundamental a faculdade de sentir. Já o
aspecto originário diz respeito ao corpo como uma “‘localização’ originária desde
onde todas as sensações são produzidas e se distinguem” (HUSSERL apud SILVA,
2017, p. 322), ou seja, a concepção de Leib ultrapassa a de Körper à medida que
aprofunda certo grau de sensibilidade radical e originária.
Ora, este corpo próprio, o corpo da carne, apresenta-se como misto de coisa
física, isto é, matéria e sensações. É o corpo com o qual o eu é vivenciado, por meio
de certa “experiência originária” (HUSSERL, 1982, p. 10), e participa do mundo e
percebe as coisas. Apresenta-se, precisamente, como “uma corporeidade que o
sujeito nunca deixou de ser, ou seja, um eu-corpo (Ichleib)” (SILVA, 2017, p. 323). É
o que afirma Husserl (2005 apud GRASSI, 2008, p. 40; grifo nosso):

O corpo, por fim, se constitui primariamente de maneira dupla: por


um lado é coisa física, matéria, tem sua extensão, à qual ingressam
suas propriedades reais, a coloração, lisura, dureza, calor e quantas
outras propriedades materiais similares; por outro lado, encontro nele
e sinto nele e dentro dele: o calor no dorso da mão, o frio nos pés, as
sensações de toque nas pontas dos dedos.

O exemplo utilizado por Husserl é o da “dupla sensação” experimentada por


um sujeito que toca uma de suas mãos com a outra. Estabelece-se, então, uma
relação entre tocante e tocado em um único sujeito. É neste momento em que a
oposição entre “sujeito” e “objeto” desaparece e ambos se tornam como “[...] um
todo único e indivisível, numa só unidade psicofísica” (SILVA, 2017c, p. 323). Neste
seguimento, Leib pode ser entendido como apenas mais uma parte entre várias
dentro da completude corpórea do eu. Sustém-se, antes, como uma unidade
indivisível. O Leib configura-se, aqui, como um centro de imantação das coisas
existentes. O cerne, em torno do qual as coisas “gravitam”; a referência orientativa
de tudo que existe.

51
O pensamento de Gabriel Marcel, como logo veremos, organiza-se não
apenas no entorno da distinção germânica entre as noções de Körper e Leib tão
somente. Marcel aprofunda a própria ideia de Leib desde uma perspectiva que
incide sobre o discurso fenomenológico existencial vigente. O que Marcel opera é
um aprofundamento, uma radicalização fenomenológica, na medida em que, não
apenas ultrapassa a concepção de Körper caracterizado como uma exterioridade
objetiva, mas leva ao extremo a ideia de Leib como corpo vivido dentro de uma
experiência originária, a experiência do sentir. O que se estabelece é uma
compreensão de corpo que não só ultrapassa a ideia de corpo como objeto, como
coisa, mas que radicaliza a noção de Leib, o corpo próprio, corpo-sujeito.
Como vimos, Marcel desenvolve seu pensamento na direção de uma crítica à
tradição metafísica e ao método científico e ainda, ao racionalismo e idealismo, por
meio da afirmação de que a existência e, por conseguinte, a experiência, quando
objetificadas, perdem seu significado mais profundo, isto é, ficam desprovidas de
seu estatuto ontológico. Sobre o empreendimento filosófico de Marcel, sintetiza
Azevedo (2012, p. 10):

Marcel nos convida a uma postura filosófica interessantíssima: desde


o questionamento central da existência (Quem sou eu?) chega-se à
sua ideia original e pétrea: sou existência encarnada (Encarnação).
Essa existência encarnada participa do mistério do ser (Ontologia) e
encontra maneiras de vivenciar o ser (Participação).

De fato, o que move esta busca filosófica do pensador francês é, pois,


compreender a realidade existencial humana em seu aspecto mais concreto.
Diferentemente da concepção racionalista-idealista totalmente objetiva e abstrata,
aqui se trata da busca pela compreensão da realidade humana em toda a sua
concretude existencial, ou, se quiser, do peso ontológico da experiência humana no
mundo. Tal existência nos é revelada imediata e inconfundivelmente como
encarnação, ou seja, a consciência do “eu” em um corpo, trata-se da constatação
existencial “desde o interior” do próprio homem, como atesta o filósofo:

Quando afirmo que uma coisa existe é porque a considero tal como
vinculada ao meu corpo, como suscetível de entrar em contato com
ele, por indiferente que seja. Unicamente é preciso ter muito em
conta que essa prioridade, que dessa maneira atribuo ao meu corpo,
52
se deve ao fato de que esse me é dado de modo não exclusivamente
objetivo, pelo fato de que é meu corpo [...]. Isso significa que
realmente não se pode dissociar a existência e a consciência de si
como existente. Consciência de si como ligado a um corpo, como
encarnado. (MARCEL, 1935, p. 20).

O que adverte Marcel, na passagem acima, é que: “[...] na realidade,


existência e coisa existente não podem de forma nenhuma ser dissociadas; estamos
em presença de uma síntese indefectível” (MARCEL, 1927, p. 311). A existência, tal
qual postulada pelo autor, isto é, como encarnação, é o eixo desde o qual se parte e
pelo qual se referencia a filosofia de Gabriel Marcel. Aqui, como se observa, a
existência se encontra radicada concretamente no dado indubitável da encarnação,
“consciência de si como ligado a um corpo”. Neste sentido, existir, de acordo com
Marcel, é perceber-se enquanto ser encarnado, ser corporal. Ou seja, o corpo torna-
se aqui o signo da existência em seu aspecto mais concreto na medida em que é
afirmado como o ponto originário de participação no ser. Somos seres corporais.
Pensar o corpo como ser encarnado é um movimento na contracorrente do
idealismo nos colocando em um mundo de presença, nos reporta a existência
mesma, ao concreto. Uma vez mais: não é o corpo abordado desde “fora”,
abstraído, pois, por meio da especulação racional. É o corpo sentido desde seu
aspecto fundamental: como sensibilidade originária, experiência vivida. Neste
sentido, comenta Garaudy (1968, p. 145-146), em uma passagem longa, mas
profundamente elucidativa:

Um dos maiores delitos da reflexão primária é ter estabelecido entre


meu corpo e eu uma exterioridade abstrata: ora, sublinha Gabriel
Marcel, “parece-me impossível conceber como um ego
desmaterializado poderia ainda ter a pretensão ou o cuidado de
possuir, ainda que fosse de possuir um corpo. Pelo contrário, meu
corpo é modelo não figurado, mas sentido, ao qual se refere toda
posse. “Sou meu corpo” e todas as coisas que tenho ou que desejo
ter, experimento-as como prolongamentos de meu corpo. Não existe
entre meu corpo e mim uma relação instrumental: meu corpo não é
uma de minhas ferramentas, entre outras. Quando tenho essa ilusão,
é que raciocino por analogia a partir do corpo dos outros, que posso,
com efeito, ver e manipular como um objeto. É eu mesmo, é o corpo-
sujeito, meu ponto de inserção no mundo. Identifica-se com o fato de
que estou situado no mundo. Meu corpo – não o corpo abstrato
estudado pelo biólogo, mas o corpo de minha experiência vivida – é
o mediador entre mim e o mundo. Entre mim e tudo o que existe há
uma relação do mesmo tipo daquela que me faz um com meu corpo.

53
Por meu corpo, estou em simpatia com as coisas. É minha
encarnação como ser em situação no mundo. “O ser encarnado,
referência central da reflexão filosófica”, escreve Gabriel Marcel. E
acrescenta: “A essência do homem é de ser em situação”. As duas
fórmulas entrelaçam-se e completam-se. Significam que tudo o que
existe, no mundo ou na história, acha-se situado em relação a meu
corpo, ao final de uma série de mediações que podem ser
numerosíssimas; tudo isso se encontra na minha órbita existencial e
implica, seja em que grau for, na minha presença, na minha
existência. Reciprocamente, só posso existir situado, hic et nunc,
inserido num lugar bem definido do mundo, o de meu corpo. Para lá
da reflexão primária, que me excluía das coisas, reconheço minha
aderência carnal ao mundo, os laços nupciais entre o mundo e eu. A
noção de existência ganha precisão ao mesmo tempo que a noção
de encarnação, central na obra de Gabriel Marcel. Por ela se define
toda existência. A sensação, como dado sofrido por um corpo-objeto,
é uma abstração. A relação entre o mundo e mim, entre meu corpo-
sujeito e o ser no qual se banha, é ao mesmo tempo dom e obra; é
participação. Não sou espectador do mundo, mas participante.

É o próprio Marcel quem enuncia, inúmeras vezes, esta tese central: “eu sou
meu corpo”. Isto significar dizer que ele, “meu corpo”, é o meu ponto de inserção no
mundo, é o dado que me faz estar situado no mundo, minha forma de existência.
Este corpo, não é mais para mim uma ferramenta minha, não é algo que eu possuo,
sou eu mesmo, “é a consciência de mim no meu corpo” ( MARCEL, 1935, p. 20). O ser
encarnado é, pois, a condição de acesso ao real e referência central da reflexão
metafísica (MARCEL, 1935, p. 11), na medida em que é aquilo que põe o sujeito em
situação no mundo e em contato com o mesmo e com os outros.
Desde este fundamento, Marcel apontará para a “encarnação como dado
central da metafísica” (MARCEL, 1935, p. 11). Quer dizer, o dado da encanação é o
ponto de partida de toda a filosofia do pensador francês. Este postula que toda a
filosofia que se pretenda verdadeira deva partir desde esta realidade existencial
primeira e mais evidente, na medida em que ele [o corpo] se caracteriza como “uma
situação fundamental que, em rigor, não pode ser dominada, rotulada e analisada”
(MARCEL, 1935, p. 12). A encarnação é o “imediato, não mediatizavel” ponto desde
o qual é possível todas e qualquer reflexão filosófica, condição fundamental do ser
humano no mundo, como descreve o próprio filósofo:

A encarnação – dado central da Metafísica. A encarnação, situação


de um ser que aparece a si ligado a um corpo. Um dado não
transparente a si mesmo: oposição ao cogito. Deste corpo não posso

54
dizer que é meu corpo, nem que não é, nem que é para mim (objeto).
A oposição entre sujeito e objeto é transcendida. Mas, ao contrário
se parto desta oposição tratada como fundamental, não haverá mais
truque lógico para reunir esta experiência; inevitavelmente terá
passado ou foi recusada, o que é a mesma coisa. Não se deve
objetar que esta experiência apresenta um caráter contingente; na
verdade toda a investigação metafísica requer um ponto de partida
deste gênero. Só pode partir de uma situação que reflete sobre si
mesma seu poder compreender-se. Examinar se a encarnação é um
fato; não me parece que o seja. É um dado a partir do qual um fato é
possível (o que não é verdade a partir do cogito). É uma situação
fundamental que, a rigor, não pode ser dominada, rotulada e
analisada. É precisamente esta impossibilidade que eu afirmo
quando declaro, confusamente, que sou meu corpo, ou seja, que não
posso conceber como um termo distinto do meu corpo, que se
mostra numa relação determinável. Como já disse, no momento em
que o corpo é tratado como objeto da ciência, eu me exilo no infinito.
(MARCEL, 1935, p. 11-12)

Isto é, todo labor propriamente filosófico, segundo o filósofo, deve partir, não
de abstrações especulativas mas, de um concreto existencial e, não há, segundo ele
mesmo, algo mais indubitável do que o fato de ser o homem um corpo, no sentido
fenomenológico do termo, ao modo de um princípio originário através do qual toda
experiência é possível. Esse dado, enquanto âmbito central metafísico se transfigura
como uma abordagem em torno do mistério, tema decisivo, como vimos, na filosofia
de Marcel. Afirmar a encarnação como dado central da metafísica é, pois, dizer que
ela é a mediação entre o sujeito e o mundo e os outros. Tudo se passa como se as
coisas no mundo se apresentassem como que prolongamentos do meu corpo e não
como objetos do espírito. Dizendo de outro modo, viver é abrir-se à uma realidade
com a qual se estabelece intima comunhão. Isto significa dizer que o homem,
enquanto consciência de si mesmo num corpo e, enquanto presença no mundo, é a
referência, o centro orbital de toda existência. A encarnação é o dado concreto da
existência, ela “[...] é o campo transcendental aberto vivificado pelo corpo, inscrição
originária de nossa finitude” (SILVA, 2010, p. 99).
Ademais, é justamente pelo fato de se caracterizar em “oposição ao cogito”, e
por ser essa “situação fundamental que, em rigor, não pode ser dominada, rotulada
e analisada”, como vimos na passagem acima, que a encarnação se inscreve no
âmbito de um mistério, ao passo que não é passível de qualquer mensuração
sistemática ou exata que não a faça perder sua vivacidade ontológica. Estamos aí
envoltos por “um mistério fundamental: o corpo se revela como um ser, um
55
fenômeno. Por isso, há uma transcendência da ordem do ‘ter’ para a ordem do ‘ser’.
O corpo não se ‘tem’ mas se ‘é’” Silva (2017c, p. 329). Bem observa Marcel:

[...] meu corpo não é algo que tenho, eu sou meu corpo. O sentido
dessa frase só pode ser esclarecido negativamente. Dizer que sou
meu corpo significa, antes de tudo, que eu não estou em condições
de definir um tipo de relação qualquer que uniria estes dois termos,
eu de um lado e meu corpo de outro [...]. Eu sou meu corpo é, na
realidade, uma afirmação central, uma afirmação pivô que só pode
ser parcialmente elucidada conforme as perspectivas que eu posso
ter em adotar, alternativamente, mas sem que alguma delas possa
ser admitida exclusivamente ou definitivamente. Isto é o que eu
tenho em vista quando falo de um mistério da encarnação num
sentido que não tem absolutamente nada de teológico. (MARCEL,
1959, p. 185).

Ao afirmar que “não tenho um corpo, mas sou meu corpo”, Marcel desloca a
ideia de corpo enquanto objeto para a noção de corpo sujeito, imerso no campo do
mistério e não do problema e ainda, do ser e não do ter. Nessa direção, “a
experiência mostra, a todo tempo, que a relação com o corpo é uma relação
singularmente ontológica. Está aquém de qualquer teoria ou psicologia do
conhecimento, já que o corpo não é objeto, mas, antes, fonte e experiência de
mistério.” (SILVA, 2010, p. 98). Se, outrora, o idealismo-racionalista, tratara o corpo
in abstrato, isto é, a título de objeto do campo problemático, Marcel compreende o
corpo in concreto, como mistério do campo do ser, ou seja, um fenômeno revestido
da mais alta dignidade ontológica. Ainda de acordo com o filósofo, “a distinção entre
corpo-objeto e corpo-sujeito não é espacializável” (MARCEL, 1974, p. 389), no
sentido de que é uma distinção que pode ser pensada, porém, não pode ser figurada
(MARCEL, 1974, p. 389). Sob esta perspectiva,

[...] o corpo se revela noutro nível heurístico: ele é, por excelência,


um mistério; um enigma fundamental pelo qual “somos” ou “estamos”
no mundo. O corpo-sujeito designa, portanto, um modo de presença
misteriosa radicada, como veremos adiante, numa dimensão
sensível mais ampla (SILVA, 2017c, p. 328).

Sendo assim, na afirmação “eu sou meu corpo” a oposição entre sujeito e
objeto desaparece. Isto quer dizer que “[...] eu não posso me colocar em face do
meu corpo (como se faz para pensar um objeto) e me perguntar o que é ele em

56
relação a mim. Meu corpo pensado deixa de ser meu” (MARCEL, 1927, p. 253).
Nesta perspectiva, de acordo com o pensamento de Marcel, eu e meu corpo somos
uma só e mesma coisa. “Eu sou meu corpo’ mostra o eu (homem) e o corpo como
constituindo um só, integrado (GRZIBOWSKI, 2017, p. 345). O que se percebe na
tradição metafísica, especialmente no que tange ao racionalismo cartesiano é que
“[...] o corpo é abstraído como um termo de relação enquanto o Eu, outro termo”
(SILVA, 2017c, p. 329). Isto posto, “reconhecer que não ‘tenho, mas, antes, ‘sou’
corpo presume outro nível de inteligibilidade: o de uma presença viva, originária”
(SILVA, 2017c, p. 330).

Quando eu digo que eu sou meu corpo, isso significa que nenhuma
relação de coisa a coisa (ou mesmo de ser a ser) é aplicada aqui: eu
não sou o senhor, o proprietário ou o conteúdo de meu corpo, etc.
Por isso, imediatamente, quando eu trato o meu corpo como uma
coisa, eu me exilo de mim mesmo ao infinito (MARCEL, 1927, p.
252).

Aqui surge, na tentativa de “[...] trazer à tona a acepção exata dessa fórmula
ambígua: eu sou meu corpo”20 (SILVA, 2017c, p. 330), um ponto fundamental da
filosofia de Marcel. Trata-se do fato de que, como nota Urabayen (2000, p. 48): “o
corpo próprio goza de uma prioridade absoluta no âmbito da sensação, pois sem a
sensação do próprio corpo não há possibilidade de sentir outra coisa como
existente”. Isto significa dizer que, eu só percebo meu corpo enquanto meu na
medida em que este sente e é capaz de sentir. De acordo com Saint Aubert (2003,
p. 85), a afirmação ambígua de Marcel, “eu sou meu corpo”, “surge do fato de que
meu corpo é sensível, em dois sentidos, imanente e transitivo, do ‘sensível’:
enquanto ele é sentido e senciente”. A propósito, vejamos o que afirma Marcel
(1927, p. 236):

Vê-se, então, que meu corpo é meu somente à medida em que ele
for, tanto quanto possível, confusamente sentido. A abolição radical
da cinestesia, supondo que seja possível, seria a destruição de meu
corpo enquanto é meu. Só sou meu corpo enquanto eu sou um ser
senciente.

20
Sobre este aspecto ambíguo da afirmação “eu sou meu corpo”, Cf. SILVA, 2013.
57
De acordo com o filósofo, o “[...] corpo, por meio da sensação, permite ao
sujeito que se reconheça como um existente.” (MARCEL, 1935, p. 241). Em outras
palavras, se, por um lado, a encarnação, isto é, a consciência de mim como ligado a
um corpo, é o dado indubitável da minha existência no mundo e, portanto, aquilo que
me faz participar do mistério do ser, por outro, é na experiência do sentir, que está
radicada tal existência corporal. Ora, se me fosse “tirada” esta propriedade de sentir,
“supondo que isso seja possível”, afirma Marcel, o que aconteceria “seria a
destruição do meu corpo enquanto é meu”, ou seja, “sem esta dimensão cinestésica,
é impossível falar em acepção estrita e plena, de corpo” (SILVA, 2017c, p. 330).
Neste sentido, “o ‘sentir’, vinculando a sensação ao sentimento-de-si, revela uma
pertença e uma participação originárias ao mundo que o corpo-próprio realiza”
(BEATO, 2017, p. 280).

Esse privilégio do sentir está na raiz da afirmação eu sou meu corpo


e é o único que pode fundá-la. Eu sou meu corpo em virtude das
razões misteriosas que fazem com que esse corpo seja, ao menos
em algum grau continuamente sentido de forma que este sentir
condiciona, para mim, todo e qualquer sentir que seja. (MARCEL,
1927, p. 252).

Marcel sinaliza para um “sentir originário”, ou “sentir fundamental” que se


configura como “[...] um horizonte transcendental à medida que condiciona toda
forma de experiência sensível” (SILVA, 2017c, p. 331). Deste ponto de vista, como
bem lembra Azevedo (2012, p. 20): “[...] não se trata aqui, de se conformar em
apenas reconhecer a sensação pura e simples, segundo a definição clássica do
naturalismo, enquanto um dado sensível local e especializado.” Trata-se, por outro
lado de “[...] uma ordem de sentir como condição de possibilidade de todo sentir, de
toda sensação” (SILVA, 2017c, p. 331), ou ainda, da “[...] simples experiência do
sentir em sua imediatez” (AZEVEDO, 2012, p. 20).
O que emerge aqui, como radicalização da noção de Leib, é o corpo como Ur-
Gefühl, termo alemão utilizado por Marcel a fim de caracterizar aquilo que
descrevemos acima como essa experiência originária do sentir em sua imediatez, ou
melhor, “[...] o corpo vivido no interior de uma experiência, de fato, originária e
incondicional” (SILVA, 2017c, p. 331). Convém destacar que o Ur-Gefühl comporta
em si um paradoxo: se, por um lado, ele é este sentir originário, isto é, uma

58
capacidade de sentir que condiciona toda e qualquer forma de experiência sensível,
por outro ele é, como afirma Marcel, não “especificável”, “incaracterizável”
(MARCEL, 1927, p. 320). Por essa razão, destaca o filósofo em duas passagens do
Journal:

É necessário, pois, ver melhor que este Ur-Gefühl não pode de


nenhum modo ser sentido, precisamente porque ele é fundamental
[...] [O Ur-Gefühl é] o imediato não mediatizável enquanto sentir
fundamental, é uma qualidade não sentida uma vez que pode não
ser uma constante absoluta: esse sentir, pelo contrário, é algo que se
enriquece, se acrescenta ao curso da experiência. (MARCEL, 1927,
p. 240; 241).

Nesta sequência, se o corpo é sentido antes de ser objeto é porque existe


entre “eu” e ele uma intimidade. “Uma intimidade: eis aqui, verdadeiramente, a
noção fundamental” (MARCEL, 1935, p. 199), atesta Marcel. Sendo assim, a tese de
que “meu corpo” não é para mim simples objeto mais “sou eu mesmo” instaura a
ideia de uma unidade indissociável entre “eu” e “meu corpo”, percebida através de
uma “[...] experiência íntima e irrecusável” (MARCEL, 1935, p. 307), que é a
experiência de mim no meu corpo por meio do sentir. É o que postula o filósofo ao
escrever: “Me inclino a crer, decididamente, que só pode haver um corpo ali onde
haja um sentir e, que, para que haja sentir é preciso que a distinção entre o aqui e ali
deixe de apresentar um sentido rigoroso”. (MARCEL, 1927, p. 262).
É preciso ter em conta, entretanto, que o sentir aqui referido não é, como se
postula na noção clássica, um fenômeno de transmissão e recepção de dados entre
dois pontos, ou ainda, um processo por meio do qual se transmite alguma
mensagem infra sensorial a ser decodificada, transcrita, traduzida, mas, um
participar imediatamente. O sentir é, como escreve Marcel (1927, p. 322), a “[...]
participação imediata do [...] sujeito a um meio do qual nenhuma fronteira verdadeira
o separa”. “Sentir não é receber, mas participar imediatamente” (MARCEL, 1927, p.
270). O sentir é “[...] uma maneira de ser e não uma referência” (MARCEL, 1927, p.
185). Por isso, quando o filósofo parisiense aborda a encarnação como o dado
central da metafísica aponta para um horizonte no qual a existência pode recuperar
seu peso ontológico por meio desta participação imediata na realidade que se dá por
meio do sentir como um sentir originário.

59
Ora, nessa medida, o sentir não é, “[...] um evento orgânico” (MARCEL,
1935, p. 156), tão somente físico ou material. Trata-se antes de um sentir originário,
fundamentalmente ontológico. Sob estre prisma, avista Silva (2017c, p. 332; 333):

Trata-se de explorar a unidade mais originária do sentir, não em sua


feição rudimentar, empírica, sensualista, mas em sua estrutura
fenomenologicamente transcendental. [...] Há um sentido profundo
dessa experiência que a ciência e a metafísica tendem a depreciar
quando deixam de reconhecer qualquer brio ontológico mais
proeminente. [...] Assim, se a encarnação é o “dado ontológico
essencial”, é porque já me situo para além de toda relação
instrumental. Estou imerso numa experiência fundamental, o próprio
“sentir originário” (Ur-Gefühl) como prioridade real, aquém dos
demais objetos: o Ur-Gefühl como camada mais profunda da
experiência fenomênica. [...] Marcel põe um acento
fenomenologicamente diferencial à ideia de experiência. Trata-se de
“restituir” um “peso”, uma “densidade” própria a ela, intrinsecamente
“ontológico”.

Tendo em vista essa virada de pensamento, podemos afirmar que “fazer a


experiência do corpo não pressupõe mais uma relação do tipo sujeito-objeto, mas,
sim, uma nova ordem fundamental de sentir, um sentir originário como presença.”
(SILVA, 2017c, p. 337). Assim sendo, o sentir emerge como a maneira mais
originária de participação no mundo, na realidade. O corpo, como experiência
originária, como ser de presença, se evidencia como presença imediata, indubitável
e irrevogável. A sensação caracteriza-se, primordialmente, como comunhão. O meu
corpo, minha realidade existencial concreta, se encontra numa espécie de simpatia
com as coisas. Existe aqui certa aderência entre o eu e tudo aqui que existe. Ser
encarnado é estar “implicado” no mundo. É neste sentido que o corpo se apresenta,
como dizíamos anteriormente, como meu ponto de inserção no mundo, minha
existência, à medida que participo deste mistério do ser, do existir, através dele, pelo
sentir. Conforme nota Beato: “O sentimento de si como corpo não se reduz à
subjetividade da ‘cinestesia’, pois dá-nos, simultaneamente, o ‘verdadeiro diálogo
com o mundo’, que ultrapassa os limites de toda a instrumentalidade e objetividade”
(2017, p. 311).
Assim, portanto, a partir do que vimos, podemos afirmar, de acordo com
Marcel que, o corpo não é objeto, mas, sujeito; o corpo está inscrito num âmbito do
mistério, isto é, de uma experiência ontológica por excelência, é o ponto desde o

60
qual se participa diretamente, enquanto presença viva, do ser. Não pode ser, nessa
medida, reduzido a mero instrumento, mas é o “imediato não mediatizável”
(MARCEL, 1927, p. 240). Ele configura-se, numa “síntese indefectível” (MARCEL,
1927, p. 311) com a existência, como encarnação. Ademais, a existência humana e
suas relações se dão na corporeidade, que é, em última análise, o homem concreto.
Este corpo, que sou eu mesmo, é o meu ponto de inserção no mundo, meu ponto de
referência. Existir, neste sentido, é o mesmo que perceber-se ligado a um corpo (ser
encarnado). E ainda, o sujeito (corpo) se relaciona, se conhece, conhece o mundo e
os outros por que é um ser que sente, ou seja, as relações do homem se dão na
corporeidade à medida que ele é um ser senciente.
Por fim, a encarnação, como participação no mistério do ser, não se revela de
forma isolada, mas, é comunhão, com o mundo, com os outros e com o Tu Absoluto.
Isto significa dizer que, o mistério do ser é vivenciado como uma “via de mão dupla”.
Ao mesmo tempo em que faz a experiência de si como ser encarnado (consciência
de si em um corpo), o homem percebe-se em relação com um tu, o outro
(intersubjetividade) e, em última instância, com o Tu Absoluto (Deus). A encarnação
mantém uma íntima unidade entre corporeidade e existência, figura-se não como um
“estar” espacialmente localizado, mas antes, um “estar” racionalmente situado a
outrem. Desta maneira, muito longe de ser um “fechar-se em si mesmo” (como
acontece, por exemplo, ao cogito cartesiano), a encarnação é abertura ao mistério
do ser. É o ponto desde o qual se torna possível uma “experiência de
transcendência”.

2.2. Experiência da transcendência

O que se projeta, neste segundo momento do capítulo, é o horizonte da


transcendência tal qual se perspectiva no contexto da experiência encarnada e
como a mesma se estabelece, no interior daquela ontologia do corpo vivo, como
abertura ao mistério do ser. Como visto anteriormente, o labor filosófico de Marcel se
dirige na tentativa de “restituir à experiência propriamente humana seu peso
ontológico” (1935, p. 149), isto é, retomar o sentido mais profundo da experiência no
concreto existencial humano, a encarnação.

61
Em 17 de outubro de 1922, em uma das passagens do Journal Métaphysique,
Marcel escreve sobre esta que deve ser a ocupação primeira da metafísica: “Trata-
se de desenraizar a interpretação segundo a qual a necessidade metafísica não é
mais que uma curiosidade transcendente; ela é, antes, um apetite (appétit), o apetite
do ser.” (1927, p. 279).
Viu-se, nos tópicos precedentes, que a corporeidade é a condição
existencialmente humana de ser no mundo e que ser encarnado é participar de um
mistério, o mistério do ser. O ser quando sistematizado, dito em linguagem técnico-
científica degrada-se em simples objeto do pensamento. É necessário, antes, que se
afirme o ser como participante de um mistério, o que exige um mergulho radical, um
engajamento existencial. O ser é, destarte, experienciado no concreto da vida, e
não criteriologicamente descrito por meio de observações racionais. A encarnação é
o dado indubitável, porém, a indubitabilidade repousa não mais na racionalidade,
mas na existencialidade.
Neste contexto da experiência investida por um caráter ontológico, o corpo,
quando não tratado de maneira objetiva, torna-se signatário do gesto transcendental
por excelência, revestindo-se de uma experiência transcendental, desde a qual toda
e qualquer experiência é possível. Na experiência da encarnação há uma
transcendência.
Ao vislumbrar a tradição filosófica é comum encontrar certa oposição entre os
termos “experiência” e “transcendência”. Isto porque “experiência”, aparentemente
se apresenta, por estar comumente relacionada com a corrente empirista, como uma
realidade empírica, imediata, ou mesmo, científica. Ora, ao referir-se ao gesto
transcendental Marcel utiliza justamente, não por acaso, a expressão: “experiência
da transcendência”. Qual é então, dentro do pensamento marceliano, o verdadeiro
sentido destes termos? Como se estabelece a relação entre encarnação e
transcendência no sentido de uma experiência ontológica?
Remontamos à questão central, não apenas de nosso trabalho, bem como da
filosofia de Marcel, de forma geral, como já vimos na parte introdutória desta
dissertação. Trata-se da questão do ser, agora sob a ótica da transcendência.
Cumpre perguntar qual a cognoscibilidade peculiar na esfera existencial. Ou melhor,
ao pergunta-se pelo ser, como se dá o processo de conhecimento do mesmo? De
que maneira é possível pensar e dizer o ser, que é mistério?
62
Há, segundo Marcel, uma necessidade no homem. A condição propriamente
humana, isto é, a situação de ser encarnado, é marcada por uma exigência que
emerge do mais íntimo do humano. Trata-se de uma exigência de transcendência,
motivada por certo espírito de inquietude que, por sua vez é motivado pela
objetificação existencial, ou melhor, pela transformação da realidade existencial em
objeto, através do pensamento, da técnica. Em outras palavras, existe em nós, no
mais profundo de nosso ser, uma exigência de transcendência que se configura, no
pensamento marceliano, como “apetite do ser”. Sob este prisma, Marcel faz notar
que o ponto de partida desta exigência transcendental é certa insatisfação, ou
inquietude, instalada no “interior do humano”. Ora, o mundo, submerso pelo
tecnicismo, esfacelado, como se viu anteriormente, pela superficialidade em que a
vida é rotulada como qualquer outro objeto, ou ainda, devorada pela falta de sentido
ontológico, é a força motriz desta insatisfação, desta inquietude. É a falta de sentido
o ponto desde o qual vê-se a necessidade de um transcender, uma exigência de
transcendência. É o que o filósofo ilustra quando observa agudamente: “[...] A crise
que atravessa hoje o homem ocidental é uma crise metafísica [...] na medida em que
ela emerge de uma inquietude que vem mais profundamente do ser” (MARCEL,
1951d, p. 35).
Diante desta crise existencial, criada pela “abstração do ser”, e na tentativa de
recuperação do estatuto mais proeminentemente ontológico da existência humana,
“nas mãos de Marcel, a ontologia ganha novo alento sob outro acento, o ‘concreto’.
Da abstração do ter, trata-se agora, de restituir a concreção do ser” (SILVA, 2014, p.
171). É de suma importância dissipar aqui qualquer confusão entre “concreto” e
“empírico”. O que aqui se enuncia é, segundo Marcel (1998a, p. 45-46), uma “noção
de pensamento experiencial em oposição ao pensamento empírico”. Resgatar o
“concreto” significa lançar-se no âmago da experiência humana por excelência, é
deixar-se envolver pela realidade que o circunda, “reconciliar-se com aquilo que, no
seio mesmo da experiência, traz à tona o que há de mais paradoxal, ambíguo,
trágico, misterioso” (SILVA, 2014, p. 172). Sendo assim, o que seria, para Marcel
“filosofar concretamente”? Azevedo (2012, p. 14), torna mais compreensível:

Filosofar concretamente não é senão sermos presas do real (o que


não significa cair na ilusão retrospectiva do realismo), isto é,
reconhecer a riqueza sempre inovadora da existência [...] é lançar-se
63
a duros golpes do real que nos confronta e não nos deixa
indiferentes.

Ou ainda, citando mais diretamente o próprio Marcel (1940, p. 89): “De minha
parte, estou inclinado a negar a qualidade propriamente filosófica de qualquer
trabalho que não se deixa tocar pelo que eu chamo a mordedura do real”. Quer
dizer, a filosofia concreta é aquela que, instigada por este “apetite”, deixa “alimentar-
se”, pela realidade na qual está imbuída. Em vista disso, o filósofo francês
descreverá este “movimento” exercido pela filosofia, isto é, o fato de deixar-se
morder pelo real, como uma “abertura a um campo de transcendência, o território
desde onde a reflexão é possível” (SILVA, 2014, p. 173), na medida em que ela se
estabelece como uma profunda “tensão criadora” entre o eu e o próprio ser. É o que
nos assegura o filósofo:

[...] não pode haver, em minha opinião, filosofia concreta sem uma
tensão continuamente renovada e criadora entre o eu e as
profundezas do ser no qual e pelo qual nós somos ou, mesmo sem
pensar da maneira mais rigorosa possível, ser ela exercida sobre a
experiência mais intensamente vivida. (MARCEL, 1940, p. 89).

Ora, a existência, posta aqui in concreto, via um movimento que transcende o


“ter” em direção ao “ser” se propõe de maneira resistente a qualquer tentativa de
transformar-se em um objeto do pensamento, projetando-se para além de todo
pragmatismo ontologicamente inconsistente. É o que afirma Marcel (1998a, p. 105):

Eu estou engajado in concreto numa ordem que, por definição, não


pode jamais tornar-se objeto ou sistema para mim, mas unicamente
por um pensamento que me ultrapassa e me compreende e ao qual
eu não posso, mesmo que, idealmente, me identificar. As palavras
para além, transcendência tomam aqui toda a sua significação.

Em outras palavras, a filosofia propriamente dita, enquanto esta “tensão


criadora” é a afirmação da transcendência do ser. A transcendência que, por sua
vez, torna-se fonte de toda a existência. Ademais, filosofar concretamente significa
restituir ao homem o seu significado ontológico mais proeminente. Trata-se de
participar no ser, num “[...] esforço para captar a experiência, a corporeidade; uma
vez que é ela [a filosofia] que nos possibilita reconhecer nossa encarnação, acessar

64
o mistério do ser e dirigir-se à concretude da experiência” (AZEVEDO, 2012, p. 15).
Marcel se dirige sempre no intuito de transpor qualquer aspecto idealista que possa
degradar a existência em mero objeto do espírito. É impossível, segundo ele, tratar
da existência de forma objetiva sem que se perca o real sentido da mesma. Por isso,
o existir toma proporções de primeiro plano. Nesta perspectiva, o labor
primordialmente filosófico deve caracterizar-se por meio de outro modus operandi. A
filosofia, para além de um instrumento de apreensão e sistematização do ser, passa
a se configurar como um perscrutar metafísico do mistério que é o ser, no qual se
participa via corporeidade.
Cabe, antes de tudo, perceber que o tema da transcendência surge, no
pensamento de Marcel, não como uma conclusão sistemática e lógica de suas
reflexões, mas antes como necessidade profundamente humana. A transcendência
configura-se, neste ponto, como uma exigência do ser. A encarnação, dado
existencial concreto do humano, jamais é um aprisionar-se em si mesmo, mas ao
contrário, um ir além de si mesmo, é abertura, é o ponto desde onde se pode haver
uma comunhão com o ser do qual o próprio eu participa: a encarnação é
transcendência. O ser só existe ali onde há transcendência. Neste sentido:

A corporeidade se projeta como experiência de transcendência; é


aquilo pelo qual o gesto metafísico de apetite extrai do real sua
própria potência fenomenológica. O corpo se institui ainda como
antípoda a todo formalismo solipsista, sendo, pois, o aprofundamento
da existência em sua mais radical carnalidade. (SILVA, 2015b, 342).

A experiência do corpo, que está radicada no sentir, é uma experiência de


transcendência porque nela, “eu não sou unicamente meu corpo, eu sou o meu
ambiente habitual” (MARCEL, 1927, p. 252).
Ademais, é preciso notar que, apesar da exigência de transcendência brotar
de certa insatisfação, o contrário, segundo o autor, nem sempre é verdadeiro: “Toda
exigência de transcendência parte de uma insatisfação. Mas nem toda insatisfação é
radicada em um desejo de transcendência” (MARCEL, 1951, p. 50). Trate-se de
observar, vale reiterar, que, segundo Marcel, a metafísica é mais que uma mera
curiosidade sobre algo: ela é uma inquietude, ou ainda, uma “apetência” uma “sede”
do ser pelo real. Destarte, Marcel (1998b, p. 183) diferencia a curiosidade da
inquietude:
65
Ser curioso, é partir de certo centro imóvel, é apoiar-se para
apreender, para apropriar um objeto do qual se forma uma
representação confusa ou esquemática. Nesse sentido, toda
curiosidade se volta para a periferia. Ser inquieto, ao contrário, não é
estar seguro de seu centro, é estar em busca de seu próprio
equilíbrio [...]; uma inquietude é tanto mais metafísica quando ela
concentra-se mais sobre o que não pode ser separado de mim-
mesmo sem que este eu se anule.

Segundo Marcel, a necessidade metafísica como exigência de transcendência


no coração do homem é mais que simples curiosidade transcendente. Ela se revela
como um apetite, como o signo essencial desta apetência investida aqui como
transcendência do imediato. Como diz Marcel, “todo pensamento transcende o
imediato” (1935, p. 52). Por conseguinte, a verdadeira experiência de
transcendência, experiência metafísica por excelência, se dá por meio do
pensamento. O pensamento é autotranscedência; afinal, pensar, e pensar-se é ir
além do dado imediato, objetivo, é certo sair de si. É o que afirma Marcel (MARCEL,
1935, p. 49):

[...] a onipresença do ser, a imanência do pensamento ao ser, a


transcendência do ser ao pensamento, reconhece que o
pensamento, tal como é, se refere a alguma coisa que o ultrapassa e
que não pode resolver em si sem trair a verdadeira natureza.

Não se trata, aqui, de um pensamento pensado, isto é, pronto e


sistematicamente ordenado à apreensão de um dado objetivo, mas de um
pensamento pensante, em curso, aberto. Antípoda de qualquer fórmula concatenada
de explicação da realidade, o pensamento recebe, na concepção de Marcel, o
caráter de uma busca que sempre se renova. O pensamento é o esforço por
desvelar a experiência viva do ser.
É certo afirmar, desde a perspectiva marceliana que um pensamento que se
projete apenas como transcendência de si mesmo não libertou-se ainda daquilo que
o autor chama “reflexão primeira”, isto é, uma reflexão que fixou suas bases no
âmbito da objetividade, ou seja, um pensamento que, geralmente, somente atua
descobrindo os bens do mundo objetivo (MAECEL,1940, p. 9).

66
Afinal, o que significa, para Marcel, transcender? Primeiramente faz-se
necessário compreender que transcender implica sempre um movimento além, como
superação no seio mesmo da finitude, da existência, enfim, da própria encarnação.
Nesta perspectiva, Marcel retoma a oposição tradicional entre imanente e
transcendente.

Assinalarei em primeiro lugar que transcender não significa


simplesmente ultrapassar, pois existem modos de ultrapassar aos
quais não convém, de modo algum, o termo “transcender” [...]
devemos dizer o mesmo do ultrapassar temporal e, em especial, do
“projeto” que tanta importância possui no pensamento de Sartre.
Encontramo-nos aqui com uma espécie de ampliação do sentido das
palavras que não parece legítima e, quanto menos, enganosa.
Parece-me infinitamente preferível ter presente a oposição tradicional
entre imanente e transcendente tal como aparece nos tratados de
metafísica e teologia. (MARCEL, 1951, p. 47).

Ao criticar a ideia sartriana de projeto21 Marcel propõe, na passagem acima,


um retorno à concepção tradicional entre imanente e transcendente. É desde este
ponto que será possível a compreensão de transcendência como certo ultrapassar,
não apenas numa acepção de um “ir além de”, em um sentido espaço-temporal. O
que avista o filósofo é certa “[...] distinção entre o ultrapassar horizontal e o vertical”
(MARCEL, 1951, p. 49). Neste sentido, na contramão de um ultrapassar
horizontalmente, ou seja, numa perspectiva espaço temporal, Marcel situa a
transcendência como um ultrapassar no sentido vertical, o que supõe um penetrar,
por meio da experiência ontológica, os meandros misteriosos do ser. Transcender é
experienciar o ser em sua concretude real. A experiência surge aqui como campo
transcendental por excelência. Isso posto, podemos perguntar então: é possível uma
experiência da transcendência sem que esta última seja reduzida ao imanente?
Sigamos a trilha marceliana:

[...] a experiência não é um objeto e, assumo aqui [...] o termo objeto


em sua acepção etimológica, a mesma de Gegenstand: algo que
está situado diante de mim, frente a mim [...]. O termo
“transcendente” não é apenas o que transcende a experiência, senão
que, pelo contrário, deve-se fazer uma experiência de

21
O tópico 2.3 abordará o embate entre Marcel e Sartre, especialmente no que tange ao tema da
transcendência, sob a ótica da noção de liberdade.
67
transcendência enquanto tal. Somente assim tem sentido a palavra.
Desde já, não ocultarei que à primeira vista tal afirmação corre o
risco de parecer contraditória, porém o certo é que isto ocorre
somente por nossa tendência a formarmos, sem darmos conta, uma
ideia muito restrita da experiência. (MARCEL, 1951, p. 55).

O que aqui se circunscreve é o âmbito no qual a existência é tomada desde o


seu aspecto imediato e, por consequência, objetivo, o qual é amplamente difundido
no ideário moderno. Neste plano “o empirismo como filosofia do imediato se destrói
em si-mesmo; o imediato é o inverso de um princípio de inteligibilidade” (MARCEL,
1927, p. 3). A experiência ontológica, melhor dizendo, a experiência da
transcendência, não é estabelecida a partir deste ponto unicamente empírico. Isto
porque, segundo Marcel, a experiência nunca é apenas uma vivência puramente
material, empírica, mas como lembra Silva (2017d, p. 861) “é o espírito mesmo
exercendo sua atividade”. Assim, portanto, experienciar o ser, em sua concretude
real ultrapassa um simples “provar”; é antes, adentrar o âmago da existência. É o
que afirma Marcel (1951, p. 56) numa breve, mas esclarecedora passagem:

Por isso, repito, nunca se deve interpretar a exigência de


transcendência como a necessidade de ultrapassar toda experiência,
qualquer que seja, pois além da experiência, não há nada que se
deixe senão simplesmente pensar, tampouco pressentir.

O que se figura aqui é uma noção de transcendência que não só não se


contrapõe à experiência, mas que aprofunda e plenifica a própria experiência.
Assim, a transcendência é vivida, em sua mais visceral concretude, como uma
experiência de transcendência, de modo que não se separa do concreto existencial
encarnado, mas, ao contrário, o torna pleno.

[...] segundo um modo vicioso de filosofar [...] a transcendência é, em


suma, o caminho pelo qual alguém se distancia da experiência. [...]
Estamos, entretanto, preparados para compreender que isso é falso
e que, ademais, pressupõe justamente uma ideia de transcendência
que a desnaturaliza. (MARCEL, 1951, p. 64).

Nesta direção, a exigência de transcendência, esta sede do homem pela


plenitude do ser é direcionada, no pensamento de Marcel, a uma intersubjetividade.

68
O sujeito marceliano não corresponde em nada ao sujeito cartesiano, fundado pelo
cogito, imerso em uma subjetividade solipsista, isto é, voltado para si mesmo. Em
Gabriel Marcel, a possibilidade de transcendência se dá, justamente porque a
situação encarnada é abertura ao ser, ao outro, e, por fim a Deus. Ser é relacionar-
se, ou melhor, participar. Destarte, afirmar a existência nos moldes de uma
intersubjetividade é lançar as bases para uma existência por meio da qual, o próprio
eu é transformado, na medida em que é afetado por outrem via o diálogo.
Em suma, a experiência da transcendência se manifesta como ato metafísico
por excelência no âmago da existência encarnada. Isso tudo em virtude da
experiência do corpo próprio: “sem reduzir-se ao plano imediato da objetividade, o
corpo radica um gesto ontológico transcendental de primeira grandeza.” (SILVA,
2015b, p. 341). O pensamento, por ultrapassar o dado imediato, empírico, se
configura como transcendência via esse gesto encarnado que já não tem nada a ver
com o “espírito de abstração”. O pensar, desde uma perspectiva propriamente
metafísica, deve ser compreendido não como apreensão categorial de um dado
como objeto, mas como mergulho na experiência existencial. É nessa perspectiva,
que a experiência, por sua vez, não reduzida ao âmbito objetivo, toma aqui o caráter
de uma plenitude da própria existência. Transcender, nesta ótica, é um aprofundar
da experiência propriamente humana.
Por fim, o modo como eu mesmo decido me abrir ou não a esta experiência
transcendental, radicada na encarnação enquanto situação humana, singular,
estabelece minha situação existencial. Isto porque, esse contexto de exigência
ontológica do ser implica um ato livre de escolha. Em outras palavras, o homem é
livre diante dessa exigência de transcendência. Ele se encontra livre para escolher
viver em um âmbito do problemático, do ter, da técnica ou, pelo contrário, do
mistério do ser. A liberdade emerge aqui como desdobramento decisivo da
experiência de transcendência.
Cumpre-nos questionar, então, se essa liberdade não incorreria em numa
atitude de angústia e desespero diante da possibilidade de objetificação do ser? De
pronto compreende que não! (e este é o ponto divergente com a filosofia de Sartre).
Mas então, qual é, de fato, o papel da liberdade no pensamento marceliano? Quais
os desdobramentos desta noção? É o que passaremos a investigar desde um

69
embate travado com Sartre sobre a natureza mesma da assim chamada “corrente
existencialista”.

2.3. O existir livre como transcendência

Uma vez posto o tema da transcendência em Marcel – nos termos de uma


exigência ontológica, a qual encontra no corpo o gesto transcendental por
excelência – passamos, agora, nesse terceiro momento do segundo capítulo, situar
outra dimensão fundamental da condição humana: a liberdade. Trata-se de
compreender como Marcel, fenomenologicamente falando, e, em especial, num
debate francamente aberto com Sartre, projeta, no âmbito da liberdade, a situação
humana em sua radicalidade implacável.
Como abordado anteriormente, a situação humana, verdadeiramente concreta,
segundo Marcel, é a encarnação que, por sua vez, é abertura ontológica por meio da
exigência de transcendência ora posta. Segundo o filósofo, frente a essa exigência
somos sempre livres, livres na escolha entre o “ser” e o “ter”, entre o “misterioso” e o
“problemático”. Para tanto, lançamos mão do debate gerado no interior do
movimento “existencialista”, mais especificamente entre, ao menos, tais autores,
tomando como ponto de partida a conferência O Existencialismo é um Humanismo,
de Sartre.
No decorrer das décadas de 1930 e 1950, a Europa, especialmente a França e
a Alemanha, observa o surgimento de um movimento, não apenas como corrente de
pensamento filosófica, mas de uma maneira mais ampla, social e cultural o qual
nominou-se “existencialismo”. Desde o seu alvorecer, o fenômeno comportou, seja
no âmbito popular, seja no filosófico propriamente dito, controvérsias e discussões
tais, que por si só comportariam um estudo frutuoso, embora extenso. O que nos
interessa aqui é analisar alguns elementos, desde a perspectiva filosófica do dito
existencialismo. A respeito de como estava “caricaturado” o existencialismo escreve
Penha (1983, p. 8):

Sua repercussão não se limitou às discussões acadêmicas nem aos


debates nas páginas das publicações especializadas. Tanto quanto
uma doutrina filosófica, o existencialismo passou também a ser
identificado como um estilo de vida, uma forma de comportamento, a
70
designar toda atitude excêntrica, que os meios de comunicação
divulgavam com estardalhaço, criando uma autêntica mitologia em
torno do movimento e seus adeptos. A imaginação popular
caricaturava a figura do existencialista: aparência descuidada,
cabelos abundantes e desgrenhados; brusco nas maneiras; mal
asseado, avesso às normas estabelecidas; amoral, sobretudo, pois o
existencialista típico, inimigo da hipocrisia, recusava a moral
tradicional; depravado e promíscuo, (ele) promovia orgias,
entregando-se aos prazeres mais degradantes.

É desde este “quadro sintomático”, a saber, do uso generalizado que recebera


o termo “existencialista” como um lado sombrio, enfim, ruim da própria vida, que em
1945, o “existencialismo” ganha maiores repercussões, por meio do pronunciamento
da notável conferência de Sartre, publicada um ano depois sob o título O
Existencialismo é um Humanismo. A referida obra, que é consagrada à defesa dos
inúmeros ataques dirigidos ao existencialismo, configura-se, grosso modo, como
uma síntese do pensamento sartriano.
No que tange às críticas ao existencialismo, pode-se dividi-las em dois motes
fundamentais: o primeiro, por parte dos comunistas, que afirmavam que o
existencialismo seria uma filosofia demasiado “contemplativa”, e por isso mesmo
burguesa, sem compromisso algum com a realidade material dos homens, “pois a
contemplação é um luxo”, um luxo daqueles que, por sobreviver do trabalho alheio
possuem tempo de sobra para tais reflexões. O segundo, de que estavam os
cristãos, censurando o fato de o existencialismo criar uma filosofia sem Deus. Afinal,
suprimidos “os mandamentos de Deus e os valores inscritos na eternidade, resta
apenas a estrita gratuidade, cada um podendo fazer o que quiser” (SARTRE, 2009,
p. 617).
Ademais dos pormenores da obra em si, nos importa a repercussão que a
mesma gerou, especialmente no interior do círculo filosófico designado pelo próprio
Sartre como “existencialista”. Pois bem, a fim de compreender melhor a questão,
vejamos o que escreve o filósofo:

O que torna as coisas complicadas é que há duas espécies de


existencialistas: os primeiros são cristãos, e entre eles eu colocaria
Jaspers e Gabriel Marcel, de confissão católica; e, de outro lado, os
existencialistas ateus, entre os quais é preciso colocar Heidegger e
também os existencialistas franceses, e eu próprio. O que eles têm
em comum é simplesmente o fato de que consideram que

71
a existência precede a essência, ou, se se quiser, que é preciso
partir da subjetividade. (SARTRE, 1996, p. 26)

E mais adiante encontramos:

Que significa dizer que a existência precede a essência? Significa


que o homem primeiro existe, se encontra, surge no mundo, e que se
define depois. O homem, tal como o existencialista o concebe, se
não é definível, é porque de início ele não é nada. Ele só será em
seguida, e será como se tiver feito. (SARTRE, 1996, p. 29).

O que se entrevê nas passagens acima é, pois, o mote programático da


noção sartriana de homem, baseada na concepção projeto: “O homem é de início
um projeto que se vive subjetivamente.” (SARTRE, 2009, p. 29). Isto significa dizer
que o homem deve assumir sua condição fundamental que é a de estar entregue a
própria sorte, sem nenhuma lei, humana ou divina que o determine. O homem, em
Sartre, se faz. Este é o alcance por excelência da expressão “a existência precede a
essência”. Por este viés:

Se, de fato, a existência precede a essência, não se poderá jamais


explicar nada por referência a uma natureza humana dada e
imobilizada; dito de outro modo, não há determinismo, o homem é
livre, o homem é liberdade. Se, por outro lado, Deus não existe, não
encontramos diante de nós valores ou ordens que legitimarão nossa
conduta. Assim, no reino luminoso dos valores, não temos
justificativas ou desculpas nem por trás de nós, nem diante de nós.
Estamos sós, sem desculpas. Eu exprimiria isso dizendo que o
homem está condenado a ser livre. Condenado porque ele não se
criou a si mesmo, e, entretanto, por outro lado, livre, pois, uma vez
lançado no mundo, ele é responsável por tudo o que faz. (SARTRE,
1996, p. 39-40).

É na descoberta desta subjetividade fundante, diante da infinita possibilidade


de si-mesmo, que o homem se percebe em solidão no mundo, e entra em contato
com a angústia. A liberdade, radicada nesta subjetividade, levada até às últimas
consequências, se transmuta em condenação de si. O homem está, desta feita,
condenado a sempre escolher, e escolhendo, se faz. Acerca desta subjetividade, ou
subjetivismo, esclarece Sartre (1996, p. 29):

72
E, quando nós dizemos que o homem é responsável por si mesmo,
não queremos dizer que o homem é responsável por sua estrita
individualidade, mas que ele é responsável por todos os homens. Há
dois sentidos para a palavra subjetivismo e nossos adversários
jogam com esses dois sentidos. Subjetivismo quer dizer, por um
lado, escolha do sujeito individual por si mesmo, e, por outro,
impossibilidade para o homem de ultrapassar a subjetividade
humana. É esse segundo o sentido profundo do existencialismo.

Outrossim, esta subjetividade, isto é, o homem como fundamento de si


mesmo, encontra suas bases no cogito cartesiano:

Não pode haver outra verdade, no ponto de partida, senão este: eu


penso, logo eu sou, eis aí a verdade absoluta da consciência que se
apreende a si mesma. Qualquer teoria que tome o homem fora desse
momento em que ele se apreende a si mesmo é, para começar, uma
teoria que suprime a verdade, pois, fora desse cogito cartesiano,
todos os objetos são apenas prováveis, e uma doutrina das
probabilidades, que não está assentada em uma verdade, se
desmorona no nada. Para definir o provável, é preciso possuir o
verdadeiro. (SARTRE, 1996, p. 57)

A afirmação de Sartre é contundente: “eis aí a verdade absoluta da


consciência que se apreende a si mesma”, diz ele. O homem aqui é tomado como
fundamento de si mesmo. Fundamento assentado na base de um pensamento que
se apreende a si próprio, o cogito. Este será o ponto central da controvérsia, não
apenas entre Sartre e Marcel, mas ainda dentro da própria corrente fenomenológica.
Para além das discussões que as declarações do filósofo francês provocaram
seja no âmbito popular, seja no âmbito filosófico, no que tange a autores contrários
as suas teses sobre a existência e o homem, nos interessa, como dito en passant
anteriormente, o embate transcorrido no interior do, assim caracterizado pelo próprio
Sartre, “existencialismo”. Nos toca observar a rejeição exercida por parte de Jaspers
e Heidegger, citados, inclusive, no texto por Sartre, mas especialmente o confronto
travado com Gabriel Marcel, nosso filósofo em questão.
Tanto Jaspers quanto Heidegger recusam-se, de pronto, a rotulação
estabelecida por Sartre. O primeiro já havia afirmado, anos antes das afirmações
sartrianas que “o existencialismo é a morte da filosofia da existência” (JASPERS,
1944, p. 140). Heidegger, por seu turno, desenvolverá a sua crítica a partir da
afirmação de que “a existência precede a essência” constatando que, Sartre, “[...]

73
toma ao dizer isto, existentia e essentia no sentido da Metafísica que, desde Platão,
diz: a essentia precede a existentia. Sartre inverte esta frase. Mas a inversão de
uma frase metafísica permanece uma frase metafísica” (HEIDEGGER, 1979, p. 157).
A respeito desta querela filosófica e do ponto crucial de discordância entre os
pensadores sintetiza Silva (2022, p. 60):

No fundo, o fato é que nem Jaspers, nem Heidegger parecem estar


tão certos assim de pertencer à mesma “família” ou “linhagem”
atribuída por Sartre. E isso não só em função de uma mera questão
taxinômica. Por trás da recusa de tais rótulos, reside um problema de
fundo, o maior de todos, [...] Heidegger identifica, no propalado mote
filial, uma “inversão” de princípio; princípio este oriundo de um
problema que remonta ao pensamento moderno: o primado
cartesiano do cogito. É esse primado que se encontra na raiz do
postulado existencialista incorrendo ali o uso indiscriminado de que a
“existência precede a essência”, prolongando ainda a herança
metafísica do humanismo, no Ocidente.

Eis o ponto de discordância existente não apenas entre Jaspers e Heidegger


mas também, e para nós, com particular relevância, entre Marcel para com Sartre.
De fato, antes mesmo da contestação heideggeriana a respeito da questão da
precedência sobre a essência alerta, em uma passagem de Etrê et Avoir (1935),
nosso filósofo já acentuara o equívoco desta inversão propositiva atentando para o
fato de que ela desloca totalmente o centro da questão existencial. Nota:

Sempre me preocupou o problema da prioridade da essência em


relação à existência. No fundo, eu creio que há aí uma pura ilusão,
devido ao que nos opomos àquilo que não é senão concebido (e que
nos permitimos tratar como não-existente) àquilo que é realizado. Na
realidade, há aí apenas duas modalidades existenciais distintas. O
pensamento não pode sair da existência [...]. A passagem à
existência é algo de radicalmente impensável, alguma coisa que não
tem mesmo sentido algum (MARCEL, 1935, p. 34).

O que Marcel replica, cerca de dez anos antes do pronunciamento de Sartre,


e até mesmo do juízo de Heidegger, é justamente a crítica ao fato de que a inversão
sartriana não altera, no final das contas, o conteúdo mesmo da proposição. Isto é,
apesar de alterar os termos numa pretensão de superação da metafísica clássica a
frase parece, na visão de Marcel, continuar a tratar de um conteúdo metafísico,
como reconheceria anos depois Heidegger, conforme esclarece Silva (2022, p. 61):

74
“Eis porque ao tentar operar o salto da ‘existência’, essa segue se mantendo, sob
certo aspecto, ‘essencializada’, por mais que se aparte da ‘essência’”.
O ponto fulcral da divergência entre os filósofos é o postulado do cogito
cartesiano como pano de fundo da teoria existencialista. Com efeito, parte da crítica
marceliana desenvolve-se na direção do humanismo postulado por Sartre nos
moldes de um relativismo que toma o homem como centro de todas as coisas,
retornando assim, em certa medida, ao equívoco de considerar o homem como
medida de todas as coisas. É o que o filósofo afirma:

Dir-se-á, em suma, que regredimos, tão simplesmente, à fórmula do


sofista grego: o homem é a medida de todas as coisas? É possível,
de fato, mas essa fórmula é, em si mesma, estranhamente ambígua,
pois ela não esclarece a maneira pela qual o homem se apreende e
se julga. Quando muito pode se dizer com verossimilhança que esse
relativismo é quase inevitavelmente impelido ao limite por uma via
que conduz a um humanismo degradado, a um humanismo mofado.
(MARCEL, 1951d, p. 54)

O embate entre Marcel e Sartre tem como uma das principais chaves de
leitura o fato de que o primeiro sempre foi avesso a qualquer estereótipo escolar da
filosofia e, por conseguinte, da existência. Com efeito, Marcel caracterizará seu
pensamento como “existencial” e não “existencialista” justamente por ver no dito
“existencialismo” anunciado por Sartre um princípio de sistematização e
absolutização do pensamento. É o que ele afirma no prefácio de sua peça teatral,
Um Homem de Deus acerca da posição sartriana: “Note-se que não digo
existencialista: cada vez mais estou convencido de que o existencialismo, como tal,
é contraditório, porquanto tende a converter em sistema um modo de pensar que
exclui, por natureza, qualquer sistematização.” (MARCEL, 1964b, p. 7).
Toda querela filosófica repousa sobre a maneira como ambos os pensadores,
compreendem o homem em sua situação fundamental. É bem verdade que Marcel
sempre se mostrou um crítico ferrenho do pensamento sartriano. Tal fato não
denota, como pode parecer, inimizade22 entre os filósofos, menos ainda discordância

22
Apesar de bastante discordante com a filosofia sartriana, Marcel a elogia também muitas vezes,
especialmente no que se refere a sua obra dramatúrgica. Sabe-se ainda da relação estabelecida
pelos dois filósofos, como já citado acima, nos encontros à casa de Marcel às noites de sexta-feira,
junto a outros pensadores, para um diálogo filosófico. O próprio Sartre em uma carta destinada a
75
total no que tange às formas de pensamento. Sem dúvida, as teorias se tocam, se
entrecruzam e, por fim, tomam rumos diferentes. Entre os principais pontos
convergentes entre eles está o fato de que ambos subentendem a realidade
existencial concreta, isto é, a situação do homem como ser concreto no mundo. Este
modo próprio de estar no mundo ganha, contudo, caráter totalmente oposto na
filosofia de Marcel, pois, como lembra Carmona (1988, p. 31):

Gabriel Marcel descobriu a dialética da situação ou o caráter


eminentemente dramático do existir. Importam mais os seres, os
homens de carne e osso, do que as ideias. Essas, as ideias, não são
mais que mediações pelas quais as pessoas tomam consciência de
sua condição dramática.

É especialmente neste ponto que o pensamento marceliano começa a se


distanciar do de Sartre justamente porque este caráter “dramático do existir”, no qual
importa mais o “homem mesmo, em carne e osso”, do que às ideias, se orienta na
contramão da proposta sartriana/cartesiana do cogito como princípio organizador da
realidade, conforme lembra Azevedo (2012, p. 110):

O que se percebe é o fato de que, para Marcel, o homem não é uma


substância fechada em si mesma, satisfeito e pleno; o homem é
chamado a buscar sua plenitude, pois é homo viator. Essa busca
pela plenitude corresponde a uma resposta a um apelo no qual a
liberdade possui um papel preponderante. (AZEVEDO, 2012, p. 110).

A expressão homo viator, constitui a marca singular do pensamento de


Gabriel Marcel. Homo viator, do latim, em tradução livre, “homem viajante”, aponta
para a realidade propriamente humana que, em grande medida, possui uma
aproximação ao pensamento sartriano, a saber: o fato de que o homem é, no
mundo, um “viajante”, um viandante, um itinerante que está numa constante busca
por plenificar-se, por realizar-se. Assim, no caminho que é a vida, por meio da
experiência, vai se aproximando ou se distanciando do ser, de acordo com as suas
escolhas.
Surge aqui um dos grandes pontos de embate entre Sartre e Marcel: a
liberdade. Tanto o é que, em 1946, Marcel ministra uma singular conferência sob o

Marcel, que fora publicada recentemente, agradece, com admiração e reconhecimento, a influência
e a colaboração deste em sua obra (Cf. Sarte, 2019).
76
título de A Existência e a Liberdade Humana em Jean-Paul Sartre que, como
podemos ver, é inteiramente dedicada ao filósofo de O Ser e o Nada e ao tema da
liberdade, sobre a qual disserta em uma frase que sintetiza a disparidade entre
ambos: “A liberdade que defendemos, in extremis, não é uma liberdade prometeica;
não é a liberdade de um ser que seria ou que pretenderia ser para-si” (MARCEL,
1951d, p. 187).
Diante de tal crítica, evoca-se, então, a questão: o que, para Marcel, é a
liberdade? Quem nos responde é o próprio filósofo, em uma passagem de Mystère
de l’Être II, na qual está impressa sua marca característica, a saber, a transmutação
da pergunta pela liberdade como conceito filosófico para uma questão posta desde o
concreto existencial, isto é, desde a realidade humana: “Parece que antes de tudo
devemos nos perguntar até que ponto, ou dentro de que limites, posso afirmar-me
ou não como um ser livre, tendo em conta minha própria experiência vital”
(MARCEL, 1951, p. 110). A liberdade, além de não ser um conceito puro e simples,
mas uma realidade concretamente humana, aparece aqui não como a condição que
possibilita toda existência, quer dizer, como um ponto de partida desde o qual toda a
existência é possível, mas antes, ela precisa ser conquistada (URABAYEN, 2000, p.
02). Ora, e é existencialmente por isso que, em Marcel, a liberdade é, antes de tudo
uma decisão, a decisão pelo ser: “[...] minha liberdade não é nem pode ser algo que
constato, senão algo que decido e que decido sem nenhuma apelação possível”
(MARCEL, 1951, p. 114).
Neste sentido, a expressão primeira da liberdade é a de ser uma conquista,
alcançada por meio da decisão pessoal. Esta decisão é evidenciada na situação de
crise existencial, diante da angustiosa possibilidade de fechar-se em si mesmo. Com
isso, o homem é livre para decidir por libertar-se desta terrível condenação, “[...] a
liberdade é, em primeiro lugar e, antes de tudo, poder afirmar-se ou negar-se a si
mesmo” (MARCEL, 1940, p. 40). A liberdade apresenta-se como a capacidade do
homem de, diante do desespero e da angústia, decidir pela esperança 23.
Outro aspecto primordial na inflexão com Sartre reside no postulado da
liberdade como ponto de partida da existência. Como recorda Garaudy (1968, p.
147-148):

23
A íntima relação entre liberdade e esperança ficará mais evidente no último tópico do terceiro
capítulo Esperança, amor e fidelidade: as aproximações concretas ao mistério do ser.
77
A partir de sua concepção do ser e do nada, Sartre construía uma
filosofia da liberdade que tornava dificílima a determinação das
relações com os outros, senão como relações de hostilidade entre
liberdades insulares. Gabriel Marcel, em vez de partir da liberdade
para esforçar-se por ir ter com outrem, procura, de início, realizar a
comunicação com outrem e com isso a participação no ser para
situar a liberdade no interior dessa participação, como um de seus
momentos

A controvérsia repousa, precisamente sobre o seguinte contraponto: Sartre


parte do pressuposto da liberdade subjetiva como condição sine qua non da
existência do homem. Tal condição se configura como condenação. Assim, uma vez
anulados os pressupostos transcendentes, o homem se vê, diante do nada, obrigado
a escolher. Na contramão, o ponto de partida de Marcel é outro, ou melhor, são os
outros. É neste contexto de relação, ou ainda, de participação24, que a concepção de
liberdade insurge no pensamento marceliano. Para Sartre, é impossível superar a
subjetividade humana25; já, para Marcel, a intersubjetividade é fenomenologicamente
o que funda o homem como ser encarnado e, abertura à transcendência. Se,
conforme a personagem de Sartre, “o inferno são os outros”, para Marcel, o outro
“me faz ser”, e a liberdade, o existir livre, é condição para uma abertura ao
transcendente, que se radica na experiência, com o mundo, com outrem e, por fim,
com Deus, o Tu absoluto. Sob essa perspectiva, “existir é coexistir”.

24
O tema da participação, um dos primeiros conteúdos abordados por Marcel em sua obra filosófica
como fundamento da experiência ontológica por excelência, será tema do terceiro tópico do terceiro
capítulo, intitulado Comunhão e participação.
25
É bem verdade que, páginas adiante, Sartre arrogará, para sua obra, certa intersubjetividade ao
afirmar que “Outrem é indispensável a minha existência, tanto quanto, aliás, ao conhecimento que
eu tenho de mim mesmo. Nestas condições, a descoberta de minha intimidade descobre para mim
ao mesmo tempo outrem como uma liberdade colocada diante de mim, que só pensa e só quer a
favor ou contra mim. Assim, descobrimos imediatamente um mundo que chamaremos a
intersubjetividade, e é neste mundo que o homem decide o que ele é e o que são os outros.”
(SARTRE, 1996, p. 58). Há, todavia, uma grande divergência com relação ao que Gabriel Marcel
propõe como intersubjetividade nos termos de uma comunhão participativa.
78
3. EXISTÊNCIA CARNAL E INTERSUBJETIVIDADE

3.1. Existir é coexistir

Tendo em vista a tese que se expôs, de que a existência do homem encontra


seu signo mais palpável na corporeidade, configurando-se como encarnação, ou
seja, como consciência de mim originariamente ligada a um corpo e, considerando
que essa mesma existência, que é encarnação, está radicada na sensação que
tenho do meu corpo enquanto meu, incumbe-nos um questionamento. Vejamos: até
que ponto o pensamento de Marcel não acaba por resultar, dada a constatação da
existência como consciência do sujeito encarnado, corporal, em um subjetivismo
fechado e imanentista? Ou ainda, num solipsismo corporal?
Ora, se o nosso trabalho fosse finalizado no capítulo precedente poderíamos
chegar a tal conclusão. Marcel, entretanto, desenvolverá seu pensamento acerca da
existência como encarnação a título de uma intersubjetividade. Sob este olhar,
existir não significa existir para si, ou ainda, como bem lembra Granade: “existir não
é simplesmente existir no mundo, mas significa também existir com os outros
sujeitos. Nossa existência não é separada do mundo. Nossa existência não é
separada do outro.” (2008, p. 5).
Perceber a própria existência no mundo como ser corporal, por meio do
sentir, não é somente perceber-se a si mesmo, senão perceber o próprio mundo e,
de forma singular, o outro. A constatação existencial do eu carrega em seu bojo a
afirmação existencial de outrem. Nesta direção, a afirmação “eu existo” projeta como
horizonte a afirmação “o outro existe”, ou melhor, o reconhecimento da própria
existência como dado indubitável implica reconhecer a indubitabilidade da existência
de outrem. Eu existo em um mundo com os outros, cuja existência é tão real quanto
a minha.
O que se torna incabível, dentro da ótica marceliana, é um sujeito apartado do
mundo, cuja existência se funda, como pretendia, por exemplo, Descartes, sobre o
cogito. O que há, em rigor, aqui, é um ser corporal, engajado no mundo, encarnado,
onde o mundo e outrem, implicados em um só elo de participação e comunhão
emergem como prolongamentos do meu ser. Escreve Marcel, em uma das notas de
seu Diário de 1927:
79
Todo existente me aparece como prolongamento do meu corpo
numa direção qualquer – meu corpo enquanto meu, isto é, não
objetivo. Meu corpo torna-se cada vez mais, neste sentido, o
existente modelo e mais profundamente ainda, o signo dos
existentes. O mundo existe para mim, no sentido forte da palavra
existir, na medida em que eu mantenho para com ele relações do
tipo daquelas que eu mantenho com meu próprio corpo – ou seja, à
medida que eu sou encarnado. De outra parte, tenho, desde já
observado que esta encarnação do ponto de vista dialético
permanece apenas possível [...]. Logo, entre eu e tudo o que existe
há uma relação (a palavra é totalmente de fato imprópria) do mesmo
tipo que aquela que me une ao meu corpo: aquilo que eu chamo uma
mediação não instrumental vem completar a mediação instrumental
ou objetiva. Aqui cabe dizer que meu corpo está em simpatia com as
coisas [...], ou seja, as coisas existem para mim como prolongamento
de meu corpo na medida em que as vejo (MARCEL, 1927, p. 261;
265; 273).

O postulado acima é o de que as coisas que estão no mundo não são de


pronto, para o sujeito, objetos do espírito, ou do pensamento, mas, prolongamentos
do próprio corpo na medida em que participam do mesmo mistério do ser que o
corpo (eu) participa. Aqui, o corpo goza da prioridade de ser o “centro em torno do
qual gravitam todas as coisas”, ou ainda, o “existente modelo”, haja vista que todas
as coisas existem para o sujeito desde quando se relaciona26 com elas. Pois bem,
esta relação, ou melhor, esta participação ou experiência das coisas existentes no
mundo se realiza originariamente pelo fato de que “sou encarnação”. “Meu corpo” é
o ponto desde o qual “eu” posso experienciar o mundo, as coisas, o outro. Sendo
assim, a encarnação é a mediação entre “eu” e o mundo e os outros, quer dizer, “[...]
a condição humana se caracteriza enquanto experiência encarnada, de modo que o
corpo é o ponto de partida pelo qual toda existência ganha efetividade” (AZEVEDO,
2012, p. 23).
Não obstante, é preciso notar que a relação corporal não pode ser entendida
como um aspecto cognitivo do sujeito, mas, sim, a título de uma verdadeira
participação no mundo, e no outro. Sobre isso, vejamos o que escreve Urabayen
(2001, p. 38-39):

26
Como vimos, o termo é, como afirma Marcel, deveras inapropriado, haja vista que, se trata, antes,
de uma participação ontológica do que uma justaposição propriamente dita.
80
A existência está dada com relação à própria corporeidade, porém,
isso não significa que se trate de uma tomada de contato cognitiva,
de modo que o homem conhecesse através de sua corporeidade a
existência, senão de uma relação muito mais íntima [...] Assim,
propriamente, não é uma relação, mas uma participação: o homem
participa da existência por sua corporeidade e a existência do mundo
e dos outros se faz patente na própria existência, participando de sua
mesma prioridade, de sua mesma condição de indubitável.

Por conseguinte, a existência não se dá de forma isolada, subjetivista, mas


intersubjetivamente, como uma íntima participação. O que podemos observar, de
acordo com Marcel, é que a existência de outrem não é algo exterior a mim mesmo,
mas algo que me afeta intimamente, visto que outrem participa do mesmo mistério
de ser que eu mesmo; o outro, em certa medida, me faz ser. Existir não é apenas
existir (esse), mas existir com (co-esse). É exatamente isso que precisa Marcel ao
afirmar em um de seus escritos, Mystère de L’être I, de 1951a (p. 106):

Quando digo “existo” [...] contemplo obscuramente o fato de eu não


sou somente para mim, senão que me manifesto, ou melhor, que sou
manifesto. O prefixo “ex” em “existir” é de grande importância.
“Existo” quer dizer que “posso fazer-me conhecer ou reconhecer
pelos outros, ou por mim, afetando minha alteridade fictícia”.

Em conformidade com Marcel, afirmar a própria existência implica


necessariamente afirmar a existência de outrem. Isto porque reconhecer que “[...] eu
sinto/eu existo é dizer: sou manifesto, ao mesmo tempo que me abre ao campo da
alteridade” (AZEVEDO, 2012, p. 39). Assim, a afirmação de si mesmo enquanto
existente é afirmação da existência do mundo e de outrem. O corpo se torna, nesse
cenário, essa presença viva e originária desde onde é possível perceber a existência
de outrem. Trata-se, pois, de uma experiência a partir da qual eu me abro ao mundo,
e especialmente ao outro, numa só comunhão ontológica.
Logo, o corpo é o dado desde o qual eu posso afirmar não só a minha
existência bem como a de outrem. Se sou ser encarnado, isto é, se participo do
mistério do ser por meio da corporeidade, posso afirmar a existência do outro
também como ser corporal, senciente. Desta forma, a corporeidade figura-se não
como um objeto, fechado em si mesmo, mas antes, como um sensível exemplar em
abertura ao mundo. O humano, enquanto ser corporal está inserido na realidade
existencial em um mundo concreto, com os outros, por meio desta corporeidade.
81
Lembremos, pois, que a tese de Marcel repousa sobre as bases de um sentir
originário, ou melhor, a existência do homem enquanto ser corporal só pode ser
percebida como fenômeno primordialmente encarnado. Isso posto, porque somos
seres sencientes, sentimos nosso próprio corpo como nosso. Por este ângulo, “[...] a
partir do momento que alguém sente o corpo e, por conseguinte, a consciência
exclamativa de si mesmo, pode igualmente sentir tudo aquilo que entra em
comunhão com ele e, de modo mais específico, ou outro” (AZEVEDO, 2012, p. 41).
Em consequência, se a existência é, pois, encarnada e se a encarnação está
radicada na sensação que tenho do meu corpo enquanto meu, sentir-se a si é sentir
os outros.
Assim sendo, sentir é sentir o mundo e os outros como prolongamento de si
mesmo, de seu corpo, à medida que eles gozam desta mesma prioridade existencial
arraigada na sensação de si. Como bem ilustra Beato:

Esse sentir, reconhecido como metafisicamente irredutível e


prioritário, escapa, contudo, aos limites de um imanentismo
subjetivista, de um qualquer fechamento solipsista, ou acosmismo
psicologista, porquanto nos dá, no prolongamento do corpo-próprio, a
indubitabilidade e alteridade do mundo e dos outros (2017, p. 289).

Afirmar que outrem participa do meu corpo significa dizer que ele usufrui da
mesma prioridade ontológica de ser no mundo como encarnação. Nesta medida,
está em comunhão comigo visto que participamos do mesmo mistério do ser. Assim,
portanto, existir é abrir-se à realidade concreta. Viver é estabelecer laços de
comunhão com esta realidade que me circunda e na qual estou mergulhado, ou
melhor, encarnado.

Quem é, afinal, o outro no pensamento de Marcel? O outro é a


espessura do mistério, a encarnação do ser. Jamais é um “inferno”,
mas o prolongamento de mim mesmo. Ele é a expressão mais carnal
de comunhão, o êxodo do solipsismo, o encontro de liberdade, o
caminho ontológico, a garantia mais palpável e, portanto, concreta de
que o solipsismo é um limite como princípio. (AZEVEDO, 2012, p.
120).

Por fim, outrem é, na filosofia de Marcel, carne da minha carne, um


prolongamento de mim mesmo enquanto encarnação, que se fulgura na participação
no mistério do ser. Ora, é no horizonte desse mesmo mistério que o filósofo, no
82
contexto de sua teoria da intersubjetividade reconhece também um traço
transcendente ligado à própria encarnação como exigência fundamental: o princípio
de que a morte não encerra nossa existência terrena pura e simples do ponto de
vista do corpo físico-biológico. Marcel então confere um salto significativo como
movimento de transcendência. “Amar a um ser”, descreve ele, “significa dizer: ‘tu
não morrerás jamais!’” (MARCEL, 1951a, p. 62)

3.2. Intersubjetividade carnal

A presente seção visa abordar o tema da intersubjetividade de maneira


dialógica, ou seja, do modo com o qual estabelecemos relações com outrem. Para
tanto, pretendemos aqui situar tal tema via uma experiência sui generis que é a de
nossa finitude encarnada: a experiência da morte. O que resta, então, por indagar é
se essa experiência, aos olhos de Marcel, corresponderia a um registro último de
nossa encarnação ou se, ao contrário, ela é capaz de abrir ou, melhor, reabrir um
sentido da situação humana por algum outro gesto possível.
Viu-se que o pivô de todo o pensamento do autor é, pois, a encarnação, isto
é, a situação do homem como ser corporal. Por outra parte, esta existência corporal
não é apenas um existir solitário, mas abertura ao mundo e a outrem que se
apresentam como prolongamentos de meu ser. Em tal direção, a vida, posta pelo
filósofo parisiense como encarnação, não possui o seu fim último na imanência,
mas, antes, se projeta noutro horizonte desde onde tal sentido transcende a própria
encarnação. O que entra em jogo, nesse momento, é o salto da transcendência
como experiência intersubjetiva.
Como afirma Azevedo (2012, p. 117), em Marcel, “[...] a intersubjetividade é
essencialmente abertura ao mundo; portanto, o deslocamento não é
necessariamente direcional até alguém ou algo, mas relacional, existencial, quer
dizer, um movimento global e concreto”. Sendo a intersubjetividade o modo por meio
do qual eu me relaciono com o mundo e, especialmente com outrem, numa
comunhão existencial, Marcel chama atenção para o fato de que esta relação pode
se dar de maneira mais ou menos autêntica dependendo do modo como é
estabelecida.

83
Antes de tudo, atentemo-nos para o contexto histórico em meio ao qual surge
o tema da intersubjetividade no pensamento de Marcel. Durante a Primeira Grande
Guerra, o jovem filósofo atuou como voluntário junto à Cruz Vermelha num serviço
que consistia em levar as notícias dos mortos e feridos em combate aos seus
familiares. Marcel revela que é nesse convívio diário e direto com a aflição e o
flagelo da guerra que suscita seu primeiro encontro com a “intersubjetividade”. Ora,
ao ter que dar tais notícias, Marcel começa a se indagar profundamente sobre as
relações entre os seres humanos e como estas se encontram degradadas,
indiferentes, desprovidas de qualquer sentido mais profundo.
O que o autor pretende mostrar é que as nossas relações com outrem se dão
nos termos de uma comunicação, de um diálogo. Trata-se de ver que o diálogo é
muito mais que uma informação dada por alguém a outrem, ou ainda, é mais que
mero interrogatório onde alguém pergunta e outro alguém responde. Tudo repousa
sobre a esfera do nós: eu e outrem como pessoas numa unidade supra-relacional.
Ainda, “[...] embora possa parecer assim, o ‘nós’ não é uma soma de dois ‘eu’, mas,
ao contrário, uma comunhão autêntica, em que cada sujeito pode sempre olhar em
si-mesmo a fim de se encontrar” (CAIFFA, 2017, p. 432). Sob este olhar, na filosofia
de Gabriel Marcel, a intersubjetividade encontra o seu valor fundamental no interior
do sujeito: ela é “[...] na realidade, interior ao sujeito por si mesmo; cada um é para
ele próprio um nós, que não pode ser por si senão muitos, de tal modo que o valor
só é possível nesta condição” (MARCEL, 1959, p. 159).
Ao instaurar a noção de relação dialógica, o filósofo afirma que a minha
relação com outrem se caracteriza a partir do diálogo que eu estabeleço com ele. A
minha comunicação com o outro pode se dar em um nível de tratamento de um “eu”
para com um “ele” ou de um “eu” para com um “tu”. Na primeira, a relação é
totalmente impessoal, objetiva. Ela se encontra no âmbito do problemático. Já na
segunda, existe uma abertura a existência enquanto comunhão no ser pelo amor. A
segunda é uma relação autêntica, fundada na comunhão e na reciprocidade,
enquanto que a primeira é inautêntica, fundada na exterioridade, no ter. Sendo
assim, a reflexão acerca de outrem não se situa no âmbito do problemático, mas do
mistério. Trata-se de uma questão ontológica porque, originariamente, se refere à
coexistência de um ser para outro ser. Antes de explanarmos a diferença entre o

84
diálogo “eu-ele” e “eu-tu” 27
, precisemos que a noção de diálogo aqui proposta vai
além de uma simples conversa entre dois sujeitos, é mais que um um trivial “bate-
papo”:
O diálogo é, acima de tudo, reconhecimento do outro como outro. Ele
é a admissão da alteridade, reconhecimento do outro, em sua própria
alteridade. No diálogo autêntico, eu aceito o outro como interlocutor,
eu o ligo a mim no seio do diálogo, e o confirmo em seu ser como
meu próximo (GRANADE, 2008, p. 4).

Como bem esclarece Granade, na passagem acima, segundo Marcel, o


diálogo é reconhecimento do outro enquanto outro, como único. Reconhecer outrem
significa estar aberto a ele enquanto realidade que se me apresenta. É, nesse
circuito, que se radica o fenômeno da intersubjetividade, ou seja, neste encontro
com outrem “que eu ligo a mim no seio do diálogo”. Neste encontro, o outro, que
havia assumido o papel de um objeto qualquer (ele), transmuta-se em um tu, que
deixa de ser exterior a mim e passa a estar ligado, misteriosamente, a mim. Há aqui,
no ser, uma comunhão dialógica: eis onde acontece a intersubjetividade. É o que
afirma o próprio filósofo quando escreve que “na verdade, o ‘eu’ demanda sempre o
reconhecimento de um ‘tu’, de uma testemunha. (Isso requer) a pretensão de se
fazer reconhecer pelo outro (que) faz parte de mim” (MARCEL, 1944, p. 18).
Reconhecer outrem, portanto, exige, necessariamente reconhecer-se a si mesmo
como implicado na mesma esfera existencial. Em outras palavras, reconhecer
outrem é reconhecer-se a si mesmo em outrem. O “tu” passa a ter um papel crucial
quando se trata da intersubjetividade em Gabriel Marcel, visto que ele é a condição
indispensável para o reconhecimento do próprio eu.
Nos perguntamos então: que pretende Marcel ao aplicar os pronomes “eu”,
“tu” e “ele” em sua filosofia? Qual a diferença entre um diálogo estabelecido entre o
“eu” e o “tu” para um diálogo entre “eu” e “ele”? É o que passaremos a analisar daqui
em diante. Vejamos, pois, o que Marcel afirma sobre quando se deve empregar a
segunda pessoa, quer dizer, o “tu”:

27
Notemos que, neste ponto, a filosofia de Marcel se assemelha a de Martin Buber (1878-1965),
filósofo austríaco, naturalizado israelita, de família judaica ortodoxa. No prefácio de sua obra, escrito
por Marcel, encontramos o seguinte: “Martin Buber e eu sentimos uma surpresa análoga quando
cada um de nós constatou que outrem, paralelamente a si e no seu desconhecimento, tinha
perseguido uma investigação idêntica sobre a originalidade do tu” (MARCEL, 1969b, p. 5).
85
Em que condição empregarei a segunda pessoa? O postulado é
inverso daquele que mencionei anteriormente. Eu me refiro à
segunda pessoa que é vista por mim como provável de me
responder, de qualquer maneira que seja – mesmo se esta resposta
for um “silêncio inteligente”. Ali onde nenhuma resposta é possível,
só há espaço para o “ele” (MARCEL, 1927, p. 137-138).

Vemos, portanto, que só se pode empregar a segunda pessoa, o “tu” onde há


possibilidade de haver uma resposta, caso contrário, só pode existir ali um “ele”.
Qual é, em rigor, a diferença entre o “tu” e o “ele”? Tudo dependerá da relação, quer
dizer, do diálogo que eu estabeleço com outrem. Vejamos: toda vez que o meu
interlocutor é reduzido à função que ele exerce, toda vez que eu me dirijo a ele na
intenção de somente obter uma resposta àquilo que necessito, o meu interlocutor se
transforma num “ele”. Percebe-se aqui que a relação meramente exterior que
mantenho com alguém ao tratá-lo como um “ele” é indiferente, quer dizer, uma
relação de todo desprovida de amor, de espírito de fraternidade; afinal, trata-se de
uma relação objetiva em que, simplesmente, reduz-se outrem a um objeto qualquer
que me dispõe determinada informação. A relação aqui é impessoal.

Ora, quando se toma qualquer um em consideração somente quando


ele é capaz de responder as nossas questões, nós o consideramos
como um objeto, um repertório ou um arquivo; ele é, para mim, um
“ele” bem distante das relações vivas comigo. (CAIFFA, 2017, 437).

Observemos o que escreve Marcel (1964, p. 91):

Tomemos um caso inteiramente simples em que me dirijo a um


transeunte para perguntar, por exemplo, sobre minha direção. Esse
transeunte é, então, tratado como uma fonte pura de informações, ou
serei, de início, tentado a dizer que não existe diferença apreciável
entre o papel atribuído a ele e o de um anuário que eu consulto [...].
O Tu se encontra aqui também tanto um Tu quanto possível, o que
podemos exprimir dizendo que ele não exerce função de sujeito
autêntico.

Sob este entendimento, ao tratar outrem como fonte de informação pura e


simples incorre-se no terrível erro de degradá-lo em mero objeto. O outro não é um
repertório que eu consulto para obter informações. Quando o caracterizo apenas a
partir de suas funções, acabo por lança-lo no âmbito dos objetos, cuja dimensão
própria é aquela do ter. Aqui, a relação estabelecida acaba por transformar o “tu”
86
que esta diante de mim em um objeto de informação, em um “ele”. Esta é, em suma,
a relação estabelecida entre “eu-ele”. A relação é fria, indiferente, onde outrem é
considerado como exterior ao diálogo. É possível até afirmar que o diálogo está aqui
estabelecido. Mas trata-se de uma conversa superficial e frívola, artificial. Nessa
medida, “desde que começamos a julgar o outro, isto é, nomear, descrever
predicados, classificar, explicar, trata-se de considerar o ‘tu’ como um ‘ele’”
(GRANADE, 2008, p. 7).
Neste diálogo inautêntico, não só o “tu” é transformado em um “ele”, mas o
próprio “eu” acaba-se por transformar num “ele”, isto é, num objeto para si mesmo,
visto que, ao tratar outrem, que participa da mesma condição existencial que eu,
como um objeto, começa a enxergar-se a si também como objeto. Como afirma
Marcel (1927, p.197): “Desde que me vejo como um repertório, eu me trato como um
‘ele’. Enquanto eu sou puro repertório, me trato como tal; eu sou apenas para mim
um ‘ele’”. Sob esta condição, a tendência é que o próprio “eu” se perca no mundo
objetivo, tendo em vista que “quanto mais eu sou tratado como um anuário, menos
eu penso como um ‘eu’” (MARCEL, 1927, p. 174). A questão aqui é de que o homem
acaba por se objetificar e objetificar os outros na medida em que mantém relações
do tipo que se mantém com qualquer outro objeto, quando se vê e vê os outros
simplesmente a partir de suas funções.
Algo muito diferente ocorre na relação “eu-tu”, isto é, quando me abro a
outrem que se mostra semelhante a mim. Marcel fala aqui de um encontro
ontológico no qual a existência de outrem se revela como existência do próprio eu.
Que encontro é este? De que maneira se dá? A partir de Marcel, nos esclarece
Reche (2017, p. 525):

Um encontro é entre um eu que descobre a presença de um tu, que


compartilha a mesma existência, e é aqui que o centro íntimo
pessoal se descobre como um eu. Ou seja, ao descobrir o tu,
também se descobre a si mesmo: eu sou porque tu és. Ao
reconhecer o eu, conquista-se a liberdade de escolher: descobre-se
a própria personalidade e a do outro, uma vez que já não há funções
ou papéis, mas seres que se tornam um com o outro.

Diferentemente do que acontece na relação “eu-ele”, deveras impessoal e


exterior, o encontro “eu-tu” é pessoal, trata-se de uma experiência íntima. Configura-

87
se como um diálogo autêntico entre eu e outrem ao passo em que eu me descubro
ser com outrem que se me apresenta. Não o julgo a partir de suas funções, mas, me
percebo implicado em sua existência, ou melhor, em nossa existência, visto que,
neste encontro, neste autêntico diálogo ontológico o “eu” e o “tu” acabam por
desaparecer e o que se percebe é a presença do “nós”.
Nenhuma relação autêntica pode se produzir se a alteridade não for
reconhecida, isto é, nenhum diálogo verdadeiramente autêntico pode se estabelecer
sem o elemento da reciprocidade. Por isso, a reciprocidade é a fundadora de toda e
qualquer relação entre o “eu” e o “tu”. A intersubjetividade, enquanto comunhão,
nesta medida, se estabelece como uma realidade interior e essencial para a
formação de si mesmo, do próprio ser. Existir é co-existir! Quando “o homem deixa
de ser a consciência pura ou o eu infinito do idealismo, quando o assumo como eu
concreto e limitado, é reconduzido à descoberta do outro, à dinâmica da correlação
e da reciprocidade” (PEREIRA, 1986, p. 3 apud BEATO, 2017, p. 302). Por essa
razão,

O “tu” é aquele ao qual chamo e responde presente ao meu apelo.


Ele mantém relações comigo. Essas relações são sempre vivas e
concretas, termos esses que designam o dinamismo que lhes
caracteriza. Reconhecer um “tu” não equivale simplesmente a ver
outro sujeito ao longo de meu caminho, mas significa ainda
reconhecer nele outro ser que é ontologicamente meu semelhante.
Ele é nosso próximo (CAIFFA, 2017, p. 439).

Perceber-se como presença, pois, é perceber a presença de outrem como


outro “eu” que se abre a mim também como um “tu”. À medida que a
intersubjetividade se torna, nesse contexto, um existir de maneira relacional, o
homem pode escolher abrir-se ou não a outrem. O encontro depende,
necessariamente, de uma escolha, de uma atitude. Um encontro real com outrem
necessita de abertura e recolhimento. Nesta perspectiva, a abertura não é um ato
invasivo pelo qual o “eu” invade a subjetividade do outro. O movimento é totalmente
inverso. Não consiste em avançar por sobre o outro, mas recuar, dar um passo
atrás, permitir que “o outro entre”. Este recuo permite, justamente, a abertura que,
por sua vez, possibilita a intimidade (comunhão). Por isso, se fala de um
recolhimento, uma interiorização, por meio do qual se descobre o ser de outrem e, o

88
nosso próprio, num verdadeiro encontro. Nessa direção, retornamos aqui à segunda
seção do primeiro capítulo desta pesquisa:

Quando se quer controlar o outro, ele é visto como um problema que


se compreende, racionaliza-se e, por fim, busca-se solucioná-lo. O
encontro entre o eu e o tu é aquele que devolve o mistério à
existência; é aquele que consegue revelar que a realidade nos
transborda: o eu se descobre imerso em uma realidade misteriosa
(RECHE, 2017, p. 525).

Ora, esse encontro de que fala Marcel, que se dá por meio da abertura
outrem, numa atitude de recolhimento só é possível, seguindo o pensamento do
filósofo, por meio do amor. A relação própria para com o tu é a do amor.
“Efetivamente, quanto mais se ama um ser e mais participamos de sua vida, mais
renunciamos cada vez mais em possuí-lo e julgá-lo” (CAIFFA, 2017, p. 439).
Somente o amor é capaz de acessar a autenticidade de outrem. Pelo amor,
acessamos outrem como um tu. Apenas o amor dá acesso à realidade outrem, como
afirma Marcel (1927, p. 145-146):

O ser que eu amo é o menos possível um terceiro para mim; e ao


mesmo tempo ele descobre-me a mim-mesmo, porque a eficácia da
sua presença é tal que eu sou cada vez menos um ele para mim; as
minhas defesas interiores caem ao mesmo tempo que as barreiras
que me separam de outrem.

Por fim, a intersubjetividade se constrói na abertura a outrem pelo amor


mediante a participação no ser e, “graças ao amor do outro, eu acesso o
conhecimento de mim mesmo. Eu me conheço na comunicação com os outros seres
que estão presentes para mim” (GRANADE, 2008, p. 10). O amor é, pois, o que nos
abre à realidade, nos fazendo perceber a própria realidade de si enquanto
implicados em uma existência na participação do ser, restituindo à vida o sentido
que havia sido perdido pela objetificação. Pois bem, a superação do solipsismo, ou
seja, de reconhecer que o humano não é um ser solitário, pode ser melhor expressa
na experiência genuína transcendente da comunhão e participação.

89
3.3 Comunhão e participação

O terceiro subcapítulo, aqui em questão, é movido por outra preocupação


teórica que, aliás, Marcel jamais perde de vista em suas reflexões. Trata-se,
essencialmente, de compreender qual é o alcance e os limites de uma
fenomenologia da comunhão. Ora, esse primeiro estabelecimento do tema não se
compreende, se prescindirmos de outro importante debate suscitado desde os
primeiros escritos do filósofo: a teoria da participação ontológica. Fato é que, dentro
da obra de Marcel, a teoria da participação se inscreve a partir de dois registros, a
saber: um filosófico e outro teológico. Objetiva-se aqui uma abordagem desde a
perspectiva filosófica, sem com isso, diminuir a importância e o alcance dos
aspectos teológicos, bem como a incidência destes na própria filosofia do autor.
A tese da participação ontológica está presente na obra de Gabriel Marcel
desde o seu alvorecer. Em seus primeiros escritos, datados entre 1909 e 1914,
posteriormente publicados sob o título Fragmentos Filosóficos (1909-1914), quando
o jovem Marcel, contava com apenas 20 anos de idade, encontramos as bases de
todo seu pensamento. Um dos temas centrais ali tratados é justamente o da
participação ontológica. O manuscrito XII, denominado Reflexões sobre a ideia de
Saber absoluto e sobre a Participação do Pensamento ao Ser. Inverno 1910-1911,
juntamente com o manuscrito XVIII, Teoria da Participação, 1913-1914, apresentam,
ainda em estado embrionário, mas nem por isso desprovido de vigorosa
profundidade, o tema da participação como fundamento da intersubjetividade.
Ora, a situação fundamental do homem no mundo se apresenta, como vimos,
como encarnação. Esta situação, por sua vez, implica a constatação da existência
de outrem. Neste ponto, repetimos o brado marceliano que sintetiza esta noção:
existir (esse) é co-existir (coesse). Esta “existência compartilhada” sugere certo
“conhecimento” sobre algo ou alguém, conhecimento este que, em oposição à
epistemologia clássica, não se estabelece nos termos de uma abstração metafísica,
mas, de uma relação, um engajamento, enfim, uma participação.
Nessa medida, a teoria da participação tem como princípio a aproximação 28
ao ser por meio de um mergulho relacional ontológico. O mundo, outrem, enfim, o

28
O processo metafísico do conhecimento se fundamenta não nos tempos de uma apropriação
objetual, abstração de certo conteúdo do pensamento, mas, de aproximações ao ser. Aproximação,
90
próprio ser com o qual se enseja estabelecer esta relação (participação) não é um
espetáculo, isto é, algo exterior ao eu. Ao contrário, são existentes nos quais o
próprio eu, enquanto participante do ser, se encontra originariamente encarnado.
Pois bem, tal participação “aparece, essencialmente, como mistério, isto é, como
escapando a todo método de análise que a converteria em objeto” (MARCEL, 2018,
p. 47).
O pontapé inicial das reflexões marcelianas acerca da existência como
participação ontológica é dado por meio da crítica àquilo que já no manuscrito XII
dos Fragmentos Filosóficos ele descreve como “saber absoluto”. Trata-se da posição
da tradição filosófica que encontra no idealismo crítico sua representação exemplar,
e que possui como mote programático a dita “doutrina da intuição”. O que pretende
tal saber? Ora, este se caracteriza essencialmente pela tentativa de apreensão do
ser de um ato imanente por meio do qual o ser mesmo, como algo que ultrapassa a
própria consciência, é sistematicamente abstraído como objeto. O que Marcel
problematiza, já no primeiro parágrafo do manuscrito XII, é se a realidade pode ser
concebida como saber absoluto, como um sistema inteligível que compreenderia,
em sua unidade concreta e indivisível, todos os elementos particulares do saber?”
(MARCEL, 2018, p. 23).
Nesta perspectiva, a participação emerge “em oposição à objetividade do
saber abstrato. Ou seja, participamos exclusivamente do ser na medida em que nos
constituímos, portanto, como individualidades” (MARCEL, 2018, p. 65). Estamos
implicados no ser, ou melhor, participamos do ser. De que forma se estabelece essa
participação? Como ela está estruturada? É apenas a partir da corporeidade que
posso me afirmar enquanto participante do ser?
Mais de vinte anos após os seus primeiros escritos, Marcel discorrerá sobre
certa aderência que envolve, segundo ele, a questão da gênese do eu e da gênese
do mundo em um mesmo estado de questão:

“[...] o problema da gênese do eu e da gênese do universo não são


mais do que um mesmo problema ou, mais exatamente, um mesmo
e insolúvel problema, insolubilidade estando ligada à minha posição
mesma, à minha existência, ao fato metafísico radical dessa
existência” (MARCEL, 1935, p. 23).

eis um termo caro ao pensamento de Gabriel Marcel. O próximo tópico, Esperança, amor e fidelidade:
as aproximações concretas ao mistério do ser, visa explicar melhor essa noção
91
Aqui percebe-se a implicação, ou melhor dizendo, uma aderência ao ser que
se firma por meio da encarnação. Há, como afirma acima Marcel, uma
“insolubilidade” entre o homem e o mundo. Só é possível falar em participação a
partir deste dado concreto existencial radicado na corporeidade. Nesta perspectiva,
ser encarnado é participar do ser. Existem, entretanto, dois níveis pelos quais se dá
esta participação. O primeiro, que acabamos de citar, refere-se à condição mesma
do ser enquanto ser que, pelo fato de ser a experiência mesma da encarnação
instaura a permeabilidade entre o mundo e eu mesmo, e os outros seres. O outro
nível de participação é aquele que é aprofundada pela consciência, como bem
interpreta Beato (2009, p. 155):

A “participação ontológica” brota da “participação existencial” quando


está se ilumina e simultaneamente se densifica, quando se
aprofunda ao mesmo tempo em que ascende a um grau superlativo
de si mesma, quando atinge certa plenitude, pelo caminho do
recolhimento [...] e da comunhão intersubjetiva.

Por este viés, o ser, aqui, não é abordado como uma substância ou essência,
O ser só pode ser fenomenologicamente descrito, em Marcel, como algo no qual eu
estou implicado. O ser é, antes de tudo, comunhão, relação, melhor ainda,
participação. Neste sentido, afirma o próprio filósofo: “A participação não pode ser
pensada na medida em que o pensamento pode se despojar de todo elemento
reflexivo, na medida em que ele pode se renunciar a si próprio, fazendo, por assim
dizer, abstração de si.” (MARCEL, 2018, p. 46). Se assim o é, a pergunta emergente
desta colocação é a seguinte: o ser, tomado como participação, num âmbito de
mistério e não de uma linguagem objetiva, pode ser dito?
O que se encontra, na raiz desse estado de questão é a crítica de Marcel
àquilo que ele denomina como “saber absoluto” desenvolvida sobretudo através da
“doutrina da intuição” presente no idealismo kantiano e pós-kantiano. O saber
absoluto tem a pretensão de apreender o próprio ser, por meio de um ato imanente,
como algo que ultrapassa a própria consciência. Conforme esse procedimento, uma
vez apreendido, o ser é rigorosamente sistematizado e categorizado como objeto. O
grande equívoco, como nota Marcel, é o fato de que “a intuição para poder se

92
exercer supõe que o ser seja dado e não dado por ela” (MARCEL, 1912: 644). Silva
(2015a, p. 125), por exemplo, ilustra esse argumento:

No momento que o ato intuitivo se institui como transcendente em


relação ao ser julga-se, ao mesmo tempo, soberanamente apto em
negá-lo. Como a intuição alcança o ser? Por meio de uma peculiar
estratégia: a lógica disjuntiva. O ser é alcançado por exclusão. Esse
é o procedimento, por excelência, de que se vale a doutrina da
intuição. Nessa operação, a “ideia de ser” apreende, num “único ato”,
o “ser”, ele mesmo! (SILVA, 2015a, p.125).

A inconsistência deflagrada por Marcel diante da “metodologia idealista” é a


seguinte: além de uma contradição interna, haja vista que a “doutrina”, através do
modus operandi empregado, tende a se autodestruir como pensamento na medida
em que supõe o objeto como dado e não dado por ela; por outro lado tanto o
realismo quando o idealismo utilizam-se de um dogmatismo degradante, aos olhos
de Marcel. Não apenas pretendem apreender o ser via o ato intuitivo, mas
estabelecem, eles mesmos, os critérios de apreensão do ser enquanto objeto.

O saber absoluto (o esforço rumo ao saber absoluto) é,


precisamente, o esforço para passar do abstrato ao concreto, para
desenvolver o conteúdo integral do abstrato. Esse esforço é, no
entanto, estéril (metafisicamente). O vício é muito profundo para que
algum remédio aí possa ser eficaz, em virtude do caráter duplamente
abstrato (sempre se pode dizer, subjetiva e objetivamente) do objeto
de conhecimento. É em função de o objeto permanecer
subjetivamente abstrato que se torna impossível ampliá-lo num todo
objetivamente concreto. Esse todo permanece uma abstração
impotente de se constituir no ser. A impotência do incondicionado em
se realizar prende-se, nesse caso, bem mais, como se tem
anunciado, ao caráter, à natureza intrínseca de todo ato de
conhecimento (MARCEL, 2018, p. 40).

No intuito de melhor situar a crítica de Marcel é preciso recordar a díade


terminológica mistério e problema, exposta no primeiro capítulo deste trabalho. Mais
especificamente ao método “problemático” de construção do pensamento. Isto
porque, de acordo com o filósofo, as “doutrinas epistêmicas” estruturam-se a partir
de um domínio estritamente problemático, à medida que, ao postular a já conhecida
dualidade entre sujeito e objeto, tais teorias buscam transformar o conteúdo do
conhecimento (no caso em questão, o ser) em objeto, a fim de apreendê-lo
sistematicamente, e absorvê-lo, via um ato de abstração.
93
[...] Parece que as filosofias do saber absoluto são vítimas da mesma
ilusão que os realismos ingênuos. Elas acreditam poder cortar o elo
que une o objeto (no caso, aqui, o saber absoluto) ao sujeito e tratar
o objeto como um ser, sem perceber que a realidade desse ser é
devido à participação sua do sujeito. (MARCEL, 2018, p. 35)

É em tal contexto que a distinção entre ser e ter cumpre um papel importante
nesse debate. Marcel mostra acima que a doutrina do saber absoluto se revela
ingênua à medida que toma o “ser” a título do “ter”. Ela visa criteriologicamente
definir ou caracterizar o ser ao nível de um simples e puro objeto.
O que não se reconhece em tal doutrina é outro nível no qual o ser
fenomenologicamente se manifesta, ou seja, a título de uma experiência misteriosa
que, aliás, desarma toda teoria do conhecimento clássica via uma participação muito
íntima:

Vimos porque, de um lado, o pensamento implica o real e, de outro,


de que forma ele se identifica com esse real. Há a participação do
pensamento à realidade. Como essa participação pode ser
compreendida? A via única que se abre a nós parece ser bem a
seguinte: considerar o ato mesmo de conhecimento (enquanto
relação) e ver, como desse ato (Tätigkeit überhaupt), uma passagem
ao real é possível. A priori, pelo que tudo indica, devemos encontrar
nele, por assim dizer, o estado seminal de todas as dificuldades, de
todas as contradições que tornam impensável a ideia de saber
absoluto. (MARCEL, 2018, p. 39).

Ora, de acordo com o nosso filósofo, “todo conhecimento implica, como sua
condição necessária, um incognoscível” (MARCEL, 2018, p. 39), ou ainda, um
“inverificável”. Isto significa dizer que, o processo do conhecimento,
fenomenologicamente manifesto, pressupõe uma base que não se pode verificar
pelo cálculo e pela sistematização intuitiva ou epistêmica. Há, no conhecimento,
uma dimensão que não pode ser dita em linguagem lógico-racional, mas apenas
possível de ser vivida, no concreto. Afirmar que o “pensamento participa do ser” é
apontar para uma realidade do conhecimento que se dá como mistério a ser vivido,
e não criteriologicamente categorizado. Esta participação só pode ser pensada para
além do dualismo sujeito-objeto.
Nessa medida, o ser não pode ser pensado, dissecado, analisado como algo
exterior a nós, ao eu. Sendo algo no qual se está implicado, por uma participação
94
ontológica, ele é, antes de tudo, experienciado no mais profundo de uma comunhão
que se revela como um “nós”. Reiteramos que existe uma participação do
pensamento ao ser. Mas de que forma se dá essa relação, ou melhor, essa
participação?
Ora, de pronto já sabemos que, conforme Marcel, a participação compreendida
aqui em acepção ontológica não se dá da maneira que pretendia o idealismo e
realismo, quer dizer, nos termos de um saber absoluto, que abstrai o ser a título de
objeto do conhecimento. “No fundo, a verdade que chamamos ‘ser’ não é
comunicável como uma verdade científica; outra ‘ordem’ de inteligibilidade se
apresenta: ‘Uma participação real não se deixa traduzir pela linguagem objetiva’”
(MARCEL, 1927, p. 80). Outrossim,

Não há, entre o pensamento e o saber, pura e simples correlação ou


oposição: o saber está para o pensamento e por ele. Saber e
pensamento podem, portanto, participar, sob o mesmo título, e, sob o
mesmo grau, do ser. Por outro, devemos nos resguardar de um
perigo. Do que vimos, não seria legítimo fixar uma participação direta
do pensamento no ser com o intuito de avistar, no saber, uma
espécie de sombra ou de projeção do próprio pensamento. Desde
então, temos visto que essa projeção é inconcebível e que não é
possível, a priori, admitir uma dedução do saber a partir do eu penso.
(MARCEL, 2018, p. 55; grifo nosso).

Participamos do ser não de modo direto, mas indiretamente. A participação ao


ser não se desvela nos moldes de uma apreensão do mesmo, mas antes, como uma
aproximação.

Não possuímos o ser, não o intuímos, de imediato ou


transcendentalmente. Se há algum acesso a ele, esse se realiza por
aquela “práxis de participação”, desde sempre assumida [...].
Podemos, quando muito, dele aproximar-se, o que não significa
deixar de experienciá-lo ou presenciá-lo em seu mais radical mistério
(SILVA, 2015a, p. 132).

Se, por um lado, o ser não pode ser abordado desde o âmbito do
problemático num esforço que visa apreendê-lo via um ato lógico-racional, como
objeto do intelecto ou do espírito; por outro, a filosofia recebe, em Marcel, a tarefa de
restituir à experiência humana seu peso ontológico. Nos cabe, então, questionar: A
filosofia é possível? Como se estabelece a filosofia, haja vista que sua ocupação
95
fundamental é a existência que, por sua vez, não pode ser tratada, segundo Marcel,
sistematicamente? Urabayen (2001, p. 31), quanto a isso, bem observa:

Se a filosofia deve se ocupar da existência e essa não é conhecida,


pelo menos de modo racional-conceitual, como é possível a filosofia?
Parece que não é viável; pode-se cair em uma tentativa impossível.
Ora, essa não é a atitude de Marcel. Reconhecer que a existência
não é objetivável não é afirmar que seja incognoscível; é, ao
contrário, uma intenção de encontrar novas formas de conhecimento,
novos acessos a esses âmbitos inteligíveis deixados de lado pelo
idealismo e, mais concretamente, é uma intenção de aprender a
olhar de novo a realidade.

A resposta à questão sobre a possibilidade e o funcionamento próprio da


filosofia nos põe diante da empreita marceliana de constituir uma “filosofia do
concreto”. Tal filosofia se configura como esta nova forma de conhecimento, esse
novo olhar para a realidade que se apresenta, antes de tudo, in concreto. Para
compreender o que o autor afirma como um pensamento concreto (ou filosofia do
mistério) se faz necessário compreender a distinção, cunhada por ele, entre dois
modos de se “fazer” filosofia, quais sejam: reflexão primeira e reflexão segunda.
Precisemos um pouco melhor o que sejam esses dois modos de reflexão e qual a
importância da segunda para o desenvolvimento de uma participação ontológica.

É necessário dar um passo a mais e compreender que a reflexão


mesma pode apresentar-se em diferentes níveis: há uma reflexão
primeira e outra que chamarei segunda. Essa última esteve muitas
vezes presente nos cursos de nossas lições e me atrevo a crer que
aparecerá cada vez mais como instrumento por excelência do
pensamento filosófico. Enquanto a reflexão primeira tende a dissolver
a unidade que se lhe apresenta, a reflexão segunda é
essencialmente recuperadora, é a reconquista. (MARCEL, 1951a 78-
79).

A reflexão primeira é aquela própria do âmbito problemático e, portanto, opera


de maneira disjuntiva. A reflexão segunda, de maneira diversa, se desenvolve como
um mergulho na realidade que se apresenta como mistério. Em um primeiro
momento, a noção de reflexão segunda se direciona ao que Marcel denominou
“intuição reflexiva”. Sabemos que há no homem uma exigência ontológica, isto é,
certo apetite pelo ser. Esse desejo de ser é uma intuição primária que carece, para

96
ser compreendida, da reflexão. Daí resulta o termo “intuição reflexiva”. Assim afirma
o filósofo:

A expressão intuição reflexiva não é certamente feliz. Eis aqui,


porém, o que quero dizer: creio que estou obrigado a admitir que me
encontro – digamos em certo nível de mim mesmo – situado frente
ao ser. Em um sentido o vejo, em outro não posso dizer que vejo, já
que não me percebo a mim mesmo como se o visse. Essa intuição
não admite reflexão direta. Ela ilumina, todavia, voltando-se até ele,
todo um mundo de pensamentos que ela transcende. (MARCEL,
1935, p. 99).

E mais adiante, diz:

Tudo parece ocorrer aqui como se eu desfrutasse de uma intuição


que possuo sem saber imediatamente que a possuo, uma intuição
que não poderia ser, propriamente falando, para si, porém que não
se apreende a si mesma senão através dos modos de experiência
sobre os quais se reflete e que ela mesma ilumina mediante tal
reflexão. O labor metafísico essencial consistiria, então, em uma
reflexão sobre essa reflexão, em uma reflexão à segunda potência,
pela qual o pensamento tende a recuperação de uma intuição que,
pelo contrário, se perde, de certo modo, na medida em que se
exerce. (MARCEL, 1935, p. 117; grifo nosso)

Sendo a reflexão segunda uma reflexão de segundo grau é uma reflexão eu


se efetua sobre a reflexão inicial, se constituindo como a base do labor
autenticamente filosófico à medida que possui um esforço peculiar direcionado a
“restaurar o concreto além das determinações disjuntivas ou desarticuladas do
pensamento abstrato” (MARCEL, 1940, p. 34). Em oposição à intuição postulada
pelo idealismo, a intuição proposta por Marcel, não se apreende a si mesma,
tampouco aprisiona o ser e a realidade nos ferrolhos da abstração; ela se dá por
meio de modos de experiência concreta do ser.
Diversamente, pois, do que possa parecer, o filósofo não desqualifica de todo
a reflexão primeira, antes:

Considera-a necessária, útil e insubstituível. É necessária porque o


homem não pode dirigir nem orientar sua vida sem essa reflexão. O
homem é um ser racional que necessita de sua capacidade
conceitual e categorizada para adquirir um conhecimento
universalizador que lhe permita viver. Em segundo lugar, a reflexão
primeira é útil. Esta reflexão oferece uma série de conceitos gerais

97
que facilitam a inserção do homem no mundo e, uma vez
estabelecidos e assimilados, passam a formar parte da cultura, da
ciência e da tradição. Em último lugar, é insubstituível, pois o homem
não pode prescindir dela. Não há ser humano sem capacidade
racional dessa ordem. (URABAYEN, 2001, p. 57).

Por outra parte, a reflexão segunda se consagra a refutar o mundo como


objetividade reconhecendo a realidade como mistério, que se revela como presença.
Ser presença, entretanto, vai além de um simples “estar” espaço temporal. É, antes
de tudo, a concretização do mistério que se transcende na intersubjetividade. A
reflexão segunda “[...] reconhece e se consagra ao mistério, impugnando, por isso,
qualquer possibilidade de solução objetiva, e afirmando o misterioso como uma
realidade positiva, como um âmbito de inteligibilidade superior” (GRASSI, 2011, p.
13-14). O conhecimento se apresenta, então, não como uma apreensão objetiva de
um conteúdo abstrato (no caso aqui o ser), mas como uma participação ontológica.
Em termos fenomenológicos, a participação no ser se dá por meio de
aproximações concretas ao mistério, são experiências vividas no concreto da
realidade. É o que passaremos a abordar no próximo tópico ao tratar de três modos
específicos de aproximação ao ser indicados pelo filósofo.

3.4 Esperança, amor e fidelidade: as aproximações concretas ao mistério do ser

Esta quarta parte capitular, que encerra a dissertação, inicia-se com a


seguinte questão norteadora: se o ser não é passível de ser acessado via uma
operação lógico-racional, haja vista que o mistério, como vimos, é tudo aquilo que
resiste à análise sistemática e objetiva e se recusa à degradação “problemática”, de
que maneira, então, se dá este acesso ao ser?

As aproximações concretas do mistério ontológico deverão ser


buscadas não mais no registro lógico, cuja objetivação apresenta um
problema prévio, mas na elucidação de certos dados propriamente
espirituais, tais como a fidelidade, a esperança, o amor. (MARCEL,
1935, p. 173).

Neste sentido, corrobora Beato (2013, p. 68):

98
Fidelidade, esperança e amor são as três modalidades fundamentais
da aproximação concreta ao mistério ontológico, vivências que não
se reduzem a meros estados de consciência, mas constituem, antes
atos de alcance metafísico nos quais a inteligência comunga da
afetividade da vontade num surto de superlativação da existência. A
primeira constituía a trama essencial das outras, sendo que as três
se situam no plano da intersubjetividade: a experiência de comunhão
ontológica.

Desta maneira, conforme Marcel, o ser não é dito, sistematizado e apreendido


objetivamente, mas, vivido em uma experiência de transcendência. Ora, tal
experiência se revela por meio de “aproximações concretas ao mistério”. Eis o
fundamento basilar da teoria da participação: o ser não pode ser apreendido via um
movimento racional e lógico; participamos no ser à medida que dele efetivamente
aproximamos, se deixando envolver nesse mistério que é a existência como
coexistência. Tais aproximações podem ser vivenciadas, como aponta o filósofo, por
certos “dados espirituais”, de forma muito particular, as três acima citadas:
esperança, amor e fidelidade. Passemos ao estudo de cada uma delas.

3.4.1 A Esperança

Conhecido como o filósofo da esperança, por tratar do tema com afinco ao


longo de suas obras, Gabriel Marcel o desenvolve nos termos de uma
Fenomenologia e Metafísica da Esperança. De fato, este é parte do título29 dado a
um dos capítulos de sua obra Homo Viator: Prolégomènes a une Métaphysique de
l’esperance. O próprio título geral aponta para a estreita relação entre o tema da
esperança e a situação concreta do homem no mundo (homo viator). A condição
humana enquanto ser itinerante, ainda por se fazer, sujeito às contingências do
mundo, é o campo desde o qual surge a noção marceliana de esperança. Em um
“mundo partido” diante do fato de sua finitude, frente à limitação temporal, o homem
é chamado a transcender, por meio da abertura ao amor e à fidelidade, superando o
desespero pela esperança. Recordemos: há, no íntimo do humano, uma inquietação
gerada pela carência de sentido existencial. A esperança aparece, neste primeiro

29
Trata-se do terceiro capítulo da obra, Esquisse d’une phenomenologie et d’une métaphysique de
l’esperance.
99
momento, como uma resposta a esta inquietação humana diante da solidão e do
desespero, criados pelo contexto problemático no qual está mergulhado o mundo,
onde o ter impera sobre o ser e a técnica sobre o mistério.
Marcel buscou articular uma “filosofia do concreto” que, radicada na realidade
existencial eminente, escapasse ao pensamento objetivo e sistemático. Ora, o ponto
de partida aqui não poderia ser outro. Ao falar da esperança, o filósofo não o faz a
partir de conceitos abstratos, mas a partir de um fato concreto, de certa experiência
ontológica vivida por aquele que espera, qual seja, o homem. Isto porque, de acordo
com o filósofo, “apelar a certa experiência que se faz necessário supor presente
àquele a quem se dirige” (MARCEL, 1944, p. 39).
Assim, portanto, falar de esperança, segundo Gabriel Marcel, não é tratar de
um conceito meramente formal, mas antes de uma experiência ontológica vivida
desde uma situação fundamental: a encarnação. É por isso que já no início do
capítulo Esboço de uma Fenomenologia e de uma Metafísica da Esperança, o
filósofo atenta para o fato de que o estudo sobre os fundamentos da esperança,
para evitar maiores equívocos, deve partir desde um ponto concreto: “a experiência
do ‘eu espero’” (MARCEL, 1944, p. 39).
Antes de mais nada, é preciso apontar para o fato de que a esperança aqui
retratada não deve ser confundida com nenhuma questão psicológica como o
otimismo, o desejo ou a crença. É justamente na intenção de esquivar-se dessas
classificações que Marcel, partindo da situação concreta do homem, procura
desenvolver uma “fenomenologia e metafísica da esperança”, reconduzindo a
questão para uma experiência concreta de transcendências, no intuito de desvelar
um sentido mais profundo, um peso ontológico no ato de esperar. Neste sentido,
afirma Azevedo (2018, p. 144):

[...] a esperança se apresenta como uma postura ativa de saída de si


mesmo e como uma exigência ontológica de fluidificação da
existência – em oposição à petrificação do ser e à autofagia espiritual
–, existência que somente possui plenitude na participação
ontológica, no acesso ao ser.

Outrossim, a esperança se estabelece, dentro do pensamento marceliano, de


uma maneira bastante peculiar: no desespero. Diante da “tentação” que é o
desesperar, a esperança surge, por um lado, como um apelo do ser ao homem; por

100
outro, como uma possibilidade metafísica de resposta ao ser. Beato (2013, p. 75)
nos mostra como compreender a questão:

A esperança constitui, antes de tudo, como diz Marcel, uma luta ativa
contra o desespero – desespero ante a doença, à separação, o
exílio, à servidão, mas também ante à clausura, o tédio, e à
degradação da vida quotidiana funcionalizada num mundo partido.

Os dramas essencialmente humanos constituem o campo desde onde a


esperança aparece como tábua de salvação. A consciência de sua inserção na
temporalidade, caracterizada pela contingência e finitude, posicionam o homem face
a face com a angústia e a solidão que, por sua vez, podem levar ao desespero. Em
outras palavras, na base da esperança há uma situação que nos “tenta” ao
desesperar. O homem é posto diante de uma escolha: ou se rende ao desespero, ou
se abre, ontologicamente, à esperança. Esta “encruzilhada” ante a qual pode se
encontrar o homem nos faz lembrar outra terminologia dual, desenvolvida por Marcel
e abordada no final do primeiro capítulo desta dissertação, ser e ter. Como se pode
imaginar a esperança está, conforme Marcel, para o campo do ser, o que possibilita
que seja abordada nos termos de uma transcendência ontológica.
Pelo fato de não se reduzir a nenhum mecanismo psicológico, a esperança é,
antes de tudo, uma “resposta do ser à provação da existência” (MARCEL, 1944, p.
38). Provação, eis o termo marceliano para designar não apenas as situações-limite
na qual se encontra implicado o homem, mas como condição mesma do homem
enquanto submetido à contingência e à finitude. A situação de provação30
existencial, que é justamente aquela que acima citamos a propósito da escolha entre
o desespero e a esperança, direciona-se, por sua vez, para a noção de cativeiro.
Por mais absurdo que possa parecer, a esperança, a fim de se estruturar,
carece de certa experiência de cativeiro31, isto é, uma experiência autêntica de
sofrimento. Nesta situação, a própria “existência humana pode aparecer, de modo
essencial, como um cativeiro” (MARCEL, 1944, p. 40). É, precisamente, desde esta

30
Em Homo Viator: Prolégomènes a une Métaphysique de l’esperance os termos provação, cativeiro,
prisão, trevas e factum, são recorrentemente utilizados por Marcel para ilustrar o sofrimento capaz de
colocar o homem diante de uma situação de escolha entre desespero e esperança.
31
Tais reflexões tomaram consistência durante a Ocupação, na Segunda Guerra Mundial. Neste
sentido, o momento histórico-cultural da guerra possibilitou evidenciar a abrangência primordial desta
experiência de cativeiro no concreto existencial.
101
situação-limite de sofrimento que é possível ao homem escutar o brado ontológico
convocando-o a uma resposta autêntica, a esperança. Vejamos, então, de que
maneira se dá essa experiência de cativeiro, e como ela convoca, em nós a
esperança.

Tratemos de situar de maneira mais próxima o sentido desta palavra,


desentranhar os caracteres de toda situação que se deixa traduzir
pela expressão “ser cativo de”. Trata-se de um sofrimento. Porém,
em que condições o sofrimento pode chegar a ser uma experiência
de cativeiro? É necessário subtrair o papel que tem aqui a “duração”:
apresento-me a mim mesmo como cativo se me encontro não
somente resoluto, senão complexificado sob uma pressão exterior
em um modo de existência que me é imposto e implica restrições de
toda ordem para meu próprio trabalho. Ademais, o que caracteriza
todas as situações que evocamos neste momento é que elas
implicam invariavelmente a impossibilidade que me vejo reduzido,
não necessariamente de mover-me e até de atuar com certa relativa
liberdade, senão de “aceder a uma plenitude de vida que pode ser
uma plenitude do sentimento ou, assim mesmo, do pensamento
propriamente dito” Na verdade, pode ocorrer que, arrancando-me de
mim mesmo, esse sofrimento dê lugar ao fato de que eu alcance
uma consciência bastante aguda, que, sem ele, esta integridade
aguda que agora aspiro a reconquistar não se apresente. É assim,
por exemplo, para o enfermo em quem a palavra “saúde” despertará
uma riqueza de elementos harmônicos geralmente insuspeitas pelo
homem são. (MARCEL, 1944, p. 48).

O elemento importante para a compreensão da experiência de cativeiro é a


categoria metafísica do tempo. A esperança envolve, por assim dizer, certa
consciência da temporalidade. Nesta prisão, cuja marca substancial é a duração
(temporalidade), a “consciência aguda” é um primeiro fator de resposta do ser que
deseja libertação. Nesta perspectiva, a noção de esperança comporta em si a
consciência do tempo. Ela é uma experiência de abertura autêntica e ativa ao tempo
que se me desvela como aquela situação fundamental de cativeiro “à qual a
esperança tem a missão de responder como a um pedido de socorro” (MARCEL,
1944, p. 49).
Para além das situações específicas de sofrimento enfrentadas pelo sujeito,
Marcel aponta para certo “aspecto completamente geral da existência humana,

102
segundo o qual ela aparece como “cativeiro” 32
e precisamente assim se apresenta
com esse perfil, segundo o qual está, assim se pode dizer, sujeita à esperança.”
(MARCEL, 1944, p. 50). Trata-se da constatação de um “vazio”, uma carência de
plenitude no interior do sujeito, que se percebe em um mundo sem sentido e cuja
responsabilidade de significá-lo depende dele mesmo. É o que ilustra o filósofo:

Não esqueçamos, com efeito, que a condição geral do homem, ali


mesmo onde sua vida parece normal, é sempre a de um cativo. É a
de um servidor de toda ordem que está destinado a sofrer, ainda
somente fora pelo fato de seu corpo e mais profundamente, todavia a
causa da noite que envolve seu começo e seu fim. Pode-se dar, por
certo, que toda atividade criadora, qualquer que seja, está ligada a
esta condição, no duplo sentido que temos reconhecido nesta
palavra e que é, no fundo, o único meio que nos tem sido dado para
fazer brilhar a luz nesta prisão que é a nossa. (MARCEL, 1944, p.
79).

Sob este prisma, estamos em um “cativeiro existencial”, encontramo-nos


ávidos de esperança. Porém, o acesso ao ser, que se configura aqui como
esperança, não é possível pela via problemática, mas apenas através de um
mergulho radical no mistério. Esperar não é assistir, passivamente, a um espetáculo
que se manifesta exterior a mim mesmo. Esperar é estar, desde já, implicado em um
mistério do qual eu participo ativamente. Nesse sentido, para além dos cálculos, dos
porquês e dos conceitos, “a esperança está [...] comprometida com a trama de uma
experiência em formação, [...] de uma aventura em curso” (MARCEL, 1944, p. 68).
Beato (2013, p. 76), nos ajuda a compreender melhor:

Trata-se de uma experiência tecida de acolhimento e criatividade –


disponibilidade – em que o inesgotável concreto se entrelaça com a
indefectível e misteriosa garantia (assurance) de foro ontológico. [...]
Se o desespero é a vivência do mundo num tempo que deixou de
passar, ou o que é o mesmo, onde o tempo se limita a passar, sem
trazer nada de novo, o tempo da esperança é o tempo que acolhe a
novidade e a prepara.

Esta experiência da esperança, fenomenologicamente falando, sob a


perspectiva do mistério, carece de certa abertura virginal, casta e humilde ao

32
Marcel faz questão de observar que esta noção de cativeiro não possuí quaisquer semelhanças
com a teoria dualista platônica e/ou espiritualista tradicional, que se desenvolvem em termos
totalmente distintos dos aqui abordados. Cf. MARCEL, 1944, p. 50.
103
mistério que desvela para o sujeito. A não observação destes pressupostos acaba
por “turvar” a reflexão racional, impedindo o acesso ao ser, haja vista a
impossibilidade de redução conceitual. O que se torna incabível, aqui, é a tentativa
de coisificação da esperança em pretender considerá-la a parte da experiência
cotidiana, como uma categoria de um possível “eu puro”, como pretendia o
idealismo.
Marcel propõe uma distinção capital entre “eu espero que” e “eu espero”. O
ponto elementar da diferença é o fato de que o “eu espero que” pressupõe uma
determinação específica a ser colocada logo após o pronome relativo “que”. Neste
sentido, o ato de esperar fica condicionado e, portanto, limitado ao desejo do sujeito.
Há, aqui, a indicação da formulação de um objeto definido do desejo. Por outro lado,
a estrutura do “eu espero” suspende qualquer definição possível, fundando-se no
incondicionado e, portanto, permanecendo aberta ao insondável (mistério).
A abordagem da esperança enquanto experiência ontológica, conforme nosso
autor, deve fugir a dois extremos: o primeiro é caracterizado como uma “física da
esperança”, isto é, a partir de uma realidade puramente material; o outro é o de
assemelhá-la a um conteúdo essencialmente espiritual, o qual se pode dar conta por
meio de conceitos psicológicos. A esperança pertence, pois, ao campo do mistério,
e como tal distingue-se de qualquer redução ao simples otimismo, seja ele material
ou espiritual.

Há otimismos que pretendem apoiar-se somente sobre


considerações empíricas e há outros que pretendem, ao contrário,
repousar sobre argumentos metafísicos ou teológicos. Contudo,
inclinar-me-ia a pensar que essas diferenças são menos profundas
do que se poderia crer em princípio. Porém, de todo modo, o certo é
que o otimismo supõe sempre uma disposição, um habitus. Talvez
não exista otimismo profundo. (MARCEL, 1944, p. 51).

Marcel prefere falar de uma disposição, de um hábito do que propriamente um


“otimismo profundo” como aspecto fundamental da esperança em oposição à
superficialidade do otimismo acima “deflagrada”. Tal divergência fica mais evidente,
segundo ele, na investigação acerca daquele “eu” implicado no “eu espero” e a
relação do mesmo com o próximo. Segundo o filósofo, este “eu” poderá se
relacionar de duas maneiras com o próximo: como aliado ou como adversário. Ora,

104
como vimos, a atitude do “eu espero” permanece aberta à realidade misteriosa e,
consequentemente, a outrem, possibilitando uma aliança, uma participação. Por
outro lado, o otimista é aquele que se mantém aquém, alheio e, portanto, não
permite nada além de uma relação objetiva e superficial. Nesta perspectiva, “aquele
que diz eu espero, aparece-se a si mesmo implicado em um processo e imbricado
nas relações eu-próximo-mundo-encarnação. Desta maneira, o eu está numa
espécie de simbiose na postura de esperança” (AZEVEDO, 2018, p. 148)
Tendo visto alguns aspectos fundamentais que constituem a esperança, na
trilha do nosso autor, atentemos agora, um pouco mais, à natureza própria daquele
que é o campo desde o qual o fenômeno do esperar é possível: o desespero. O ato
de desesperar é relacionado por Marcel a certo tipo de rendição, é o ceder, ou
ainda, o “desfazer-se em presença [...] dessa situação” (MARCEL, 1944, p. 51), qual
seja, a situação de cativeiro. Vejamos:

Render, no sentido estrito do termo, não é somente, e talvez não é


em absoluto, aceitar a sentença emitida ou reconhecer o inevitável
como tal. É “declarar-se derrotado” na presença dessa sentença e
desse inevitável. É, no fundo, renunciar a seguir sendo o mesmo,
estar fascinado pela ideia da própria destruição até ao ponto de
antecipar-se lhe. Aceitar é, talvez, ao contrário, manter e manter-se,
quer dizer, salvaguardar a própria integridade. Não porque saiba que
estou condenado a não sanar desta enfermidade ou a não sair desta
prisão – abandonar-me-ei quer dizer: consentirei em ser desde já a
coisa de desprezo que faça de mim, no final das contas, minha
enfermidade ou meu cativeiro. À fascinação que ameaçaria exercer
sobre mim a imagem desta coisa, oponho ao contrário, a vontade de
ser o que sou. Assim, pode ser que, por sua aceitação de algo
inevitável, a cuja antecipação me recuso com todas as minhas
forças, encontre o meio de consolidar-me interiormente, de provar-
me a mim mesmo minha realidade e, ao mesmo tempo, de
transcender esse factum ante o qual me foi proibido fechar os olhos
(MARCEL, 1944, p. 51).

O fatalismo da rendição consiste, como vimos, na aceitação da sentença


imposta pela situação de cativeiro. A passividade e o conformismo são as marcas
essenciais desta rendição. A esperança, por sua vez, se apresenta como recusa
ativa e autêntica a este fatalismo. Em tal medida:

Ela (a esperança) é a negação de uma negação: mesmo se a


situação me parece sem saída, não me reconheço o direito de validar
essa aparência, de declarar que, pelo fato de a situação me parecer
105
tal, ela é, com efeito, e seguramente, desse modo. Declaro, pelo
contrário, que essa validação seria presunçosa. (MARCEL, 1951c, p.
75).

Nesta direção, a “não-rendição” autêntica pressupõe mais que a passividade


e resistência diante do sofrimento; ela exige um sair de si em direção a outrem.
Exigem uma disposição, ou melhor, uma disponibilidade à comunhão. O estereótipo
de uma “não-rendição” enrijecida ou, para usar os termos do filósofo, “crispada”, é o
estoico que, mesmo não cedendo diante dos sofrimentos, permanece em um
movimento solipsista, isto é, voltado a si mesmo, fechado a uma verdadeira
participação. A esperança, sob este aspecto, configura-se como uma “não-rendição”
ativa e participativa no mistério: ela pressupõe a aspiração pela participação, que se
dá, essencialmente, na intersubjetividade.
Marcel utiliza-se de uma metáfora a fim de melhor exemplificar a situação
existencial que se põe frente ao desespero e à esperança ao comparar a vida com
certo “ardor” ou “chama”:

Sobre esta chama, que é a vida, exerce-se propriamente a ação


maléfica do desespero. Poder-se-ia dizer também que o ardor
solubiliza o que sem ele chegaria a ser sempre impossibilidade de
existir. Está voltado até certa “matéria” do devir pessoal e tem por
função consumi-la. Ali, ao contrário, onde intervém o “malefício”,
essa chama se desvia da matéria que é seu alimento natural para
atacar-se a si mesmo. É o que se expressa admiravelmente quando
se diz que um ser se “consome”. Desde este ponto de vista, o
desespero pode ser assimilado a uma verdadeira autodevoração
espiritual. (MARCEL, 1944, p. 59).

Ora, a situação fundamentalmente humana enquanto ser encarnado, quando


não rendida à tentação do desespero, e ainda, quando vivida ao modo de uma
espera consciente e ativa, possui a força de fluidificar a existência e de projetá-la em
um nível de transcendência. A esperança, vivida em sua dimensão concreta recobre
o ardor vivencial, significando a existência. A entrega ao desespero, por sua vez, é
considerada como certa “autofagia”, isto é, um processo onde o ser se consome em
si mesmo, degradando-se em objeto.
A essa altura vemos, outra vez, emergir a categoria metafísica do tempo,
agora revestido pelo substantivo “paciência”. Se, por um lado, temos, a partir da
rigidez, certo medo diante da situação de cativeiro e, consequentemente, ao
106
fechamento em si mesmos, o que gera a impaciência, ao “[...] introduzirmos o dado
‘paciência’ na não-aceitação, aproximamo-nos prontamente da esperança”
(MARCEL, 1944, p. 52). Esperar pacientemente, eis aqui a configuração primordial
de um ser que se abre ao horizonte do mistério em sua profundidade e real
autenticidade. Sendo assim, entretanto, a paciência não deve ser resumida a uma
passividade diante dos acontecimentos da vida.

A paciência, em aparência e se somente se se consulta a etimologia,


é simplesmente um deixar fazer ou um deixar estar, porém, por
pouco que se leve adiante a análise, descobre-se que este deixar
fazer ou esse deixar estar, porque se situa além da indiferença e
porque implica um sutil respeito de duração ou da cadência vital
própria do outro, tende a exercer sobre este último uma ação
transformadora análoga à que, às vezes, recompensa a caridade.
(MARCEL, 1944, p. 54).

A inserção da categoria da temporalidade na situação de prova parece


evidenciar no sujeito uma nova postura diante da realidade, uma postura que foge
ao solipsismo egocêntrico e se projeta na superação do medo por meio de uma
abertura esperançosa e fluida em direção ao mistério do ser. Isto porque, conforme
afirma o próprio autor, “existe uma conexão secreta e raramente discernida entre a
maneira em que o eu se centra ou não sobre si mesmo – e sua reação à duração,
mais precisamente à temporalidade, quer dizer, ao fato de que no real haja lugar
para a troca” (MARCEL, 1944, p. 52). Nesse intercurso, avista ainda Marcel:

Tudo nos prepara, pois, para reconhecer que o desespero, em certo


sentido, é a consciência do tempo fechado ou, mais exatamente, do
tempo como prisão – enquanto que a esperança se apresenta como
aberta através do tempo. Ora, tudo tem lugar como se o tempo, em
lugar de fechar-se sobre a consciência, deixa passar algo através de
si. Desde este ponto de vista, pode-se destacar alguma vez o caráter
profético da esperança. Indubitavelmente não se pode dizer que a
esperança vê o que virá; porém, afirma “como” se o visse; pode-se
dizer que extrai sua autoridade de uma visão velada que lhe é dado
propor sem, no entanto, gozar dela. Poder-se-ia dizer também que,
se o tempo é, por essência, separação e uma perpétua disjunção de
um com respeito a si mesmo, a esperança tem, pelo contrário, a
reunião, o recolhimento, a reconciliação; isso, contudo, e somente
isso é como uma memória do futuro. (1944, p. 71).

107
Diante de tudo que se expôs até aqui sobre a noção de esperança e suas
estruturas básicas, segundo Gabriel Marcel, passamos agora a um ponto peculiar e
crucial para o entendimento da esperança: o fato de que “a esperança não é um
simples estimulante subjetivo” (MARCEL, 1944, p. 79), mas se projeta no campo da
intersubjetividade, haja vista que o “eu” que espera pressupõe sempre estar diante
de um tu. Nesta medida, afirma Marcel, a forma mais autêntica do “eu espero” é, na
realidade, esta: “eu tenho esperança em ti” (MARCEL, 1944, p. 54).

A esperança, com toda evidência, tem alcance não somente sobre o


que está em mim, sobre o que pertence ao domínio de minha vida
interior, senão especialmente sobre o que se apresenta como
independente de minha ação possível e singularmente de minha
ação sobre mim mesmo. Eu espero – o retorno do ausente, a derrota
do inimigo, a paz que devolverá ao meu país as liberdades das quais
foi despojado. Se for lícito dizê-lo, como se deu a entender acima, a
esperança é um poder de fluidificação. (MARCEL, 1944, p. 56).

Somente a abertura ao mistério e à comunhão são capazes de retirar o ser


humano da solidão e do desespero. Sendo assim, a noção de esperança encontra-
se intimamente ligada, em Marcel, à questão da liberdade e do amor. Isto porque o
anseio por libertação implica, necessariamente, a saída de um eu que se fecha em
si mesmo para acolher a plenitude existencial radicada no nós, isto é, na comunhão.
Estar aberto a uma disponibilidade de comunhão configura a espera paciente que,
por sua vez, comporta o desejo de libertação. Observa Marcel (1964, p. 190-191):

Noutros termos, a liberdade é uma conquista – sempre parcial,


sempre precária, sempre disputada. E não deixemos de observar
aqui em relação a toda a esperança, assim como eu tenho dito mais
acima, que é no seio de uma situação de cativeiro que a liberdade
pode nascer e isso, inicialmente, como aspiração em se libertar. No
entanto, o termo aspiração é equivocado. Ele pode corresponder a
um simples “eu gostaria muito”, que é separado por um abismo do
“eu quero”. Ora, temos visto justamente que a esperança é, em si
mesma, irredutível à aspiração, pois ela implica uma paciência, uma
vigilância, uma firmeza nos propósitos que não são compatíveis com
um simples “eu gostaria muito”. Dizer que o homem mais livre é
aquele que mais espera consiste, talvez, em marcar, antes de tudo,
que é o homem que tem dado a sua existência mais rica ou ainda o
desafio mais substancial.

Para além de todo e qualquer fundamento psicológico, e ainda, não reduzida


a qualquer sentimento otimista fundado seja no desejo ou na crença pessoal, a
108
esperança se arvora aqui desde uma perspectiva da intersubjetividade e, portanto,
assume-se claramente seu caráter metafísico e fenomenológico. Esperar é um
fenômeno que me põe em presença de um “tu” com a intencionalidade de ser para
um “nós”. “A esperança é, essencialmente, a disponibilidade da alma quando se
encontra intimamente engajada numa experiência de comunhão a fim de realizar o
ato transcendente à oposição do querer e do conhecer”, bem lembra Beato (2013, p.
82). A esfera do nós, entretanto, não é composta apenas por “dois”, isto é, dois “eus”
que estabelecem comunhão um com o outro. Ela supõe uma participação mais
ampla de uma “comunhão universal de um nós todos” (MARCEL, 1994, p. 80), que,
por sua vez, encontra um fundamento no Tu Absoluto.

Espero em ti para nós: tal é, talvez, a expressão mais adequada e


mais elaborada do ato que o verbo “esperar” traduz de maneira,
todavia, confusa e obscura. Em ti – para nós: entre esse tu e esse
nós, que somente a reflexão mais insistente chega a descobrir no ato
de esperança, qual é, pois, o laço vivo? Não há que responder que
Tu és, em certo modo, o fiador da unidade que me liga a mim
mesmo, ou melhor, um ao outro, ou ainda: uns aos outros? Mais que
um fiador que assegura ou confirma desde fora uma unidade já
constituída: o cimento mesmo que a fundamenta. (MARCEL, 1944, p.
81).

Esperar em um tu, tendo em vista um nós. Este aspecto intersubjetivo da


esperança pressupõe certo laço vivo de unidade. O que entra em jogo agora é outra
categoria ontológica: o amor. Para tanto, passemos, então, a uma breve explanação
deste outro modo de aproximação ao ser, em sua intima relação com a esperança e
como fundamento do próprio eu.

3.4.2 O Amor

Encontrando sua fonte na intersubjetividade e, portanto, na comunhão de um


“tu” para com outro “tu”, a esperança está implicada na noção de amor33, ou melhor,

33
Visamos aqui apenas retomar a noção, de forma breve, em um primeiro momento na mútua
implicação esperança-amor e, posteriormente, em seu aspecto fundacional do próprio ser nos
termos de um eu que, estando aberto a outrem cria um nós, comunhão participativa, através da
presença e da disponibilidade. A experiência do amor, por sua vez, encontra-se fundamentada em
uma Presença Absoluta de um amor divino que permite a participação.
109
amor e esperança são consubstanciais. Afirmará Marcel que “a esperança é um
protesto ditado pelo amor” (MARCEL, 1935, p. 115). Isto porque a esperança se
assenta e se dirige, como vimos, em uma comunhão incondicional.

Amar a um ser é esperar dele algo indefinível, imprevisível; é, por


sua vez, dar-lhe, de certo modo, o meio pelo qual poderá responder
a esta espera. Por paradoxal que possa parecer, esperar é, em certo
modo, dar; porém, o inverso não é menos verdadeiro: não esperar
mais é contribuir em ferir de esterilidade ao ser de quem já não se
espera nada; é, pois, de alguma maneira, privá-lo, retirar-lhe por
antecipação – o que é, exatamente, senão uma possibilidade de
inventar ou de criar? Tudo permite pensar que não se pode falar de
esperança senão onde existe interação entre o que dá e o que
recebe esta comutação que é o selo de toda vida espiritual.
(MARCEL, 1944, p. 66).

O amor, por sua vez, vive, se alimenta da esperança. Ela é “o estofo onde
nosso amor é produzido” (MARCEL, 1935, p. 117). Amar alguém, como afirmou o
filósofo, é estar aberto ao outro, via o ato de esperar, e esperar sempre o indefinível,
o imprevisível, esperar o outro mesmo em sua concretude real. Amar é um ato de
esperança que não apenas acolhe o outro, mas se dá ao outro na disponibilidade
como presença.

Presença significa mais que algo diferente do fato de estar aí; com
todo rigor, não se pode dizer de um objeto que ele está presente.
Digamos que na presença está sempre implícita uma experiência por
sua vez irredutível e confusa que é o sentimento mesmo de existir,
de estar no mundo. (MARCEL, 1944, p. 18).

Presença implica, portanto, aquela experiência ontológica que se dá na


intersubjetividade. Ser presente, no amor, significa estar disponível ao outro.
Pressupõe a abertura ontológica concreta. “O ser disponível é aquele capaz de ser
totalmente comigo enquanto preciso dele” (MARCEL, 1949, p. 83). Por conseguinte,
a indisponibilidade e a não presença constituem exatamente o oposto de uma
abertura a comunhão.

Vínculo entre a indisponibilidade – e, por conseguinte, da não


presença – e a preocupação por si. Há aqui uma espécie de mistério
e que aparece também, creio eu, em toda a teoria do tu. Quando

110
estou com um ser indisponível, tenho consciência de estar com
alguém para quem não existo; vejo-me rechaçado e, portanto, me
dobro em mim mesmo [...]. Deve-se perguntar, igualmente, se o tu,
como valor ou como realidade, não possui a função do que chamo
minha disponibilidade interior. (MARCEL, 1935, p. 105; 107).

Nesta perspectiva, a própria exclamação de si, o reconhecimento de nossa


própria identidade é possível a partir do amor. O fundamento do próprio “eu” reside
na presença amorosa de um “tu”. Em meio a essa experiência, “o amor implica a
libertação do eu, que, longe de pôr-se como essência, se põe como amante. O amor
surge como invocação, como chamado” (MARCEL, 1927, p. 150). Como afirma
ainda o filósofo: “o amor é o apelo de um eu ao outro eu” (MARCEL, 1927, p. 217).
O amor, enquanto disponibilidade configura-se numa saída de si mesmo em direção
a outrem. Ele se apresenta como uma decisão existencial por um “tu” desde uma
posição de negação egocêntrica de si mesmo e do outro enquanto outro em vista de
uma comunhão com um “tu”. Por isso mesmo, talvez a corrente expressão dos
enamorados “eu sou do meu amado” e “meu amado é meu”, tomada como prova
máxima da declaração amorosa, em Marcel, se converteria na expressão: “eu sou
para o meu amado”. Ser para o outro, como presença, e na disponibilidade é uma
forma única de abertura à comunhão. Como atesta o pensador:

A consciência plena e concreta de si mesmo não pode ser


egocêntrica; por paradoxal que resulte, direi ainda que deva ser
heterocêntrica; na realidade, unicamente podemos nos entendermo a
partir do outro ou dos outros e somente a partir deles, e inclusive,
poderíamos assinalar, antecipando-nos ao que teremos que
reconhecer mais adiante, que somente sob esta perspectiva se pode
conceber o legítimo amor. (MARCEL, 1951, p. 11-12).

Sendo uma experiência ontologicamente vivida, no mais profundo do ser, o


amor não pode ser entendido como passível de verificação, análise ou objetificação,
“pois, em tais processos, perde-se como tal, na sua globalidade e intencionalidade
vividas. É, por excelência, da ordem do mistério, já que é ‘no amor que melhor vejo
apagar-se a fronteira entre o em mim e o diante de mim’” (MARCEL, 1949, p. 59).
Antes, cada vez mais desejo me unir a ele. Quando amo alguém, mais participo de
sua existência, de sua vida, e consequentemente, me recuso com todas as forças a
tratá-lo como um objeto. Quanto mais o amo mais o afirmo como pessoa. E esta

111
afirmação assume uma dimensão que ultrapassa as categorias de espaço e tempo.
O amor, todavia, deseja sempre a eternidade. Esse anseio pela eternidade do ser
amado o vemos estampado na exclamação de Le mistère de l’être: foi et réalité:
“Amar um ser é dizer-lhe: Tu não morrerás jamais! Significa: há em ti, por que te
amo, porque te afirmo como ser, algo que me permite transpor o abismo disso que
chamo indistintamente a morte” (MARCEL, 1964, p. 62).

O amor não é um jogo de ilusões subjetivas, mas uma forma de


participação, é o encontro de duas liberdades num plano de
comunhão. Amar é participar do ser do outro; do contrário, é apenas
desejo. A participação é subjacente a toda relação amorosa.
(AZEVEDO, 2018, p. 161).

O amor é modo de aproximação ao ser porque se configura como resposta


para o chamado ontológico à participação por meio da intersubjetividade, na doação
a outrem. Se existe no homem uma sede de transcendência, um dos acessos à
fonte da experiência ontológica é a via do amor. Sob esta direção, segundo Marcel,
toda experiência viva de um amor substancialmente autêntico se encontra
sustentada em um Absoluto, ou melhor dizendo, em um Tu Absoluto:

Parece-me que não há amor humano digno de tal nome que não
constitua, aos olhos de quem o pensa, um compromisso e, por sua
vez, uma semente de imortalidade; de outra parte, não é possível
pensar este amor sem descobrir que se supera e transcende em
todos os sentidos; que exige, no fundo, para ser plenamente ele
mesmo, uma comunhão universal. Por nossa comunhão, espero a
indestrutibilidade, e a esperança resiste, aqui, a todo desalento com
a convicção de que se se admitisse como possível esta destruição,
trairia a fidelidade essencial que serve de laço à comunidade. A
Transcendência é o fundamento da relação intersubjetiva no plano
humano e o Tu Absoluto é a garantia e a realidade em que se
encontram os sujeitos humanos. (MARCEL, 1944, p. 200-201).

Marcel aprofunda acima a dimensão do amor em termos de compromisso, de


engajamento. Quem não se compromete ou não se engaja, não ama. O verdadeiro
gesto de fidelidade ao Tu Absoluto comporta ou sela esse comprometimento. Como
escreve Cortázar: “Um amor incondicional nos põe em contato com o Absoluto. E,
por sua vez, uma vez chegado ao Absoluto, se descobre que é justamente este

112
quem faz possível que um amor incondicional não somente se contrate, mas que se
mantenha” (2000, p. 102).
Ao mesmo tempo, é curioso o fato de que Gabriel Marcel não tenha dedicado
nenhuma obra específica sobre o amor. O tema, entretanto, aparece ao longo de
toda a sua obra de maneira bastante clara. Se poderia dizer ainda que mesmo as
entrelinhas de toda a obra de Marcel são perpassadas pela noção de amor, que é
tida pelo filósofo como “o dado ontológico essencial” (MARCEL, 1935, p. 244).

3.4.3 A Fidelidade

No tocante aos modos concretos de aproximação ao ser dispomos, em linhas


gerais, da esperança e do amor, percebendo que ambos se encontram intimamente
ligados. O “eu” que espera, no amor, perfaz uma experiência concreta de
transcendência da solidão e da angústia, que são faces do desespero. Tal
experiência só é possível desde um horizonte onde a intersubjetividade se
estabelece como participação no ser.
O que nos move agora é o estudo sobre um outro modo de aproximação ao
ser: a fidelidade. Em verdade, a fidelidade não está posta separadamente da
esperança e do amor, mas se encontra implicada com esses outros dois acessos
concretos ao ser. É o que bem explicita a interpretação de Beato (2013, p. 73):

Respondendo a um apelo do mais fundo da existência, emergem o


amor e a esperança. Feitos de afetividade, vontade e inteligência,
tecidos de fidelidade criadora, estas são as verdadeiras experiências
humanas de peso ontológico. São experiências de transcendência
insertas no cerne da existência ao mesmo tempo em que são o
tecido real do ser.

Sobre a importância da fidelidade no processo de engajamento existencial e


resgate de uma experiência ontológica, afirma Marcel:

Talvez, no plano do ontológico, a fidelidade se torna o que mais


importa. Ela é, com efeito, o reconhecimento, não teórico ou verbal,
mas efetivo, de um certo permanente ontológico, de um permanente
que dura e em face ao qual nós duramos, de um permanente que

113
implica ou exige uma história, por oposição à permanência inerte ou
formal de um puro válido, de uma lei. (MARCEL, 1935, p. 173-174).

Eis porque o ser é, segundo Marcel, o “lugar da fidelidade (MARCEL, 1935, p.


55). Além disto, a fidelidade se configura com a duração. Ela é o triunfo sobre a
contingência temporal por meio de uma presença intersubjetiva (co-existência) que
se dá na comunhão ontológica estruturada no amor. Estando ela estabelecida na
temporalidade, e ao mesmo tempo transcendendo o próprio tempo, haja vista que
esta fundada no ser e não nas circunstâncias psicológicas de um “eu puro”, a atitude
fiel possibilita ao humano um movimento de superação temporal, se tornando assim,
horizonte de imortalidade. “A fidelidade, apreendida na sua essência metafísica, é o
único meio de que dispomos para triunfar eficazmente do tempo” (MARCEL, 1940,
p. 192).
O ato de fidelidade implica um engajamento concreto no ser. Ela mesma é,
em verdade, este engajamento no ser, pelo qual o “eu” concreto deposita seu
próprio ser, sua esperança e seu amor. Não há possibilidade de abstração no ato de
fidelidade assim compreendido. Sendo um ato concreto de um eu concreto a
fidelidade não pode ser confundida com uma disposição psicológica ou sentimental;
tampouco é um simples desejo de ser constante. “A fidelidade é a presença
ativamente perpetuada; é a renovação do benefício da presença, de sua virtude, que
consiste em ser um convite misterioso a crer” (MARCEL, 1949, p. 79). Ser fiel requer
uma atitude de abertura e entrega a um ser; expressão, pois, da concretude de uma
promessa, de um compromisso assumido. Assim, a fidelidade “como perpetuação de
uma presença de ser a ser e de um testemunho, joga-se no plano da
intersubjetividade” (MARCEL, 2013, p. 73).
O fundamento estrutural da fidelidade estabelece suas bases na adesão por
meio de um compromisso feito com um ser concreto no qual me uno,
indissociavelmente, pelo amor, e nunca a uma ideia ou ideologia. Não é uma
confirmação de um contrato social. Ao me comprometer com outrem, num ato
intersubjetivo e amoroso, esperançoso e fiel, me empenho numa perspectiva de
futuro que me convoca a ser fiel a mim mesmo, antes de tudo, a fim de ser fiel a
outrem.
Ademais, a fidelidade emerge diante daquela mesma circunstância de
provação na qual o eu se vê tentado ao desespero, à solidão e à angústia, enfim, ao
114
não ser. Frente à situação de prova existe a possibilidade da traição, da negligência
e do esquecimento. A fidelidade é uma convocação a um engajamento existencial, a
um empenho efetivo pelo estabelecimento de um vínculo profundo e autêntico com
outrem.

Simplificando bastante, e creio que sem falsear o essencial, diria, por


uma parte, que a fé se aclarou para mim a partir do momento em que
pensei diretamente a fidelidade e, por outra, que a fidelidade se
aclarou ante meus olhos a partir do tu, a partir da presença
interpretada ela mesma em função do tu. (MARCEL, 1940, p. 194)

Neste sentido, a esperança, o amor e a fidelidade se apresentam como as


marcas fundamentais de uma experiência concreta do mistério. Trata-se de uma
experiência assumida e vivida em sua mais profunda dinamicidade no seio da
intersubjetividade que é, em Marcel, o núcleo do ontológico. Nesta perspectiva, a
encarnação, realidade existencial concreta, numa experiência de transcendência,
pelas vias da esperança, do amor e da fidelidade, se configura como co-existência.

115
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Eis que chegamos ao término deste trabalho, ao longo do qual se buscou


investigar, via obra de Gabriel Marcel, o tema da existência humana numa
perspectiva de transcendência radicada em uma experiência do mistério. O que
move toda a filosofia de Marcel, como vimos, é a pergunta pelo ser. A filosofia do
pensador parisiense está firmada em um questionamento ontológico que toma por
fundamento o dado da encarnação como esfera central da metafísica. Nessa
medida, o existir humano se transcende na expressão máxima de uma experiência
viva, que acaba por melhor revelar o sentido último do homem, do mundo, enfim, da
vida.
Na trilha de Marcel, buscamos desenvolver os capítulos na seguinte direção:
partindo da reconstituição, dentro da tradição filosófica, da noção clássica de corpo
que se orientou sempre na direção de preterir o corpo a um aspecto secundário e
obscuro do verdadeiro ser, e se consolidou, na modernidade, na ideia de corpo-
objeto (Körper) ou, como Marcel denominará, o corpo-servidor. Posteriormente, na
investigação acerca da díade terminológica “problema” e “mistério” adentramos a
crítica do filósofo dirigida de maneira particular ao idealismo, precisamente quanto
ao fato dessa corrente filosófica pretender, intuitiva (Descartes, Kant) ou
dialeticamente (Hegel) abstrair o ser em termos de um problema. Nesta mesma
direção, diante de outra terminologia dual do autor, a saber, “ter” e “ser”,
diagnosticamos uma crise existencial humana. Neste momento, encontramo-nos
frente à ideia de um “mundo partido”, esfacelado pela técnica e pelo acento
programático da ciência nas relações humanas, onde o humano, pela
supervalorização da posse (ter) acabou perdendo o sentido da própria existência
(ser).
O caminho circunscrito até aqui teve a pretensão de apresentar um “quadro
sintomático” que permitisse uma compreensão mais clara dos temas subsequentes:
da posição marceliana acerca da existência, da transcendência e da
intersubjetividade. Em outras palavras, as disposições prévias sobre a concepção
clássica do corpo, a distinção entre “problema” e “mistério” e a diferença entre “ser” e

116
“ter” visaram servir como uma introdução, ao modo de um preâmbulo, no intuito de
melhor situar o leitor.
Neste seguimento, adentramos a proposta fenomenológico-existencial de
Marcel que consiste, em suma, na afirmação do corpo como um fenômeno, ou, se
quiser, como um ser de mistério, por meio do qual se participa, via um sentir
originário, do mundo e de outrem numa mesma comunhão ontológica. Há, no
coração do homem, uma necessidade de transcendência, ou melhor, uma exigência
de transcendência que só pode ser satisfeita a partir de um mergulho livre e radical
na existência como mistério. A liberdade figura-se aqui não como condenação, mas
como condição de possibilidade para a abertura de sentido, uma aproximação
concreta ao ser.
Existir, como vimos, não é um ato solipsista, uma descoberta individual de um
eu que se percebe a si mesmo como fundamento da própria existência. Existir é,
conforme Marcel, co-existir. Destarte a existência está perpassada pela
intersubjetividade. A noção da intersubjetividade repousa sobre a fundação de uma
existência compartilhada, como expressão comunitária, o ágape do amor fraterno.
Outrem é carne da minha carne, participante da mesma indubitabilidade existencial
que eu como “prolongamento do meu ser”.
O fato de que o “eu” esteja implicado em uma mesma realidade existencial
que outrem não garante, entretanto, uma relação autêntica entre ambos. Surge
então a noção de relação dialógica, isto é, a minha relação com outrem se permeia
no diálogo que com ele estabeleço. Tal comunicação pode se dar em um nível de
tratamento de um “eu-ele” ou “eu-tu”. A primeira é uma relação impessoal, deveras
objetiva, pertencente ao âmbito do problemático. A segunda, por sua vez, pressupõe
uma abertura existencial que se concretiza em comunhão no ser, pelo amor.
Já o terceiro capítulo se encerra, então, com o levantamento de um tema que
emerge das concepções da encarnação e da intersubjetividade: o da comunhão
ontológica. Tomada nos termos de uma participação de mistério, ela se estabelece
como acesso ao mistério do ser por meio de aproximações concretas, dentre as
quais, se destacam as principais: esperança, amor e fidelidade. Diante do fato de
sua finitude, o homem é chamado a transcender, por meio da abertura ao amor e à
fidelidade, superando o desespero pela esperança.

117
Eis porque, ao apontar os limites da tradição metafísica, Marcel nos indica o
exercício concreto da filosofia como aproximação ao mistério do ser. Ao articular seu
pensamento desde o dado encarnado torna possível a compreensão do
reconhecimento do sujeito como existente a partir de um movimento de participação
ontológica como presença e comunhão. Nesse sentido, o mergulho livre por meio da
vivência da esperança, do amor e da fidelidade a outrem são capazes de
estabelecer uma profunda relação de intersubjetividade que levam à restituição da
experiência ontológica propriamente humana. E a concretude desta experiência é
justamente esta: o fato de que a existência não pode ser objetificada, abstraída,
mas, antes, vivida como mistério de participação.
Partindo da existência concreta, ele propõe o dado da encarnação como
ponto de partida de toda a reflexão filosófica. Com isso, o filósofo pretende resgatar
o sentido próprio da existência humana que fora perdido pelo racionalismo e
cientificismo, na medida em que estes ora tratam as ideias e o próprio homem de
forma abstrata e impessoal, fugindo da realidade mesma da existência, ora fazem do
homem e de suas relações meros objetos desprovidos de todo e qualquer sentido.
Sendo assim, pensar a realidade humana em sua existência concreta, se traduz na
tarefa que implica em restituir, em certa medida, ao próprio homem, o sentido próprio
de seu existir, a saber: que é ser encarnado, e que, pela fidelidade e o amor,
vincula-se aos outros e ao mundo e ao transcendente, comprometendo-se de forma
pessoal e completa.
Tais são, em suma, as veredas existenciais percorridas na companhia de
Marcel. Ao termo desta estrada, talvez o sentimento que advenha não seja o de
encontrar um destino definitivamente alcançado, mas de modo inverso, um lugar de
partida. Um lugar desde o qual se vê descortinar no horizonte um sem número de
caminhos de possibilidade abertos do que propriamente conclusões. Acredito ser
essa a função essencial da Filosofia. E Marcel a desempenhou com maestria.
Ler Gabriel Marcel é refazer a experiência de uma filosofia inacabada. Não no
sentido de que seja ela incompleta, mas, sim em acercar ou aproximar
concretamente com um pensamento vivo, itinerante, que se inventa e reinventa ao
longo das páginas. Ler Gabriel Marcel é mais que simplesmente ler. O estudo de
suas obras nos instiga, nos interpela, nos desafia a dialogar com ele e a partir dele,
nos incita, enfim, a filosofar. Nesta perspectiva, este momento derradeiro do nosso
118
trabalho não se estrutura como um fechamento. Para além de pretender esgotar um
pensamento que se propôs desde sempre assistemático e itinerante, a presente
dissertação se tenciona na direção de uma abertura, uma via de acesso a um
pensamento realmente vivo.
Não nos ativemos, ao longo do trabalho, a desenvolver uma postura mais
crítica, estabelecendo os contrapontos ao pensamento de Marcel. Isso porque nossa
busca concentrou esforços na construção de um caminho metodológico que
tornasse possível a compreensão das principais ideias do filósofo no tocante ao
tema da encarnação e da transcendência. Entretanto, como a filosofia se faz
justamente onde há a possibilidade do erro e da controvérsia, há que se levar em
conta ainda, ao menos uma consideração a ser feita neste sentido. E a nossa
observação crítica coaduna-se com o apontamento feito por Paul Ricœur (1947, p.
153-154):

Em minha opinião, falta a esse tipo de pensamento [o de Marcel]


uma reflexão positiva sobre o sentido da técnica e da necessidade
histórica que ela cria, e uma reflexão positiva sobre o sentido do
direito e dos quadros abstratos de toda intuição humana [...]. Não me
parece que se possam levar a sério as exigências do Eterno, nem
que a fidelidade a esse Eterno possa ser verdadeiramente criadora
se não se compreende nem se assume o movimento da história [...].
Seria de desejar que o profetismo da filosofia da existência se
acompanhasse de uma vontade intransigente de sempre encarnar o
espírito no contexto real do tempo presente.

Ao longo de seus escritos, conferências e pronunciamentos, Marcel mostrou


certa aversão à ciência, no sentido, é claro de sua ideologização, como cientificismo,
como se tornou evidente ao longo desta dissertação. Trata-se de um olhar um tanto
quanto depreciativo acerca da técnica e da própria história. O que Ricœur faz notar
na passagem acima é certa lacuna no pensamento de Gabriel Marcel. Segundo
Ricœur, deve-se levar em conta que há algo de realmente positivo na construção do
conhecimento técnico, com base na abstração, e nas próprias circunstâncias
históricas dele advindas. Junto com isso, não se pode esquecer que Marcel, no
plano da política, se mostra um crítico contumaz do marxismo e, no interior da
psicologia, da psicanálise, cujos domínios carecem ainda um estudo mais detido em
futuras pesquisas.

119
Por outra parte, o pensamento de Marcel se mostra muito atual. Ao dissertar
sobre a situação de esfacelamento do mundo frente à técnica, de um vazio
ontológico gerado pela adoção do problemático como mote programático da vivência
existencial, o filósofo parece fazer um “raio-x” da sociedade hodierna. É certo que
essas características estavam já presentes no contexto sociocultural da época de
Marcel. Mas é fato também que se mostram agora, na contemporaneidade. Talvez,
de certa maneira mais velada, menos evidente que no período vivido por ele.
Entretanto, como não pensar em toda a teoria marceliana frente à insurreição de
governos e ideologias do mais alto nível totalitário como temos presenciado nos
últimos anos? Ou ainda, diante do mau uso das novas tecnologias, criadas, muitas
vezes, no intuito de aproximar as pessoas, criar laços, mas que acabam por separar,
dividir, distanciar-nos uns dos outros, permitindo todo tipo de absurdos por meio das
falsas notícias disseminadas, que ganham força frente à impessoalidade das telas.
Como, ainda, não pensar na necessidade urgente de uma proclamação livre de
esperança, pela fidelidade e no amor, fundada na intersubjetividade? Vemos que o
brado marceliano de uma exigência de transcendência continua urgente:

Temos que proclamar que não pertencemos inteiramente a esse


mundo de coisas ao qual se pretende assimilar-nos, no qual se
esforça em nos encarcerar. Muito concretamente temos que
proclamar que essa vida-aqui, da qual se tornou tecnicamente
possível de fazer a dissimulante e hedionda paródia de tudo o que
veneramos, pode ser, na realidade, apenas um setor insignificante de
um desenvolvimento que se prolonga para além do visível.
(MARCEL, 1951d, p. 23).

Em suma, a encarnação, vivida no concreto de uma participação ontológica,


perpassada por uma metafísica da esperança, do amor e da fidelidade criadora,
numa experiência de transcendência, é a única capaz de resgatar ao ser humano
um significado mais profundo de sua existência, retirando-o do vazio causado por
um mundo partido. É nesta perspectiva que “encarnação e transcendência” se
tornam um “mistério de co-existência”.

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REFERÊNCIAS

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