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O campo lacaniano e o Desejo

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ensaios

O Campo Lacaniano e o desejo


Ronaldo Torres

Inicio este texto ratificando a pertinência do relançamento da questão sobre o


desejo que a Internacional dos Fóruns do Campo Lacaniano propôs para o traba-
lho no biênio 2013/14. Retomar o tema do desejo, esse termo fundador da expe-
riência psicanalítica desde Freud, não parece algo que se possa fazer com trivia-
lidade. Basta ver, rapidamente, como isso se apresentou de forma pouco simples
desde o título dado ao Encontro Nacional de 2013 (Belo Horizonte) dos Fóruns
do Campo Lacaniano no Brasil: “A causa do desejo e suas errâncias”. Por um lado,
causa e por outro, errância. Causa e errância, mesmo que ambos relativos ao de-
sejo, não são termos que possam se confundir, embora guardem relações entre si.
Mais que isso, parece-me que entre a errância e a causa encontramos as coorde-
nadas de um longo percurso que Lacan fez trilhar a noção de desejo, sempre em
observação da clínica e sua direção, mas não só, pois também ocupado em sus-
tentar a Psicanálise no mundo através de seu próprio discurso. Ou, poderíamos
dizer, de forma mais afeita à nossa questão atual, sustentar a psicanálise com base
no endereçamento que sua prática dá ao desejo. É esta vertente de sustentação da
Psicanálise baseada em seu discurso que orienta o recorte que farei neste traba-
lho, buscando tratar mais detidamente a dimensão do laço que se liga de algumas
maneiras à noção de desejo.
Lacan trouxe avanços sensíveis sobre a estrutura do desejo que soube ler e resgatar
em Freud. Lembremos que foi Freud quem fundou o desejo partindo de sua estrutura
errante, marcada desde a experiência original com o Outro pela perda de objeto. Essa
estrutura do inconsciente e o sujeito que é seu efeito são as formas de relação com a
lei do desejo, essa lei que é a mesma do significante. Formas de relação que partem
do desejo, mas que também se marcam como estratégias de negação da castração.
Em determinado ponto importante de seu ensino, Lacan pôde formalizar como
é a estrutura da fantasia que vem responder à castração do Outro através de uma
montagem entre sujeito e objeto a, tomado enquanto objeto real da pulsão. Foi ba-
seado nessa formalização que Lacan pôde propor a direção da cura pela travessia
da fantasia, ato psicanalítico.
O ato psicanalítico é correlato ao desejo do psicanalista. Um ato contrário à
determinação do universal da estrutura simbólica, ao universal da lei, o que lhe
dá contornos de uma margem de liberdade próxima ao real; causa. Assim, temos a
errância derivada da lei e a causa enquanto ato. Neste sentido o ato seria o aconte-

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TORRES, Ronaldo

cimento de uma singularidade, ato de criação, causa de desejo. A estrutura do dis-


curso do analista, proposta por Lacan parece demonstrar como tal singularidade
pode ser encontrada no objeto a em função de causa como agente do discurso,
articulado à escrita do furo no saber que o sustenta:

impossível
a $
S2 S1
Fig. 1: Discurso do analista

Pois trata-se, fundamentalmente, de uma escrita singular, uma resposta que pode
se dar a cada vez a não relação sexual com a qual se consentiu operar na estrutura.
Mas se isso configura um laço social, um laço que, por exemplo, sustenta uma
análise, é porque se trata de um laço que implica transmissão. “O que se transmite
em uma cura psicanalítica? A história do movimento psicanalítico o demonstra
claramente: o que se transmite em uma cura psicanalítica é a própria psicanálise”
(NOMINÉ, 2012, p. 223). Poderíamos desdobrar a afirmação do autor dizendo
que o que se transmite é o discurso do analista. Todavia, que haja transmissão
e singularidade no ato psicanalítico, conforma um paradoxo que só se observa
no discurso do analista. Pois a genealogia que se pode ver presente na transmis-
são relativa ao discurso do mestre, transmissão pela via do Nome-do-Pai, em sua
vertente de comando de gozo, que é transmissão de uma alienação própria à lin-
guagem, não acontece na transmissão relativa ao discurso do analista. O que a
Psicanálise transmite é sua estrutura de discurso, uma transmissão interessante,
porque não é possível a ela se alienar nem sob a vertente positiva, nem negativa.
Positivamente, porque o ato que atesta sua transmissão, o ato psicanalítico, é um
ato de ruptura com a alienação. E negativamente, porque sua estrutura não ofe-
rece nada a que se possa se alienar. A hiância, o furo no saber, base da função de
causa marcada pela escrita do S1 no lugar da produção, não se oferece, por sua
estrutura, à alienação. Daí que o ato de final de análise seja um ato de ruptura
com o Outro. Ato de solidão absoluta, mas que inaugura uma modalidade de laço
social. Uma modalidade de laço social que não se estrutura por Um conjunto.
Nem do Um da unificação (do universal como totalidade), nem do Um da unici-
dade (que funda o universal, o discurso do universo, pela via da repetição), mas
do Um enquanto escrita da borda do furo no saber que faz litoral entre centro e
ausência (LACAN, 1971/2003).
Lacan quis insistir no fato de que o discurso do analista transmite algo, o que

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é também afirmar e procurar as razões dos efeitos desse discurso. O ato psicana-
lítico, enquanto passagem de analisante a analista, levou-o a formalizar um laço
social afeito à Psicanálise e isso dirigiu a maneira pela qual quis que sua Escola
se orientasse. Indagar-se sobre o que é uma escola de psicanalistas é também se
perguntar o que é o laço social do discurso do analista, é colocar à prova o acon-
tecimento de tal liame. É a partir dessa aposta que Lacan pretendeu fazer girar
a Escola em torno do Passe e do Cartel na Proposição de 9 de outubro de 1967
(LACAN, 1967/2003). Tentar desenhar a borda sem garantias, como pôde fazer
com seu ato contingencialmente. É assim que ele retoma o ato e o discurso, ou
seja, o Ato de Fundação (1964) no Discurso na Escola Freudiana de Paris (LACAN,
1970a/2003, p. 267): 1

Mas se de fato estive só, sozinho ao fundar a Escola, tal como, ao enunciar
esse ato, eu disse com audácia – “tão sozinho quanto sempre estive em minha
relação com a causa psicanalítica” –, ter-me-ei nisso acreditado o único? Eu já
não o era, a partir do momento em que um ao menos me seguisse o passo... Com
todos vocês naquilo que faço sozinho, haverei eu de me afirmar isolado? Que tem
esse passo, por ser dado sozinho, a ver com o ser o único, que se acredita ser ao
segui-lo? Não me fiei eu na experiência analítica, isto é, naquilo que me chega
de quem com ela se virou sozinho? Acreditasse eu ser o único a tê-la, nesse caso,
para quem falaria? Antes, é por alguém ter a boca cheia da escuta, sendo a sua
única, o que vez por outra serviria de mordaça. Não existe homossemia entre o
“único” [Le seul] e “sozinho” [seul]. Minha solidão foi justamente aquilo a que
renunciei ao fundar a Escola, e que tem ela a ver com aquela em que se sustenta o
ato psicanalítico senão poder dispor de sua relação com este ato?

Trata-se então, na aposta, daquilo que Lacan formulará logo depois como dizer
do discurso do analista. Tal dizer ganha formalização mais precisa com as fór-
mulas da sexuação com as quais não trabalharemos aqui. Mas é partindo delas
que Lacan consegue formular aquilo que denomina como campo do uniano. O
uniano não se relaciona ao um da unificação ou da unicidade. Trata-se de uma
forma de dizer aquilo que indica o bífido do gozo. O campo que Lacan desejou
que fosse lacaniano. O campo do uniano se coloca pela não relação sexual entre
os uns contáveis e o gozo que resta não contável, mas que pode ser cingido. É isso
que separa o dito do dizer e que faz que este último esteja ligado ao que Lacan

1 O Discurso... foi redigido em dezembro de 1967, porém publicado em 1970, ampliado por um
comentário. Faremos sua citação como de 1970, mas devemos guardar que ele é contemporâneo
à Proposição...

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TORRES, Ronaldo

formula como “Y a d’l’un”, algo que não pode ser assimilado ao um da unificação
(da totalização) e nem ao um do contável, dos ditos, mas que pode se dizer a partir
da transmissão. Colette Soler diz que “Lacan o nomeia [o traço unário] de o Um da
repetição. Ele insistiu em dizer que se trata do Um contável e daí advém o porquê
Lacan recorreu aos problemas do incontável e a Cantor” (SOLER, 2011, p. 18). E logo
depois neste texto diz que o um da repetição se distingue do um da totalidade e do
“Um do ‘Y a d’l’un’ no sentido do um Um-dizer, do falasser” (SOLER, 2011, p. 18).
A estrutura do campo lacaniano é, portanto, a estrutura do campo do gozo.
Tomar o gozo como campo é uma passagem cujo fundamento é lógico, mas que
também carrega importantes implicações éticas. Entendo que houve um esforço
de Lacan em demonstrar como tal campo se constitui por uma não proporção
lógica. Portanto, não se trata de uma espécie de campo que é preenchido por algo
que se chama gozo, mas, antes, de que a lógica que o gozo implica na sua não
univocidade constitui o próprio campo. A dimensão deste campo para Lacan é
aberta por seu ato psicanalítico. Todavia isso não foi o bastante. Pois restava a
Lacan construir a lógica do discurso para dar lugar ao ato que revela tal não-uni-
vocidade do gozo. Assim, o discurso do analista, que sustenta o ato psicanalítico,
é o único discurso no qual o impossível, que se coloca para os quatro discursos,
evidencia-se a partir de sua dominante, o objeto a. Com a teoria dos discursos,
Lacan acabou por estabelecer uma estrutura que porta o real, mas que, ao mesmo
tempo, possibilita formas distintas de relação com este impossível. Isso, segundo
a maneira como entendo, faz que o campo do gozo fundamentado em uma lógica
se revele, também, um campo de prática ética. Pois os discursos referem formas
distintas de montagem em relação ao gozo.
Fica evidente que o terreno primordial sobre o qual esta questão incide é a pró-
pria experiência psicanalítica; o analista sustenta a direção da cura por seu ato,
pela estrutura do discurso do analista. Isso coloca no centro da questão a inter-
pretação. Mas não é apenas sobre a clínica que as implicações éticas da lógica do
discurso se manifestam. Devemos retomar que uma das questões que a teoria
do ato psicanalítico de Lacan lhe deixou caminhava no sentido de indagar o que
seria uma ética do laço social para além da realidade posta pela fantasia, para
além, podemos dizer, do discurso do mestre. Pois como ele afirma em Radiofonia:
“No discurso do mestre, é o mais-de-gozar que só satisfaz o sujeito ao sustentar a
realidade unicamente pela fantasia” (LACAN, 1970b/2003, p. 445).
Que as coletivizações não escapem ao empuxo do Um, esse Um da unificação
que promete a relação sexual, que se lança pelo semblante de S1 como exceção,
mas que se sustenta naquilo de fantasia que se repete nos ditos dos uns contáveis
ao infinito, disso temos experiências suficientes. Porém, nossa experiência tam-
bém nos dá provas de que o laço social não se sustenta exclusivamente por tal for-

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ma discursiva. A causa como furo do desejo, digo, o desejo enquanto furo, aquilo
que Lacan buscou transmitir, dizer, com o desejo do discurso do analista, desejo
de analista, ou também, transferência de trabalho, ato do psicanalista e outras
invenções, está aí no coração de nossa experiência para se dizer.
Entendo que Lacan, ao propor os pilares de sustentação de sua Escola baseado
nos dispositivos do Passe e do Cartel, tenha indicado uma aposta radical na forma
do laço social concernente ao discurso do analista. Pois não é que tais dispositivos
sejam apenas formalizados por Lacan com base em uma estrutura que não dá
lugar ao mestre e à fantasia; mas antes, que eles são propostos para que, a cada
vez, o impossível do real possa se colocar como tal, verificando ou não o ato do
psicanalista, ou seja, a destituição subjetiva e a travessia da fantasia. Daí a dimen-
são radical de aposta; uma sustentação de um campo a partir deste tipo de aposta
diante da qual não há “valor verdade” verdadeiro, ou seja, uma aposta que tem
o indecidível, quanto à verdade, em seu horizonte. Isso marca o campo do real
assimilado a esta aposta. “Donde eu haver designado por Passe essa verificação da
historisterização da análise, abstendo-me de impor este passe a todos, porque não
há todos no caso, mas esparsos dispatados. Deixo-o à disposição daqueles que se
arriscam a testemunhar da melhor maneira possível sobre a verdade mentirosa”
(LACAN, 1976/2003, p. 569).
Entendo que a transmissão concernente à Psicanálise seja, na realidade, a forma
de apresentação do próprio laço social no qual o discurso do analista se sustenta.
Se Lacan se referiu aos seus esforços relativos à lógica e à matemática para pro-
por uma transmissão integral assimilada à Psicanálise (LACAN, 1972-73/1985,
p. 161), foi porque fez equivocar este integral como campo do gozo, ou seja, a
transmissão do discurso do analista se transmite integralmente, porque é a trans-
missão que se faz com o furo que Lacan denomina como impossível. É com base
nisso que devemos retomar o que seja o desejo do analista.

referências bibliográficas
LACAN, J. (1967). Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da
Escola. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003. pp. 248-264.
__________. (1970a). Discurso na Escola Freudina de Paris. In: Outros escritos.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003. pp. 265-287.
__________. (1970b). Radiofonia. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2003, pp. 400-447.
__________. (1971). Lituraterra. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2003, pp. 15-25.

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TORRES, Ronaldo

__________. (1972-73). O Seminário, livro 20: mais ainda. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 1985.
__________. (1976). Prefácio à edição inglesa do Seminário 11. In: Outros escri-
tos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003, pp. 567-569.
NOMINÉ, B. A transmissão da psicanálise. Livro Zero: revista de psicanálise, 3,
pp. 223-233, 2012.
SOLER, C. Repetição e sintoma. Stylus: revista de psicanálise, 23, pp. 15-33, 2011.

resumo
O trabalho parte das diferenças entre errância e causa do desejo. Indica como o
percurso de Lacan caminha no sentido de propor a causa enquanto ruptura com
a lei do desejo e de como isso convoca ao ato psicanalítico enquanto resposta, tra-
vessia, de uma forma de gozo. Em seguida, toma a teoria dos discursos como um
primeiro movimento de Lacan para abordar formas particulares de gozo, a par-
tir dos laços que os discursos estabelecem, formando aquilo que designou como
campo lacaniano. Há que se pensar sobre o estatuto do desejo afeito ao passe do
ato e ao giro para o discurso do analista. Isso tem implicações diretas para a ex-
periência clínica, mas não só. Diz também respeito à forma como Lacan decidiu
apostar em sua Escola como lugar para se pôr à prova um laço tão específico como
esse que se lança a partir do ato psicanalítico. A causa como furo do desejo, quer
dizer, o desejo enquanto furo, aquilo que Lacan buscou transmitir, dizer, com o
desejo do discurso do analista, desejo de analista, ou também, transferência de
trabalho, ato do psicanalista e outras invenções, está aí no coração de nossa expe-
riência para se dizer, transmitir.

palavras-chave
Desejo, causa, discurso do analista, laço social, transmissão.

abstract
The article indicates the difference between wandering and cause relating to de-
sire. Lacan proposes the cause as rupture of law of desire and states the psychoa-
nalytic act as a traverse of a form of jouissance. Then, takes the Lacan’s theory of
discourse as a first movement to address particular forms of jouissance, from the
bonds that discourses establish, forming what he termed as Lacanian field. We
must think about the status of desire after the psychoanalytic act or the turn to
the discourse of the analyst. This has direct implications for clinical experience,
but not only. Also relates to how Lacan decided to bet in your School as a place to
proof for such a specific bond like this comming from the psychoanalytic act. The
cause of desire as a hole, what Lacan sought to convey as desire of the discourse of

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O Campo Lacaniano e o desejo

the analyst, desire of analyst, or also, transference of work, psychoanalytic act and
other inventions of terms, is where the heart of our experience to say, to transmit.

keywords
Desire, cause, discourse of analyst, social bond, transmission.

recebido
07/02/2014

aprovado
10/04/2014

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