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Diaspora

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Diáspora

INSTITUTO FEDERAL SUL-RIO-GRANDENSE

Reitor
Flávio Luis Barbosa Nunes
Vice-Reitora
Veridiana Krolow Bosenbecker

EDITORA IFSUL
Editor Executivo
Vinícius Martins

Conselho Editorial
Vinícius Martins (Presidente)
Alessandra Cristina Santos Akkari Munhoz
Aline Jaime Leal
Daniel Ricardo Arsand
Elisabeth Tempel Stumpf
Gilnei Oleiro Corrêa
Glaucius Décio Duarte
Klaus Boesch
Mariana Jantsch de Souza
Nei Jairo Fonseca dos Santos Junior
Rodrigo Kohn Cardoso

Editora IFSul

Rua Gonçalves Chaves, 3218 – 5º andar – sala 509


96015-560 – Pelotas – RS
Fone: (53) 3026.6094
editoraifsul@ifsul.edu.br
http://omp.ifsul.edu.br
Edilaine Vieira Lopes
Gilberto dos Santos
Keli Ruas
Valter Lenine Fernandes
(Organizadores)

Diáspora

2024
© 2024 Editora IFSul

Este livro está sob a licença Creative Commons (br.creativecommons.org), que segue o
princípio do acesso público à informação. O livro pode ser compartilhado desde que
atribuídos os devidos créditos de autoria. Não é permitida nenhuma forma de alteração ou
a sua utilização para fins comerciais.

Coordenaçao editorial: Glaucius Décio Duarte


Capa, arte e projeto grafico: José H. S. Fernandes
Curadoria editorial: Edilaine Vieira Lopes
Revisao textual: Keli Ruas e Gilberto dos Santos
Diagramaçao final: Carla Rosani Silva Fiori

Este livro segue o novo Acordo Ortografico da Língua Portuguesa.


Sumário

Prólogo ........................................................................................ 13
Prefácio ....................................................................................... 15
Biografia de Guilherme da Silva Xavier ........................................ 18
Apresentação ............................................................................ 21
Biografia de Marta Helena Blank Tessmann .............................. 23
Pele Negra .................................................................................. 25
Biografia de Natália Pagot ................................................................. 27
1. Sob o jugo da escravidão: apontamentos sobre a
população cativa na montagem do complexo
açucareiro de Campinas/SP ............................................ 31
Biografia de Carlos Eduardo Nicolette .......................................... 50
2. O Extremo Sul em Foco: Análise das redes de
sociabilidades (d)entre escravizados na Vila de
Rio Grande de São Pedro no século XVIII ................... 53
Biografia de Caroline Ortiz Fortes e Carine Ortiz Fortes ...... 67
3. Reflexões acerca da História Africana e da África
Yorubana ............................................................................. 71
Biografia de Douglas Bandeira Ramos ......................................... 82
4. Escrita Criativa: Ativismo e Resistência contra o
racismo ................................................................................... 85
Biografia de Edilaine Vieira Lopes .................................................. 103
5. Gênese espacial, segregação e distinção social e
étnica na produção da cidade de Novo Hamburgo:
conteúdo de um espaço desigual ................................... 107
Biografia de Fernando Benvenutti Schaab .................................. 119

7
Edilaine, Gilberto, Keli, Valter

6. A proibição do tráfico negreiro em Portugal na


segunda metade do século XVIII .................................... 123
Biografia de Gilberto dos Santos ...................................................... 137
7. Religiões de matrizes africanas: percepções a
partir da cidade de Pelotas .............................................. 141
Biografia de Keli Siqueira Ruas ........................................................ 159
8. O adoecimento dos trabalhadores escravizados:
questões e circunstâncias através da imprensa
baiana oitocentista (1860 - 1887) ................................ 163
Biografia de Larissa Bispo dos Santos ........................................... 187
9. Africanos ocidentais e seus laços familiares:
liberdade, etnicidade e mobilidade social na
cidade de Pelotas/RS (1850 - 1888) ............................. 191
Biografia de Natália Garcia Pinto ................................................... 205
10. Yalorixás – a diversidade e a transformação
através da história oral .................................................. 209
Biografia de Patrícia Helena ............................................................. 227
11. A inserção de escravizados no Maranhão como
estratégia para a defesa do patrimônio colonial .. 229
Biografia de Roger Neves Dezuani ................................................. 248
12. Notas sobre uma Pedagogia Antirracista na
Escola Estadual de Ensino Médio Nossa Senhora
de Lourdes e no Instituto Estadual de Educação
Assis Brasil, Pelotas, RS .................................................. 251
Biografia de Rojane Brum Nunes .................................................... 263
13. Meus passos vêm de longe: Èpa Bàbá! Mo Dúpé
gbogbo! ............................................................................... 267
Biografia de Ronise Ferreira dos Santos ....................................... 285
14. A Alforria do Preto Benedito: uma relação de
tensão ................................................................................... 287
Biografia de Ubiratã Ferreira Freitas ............................................ 295

8
Posfácio ........................................................................................ 297
Biografia de Gisela Loureiro Duarte ............................................... 299
Epílogo ......................................................................................... 301
Biografia de Valter Lenine Fernandes ........................................... 304
O ofício que vale a pena ......................................................... 307
Biografia de Lucas Corrêa da Silva ................................................. 310
Bionegrafia de Niyi Tokunbo Mon’a-Nzambi .............................. 312
Biografia de José Hugo Fernandes ................................................... 313
In Memoriam .............................................................................. 315

9
ESTA OBRA E DEDICADA A TODOS OS AFRO-
BRASILEIROS, E FOI ESCRITA EM MEMORIA AOS
SERES HUMANOS QUE, INFELIZMENTE, FORAM
ESCRAVIZADOS.

11
Prólogo
Esta obra reúne autores que se dedicaram a pesquisar e a ensinar
sobre o Brasil Africano. O tema das relações étnico-raciais nunca esteve tão
em voga, tanto nos debates educacionais como na mídia jornalística, por
conta de diversos atos de racismo, injúria racial e intolerância religiosa com
os praticantes das religiões de matrizes africanas.
É necessário falar sobre a presença negra/preta no Rio Grande do
Sul e abordar o processo de apagamento dessa população, já que inúmeros
brasileiros (e até estrangeiros) acreditam na famosa frase que tem sido
reproduzida há gerações: “o Sul é totalmente branco”. Não, senhoras e
senhores. NÃO É!
Essa temática está presente na cultura em forma de re- sistência, na
música, no cinema, na arte, na poesia. As correntes que eram presas nas
mãos e nos pés dos africanos escravizados, em nosso passado colonial,
infelizmente ainda prendem nossa forma de olhar o mundo. O modelo
econômico baseado na escravidão acabou ou, pelo menos, deveria ter
acabado...
Que bom seria se não houvesse casos de trabalho análogo à
escravidão, como os denunciados recentemente. É preciso reconhecer que
ainda somos um país com fortes traços coloniais, já que nossa sociedade é
formada por uma pequena parcela que herdou muitos privilégios. São esses
que colhem os frutos de séculos de subalternização do povo africano e de
seus descendentes.
No entanto, há também uma boa parcela, que soma mais de 50%, e
que ainda sofre com as desigualdades ou enfrenta algum tipo de
discriminação em suas práticas socioespaciais, culturais e sociais, dentre
outras formas de reprodução social. O curso As Áfricas no Rio Grande do Sul
(já indo para sua terceira edição e, agora, virando livro e evento), colhe seus
frutos ao reunir nesta obra autores de diferentes áreas do conhecimento,

13
Edilaine, Gilberto, Keli, Valter

com diversas experiências metodológicas voltadas à educação das relações


étnico-raciais.
Esperamos que vocês, leitores(as), encontrem aqui alguns diálogos
com essas experiências que visam à formação de cidadãos empenhados em
promover condições de igualdade, no exercício de direitos sociais, políticos,
econômicos. Ou, para além disso, com relação aos direitos de ser e de viver,
de modo que sejamos capazes de reconhecer e valorizar diversas visões de
mundo.
Se possível, durante ou depois das leituras, compartilhe conosco1
seus insights e comentários, suas dúvidas ou sugestões, a partir dessa
experiência histórica acerca das contribuições advindas dessa diversidade
de povos que formam não só as Áfricas no estado do Rio Grande do Sul, mas
as Áfricas em todo o Brasil.
Aos autores, nossa gratidão... E como bem disse a autora,
pesquisadora, amiga e parceira nesse projeto, Ronise: “Èpa Bàbá! Mo Dúpé
gbogbo!”2. Então, caro(a) leitor(a), nossa história aqui não termina: ela acaba
de começar...
Com apreço,

Edilaine, Gilberto, Keli e Valter3.


(organizadores)

1
Africasnors2021@gmail.com e @africas_no_rs (Instagram).
2
Agradecimento ao Pai Oxalá, o orixá mais velho, e a todos os nossos ancestrais. Com a tradução
de “Mo dúpẹ́ gbogbo” = “Obrigado(a) a todos”, em referência ao caminho e aos passos que vêm
da ancestralidade até nós (trecho extraído de “Meus passos vêm de longe!”, artigo desta edição,
cuja autora é Ronise Ferreira dos Santos, com base em https://educayoruba.com/formas-de-
agradecer-em-yoruba-indo-alem--do-a-dupe/).
3
Respectivamente: http://lattes.cnpq.br/7385721779493141;
http://lattes.cnpq.br/3095107003711526; http://lattes.cnpq.br/5449273854131156; e
http://lattes.cnpq. br/8709945945282466.

14
Prefácio

Em primeiro lugar, preciso agradecer pela oportunidade de estar


escrevendo o prefácio deste livro. Da mesma forma, parabenizo a todos
envolvidos por essa iniciativa maravilhosa, de reunir em forma de texto
algumas das reflexões e pesquisas acerca das Áfricas no Rio Grande do Sul (e
no Brasil). Fui convidado a participar das duas edições do Projeto Áfricas,
como ouvinte, palestrante e representante do Núcleo de Estudos Afro-
brasileiros e Indígenas (NEABI) do Instituto Federal de Educação, Ciência e
Tecnologia Sul-rio--grandense (IFSul) câmpus Sapiranga. Sei que esse
maravilhoso projeto de extensão é fruto de muito trabalho do meu
incansável amigo e colega Valter, que reuniu outros amigos e pesquisadores
em prol da constante (e necessária) luta que travamos diariamente, em
defesa da visibilização do povo preto.
Essa iniciativa me trouxe muitos ensinamentos, de tal forma que
cada fala/escrita foi surpreendente e impactante, tanto para mim, quanto
para os inscritos no curso e, agora, leitores desta obra. No momento, como
coordenador do NEABI/IFSul (câmpus Sapiranga), preciso destacar que este
conjunto de pesquisas está em consonância com os objetivos descritos no
regulamento do nosso Núcleo. O lançamento desta coletânea brinda a
promoção da cultura afro-brasileira, dissemina os estudos que valorizam a
história dos povos africanos e promove a reflexão quanto à importância da
diversidade para a construção identitária do Rio Grande do Sul e do Brasil.
“Diáspora” vem para reforçar as boas práticas que perpassam as
experiências de um ensino antirracista por meio do estudo sobre as Áfricas
na Educação Profissional e Tecnológica.
Muito além de reforçar o que determinam as Leis Nº 10.630
(09/01/2003) e Nº 11.645 (10/03/2008), este livro reconhece o potencial
histórico, social, artístico e cultural que advém das nossas raízes e das
heranças dos nossos antepassados. Infelizmente, há aqui uma série de

15
Guilherme da Silva Xavier

denúncias que deflagram a dura realidade discriminatória que enfrentamos


no dia a dia. No entanto, também contam nessas páginas o resgate do
orgulho preto e a necessidade de rodas de conversas sobre os
embranquecimentos impostos. Entre alguns conceitos como o da negritude
e da branquitude, este projeto trouxe algumas referências à poesia, às
slammers pretas, aos dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística), além de fazer menção ao acesso do povo preto aos serviços
básicos, de direito, como a educação e a saúde.
Cabe ressaltar que este projeto (que agora virou livro, ainda na
primeira das muitas edições que certamente tere mos) também foi premiado
na Feira Brasileira de Ciências e Engenharia, da Universidade de São Paulo
(FEBRACE/USP, 2021), na Categoria Ciências Humanas, devido à ampla
pesquisa do estudante Lucas Corrêa, bolsista do professor Valter. Ali já havia
indícios de que esse projeto seria promissor, por abordar, ensinar e
denunciar o sequestro que o povo negro teve (e ainda tem) na história do
Rio Grande do Sul. Isso sem falar em polêmicas como o racismo ideológico,
estrutural ou tecnológico e os direitos básicos adquiridos, como o do voto e
o das cotas.
São tantas as temáticas inseridas nas Áfricas do Rio Grande do Sul,
que me sinto na obrigação de reconhecer que este projeto segue alinhado
com as diretrizes do NEABI. Assim, só resta minha gratidão e minha
admiração a todos vocês, gestores, agências de fomento, escritores,
pesquisadores, alunos, bolsistas e leitores, pela ação coletiva. É preciso
assumirmos nosso papel no combate à desigualdade e isso se dá através da
democratização do acesso à educação e à cultura. Não basta não ser racista:
é preciso unir esforços na luta antirracista, e isso perpassa pelo ensino de
qualidade. No nosso caso, público e de qualidade, graças ao empenho desses
incansáveis pesquisadores, imparáveis em defesa da honra e da memória do
povo preto.
Basta de preconceito, chega de discriminação. Um viva à arte, à
ancestralidade e à representatividade presentes na diáspora africana! A
educação liberta e oportuniza uma vida melhor, como diz o Samba Enredo
da Beija-Flor (2020):

16
“E às vezes, perdido
Eu me encontro em tuas asas, Beija-Flor Por mais que existam barreiras
Eu vim pra vencer no teu ninho
É bom lembrar, eu não estou sozinho Ê Laroyê Ina Mojubá
Adakê, Exu, ô, ô, ô
Segura o povo que o povo é o dono da rua”

Muito obrigado e parabéns a todos. Boa leitura!

Guilherme da Silva Xavier

17
Biografia de Guilherme da Silva Xavier

Mestre em Docencia para Ciencias, Tecnologias, Engenharias e


Matematica - UERGS (2022). Graduaçao em Processamento de Dados -
UNISINOS (1991), Especializaçao em Desenvolvimento de Software Livre -
UNISINOS (2004), MBA em Gestao de Projetos - UNISINOS (2013). Atua como
professor do IFSul campus Sapiranga. Experiencia na area de Ciencia da
Computaçao, com enfase em Sistemas de Computaçao e Analise e Projeto de
Sistemas de Informaçao e Gerencia de Projetos. Professor de cursos Tecnicos
e Tecnologicos, na area de TI (Tecnologia da Informaçao), nas disciplinas de
Logica de Programaçao, Linguagem Programaçao, Banco de Dados e Analise
de Sistemas. Contato: guilhermexavier@ifsul.edu.br

18
19
Apresentação
As experiencias de um ensino antirracista sao tudo de que
precisamos... nao basta nao ser racista: e necessario afirmar e reafirmar que o
ensino desenvolvido na Educaçao Profissional e Tecnologica, sobretudo nos
Institutos Federais, ocorre como ato publico na luta antirracista.
Este livro advem de um projeto muito importante para o IFSul
Campus Sapiranga, que se empenhou nas pesquisas em documentos
historicos sobre a tematica das Africas no Rio Grande do Sul.
A obra e composta por 14 capítulos, repletos de estorias, dores e
sentimentos acerca da historia dos negros em nosso estado e no Brasil. Carlos
Eduardo Nicolette estreia o primeiro capítulo e nos traz apontamentos sobre
a populaçao cativa na montagem do complexo açucareiro de Campinas/SP, em
“Sob o jugo da escravidao”.
Na sequencia, Caroline e Carine Ortiz Fortes escrevem sobre o
extremo sul em foco e fazem uma analise das redes de sociabilidades (d)entre
escravizados na Vila de Rio Grande de Sao Pedro, no seculo XVIII.
Depois, Douglas Bandeira Ramos nos brinda com algumas reflexoes
acerca da historia africana e da Africa Yorubana. Dando continuidade, vem o
artigo Escrita Criativa: Ativismo e Resistencia contra o racismo, com autoria
de Edilaine Vieira Lopes.
Logo atras, o professor Fernando Benvenutti Schaab aborda a genese
espacial, sobre a segregaçao e a distinçao social e etnica na produçao da cidade
de Novo Hamburgo, como conteudo de um espaço desigual.
A seguir, Gilberto dos Santos aborda a proibiçao do trafico negreiro
em Portugal, na segunda metade do seculo XVIII. Keli Ruas fala sobre as
religioes de matrizes africanas, com percepçoes a partir da cidade de Pelotas.

21
Marta Helena Blank Tessmann

Dando prosseguimento, Larissa Bispo dos Santos fala sobre o


adoecimento dos trabalhadores escravizados, levando em conta questoes e
circunstancias atraves da imprensa baiana oitocentista (1860-1887).
Natalia Garcia Pinto cita os africanos ocidentais e seus laços
familiares, mencionando a liberdade, a etnicidade e a mobilidade social na
cidade de Pelotas/RS (1850/1888). Patrícia Helena da Rocha cita os Yalorixas,
a diversidade e a transformaçao atraves da historia oral.
Na sequencia, Roger Neves aborda a inserçao de escravizados no
Maranhao, como estrategia para a defesa do patrimonio colonial. Em Notas
sobre uma Pedagogia Antirracista, Rojane Brum Nunes fala sobre as
experiencias na Escola Estadual de Ensino Medio Nossa Senhora de Lourdes e
no Instituto Estadual de Educaçao Assis Brasil, Pelotas, RS.
Ronise Ferreira dos Santos traz os dizeres Epa Baba! Mo Dupe
gbogbo!, nos ensinando que seus passos vem de longe. Finalizando, Ubirata
Ferreira Freitas nos traz a Alforria do Preto Benedito, em uma relaçao de
tensao. Alem disso, somos presenteados com poemas autorais, ineditos, que
trazem a força da Diaspora.
Uma obra de tamanha importancia so foi possível, porque pessoas
especiais se dedicaram muito. Agradeço aos professores organizadores e, em
especial, ao prof. Dr. Valter Lenine Fernandes, que foi o idealizador de tudo
isso.
Ele teve a sensibilidade de convidar a Profª Drª. Edilaine Vieira
Lopes, o Prof. Ms. Gilberto dos Santos e a Profª Drª. Keli Ruas, que
orquestraram esse deleite academico. Nao menos importante e o Nucleo de
Estudos Afro-Brasileiros e Indígenas (NEABI), que auxilia no direcionamento
de estudos, pesquisas e açoes de extensao, promovendo reflexoes sobre as
questoes etnico-raciais.
Devo dizer que tudo isso foi feito com maestria, sob a supervisao do
coordenador Prof. Ms. Guilherme Xavier. E necessario salientar, tambem, que
a materialidade dessa obra so foi possível atraves dos fomentos advindos da
Fundaçao de Apoio a Pesquisa do Rio Grande do Sul (FAPERGS) e da Pro-
reitoria de Pesquisa, Inovaçao e Pos-graduaçao (PROPESP) do IFSul,

22
respectivamente para o Curso As Africas no Rio Grande do Sul e para o
lançamento dessas memorias aqui contidas em forma de palavras. Entre
frases, citaçoes, poemas e textos, o livro Diaspora mostra a que veio.
Compartilhe seus insights conosco, marcando a #africas no
Instagram @ifsulsapiranga. Parabens, muito obrigada e otima leitura!

Profª Drª. Marta Helena Blank Tessmann


Diretora Geral do IFSul câmpus Sapiranga

23
Biografia de Marta Helena Blank Tessmann

Graduada em Letras-Habilitaçao Ingles, pela Universidade Catolica


de Pelotas (UCPel), em 2001. Defendeu sua dissertaçao de Mestrado em março
de 2010, na area de Aquisiçao de Segunda Língua, na UCPel. Iniciou o
Doutorado na mesma area do Mestrado, em agosto 2010, na UCPel, e obteve o
1º lugar na seleçao, tornando-se bolsista da CAPES. Em 2013, fez doutorado-
sanduíche na University of Edinburgh -Uk, sob a orientaçao da Profa. Dra.
Antonella Sorace, com fomento CAPES. Defendeu sua tese de doutorado no dia
01/12/2014, na UCPel. Atualmente, e diretora-geral e professora efetiva de
ingles no IFSul campus Sapiranga. E tambem docente permanente do
Mestrado Profissional em Ensino Profissional e Tecnologico em Rede -
PROFEPT. Tem excepcional interesse em metodologias de ensino. Contato:
martatessmann@ifsul.edu.br.

24
Pele Negra
Natália Pagot

sou eu, pele negra


a que tem sua vida negada
o teste de paternidade negativo
o contracheque negativado

sou eu, olhos de enchente


que faz cachoeira
a cada corpo encarcerado
cada vida dilacerada
pela civil socializaçao
que nao se choca
com sangue preto no chao

sou eu, mae desassistida


pela falta de escola
saneamento e clínicas
pelos receituarios
e comprimidos de ouro
pelo trafico de corpos e sonhos

25
Sou eu, solo, mae, gentil
que na insurgencia busca
maneiras de ver seus filhos crescerem

sou eu, pele negra, sem mascaras...

Poema retirado da obra: POETAS VIVOS. Voz da Revolução. In: MARIÁ, Agnes; DANOVA, Pretana;
DEDS Felipe; PAGOT, Natália (org.). Vozes da Revolução. Porto Alegre: Class, 2019. 132 p.

26
Biografia de Natália Pagot

Gaucha, nascida no verao de 1995. Mestra em Educaçao pela


Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), em 2022 e Licenciada em
Ciencias Biologicas (2019), na mesma instituiçao. Poeta, educadora, produtora
cultural e ambientalista, ja integrou a Iniciativa Cultural Poetas Vivos. E autora
do fanzine independente “Do Inferno ao Inverno”, lançado em 2018. Tambem
foi organizadora das antologias “Vozes da Revoluçao” (2019) e “Nos versos de
liberdade e melanina” (2021), alem de participar dos livros “Toas Escrevemos”
(2021) e “Horizontes Coletivos” (2022). Em 2020, foi representante do sul do
país no Slam Cuír, organizado pela Festa Literaria das Periferias (FLUP).
Proponente de projetos de extensao universitaria e projetos de Educaçao,
permeia a arte, educaçao antirracista e ambiental em seus livros, em seus
projetos culturais e nas suas apresentaçoes poeticas. Esses e outros livros
estao a venda pelo Instagram @nataliapagot.

27
29
1. Sob o jugo da escravidão:
apontamentos sobre a população
cativa na montagem do complexo
açucareiro de Campinas/SP

Carlos Eduardo Nicolette

Introdução

Os estudos historicos sobre a escravidao no Brasil se


expandiram nas ultimas decadas, evidenciando o papel crucial que tal
instituiçao exercia sobre a realidade colonial e imperial. Os
historiadores trouxeram a luz a relaçao intrínseca entre o crescimento
do comercio transatlantico de escravizados e a expansao da produçao
de comodities para o mercado internacional, especialmente de açucar e
cafe. As vilas que compoe o Oeste Paulista foram as maiores produtoras
de açucar na província de Sao Paulo na primeira metade do seculo XIX e
o amago da concentraçao de cativos. Foi a entao vila de Campinas,
localizada no interior de Sao Paulo, que passou pelo mais rapido
desenvolvimento de uma economia escravista nessa regiao, durante o
seculo XIX1, processo iniciado ainda na ultima decada do Setecentos, por
meio dos engenhos de açucar. Porem, a historiografia tem estudado o
movimento de crescimento da lavoura canavieira campineira, ainda no
período colonial, com menos entusiasmo que o período cafeeiro2.

1
PETRONE, Maria Thereza S. A lavoura canavieira em São Paulo: e xpansão e declínio
(1765-1851). São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1968.
2
Renato Leite Marcondes aponta que a safra campineira de café no ano de 1886 foi a
maior da província paulista. In: A estrutura fundiária e cafeeira de dois municípios do oeste
31
Carlos Eduardo Nicolette

Este trabalho – que se insere num movimento recente de


pesquisas seriais sobre a demografia escrava em Campinas – pretende
avançar na hipotese de que, no período de desenvolvimento do parque
açucareiro de Campinas, o perfil demografico dos escravizados se
alterou substancialmente. Sendo assim, o objetivo do presente trabalho
e identificar as transformaçoes no perfil demografico da populaçao
cativa de Campinas ao longo da montagem de seu parque açucareiro,
buscando aferir apontamentos sobre as eventuais mudanças. Para
alcançar tais objetivos, o trabalho apresentara, inicialmente, a trajetoria
de formaçao do locus de estudo: a vila de Campinas. Em seguida, fara
indicaçoes acerca das mudanças ocorridas na populaçao cativa da vila,
entre os anos de 1794 e 1809, cujo foco incide nos cativos das
propriedades açucareiras. A base documental sera formada pelas listas
nominativas de habitantes de Campinas, entre 1793 e 1809, bem como
pelo Mapa dos Engenhos de Açucar de Serra Acima. Em relaçao as listas,
foram uma especie de censo populacional exigido pelo rei de Portugal,
no ambito das reformas pombalinas, para melhor conhecer os seus
territorios ultramarinos3. Ja o “Mapa dos Engenhos” foi um arrolamento
de propriedades canavieiras de Sao Paulo, feito entre 1793 e 1798. Esse
documento tambem foi produzido pelas Companhias de Ordenanças das
vilas paulistas, em um período em que as in- formaçoes economicas das
unidades produtivas ainda nao apareciam nas listas nominativas.
O recorte temporal estabelecido se deve as transformaçoes que
ocorreram em Campinas, bem como em grande parte das colonias
americanas, devido ao salto no valor do açucar nas praças
internacionais, apos o início da Revoluçao do Haiti (maior fornecedor de
açucar para a Europa), em processo iniciado pelos escravizados da ilha,
em agosto de 1791. O recorte final, 1809, foi escolhido devido ao
processo de montagem campineiro ter se estabelecido fortemente ate
esse ano, passando por um período de estabilidade na decada seguinte,
especialmente pelas consequencias das Guerras Napoleonicas.

paulista: Campinas e Ribeirão Preto no início do século XX. Revista de História, São Paulo,
n. 165, p. 403-424, 2011.
3
BACELLAR, Carlos de A. P. As listas nominativas da capitania de São Paulo sob um olhar
crítico (1765-1836). Anais de História de Além Mar, Lisboa, v. XVI, p. 313-338, 2015.
32
Diaspora

Campinas à luz do século XVIII

As origens da ocupaçao territorial de Campinas encontram-se


intimamente ligadas as “descobertas de novas jazidas auríferas em
Goias e Mato Grosso, nas rotas terrestres e fluviais que atravessavam Sao
Paulo”4. Esses avanços territoriais foram realizados pelos paulistas
muito em consequencia da perda do controle sobre auríferas de Minas
Gerais e se tornaram fenomenos fundantes de varias localidades da
capitania de Sao Paulo.
As expediçoes de descoberta, assim como as jornadas para o
transporte de mercadorias ate Goias ou Mato Grosso5, exigiam no
período colonial uma serie de paradas aos viajantes – areas que ate o
ano de 1748 pertenciam a Capitania de Sao Paulo, as quais tambem
eram chamadas de ranchos ou pousos, distribuídas de maneira
estrategica ao longo das trilhas abertas. Foi na expansao dessa estrada
para a exploraçao das regioes auríferas, no início do seculo XVIII, que
“pipocaram pousos, sesmarias, bairros rurais”6 e que se originou
Campinas, ate entao um pouso chamado de “Campinas do Mato Grosso”
– o qual deveria servir para os sujeitos que trafegavam entre as vilas de
Jundiaí e Mogi-Mirim7.
Campinas estava em espaço privilegiado na bacia do rio Tiete,
pois estava localizada entre dois de seus grandes afluentes: os rios
Capivari e Piracicaba. No entanto, na altura da vila de Jundiaí, havia uma
cerrada floresta que se estendia ate Mogi-Mirim8, trecho de mata

4
LUNA, Francisco V.; KLEIN, Herbert S. Evolução da sociedade e economia escravista de
São Paulo, de 1750 a 1850. São Paulo: Edusp, 2005, p. 44.
5
Cópia da Ordem Real, 1748. Documentos interessantes para a história e costumes de
São Paulo. São Paulo: Dep. do Arquivo do Estado de São Paulo, vol. 73, 1952, p. 122-123.
6
SILVA, Áurea Pereira da. Engenhos e fazendas de café em Campinas (séc. XVIII - séc. XX).
Anais do Museu Paulista, São Paulo, v. 14, n. 1, 2006.
7
ROSSETO, Pedro Francisco. Reconstituição do traçado da ‘estrada dos Goiases’ no trecho
da atual mancha urbana de Campinas. Anais do Museu Paulista, São Paulo, v. 14, n. 2, p.
141- 191, 2006, p.141.
8
Mogi-Mirim estava ligada à jurisdição da vila de Jundiaí até 1769, tendo se desmembrado
nesse ano e se tornando vila sob o nome de “São Jose de Moji-Mirim”. Ver: SEADE –
Fundação Sistema de Análise de Dados, Desmembramento dos Municípios Paulistas.
33
Carlos Eduardo Nicolette

nomeada, a epoca, de “Mato Grosso de Jundiaí”, devido a sua densidade


florestal – em Mogi, voltavam, entao, os campos abertos e os ja
existentes pousos9. Os ranchos ofereciam, em geral, espaço para os
viajantes e seus animais pernoitarem e eram fundamentais para longas
viagens. Observando a lista nominativa de habitantes de 1767, quando
Campinas havia sido erigida a freguesia de Jundiaí ha apenas tres anos,
Laura Fraccaro afirma que “a funçao de alguns chefes de domicílio
estava atrelada a estrada, sendo listada como ‘vive no caminho de Minas
com tropa’ ou ‘vive no caminho de Minas e de ser soldado’”10
Se a ocupaçao de Campinas, ate parte significativa da segunda
metade do seculo XVIII, indica que as terras campineiras foram alvos de
sesmeiros que nao exploraram suas terras concedidas pela Coroa
portuguesa, esse fenomeno passaria por consideravel transformaçao na
decada de 1790. Segundo Nelson Hideiki Nozoe, foram expedidas vinte
e duas cartas, concedendo sesmarias para a regiao de Campinas, apenas
entre os anos de 1790 e 179911, ou seja, foi no período em que se deu a
expansao das concessoes de sesmarias e a consequente alteraçao
profunda da estrutura fundiaria e economica da regiao.
O início do processo de ocupaçao em terras campineiras
esteve, de maneira notoria, diretamente ligado a expansao territorial
praticada em Sao Paulo pelos interessados nas jazidas de ouro de Cuiaba
e Mato Grosso. Sua terra roxa, excelente para a plantaçao de graos –
como sao os casos dos pes de cafe –, alem de ser tambem propícia a
plantaçao de cana-de-açucar, nao havia sido explorada nesse momento
para extensas plantaçoes agrícolas ou para o estabelecimento domiciliar

Disponível em: https://www.seade.gov.br/visualizacao/ desmembramentosp/. Acesso em:


08 de jun. de 2020.
9
PUPO, Celso Maria de Mello. Campinas, seu berço e juventude. Campinas: Academia
Campinense de Letras, v. 20, 1969, p. 11-12.
10
FRACCARO, Laura Candian. Estratégias de pequenos agricultores livres de cor perante
a expansão dos engenhos de açúcar escravistas em Campinas: 1779-1836. Tese
(Doutorado), Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade de Campinas.
Campinas, 2018, p. 45.
11
NOZOE, Nelson Hideiki. A apropriação de terras rurais na Capitania de São Paulo. Tese
de Livre-Docência. Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade, Universidade
de São Paulo, São Paulo, 2008, p. 172. Ainda segundo o autor, de 1780 a 1789, foi concedida
apenas 1 sesmaria para Campinas; de 1800 até 1822, foram concedidas mais 5.
34
Diaspora

de uma elite agraria12 . Pelo contrario, tudo in- dica que Campinas foi
por muito tempo espaço de pequenos sítios, plantaçao de mantimentos
para o estabelecimento de pequenas transaçoes e local de passagem
para os negocios estabelecidos com as zonas auríferas.
Desde o período em que havia se estabelecido enquanto
freguesia de Jundiaí ate o início da decada de 1790, Campinas havia
recebido uma migraçao constante, porem paulatina, de moradores
livres. Mesmo que incipiente para uma ampla expansao das fronteiras,
foi processo fundamental para principiar uma ocupaçao territorial e
para ali se vislumbrar o estabelecimento de novas relaçoes familiares e
economicas. Paulo Eduardo Teixeira e Peter Eisenberg trouxeram a baila
que, no ano de 1774, a freguesia possuía 388 indivíduos livres e apenas
59 fogos13; ja cinco anos depois, em 1779, a freguesia apresentou um
pequeno crescimento, somando o total de 445 habitantes e alcançando
66 fogos; em 1790, por seu turno, apresentou um crescimento para,
respectivamente, 1.138 indivíduos e 177 fogos.
Por outro lado, se em 1774 havia na freguesia o total de 87
cativos listados, 16 anos depois eram 219 escravizados14, demonstrando
um crescimento abaixo do encontrado para livres. A idade media dos
cativos, inclusive, era bastante alta para o período e, apesar de ter
diminuído continuamente apos 1774, estava em torno de 27 anos, em
179015. Considerando os escravizados enquanto um padrao de
acumulaçao de cabedal por parte de seus proprietarios – visto serem os
cativos a principal mao de obra das propriedades agrícolas – e
observando em conjunto o baixo crescimento do numero de cativos e
suas altas idades, somados ao proprio numero de mulheres e homens

12
Para mais informações sobre a categoria de elite, ver: BACELLAR, Carlos de A. P. Os
senhores da terra: família e sistema sucessório entre os senhores de engenho do Oeste
Paulista, 1765-1855. Campinas: Centro de Memória/Unicamp, 1997.
13
TEIXEIRA, Paulo E. A formação das famílias livres: Campinas, 1774-1850. São Paulo:
Editora Unesp, 2011, p. 40; EISENBERG, Peter. Homens esquecidos: escravos e
trabalhadores livres no Brasil, séculos XVIII e XIX. Campinas: Editora da Unicamp, 1989, p.
358.
14
Arquivo Público do Estado de São Paulo, Lista Nominativa de Habitantes, Campinas,
1774 e 1790.
15
APESP, LNH, Campinas, 1790.
35
Carlos Eduardo Nicolette

cativos ter permanecido semelhante durante todo o período16, pode-se


aferir que o período nao apresentou, de fato, uma expansao economica
consideravel para a vila.
Esse ponto corrobora as afirmaçoes de Celso Pupo, quando
argumenta que foi a montagem da lavoura canavieira de Campinas por
antigos e, principalmente, novos moradores ao longo da decada de 1790
que possibilitou uma pujança economica nao antes vista para os
campineiros. Segundo o autor, ate a decada de 1790, a

vida dos sitiantes do bairro do Mato Grosso, sem surto


de melhoria e sem recuos restritivos plantavam o
milho, faziam fuba, alimentavam o porco produtor de
toicinho e carne, pouco vendendo para a estrada de
Goias, utilizando-se numero de escravos17.

Durante a decada de 1790, a freguesia sofreu uma onda


migratoria que resultou no salto demografico para 3.699 pessoas em
1800, em 453 domicílios18. Se, em 1790, eram 219 escravizados em
Campinas, com uma razao de sexo de 9919, no final dessa decada, em
1799, contabilizavam 821 cativos (crescimento de 375%), com a razao
de sexo saltando para 182. Em outras palavras, alem do vertiginoso
crescimento da populaçao cativa, esse se concentrou na mao de obra
masculina. O numero de livres ou libertos tambem cresceu, porem numa
taxa, agora, mais lenta: em 1790 eram 1.138 pessoas e nove anos depois
saltou para 2.078, um crescimento de 82%. O crescimento relativo da
populaçao livre foi quase cinco vezes menor na decada de 1790, se

16
NICOLETTE, Carlos E.; ALFONSO, Felipe R. A composição do perfil das escravarias como
elemento das estratégias adotadas pelos proprietários de escravos. Campinas, 1778-
1829. In: Anais do VII Encontro Internacional de História Colonial, Natal/RN. Espaços
coloniais: domínios, poderes e representações. Natal: EDUERN, 2018, v. 1, p. 2104-2105
17
PUPO, 1969, p. 34.
18
ALFONSO, Felipe R. A fronteira escravista entre o açúcar e o café: Campinas, 1790-1850.
Dissertação (Mestrado). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade
de São Paulo. São Paulo, 2018a, p. 85-86.
19
Razão de sexo é o cálculo do número de homens para cada 100 mulheres, ou seja, nesse
ano havia mais mulheres do que homens cativos em Campinas, numa taxa de 99 homens
para cada 100 mulheres.
36
Diaspora

comparado ao dos cativos, o que indica uma transformaçao na


demografia local bastante diferente daquela que vinha ocorrendo desde
sua fundaçao – assumidamente de famílias livres20. Alem disso, e
possível verificar que a concentraçao da mao de obra cativa foi
profundamente alterada durante a decada de 1790, haja vista a
concentraçao dos escravizados nas maos de proprietarios com mais de
19 cativos21.
Foram esses indivíduos os responsaveis pelo quadro
economico e social de Campinas, expandindo o numero de engenhos de
maneira extraordinaria: se no ano de 1794 existiam 8 propriedades
açucareiras em Campinas, produzindo 34,3 toneladas de açucar, em
1809, a vila apresentava 68 unidades canavieiras e 789,1 toneladas22. Se
houve, assim, uma grande migraçao da populaçao livre em direçao a
Campinas, a fim de converter seus capitais em terras e canaviais, foram
os escravizados que, de fato, transformaram a realidade agraria daquele
espaço. Apos a montagem e a expansao da lavoura canavieira, Campinas
mal parecia aquele espaço pouco povoado da maior parte do seculo
XVIII, tendo recebido uma grande migraçao de trabalhadores, alem da
concentraçao de capitais, o que possibilitou a vila exportar varios
generos alimentícios e, em especial, açucar23; “a certeza de encontrar
terras ferteis sem ocupaçao devem [sic] ter sido razoes suficientes para
fazer famílias inteiras mudarem-se para a vila”24.

20
TEIXEIRA, Paulo E.; SANTOS, Antônio. Viver e envelhecer: trajetórias de vida numa vila
paulista (Campinas, 1774-1842). Resgate - Revista Interdisciplinar de Cultura. Campinas, v.
26, n. 1 [35], 2018, p. 7-30.
21
NICOLETTE; ALFONSO, 2018, p. 2106-2107; APESP, LNH, Campinas, 1790 e 1799.
22
NICOLETTE, Carlos Eduardo. À luz do ouro branco: lavoura canavieira e a montagem do
parque açucareiro de Campinas (c. 1790-1818). Dissertação (mestrado). Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Universidade de São Paulo. São Paulo. 2022, p. 249-
252.
23
Não raro serem encontradas menções, nas listas nominativas de habitantes, às vendas
de milho e toucinho para a cidade de São Paulo, para a vila de Itu, dentre outros espaços
da região.
24
FRACCARO, 2018, p. 57.
37
Carlos Eduardo Nicolette

Do alvorecer ao crepúsculo: apontamentos sobre o perfil


demográfico dos cativos de Campinas em sua expansão
canavieira

Ainda que a formaçao de Campinas, durante o seculo XVIII,


tenha sido realizada, majoritariamente, atraves das maos de livres em
busca de terras para produzir mantimentos e reproduzir uma economia
de subsistencia, o papel dos escravizados na vila foi figura central na
montagem de seu complexo açucareiro em todo o período apos
Revoluçao do Haiti. Conforme e explicitado na Tabela 1, ainda no início
do desenvolvimento das propriedades canavieiras (1794), se, por um
lado, o numero de cativos cresceu consideravelmente em quatro anos
quando comparado a 1790 (cerca de 41%), por outro, eles estavam, em
sua maioria, alocados em ocupaçoes fora do açucar. Essa logica
rapidamente se inverteu, como pode ser visto quatro anos mais tarde,
em 1798: os cativos advindos de propriedades açucareiras passaram a
representar 82,8% dos escravizados de toda a vila. Nesse mesmo ano,
todos os cativos somados – 787 indivíduos – ja constituíam 27,5% da
populaçao residente em Campinas, taxa que chegou a 58,6%, em 1836,
período auge da economia açucareira da vila25. Sendo assim, a
populaçao escravizada foi levada para Campinas com celeridade ate
entao nao vista ali, ocorrendo transformaçoes sem precedentes na
demografia campineira.
A populaçao cativa se expandiu vertiginosamente durante a
montagem do complexo açucareiro campineiro, uma transformaçao
promovida, majoritariamente, atraves do investimento de senhores de
engenho – tendo em conta que, em todos os anos analisados, os
partidistas de cana nunca tiveram grande soma de escravizados. Em
comparaçao com a regiao do Oeste Paulista, que possuía 4.621 cativos,
no ano de 1799, a mao de obra cativa das propriedades açucareiras de
Campinas ja representava 17,4% desse montante no final do

25
NICOLETTE, Carlos E.; ALFONSO, Felipe R. Especificidades da Sociedade Açucareira:
Campinas no Contexto do Quadrilátero Paulista (1836). Revista de História Bilros.
História(s), Sociedade(s) e Cultura(s), v. 9, n. 18, p. 118-137, 2022, p. 125.
38
Diaspora

Oitocentos26. Ainda que os cativos voltados para o trabalho com cana de


açucar tenham se tornado a maioria entre o total de escravizados de
Campinas, apos o ano de 1798 – fenomeno que nao se reverteu ate o fim
do ciclo açucareiro27–, a Tabela 1 tambem traz a luz que a populaçao de
cativos cresceu constantemente nao apenas entre propriedades açu-
careiras.
Nesse sentido, Valter Martins reafirma que boa parte da
historiografia dispensou pouca atençao para as regioes do país
dedicadas aos mercados internos de abastecimento, tratando os
pequenos agricultores e produtores como secundarios e pertencentes a
um universo economico vazio e sem importancia significativa28. Martins
argumenta que os pequenos agricultores nao ficaram isolados do acesso
ao trafico de escravos e que acumularam capital durante o boom
açucareiro, sendo que a posse de escravos teria sido “imprescindível
para a obtençao de um nível mais significativo de acumulaçao, nao so
porque o escravo representava um acrescimo de trabalho produtivo,
mas por serem, eles mesmos, prova de um capital acumulado”29. Isso
revela, por sua vez, a complexidade da escravidao na vila, bem como
pode vir a corroborar a expansao da economia de subsistencia e sua
interdependencia com a economia açucareira30.

26
Foram utilizados os dados do ano de 1800 de Campinas para comparação com o ano de
1799 de todo o Oeste Paulista. Para os dados referentes a todo o Oeste, bem como outras
regiões de São Paulo, ver: LUNA, KLEIN, 2005, p. 61. Sobre Campinas: APESP, LNH,
Campinas, 1799.
27
ALFONSO, 2018, p. 47-98.
28
MARTINS, Valter. Nem senhores, nem escravos: os pequenos agricultores em Campinas
(1800-1850). Campinas: CMU/UNICAMP, 1996, p. 16.
29
MARTINS, 1996, p. 130.
30
Como foi discutido anteriormente, esse era o grande vetor da economia campineira
após o açúcar.
39
Carlos Eduardo Nicolette

Fonte: AHU, Mappa dos Engenhos de assucar..., Post. 1798; APESP, LNH,
Jundiaí, 1794; APESP, LNH, Campinas, 1798, 1800, 1803, 1805, 1807, 1809.

As transformaçoes na populaçao escravizada de Campinas


tambem estiveram presentes ao analisar os cativos. Como afirma a
historiografia sobre o trafico transatlantico, especialmente durante
período de legalidade desse comercio, a maior parte dos africanos
desembarcados em terras brasileira eram homens e jovens31. Conforme
evidencia o Grafico 1, ate o início da decada de 1790, havia um
consideravel equilíbrio entre o numero de homens e mulheres
escravizados em Campinas, a medida que a razao de sexo dessa
populaçao foi de 99, no ano de 1790 – nao tendo sido superior antes
disso em nenhum ano – a 120. Tal fenomeno ocorreu, sobretudo, devido
a ausencia de uma economia voltada para a exportaçao de produtos.
Vale reiterar que, ate 1792, as famílias de lavradores residentes em
Campinas se concentravam na produçao de subsistencia. Tal realidade
se alterou profundamente, ja em 1794, quando a razao de sexo da vila
chegou a 134 e a relativa as propriedades canavieiras, ao total de 148.
Daí em diante, o numero de escravizados homens e mulheres nao foi
sequer proximo do que havia sido, apresentando, assim, uma clara
tendencia de crescimento. Em contraste, no ano de 1805, a vila
açucareira de Porto Feliz possuía uma razao de sexo para os cativos de
163, menor que os 195 homens para cada mulher de Campinas. Alem
disso, era consideravelmente abaixo do que foi encontrado para essa
populaçao das propriedades açucareiras campineiras (248),

31
KLEIN, Herbert S. A demografia do tráfico Atlântico de escravos para o Brasil. Estudos
Econômicos, São Paulo: IPE-USP, v. 17, p. 129-149, 1987.
40
Diaspora

evidenciando o papel crucial que a compra de cativos e desempenhando


na montagem de seus engenhos e da expansao da economia canavieira.

Fonte: AHU, Mappa dos Engenhos de assucar..., Post. 1798; APESP,


LNH, Jundiaí, 1790, 1794; APESP, LNH, Campinas, 1798, 1800, 1803,
1805, 1807, 1809.

Percebeu-se uma estreita instabilidade na razao de sexo dos


cativos referentes as propriedades canavieiras nos anos de 1807 e 1809
(Grafico 1), ainda que o total de escravizados tenha aumentado no
mesmo período (Tabela 1). A hipotese para tal fenomeno e que os
proprietarios, especialmente os donos de engenhos, buscaram trazer
um certo equilíbrio entre homens e mulheres para suas senzalas, tendo
em conta a enorme disparidade identificada em 1805, cuja razao de sexo
foi de 248 (Grafico 1). Assim, para a concretude da montagem do parque
açucareiro de Campinas, fez-se necessaria a compra acelerada de cativos
por aqueles senhores interessados no empreendimento canavieiro,
especialmente por mao de obra masculina e jovem, o que acirrou o
tamanho do desequilíbrio nas senzalas.
Entre os anos de 1794 e 1809, a media de idade dos cativos
caiu em quase 3 anos, conforme evidencia a Tabela 2. Esse fenomeno
indica a mudança no perfil da populaçao de escravizados em Campinas,
se tornando cada vez mais jovem. Tal queda na media foi acompanhada

41
Carlos Eduardo Nicolette

tambem pela mediana32, que esteve levemente abaixo da media, apos


1798, provavelmente devido a alguns sujeitos consideravelmente mais
velhos que elevaram a media. Durante a montagem do complexo
açucareiro, a quantidade de cativos alocados no açucar nao apenas
cresceu mais de 10 vezes no período, mas o quadro etario tambem se
transformou: a concentraçao de cativos adultos chegou a representar
75,9% do total em 1809.

Fonte: AHU, Mappa dos Engenhos de assucar..., Post. 1798; APESP,


LNH, Jundiaí, 1794; APESP, LNH, Campinas, 1798, 1800, 1803, 1805,
1807, 1809.

A transformaçao na idade media dos escravizados teria


ocorrido devido ao aumento de crianças e a expansao da família
escrava? Para apontar sobre esse assunto, e importante calcular a
distribuiçao desses cativos em faixas de idade. Antes, vale a observaçao
sobre a analise etaria da força de trabalho, haja vista que o recorte de
idade estabelecido para cada faixa nao e um consenso entre
historiadores33. Isso se deve a dificuldade de estabelecer a “idade ideal”
ou, ainda, a “idade produtiva” de um cativo, alem das diferenças
individuais entre eles; e necessario pensar na relaçao com a propria
realidade agrícola: assumindo-se que a “idade ideal” reflete os melhores

32
A média é obtida através da soma de todos os valores de um determinado conjunto e o
resultado é, então, dividido pela quantidade de dados. Por sua vez, a mediana refere-se ao
valor central de um determinado grupo de dados, a partir do momento que se ordena tal
grupo em ordem crescente. Caso a quantidade de dados seja par, deve ser realizada a média
dos dois valores centrais.
33
Stuart Schwartz estabelece a faixa dos adultos entre 14 e 50 anos. Góes e Florentino, em
trabalho conjunto, por sua vez, estabeleceram os adultos enquanto sujeitos entre 15 e 40
anos. Um terceiro recorte foi estabelecido por Luna e Klein, que indicaram o recorte entre
15 e 64 anos. Cf.: SCHWARTZ, Stuart B. Segredos internos: engenhos e escravos na
sociedade colonial, 1550-1835. Trad. Laura Teixeira Motta. São Paulo: Companhia das
Letras, 2011 [1988]. FLORENTINO, Manolo. GÓES, José Roberto. A paz das senzalas:
famílias escravas e tráfico atlântico, Rio de Janeiro, c. 1790 – c. 1850. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1997; LUNA; KLEIN, 2005.
42
Diaspora

anos para o aproveitamento no trabalho agrícola de um indivíduo, cabe


o questionamento: ela seria a mesma para os engenhos e para fazendas
de cafe ou seria a mesma para distintos pontos do processo produtivo?
Foram escolhidas as seguintes faixas (Tabela 3): (i) a primeira, formada
por crianças e jovens, aglutina indivíduos ate 14 anos de idade – esse
primeiro grupo e formado por sujeitos que ate poderiam ter ocupaçoes
nos engenhos, em atividades secundarias, mas nao integrados nos
trabalhos preponderantes de um engenho –; (ii) a segunda, formada por
adultos, contempla idades entre 15 e 49 anos – esses, por sua vez, eram
os principais trabalhadores das unidades produtivas, os quais deveriam
ser os responsaveis pelas principais tarefas; e (iii) a terceira, formada
pelos considerados idosos, acomoda os cativos acima dos 50 anos –
esses, por sua vez, tambem tinham funçoes nos engenhos, inclusive nas
colheitas, mas, devido a idade, poderiam apresentar uma produtividade
menor, quando comparada aos mais jovens. Por fim, as idades nas listas
nominativas de habitantes, por exemplo, apresentam inconsistencias
quando vistas ano a ano, nao sendo raro encontrar um sujeito com 30
anos em uma lista e, no ano seguinte, ter sido recenseado com 35 anos.
Isso se deve a uma serie de fatores, entre eles a origem declaratoria do
documento, a falta de interesse e conhecimento sobre sua idade e
tambem o costume de declarar a idade em finais 0 e 534.
Analisando as informaçoes levantadas (Tabela 3), e perceptível
que o índice de adultos, mesmo durante o processo de aumento no total
de cativos, se manteve estavel, entre 1794 e 1805 (Tabela 3), período em
que nao so foram instalados novos engenhos, como muitos aumentaram
sua capacidade produtiva. Porem, em 1809, quando a produçao
açucareira de Campinas atingiu o auge – que seria recuperado apenas
uma decada depois – a populaçao cativa entre os adultos (15-49 anos)
chegou a representar 75,9% de todos os escravizados das unidades

34
Em estudo sobre o perfil demográfico da população na cidade de Itu no ano de 1836,
evidenciei que, apesar existir em todas as camadas da população, a atração pelas idades
terminadas em 0 e 5 foi encontrada em maior número para aqueles recenseados enquanto
pardos e, especialmente, pretos. Isso se deve, possivelmente, porque idades eram mal
conhecidas, especialmente entre os escravizados. Cf.: NICOLETTE, Carlos E. A vila de Itu
sob o olhar da Demografia Histórica: Lista Nominativa de Habitantes de 1836. Ensaios de
História (Franca), v. XVIII, p. 111-141, 2013-2017. p. 127-130.
43
Carlos Eduardo Nicolette

açucareiras. O numero de crianças, ainda que com alguma variaçao,


tambem permaneceu estavel durante todo período de 1794 a 1809, nao
levando a crer que foi o aumento de crianças que abaixou a media de
idade da populaçao cativa. A hipotese e que tal fenomeno apenas
ocorreu, porque os proprietarios estavam adquirindo novos cativos
jovens, entre 15 e 25 anos, tendo em conta que seria natural o
envelhecimento das escravarias, bem como o numero de crianças que
poderia chegar nessa faixa nao era suficiente para modificar o quadro
etario dessa maneira. A diminuiçao de escravizados acima dos 50 anos
parece validar a hipotese. E importante reiterar que nesse momento o
trafico negreiro para o Rio de Janeiro se intensificava35, facilitando a
entrada de cativos africanos para a capitania paulista.

Fonte: AHU, Mappa dos Engenhos de assucar..., Post. 1798; APESP,


LNH, Jundiaí, 1794; APESP, LNH, Campinas, 1798, 1805, 1809.

Considerações Finais

O presente trabalho nao pretende esgotar o tema, mas, sim,


apontar para um caminho a ser trilhado pela historiografia. Essa
contribuiçao se encontra em uma rede de outras possibilidades que,
certamente, tem muito a contribuir para a investigaçao de nosso
passado colonial. Reitera-se que a posse de cativos, na sociedade
colonial, era tambem um aspecto de distinçao social, a escravidao
dentro de um engenho se tornou aspecto fundamental de sua propria
existencia, tendo em conta que o trabalho cativo foi a base para a
produçao do açucar. Para plantar, colher e manufaturar quantidades

35
FLORENTINO; GÓES, 1997.
44
Diaspora

cada vez maiores de cana-de-açucar, eram necessarios, evidentemente,


mais escravizados e assim fizeram os senhores de Campinas.
A montagem do parque açucareiro de Campinas foi um
processo que demandou diversas condiçoes, como os investimentos e os
recursos ali alocados e a migraçao de uma populaçao que buscava
aproveitar aquela quadra historica de oportunidades antes nao vistas
em territorio paulista, especialmente em uma zona de fronteira agrícola
colonial ainda aberta. A instalaçao de tantos engenhos demandou,
sobretudo, a expansao da escravidao em suas terras, levando para
Campinas aqueles que, de fato, plantaram, colheram e manufaturaram a
cana de açucar: mulheres e homens escravizados.
A rapida montagem dos engenhos em Campinas e o grande
enriquecimento dos senhores de engenho e negociantes que ali
investiram seus capitais no alvorecer do seculo XIX so foram fenomenos
possíveis em razao da violencia escravista praticada em milhares de
pessoas negras ali submetidas ao longo das decadas. Como foi apontado
no presente texto, a populaçao cativa de Campinas teve seu perfil
demografico transformado rapidamente, se tornando majoritariamente
jovem e masculina. Isso porque a oportunidade de adentrar no mercado
internacional de açucar fez com que fossem trazidos cativos, mulheres e
sobretudo homens, para serem explorados nos engenhos paulistas.
A escravidao foi inquestionavelmente uma instituiçao violenta
e repressora, sendo a ampliaçao dessa instituiçao a força motriz para
que os engenhos campineiros se tornassem viaveis perante a
competiçao do açucar cubano no mercado europeu. Alem disso, houve
tambem a intensificaçao do trabalho cativo no início do seculo XIX,
quando foram exigidas rotinas cada vez mais exaustivas no eito
canavieiro, a fim de aumentar a produçao de açucar, sendo de
fundamental importancia que futuras pesquisas investiguem as
consequencias da ampliaçao da violencia escravista no cotidiano dos
cativos, analisando os efeitos desse fenomeno em suas resistencias
diarias, na formaçao de suas famílias e no estabelecimento de laços de
solidariedade ao longo de suas vidas.

45
Carlos Eduardo Nicolette

BIBLIOGRAFIA
Fontes

Copia da Ordem Real, 1748. Documentos interessantes para a historia e


costumes de Sao Paulo. Sao Paulo: Dep. do Arquivo do Estado de Sao Paulo,
vol. 73, 1952.
Mappa dos Engenhos de assucar que existem na villa de Sam Carlos desde o
anno de 1793 ate o anno de 1798 com o numero de escravos ocupados e seus
rendimentos anuais. Mapas com resumo geral dos engenhos de açucar que
exis- tem na capitania de Sao Paulo. Arquivo Historico Ultramarino.
Administraçao Central. Conselho Ultramarino. Brasil-Sao Paulo. Post. 1798, cx.
14, d. 698.

ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO

LISTA NOMINATIVA DE HABITANTES


Jundiaí
1794: Disponível em: lata 89

São Carlos (Campinas)


1798. Repositorio Digital. Disponível em: http://www.
arquivoestado.sp.gov.br/uploads/acervo/textual/macos_populacao/025_003.
pdf.
1799. Repositorio Digital. Disponível em: http://www.
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1800. Repositorio Digital. Disponível em: http://www.
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1803. Repositorio Digital. Disponível em: http://www.
arquivoestado.sp.gov.br/uploads/acervo/textual/macos_populacao/025_007.
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1805. Repositorio Digital. Disponível em: http://www.
arquivoestado.sp.gov.br/uploads/acervo/textual/macos_populacao/025_009.
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46
Diaspora

1807. Repositorio Digital. Disponível em: http://www.


arquivoestado.sp.gov.br/uploads/acervo/textual/macos_populacao/026_002.
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1809. Repositorio Digital. Disponível em: http://www.
arquivoestado.sp.gov.br/uploads/acervo/textual/macos_populacao/026_004.
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49
Biografia de Carlos Eduardo Nicolette

Graduado em Historia (Bacharelado e Licenciatura) e mestre


em Historia Social, pela Universidade de Sao Paulo (USP). Sua
dissertaçao, intitulada “A luz do ouro branco: lavoura canavieira paulista
e a montagem do parque açucareiro de Campinas (c. 1790-1818)”, foi
orientada pelo Prof. Dr. Carlos de Almeida Prado Bacellar e financiada
pela Fundaçao de Amparo a Pesquisa do Estado de Sao Paulo (FAPESP).
Contato: carlos.nicolette@outlook.com.

50
51
2. O Extremo Sul em Foco: análise
das redes de sociabilidades (d)entre
escravizados na Vila de Rio Grande
de São Pedro no século XVIII

Caroline Ortiz Fortes


Carine Ortiz Fortes

Introdução

O presente trabalho tem origem1 na ampla discussao das


potencialidades de assentos de batismos, como fonte primaria para
analisar as dinamicas de relaçoes de compadrio presentes nas
comunidades escravizadas, fornecendo pistas as estrategias para
constituiçao de redes de solidariedade entre os sujeitos, baseadas em
laços sociais, familiares e espirituais. Com base em nossas pesquisas, foi
criado um inventario a partir dos registros paroquiais da Catedral de
Sao Pedro, que ocorreram no período de 1790 a 1800, conforme as
seguintes hipoteses: a) ocorrencia de categorias hierarquicas na
disposiçao de poder social; b) escolhas horizontais e verticais guiadas
por interesse de superar sua condiçao de cativo; c) existencia de grupos

1
Essa pesquisa partiu da motivação pessoal da pesquisadora Caroline Ortiz Fortes,
empenhada na redação de um importante artigo para uma disciplina de História
Demográfica, no Mestrado em História. A partir dos esboços iniciais do projeto de
pesquisa e das atividades entregues ao programa de pós-graduação, a autora obteve a
ajuda da pesquisadora Carine Ortiz Fortes, que auxiliou na correção, na revisão e no
aprofundamento deste trabalho.
53
Caroline e Carine Ortiz Fortes

etnicos; e) formaçao de alianças e vínculos de proteçao; e f) escolhas


direcionadas pelo senhor no processo de escolha dos padrinhos.
Primeiramente, analisaremos a possibilidade dessas
informaçoes estarem disponibilizadas nos livros de assentos de batismo
da Catedral de Sao Pedro de Rio Grande, registrados na segunda metade
do seculo XVIII, as quais integram o acervo disponibilizado na
plataforma online FamilySearch.org de forma acessível e gratuita,
enquanto principal base documental da investigaçao. A escolha para
analisar esse material foi guiada pela contribuiçao teorica e
metodologica da Historia Demografica que auxilia a reconstituiçao das
famílias coloniais a partir do tratamento sistematico dos registros
paroquiais de obitos, casamentos, batizados e ritos sacramentais da
Igreja, os quais implicitamente desvelam variaveis demograficas
operantes no período pre-censitario2.
Nesse sentido, elegeu-se um escopo reduzido de registros de
compadrio como foco central para a compreensao da unidade familiar
baseada em parentescos espirituais - ou seja, aqueles criados pelo
apadrinhamento - formados no interior das comunidades escravizadas,
resultantes da afetividade, afinidade e de interesses, cuja produçao
material influenciava na organizaçao política, de forma a produzir
estrategicas de transcender as posiçoes hierarquicas presentes na
estruturaçao da sociedade riograndina3.
Diante dessas circunstancias, convem a dedicaçao a esse
registro, devido ao seu potencial de amplificar noçoes que abordem as
vivencias das almas escravizadas como parte das teias das relaçoes
coloniais. Intensifica-se, assim, uma compreensao da maneira como
sujeitos e agentes de processos historicos, por muitas vezes cerceados
pela condiçao imposta e instituída do cativeiro, desenvolveram
estrategias para a sobrevivencia e continuidade.

2
DEMETRIO, Denise Vieira. Famílias Escravas no Recôncavo da Guanabara: Século XVII e
XVIII. Dissertação (Mestrado) - Programa de Pós-Graduação em História, Instituto de His-
tória, Universidade Federal Fluminense, Niterói - RJ, maio de 2008.
3
VENÂNCIO, Renato Pinto. Compadrio e rede familiar entre forras na Vila Rica, 1713 -
1804. In: Anais da V Jornada Setecentista, Curitiba - PR, novembro de 2003.
54
Diaspora

Destacamos a importancia de reconhecer e valorizar as


inquietaçoes que direcionaram essa pesquisa: Existiram redes de
solidariedade nas relaçoes de compadrio das comunidades negras, em
Rio Grande de Sao Pedro? Se existiram, foram baseadas nas hierarquias
sociais presentes na sociedade colonial? Essa dinamica estava sendo
guiada por interesses que possibilitaram transcender níveis na escala de
poder social ou mante-los? Na construçao desses laços, existiu um
reconhecimento identitario? As escolhas dos padrinhos eram induzidas
por alianças ou vínculos de proteçao? E, por fim, qual era o papel do
senhor nesse processo de apadrinha- mento?

Relações de compadrio na Vila de Rio Grande e a ausência


de vivências pretas nos pampas: inventar(iar) uma História

A atual cidade de Rio Grande, fundada em 1737, foi o “primeiro


referencial urbanístico luso-brasileiro nas terras meridionais do Brasil”4
que se consolidou por processos militares e colonizatorios, com o
objetivo de intensificar o domínio portugues no extremo sul do país,
frente a constantes disputas protagonizadas pelas coroas da Espanha e
de Portugal, na busca de obter territorios proximos a regiao do Rio da
Prata, importante localidade para exportaçao e importaçao de
mercadorias.
O historiador Luiz Henrique Torres, no seu livro “Historia do
Município de Rio Grande: fundamentos” (2015), explica que “o controle
do Rio da Prata significava a intervençao na produçao escoada pelos rios
Uruguai, Paraguai e Parana, e a chegada e a saída de navios e produtos
que navegavam pelo Oceano Atlantico”5, indicando a importancia desse
territorio para o mercado nacional e internacional.
Em 1751, surge o primeiro município do Rio Grande do Sul
(RS), nomeado como “Vila do Rio Grande de Sao Pedro”, caracterizado

4 TORRES, Luiz Henrique. História do Município do Rio Grande: fundamentos. Rio Grande:
Pluscom Editora, 2015.
5 Ibidem.

55
Caroline e Carine Ortiz Fortes

pelas forças militares e pela presença da primeira Camara de Vereadores


e primeira capital administrativa do RS, ate o ano de 1763, quando foi
transferida para Porto Alegre. Em seguida, no ano de 1755, e construída
a catedral de Sao Pedro, sendo a construçao mais antiga sul-rio-
grandense e em atividade, desde entao.
Ja em 1776, ha a derrota espanhola, que estabelece novos
povoamentos civis naquele local, assim como investimentos nos setores
militares e portuarios. Esses fatos resultam em uma prosperidade
economica no final do seculo XVIII, obtida atraves dos recursos do
comercio de escoamento de produtos ligados ao gado. Nesse sentido, “o
porto assume funçao essencial para a nascente economica da Capitania
do Rio Grande de Sao Pedro, sendo tambem o ponto de chegada dos
produtos vindos de outras localidades”6, nacionais e internacionais. Vale
ressaltar que o porto da cidade tambem integrou o circuito do mercado
e comercio de pessoas africanas, no período de 1500 a 1888.
O objetivo principal ate aqui foi problematizar, ainda que
superficialmente, as relaçoes de compadrio presentes nos registros
paroquiais do período de 1790 a 1800, da Catedral de Sao Pedro,
localizada na cidade de Rio Grande - Rio Grande do Sul, disponibilizadas
em formato de acervo digital no site FamilySearch.org de forma gratuita.
Assim, acredita-se que sera possível compreender as possíveis
categorizaçoes que conectem a posiçao nas relaçoes sociais coloniais
dos sujeitos escravizados registrados na documentaçao.
A analise busca inventariar a) A aplicabilidade das categorias
hierarquicas discutidas acima; b) As escolhas horizontais e verticais
dentro da disposiçao de poder na estrutura social; c) A diversidade de
grupos etnicos; d) O estabelecimento de possíveis alianças e vínculos de
proteçao; e) O papel do senhor no processo de escolha dos padrinhos.
A proposta toma como cenario as redes de sociabilidades
escravas, constituídas por meio do laço espiritual que e o batismo. Esse
sacramento foi utilizado de forma estrategica pelas pessoas africanas
para construir alianças. E, na contemporaneidade, pode vir a ser
utilizado como fonte de reconstruçao da genealogia de laços afetivos.

6
Ibidem.
56
Diaspora

Acreditamos que e possível a visualizaçao de indivíduos


invisibilizados pela historia e cultura tradicional gaucha, mas
inegavelmente presentes nas fontes primarias. Investigaçoes como essa
sao necessarias, justamente por ampliarem as discussoes no ambito do
ensino e a compreensao da historia rio-grandense.
Esses registros nos auxiliam a visualizar o período colonial, a
partir de outras perspectivas, ja que a populaçao negra escravizada da
epoca ocupa papel fundamental na construçao e constituiçao da historia
do Rio Grande do Sul e, portanto, os reconfigura e os reposiciona
enquanto agentes políticos e sociais na Historiografia.
O acervo digital promove outras perspectivas ao acesso da
Historia Digital e acervo online. A Historia Demografica baseada em
Sergio Odilon Nadalin (2004)7 auxiliou na compreensao dos dados
presentes na documentaçao e na construçao do inventario. As
possibilidades dessas fontes documentais nao se esgotam nas
atividades que indiquem o evoluir demografico, mas sao relevantes para
abordagens preocupadas com dinamicas presentes nas comunidades
preteritas8, como e o exemplo das relaçoes de sociabilidade escravas.
Nesse sentido, entendemos que e possível promover fissuras nos
pressupostos da Historiografia Tradicional Gaucha que, a partir de um
contrato consensual entre os historiadores sulistas sobre a “quase
ausencia da escravidao”9, desautorizou vivencias pretas nos pampas.

Registros Paroquiais, História Demográfica e escravidão na


Vila de Rio Grande de São Pedro: uma discussão teórica

7 NADALIN, Sérgio Odilon. História e Demografia: Elementos para um diálogo. São Paulo.
Editora: Associação Brasileira de Estudos Populacionais - ABEP, 2004.
8 DEMETRIO, Denise Vieira. Famílias Escravas no Recôncavo da Guanabara: Século XVII e

XVIII. Dissertação (Mestrado) - Programa de Pós Graduação em História, Instituto de


História, Universidade Federal Fluminense, Niterói - RJ, maio de 2008.
9 MARQUES, Rachel dos Santos. Para Além dos Extremos: Homens e mulheres livres e

hierarquia social (Rio Grande de São Pedro, c. 1776 - c. 1800). Tese (Doutorado) - Programa
de Pós Graduação em História, Universidade Federal do Pará, Curitiba - PR, 2016, p. 14.
57
Caroline e Carine Ortiz Fortes

O seculo XVIII foi marcado pela presença da instituiçao da


Igreja Catolica Romana no cotidiano das populaçoes do Novo Mundo na
America portuguesa. Segundo o autor Sergio Odilon Nadalin, em seu
livro “Historia e demografia: elementos para um dialogo” (2004), as
primeiras constituiçoes do Arcebispado da Bahia, lançadas em 1707,
valeram-se de prerrogativas baseadas no Concílio de Trento (1545-
1563), que instituiu e normatizou a obrigatoriedade de registro dos
principais sacramentos: os Batismos, os Matrimonios e os
Sepultamentos. O principal intuito dessa atividade era exercer maior
domínio sobre os processos do ciclo da vida dos cristaos catolicos e,
posteriormente, serviu para controlar a sociedade como um todo10.
Quanto ao sacramento aqui analisado, Nadalin explica que
“nesse aspecto, os dispositivos legais eram mais respeitados, [porque]
batizar era uma questao fundamental de sobrevivencia, e nao so apos a
morte!”11, devido a consideravel mortalidade de recem-nascidos na
epoca. Alem disso, esse primeiro sacramento representava a uniao da
pessoa batizada, iniciando sua vida no espírito em conciliaçao com a
Igreja e Deus.
De acordo com a tese intitulada “Para Alem dos Extremos:
Homens e mulheres livres e hierarquia social (Rio Grande de Sao Pedro,
c. 1776 - c. 1800)” (2016), esse rito de passagem no territorio sul-rio-
grandense começou nas primeiras decadas do seculo XVIII e, em 1737,
marca-se o início dos registros em acervos documentais:

Assim, nem bem o presídio havia sido fundado e


iniciou-se o deslocamento de pessoas para la e para
seu entorno. Em 1738 chegaria o primeiro paroco na
entao ja criada (em provisao de agosto 1736)
Freguesia de Sao Pedro do Rio Grande, e se iniciariam
os registros paroquiais, por meio dos quais e possível
perceber a pluralidade de sua populaçao: militares de
alta patente, soldados, casais, mulheres solteiras que
vieram por incentivo do governador do Rio de Janeiro,
refugiados do grande cerco a Colonia do Sacramento,

10 NADALIN, Sérgio Odilon. História e Demografia: Elementos para um diálogo. São Paulo.
Editora: Associação Brasileira de Estudos Populacionais - ABEP, 2004.
11
Ibidem (p. 44).
58
Diaspora

índios, escravos, homens livres, muitos deles


provavelmente pobres outros nao tao pobres. 12

Essa localidade e de extrema relevancia para os estudos em


Historia, pois nos auxilia a visualizar os padroes de sociabilidade e
relacionamentos interpessoais na epoca, assim como as estrategias de
resistencia da populaçao escravizada. O autor Barcellar (2011), em seu
trabalho intitulado “Os compadres e as comadres de escravos: um
balanço da produçao historiografica brasileira”, revela características
importantes dessas redes de apoio e resistencia, ao apresentar
informaçoes importantes sobre o papel do compadrio escravo e dos
registros paroquiais.
Pensando a partir das categorias hierarquicas presentes nas
relaçoes coloniais da epoca, os compadrios “podiam ser da mesma
condiçao social do batizado, i.e., cativos, caracterizando um escolha
‘horizontal’, ou podiam ser de condiçao social superior, livres portanto,
numa opçao de escolha ‘vertical’” (p. 2). O compadrio horizontal era
aquele que acontecia no interior das senzalas, de modo que era
escolhido(a) o(a) companheiro(a) que ja estava em meio a comunidade
que fora construída entre os escravos de determinada fazenda, ou no
exterior da propriedade, sendo esses os convites de apadrinhamento de
pessoas escravizadas de outras localidades e regioes, restabelecendo
vínculos de parentesco (p. 2). Cabe a nos nos questionarmos sobre qual
e o papel do escravizador no processo de escolha dos padrinhos.
O escravizador influenciava e interferia no processo de
apadrinhamento, uma vez que os batismos representavam registros e
documentos de propriedade do sujeito escravizado, e construía vínculos
entre os escravos, de maneira a possibilitar sua proximidade entre si,
portanto, “nao ha razao para se considerar que a cerimonia lhe era
totalmente indiferente” (p. 4).

12MARQUES, Rachel dos Santos. Para Além dos Extremos: Homens e mulheres livres e
hierarquia social (Rio Grande de São Pedro, c. 1776 - c. 1800). Tese (Doutorado) - Programa
de Pós Graduação em História, Universidade Federal do Pará, Curitiba - PR, 2016, p. 41.
59
Caroline e Carine Ortiz Fortes

De acordo com Demetrio (2008)13, e importante mapear as


relaçoes de compadrio entre a elite local e a populaçao escrava. A autora
evidencia que o comportamento da variabilidade demografica pre-
censitaria pode ser desvelado por meio do tratamento tecnico e
sistematico de fontes paroquiais, utilizando-as como uma ferramenta.
Esses registros nos auxiliam nao so a repensar a evoluçao
demografica, como tambem “avançar em temas ainda pouco conhecidos
de nossa historia social, economica e administrativa; lançam luz,
ademais, sobre aspectos da vivencia quotidiana, habitos, costumes e
praticas diversas”14. Nesse sentido, e possível afirmar que as redes de
sociabilidade nas comunidades escravizadas na Vila de Sao Pedro estao
presentes nas dinamicas coloniais e na historiografia sul-rio-grandense,
mesmo com as constantes tentativas de apagamento e criminalizaçao
das narrativas afrogauchas.
Vale ressaltar que ate os anos 50, a Historiografia Tradicional,
atraves de obras como “Esboço da formaçao social do Rio Grande do Sul”,
criada por Rubens de Barcellos, publicada em 1955, e o escrito “A
formaçao do Rio Grande do Sul”, por Jose Salis Goulart, de 1927,
defendiam a ideia de “pureza etnica”, afirmando um carater brando e
benigno da escravidao no Rio Grande do Sul e, tambem, minimizando,
excluindo a representaçao dos cativos na historiografia sul-rio-
grandense15 e contribuindo para a invisibilidade das comunidades
negras nessa regiao.
A partir dos anos 60, ha o movimento de estudos baseados em
abordagens que visualizem pessoas escravizadas como agentes
historicos de açao e transformaçao no seu contexto, ampliando as
noçoes pre-concebidas na area de conhecimento da Historia e das
Ciencias Humanas. Na regiao Sul, alguns autores se tornaram
referencias para o ambito academico, por meio de seus trabalhos sobre

13 DEMETRIO, Denise Vieira. Famílias Escravas no Recôncavo da Guanabara: Século XVII e


XVIII. Dissertação (Mestrado) - Programa de Pós-graduação em História, Instituto de His-
tória, Universidade Federal Fluminense, Niterói - RJ, maio de 2008.
14
Ibidem (p.42).
15 MAESTRI, Mário. História e Historiografia do Trabalhador Escravizado no Rio Grande

do Sul, 1984.
60
Diaspora

a tematica, como e o caso da contribuiçao teorica da pesquisa de Mario


Maestri Jr (1984, 2006, 2008)16. Em sua tese de doutorado, “O Escravo
no Rio Grande do Sul: a charqueada e a genese do escravismo gaucho”,
defendida em 1980, Maestri desenvolveu um estudo sobre a atuaçao das
pessoas escravizadas na sociedade gaucha, objetivando comprovar a
importancia dos africanos e seus descendentes na formaçao social,
cultural e economica rio-grandense.

Acervo digital, dificuldades e categorias encontradas: uma


discussão metodológica

Atualmente, ha um debate extenso sobre as intençoes políticas,


sociais, culturais e economicas de empresas que se propunham a criar
Big Data (grandes bancos de dados informacionais no ambito digital) e
os impactos das tecnologias digitais de arquivamento. Naturalmente,
surgem questionamentos acerca das intencionalidades das instituiçoes
que propoem a criaçao de grandes bases de dados genealogicos, pois
esses revelam as origens e as geraçoes familiares de um indivíduo.
Lançado em 1999, o site da FamilySearch.org torna-se “a maior
organizaçao genealogica do mundo, sem fins lucrativos, dirigida por
voluntarios, patrocinada pela A Igreja de Jesus Cristo dos santos dos
ultimos dias”17 e, ao longo dos ultimos anos, milhoes de pessoas
utilizaram os serviços oferecidos por essa organizaçao, para investigar
sua propria arvore genealogica.
Logo de início, houve desafios no sentido de observar os
criterios e a organizaçao dos dados da plataforma. Com a analise

16 Idem. O Escravo no Rio Grande do Sul. A charqueada e a gênese do escravismo gaúcho,


2006. História e Historiografia do Trabalhador Escravizado no RS: 1819-2006. In: G. LE-
CHINI, Los estudios afroamericanos y africanos em América Latina: herancia, presencia y
visiones del outro. Buenos Aires: Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales, p 53 - 88.
2008.
17 Souza, M. C. (2021). O documento de arquivo na busca pela história familiar: um estudo

de caso do projeto Family Search. Trabalho de Conclusão de Curso em Arquivologia,


Universidade Federal Fluminense, Niterói - RJ, 2021, p. 32.
61
Caroline e Carine Ortiz Fortes

documental, observa-se, tambem, que nao ha a presença de criterios


científicos, advindos dos campos arquivologicos, historicos,
arqueologicos, antropologicos ou de outras areas das Ciencias Humanas.
Essa plataforma e muito mais utilizada na vida cotidiana.
Embora a proposta central da investigaçao nao tenha sido
completada devido ao grande volume de registros nesses anos, optou-
se por restringir o recorte para o início do ano de 1790 e, assim, analisar
de maneira mais específica cerca de 60 registros de batismo
encontrados na plataforma. Trazemos, ao longo da discussao, 10 casos
que nos auxiliam a visualizar as relaçoes sociais estabelecidas na epoca.
Quanto a organizaçao das atas de batismos, entendemos que:

Da mesma forma que os registros de casamentos,


cumpre salientar os livros de batismos, passíveis do
estabelecimento de series, e que interessam
particularmente ao historiador da populaçao. Estes
documentos contem dia, mes e ano do batismo,
prenome (indicando o sexo) da criança, nomes e
prenomes dos pais, condiçao da criança (legítima,
ilegítima, exposta), residencia dos pais, nomes e
prenomes do padrinho e da madrinha, residencia dos
padrinhos, e assinatura do vigario. De maneira
variavel, as atas tambem indicam a paroquia de
nascimento dos pais.18

Nao foi encontrada nenhuma conformidade na organizaçao


das informaçoes em serie, o que dificultou o inventario. Os registros de
batismos aparecem no site, estando organizados em dois idiomas
(ingles e portugues), utilizando 10 categorias pre-definidas, como: a)
nome; b) sexo; c) date (data); d) unknow type (tipo desconhecido); e)
lugar de residencia; f) data de batismo; g) lugar do batismo; h) data de
nascimento; i) ocupaçao; e j) tipo de evento.
Como nao ha a sistematizaçao dos dados, eles nao se
encontram devidamente preenchidos. Um exemplo e o caso de

18NADALIN, Sérgio Odilon. História e Demografia: Elementos para um diálogo. São Paulo.
Editora: Associação Brasileira de Estudos Populacionais - ABEP, 2004, p. 57.
62
Diaspora

“Genoveva Preta Viuva”, que demonstra apenas informaçoes acerca do


sexo (female), tipo desconhecido (“nasçao” Angola). As informaçoes
incompletas dificultam e distorcem a compreensao dos dados. Tambem
foram identificadas a abreviaçoes recorrentes, como “[nome] frz de
[sobrenome]” e o caso de “Pedro Per. Frz de Magtiz”, alem de “Pedro
Pereira frz. de Mezet”, sem uma nota de explicaçao sobre o que
significaram essas abreviaçoes a epoca.
Apesar disso, foi possível encontrar nesse corpus documental
algumas categorias, como: características matrimoniais, identidades
etnicas e casos que descreviam as posiçoes na escala do poder dos
batizados. Sobre os matrimonios que constavam nas fontes, encontrou-
se dois casos: a “Genoveva Preta Viuva”, possivelmente de “nasçao
Angola”, e o caso de “Joao Antonio de Meireles [e] Anna Maria, cazados.
Torres”. Algumas pessoas tinham a solteirice tambem ressaltada como a
“Anna Preta, Solteira”, possivelmente de “nasçao Congo”. Quanto ao
sacramento, tambem regulamentado pelo Concílio de Trento, Nadalin
explica que “o casamento era socialmente valorizado na Colonia, porque
o status de casado e o apego aos ritos exteriores das nupcias conferiam
legitimidade social”19, ou seja, nesse período era conferido status quo ao
status de relacionamento.
No que diz respeito as identidades etnicas, percebemos a
diversidade de naçoes registradas e, majoritariamente, a presença de
Angola, Congo e Benguela. Esse ultimo, escrito de diversas formas,
como: “Banguella”, “Barguella” e “Banquela”. De fato, sabemos que o
apagamento historico, etnico-linguístico e subjetivo tambem foi
utilizado como metodo de tortura durante o período escravocrata e
ainda continua a afetar os descendentes das pessoas escravizadas.
Registros como esses podem auxiliar na construçao de
autopertencimento, autovalorizaçao e autoestima em pessoas que
busquem a reconstituiçao do seu passado, da historia afrodiasporica e
da Historia Africana.
Por fim, sobre a hierarquia social colonial, foi encontrado
apenas um registro que mostra de maneira explícita a condiçao na

19 Ibidem (p. 42).


63
Caroline e Carine Ortiz Fortes

hierarquia social colonial, sendo esse o caso de “Simao Preto Forro”, que
apresentava seu estatuto jurídico e, por conseguinte, sua posiçao no
contexto das relaçoes sociais colonialistas. Assim como em outros
registros, nao foi possível identificar seu padrinho e sua madrinha, tao
pouco dados que comprovem que ele havia apadrinhado alguma
criança. E possível inferir que Simao Preto teria preferencia no jogo das
redes sociais estabelecidas. A partir desse banco de dados, nao foi
possível estabelecer as relaçoes de apadrinhamento entre os
escravizados, pois essas informaçoes nao estavam disponíveis
diretamente na plataforma.
Ainda sobre a categorizaçao na hierarquia social, apesar da
quase completa ausencia das condiçoes jurídicas de “escravo”, “livre” e
“forro” dos 60 registrados, e notavel a frequente apariçao da
característica fenotípica, como “sobrenome”. Como exemplos, podem
ser citados os casos de: “Maria Preta”, possivelmente “Barguella”, a
“Izabel Preta”, possivelmente “Banguella”, da “Atonia Preta”, e da
“Victoria Preta”. Ha tambem outras ocorrencias, possibilitando refletir
sobre a hierarquia social baseada na tonalidade de pele.

Considerações finais

Identificamos a presença das categorias pretendidas ao longo


do estudo, no que tange a compreender sobre as hierarquias sociais
presentes nas sociedades coloniais da epoca; isso ocorreu por meio da
analise das relaçoes de sociabilidade dos escravizados e das estrategias
de resistencia desenvolvidas no período, por meio da presença de
características etnicas da populaçao estudada.
Apesar das dificuldades na construçao dessa pesquisa,
entendemos que os registros paroquiais podem ser fontes importantes
para mapear as redes de sociabilidades existentes nas comunidades
africanas e afrodiasporicas da cidade de Rio Grande de Sao Pedro.
Assim, esse artigo contribui para a transformaçao da Historiografia
afrogaucha, que insiste em apagar e deslegitimar as contribuiçoes
pretas nesse territorio. Ao visualizar o(a) escravizado(a) enquanto
64
Diaspora

indivíduo, restituímos a humanidade que a ele(a) fora questionada


outrora.
Os estudos que interseccionem a genealogia, os acervos
documentarios e a escravizaçao ainda sao incipientes no Brasil. Por fim,
e preciso considerar que, ao falarmos sobre a escravizaçao, tambem
falamos sobre as historias das nossas famílias, tanto daqueles que ainda
sofrem pelas desigualdades sociais, quanto (e principalmente) daqueles
que possuem os privilegios e colhem os frutos de seculos de
subalternizaçao de um povo.

Referências

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escravos: um balanço da produçao historiografica brasileira. In: Anais do XXVI
Simposio Nacional de Historia – ANPUH. Sao Paulo, jul. 2011.
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Seculo XVII e XVIII. Dissertaçao (Mestrado) - Programa de Pos Graduaçao em
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MAESTRI, Mario. Historia e Historiografia do Trabalhador Escravizado no Rio
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América Latina: herancia, presencia y visiones del outro. Buenos Aires:
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livres e hierarquia social (Rio Grande de Sao Pedro, c. 1776 - c. 1800). Tese
(Doutorado) - Programa de Pos Graduaçao em Historia, Universidade Federal
do Parana, Curitiba - PR, 2016.

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Caroline e Carine Ortiz Fortes

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2004.
SOUZA, M. C. O documento de arquivo na busca pela história familiar: um
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Arquivologia, Universidade Federal Fluminense, Niteroi - RJ, 2021.
TORRES, Luiz Henrique. História do Município do Rio Grande:
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VENANCIO, Renato Pinto. “Compadrio e rede familiar entre forras na Vila Rica,
1713 - 1804” In: Anais da V Jornada Setecentista. Curitiba, nov. 2003.

66
Biografia de
Caroline Ortiz Fortes e Carine Ortiz Fortes

Caroline Ortiz Fortes

Licenciada em Historia pela Universidade Federal do Rio


Grande (FURG) e mestranda no Programa de Pos-graduaçao em Historia
Social, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PPGH/UFRGS).
Tambem escreveu o livro “Nossos Pretos Velhos: Famílias Negras do
extremo sul do Rio Grande do Sul”, organizado pela Profa. Dra. Cassiane
Freitas Paixao e lançado pela Editora da FURG, no ano de 2019. Areas de
interesse: Educaçao em Historia, relaçoes etnico-raciais, movimentos
sociais, Historia da Africa e da Diaspora, escravidao urbana e
branquitude. Contato: fortes. carolinne@gmail.com

Carine Ortiz Fortes

Graduada em Psicologia, pela Universidade Federal do Rio


Grande (FURG), mestranda em Psicologia, com enfase em
Desenvolvimento Humano pela Universidade Federal do Rio Grande do
Sul (PPGPSICO/UFRGS). Integrante do Nucleo de Infancia e Família
(NUDIF/UFRGS). Areas de interesse: relaçoes etnico-raciais, políticas
publicas, colonialidade, movimentos sociais, psicologia social,
desenvolvimento infanto-juvenil, filosofia e diaspora africana,
subjetividades. Contato: carinnefortes@gmail.com

67
69
3. Reflexões acerca da História
Africana e da África Yorubana

Douglas Bandeira Ramos

Promulgada em 2003, pelo Estado Brasileiro, a Lei 10.639


torna obrigatorio o ensino de historia e cultura afro-brasileira. Neste
sentido, nao somente pelo imperativo da lei, mas por uma questao de
demanda social, reparaçao historica e luta antirracista, o conhecimento
e a pesquisa nessa area sao de suma importancia.
No estado do Rio Grande do Sul, onde a presença negra, tao
relevante, nao e valorizada historicamente como outras que tambem
contribuíram na sua formaçao e cultura, o ensino de historia da Africa
se torna ainda mais necessario.
Assim, este artigo busca, sumariamente, apresentar alguns
aspectos da historia da Africa, com foco na historia dos povos iorubas,
na medida em que, no Rio Grande do Sul, a religiao de matriz africana
conhecida como Batuque e uma das heranças mais visíveis da presença
africana nessas bandas meridionais e esta relacionada ao culto de
orixas, divindades dos povos iorubas, mas que tambem inclui elementos
de outros povos do golfo da Guine, como os jejes do Daome.
A historiadora ou o historiador que se aventura na pesquisa
sobre a historia da Africa depara-se, inicialmente, com um conjunto de
fontes e historiografia produzidas por pessoas que descreveram as
sociedades ou as paisagens africanas a partir de uma perspectiva
exogena ao continente, como no caso dos documentos em arabe. Eles

71
Douglas Bandeira Ramos

representam a principal fonte para o conhecimento da historia da Africa


antes do seculo XVI.
Com a chegada dos europeus, novas formas de descriçao
surgiram, com os relatos de viajantes, geografos, aventureiros e
missionarios que nao estavam interessados na historia africana, mas
tinham o objetivo de entender melhor as regioes em que faziam
comercio, como o trafico de pessoas destinadas a escravidao, por
exemplo. Como resultado, temos uma historiografia produzida por
poucos africanos, permeada por visoes racistas e preconceituosas como
a inferioridade do negro, a falta de civilizaçao em relaçao aos europeus
e a ausencia de historia.
Na segunda metade do seculo XX, no contexto de
independencia de alguns países frente ao colonialismo europeu, a lente
de interpretaçao da historia africana começou a mudar, com o
desenvolvimento de universidades nesses países e o aumento da
participaçao africana na construçao historiografica de sua propria
historia. Neste sentido, no final da decada de 1960, a Organizaçao das
Naçoes Unidas para a Educaçao, a Ciencia e a Cultura (UNESCO) iniciou
o projeto Historia Geral da Africa, reunindo africanistas de varias partes
do mundo, incluindo pesquisadores africanos. Alguns textos e autores
da coletanea da UNESCO sao a base para esta reflexao, como e o caso do
historiador britanico John Fage, que escreveu sobre a historiografia no
volume I, trazendo elementos importantes, alguns deles ja apontados
ate aqui.
Desde a antiguidade classica, a Europa mediterranica mantem
contato com o continente africano, gregos e egípcios, romanos e
cartagineses, bem como com o Oriente proximo. Uma das fontes que
revelam relaçoes comerciais antigas entre essas regioes, como indica
Fage, e o “periplo do mar da Eritreia”, importante documento historico
para o conhecimento, por exemplo, da costa Swahili as margens do
Indico.
No entanto, antes do seculo XVI, pouco se sabia sobre as
sociedades africanas ao sul do Saara, os sudaneses, como eram
conhecidos, e tambem sobre a costa atlantica. As principais fontes sao
os documentos em arabe, como por exemplo o “Tarikh al sudan”, escrito
72
Diaspora

em Tombuctu, ou as obras de Leao, o africano, Ibn Battuta ou Ibn


Khaldun, este ultimo como principal fornecedor de informaçoes a
respeito do Imperio do Mali.
No seculo XVIII, os europeus deram mais atençao a historia
africana em um contexto em que se discutia o fim ou nao do trafico
transatlantico e a escravidao. Em meio ao iluminismo e o renascimento,
que valorizavam a civilizaçao ocidental e europeia como superior as
outras, a escrita da historia da Africa foi influenciada por esses ideais.
O historiador alemao Hegel, conforme John Fage, nao
considerava a Africa como um continente historico. Tal premissa
reverberou em outros trabalhos e autores como Dalzel, que escreveu
“History of Dahomey” (1793) e entendia que as sociedades africanas
eram menos civilizadas em relaçao aos europeus.
No seculo XIX, o seculo da ciencia, a historia enquanto campo
do conhecimento era debatida e tambem aspirava para si a condiçao de
científica. Entretanto, em se tratando de historia da Africa, os
profissionais dedicados ao seu estudo eram arqueologos, linguistas e
principalmente antropologos, na medida em que os historiadores
estavam interessados na civilizaçao europeia.
No contexto da colonizaçao e exploraçao do continente por
países como França, Inglaterra e Belgica, algumas instituiçoes dedicadas
ao estudo da Africa se desenvolveram, principalmente entre os
franceses, no intuito de conhecer melhor as suas possessoes coloniais
africanas.
Desta maneira, antropologos e arqueologos contribuíram com
suas pesquisas profissionais, como Harry Johnston, Maurice Delafosse,
Leo Frobenius e Charles Gabriel Seligman, esse ultimo conhecido pela
hipotese camítica, teoria que atribui a origem das sociedades africanas
a influencia camítica, ou seja, estrangeira. Poucos africanos escreviam,
na medida em que seu conhecimento nao era considerado relevante
para a historiografia vigente. Um dos poucos foi o serra-leonino Samuel
Johnson, cuja obra dedicada aos iorubas e primordial para quem
pretende estudar a historia daquele povo.

73
Douglas Bandeira Ramos

Os aspectos sobre a historiografia africana apontados


sumariamente ate aqui indicam uma visao historica sobre a Africa,
construída a partir de um olhar estrangeiro, ou “extravertido”1, como
coloca Jose Rivair Macedo, que analisou o relato de viagem de Ibn
Battuta (Tuhfat al-Zuzzar fi gara’ib al amsar wa-aga’ib al-asfar) e a
utilizaçao de ideias e conceitos da historia europeia para analise do
passado africano, como idade media e feudalismo, por exemplo,
caracterizando uma perspectiva etnocentrica e eurocentrica. O autor
aponta em sua analise elementos que podem contribuir para uma visao
mais adequada sobre a historia africana:

Ao pretender uma aproximaçao com o passado das


comunidades locais, como as comunidades aldeas,
escapando do determinismo da visao e açao exclusiva
das elites, a melhor estrategia de abordagem parece
ser nao a seleçao de fontes e metodos de pesquisa,
mas a articulaçao entre eles e a confrontaçao de dados
de diferentes proveniencias. Admitindo que a cadeia
de transmissao das tradiçoes orais seja na maior parte
das vezes fragil, sujeita a variaçoes e alteraçoes, vazios
e por vezes sujeita a instrumentalizaçao com
finalidade política, a confrontaçao entre diferentes
versoes preservadas sobre as origens de
determinados grupos etnico-linguísticos e
determinadas tradiçoes dinasticas garante o rigor no
tratamento do material - que deve ser submetido a
sucessivas operaçoes de analise.2

No trecho supracitado, Rivair Macedo sugere uma articulaçao


entre fontes e metodos de pesquisa e a confrontaçao de dados, incluindo
a transmissao das tradiçoes orais. Um dos motivos pelos quais atribuiu-
se a Africa a qualidade de nao-historica foi a ausencia da escrita, ainda
que erroneamente, pois a historia so e historia a partir da escrita, antes
disso ela e uma pre-historia. Desta forma, a partir desta visao, se
negligenciou um dos aspectos intrínsecos as sociedades africanas, que
sao as tradiçoes orais. A oralidade no continente africano preserva o

1 MACEDO, José Rivair. Ibn Battuta, os hipopótamos e a “idade média” na África. p.7.
2
Ibidem.
74
Diaspora

passado a sua maneira e incide no presente atraves da organizaçao


social, no modo de viver.
Cabe ao historiador entender essa perspectiva, mesmo com os
desafios apontados por Macedo.
Boubou Hama e Joseph Ki-Zerbo, historiadores africanos, ao
escreverem sobre “o lugar da historia na sociedade africana”3, indicam
que o mito esta na origem de todos os povos, governa a historia e a
justifica, a partir de uma dimensao intemporal e social.

De fato, o mito, representaçao fantastica do passado,


em geral domina o pensamento dos africanos na sua
concepçao do desenrolar da vida dos povos. Isso a tal
ponto que, as vezes, a escolha e o sentido dos
acontecimentos reais deviam obedecer a um
“modelo” mítico que predeterminava ate os gestos
mais prosaicos do soberano ou do povo. Sob forma de
“costumes” vindos de tempos imemoriais, o mito
governava a Historia, encarregando-se, por outro
lado, de justifica-la. Num tal contexto, aparecem duas
características surpreendentes do pensamento
historico: sua intemporalidade e sua dimensao
essencialmente social.4
Em outro trecho, os autores afirmam:

Ora, em geral o tempo africano tradicional engloba e


integra a eternidade em todos os sentidos. As
geraçoes passadas nao estao perdidas para o tempo
presente. A sua maneira, elas permanecem sempre
contemporaneas e tao influentes, se nao mais, quanto
o eram durante a epoca em que viviam. Assim sendo,
a causalidade atua em todas as direçoes: o passado
sobre o presente e o presente sobre o futuro, nao
apenas pela interpretaçao dos fatos e o peso dos
acontecimentos passados, mas por uma irrupçao
direta que pode se exercer em todos os sentidos.
Quando o imperador do Mali, Kankou Moussa (1312 -
1332), enviou um embaixador ao rei do Yatenga para
pedir-lhe que se convertesse ao islamismo, o chefe

3 Ki-Zerbo, Joseph. História Geral da África. Metodologia e pré-história da África. Vol. 1.


UNESCO, 2010, p.23.
4 Ibidem (p.24).

75
Douglas Bandeira Ramos

Mossi respondeu que antes de tomar qualquer


decisao ele precisava consultar seus ancestrais. 5
Nos dois excertos citados percebe-se a relaçao das sociedades
africanas com o passado, com o mito, ambos vivos no presente, e a
importancia e o culto aos ancestrais, aspecto presente em muitas
culturas do continente. Um exemplo dado pelos autores sao as correntes
de ouro usadas pelos soninkes, representando um elo com Sonni, o
grande, ancestral dinastico.
A preservaçao desse passado fica a cargo da oralidade. Existem
especialistas em transmitir as tradiçoes, como os griots, por exemplo,
mas eles nao monopolizam essa tarefa, pois a oralidade e difundida
socialmente do mais velho para o mais jovem, pelo bem da coletividade.
A palavra e sagrada e respeitada, pois preserva a memoria coletiva de
uma sociedade que se explica a si mesma. Amadou Hampate Ba, a
respeito da oralidade, afirma:

A tradiçao oral e a grande escala da vida, e dela


recupera e relaciona todos os aspectos. Pode parecer
caotica aqueles que nao lhe descortinam o segredo e
desconcertar a mentalidade cartesiana acostumada a
separar tudo em categorias bem definidas. Dentro da
tradiçao oral, na verdade, o espiritual e o material nao
estao dissociados. Ao passar do esoterico para o
exoterico, a tradiçao oral consegue colocar-se ao
alcance dos homens, falar-lhes de acordo com o
entendimento humano, revelar-se de acordo com as
aptidoes humanas. Ela e ao mesmo tempo religiao,
conhecimento, ciencia natural, iniciaçao a arte,
historia, divertimento e recreaçao, uma vez que todo
pormenor sempre nos permite remontar a Unidade
primordial.6

Oralidade, sociedade, mito e tempo sao elementos imbricados


nas culturas africanas. Entendendo isso, Joseph. C. Miller, por exemplo,
estudou as estruturas políticas dos antigos estados Mbundu, em

5 Ibidem.
6 Ibidem, p.167.
76
Diaspora

Angola7, gravando relatos de historiadores locais, ligados as linhagens,


que possibilitaram ao pesquisador montar cronologias, compara-las e
ate identificar que as versoes do passado na tradiçao oral podem ser
atemporais e sincronicas e nao diacronicas e lineares, como de costume.
Procurou-se ate aqui demonstrar como a historiografia e boa
parte das fontes utilizadas contribuíram para um olhar sobre a historia
africana, a partir de uma perspectiva eurocentrica, externa ao
continente, carregada de preconceitos. Na mesma medida, apontou-se a
relevancia da oralidade, dos mitos, a relaçao africana com o passado e a
importancia da ancestralidade para aquelas sociedades.
Nesse sentido, o entendimento desses aspectos pela
historiadora ou historiador sao primordiais na aventura da pesquisa em
historia da Africa. Dito isso, passemos agora a analisar uma dessas
sociedades africanas, formada pelo grupo etnolinguístico dos iorubas,
onde o mito, a oralidade e a ancestralidade permeiam o meio social, bem
como a importancia da arqueologia para esse estudo.

Os Yorubás8

A diaspora africana legou a sociedade brasileira toda uma


cultura que esta presente na língua, na culinaria, nos ritmos, religiao e
espiritualidade, ainda que tudo isto esteja, infelizmente, relacionado a
conjuntura terrível e desumana da escravidao. Um dos principais e mais
perceptíveis legados nos dias atuais e o culto aos orixas, difundido em
religioes criadas no Brasil, como o candomble da Bahia ou o batuque do
Rio Grande do Sul.
O culto aos orixas esta vinculado aos povos iorubas, naturais
do golfo da Guine, nos atuais países da Nigeria, Togo e Benin. Eram

7 MILLER, Joseph C.; DA CONCEIÇÃO NETO, Maria. Poder político e parentesco: os


antigos estados Mbundu em Angola. 1995.
8 Embora a escrita oficial associe Yoruba ao povo, à cultura e à uma determinada

localização, aqui optou-se pela grafia oficial indicada pelo VOLP (Vocabulário Ortográfico
da Língua Portuguesa, da ABL (Academia Brasileira de Letras), que indica o uso
aportuguesado da palavra ioruba (com I e sem acento).
77
Douglas Bandeira Ramos

conhecidos no Brasil escravista como nagos e desembarcavam,


principalmente, na Bahia do seculo XIX, em um contexto onde o trafico
transatlantico de escravizados ja fazia parte economica e socialmente de
algumas sociedades africanas, onde a interferencia europeia modificou
as relaçoes pre-estabelecidas.
O incremento de armas de fogo, por exemplo, possibilitou a
formaçao de estados centralizados vinculados ao comercio de almas,
como e o caso do Imperio de Oyo, Benin e Daome. Mas antes do contato
europeu no seculo XV, como viviam os iorubas? Como se organizavam
socialmente? Tais indagaçoes nos levam a Ife, a cidade sagrada dos
iorubas, e ao seu mito fundador.
Charles Thurstan Shaw, arqueologo ingles, situa o apogeu de
Ife do início do seculo XII ate a metade do seculo XV, a partir de dataçoes
com carbono 14 em 7 sítios arqueologicos. Um dos mais famosos
achados arqueologicos em Ife sao as cabeças de bronze, datadas para o
mesmo período do auge de Ife. No entanto, Thurstan afirma:

Caso possamos dar credito a dataçao por


termoluminescencia, a produçao das famosas cabeças
de bronze e outras peças, moldadas em liga de cobre,
pertence aos 150 ultimos anos desses tres seculos.
Entretanto, instituiçoes políticas e religiosas
centralizadas, munidas de uma riqueza suficiente e
capazes de favorecer uma produçao artística de
elevadíssimo nível, nao sao criadas em um dia. Por
conseguinte, e importante levar em consideraçao as
circunstancias que estao nas origens dessas
instituiçoes e, haja vista que a sua fase de maturaçao
situa-se inclusa no período que nos ocupa, convem
conferir-lhe alguma atençao.9

No trecho supracitado, o autor indica que as cabeças de


Bronze, enquanto arte e cultura artística de alto nível e que representam
instituiçoes políticas e religiosas centralizadas, haja vista que foram
encontradas em antigos palacios de Ife, indicam uma organizaçao social

9EL FASI, Mohammed; HRBEK, Ivan. História Geral da África–Vol. III–África do século VII
ao XI. UNESCO, 2010. p. 561.
78
Diaspora

com origens ainda mais antigas do que o período de dataçao do auge,


afinal de contas, o caminho ate a maturidade social e artística
provavelmente demorou muitos anos ou ate seculos. Desta forma, essa
cultura que ainda sobrevive, ou melhor, esta muito viva no Brasil
contemporaneo, e bem antiga.
O mito criador dos iorubas indica que Olodumare, o Deus
supremo, incumbiu Oxala de criar a Terra e os seres humanos. No
entanto, ao se desentender com Exu, Oxala acaba sendo embriagado e
adormece. Olodumare substitui Oxala por Odudua, que entao criou o
mundo e fundou Ife. Os filhos de Odudua seriam os responsaveis pela
fundaçao de outras cidades, como Oranian, em Oyo, ou Obatala, em Ijesa.
Sobre as cidades yorubanas, Luis J. Munoz afirma:

La ciudad Yoruba es la expresión concreta del sistema


político, social y religioso del pueblo Yoruba que se
manifiesta incluso en la configuración física de sus
ciudades. Esta forma urbana, que puede definirse como
fundamentalmente autóctona (21), ha logrado, por
una parte, la difícil síntesis entre estado y sociedad,
representados respectivamente por el oba y por los jefes
de familia y, por otra, solucionar el no menos difícil
problema de la dicotomía rural-urbana. Y todo esto
sobre la base de grandes núcleos de población.10

As cidades yorubanas eram formadas por linhagens,


comunidades que tinham um vínculo parental, vivendo em aglomerados
que Munoz chamou de “compounds”. As principais linhagens eram as
que tinham ou reivindicavam uma ligaçao ancestral com Ife e dessas
eram provenientes os obas. As cidades eram independentes entre si,
com poucas exceçoes nesse sentido. A ligaçao ancestral do Oba com Ife
o tornava alem de rei, um sacerdote.
A influencia de Ife era tao grande que a tradiçao oral de povos
vizinhos, como os Nupe ou os Edos do Benin, tambem reivindicavam
ligaçao com Ife, assim como Ode, o fundador mítico de Ketu, na fronteira

10MUNOZ, Luis J. La ciudad ceremonial Yoruba, mecanismo de tradición. Africa, p. 167-


186, 1978. p. 173.
79
Douglas Bandeira Ramos

com os fons, era descendente de Isa-Ipasan, originario de Ife11. O mito,


nesse caso, alem de explicar o passado tambem transpassa o presente
na forma de organizaçao social das cidades.
Thurstan Shaw indica em seu texto que muitas cidades do país
Yoruba e do país dos Edos eram muradas, o que fez o autor refletir sobre
as necessidades defensivas. Uma das hipoteses era a ameaça interna,
pela relativa densidade populacional, mas a segunda hipotese era a
ameaça externa, de estados mercadores do norte. Essa e uma questao
importante e intrigante, na medida em que, atraves do Níger, esses
povos tinham acesso a Gao e Djenne, por exemplo, cidades importantes
vinculadas ao antigo Mali e Songhai.
Ainda que distantes, essas sociedades tinham algum tipo de
relaçao? Leo Frobenius encontrou em Gao perolas em vidro azul
identicas as encontradas em Ife12. De onde vinha o cobre das esculturas
em bronze de Ife e de Igbo Ukwu, entre os Ibos, do outro lado do Níger,
a oeste. Shaw diz que as jazidas de cobre eram distantes dos povos da
costa da Guine e poderiam ser do domínio de mercadores do norte ou
tambem, como sugeriu, poderia provir de uma antiga rota que ligava a
Africa ocidental ao Egito.
O Imperio do Mali dominava o comercio do ouro, sal e escravos,
entre outros produtos menos procurados, em uma regiao onde as
relaçoes comerciais eram mais antigas do que o comercio exterior
transaariano desenvolvido e potencializado a partir da migraçao dos
arabes islamizados desde o seculo VII. Samuel Johnson, por exemplo,
indica que, segundo a tradiçao oral, os iorubas seriam descendentes de
Lamurudu, de Meca. Mesmo discordando da origem em Meca, o autor
afirma que os iorubas com certeza teriam vindo do oriente13.
A pesquisa arqueologica tem o potencial de iluminar essas
questoes e discussoes e, como indicou Rivair Macedo, a confrontaçao

11 DUNGLAS, Edouard. Contribuição à história do Médio Daomé: o reino iorubá de Ketu.


Afro-Ásia, n. 37, p. 203-238, 2008, p. 209.
12 EL FASI, Mohammed; HRBEK, Ivan. História Geral da África–Vol. III–África do século VII

ao XI. UNESCO, 2010. p. 594.


13 JOHNSON, Samuel. A História dos Yorubas, cap. 1. Tradução: Luiz L. Marins - Revista

Orun, 2018, p. 4.
80
Diaspora

das fontes (documentos, artefatos arqueologicos) com a tradiçao oral


sao essenciais na construçao desse conhecimento, seja sobre os iorubas
ou qualquer outra sociedade africana.
Conclui-se, portanto, que a pesquisa em Historia da Africa e um
grande desafio. A crítica a historiografia e necessaria e a lente de
observaçao tem que ser cada vez menos europeizada, cada vez mais
africanizada e interdisciplinar, para que se possa revelar o passado, por
muito tempo negligenciado e silenciado, de culturas e tradiçoes
africanas seculares presentes no Brasil e em toda a America, por conta
da diaspora.

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81
Biografia de Douglas Bandeira Ramos

Licenciado em Historia pela Universidade Federal do Rio


Grande do Sul (UFRGS), em 2021 e mestrando na mesma instituiçao,
com interesse por historia da Africa e diaspora africana. Tem
experiencia em educaçao, com atuaçao no curso pre-vestibular
Territorio Popular, vinculado ao Instituto Federal do Rio Grande do Sul
(IFRS), em 2019, e no Colegio de Aplicaçao da UFRGS, como bolsista do
Programa Institucional de Bolsas de Iniciaçao a Docencia (PIBID), em
2017. Guia, em 2019, do “Viva o Centro a Pe”, em ediçao especial sobre
as lendas tradicionais de Porto Alegre, pela Prefeitura de Porto Alegre.
E-mail douglas-br10@hotmail.com

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4. Escrita Criativa: Ativismo e
Resistência contra o racismo

Edilaine Vieira Lopes

Este texto apresenta a transcriçao de uma fala minha, durante


o Curso de Extensao On-line “Projeto Africas”, do Instituto Federal de
Educaçao, Ciencia e Tecnologia Sul-rio-grandense (IFSul) campus
Sapiranga, em 10/11/2021. O objetivo aqui e manter certos indícios de
oralidade, sem neurose com relaçao as possíveis digressoes gramaticais.
No entanto, antes de mais nada, e impossível nao iniciar quebrando o
protocolo. Alias, ja peço desculpas desde ja, pois esse relato e
despretencioso de pompa academica. Nada contra o devido rigor
científico, pelo contrario. Contudo, como profissional da escrita criativa,
defendo a liberdade discursiva e entendo que texto e tecido.
Na tessitura das palavras e na esquina dos poemas, inicio
agradecendo pela oportunidade de fazer parte de um grupo tao rico e
que discute tantas tematicas pertinentes, visivelmente reprimidas e
silenciadas. O convite para fazer parte do Nucleo de Estudos Afro-
Brasileiros e Indígenas (NEABI) do IFSul, campus Sapiranga, foi uma
daquelas gratas surpresas da vida, que fez (e ainda faz) toda diferença
em minha vida.
Sim, escrevo em primeira pessoa, pois tomo posse ao falar/
escrever e, conforme Bakhtin (2007), assim eu existo para os outros.
Graças ao NEABI, segui com alguns estudos e com as pesquisas voltados
para açoes que promovessem, dentro ou fora da sala de aula, reflexoes
acerca das questoes etnico-raciais.

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Edilaine Vieira Lopes

Eis que, quando percebi, tambem tinha sido convidada para


compor o seleto grupo que organizaria certas atividades de extensao a
comunidade academica, tais como o Curso “As Africas no Rio Grande do
Sul: experiencias de ensino e aprendizagem antirracista”, realizado
entre outubro e dezembro de 2021. Assim, pude aprender, ler e tomar
posse dos dados ja coletados em pesquisas locais, nas seguintes areas:
Praticas de Pesquisa sobre a Historia das Africas no Rio Grande de Sao
Pedro: Historia e Historiografias das Africas no Brasil; Escrita Criativa,
Ativismo e Resistencia X Racismo; Ensino e Pesquisa da Diaspora
africana no Rio Grande do Sul; A diversidade das religiosidades de
matrizes africana; A luta antirracista: percepçoes de um pesquisador
preto; O NEABI no IFSul – Campus Sapiranga.
Entre os meses de debates e as grandes descobertas, e possível
mencionar, inclusive, o aporte midiatico e científico, obtido por meio das
premiaçoes recebidas dentro e fora do estado do Rio Grande do Sul. O
envolvimento dos colegas, tanto os organizadores desta obra, quanto
dos pesquisadores que iniciaram a jornada (o professor historiador, Dr.
Valter Lenine Fernandes, e o aluno bolsista, Lucas Correa da Silva), aos
quais agradeço infinitamente, foram de extrema importancia para o
engajamento coletivo.
As Africas sao muitas. Alias, sao tantas, que mal podem ser
materializadas em pesquisas, na Historia, em trabalhos
interdisciplinares ou em obras plurais. No entanto, coletaneas como esta
podem e devem ser utilizadas, pela honra, pelo merito e pelo ineditismo,
que ate nos constrange, uma vez que deveria fazer parte do dia a dia do
ensino (nao so do medio integrado, da graduaçao e da pos-graduaçao),
em todas as esferas.
Eis o poder do livro, como um produto interlocutor entre
mundos e culturas, um mediador de conversas outras, quase um portal
magico que permite o acesso as diferentes pesquisas e aos campos do
saber. Esse e exatamente o desafio de trabalhar na perspectiva da escrita
criativa em sala de aula, nas turmas de ensino medio integrado ao
tecnico: dar sequencia a esses processos e corroborar com o ativismo e
com a resistencia, como atos políticos, publicos e ideologicos contra o
racismo.

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Diaspora

Certa vez, em discurso oficial proferido pelo entao embaixador


do Brasil, Jose Carlos de Araujo Leitao, surgiu a seguinte fala: “O Brasil e
o maior País Africano fora da Africa e e muito mais Africano do que a
elite Brasileira gostaria”. Nunca tinha entendido isso, ate aprender nesse
curso que nao ha so uma, mas tem varias Africas!
Por ser o 3º maior continente do mundo e um dos mais
populosos, com mais de 1 bilhao de habitantes, a Africa ocupa
aproximadamente 20% de area terrestre. Com tanta vastidao e riqueza,
a mídia acaba focando na situaçao de extrema pobreza. Algo parecido
ocorre quando pensamos na historia do Brasil.
Os primeiros documentos historicos do Quinhentismo ja
retratam o uso da língua como instrumento de dominaçao. Da Africa
para o Brasil, nosso país tem mais de 212 milhoes de habitantes. Antes
dos portugueses chegarem aqui, eram faladas mais de mil línguas
diferentes. Embora hoje o portugues tenha se tornado a língua padrao,
cerca de 154 idiomas ainda existem em nosso territorio e sao falados
por pouco mais de 5 mil pessoas.
Nao nos damos conta da quantidade de palavras que
utilizamos no dia a dia, que so existem devido a esse intercambio
cultural que vem dos povos africanos. O contraste linguístico existe
tambem na Africa e ha inumeros dialetos ou idiomas falados la, para
alem das “línguas oficiais”, como ingles ou portugues.
A escrita criativa vai alem da fala e procura contribuir na luta
contra o racismo, por usar um conjunto de tecnicas que considera tudo
o que vai alem do idioma e das normas, englobando a historia, a cultura,
os sujeitos e os silenciamentos. Por mais que tentem apagar as línguas,
a escrita criativa consegue encontrar campo na arte como forma de
resistencia. Esses fatos incomodam alguns e, enquanto isso, a Africa
vive. Alias, as Africas vivem em cada um de nos. E sao muitas. Alguns
testes podem ilustrar o que se tenta explicar ou abstrair aqui. Quer
tentar? Escreva aí: Teste 1: Quais itens vem a sua mente quando se fala
em “Brasil”. Teste 2: E quando se fala em “Africa”? Teste 3: Quais líderes
vem a sua mente quando se fala em “lideranças”? Teste 4: Liste nomes
de personalidades e famosos da industria do entretenimento (esporte,
tv, cinema, musica...). Teste 5: Quais nomes vem a mente quando nos
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Edilaine Vieira Lopes

falamos em artistas e em arte (quadros famosos, instalaçoes e artistas


renomados...)? Teste 6: Que nomes vem a mente quando se fala de
autores famosos, renomados, “Premio Nobel de Literatura”? Teste 7:
Quando voce ouve falar sobre “contadores de historias”, do que se
lembra? Teste 8: o que vem a sua mente quando falamos de inventores
ou de alguem que criou e descobriu algo? Teste 9: O que vem a sua mente
quando falamos em personagens de livros, series, TV, cinema, historias
em quadrinhos (HQ) e super-herois? Teste 10: Quais influencers vem a
sua mente quando falamos em rede sociais? Teste 11: De quais filosofos
voce se lembra? Teste 12: Quais autores, brasileiros ou nao, vem a sua
mente? Teste 13: De quais autores africanos voce se lembra? Teste 14:
De quais designers, estilistas ou marcas famosas do mundo da moda
voce se lembra?
Ideologicamente, nos temos posicionamentos na nossa mente.
A escrita criativa tenta trabalhar o imaginario e romper com certos
constructos identitarios, baseados nas imposiçoes e naquilo que nao e
nosso e que foi “colocado ali”, enraizado culturalmente.
Nas primeiras duas perguntas, sobre o que vinha na sua mente
com “Brasil” e “Africa, sera que evoluímos e citamos semelhanças ou
diferenças, ou nao saímos das “classicas respostas” feijoada, samba,
capoeira, futebol, caipirinha, escravidao, miseria...?
Quanto as personalidades, voce mencionou quem? Michael
Jackson, Serena Williams, Lewis Hamilton, Bob Marley, Pele, Marta,
Michael Jordan, Usain Bolt, Morgan Freeman, Denzel Washington, Oprah
Winfrey, Gilberto Gil, Muhammad Ali, Mike Tyson, Neymar Jr., Kylian
Mbappe, Will Smith estavam na sua lista?
Sobre os líderes e lideranças, tem alguma pessoa negra nas
suas anotaçoes? A gente fala muito em racismo, mas nao percebe que e
cultural e que as referencias estao em nos tambem (ou deveriam estar).
Precisamos começar as mudanças que queremos no mundo, por nos,
internamente. Se olharmos, veremos varios negros(as)
importantíssimos na historia, bons líderes, como Martin Luther King Jr.,
Malcolm X, Michelle Obama, Barack Obama, Kamala Harris, Nelson
Mandela etc.

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Diaspora

E comum as pessoas “se esquecerem” dos líderes negros,


sobretudo das mulheres negras exercendo cargos de liderança nessa
lista. Infelizmente, o esquecimento tambem ocorre quando falamos em
Arte. E se “A Moça do Brinco de Perola” fosse preta? E a Monalisa? Nos
museus, nao e dado o devido destaque aos artistas negros. A maioria das
obras consagradas retrata pessoas brancas.
Jean Michel Basquiat deveria ter sido um nome comum na sua
lista, nesse teste, por ter sido um artista que trabalhava as questoes do
grafite. Ele retratava as causas sociais e se posicionava contra o racismo,
em virtude de toda luta e de todo preconceito que ele enfrentou. Outro
exemplo a ser ressaltado seria o da Harmonia Rosales, que retratou
entre varias pinturas “God is a Woman”, trazendo essa possível leitura
em forma de releitura artística: por que Deus nao poderia ser uma
mulher? E, se fosse, por que nao uma negra?
Da sua lista de autores, quantos negros voce assinalou? Muitas
pessoas crescem lendo ou ouvindo historias, como as “Fabulas de
Esopo”, achando que ele era branco. E sabido que ele era escravo, mas
assim como o classico Alexandre Dumas (renomado autor frances), que
tambem era negro, sao dois exemplos retratados como brancos nos
livros didaticos.
Nas suas respostas, voce assinalou autores(as) que possuem o
Premio Nobel de Literatura? Em 2021, houve um silenciamento sobre o
ganhador e na mídia quase nao apareceu o nome de Abdulrazak Gurnah.
Sera que e por que ele e negro? Escrita criativa e isso: fazem pensar (e
repensar) sobre algumas coisas.
Ainda na questao sobre o Alexandre Dumas, ele e autor de
muitos livros famosos, entre os quais e possível citar o Conde de Monte
Cristo e Os Tres Mosqueteiros, mas durante muito tempo houve esse
silenciamento sobre sua família, na França. Dumas, o avo, inclusive lutou
na Guerra da Revoluçao Francesa, mas nao teve o reconhecimento
devido e seu nome mal consta nos livros de historia. Seu filho so depois
de morto conseguiu seu espaço na literatura classica.
Nao e preciso ir longe, pois no Brasil existem duas imagens de
Machado de Assis. Alias, qual delas voce conhece: o cidadao branco,

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Edilaine Vieira Lopes

retratado por anos nos livros escolares ou o original, negro? Machado


de Assis, alem de preto, era gago, sofria de epilepsia, era engraxate,
pobre e quase nao saía de casa por conta da vergonha, visto que
ocorriam crises convulsivas.
Como falar sobre os contadores de historias, sem mencionar os
“Grio”?! Alias, voce sabia que os primeiros contadores de historia de que
se tem registro sao os Povos Griots? Eles foram muito importantes para
a transmissao de conhecimento de todas as culturas. Graças a eles, a
oralidade teve seu devido reconhecimento, embora hoje em dia ainda
seja vista como algo profano por muitos.
Existe uma tendencia branca de colocar a escrita em um
pedestal do saber, como se apenas ela valesse ou fosse algo sagrado.
Essa busca pela valorizaçao da oralizaçao tem sido destaque na crítica
literaria, tudo isso graças a importancia desses povos.
Sobre os inventores1, quantos negros tem na sua lista? Voce se
lembrou de mencionar o pai da medicina, Hiprocrates? Se nao, entao
citou o Imotep, genio grego que viveu dois mil anos antes dos primeiros
“medicos gregos”?
Pois e... Existe um apagamento em nossa memoria. Se isso
iniciou na Europa, nao importa. O fato e que aqui nos acabamos
reproduzindo algumas coisas que vem “prontas” culturalmente e nos
“esquecemos” daquilo que e basico, como admitir que os antigos
egípcios, por exemplo, ja possuíam muitos conhecimentos acerca de
química, física e da propria medicina.
Charles Drew e outro nome a ser mencionado, pois foi o
pioneiro nas pesquisa com o banco de sangue. O mesmo vale para o Dr.
William Hinton, que publicou o primeiro manual medico escrito por um
afro-americano, baseado nas investigaçoes sobre sífilis.2
Se pensarmos em escrita criativa, em historias, narrativas e
representatividade, existe toda uma conversa e um movimento de

1 Acesse: https://www.geledes.org.br/alguma-vez-um-negro-inventou-alguma-coisa/
2
Acesse: https://earth.google.com/web/data=CiQSIhIgN2JiMTc5NDUyMzJhMTF
lOTg4ZTM-zYmJlMjQ5MGY5NmU?hl=pt-BR
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Diaspora

modificaçao ou de atualizaçao dos games, das narrativas colaborativas,


dos livros-jogos e RPGs (Role-playing game) ou historias em quadrinhos.
Porem, qual e o espaço que ocupa a luta contra o preconceito e contra o
racismo?
Tirando “O Menino Marrom”, de Ziraldo, e “Menina Bonita do
Laço de Fita”, de Ana Maria Machado, e comum voce ver negros em capas
de livros ou personagens de historias negros, no papel de mocinha ou
gala? As “Meninas Super-poderosas”, as Barbies e os Simpsons
continuam estilizados, com raras exceçoes.
Voce se lembra de varios atores pretos compondo elencos
bilionarios, como Harry Potter, O Hobbit, O Senhor dos Aneis, Game of
Thrones etc? No mundo dos videogames, das historias em quadrinhos,
dos super-herois e dos universos DC Comics e Marvel ocorre o mesmo.
Porem, existe um movimento para ressaltar a força de Blade,
Tempestade, Coraçao de Ferro, Capita Marvel (a original), Luke Cage,
Irmao Vodu, Silhueta, Aço, Naomi, Vixen, Batwing, Sr. Incrível, Cyborg,
Pantera Negra, Falcao, Maquina de Guerra/ Combate, Nick Fury.
Para alem do ator de Bridgerton, faz pouco tempo que o
“streaming acordou” e passou a oferecer series com enfoque e
abordagem preta, com personagens principais nao vitimizados ou
associados a escravidao e a marginalizaçao.
O famoso casal, formado pelos artistas Beyonce e Jay Z, sabe
usar todo aparato midiatico e seus fa-clubes ou seguidores para
chamarem, por meio da musica pop/hip hop e do entretenimento, a
atençao para a luta a favor das causas sociais e raciais, contra todas as
formas de preconceito.
Em 2020, eles declararam guerra contra o racismo e fecharam
o museu mais famoso do mundo, o Louvre, na França, para gravarem o
clipe “The Apeshit” e se lançarem como a dupla The Carters. O título
indica felicidade e eles conseguiram fazer do clipe e do album uma obra
de arte completa em si mesma, repleta de símbolos e de significados. Em
meio ao luxo, a ostentaçao e aos indicativos de poder, o casal conversa
com o presente e afronta o passado.

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Edilaine Vieira Lopes

Ao nos mostrarem o futuro por um novo angulo, acabam


fazendo uma crítica a sociedade ao indicarem o Louvre, simbolicamente
soberano, onde poucas obras retratam negros, considerando que a
maior parte dos artistas que la expoem e composta por pessoas brancas.
O ícone foi gravar la e trazer a representatividade preta, impactando
visualmente e colocando o projeto antirracista a frente dos quadros,
com posicionamento, figurino, maquiagem e sonoridade impecaveis.
Falando no apelo do casal pop em prol da resistencia,
impossível nao lembrar do teste sugerido aqui, sobre suas referencias
nas redes sociais. Muitos ativistas3 e influenciadores4 trazem essas
tematicas e ampliam as discussoes, por meio dos status, dos stories, das
postagens no feed, dos reels e ate das lives, com temas profundamente
ligados a causa antirracista.
Na sua lista, constam: Nataly Neri (@Natalyneri), Ana Paula
Xongani (@Anapaulaxongani), Maíra Azevedo (@Tia-maoficial), AD
Junior (@Adjunior_real), Ale Garcia (@alegarcia), Gabi Oliveira
(@Gabidepretas), @negrodasemana, Spartakus Santiago (@Spartakus),
Matheus Pasquareli (@Matheuspasquarelli), Nadia Nadila
@nadianadila, Gleidistone Silva (@Eugleidistone), Dríade Aguiar
@driadeaguiar, Canal Papo de Preta Ale Santos @ savagefiction, Djamila
Ribeiro, Lelia Gonzalez e Joice Berth? Ou outros? Quais?
Em 2021, a maior empresa de joias do mundo (pelo menos a
mais famosa) fez uso de uma boa copy ao explorar o carisma e a força do
casal Bey e Jay. A Tiffany fez uma releitura da classica imagem da
personagem Bonequinha de Luxo, interpretada no filme de 1961 pela
atriz branca, Audrey Hepburn. Dessa vez, estamparam em todas suas
campanhas, na internet, vitrines, catalogos, shoppings, outdoors e
veículos de comunicaçao voltados ao publico AAA, de alto luxo e poder
de compra, uma imagem da Beyonce, com seu vestido preto, usando as
joias com diamantes, negra, em primeiro plano. De fundo, seu marido,

3
Acesse: https://marciatravessoni.com.br/noticias/forbes-brasil-lista-20-influenciadores-
digi- tais-e-perfis-negros-para-seguir/
4
Acesse: https://movimentoblackmoney.com.br/8-criadores-de-conteudo-negros-que-
voce-preci- sa-conhecer/
92
Diaspora

preto, Jay Z. E mais ao fundo, para completar, um belo e raro quadro do


artista aqui ja referido, Basquiat.
Dos autores, poetas ou intelectuais famosos, e comum nos
lembramos de varios nomes referentes as pessoas brancas. Quer um
exemplo? Pense em autores russos5, por exemplo. O que vem a mente?
Tolstoi, Dostoievski? Sabia que Aleksandr Puchkin e Abram Petrovich
Gannibal, assim como outros negros prosperaram e fizeram carreira la?
A mesma indagaçao vale para a pergunta relativa a filosofia,
cuja resposta pode ser Anton Wilhelm Amo, classico pensador,
infelizmente pouco lembrado, ou podem ser outros cinco pensadores
africanos contemporaneos, ainda pouco conhecidos, como Cheikh Anta
Diop (Senegal), Ebiegberi Alagoa (Nigeria), Henry Odera Oruka
(Quenia), Leopold Sedar Senghor (Senegal) e Wole Soyinka (Nigeria).
Como ja bem disse o teorico camarones Achille Mbembe: “O
mundo vai ser negro”. Ja e, apenas nao sao dados os devidos creditos.
Esse filosofo ja publicou livros como Crítica da Razao Negra, que
abordam a problematica do preconceito com base em conceitos pos-
colonialistas.
Outro teste questionava sobre os autores famosos ligados a
Africa. Um dos mais famosos e ja imortalizado com diversos premios
(merecidos, por sinal) e Mia Couto. Nada contra o autor ou contra seus
escritos, porem, circular pelo mundo das letras e pelas feiras literarias
do mundo todo a imagem de um escritor africano branco, sem nem fazer
mençao aos demais, pretos, pode dizer muito sobre nossa sociedade. O
fato de ele ser branco de maneira alguma o desqualifica, mas e se fosse
o contrario: teria ele todo esse prestígio e reconhecimento?
A mesma duvida poderia ocorrer quanto ao Pepetela, por
exemplo: por que ele e mais famoso ou conhecido do que autores como
Luis Cardoso (Timor Leste) e outros representantes da língua
portuguesa, cuja produçao exalta os países lusofonos para o mundo
todo? Seria, novamente, a cor o fator determinante, ou e so mais uma
coincidencia?

5
Acesse: https://br.rbth.com/historia/81126-africanos-que-prosperaram-russia
93
Edilaine Vieira Lopes

E as autoras pretas? Ja leu ou ouviu falar de Chimamanda Ngozi


Adichie6,de Paulina Chiziane, de Esmeralda Ribeiro7, Maria Firmina dos
Reis, Carolina Maria de Jesus ou de Conceiçao Evaristo? Na Africa, no
Brasil ou no mundo, nao importa, que suas vozes sigam exaltadas e
sejam imortalizadas em nossas memorias.
No teste sobre os designeres, estilistas ou profissionais da
moda, de quais voce se lembra? Lewis Hamilton e um atleta que utiliza
seu excelente momento no esporte para trazer questoes a tona. Entre
uma vitoria e outra na Formula 1, ele ressalta que “vidas negras
importam”8 e acaba “incomodando” ao usar toda sua representatividade
e participar de protestos.
Isso explica as críticas racistas por tras do seu estilo, mas nem
as ofensas que ele sofre todos os dias ao representar a Equipe Mercedes-
Benz sao capazes de para-lo. O mesmo ocorre com outros atletas e com
personalidades pretas, que usam seu prestígio para chamarem a
atençao para as barbaries que ocorrem, ainda, todos os dias.
Isso explica por que o heptacampeao de F1 comprou uma
mesa, adquirindo os convites e os passaportes para que designers e
estilistas negros o acompanhassem no evento mais badalado de 2021: o
Baile Met Gala/ Vogue. Hamilton entende que tanto o esporte quanto a
moda possuem a visibilidade necessaria para expandir a luta a favor da
resistencia. Da mesma forma, Kamala Harris e Michelle Obama tambem
investiram em estilistas pretos para compor seu look de posse. Ja que
esses mercados sao importantes para a inclusao e para a diversidade,
outro exemplo de criatividade e criaçao foi o de Billy Porter. O ator,
cantor e cineasta se autodeclarou:

sou preto, gay, tenho 52 anos e fui o fundador da moda


binaria. No entanto, ha um apagamento de pessoas

6
Acesse: https://youtu.be/pxe92zWOot0E e https://youtu.be/D9Ihs241zeg
7 Acesse: https://claudia.abril.com.br/cultura/escritoras-negras-brasileiras-que-voce-vai-
adorar--conhecer/
8 #blacklivesmatter (2013) #georgefloyd (2020), em https://www.uol.com.br/universa/

noticias/redacao/2020/06/03/black-lives-matter-conheca-o-movimento-fundado-por-
tres--mulheres.htm

94
Diaspora

negras sendo pioneiras nesses movimentos como o da


industria. Tanto e que a Vogue colocou esse universo
em sua capa, pela primeira vez, em 2021, com Harry
Styles, um jovem, branco e heterossexual, em um
vestido.

Falando, ainda, sobre escrita criativa, pela Arte sempre


achamos uma brecha para resistir contra o sistema e protestar, mesmo
“estando dentro”, isso tambem vale por meio da ciencia. Trabalhar
questoes de visibilidade, empoderamento e da historia da mulher negra,
na literatura ou nao, sao maneiras de resistir.
Aqui no Rio Grande do Sul (RS) e na regiao, o cinema tambem
movimenta a luta antirracista, assim como os documentarios
desenvolvidos depois de muita pesquisa e exibidos nas escolas. O filme
Movimentos | 90 anos de Novo Hamburgo9, o programa Naçao | TVE -
Melanina - Clubes Negros – (4/5/2016)10 e o episodio Vida no Sul:
Materia sobre Lanceiros Negros e o CTG Clareira da Mata11 sao bons
exemplos, assim como a justa homenagem ao artista hamburguense
Carlos Alberto de Oliveira12 (em memoria), cujo nome estampa com
orgulho a placa da escola de arte13 da cidade de Novo Hamburgo.
Essa luta pela valorizaçao do negro, que e uma presença
silenciosa, diz muito sobre nossa historia e sobre os enfrentamentos que
devemos fazer todos os dias contra o racismo. As Africas nao estao
apenas no Rio Grande, mas em todo mundo, no Brasil. Vale conferir A
verdadeira historia do povo negro que nao te ensinaram na escola| Papo
Rapido | Papo de Segunda14 e Racismo existe sim! | Papo Rapido | Papo
de Segunda15.
Alem desses vídeos, tem os podcasts do Mano Brown, líder no
quesito resistencia. Contudo, a escrita criativa esta para alem da

9
Acesse: https://youtu.be/qWaeusDX29U
10
Acesse: https://youtu.be/qxiAETHJ6B8
11
Acesse: https://youtu.be/0O_uAnSpx-s
12 Acesse: http://artepopularbrasil.blogspot.com/2012/05/carlos-alberto-de-oliveira.html
13 Acesse: https://escolamunicipaldeartenh.weebly.com/
14
Acesse: https://youtu.be/wV4ZXfQPt2s
15
Acesse: https://youtu.be/NQNIeyWSUVg
95
Edilaine Vieira Lopes

industria criativa e audiovisual, invadindo o turismo16 e o


desenvolvimento regional17, por meio de museus18, roteiros culturais19,
com itinerarios e percursos20 etnograficos, embora muito ainda esbarre
na burocracia21 ou na falta de vontade, mascarada como “escassez de
recursos ou verbas”.
Do podcast para as musicas. Lendo, encontrei algumas obras
com referencias interessantes, como: Lucro (Descomprimindo) - Baiana
System, Eu Sou 157 - Racionais MC, Quero ser feliz tambem - Natiruts.
Mesmo que o objetivo aqui nao seja literario, indica-se a obra da autora
nigeriana ja mencionada (Chimamanda): O perigo de uma historia
unica22. Da mesma forma, os episodios do programa de TV Roda Viva,
com Preto Zeze, Djamila Ribeiro e Thais Araujo, sao indica-dos.
No YouTube, a ediçao GRIOT | O CONHECIMENTO
TRANSMITIDO PELA ORALIDADE vale a pena, assim como os filmes O
menino que descobriu o vento (2019) e Capitaes da Areia (2012). Alem
do podcast do Mano Brown, indica-se Vidas Negras, no Spotify.
O site https://www.literafrica.com/ e incrível e o
documentario Nunca me sonharam (2017) merece destaque. Da mesma
forma, a musica de Muddy Waters indica o porque de suas guitarras e da
sua relaçao com o blues terem intimidade com a tematica da resistencia.
A historia de certos generos musicais como Jazz, Black Music,
Samba, Funk, MPB, Reggae, Axe, RAP e Hip Hop explica sua ligaçao com
a luta antirracista, nao so na perspectiva das letras, mas daquilo que
cada um representa.

16 Acesse: https://www.terra.com.br/vida-e-estilo/turismo/turismo-de-negocios/sao-
paulo/museu-em-sao-paulo-mostra-riqueza-da-cultura-negra-no-
brasil,34ba8faea7172410VgnVC-M3000009af154d0RCRD.html
17 Acesse: http://www.museuafrobrasil.org.br/o-museu/um-conceito-em-perspectiva
18 Acesse: https://viagemeturismo.abril.com.br/materias/9-museus-que-ensinam-sobre-

escravi-dao-racismo-e-cultura-negra/
19 Acesse: https://guiaculturalcentrodorio.com.br/museu-do-negro-do-rio-de-janeiro/
20 Acesse: https://amlatina.contemporaryand.com/pt/places/museu-de-percurso-do-

negro-in-porto-alegre/
21 Acesse: https://gauchazh.clicrbs.com.br/comportamento/noticia/2019/11/aprovado-ha-

nove-a-nos-pela-camara-da-capital-museu-do-povo-negro-ainda-nao-saiu-do-papel-
ck36fxgye-031v01ph5mlu5j4f.html
22 ADICHIE, C. N. O perigo de uma história única. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

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Diaspora

No funk brasileiro, Mr. Catra e um exemplo. Formado em


Direito, ele falava cinco idiomas (portugues, ingles, frances, alemao e
hebraico). Assim como 50 Cent, 2Pac e outros negros, ele usou sua arte
para “causar” e se expressar contra o preconceito. Foi rejeitado no rock
e por certas “panelinhas em cada genero”, encontrando no funk o
acolhimento de que precisava para brilhar e ser reconhecido. O mesmo
vale para Emicida, Criolo, MV Bill, Racionais MC, Sabotage, Kondzilla, Os
Tribalistas (Carlinhos Brown), Djonga e Kamaitachi, entre outros.
Para o Ensino Medio, indico as obra Quissama (1 e 2), de
Maicon Tenfen, abordando as vivandeiras, os universos entre os nagoas
e os guaiamuns e, de quebra, algumas questoes muito importantes,
como a decolonizaçao.
Essa e uma boa oportunidade de leitura com analise
intersemiotica para estudar, por exemplo, as Rotas da escravidao ou ver
Netto Perde sua Alma, alem de contemplar a riqueza de Pierre Verger,
que abordou, como Fatumbi, a cultura ioruba, por ter se tornado um
babalao.
Outro livro indicado, porem como peça de teatro, e Namíbia,
nao!, de Aldri Anunciaçao, que permite boas reflexoes, sobretudo na
linha do que afirma Bia Ferreira, em “Cota nao e esmola”. Como
complementos, tambem sao indicadas a Lei dos Sexagenarios (Lei n.
3.270, de 28 de setembro de 1885, tambem conhecida como Lei Saraiva-
Cotegipe) e os estudos ou artigos de historiadores, acerca dos conceitos
negritude e branquitude, sobre o surgimento da tematica “cor de pele”
(indo muito alem dela).
Tais conexoes podem levar aos vídeos sobre as políticas
afirmativas e aos testes de DNA que revelam a origem de afro-
brasileiros, indicando por meio de estudos que mapeiam os genomas, a
diversidade da populaçao e as Africas dentro de nos, inclusive com
dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de um
país que ainda ignora suas raízes africanas.
A partir disso, e possível estabelecer relaçao de significado
com programas de liderança ou trainee so para negros, passando
inclusive por campanhas ineditas, como a de publicitarios de Sao Paulo

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Edilaine Vieira Lopes

(SP), que usaram placas para homenagear personalidades negras que


fizeram a historia no estado, colocando seus nomes em ruas.
Apesar de ser um texto de Aldri, Namíbia, nao! tambem pode
ser explorado como peça de teatro, interpretada por atores pretos, como
Lazaro Ramos, que na dramaturgia encenaram com o rosto pintado de
branco, fazendo o oposto do que geralmente e feito (ainda,
infelizmente), quando atores brancos se pintam de preto.
Falando sobre encenaçao, e um excelente meio de abordar o
teatro experimental negro, tendo como ponto de partida as obras de
Abdias Nascimento, em comparativo com a linguagem cinematografica
presente no filme Corra!, que tem como frase geradora a polemica e
classica “eu nao sou racista e ate tenho amigos negros”.
Pelo vies da interculturalidade, com a abordagem focada na
escrita criativa, e viavel abordar documentarios como Quilombolismo:
Documentos de uma Militancia Pan-Africanista, envolvendo as
narrativas e os sujeitos, da mesma forma em que e possível consumir
criticamente a letra, a cançao e o clipe das musicas Black or White? e
They don’t care about us, ambas de Michael Jackson.
Alguns dos debates nos TEDx (Tecnologia, Entretenimento e
Design), abordam a necropolítica, fazendo contrapartida com a
necronarrativa ficcional de Aldri, sendo que ambas procuram responder
a mesma pergunta: qual e o papel do branco na luta antirracista?
Ainda como sugestao literaria, surge a obra de Ricardo
Azevedo, Trago na boca a memoria do meu fim, que faz contraponto com
jogos como Angola Janga e outros RPGs, como as historias coletivas de
Carlos Kliminck e colegas, em O desafio dos bandeirantes. Assim como
A bandeira do elefante e da arara, de Christopher Kastensmidt. O mesmo
vale para a novela grafica de Marcelo D’Salete, com Cumbe.
Escrita criativa e sobre isso e ajuda a pensar que linguagem
tambem e poder ou símbolo de luta, resistencia, enfrentamento. Como
estao as vozes dos negros e negras na ciencia e na comunicaçao
científica? A Liga de Ciencia Preta Brasileira e uma das brechas
encontradas para protestar.

98
Diaspora

O podcast Ciencia Preta une esforços com cientistas negros


para aumentar a influencia nas redes sociais, nessa tatica antirracista
que tem como base o valor positivo da pretitude. Enquanto isso, perfis
como @negritudephd ou institutos como os de Lewis Hamilton lançam
projetos para formarem professores negros em ciencia e tecnologia.
A Associaçao Brasileira de Pesquisadores Negros (ABPN)
organiza congressos, conferencias e ate mesmo publicaçoes, como a
Revista ABNP, com cadernos tematicos, como o de Geografias Negras e,
assim, reunem mentes ilustres para discutirem, entre outros temas, as
escrevivencias, interseccionalidades e engenhosidades.
Em nosso grupo de estudos, o coordenador do NEABI,
professor Guilherme da Silva Xavier, e um desses exemplos. Em sua
pesquisa de mestrado, dissertou sobre as metodologias ativas no ensino
de disciplinas e areas tecnicas e tecnologicas. Nosso colega, Gilberto dos
Santos, pesquisou no mestrado sobre O tributo de saída dos
escravizados da Bahia para as areas mineradoras na primeira metade
do seculo XVIII. No doutorado, tem estudado sobre A legitimaçao da
escravidao e sobre políticas escravistas para o Brasil, entre outras
tematicas.
Quanto ao pesquisador que tambem integra esse grupo,
Douglas Bandeira Ramos, ja publicou na Revista LHISTE (Laboratorio de
Ensino de Historia e Educaçao da UFRGS), alem de ter participado de
projetos e roteiros como o Viva o Centro a Pe, inclusive em uma das
ediçoes que teve como tematica as lendas urbanas de Porto Alegre. Seu
trabalho “Diaspora africana no Rio Grande do Sul (1800-1819)” foi
escrito e apresentado com primor.
A Fundaçao Cultural Palmares tem aberto editais de Arte e de
Fotografia, entre outros, abordando amplitude e dignidade. Da mesma
forma, a Revista Internacional de Direitos Humanos possui bolsas para
autores negros e indígenas. Tudo isso enquanto a Universidade Estadual
do Norte do Paran (UENP) abre editais de seleçao para mostras de arte
e cultura afro-brasileira, envolvendo rua, trabalho, obras de artes
visuais, concursos de fotografias e apresentaçoes culturais.

99
Edilaine Vieira Lopes

Grupos artísticos e culturais como o Afroreggae incentivam a


pesquisa e a memoria, da mesma forma que a aceleradora gaucha
Lanceiros Negros lança edital voltado a formaçao de agentes culturais
negros e LGBTQIAP+ do Rio Grande do Sul, com foco na produçao
cultural afro-gaucha.
Ha, ainda, eventos como o Latinidades Pretas que pretende
reunir conteudos, gerar renda e dar suporte as empreendedoras e aos
empreendedores negres (como eles mesmo mencionam, ao usar
linguagem neutra e nao-binaria) e indígenas, trabalhadores da cultura e
da industria ou economia criativa.
Na mesma linha, instituiçoes federais, como o IFRS, lançam
cursos de Educaçao para as relaçoes etnico-raciais e eventos on-line.
Quanto ao IFSul, no campus Camaqua/RS, existe o projeto de pesquisa e
extensao TP Traçando o Perfil do Leitor, que proporciona debates acerca
da visibilidade da mulher negra na literatura brasileira.
O perfil Arte Mulher lançou na Semana Arte Mulher uma
discussao literaria parecida, ao abordar a Escrevivencia, falando sobre a
voz da mulher negra na literatura. Impossível nao mencionar todo o
movimento slamm, para alem de um grito da periferia.
O que dizer sobre poetry slam, tambem conhecido como
“poesia falada”? O Slam e uma modalidade poetica criada por volta de
1980, em Chicago, chegando ao Brasil para reivindicar a cultura jovem,
popular e negra. O Slam e a voz que representa a identidade e a
resistencia dos poetas contemporaneos.
Apresentada para grandes ou pequenas plateias e voltada para
o povo, nao somente para a elite, como eram os saraus poeticos
antigamente. Existem competiçoes de poesia falada, que trazem
questoes da atualidade para os debates. A “batalha das letras” se tornou
um acontecimento poetico em forma de movimento social, cultural e
artístico no mundo todo.
A poesia declamada, por meio da oralidade, sempre foi um
fenomeno e hoje os(as) slammers sao considerados poetas da periferia
e abordam criticamente temas como o racismo, a violencia, o
preconceito, os direitos das mulheres e as drogas. Isso desperta a
100
Diaspora

reflexao, convidando para uma tomada de consciencia e de atitude


política em relaçao a esses temas.
Ha campeonatos que passam por etapas e rodadas durante o
ano. Os vencedores sao escolhidos pelos jurados e pela plateia, sendo
premiados (geralmente com livros). Tem ate o Campeonato Brasileiro
de Slam (Slam Br), isso sem falar na Copa do Mundo de Slam, realizada
todos anos, em dezembro, na França, confirmando que a modalidade
contemporanea de poesia pode ser mais um mecanismo (necessario) de
resistencia.
As poetisas e rimadoras (slammers) fazem suas batalhas de
rimas e de poemas, afirmando: “querem nos calar, mas nao vao
conseguir. O fato e que nunca quiseram nos escutar”. Mídria, Mel Duarte,
Slam das Mina/ POA- RS, Natalia Pagot, Atena Beauvoir, Luiza Loroza,
Meimei Bastos e o grupo Poetas Vivos sao exemplos a serem exaltados.
A Jornada de Iniciaçao Científica (JIC) do IFSul premiou um dos
trabalhos que abordou essa tematica, cujo título era A voz da resistencia:
as slammers negras do seculo XXI. O portal EducaAfro tambem divulga
oportunidades e iniciativas unicas, da mesma forma que o podcast Edu
Voices, que aborda trajetorias empreendedoras, o empreendedorismo
preto brasileiro e a importancia do afroturismo para a cultura negra
local.
E preciso registrar que a presença negra na regiao e anterior a
colonizaçao europeia. O racismo na cidade e escancarado e essa triste
realidade foi a impulsionadora do Coletivo Afro Juventude
Hamburguense. O negro sempre participou da construçao do Vale do
Rio dos Sinos, so que essa historia ficava escondida, assim como a
existencia dos privilegios sociais.
A presença silenciosa dos negros na Cidade das Rosas
(Sapiranga) tambem explica muito sobre o racismo e ocupa espaço nos
jornais locais, como o Jornal NH (do Grupo Editorial Sinos) e o
Repercussao . Em Novo Hamburgo, a mulher mais velha da cidade e uma
escritora negra, que foi homenageada no Dia da Mulher Negra Latina e
Caribenha/ONU (em 25/07/22).

101
Edilaine Vieira Lopes

Maria Emilia de Mendonça e autora do livro O curso das aguas.


Aos 106 anos de idade, sua fala e necessaria, considerando que o Atlas
da Violencia, divulgado em 2021, pelo Instituto de Pesquisa Economica
Aplicada (IPEA), mostra que 66% das mulheres assassinadas no Brasil
sao negras. Segundo o IBGE, 63% das casas chefiadas por mulheres
negras estao abaixo da linha da pobreza. As mulheres estao em 92% dos
trabalhos domesticos e desse percentual cerca de 65% sao negras.
“Pequeno manual antirracista”, “Lugar de fala” e “Quem tem
medo do feminismo negro” sao apenas 3 das muitas obras que tem sido
difundidas para auxiliarem na reflexao sobre a importancia da historia
na resistencia negra.
Escrita criativa e sobre isso, sobre linguagem, poder, símbolo
de luta, enfrentamento. Consciencia Negra e quando escolhemos
escrever para protestarmos e usamos a ficçao ou a literatura para
registrarmos o caos, com o objetivo de que certos fatos historicos nao se
repitam. Escrever na sua forma mais íntima e autoral possível esta “para
alem do eixo da industria criativa”.
Isso so se da pela arte, com vida, com sentido, engajamento, ao
vibrarmos com os textos e discursos. Escrevemos para empoderar e
para incomodar ou questionar o quanto avançamos nos processos
sociais e o que ha de novo, aplicavel ou funcional em políticas publicas.
Segundo Chimamanda Ngozi Adichie, “Escolher escrever e
rejeitar o silencio”. E voce, escolhe escrever? Como? Por que? E para que?
Qual e sua luta? Quais sao suas causas? O que o(a) faz vibrar?

102
Biografia de Edilaine Vieira Lopes

Graduada em Letras (Feevale/2007) e formanda em Pedagogia


(em fase de conclusao); pos-graduada em Tecnologias e Educaçao a
Distancia, em Atendimento Educacional Especializado/Educaçao
Inclusiva e especialista em Psico-pedagogia; mestre em Educaçao;
doutora em Letras, professora/pesquisadora (EJA/Ensino
Medio/Tecnico). Premiada pela Academia Brasileira de Letras e autora
de “Sera tao difícil escrever?” e “A leitura do jornal na sala de aula”.
Concluiu seu estagio Pos-Doutoral, em 2019, no PPG de Industria
Criativa, na Feevale. Faz parte do Nucleo de Atendimento as Pessoas com
Necessidades Educacionais Específicas (NAPNE) e do Nucleo de Estudos
Afro-brasileiros e Indígenas (NEABI) no Instituto Federal Sul-rio-
grandense (IFSul), Campus Sapiranga, onde pesquisa e atua no Projeto
Africas no RS, na Incubadora Multissetorial e no Curso de Especializaçao
em Temas e Metodologias Emergentes na Educaçao Contemporanea.
Areas de interesse: escrita criativa, inclusao, diversidade, educaça o
antirracista (edilainelopes@ifsul.edu.br/ edilaine.nh@gmail. com).

103
105
5. Gênese espacial, segregação e
distinção social e étnica na
produção da cidade de
Novo Hamburgo:
conteúdo de um espaço desigual

Fernando Benvenutti Schaab

Introdução

O presente capítulo tem por intençao discorrer e refletir sobre


a distinçao social e etnica na cidade de Novo Hamburgo (RS), em
especial nos primeiros decenios de sua existencia, a partir da sua
evidente segregaçao socioespacial. Esse objetivo se justifica pela
necessidade de lançar luz sobre a discriminaçao sofrida por milhares de
pessoas que nao pertenciam as famílias de origem alema mais abastadas
e, em especial, os negros, no referido período. Para tanto, sao utilizados
como fonte de dados para a pesquisa, alem de inumeros trabalhos
científicos, o acervo do Jornal NH e as entrevistas com sujeitos que
vivenciaram parte daquele período.
Novo Hamburgo e caracterizada como uma cidade media
brasileira, tanto em termos demograficos, concentrando uma populaçao
superior a 248.000 habitantes (IBGE, 2014), assim como pelas funçoes
que estabelece em sua rede urbana, ja que essa se destaca como um dos

107
Fernando Benvenutti Schaab

polos de atraçao populacional do vetor norte da Regiao metropolitana


de Porto Alegre (RMPA).
Historicamente, a produçao social do espaço urbano local
esteve vinculada ao crescimento da industria calçadista da regiao,
sobretudo apos a segunda metade do seculo XX, o que induziu a um
rapido processo de urbanizaçao nesse período, convergindo
diretamente na produçao da segregaçao urbana, característica
marcante na estruturaçao do territorio intraurbano.
Seguindo os moldes do urbanismo fordista, o zoneamento
funcional do espaço, orientado pelos interesses da industria e das
classes dominantes locais, acabou por afastar das areas mais
valorizadas e centrais aqueles indivíduos oriundos das classes sociais
subalternas, sobretudo operarios da industria calçadista, consolidando
a segregaçao tanto nos padroes de localizaçao residencial como nas
praticas cotidianas da cidade.
De tal modo, a segregaçao espacial, desde a origem do
município, foi acentuada por prerrogativas etnicas e sociais, dividindo a
cidade em grandes areas que carregavam, em suas toponímias, a
referencia, por vezes pejorativa, da origem etnica de seus residentes.
Essas grandes areas eram chamadas de: Elite, relacionada ao local de
residencia dos mais ricos que, em sua ampla maioria, eram de origem
alema; Mistura, local de residencia tanto dos indivíduos de origem
alema, como dos mestiços, composta, sobretudo, por operarios das
oficinas calçadistas; e Africa e Limpeza, local de residencia dos negros e
pobres, marcando uma cidade com fortes fronteiras sociais e etnicas.

A gênese espacial e a formação de uma cidade desigual

A colonia de Sao Leopoldo, na antiga província de Sao Pedro do


Rio Grande do Sul, recebeu, nas primeiras decadas do seculo XIX, cerca
de 5300 colonos alemaes, que se estabeleceram ao longo das margens
dos rios dos estuarios do Guaíba. Esse consideravel fluxo imigratorio
germanico, motivado pela conjuntura política e economica da Alemanha

108
Diaspora

na epoca, foi impulsionado pelo projeto do governo imperial brasileiro


que procurava, entre outras motivaçoes políticas e ideologicas,
fomentar a substituiçao da mao de obra cativa de origem africana pela
assalariada de origem “europeia”, demonstrando forte vinculaçao as
tendencias eugenistas que se expandiam no mundo.
De maneira oposta as primeiras frentes de expansao colonial
no Rio Grande do Sul, que visavam a ocupaçao portuguesa em direçao
ao Rio do Prata a partir de formas de exploraçao economica baseadas
no trabalho escravo (de indígenas e africanos), a regiao que atualmente
e chamada de Vale do Rio dos Sinos tornou-se um grande polo receptor,
ao longo do restante do seculo XIX, de milhares de imigrantes alemaes,
que recebiam, por parte do governo imperial brasileiro, pequenos lotes
e glebas para produçao agrícola de subsistencia (Flores, 2004; Da
Cunha, Gartner, 2003).
Assim, no contexto de ocupaçao das terras de pouco interesse
a elite charqueadora luso-brasileira - porem intensamente ocupadas
pelos povos originarios -, surge o desenvolvimento de distintas colonias
no nordeste do Rio Grande do Sul, dentre as quais se destaca a
Hamburger Berg que, devido a sua posiçao geografica, desenvolveu-se
como um importante entreposto comercial entre as areas de produçao
agrícola colonial – especialmente Caxias do Sul e Bento Gonçalves - com
o principal centro economico e populacional da regiao na epoca, a
cidade de Porto Alegre.
O papel economico desempenhado pelo comercio e o
consideravel acumulo de capital dos intermediarios fez dessa colonia
um importante polo regional economico do Estado, o que mais tarde
resultou no fomento de uma serie de oficinas e manufaturas ligadas ao
beneficiamento do couro de origem bovina, assim como na
incorporaçao de objetos tecnicos para circulaçao de mercadorias e
pessoas, a exemplo da implantaçao da estrada de ferro, entre
Hamburger Berg e Porto Alegre, no final do seculo XIX.
Nesse sentido, a expansao do comercio de mercadoria entre as
colonias com Porto Alegre e outras regioes resultou na construçao de
uma estrada de ferro que, por escassez de material ferreo, acabou
fixando seu terminal ferroviario “no pe do morro” de Hamburger Berg,
109
Fernando Benvenutti Schaab

ocasionando o rapido crescimento populacional da area, conforme


relata Schutz (2001):
Aconteceu que a Estrada de ferro acabou ter-
minando no Centro de Novo Hamburgo e nao em
Hamburger Berg. Num primeiro momento, a Estrada
de Ferro parou ao pe do “Morro do Hamburgues”, isto
e, onde hoje e a praça do imigrante. A “estaçao
terminal recebeu o nome de New Hamburger, pelos
ingleses, que assumiram a construçao da ferrovia”
(Schutz, 2001, p.40).

Hamburguer Berg, que ja nas primeiras decadas da


colonizaçao alema na regiao havia se tornado um importante centro
comercial, com a instalaçao do terminal ferroviario (em 1876) distante
do seu centro, sofreu com a transferencia de inumeros estabelecimentos
comerciais e implementaçao de novos fixos (infraestrutura urbana,
estabelecimentos comercias, residencias etc.) e fluxos (indivíduos e
mercadorias) para as areas que vieram a ser chamadas de Novo
Hamburgo. Por sua vez, o rapido crescimento de Novo Hamburgo
marcou nao so o deslocamento do comercio de uma area a outra do
distrito, mas um acirramento entre as lideranças políticas locais.
Inumeros sao os relatos sobre a rivalidade entre Novo
Hamburgo e Sao Leopoldo (Hamburguer Berg) ao longo desse período.
Dentre esses relatos, destacamos o conteudo político e simbolico – de
cunho etnico-racial - do pronunciamento da Comissao de Petiçoes e
Reclamaçoes do Conselho de Sao Leopoldo (1925) perante a solicitaçao
de emancipaçao do distrito de Novo Hamburgo, como discurso
ilustrativo do imaginario acerca da “germanidade” desses territorios, da
sua distinçao socioespacial e da refraçao as ideias de integraçao e
identificaçao das colonias com a unidade nacional “brasileira”. Segundo
o texto:

Sao Leopoldo foi o ponto inicial da colonizaçao alema.


Hoje, porem, os seus moradores se adaptaram ao
meio perdendo, assim, o carater de uma cidade
puramente alema que ja era ha mais de 30 anos atras.
Em Novo Hamburgo, porem o fenomeno de adaptaçao
e nacionalizaçao ainda nao se operou completamente.
110
Diaspora

Isto, todavia, longe de aconselhar a separaçao, e


motivo para se promover uma ligaçao mais estreita
entre as duas sedes, unindo-as cada vez mais, em
beneficio nao so do município e do Estado, mas no do
proprio Novo Hamburgo (Parecer de municipalizaçao
de Novo Hamburgo, 1925 apud Maroneze; Weber,
2017, p.25).

Maroneze e Weber (2017) destacam, ainda, que apesar das


inumeras divergencias no ambito ideologico entre as populaçoes do
distrito de Novo Hamburgo e Sao Leopoldo, a rivalidade assentava-se
principalmente nos interesses políticos e economicos das suas
lideranças. Nessas circunstancias, Novo Hamburgo diferenciava-se de
sua sede, sobretudo, atraves da constituiçao de uma elite política e
economica local, derivada da eminente industria calçadista
desenvolvida no distrito (Shemes; Maroneze; Kuhn Junior, 2017).
Nesse contexto, o surgimento de uma classe política e
economica dominante somado ao forte apelo popular (de carater etnico-
racial) ocasionaram, no dia 5 de abril de 1927, a emancipaçao do distrito
de Novo Hamburgo, ate entao pertencente a cidade de Sao Leopoldo.
A emancipaçao de Novo Hamburgo acompanhou o vertiginoso
crescimento populacional e economico de seu territorio, ampliando, ao
longo do seculo XX, os processos de segregaçao e distinçao de conteudo
etnico e social na cidade. Nesse contexto, destaca-se o carater ideologico
e simbolico remetido a divisao social do espaço em tres grandes areas
da cidade, diferenciadas pelas características etnicas, sociais e
economicas de seus moradores.
Assim, e possível citar: a area referente ao “Hamburgo Velho” e
ao Centro, que eram conhecidos como lugares de residencia dos
chamados “puros” de origem “germanica” e que compunham as classes
mais abastadas da cidade (como industriarios e comerciantes); o bairro
Rio Branco, chamado pejorativamente de “mistura”, em funçao da
populaçao brasileira e miscigenada, composta especialmente por
operarios das fabricas de calçado; e o bairro Guarani, chamado de
“Africa”, em funçao da composiçao de moradores negros, sobretudo
descendentes de escravos.
111
Fernando Benvenutti Schaab

A propria literatura da epoca demonstra o pensamento


dominante dos descendentes germanicos sobre o papel do negro e do
mestiço na estrutura socioeconomica da cidade, conforme referencia
Petry (1959):

[...] encontramos ainda algumas famílias de


descendentes de escravos, os quais costumavam
assinar-se pelo nome da família de seus antigos
donos. A maioria desses elementos de cor residia em
ranchos, no bairro Guarani, antigamente conhecido
pelo nome de “Africa”, sendo os homens, geralmente,
muito procurados como bons trabalhadores em
serviços pesados, ao passo que muitas das mulheres
auxiliam as donas de casa nos afazeres domesticos,
sendo apreciadas pela sua dedicaçao ao trabalho e o
apego, onde trabalhavam (Petry, 1959, p.13).

E preciso salientar que o limite (fronteira) material e simbolico


entre essas tres grandes areas da cidade era determinado pelo curso do
arroio Vicente Luis Rau. Esse corrego, conhecido popularmente pela
alcunha de “Arroio Preto”, ate metade do seculo XX so podia ser
atravessado - sem molhar ou se sujar de lama por inteiro - atraves de
raras e precarias “pinguelas” (pontes rusticas), tendo como destaque
aquela que se localizava na denominada “rua da baderna” (Rua Joaquim
Nabuco) e que separava o centro da cidade - composto na sua maioria
de moradores de origem germanica – do bairro “mistura” - habitado em
grande parte pelos chamados “brazilianer”.
Com efeito, se pode presumir que essa barreira geografica (e
simbolica) entre os moradores das distintas areas intensificou ainda
mais a segregaçao etnica e de classe imposta pela “elite” de origem
alema, intensificando, assim, a coesao e, concomitantemente, o capital
social e economico desse grupo.

112
Diaspora

Figura 1. Localizaçao das tres grandes areas de segregaçao etnica e


social da cidade e suas toponímias

Fonte: MAGALHAES, 2010 (elaborada pelo autor).

Em um importante estudo sobre o tema, Magna Lima


Magalhaes (2010) analisa as dificuldades impostas aos negros na
cidade, frente as restriçoes sociais, espaciais e economicas a eles
impostas. A autora cita a exclusao da comunidade negra no “discurso
oficial” da historia sobre a produçao social do município, a proibiçao aos
negros de frequentarem ambientes privados de socializaçao dos teuto-
brasileiros, a pouca infraestrutura social existente nos bairros em que
residiam e o discurso da “superioridade germanica” em relaçao ao gosto
pelo trabalho e empreendedorismo.
Contudo, Magalhaes (2010) destaca a importancia dos espaços
de resistencia e sociabilidade produzidos pela comunidade afro-
brasileira na cidade, com o intuito de preservar sua cultura, estabelecer
e instituir sua inserçao social. Nesse sentido, a formaçao historica e
espacial da cidade de Novo Hamburgo deu-se por meio de uma
segregaçao espacial com conteudo etnico e social, imposta pela elite dos
descendentes dos imigrantes alemaes, que procuravam segregar a
113
Fernando Benvenutti Schaab

populaçao mais pobre, de maioria formada por descendentes de ex-


escravos e mestiços, dos espaços de lazer e convivencia da cidade, bem
como tambem dos discursos intrínsecos aos festejos locais.
Em uma entrevista concedida para Nunes Magalhaes e Rocha
(2013), Vo Nair, conhecida mulher negra da cidade, entao com 94 anos,
relatou assim o racismo e a segregaçao que sofreu:

E de fato, naquele tempo era um racismo que voces


nem fazem ideia. Se eu contar que eu passei partes aí
do racismo, quando a gente estava mocinha, aí a gente
ia ao cinema. Nos queríamos ir ao cinema, ne. Nos
íamos toda arrumadinha, de tope, de fita, de tenis.
Quando nos chegavamos ao cinema era barrado. A
gente nao sentava onde os brancos sentavam. Tinha
que sentar la em cima no poleiro. Se a gente teimava
em sentar, eles levavam alfinete, palito e espetavam a
gente no bumbum pra gente levantar e ir la pro
poleiro. Eu passei isto. Eu cheguei a passar este
tempo. Isto foi um racismo muito grande. Nos ja
estavamos com 15, 16 anos (Nunes; Magalhaes;
Rocha, 2013, p. 273).

A possibilidade de acessar a escola e frequentar todo o ensino


basico da epoca ate poucas decadas atras era algo reservado a poucos,
nao so na cidade, mas em boa parte do país. Ja a admissao em sociedades
e clubes, muito importante na vida social da cidade, visto que ela chegou
a ser sede de mais de 20 dessas entidades, era vedada para aqueles que
nao tinham como pagar pelo título, sendo a presença de negros
inexistente nesses estabelecimentos.
Uma passagem que pode ilustrar o quanto a vida social da
cidade - mediada em grande parte pelas festividades e eventos
organizados em seus clubes - discriminava negros e mestiços e descrita
pelo fotografo Alceu Feijo, que na decada de 1960 organizou o evento de
escolha da Miss Rio Grande do Sul na Sociedade Ginastica e, para
compor o juri, convidou a entao Miss Guanabara (RJ). Nas palavras do
entrevistado:

114
Diaspora

(...) Uma das juradas que participou era a miss


Guanabara, uma negra muito linda, veio patrocinada
por uma fabrica, e convidaram ela para fazer parte do
juri. Daí veio o presidente da Ginastica que tambem
era presidente da FENAC: “Bah Feijo, tem uma preta
aqui na ginastica no juri, o pessoal esta revoltado.”

Figura 2. Menina negra observa, do lado de “fora”, a inauguraçao de


uma escola estadual em Novo Hamburgo (Decada de 1960)

Fonte: Alceu Feijo (disponível em http://almanaquekoseritz.blogspot.


com/2012/06/)

Todas essas características de segregaçao etnico-racial que


durante muitas decadas tambem foi geografica – pois, como vimos, a
cidade era claramente dividida em areas de residencia de descendentes
alemaes e areas de negros e mestiços - em alguma medida aparecem
ainda hoje nos discursos e representaçoes sobre a cidade. Alegar que
esses eventos e praticas pertencem a um passado remoto e desconhecer
a realidade atual e desconsiderar as particularidades que produzem o
imaginario e a simbologia do lugar.
Dessa maneira, qualquer estudo que vise compreender as
particularidades socioespaciais de Novo Hamburgo precisa considerar
sua genealogia segregacionista e suspeitar das representaçoes e falas

115
Fernando Benvenutti Schaab

que relatem uma pretensa harmonia racial e etnica na


contemporaneidade.

Considerações finais

Ainda que nos primeiros decenios do seculo XX houvesse uma


evidente distinçao entre o local de residencia dos negros e dos brancos
em diversas cidades brasileiras, assim como uma avultada
marginalizaçao racial nos espaços e praticas de lazer no Brasil, e
inegavel afirmar que na cidade de Novo Hamburgo essa conjuntura foi
ainda mais intensa e perceptível.
Divididas por corregos, as tres grandes areas urbanas que
constituíam a cidade de Novo Hamburgo, na primeira metade do seculo
passado, carregavam em sua toponímia significados pejorativos que,
por si mesmo, ja classificavam seus residentes. O uso de expressoes
como ‘Limpeza”, “Mistura” e “Africa” para designar o local de residencia
dos negros e dos mestiços ja denotava a funçao e a posiçao que esses
sujeitos ocupavam na estrutura social da cidade.
A essa segregaçao espacial relacionada ao local de moradia,
somam-se os inumeros relatos aqui apresentados, que apenas
reverberam como a distinçao racial estava presente nas praticas e nas
relaçoes cotidianas de Novo Hamburgo. A proibiçao da entrada de
negros em alguns clubes e espaços privados de uso publico na cidade
evidencia que existia uma discriminaçao formalizada na cidade,
podendo estar revestida por alguns criterios que aparentemente nao
eram raciais. Em vista de todo esse contexto, torna-se necessario
ampliar os estudos sobre a segregaçao etnica e racial em Novo
Hamburgo, com o objetivo de desvelar seus mecanismos de conservaçao
e naturalizaçao. Trata-se, desse modo, de encarar o passado dessa
cidade, levando tambem em consideraçao suas contradiçoes e suas
injustiças.

116
Diaspora

Referências

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SCHUTZ, Liene M. Martins. Os bairros de Novo Hamburgo. Novo Hamburgo,
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SELBACH, Jefferson Francisco. Novo Hamburgo 1927- 1997: os espaços de
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(Mestrado em Planejamento Urbano e Regional)–Faculdade de Arquitetura,
UFRGS, Porto Alegre, 1999.
VIEIRA, Emerson Z. A influência da colonização alemã na mudança do
eixo econômico do Rio Grande do Sul. (Monografia em ciencias
economicas). Instituto de economia/ UFRGS, 2009.

117
Biografia de Fernando Benvenutti Schaab

Doutor em Geografia pela Universidade Federal do Rio Grande


do Sul (UFRGS), Mestre em Geografia pela Universidade Federal do Rio
Grande do Sul (UFRGS) e Licenciado em Geografia pela Universidade
Luterana do Brasil (2005). Possui experiencia na area de Geografia
Urbana, Economica e cultural, com foco em pesquisas sobre a formaçao
de novas centralidades de comercio, praticas cotidianas no espaço
urbano e distinçao socioespacial. Atualmente e professor do ensino
basico, tecnico e tecnologico (DE) do Instituto Federal de Educaçao,
Ciencia e Tecnologia Sul-rio-grandense (IFSul), Campus Sapiranga. E-
mail: fernandoschaab@ifsul.edu.br

119
121
6. A proibição do tráfico negreiro
em Portugal na segunda metade do
século XVIII

Gilberto dos Santos

Em 19 de setembro de 1761, durante o reinado de Dom Jose I,


sob a tutela do secretario Sebastiao Jose de Carvalho e Melo, o conde de
Oeiras e futuro Marques de Pombal, foi estabelecida a lei que proibiu o
comercio de escravizados para Portugal.
O decreto impedia o transporte de “pretos e pretas” para o
reino. Essa era mais uma das reformas realizadas pelo Marques de
Pombal para melhorar e fortalecer o sistema economico e político de
Portugal1. No que diz respeito ao Brasil, pretendia-se aumentar as
rendas da Coroa atraves do comercio metropole-colonia. Para isso, era
necessario impulsionar e fomentar a produçao escravista da America
Portuguesa2.
Anualmente, eram transportados da Africa, da America e da
Asia para o reino “um extraordinario numero de escravos pretos, que,
fazendo nos meus domínios ultramarinos uma sensível falta a cultura
das terras e, das minas”3. O argumento do decreto era que o excesso de

1
MAXWELL, Kenneth. Chocolate, piratas e malandros: ensaios tropicais.
São Paulo: Paz e Terra, 1999, p. 97-110.
2 MARQUESE, Rafael Bivar. Feitores do corpo, missionários da mente: Senhores, letrados
e o controle de escravos nas Américas, 1660-1860. São Paulo: Companhia das Letras, 2004,
p. 174.
3 Alvará determinando que os pretos que forem trazidos da África, América e Ásia,

passando o tempo que menciona, sejam considerados livres logo que cheguem aos portos
123
Gilberto dos Santos

escravizados na metropole apenas servia para gerar falta de trabalho,


com destaque para a ociosidade dos jovens portugueses4.
A lei apresentava forte vies economico e, quando citava os
domínios ultramarinos, referia-se principalmente ao Brasil. Era
importante garantir o suprimento de recursos humanos para a grande
colonia do imperio portugues. Uma medida de política economica
alinhada ao modelo mercantilista, visando, portanto, o monopolio, o
protecionismo e o comercio voltado para o mercado externo5.
Como a relaçao de Portugal com sua colonia era marcada pela
exploraçao colonial, destinar mais escravizados para aqueles domínios
significava favorecer a manutençao da produçao colonial. Ademais, o
trafico negreiro era uma das atividades comerciais mais vantajosas na
colonia6 e, na segunda metade do setecentos, a prosperidade da
metropole esteve ainda mais ligada as oscilaçoes da economia colonial7.
Para garantir o fomento da produçao colonial, o Marques de
Pombal havia tomado outras medidas para assegurar o abastecimento
de mao de obra africana escravizada para o Brasil8, tais como a criaçao
das companhias majestaticas do Grao Para e Maranhao e de

deste reino, sem outra formalidade mais que passarem-lhes nas respectivas alfândegas, a
competente certidão de nelas terem entrado. 19 de setembro de 1761. Registrado na
Secretaria de Estado dos Negócios do Reino, livro I, folha 105. / Arquivo da Torre do Tombo,
Chancelaria Régia, Núcleo Antigo 28, f. 160 verso.
4 Idem.
5 NOVAIS, Fernando A. Portugal e Brasil na crise do Antigo Sistema Colonial (1777- 1808).

4. ed. São Paulo: Hucitec, 1986, p. 92-97.


6 NOVAIS, Fernando A. Portugal e Brasil na crise do Antigo Sistema Colonial (1777-1808), p.

97-98.
7 MAXWELL, Kenneth. Chocolate, piratas e malandros: ensaios tropicais, p. 92.
8 Utilizaremos o emprego do nome “Brasil”, pois como bem notou Rodrigo Ricupero, foi o

termo mais comumente utilizado durante a Época Moderna para se referir ao conjunto da
América portuguesa. Na documentação do período, encontramos “as terras do Brasil”, “as
costas do Brasil”, “partes do Brasil”, sendo a expressão “América portuguesa”
esporadicamente ou quase nunca utilizada na documentação. Evidentemente, o leitor não
deve confundir o Brasil do período colonial com as divisões geográficas do século XX.
Rodrigo M. Ricupero. A formação da elite colonial: Brasil (c. 1530 – c. 1630). São Paulo:
Alameda, 2009. p. 13.
124
Diaspora

Pernambuco e Paraíba9. A coroa esperava, com a atuaçao dessas duas


companhias, garantir o abastecimento constante de mao de obra
africana, que era fundamental para o cultivo da terra, o crescimento do
comercio e o aumento das receitas reais, alem de custear o sistema de
defesas das fronteiras do Brasil10. Ou seja, ao mesmo tempo em que se
buscava suprimir a escravidao em Portugal, por outro lado, ela era
incentivada nos territorios ultramarinos.
Fernando Novais e Francisco Falcon salientam que a Lei de 19
de setembro de 1761 pode ser compreendida somente a luz do
mercantilismo portugues. Isto e, a proibiçao de transporte de
escravizados para o reino parece estar fora do projeto de
industrializaçao proposto por Pombal, mas, na verdade, esta
relacionada ao esquema global da política industrialista. Num quadro
mais geral, esta envolvida por diversos aspectos, dentre os quais foram
destacados: a ilustraçao dos países europeus, a desatualizaçao de
Portugal em relaçao as outras monarquias da Europa ocidental, o
declínio dos rendimentos coloniais, as políticas de fomento industrial, a
mobilizaçao de capitais, a liberaçao de mao de obra e a incorporaçao e
expansao de mercados11.
Charles R. Boxer enfatiza que o Marques de Pombal nunca teve
a intençao de abolir a escravidao negra na colonia. Apenas o fez em
Portugal, mas por motivaçoes economicas, e nao por razoes
humanitarias ou igualitarias. Todavia, sugere que, na segunda metade
do seculo XVIII, devido as ideias ilustradas, vinha aumentando o numero
de pessoas que, por questoes morais e de escrupulo, questionavam a
validade do comercio negreiro e as condiçoes de vida dos
escravizados12.

9 FONSECA, Jorge. Repercussão no Alentejo da legislação pombalina sobre a escravatura.


In: FONSECA, Tereza, FONSECA Jorge (Ed.). O Alentejo entre o Antigo Regime e a
Regeneração: mudanças e permanências. Lisboa: Colibri / CIDEHUS/EU, 2011, p. 1981.
10 MAXWELL, Kenneth. Chocolate, piratas e malandros: ensaios tropicais, p. 105.
11 NOVAIS, Fernando A. e FALCON, Francisco J. Calazans. A extinção da escravatura africana

em Portugal no quadro da política pombalina. In: Fernando A. Novais. Aproximações:


estudos de histórias e historiografias. São Paulo: Cosac /Naify, 2005, p. 86-88.
12 BOXER, Charles R. Relações raciais no Império Colonial Português 1415-1825. 2. ed. São

Paulo: Afrontamento/Porto, 1988, p. 100-103.


125
Gilberto dos Santos

Francisco Falcon indica que a lei em questao estava atrelada


aos fatores economicos. Inicialmente, ampliava os mercados, visto que a
escravidao inibiria as atividades manufatureiras, pois os escravizados
nao consumiam13. A extinçao do trafico, ajudava a ampliar a utilizaçao
da mao de obra livre, pois a escravidao limitava a oferta de trabalho,
aumentando o numero de desempregados “que se entregam a
ociosidade, e se precipitam nos vícios, que dela sao naturais e
consequencias”14. A proposta de Pombal era encerrar esse círculo
vicioso15.
Existem diversas interrogaçoes em relaçao ao numero de
escravizados em Portugal. Didier Lahon indica que, entre 1441 e 1761,
cerca de 400 mil africanos foram importados para o reino16. Alem disso,
ressalta que, entre o final do seculo XVII e 1761, Lisboa possuía em torno
de 150 mil habitantes, dos quais 22.500 eram negros, na maioria
escravizados, o que equivale a 15% da populaçao total17.
Lahon aponta que, em Portugal, havia um tipo de abas-
tecimento pouco divulgado, feito por meio de entradas individuais
realizadas por embarcaçoes que regressavam dos domínios
ultramarinos e nao estavam ligadas diretamente ao trafico negreiro.
Submetida a escravidao, parte desses cativos nao servia diretamente a
seus senhores, mas era explorada em diversas atividades comerciais
pela cidade. As pessoas nessa condiçao devolviam uma grande quantia

13 FALCON, Francisco José Calazans. A época Pombalina: Política econômica e monarquia


ilustrada. São Paulo: Ática, 1982, p. 398-399.
14 Alvará determinando que os pretos que forem trazidos da África, América e Ásia,

passando o tempo que menciona, sejam considerados livres logo que cheguem aos portos
deste reino, sem outra formalidade mais que passarem-lhes nas respectivas alfândegas, a
competente certidão de nelas terem entrado. Portugal, 19 de setembro de 1761. Arquivo
da Torre do Tombo, Chancelaria régia, Núcleo Antigo 28, f. 160, verso.
15 FALCON, Francisco José Calazans. A época Pombalina: Política econômica e monarquia

ilustrada, p. 398-399.
16 LAHON, Didier. O escravo africano na vida económica e social portuguesa do Antigo

Regime. Africana Studia, Porto, n.º 7, p. 73-100, 2004. Disponível em: http://aleph.letras.
up.pt/index.php/1_Africana_2/article/view/7154. Acesso em: 15 dez. 2022.
17 LAHON, Didier. O escravo africano na vida económica e social portuguesa do Antigo

Regime, p. 79-80.
126
Diaspora

de seus ganhos para os proprietarios, ficando, de modo geral, apenas


com o suficiente para se alimentar e se vestir18.
Como ja foi mencionado, o trafico de escravizados era um dos
ramos comerciais mais rentaveis nos territorios ultramarinos, porem,
esse comercio nao produzia grandes lucros em se tratando de Portugal.
Em primeiro lugar, a quantidade anual de cativos chegando aos portos
metropolitanos era de aproximadamente 1.250, uma quantidade bem
menor do que os que desembarcavam nos portos da America
Portuguesa. De acordo com os dados do Slave Voyages, entre os anos de
1758 e 1761, aproximadamente 5 mil africanos desembarcavam
anualmente na cidade de Salvador (Bahia), totalizando 27.014 em 4
anos19.
Alem disso, os africanos escravizados em Portugal valiam, em
media, entre 15$000 reis (adultos) e 12$000 (jovens)20, enquanto no
Brasil, o preço medio de um escravizado era de 100$000 reis21. Dessa
maneira, podemos perceber que havia mais incentivos para privilegiar
o envio de cativos para o Brasil, onde o comercio negreiro era prospero,
pois a economia colonial era baseada na exploraçao agrícola e na
mineraçao, ambas atividades assentes no trabalho escravo.
Luiz Geraldo da Silva apresenta outra perspectiva para o
termino do trafico negreiro para Portugal. Silva salienta que, sobretudo
no seculo XVIII, a legalidade da escravidao foi questionada, uma vez que
a Europa Ocidental se viu como uma sociedade civilizada, “a partir do
autocontrole dos indivíduos, da pacificaçao do corpo social perante o
monopolio da violencia pelo Estado, do surgimento de uma nova
economia psíquica e de paixoes”, em oposiçao ao mundo nao europeu,

18 LAHON, Didier. O escravo africano na vida económica e social portuguesa do Antigo


Regime, p. 87-89.
19 Sobre a quantidade de escravizados desembarcados nos principais portos do Brasil entre

1758 - 1761. Disponível em:


https://www.slavevoyages.org/voyage/database#tables
20 LAHON, Didier. O escravo africano na vida económica e social portuguesa do Antigo

Regime, p. 77.
21 GORENDER, Jacob. O escravismo colonial. São Paulo: Expressão Popular: Perseu Abramo,

2016, p. 231.
127
Gilberto dos Santos

que era caracterizado pela violencia física em diversas instancias, pelo


controle social de cunho senhorial e marcado pela escravidao22.
O alvara, ao mencionar que o trafico de escravizados era
“contra as leis, costumes de outras cortes polidas”, revela que os
ilustrados portugueses desejavam equiparar Portugal as outras naçoes
europeias ao suprimir a escravidao e diminuir os contrates sociais,
expulsando para os domínios ultramarinos os modos de submissao
pessoal, que deveriam apenas promover o comercio e as produçoes
coloniais23.
Tamis Parron pontua que a proibiçao definitiva do tra- fico
para Portugal fez parte tanto de um processo economico, quanto de um
processo intelectual e da pressuposta evoluçao moral da Europa. Os
ilustrados portugueses utilizavam seus escritos para reforçar a
moralizaçao da sociedade e instruir os proprietarios de escravizados a
seguir as leis, praticar os preceitos catolicos e empregar a razao, ou seja,
nao defendiam o fim da escravidao, apenas condiçoes de vida menos
aviltantes para os escravizados24.
Para Silvia Hunold Lara, o Alvara de 1761 estava relacionado a
uma serie de movimentos mais amplos da política pombalina como o
alargamento das hierarquias sociais do imperio portugues, tanto na
metropole quanto na colonia. Uma das leis desse movimento foi a de
1755, que passou a considerar os índios do Maranhao e Brasil vassalos
e suditos da Coroa. Outra foi o decreto de 1761, que determinou que os
suditos africanos orientais e asiaticos cristaos fossem tratados da
mesma forma que os brancos nascidos no reino25. Essas leis nao
beneficiaram os mulatos, pardos e negros na America Portuguesa, pois,

22 SILVA, Luiz Geraldo. “Esperança de liberdade” Interpretações populares da abolição


ilustrada (1773-1774). Revista de História, São Paulo, n.º 144, p. 107-149, 2001, p. 116.
23 SILVA, Luiz Geraldo. “Esperança de liberdade” Interpretações populares da abolição

ilustrada (1773-1774), p. 116.


24 PARRON, Tâmis. A nova e curiosa relação (1764): escravidão e ilustração em Portugal

durantes as reformas as pombalinas. Almanack braziliense, n.º 08, p. 92-107, novembro de


2008, p. 107.
25 LARA, Silvia Hunold. O espírito das leis: tradições legais sobre a escravidão e a liberdade

no Brasil escravista. África Studia, Porto, n.º 14, p. 73-92, 2010, p. 82. Disponível em:
http://aleph.letras.up.pt/index.php/1_Africana_2/article/view/7319.
128
Diaspora

fossem livres ou forros, continuavam vivendo uma vida precaria e


podendo ter sua liberdade questionada, sendo presos como fugitivos ou
reescravizados26.
Assim, o alvara de 19 de setembro de 1761 proibia que, em seis
meses a partir da sua publicaçao, nos portos africa- nos e americanos, e
de um ano, nos portos asiaticos, “se nao possam em algum deles
carregar, nem descarregar nestes reinos de Portugal, e dos Algarves,
preto ou preta alguma”, ficando todos libertos ou forros, sem a
necessidade de carta de manumissao ou de alforria, necessitando
somente da certidao das alfandegas dos lugares que aportaram27. Em
cada certidao, deveria constar o navio no qual os escravizados vieram e
da data do desembarque. Alem disso, as despesas com a certidao
deveriam ser pagas pelos “donos dos proferidos pretos ou das pessoas
que trouxeram em sua companhia”28.
Ao limitar a liberdade apenas aos escravizados “pretos e
pretas”, muitos senhores, dispostos em ignorar a lei, interpretaram-na
de acordo com seus interesses, mantendo os pardos e mulatos em
cativeiro. Embora no documento o termo “preto” seja sinonimo de
escravo, uma vez que a diferença entre escravidao e liberdade era
determinada pelos aspectos visuais, de acordo com o senso comum da
epoca, os escravizados eram os pretos e mulatos. Usavam terminologia
preto, pois negro era indicativo de cor, referencia geografica (negro da
Costa) e nascimento (filho de pais negros)29. De acordo com Silvia
Hunold Lara, o termo “preto” aparece associado a condiçao escrava,
enquanto o termo “negro” deixava a duvida quanto a sua condiçao
social30.

26 LARA, Silvia Hunold. O espírito das leis: tradições legais sobre a escravidão e a liberdade
no Brasil escravista, p. 82.
27 Alvará de 19 de setembro de 1761. Registrado na Secretaria de Estado dos Negócios do

Reino, livro I, folha 105. / Arquivo da Torre do Tombo, Chancelaria régia, Núcleo Antigo 28,
f. 160, verso.
28
Ibidem.
29 LARA, Silvia Hunold. Fragmentos setecentista: Escravidão, cultura e poder na América

Portuguesa. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 132-134.


30 Ibidem.

129
Gilberto dos Santos

Com objetivo de esclarecer as duvidas concernentes a Lei de


1761 – que somente mencionava os “pretos” e “pretas, citando a cor e
nao a condiçao social, a Coroa publicou uma Lei complementar, em 02
de janeiro de 1767, enfatizando que,

[...] se tem dado muitas interpretaçoes ao sobredito


alvara, restringindo-o ao cativeiro dos mulatos e
mulatas, que vem dos referidos portos: e dando-se
despacho deles na Casa da India quando ao contrario
deveriam ampliar-se a favor dos mesmos mulatos e
mulatas [...]31

Ou seja, reforçava a proibiçao dos habitantes dos portos da


Africa, America Portuguesa ou Asia se dirigirem aos portos
metropolitanos para realizarem o comercio negreiro,
independentemente de estarem traficando pretos ou mulatos.
A ideologia iluminista, presente no Alvara, questionava os
aspectos morais que restringiriam a liberdade aos “pretos” e “pretas”,
“por nao ser justo que ficando os pais e mais, sendo pretos, livres e
forros por benefício do mesmo Alvara, fiquem os filhos escravos”32.
Sendo assim, determinou que os oficiais da Casa da India procedessem
com os mulatos da mesma maneira que faziam com os pretos que
vinham da Africa, Asia e Brasil. Alem disso, a Casa da India foi
requisitada para enviar a Coroa uma relaçao completa de todas as
entradas e saídas de todos mulatos e mulatas que foram registrados na
instituiçao a partir da publicaçao do Alvara de 1761, bem como os
portos de origem e as pessoas que os despacharam ou os adquiriram,
para que o rei pudesse tomar a melhor decisao possível33.
O Alvara de 1761 ressaltava que sofreriam penalidades os
homens envolvidos no comercio que fossem a Portugal para realizarem
seus negocios ou “retiverem na sua sujeiçao, e serviço, contra suas

31 Alvará de 02 de janeiro de 1767. Registrado no Livro XV da casa da Índia folha 125.


Segundo a Col. do Mons. Gordo.
32 Alvará de 02 de janeiro de 1767. Registrado no Livro XV da casa da Índia folha 125.
33 Ibidem.

130
Diaspora

vontades, como escravos, os pretos ou pretas, que chegarem a estes


reinos, depois de serem passa- dos os referidos termos”. Ou seja, se
qualquer pessoa fosse aos portos de Portugal para negociar cativos, ou
mantivesse os recem libertos como escravizados, sofreria as penas da
jurisdiçao vigente para aqueles que fazem carcere privado e sujeitam
homens livres ao cativeiro34, a saber, o degredo na Africa, açoites e
multas que variavam conforme o status social dos infratores35.
Essa legislaçao impactou a navegaçao para Portugal, pois
muitos escravizados trabalhavam como marinheiros e seus senhores
tinham receio deles serem libertos ao desembarcarem nos portos da
metropole. Luís Gerado da Silva salienta que, apesar dos marinheiros
escravizados serem relevantes na navegaçao de cabotagem na Costa do
Brasil, tambem atuavam nas viagens de longo percurso36, visto que
muitos deles tinham conhecimento e experiencia em navegaçao, uma
vez que as travessias marítimas faziam parte da realidade do continente
africano. Assim, na diaspora, essa experiencia teve continuidade, com
inumeros africanos sendo empregados no trabalho marítimo37.
Se o Alvara de 1767 dificultava a navegaçao entre o Brasil e a
metropole, outro, de 1776, declarou que os escravizados marinheiros,
independentemente da qualidade, que prestavam serviço as
embarcaçoes comerciais que iam aos portos do reino, isto e, “escravos
dos mesmos donos dos navios ou dos oficiais que neles andam
embarcados ou de outras quaisquer pessoas moradoras na America, que
os queiram trazer ao ganho das soldadas dos navios de comercio”38, nao

34 Alvará de 19 de setembro de 1761. Registrado na Secretaria de Estado dos Negócios do


Reino, Livro I, folha 105. / Arquivo da Torre do Tombo, Chancelaria régia, Núcleo Antigo 28,
f. 160, verso.
35 FONSECA, Jorge. Repercussão no Alentejo da legislação pombalina sobre a escravatura,

p. 181.
36 SILVA, Luiz Geraldo; SOUZA, Priscila de Lima. Escravos marinheiros, senhores e

locadores: leis pombalinas, faina marítima e economia mundial (1761-1810 Afro-Ásia,


salvador, n.º 60, 2020, p. 53. Disponível em:
https://periódicos.ufba.br/index.php/afroasia/articles/view/34964. Acesso: 18 dez. 2022.
37 RODRIGUES, Jaime. Escravos, senhores e vida marítima no Atlântico: Portugal, África e

América portuguesa, c.1760 – c.1825. Almanack, (5), p. 149. Disponível em: https://doi.
org/10.1590/2236-463320130508. Acesso em: 17 de dez. 2002.
38 Alvará de 22 de fevereiro de 1776. Apud Silvia Hunold Lara. Legislação sobre escravos

africanos na América portuguesa. Madrid: Fundación Mapfre América, 2000, p. 368-369


131
Gilberto dos Santos

seriam libertos pelo Alvara de 1761. A menos que nao fossem matri-
culados como tripulantes dos navios, da mesma forma que todos outros
membros da equipe. Em outros termos, se o escravizado nao estivesse
matriculado como membro da tripulaçao, ele ficaria livre ao
desembarcar em Portugal.
Diversos proprietarios de escravizados, que levavam cativos do
Brasil para Portugal na condiçao de marinheiro, mantinham-nos depois
para servi-los ou vende-los a outras pessoas na metropole. Foi o que
ocorreu com o escravizado Jose, que saiu da Bahia como marinheiro em
uma embarcaçao, mas, dois anos depois, estava servindo ao seu senhor
sem que ele tivesse a intençao de regressa-lo. A Intendencia Geral da
Polícia, contudo, teve ciencia do caso e passou a Jose uma carta de
manumissao, encaminhando-o ao Colegio dos Catecumenos para que
fosse doutrinado e batizado39.
Em 1800, o príncipe regente, D. Joao VI, outorgou um alvara,
reforçando que os escravizados marinheiros, que atendessem aos
requisitos listados na Lei de 1776, nao teriam sua condiçao de escravo
modificada ao embarcarem em navios comerciais com destino aos
portos de Portugal40.
O Alvara de 1761 ressaltava que aqueles que se encontravam
na condiçao de cativo assim continuariam, demonstrando a
preocupaçao com a manutençao da escravidao nas conquistas ao
destacar que “nao se inove coisa alguma, com motivo desta lei; nem que
com o pretexto dela desertem dos meus domínios ultramarinos os
escravos que neles se acham, ou acharem”41.

39 FONSECA, Jorge. As leis pombalinas sobre a escravidão e as suas repercussões em


Portugal. Africana Studia, n.º 14, p. 29-36, 2010, p. 30. Disponível em:
https://ojs.letras.up.pt/index.php/AfricanaStudia/article/view/7316. Acesso em: 10 de
out. de 2022.
40 Alvará de 10 de março de 1800. Apud Silvia Hunold Lara. Legislação sobre escravos

africanos na América portuguesa. Madrid: Fundación Mapfre América, 2000, p. 361-362.


41 Alvará determinando que os pretos que forem trazidos da África, América e Ásia,

passando o tempo que menciona, sejam considerados livres logo que cheguem aos portos
deste reino, sem outra formalidade mais que passarem-lhes nas respectivas alfândegas, a
competente certidão de nelas terem entrado. Portugal, 19 de setembro de 1761. Arquivo
da Torre do Tombo, Chancelaria régia, Núcleo Antigo 28, f. 160, verso.
132
Diaspora

Em outras palavras, o Alvara de 1761 demostra que, apesar da


escravidao ser legítima no Imperio Portugues, a partir da vigencia dessa
lei, havia uma diferença entre a escravidao na metropole e na colonia.
Em Portugal, reconhecia-se a incoerencia entre uma sociedade que se
pretendia civilizada e a admissao do trabalho escravo. Havia tambem
aqueles que viam a escravidao como uma instituiçao nociva e que os
sofrimentos impostos aos escravizados no Brasil violavam a condiçao de
seres humanos. No entanto, a Coroa estava certa de que a escravidao
deveria continuar alem-mar, pois era fundamental para o
desenvolvimento da economia colonial.

Considerações Finais

As Leis de 1761 e 1773 foram medidas antiescravistas


adotadas por Portugal em resposta as críticas contra o trafico negreiro
e a escravidao, que começaram a ser difundidas no início do seculo XVIII,
especialmente em países prosperos onde o pensamento ilustrado
alcançava maior circulaçao. Apesar do atraso da ilustraçao portuguesa
em relaçao a outros países europeus, o Marques de Pombal, que havia
servido como diplomata na Inglaterra, trouxe essas ideias iluministas
consigo quando assumiu o cargo de primeiro-ministro, sob o reinado de
Dom Jose I. As reformas pombalinas propostas tinham como objetivo
modernizar Portugal, aumentar seu poder na Europa e restaurar seu
sistema economico e político.
Portugal, ao adotar argumentos antiescravistas funda-
mentados em razoes morais, humanitarias e religiosas, procurou
gradualmente extinguir a escravidao em sua metropole. No entanto, e
crucial notar que a aboliçao gradual da escravidao no país nao levou a
uma mudança de perspectiva. Pelo contrario, as leis que proibiram o
trafico de escravizados para Portugal e introduziram a "lei do ventre
livre" evidenciaram as falhas da escravidao, mas nao a aboliram. Essas
leis acabaram por reforçar a legitimidade da instituiçao da escravidao,
ao mesmo tempo em que incentivaram sua continuidade no Brasil.

133
Gilberto dos Santos

As medidas antiescravistas implementadas pelo Marques de


Pombal refletiram a discussao em curso na Europa sobre o trabalho
livre. Em Portugal, que buscava investir no desenvolvimento industrial
e na produçao de manufaturados para reduzir sua dependencia de
outras naçoes, era crucial contar com uma força de trabalho livre,
especializada e motivada, de acordo com os planos de Pombal. A criaçao
de um contingente de trabalhadores livres tambem visava eliminar o
desemprego, a ociosidade e os vícios entre a populaçao livre e pobre.
Essas leis marcaram o início do questionamento da
legitimidade da escravidao no Brasil. Embora as ideias antiescravistas
ainda nao tivessem ganhado grande influencia, elas lançaram as bases
para futuras críticas. Mais tarde, surgiram questionamentos sobre as
condiçoes de vida dos escravizados, as doenças decorrentes do trafico
negreiro e a ausencia de cuidados medicos adequados para os escravos.
E relevante notar que, embora algumas vozes defendessem a continui-
dade da escravidao, o simples fato de essa questao estar sendo debatida
indicava um movimento em direçao a mudança e a revisao das praticas
sociais da epoca.

Fontes

Alvara determinando que os pretos que forem trazidos da


Africa, America e Asia, passando o tempo que menciona, sejam
considerados livres logo que cheguem aos portos deste reino, sem outra
formalidade mais que passarem-lhes nas respectivas alfandegas, a
competente certidao de nelas terem entrado. 19 de setembro de 1761.
Registrado na Secretaria de Estado dos Negocios do Reino, livro I, folha
105. / Arquivo da Torre do Tombo, Chancelaria Regia, Nucleo Antigo 28,
f. 160 verso.
Alvara de 02 de janeiro de 1767. Registrado no Livro XV da casa
da India folha 125. Segundo a Col. do Mons. Gordo.

134
Diaspora

Alvara de 22 de fevereiro de 1776. Apud Silvia Hunold Lara.


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Alvara de 10 de março de 1800. Apud Silvia Hunold Lara.
Legislaçao sobre escravos africanos na America portuguesa. Madrid:
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https://periodicos.ufba.br/index.php/afroasia/articles/view/34964. Acesso:
18 dez. 2022.

136
Biografia de Gilberto dos Santos

Licenciado em Historia pela Universidade Federal do Estado do


Rio de Janeiro (UNIRIO), mestre em Historia Economica pela
Universidade de Sao Paulo (USP) e doutorando em Historia Economica
pela Universidade de Sao Paulo (USP). Professor de Historia no Colegio
Santa Cruz (SOMEC). Areas de interesse: Escravidao negra no Brasil
colonial. E-mail: gilbertodossantos@usp.br.

137
139
7. Religiões de matrizes africanas:
percepções a partir da cidade de
Pelotas

Keli Ruas

Introdução

Na presente comunicaçao, o enfoque sera dado aos praticantes


de religioes de matrizes africanas, povos originarios1 que passaram por
processos e embates com o poder publico local, para garantirem o
acesso a sua praia sagrada, o Balneario dos Prazeres, na cidade de
Pelotas-RS.
Essa abordagem e um recorte da tese de doutorado em
Geografia, intitulada: Territorios e representaçoes sociais em tensao, na
orla da Laguna dos Patos, Pelotas, RS, defendida em 2019, na
Universidade Federal do Rio Grande do Sul. O objetivo central foi
explicar o espaço social do Balneario dos Prazeres, a partir das
diferentes formas de apropriaçoes, usos e representaçoes da natureza,
que desencadeiam conflitos no lugar.

1 O Decreto Nº 6.040, de 7 de fevereiro de 2007, define povos e comunidades tradicionais


como: “grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem
formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais
como condição para a sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, uti-
lizando conhecimento, inovação e práticas gerados e transmitidos pela tradição” (Brasil,
2007).
141
Keli Ruas

O estudo teve uma abordagem qualitativa, as interpretaçoes


caracterizaram-na como uma pesquisa exploratoria e explicativa,
alinhadas a uma postura dialetica. Tal abordagem metodologica revelou
o sentido da natureza para a populaçao afro-religiosa e o
enfraquecimento de seus vínculos territoriais com o lugar associado as
praticas residuais de racismos e intolerancia religiosa presentes na
sociedade pelotense.

“É preciso que o Brasil africano seja visto, Thonrado e tenTha


lugar”.
A frase que da título a esse topico foi proferida pelo professor
Rafael Sanzio dos Anjos (2002) no webinar Geoafro 3- “O Brasil e a
educaçao basica hostilizada e periferica no Estado racista”. Dentre os
temas da educaçao do Brasil africano, as religioes de matrizes africanas
sao de extrema relevancia, pois no imaginario popular as religioes afro-
umbandistas e africanistas sao tidas como primitivas, exoticas e ate
satanicas.
O desconhecimento e a falta de informaçao faz com que o
preconceito se estabeleça, alimentando o racismo e a intolerancia a
ponto de provocar violencia. As religioes de matrizes africanas
compoem a religiosidade brasileira. Para Priore (1994, p. 74), “a
religiosidade brasileira e um conjunto de crenças e praticas em que
frequentemente se misturam diferentes tradiçoes religiosas, sobretudo
a catolica, e judaica, as africanas e as indígenas.”
Os ritos e cultos de matrizes africanas sao expressoes culturais
que homens e mulheres africanos tentaram preservar ao serem
arrancados de sua terra, seu territorio e trazidos como escravos para o
continente americano. E fato que, em se tratando de religiao, os seres
humanos sao agentes ativos na construçao de realidades simbolicas, das
quais participam conforme sua experiencia social, assim como
constroem o trabalho, as relaçoes sociais e instituiçoes políticas. No
contexto da escravidao, sua funçao era: “dar a seus participantes um
sentido para a vida e um sentimento de segurança e proteçao contra um
mundo incerto e hostil” (Priore, 1994, p. 32).

142
Diaspora

Com a colonizaçao da America a Igreja catolica atuou


desqualificando a religiosidade negra, com suas formas de controle,
repressao, doutrina e moralismo, tratando-a como feitiçaria, mas
houveram resistencias. As religioes de matrizes africanas representam
a resistencia e a luta pela liberdade, assim como o respeito ao povo
negro, desde os primeiros dias do cativeiro ate os dias atuais.
Foi atraves de muito sofrimento que a populaçao negra, ao
longo do tempo, concretizou as bases que serviriam para a preservaçao
e a continuidade dos valores civilizatorios africanos, como sua
religiosidade, que se caracteriza enquanto resistencia e luta.
Esse universo afro-religioso esta em evidencia, seja pela
procura de novos adeptos, seja pelo interesse da comunidade científica
em reescrever a historia e a geografia a partir dos grupos subalternos,
seja pela falta de registro documentado. Isso porque esses grupos
transmitem seus conhecimentos as futuras geraçoes de forma oral.
E importante destacar que o terreiro ja nasceu atendendo uma
necessidade estampada pela escravizaçao, independente de suas
origens. Mesmo com o fim do trabalho escravo, a populaçao negra
continuou marginalizada e sofrendo com o controle e coerçao por parte
da Republica.
Ao analisarmos todos os dados estatísticos da inserçao dos
negros na sociedade, percebemos que a populaçao negra e inferiorizada
e marginalizada; mas por que isso aconteceu em uma naçao de 10
milhoes de habitantes, onde 70% sao africanos e descendentes?
Segundo Anjos (2022), e porque no Brasil predomina uma mentalidade
colonial dominante, em que as políticas de Estado sao voltadas para a
invisibilizaçao das matrizes africanas e da escravizaçao, como nos
mostra a historia:

A Lei Feijo de 1831, que declarava livres todos os


escravos vindos de fora do imperio e impoe penas aos
importadores dos mesmos escravos, foi uma lei ‘para
Ingles ver’; Lei 001- 1837, declara a proibiçao para
africanos (a) e descendentes estudarem, a Política de
Estado era impedir a educação e o não
conhecimento do povo africano e descendente, o
143
Keli Ruas

principal dano existencial foi o impedimento


social (cidadania plena); Primeira Lei de Terras,
proibia a aquisiçao de terras por outra forma que nao
seja a compra e venda. A Política de Estado foi a
formalização do não lugar e da inexistência
territorial, o principal dano existencial foi a falta
de raíz e pertencimento. Em 1872 o primeiro censo
demografico cria o termo pardo vigente ate o
presente, onde a Política de Estado foi o de
embranquecimento da população do Brasil em
100 anos, cujo principal dano existencial foi o
conflito identitário. Lei Saraiva Cotegipe de 1885
imposiçao para analfabetos nao votarem. A Política
de Estado foi a exclusão formalizada na política e
na representação no governo das matrizes
africanas, o principal dano existencial foi a
inferiorização, não se ver representado (a); Lei
Aurea de 1888, extingue a escravidao e oficializa o
Racismo sistemico, o principal dano existencial foi
a inexistência, autonegação; Lei da Vadiagem de
1890, onde a Política de Estado foi a oficialização e
naturalização do estado policial e extermínio da
população negra, o principal dano existencial foi o
estado de medo permanente (Anjos, 2022, grifo da
autora).

Por isso, a frase de Anjos (2022)2 “e preciso que o Bra- sil


africano seja visto, honrado e tenha lugar”, faz todo o sentido no nosso
tempo. Esse apanhado de leis e normativas do Estado apoiadas pela
classe dominante foram responsaveis por invisibilizar e desvalorizar a
cultura afro-brasileira, em uma tentativa de apagar o passado
escravocrata e justificar as desigualdades em termos de distinçoes
biologicas; por criar – tanto no passado quanto no presente – a ideia de
que as “classes pobres” sao sinonimos de “classes perigosas” e, assim,
ter um pretexto para a dominaçao e controle de sua cultura e
espacialidade.

2ANJOS, Rafael, S.Á. dos. WEBINAR GEOAFRO 3 - O BRASIL AFRICANO E A EDUCA ÇÃO
BÁSICA HOSTILIZADA E PERIFÉRICA NO ESTADO RACISTA. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=eX8WC55uRu0. acessado em junho de 2022.

144
Diaspora

No entanto, conforme nos sugere Lefebvre (2013, p. 126), o


espaço e algo que esta em movimento, suscetível de transformaçoes,
pois ele o ve como o elo entre “o mental e o cultural, o social e o
historico”. Assim, para ele o espaço e uma produçao social, em que
homens e mulheres produzem a partir de suas praticas. E pela açao
humana que os espaços e os sujeitos se apresentam cheios de
significados e de territorialidades, sendo assim, sao passíveis de
transformaçoes. Como podemos observar, a imposiçao de normas
estruturais como instrumento de poder esbarra nas taticas dos atores,
que agem nas fissuras, ranhuras, buracos, nos interstícios das redes
disciplinares estabelecendo as artes do fazer, em que “o cotidiano se
inventa com mil maneiras de caça nao autorizada”, como enfatiza
Certeau (2009, p. 38).
O espaço social visto a partir da noçao de apropriaçao do
espaço revela os jogos de relaçoes de poder, relaçoes simbolicas e
territorialidades que reproduzem “o espaço social hegemonico e
territorialidades em tensao com ele” (Heidrich, 2017, p.31).
Nossa historia esta repleta de exemplos de (re) existencia
negra a escravidao e a todos os tipos de invisibilizaçoes da cultura afro-
brasileira, que precisam ser difundidas para que se crie uma consciencia
de que apesar do racismo no Brasil ser estrutural, ele pode ser, sim,
combatido nas diversas instancias da nossa sociedade, com educaçao e
praticas sociais antirracistas. Nas paginas que seguem, trago um pouco
sobre as praticas culturais afro-religiosas na praia do Balneario dos
Prazeres.

Religiões de matrizes africanas: percepções a partir das


cidades de Pelotas, RS.

Para dar início a minha fala com os educadores e educandos


que participaram do evento Africas no RS, em 2021, contei sobre a
minha aproximaçao com as religioes de matrizes africanas na cidade de
Pelotas, ja mostrando que nossas escolhas de pesquisa estao
relacionadas com nossas vivencias, com aquilo pelo que temos
145
Keli Ruas

curiosidade ou vontade de aprofundar, mesmo sendo algo de que ja


possuímos uma certa noçao. A praia do Laranjal, localizada no referido
município, e formada pelo Balneario Santo Antonio, Balneario Valverde
e Balneario dos Prazeres, sendo que durante minha infancia pude
frequentar esses balnearios e me questionava sobre suas paisagens
serem tao distintas.
Chamava minha atençao o uso do Balneario dos Prazeres para
as praticas de religioes de matrizes africanas e o fato de nao ter limpeza
nessa praia. Ha uma visível diferenciaçao socioespacial manifestada na
paisagem desses balnearios: Santo Antonio e Valverde (Figura, 1), sao
mais urbanizados e ocupados pelo publico da classe media a alta, com
intervençoes do poder publico no verao, para atrair veranistas e
turistas.
Ja o Balneario dos Prazeres (Figura, 2) e menos urbanizado,
sendo apropriado pelo pobre, pelos negros e afro-religiosos, ou seja,
para o lazer e reproduçao de praticas culturais dos grupos subalternos.
E um espaço deficitario em infraestrutura de lazer, em serviços publicos
e turismo, mas que atraía um grande publico de Pelotas e regiao no
período de verao, seja pela presença do verde, presente nos resquícios
de Mata Atlantica, seja pela Festa de Iemanja, ou ambos.

Figura 1. Calçadao do Balneario Figura 2. Calçadao do Balneario


dos Prazeres Santo Antonio.

Fonte: Foto da autora, 2018. Fonte: Foto da autora, 2018.

Apesar da cidade se apresentar como o locus da diversidade,


onde convivem ricos e pobres, crianças, jovens, adultos e idosos, pessoas

146
Diaspora

em situaçao de rua e doutores, catolicos, ateus, protestantes e


umbandistas… as políticas e planejamento urbano nao olham para a
“cidade negra”, desconhecem e/ou desconsideram as características
culturais dos afrodescendentes, bem como as especificidades geradas
pelos seu historico de ocupaçao espacial.
Na sociedade capitalista, a cidade se desenvolve, incorporando
na sua estrutura e funcionamento os componentes da logica do capital,
com destaque para o papel do Estado que detem o comando político do
capital. E fato que nenhuma sociedade existe sem imprimir ao espaço
que ocupa uma logica territorial e sao as diferentes formas de
apropriaçao do espaço que geram os conflitos e tensoes territoriais.
Na maioria das vezes, o privilegio e dado a determinados
grupos sociais com aspectos específicos, levando a formaçao das
desigualdades socioespaciais. Compreender a luta pelo acesso a
natureza na cidade e aos serviços ecossistemicos culturais prestados
pela Laguna dos Patos em Pelotas, no Balneario dos Prazeres, exigiu
trilhar pelo campo da geografia cultural e compreender que: “A
territorializaçao nas religioes de matriz africana, nao e apenas ocupar
um espaço físico, e tambem assentar AXE, conectando espaço e tempo
(ancestral), físico e simbolico” (Junior, 2014).
O Racismo estrutural impregnado em nossa sociedade nao
permite que o planejamento urbano leve em conta e/ou saiba dialogar
com o uso dos espaços publicos da cidade para as praticas de religioes
de matrizes africanas.
Para interpretar as praticas sociais dos diferentes atores
sociais no espaço costeiro lagunar, foi necessario entrelaçar conceitos,
metodos e metodologias da Geografia social, articulada com a cultura,
atraves de abordagens qualitativas. Assim, foi possível apreender as
subjetividade e/ou dos significados contidos nos textos e imagens
produzidos pelos diferentes atores sociais territorializados endogenos
(moradores), exogenos (poder publico local) e transitorios (praticantes
de religioes de matrizes africanas e veranistas) (Guy di Meo, Buleon,
2007), nos levantamentos de campo e nas entrevistas nao-diretivas.

147
Keli Ruas

O Balneário dos Prazeres e a perda da sua apropriação


territorial afro-religiosa

No seculo XIX, Pelotas foi polo Charqueador, com mao de obra


escrava, 37,1% dos seus habitantes eram escravos. Por isso, Pelotas e
considerada a cidade com o maior numero de afrodescendentes do
interior do Rio Grande do Sul e com grande expressao para as religioes
de matrizes africanas.
De acordo com Correa (1991-1992), existem tres formas
basicas de religioes afro-brasileiras no Rio Grande do Sul: “a ‘umbanda
pura’, a linha ‘cruzada’ e o batuque”, tal classificaçao e feita pelos
proprios filhos e pais de Santo. No batuque pelotense, ha referencias a
casa de naçao Jeje, Cabinda, Oyo e Ijexa, bem como a combinaçao entre
alguma delas, pois [...] as diferenças se dao no proceder dos rituais, como
a velocidade dos toques de tambor e nos axes (cantos) entoados (Kosby,
2014, p. 298).
A religiao dos iorubas, na America, e a que mais permanece fiel
aos modelos ancestrais, manifestada na forma dos candombles, nagos
da Bahia, como o Xango em Pernambuco e Alagoas, e como batuque no
RS (Bastide, 1989). Correa (2012) afirma que o batuque e sem duvida a
maior herança negra que o Rio Grande do Sul tem e que por ser um
Estado extremamente racista, ate hoje as casas de religioes sofrem
perseguiçoes e os territorios negros sao estigmatizados, como veremos
a seguir.
A criaçao do Balneario dos Prazeres, em 1953, foi fruto da
pressao social da elite local, que queria se distinguir do “povao” no
acesso a praia, sendo notoria a existencia de um fundo preconceituoso e
discriminatorio para com os negros e pobres da cidade, como mostra a
reportagem a seguir:

Os proprietarios tiveram que fazer uma seleçao de


pessoas, porque aconteciam muitas confusoes.
Imagine que ate brigas com facadas aconteciam. [..]
alem disso cruzavam caminhoes cheios de gente,
sempre com algazarras. Diante dos problemas, um
148
Diaspora

dos proprietarios, Luiz Augusto de Assumpçao,


resolveu ceder o “Barro Duro” – balneario dos
Prazeres – para a populaçao em geral. A parte que
atualmente esta dividida em balnearios Santo Antonio
e Valverde ficou a disposiçao dos familiares e amigos.
Na parte das “famílias”, os costumes passaram a ser
bem diferentes em relaçao ao “Barro Duro”, para onde
se deslocava o “povo”, como salienta Heloisa
Assumpçao. Conta que nesta parte, continuavam
acontecendo brigas, mas ja eram “problemas deles”
(Etcheverry, 1991, p. 12).

No entanto, ser segregado no Balneario dos Prazeres nao foi


tao ruim, uma vez que a populaçao negra pelotense se identificava
plenamente com o lugar, por esse ter sido no passado um espaço de
refugio de escravos fugitivos, como conta Carlos Alberto Pereira (2017):

Ouvi historias de meus antepassados de que na epoca


da escravidao a mata foi abrigo de negros fugitivos,
[...] ao entrar no mato e sentir o contato com a
natureza se sente a espiritualidade e a presença desta
ancestralidade.

Seguimos com Carlos Alberto Pereira3, em seu relato sobre


suas experiencias no Balneario dos Prazeres:

[...] lembro que nos anos de 1975 e 1976 nos


arrastavamos camarao, pescavamos para o consumo,
aquela praia lindíssima que nao imaginas, diversas
famílias e irmaos se reuniam, nos tínhamos na media
mais de 400 acampamentos naquela redondeza
durante o período de dezembro a fevereiro (Pereira,
2017).

A praia para os afro-religiosos reunia lazer, descanso de ferias


e tambem uma conexao com o sagrado, pois para esses grupos a

3 PEREIRA. Carlos Alberto. Depoimento concedido à entrevistadora RUAS, K. Pelotas, 2017.


149
Keli Ruas

natureza nao e exclusivamente natural, esta sempre carregada de um


valor sobrenatural. Marilene Janes, conhe cida como preta de Oxum, que
mora nessa praia, fala desses elementos naturais: “Tres elementos da
natureza: agua, terra e mata, que possuem forte significado para as
religioes de matriz africana, “onde varios orixas, caboclos, pretos velhos,
exus respondem” (Janes, 2017)4.
Cabe ressaltar que a praia no Balneario dos Prazeres e
margeada por uma faixa de mata nativa, com figueiras centenarias, as
quais sofrem com a perda da linha de costa, que tem provocado o
tombamento das mesmas.
A festa de Iemanja na cidade e realizada desde 1957, de forma
ininterrupta, mas com a criaçao da Gruta de Iemanja, em 1966, a
apropriaçao afro-brasileira nessa praia ganha um marco historico. Os
atores sociais do campo afro-religioso nos relataram que passaram a ter
problemas com a realizaçao da Festa de Iemanja, nos anos 1990, quando
a praia passou a receber grande publico de veranistas simpatizantes da
religiao, mais interessados na festa profana do que na festa sagrada.
A festa de Iemanja passou a criar a territorialidade da diversao
noturna de jovens que consomem bebidas alcoolicas no local e
atrapalham a festa religiosa. Segundo o presidente da Federaçao Sul-
riograndense de Umbanda e cultos afro-brasileiros, Joab Bohns, o poder
publico costuma liberar espaços para a venda de flores de plastico e
outros artefatos religiosos, bebidas e alimentos, sem o consentimento
dos organizadores da festa, nos dias da festa religiosa.
Isso gera impasses entre os moradores locais, afro-
umbandistas e africanistas, pois a festa atrai muitos simpatizantes da
religiao que nao sabem dos cuidados que devem ter em relaçao as
oferendas na natureza, ocasionando descartes de objetos nao
biodegradaveis, que passam a ser vistos como lixo religioso. Ja a falta de
segurança publica, levava a ocorrencia de episodios de violencia.
Por conta desses eventos, os moradores locais mais antigos, o
poder publico e a imprensa local começaram a associar a festa religiosa

4 JANES, Marilene. Depoimento concedido à entrevistadora RUAS, K. Pelotas, 2017.


150
Diaspora

com a degradaçao ambiental e a violencia, criando representaçoes


negativas da apropriaçao afro-religiosa na praia (Figura 4), com o
intuito de fragilizar a apropriaçao territorial sagrada nesse espaço
costeiro para, posteriormente, justificar a “expulsao” desses praticantes
do local.
Figuras 3 e 4 - Reportagens com teor subliminar, associando a festa
afro-religiosa a violencia.

A) Fonte: Diario Popular, 4, B) Fonte: Diario Popular 4,


fev. 1994, p. 3. fev. 1999, p. 7.

Os meios de comunicaçao nesse caso criaram imaginarios que


reproduzem ideologias racistas e intolerantes, as quais induzem os
sujeitos a criarem determinados juízos de valor em relaçao aos espaços.
O tombamento da mata nativa decorrente dos processos de
erosao costeira foi usado como alibi para proibir os acampamentos na
mata. Houve tentativas de transferir a festa realizada na orla da praia
para a praça central do Balneario, mas teve resistencia.
Na mesma epoca, a prefeitura concedeu o espaço da mata para
um empreendimento imobiliario realizar um calçadao no interior da
mesma, como contrapartida de um condomínio fechado, criado nas
proximidades dessa praia. Como indagou o presidente da Federaçao Sul-
Riograndense de Umbanda e Cultos Afro-Brasileiros, Joab Bohns
(2017)5:

5 BONHS. Joab. Depoimento concedido à entrevistadora RUAS, K. Pelotas, 2017.


151
Keli Ruas

Eu nunca vi uma APP com calçadao, tiraram a


natureza e botaram o artificial, um concreto. [...]
Aquela area do calçadao era usada por nos, acampa-
mos ali, fazíamos o encerramento anual, eles em vez
de nos darem segurança, fiscalizaçao para que tivesse
o respeito, simplesmente foram la e construíram um
calçadao.

Joab se refere nao so a segurança no local, mas a um conjunto


de serviços que os moradores e umbandistas reivindicam ha anos e que
nunca foi cumprido. Os infortunios seguem. Meses antes dos
preparativos da festa de Iemanja de 2015, na noite anterior a vinda da
deputada Regina Becker Fortunati, para uma audiencia publica sobre a
PEC 21 de 2015, que defende a proibiçao de animais em terreiros, a
gruta de Iemanja sofreu um incendio. Tal fato levou os umbandistas e
africanistas a participarem de uma manifestaçao publica no calçadao da
cidade com a exposiçao da imagem de Iemanja queimada. “Nao se trata
de matar animais, e sim sacralizar, o sangue e para fortalecer nosso elo,
nossa cabeça, nosso Ori”, explica o Babalorixa Juliano de Oxum6, presi-
dente do Conselho Municipal do Povo de Terreiro de Pelotas.
Cabe destacar que, nos anos 1780, foi graças as tecnicas e
conhecimento das religioes de matrizes africanas que, ha milenios,
matam e preparam a carne e a oferenda a seus deuses, que se
desenvolveu uma produçao industrial nas charqueadas de Pelotas. “A
tecnica de matança nas charqueadas assemelha-se ao ritual de quatro-
pe, que e o maior sacrifício feito aos orixas” (Avila, 2011, p. 30). O
sangue, o axoro dos animais sacrificados, estava sendo ofertado aos
orixas dos trabalhadores ali explorados.

[...] Para muitos trabalhadores escravizados, durante


os rituais religiosos e que compartilha- vam as dores
e o sofrimento do cotidiano do trabalho, era o
momento de reafirmar suas tradiçoes culturais,
momento de tramar revoltas, ou mesmo laços de
parentesco e solidariedade (Al Alam, 2008, p.42).

6 SILVA. Juliano. Depoimento concedido à entrevistadora RUAS, K. Pelotas, 2017.


152
Diaspora

Frente ao ato de vandalismo com a imagem sagrada de


Iemanja, o povo de terreiro pelotense recorreu ao Instituto do
Patrimonio Historico e Artístico Nacional (IPHAN) para tentar o
tombamento material e imaterial da festa. A resposta do IPHAN foi de
que “nao se tomba um bem por ele estar ameaçado, mas sim por ele
possuir valor de referencia cultural para grupos da sociedade brasileira”.
Nesse caso, ocorriam as duas coisas, a relevancia cultural da
festa e/ou da gruta e, tambem, a ameaça. O tombamento foi realizado
com a assinatura da Lei 6.483/2017 e com o descerramento, em 2018,
de uma placa afixada no local, para oficializar a festa da rainha do mar
como bem imaterial e a gruta de Iemanja como bem material do
município.
Para o povo de terreiro que tem historico de intolerancia
religiosa e preconceito racial, esse ato de reconhecimento da sua
diferença foi de suma relevancia, mas nao garantiu a reproduçao plena
das atividades culturais. A Festa de Iemanja vem encolhendo desde
2015, com as proibiçoes de acampamentos no interior da mata.
Conforme o ultimo trabalho de campo na festa de Iemanja, em 2018,
apenas 5 terreiros estiveram presentes dos 80 que participavam das
festas entre 1990 e o início de 2000.
Esse encolhimento esta relacionado as barreiras impostas pela
municipalidade para os acampamentos e tambem pela falta de apoio do
poder publico com a segurança da praia, visto que seu abandono
durante decadas permitiu a ocupaçao das Areas de Preservaçao
Permanente (APP) na orla, hoje controladas pela facçao dos Tauras. E
frequente o registro de assaltos na orla da praia e observou-se, tambem,
o crescimento de outras religioes no Balneario dos Prazeres, como os
evangelicos que possuem mais de 20 templos no local.
No cerne das disputas entre o poder publico local – ator
territorializado exogeno e os afro-religiosos – atores territorializados
transitorios, esta a luta da propriedade contra a apropriaçao, em outras
palavras o domínio pela natureza na cidade.
No imaginario da sociedade hegemonica pelotense, o
Balneario dos Prazeres e associado as praticas nao capitalistas e nao

153
Keli Ruas

formais de lazer na praia, ja os acampamentos afro-religiosos na orla sao


incompatíveis com o ideal de sustentabilidade ambiental da sociedade
dominante e, por isso, tiveram seus espaços de uso fragilizados. A
cultura afro-pelotense criou com o espaço costeiro lagunar fortes laços
identitarios e vínculos territoriais consolidados. A relaçao entre cultura
e espaço e fortalecida pela experiencia de uma cultura que se estabelece
no territorio. O Balneario dos Prazeres e um territorio simbolico afro-
religioso e que, no entanto, passa por um processo de fragilizaçao de
seus vínculos territoriais devido as praticas desrespeitosas com a
diversidade cultural e religiosa presente no cotidiano da fe brasileira,
como podemos observar na fala de Juliano Silva:

[...] porque tudo que fala em negro e terreiro em


Pelotas tem um certo preconceito. [...] O que acon-
tece e que nosso espaço sagrado da praia passa o ano
inteiro sendo usado para lazer, fazem churrascos,
cortam a mata pra usar lenha e deixam tudo sujo.
Quando chega o verao, perto da festa de Iemanja o
povo vai na prefeitura reclamar que e o umbandista e
africanista que esta fazendo mau uso do espaço.
Temos que tentar parcerias para valorizar o nosso
espaço e mostrar para a sociedade que cuidamos da
natureza (Silva, 2018).

As narrativas dos atores transitorios afro-religiosos sobre


natureza contrastam com a visao de sustentabilidade dos atores
exogenos. A estetica da paisagem para os afro-religiosos nao esta no
espaço construído e ordenado, mas no verde, na areia, na relaçao mais
direta com a natureza, com o sagrado que ela representa e com as
pessoas entre si.
Para os afro-religiosos a natureza e movimentada pelo
princípio fundamental presente em todas as coisas do universo. Esse
princípio e a base de toda a natureza, estando em constante dinamica e
transformaçao. Assim, tudo e dinamico, na natureza e na historia. E pelo
fato da natureza ocupar esse lugar de extrema relevancia que as
divindades assumem a forma de forças da natureza.

154
Diaspora

A identidade territorial dos afro-religioso esta na força da


natureza presente no lugar como bem descreveu Kosby:

O culto a Iemanja e, portanto, a celebraçao ritualística


das potencialidades dos rios, lagos, mares, arroios,
lagoas, bem como das gestaçoes das maternidades, da
clareza de pensamento e da doçura da vida. Mas, como
tudo para o pensamento afro-religioso, as aguas estao
superpovoadas de entidades, de forças, de divindades,
de significados: Iemanja e acompanhada de outros
importantes orixas, como Oxum e Oxala, e da presença
de sereias, Iaras, caboclos, pretos velhos, exus e seres
míticos de extrema importancia para a manutençao
do equilíbrio das forças que atuam na vida das
pessoas que encontram nas aguas um territorio
sagrado (Kosby, 2014).

Sao essas as entidades que recebem as oferendas na praia, o


que tambem gera muitos preconceitos, cabe esclarecer que elas sao
fundamentais. De acordo com o Babalorixa Juliano de Oxum, as
oferendas servem para:

[...] agradar um Orixa, e oferecida a ele uma comida


ritual, que nada mais e do que alimentos que depois
de prontos sao oferecidos aos orixas acompanhados
de rezas e cantigas. [...] eles estao ligados as forças da
natureza, aos espíritos elementares e que, quando
superiores, habitam uma mata limpa, uma praia
limpa, uma montanha ou cachoeira. [...] habitam nos
tres reinos da natureza, o mineral, o vegetal e o
animal, eles colaboram com a natureza enquanto
evoluem; [...] por isso toda oferenda deve ter
elementos de agua como cerveja, guarana, chas, sucos
e sumos de ervas, elementos da terra como frutos,
raízes, fumos e ervas assim como elementos do fogo e
do ar como velas, incensos, defumaçoes e charutos.

Para os povos de terreiro, como tambem para os povos


indígenas as relaçoes com a natureza sao algo que precisam ser
difundidas por meio da educaçao, para que possamos ter uma sociedade
155
Keli Ruas

conhecedora da diversidade cultural da qual seu país faz parte.


Evitando, assim, situaçoes de preconceitos e intolerancias religiosas.
Cabe destacar que no contexto de escassez e valorizaçao da
natureza, deve-se as resistencias dos territorios dos povos originarios a
preservaçao ambiental de muitos dos nossos biomas. Observa-se um
discurso equivocado de defesa da natureza, que tende a tomar as
populaçoes tradicionais, indígenas e afrobrasileiras como entraves a
conservaçao da biodiversidade, ainda que pese as evidencias de que a
biodiversidade da Amazonia se deve a presença dos povos da floresta e
de seus modos de vida.

Considerações finais

Como visto, a patrimonializaçao dos bens materiais e


imateriais dos praticantes de religioes de matrizes africanas em Pelotas
nao lhes garantiu a permanencia da sua territorialidade no espaço
sagrado da praia. Os estados e as cidades que enriqueceram com a
escravidao deveriam ter a preocupaçao de olhar para os territorios
negros existentes e zelar pela manutençao das suas praticas culturais
com implementaçao de políticas específicas de reparaçao,
compensaçao, restituiçao e reabiltaçao.
Os terreiros de matriz africana deveriam ser vistos pelas
políticas publicas, respeitados, e ter garantido seu lugar.
As comunidades de povos originarios, de uma forma geral, tem
muito a nos ensinar. A eliminaçao da diferença esta relacionada a
destruiçao da informaçao e “trata-se de postular o respeito as diferenças
na perspectiva da utilidade futura que possam representar para o
conjunto da especie” (Raffestin, 1993, p. 139).
E papel das instituiçoes educacionais estar em dialogo
permanente com a sua realidade local e com a diversidade dos
territorios tradicionais, para que haja uma troca de saberes necessaria
a nossa evoluçao enquanto humanidade e e nesse sentido que falar das
religioes de matrizes africanas nas escolas pode contribuir para a
156
Diaspora

aceitaçao do outro, do diferente de mim, evitando possíveis conflitos e


rompendo com historicos de estigmas.

Referências

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157
Keli Ruas

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158
Biografia de Keli Siqueira Ruas

Licenciada em Geografia pela Universidade Federal de Pelotas


(UFPel), especialista em Geografia do Brasil, pela Universidade Federal
de Pelotas (UFPel), mestra em Geografia pela Universidade Federal de
Santa Catarina (UFSC) e doutora em Geografia pela Universidade
Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professora de Geografia no
Instituto Estadual de Educaçao Assis Brasil, na cidade de Pelotas, e
professora supervisora do Programa Institucional de Bolsa de Iniciaçao
a Docencia. Areas de interesse: espaço social costeiro, povos originarios,
planejamento urbano e conflitos socioambientais. E-mail:
kel.ruas@gmail.com

159
161
8. O adoecimento dos
trabalhadores escravizados:
questões e circunstâncias através da
imprensa baiana oitocentista
(1860-1887)

Larissa Bispo dos Santos

Este trabalho e fruto das pesquisas desenvolvidas no


Laboratorio de Historia Social do Trabalho da Universidade Estadual do
Sudoeste da Bahia (LHIST-UESB), entre os anos de 2019-20211. Tem
como objetivo identificar, analisar e discutir a forma como a imprensa
baiana registrou as doenças que afetaram a força de trabalho de negros
escravizados na segunda metade do seculo XIX.
Optamos por analisar a documentaçao referente ao se- culo
XIX, presente no acervo do LHIST/UESB, que consiste em fichas
catalograficas produzidas pelo Professor Jose Raimundo Fontes,
contendo anotaçoes referentes aos periodicos que circularam no
Reconcavo baiano e na cidade de Salvador nas ultimas decadas do seculo
XIX2.

1 Agradeço imensamente pela orientação da Professora Dra. Avanete Pereira Sousa e por
todo conhecimento, pelos conselhos, pela confiança e pelo apoio. E à Professora Dra. Rita
de Cássia Pereira, por compartilhar tanto conhecimento e o amor pelo LHIST.
2 Em sua origem, as fichas são fruto de minuciosa pesquisa realizada pelo professor José

Raimundo Fontes e que culminou na sua dissertação de mestrado “Manifestações


operárias na Bahia: o movimento grevista - 1888-1930”, defendida junto ao Programa de
Pós-graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal da Bahia. Em estudo pioneiro
sobre a História do Trabalho no Brasil, Fontes (1982) se debruça sobre a trajetória da classe
163
Larissa Bispo dos Santos

As anotaçoes de Fontes podem ser delimitadas em dois


períodos: 1860-1887 e 1888-1930. O segundo marco cronologico foi
privilegiado pelo autor em seus estudos sobre os trabalhadores baianos.
Entretanto, no processo de reconhecimento do material, foi possível
notar que as informaçoes relativas a 1860-1887 sao particularmente
ricas no que se refere a escravidao e foi sobre tal período que nos
debruçamos a partir das informaçoes pesquisadas nos Jornais: A
Formiga (1869-1870); Diario da Bahia (1860-1879); Diario de Notícias
(1879-1882); Gazeta da Bahia (1882-1887); Jornal da Bahia (1860-
1870); O Americano (1868-1880); Oculo Magico (1866-1867); Opiniao
Liberal (1878); O Monitor (1876); O Regenerador (1864).
Vale salientar que, especialmente no período de 1870 a 1887,
afloram disputas políticas e conflitos entre os defensores do
abolicionismo e os que insistem em continuar com o escravismo. Essas
disputas ganham maiores proporçoes na medida em que ocorrem as
conquistas historicas, a exemplo da Lei do Ventre Livre (Lei n° 2040, de
28 de setembro de 1871). A Lei do Ventre Livre, como aponta Walter
Fraga (2004, p. 42), foi uma importante conquista, pois alem de libertar
os ingenuos nascidos apos 28 de setembro de 1871, tambem garantiu -
ao menos no papel - direitos e possibilidades para a libertaçao dos
escravizados3. Em certa medida, essas novas possibilidades
aumentaram a conscientizaçao dos escravizados, que encontraram na
fuga diversas formas para desvencilhar do trabalho arduo, manipular e
angariar conquistas.
E de suma importancia apontar que as fugas ocorriam desde o
princípio do sistema escravista4. Porem, segundo Fraga5, houve

operária na Bahia, em um período que se inicia com o fim da escravidão e a Proclamação


da República e que termina em um dos momentos cruciais para a história social do
trabalho, a revolução de 1930.
3 [...] a lei instituiu o fundo de emancipação que libertava os escravos com recursos

provenientes de impostos sobre a propriedade escrava, loterias, multas para quem


desrespeitasse a lei e dotações de orçamentos públicos (Fraga, 2004, p. 41).
4 José Honório Rodrigues (1968), intitulado “A rebelião negra e a abolição’’, publicado pela

revista Afro-Ásia. O autor recorre aos relatos do padre Manuel da Nóbrega para afirmar a
existência de fugas e revoltas de escravos desde meados do século XVI.
5 FILHO, Walter Fraga. Encruzilhadas da liberdade: histórias e trajetórias de escravos e

libertos na Bahia, 1870-1910. Tese de doutorado. Campinas/SP. 2004. p. 4.


164
Diaspora

aumento significativo dessa pratica a partir da decada de 1870, devido


a crescente percepçao de que as autoridades eram simpatizantes com as
demandas da populaçao escravizada. Os anuncios de jornais da
imprensa baiana oitocentista estao revestidos de olhares e da ideologia
de homens brancos, sejam esses anuncios de compra e venda, de
aluguel, de leiloes ou de fugas. Ate os raros anuncios que tentam dar voz
aos escravizados nao sao imunes a esse olhar. Porem, atraves das poucas
referencias diretas desses indivíduos, podemos obter informaçoes
relevantes sobre o cotidiano, as formas de resistencia, as condiçoes de
trabalho e de saude dos cativos.
O escravizado, tido como principal bem material para
delimitar níveis de pobreza e riqueza, ora era enaltecido por suas
habilidades como mercadoria – em anuncios de leiloes, de compra,
venda e aluguel - enfatizando suas condiçoes de saude “sem molestias”,
“sem vícios”, “boa figura”; ora era feito seu retrato falado - anuncios de
fuga - priorizando seus defeitos, aparencia, marcas corporais, defeitos
físicos e molestias. Nessa ultima perspectiva das materias veiculadas e
que buscamos, nas entrelinhas do dito e do nao dito, refletir sobre
doença e saude dos escravizados.
O reconcavo foi um importante centro na produçao de açucar
e de fumo e um dos berços da plantation nas Americas. No começo do
seculo XIX, a regiao era tida como uma economia agrícola prospera e
variada que se baseava, em grande parte, na mao de obra escravizada e
cuja produçao era destinada a mercados externos e locais. Como aponta
Barickman6, a populaçao servil, a partir de 1850, sofre consideravel
declínio, e entre as possíveis causas esta o fim do trafico de africanos
para o Imperio Portugues, os surtos de febre amarela e a “grande
epidemia” de colera-morbo que assolou o Reconcavo, em 1855, somadas
as secas e ao trafico interprovincial. No entanto, mesmo com o declínio
da populaçao escravizada, a Bahia possuía a terceira maior populaçao
servil do Imperio.

6BARICKMAN, Bert J. “‘até a véspera’: o trabalho escravo e a produção de açúcar nos


engenhos do Recôncavo baiano (1850-1881)”. Afro-Ásia, 21-22 (1998-1999), p. 177-237.
165
Larissa Bispo dos Santos

Segundo Mattoso7, por um longo período, Salvador foi um


importante centro economico para a coroa portuguesa no Atlantico e,
mesmo apos deixar de ser a capital da colonia, manteve a sua
importancia economica por todo o período colonial e imperial.

Localizada a entrada desse mar interior, erguia-se a


cidade de Salvador. Durante toda a sua existencia,
Salvador tem-se ligado intimamente a sua
hinterlandia, dependendo do Reconcavo para obter
alimentos e combustível e servindo de porto de
exportaçao de açucar, fumo e couro. (Schwartz, 1988.
p. 79).

Pires8 indica que na segunda metade do seculo XIX, no contexto


em que nao havia mais trafico de escravos para o Imperio Portugues, a
capital da Bahia, atraves do trafico interprovincial, se tornou um
significativo centro de distribuiçao de escravizados para outras
províncias do Imperio. Esses homens e mulheres que viviam a merce da
vontade de seus senhores passavam por condiçoes diversas de trabalho.
A escravidao foi e ainda e um tema amplamente discutido e
estudado, sob diversos angulos: social, economico, religioso, político e
cultural. Afinal de contas, foram tres seculos e meio de constante
exploraçao de africanos e seus descendentes. Entretanto, algumas
lacunas foram deixadas.
Por muito tempo, acreditou-se que algumas doenças estariam
relacionadas diretamente aos proprios africanos e ao trafico negreiro9.
Porem, a pesquisa documental relacionada as condiçoes de vida dos
escravizados desmonta tais constataçoes. O argumento de que o trafico
de escravizados para o Brasil seria o unico responsavel pela propagaçao
de doenças e refutado, e a historia das doenças dos escravizados no
Brasil e de suas condiçoes de saude deixa de ser objeto apenas do campo

7 MATTOSO, Kátia M. Queirós. Bahia Opulenta: uma capital portuguesa no Novo Mundo
(1549-1763). Revista de História. n: 114, 1983. p. 5-20.
8 PIRES, Maria de Fatima Novaes. Travessias a caminho - Tráfico interprovincial de escravos,

Bahia e São Paulo (1850-1880). África(s), v. 4, n. 8, jul.-dez. 2017, p. 63-78.


9 DAVID, Onildo Reis. O inimigo invisível: a epidemia do cólera na Bahia em 1855-56.

Dissertação de mestrado. Salvador/BA. 1993.


166
Diaspora

da medicina e passa a compor o campo da historia social, no sentido de


ampliar a visao sobre as condiçoes sociais, economicas e políticas dos
trabalhadores negros escravizados.
Como foi apontado, o cativo trabalha em condiçoes muito
severas. No nordeste, Mattoso10 demonstra que fatores como o calor e a
umidade durante todo o ano sao recorrentes, alem das alternancias de
temperatura. Os escravizados nao eram abastecidos com roupas
adequadas para sobreviver nessas condiçoes e a autora atenta que capas
e casacos eram raros e os resfriados mal curados poderiam tornar-se
tuberculose, pneumonias, anginas e bronquites.

O elemento crucial na manufatura do açucar foram os


escravos. Suas condiçoes de vida e trabalho sao
fundamentais para explicar a natureza da sociedade
que se originou da economia açucareira (Schwartz,
1988. p. 122).

Isso sem considerar os castigos físicos e o ambiente em que


dormiam quando era possível. Estudos apontam que as senzalas eram
insalubres e as condiçoes de higiene poderiam contribuir para a
contaminaçao de muitas doenças.
Ainda que os cativos urbanos e domesticos gozassem de certos
privilegios11, as condiçoes de trabalho nao eram as melhores. Eles
poderiam ser utilizados para trabalho domestico e no serviço de ganho
em benefício de seu senhor, desempenhando serviços especializados e,
ainda, trabalhar, caso houvesse possibilidade, em seu proprio benefício.
Os carregadores, por exemplo, circulavam por toda a cidade de
Salvador, carregando os mais diversos pesos. Muitas vezes com
vestimentas que os deixavam expostos ao sol, calor, chuva, frio. E
descalços, contribuindo para a contaminaçao de vermes e picadas de
bichos peçonhentos e insetos.

10MATTOSO, Kátia. Ser Escravo no Brasil. Editora brasiliense. 1990.


11Pudessem circular nas ruas, ainda que trabalhando, poderiam estabelecer redes de
solidariedade entre outros escravizados, trabalhadores livres ou forros (MATTOSO, 1990).
167
Larissa Bispo dos Santos

Independentemente das diferentes regioes em que a mao de


obra escrava foi utilizada, fica evidente que as condiçoes de trabalho
contribuíram para o adoecimento e a alta taxa de mortalidade entre a
populaçao cativa.
O livro “As doenças tem historias”, de Le Goff12, e uma obra
classica, pois o autor traz para o debate a necessidade de ter uma
historia da saude, da doença e seus impactos sociais. A doença, portanto,
deixa de ser apenas um fenomeno biologico e passa a ser, tambem, um
fenomeno social.
Segundo Revel e Peter13, a doença e quase sempre um
elemento de desorganizaçao e de reorganizaçao social; a esse respeito
ela torna frequentemente mais visíveis as articulaçoes essenciais do
grupo, as linhas de força e as tensoes que o traspassam. Portanto, as
epidemias que ocorrem de tempos em tempos podem reorganizar a
sociedade, mesmo que minimamente, mas afetam a economia, as
relaçoes sociais, o contexto político e, sobretudo, evidenciam a
fragilidade em que se encontram as populaçoes menos favorecidas,
dentro do espaço e tempo.
Dois dos maiores trabalhos sobre o cotidiano no período
escravista foram escritos por Karasch14 e Mattoso15. Sao livros
indispensaveis e que, mesmo antes das importantes contribuiçoes de Le
Goff16, trazem valiosas discussoes sobre o estudo das doenças que
atingiam os escravizados e suas condiçoes de saude.
Segundo Soares17, o trabalho desenvolvido por Mary Karasch18,
sua tese de Phd sobre o cotidiano dos escravizados no Rio de Janeiro,

12 LE GOFF, Jacques. As Doenças têm História. Terramar. Lisboa/Portugal. 1985.


13 REVEL, Jacques et PETER, Jean-Pierre. O homem doente e sua história. In: LE GOFF,
Jacques el Nora, Pierre. História: novos objetos. 4. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1995.
p. 141-159.
14 KARASCH, Mary C. A vida dos escravos no Rio de Janeiro (1808-1850). São Paulo:

Companhia das Letras. 2000.


15 MATTOSO, Kátia. Ser Escravo no Brasil. Editora Brasiliense. 1990.
16 LE GOFF, Jacques. As Doenças têm História. Terramar. Lisboa/Portugal. 1985.
17 SOARES, Carlos Eugênio Líbano. A metrópole dos escravos resenha de A Vida dos

Escravos no Rio de Janeiro 1808-1850, de Mary Karasch. Afro-Ásia, 25-26 (2001), 421-425.
18 KARASCH, Mary C. A vida dos escravos no Rio de Janeiro (1808-1850). São Paulo:

Companhia das Letras. 2000.


168
Diaspora

“Um guia da vida dos escravos no Rio de Janeiro na primeira metade do


seculo XIX”, e considerado pioneiro nos estudos sobre o cotidiano dos
escravizados nao so no que se refere ao Rio de Janeiro, principalmente
porque a autora aprofunda o debate em torno do tema das doenças dos
escravizados, assunto ate entao pouco comentado pelos historiadores.
Isso foi possível em consequencia da extensa quantidade de fontes
analisadas pela historiadora, inventarios, registros de entrada e saída
das Santas Casas de Misericordia, registros de obitos etc.

O sexto capítulo fecha o que podemos definir como a


parte inicial de sua longa obra. “Armas dos feiticeiros”
mergulha em um tema ainda inedito para nossa
historiografia: as molestias que atacavam os escravos,
e muitas vezes os levavam para a morte. Com apoio de
uma ampla pesquisa de epidemiologia e de analise
dos sintomas mal descritos pela documentaçao de
epoca, Karasch percebe como enfermidades ja
trataveis no período, como varíola e tuberculose,
cobravam pesado tributo da populaçao africana.
(Soares, 2001. p. 423).

Os trabalhos sobre o trafico de africanos para colonia


portuguesa, abordam o tema sobre as doenças e a saude da populaçao
escravizada sob a perspectiva economica. A exemplo, a obra “Em costas
negras: uma historia do trafico de escravos entre a Africa e o Rio de
Janeiro (seculos XVIII e XIX)” o autor Manolo Florentino19, ao analisar
diversas fontes e inovar ao apresentar a analise dos Diarios de Bordo
dos navio negreiros, identifica as doenças que atingiam os escravizados
como um fator de incentivo ao trafico, pois, segundo o autor, a doença
levaria a morte e, por conseguinte, a necessidade de repor a mao de
obra. Assim, para Florentino, as doenças do período escravocrata eram
como um motor para o trafico de escravos.
Nota-se que ha uma tendencia na historiografia brasileira em
generalizar a forma como os senhores donos de escravos procediam
diante do adoecimento dos escravizados. Generalizam ao apontar que

19FLORENTINO, Manolo. Em costas negras: uma história do tráfico de escravos entre a


África e o Rio de Janeiro (séculos XVIII e XIX). UNESP. 2015.
169
Larissa Bispo dos Santos

os senhores nao se preocupavam em manter os escravizados vivos por


muito tempo, visto que logo poderiam repor a mao de obra e/ou que os
escravizados seriam totalmente dependentes de seus senhores,
incapazes de agir sobre sua propria saude20.
Entretanto, os estudos recentes demonstram que havia uma
certa preocupaçao com relaçao ao escravizado, uma vez que, apos o fim
do trafico negreiro, o cativo se tornou um bem extremamente caro. No
capítulo “Terapeutas populares e instituiçoes medicas na primeira
metade do seculo XIX”, Tania Salgado21 afirma que a preferencia da
populaçao negra escravizada, ou nao, pelos terapeutas populares se da
devido a proximidade de compreensao de qual a causa da doença e os
metodos para curar. O mesmo e apresentado por Regina Xavier22:

Chalhoub considera, por exemplo, que especialmente


os negros acreditavam que as molestias eram
causadas por forças sobrenaturais. As doenças eram
entao entendidas “dentro de um universo cultural
determinado”, no qual “suas causas eram
identificadas com feitiços ou com o poder dos
feiticeiros de manipular as forças nefastas do
universo” (Xavier, 2003. p. 346. apud Chalhoub et al).

Portanto, compreender como os escravizados entendiam as


doenças nos ajuda a entender como se dava sua relaçao com a doença
dentro do cotidiano escravista. A percepçao de doença enquanto
resultado de intervençoes sobrenaturais sera majoritaria entre os
negros. Porem, nao serao raras as vezes em que o negro sera tratado por
medico diplomado e/ou por terapeuta popular, e importante deixar
claro a dialetica existente, a complexidade das relaçoes empreendidas
naquele período.

20 PÔRTO, Ângela. A saúde dos escravos na historiografia brasileira. ‘Usos do Passado’ —


XII Encontro Regional de História ANPUH-RJ 2006.
21 PIMENTA, Tânia Salgado. Terapeutas populares e instituições médicas na primeira

metade do século XIX. In: CHALHOUB, Sidney et al (org). Artes e ofícios de curar no Brasil:
capítulos da história social. Campinas, SP. Editora da Unicamp. 2003.
22 XAVIER, Regina. Dos males e suas curas: práticas médicas na campinas setentista. In:

CHALHOUB, Sidney et al (org). Artes e ofícios de curar no Brasil: capítulos da história social.
Campinas, SP. Editora da Unicamp. 2003.
170
Diaspora

O cruzamento do corpus documental rendeu trabalhos


esclarecedores sobre as condiçoes de vida da populaçao escravizada,
muitos vem sendo desenvolvidos com o intuito de esclarecer questoes
ainda nao respondidas acerca do cotidiano, condiçoes de vida e
climaticas, doenças, saude, alimentaçao, vestimentas, entre outras
coisas que interferem diretamente na qualidade de vida da populaçao
escravizada. Como aponta Pimenta23, em geral, as doenças eram
agravadas por carencias nutricionais, assim como pelo trabalho
extenuante e pelos castigos aos quais eles poderiam estar submetidos.
O interesse em compreender melhor o contexto escravocrata
pode ser notado em estudos como o de Maria Renilda Barreto24, “Nascer
na Bahia no seculo XIX”, e outros trabalhados desenvolvidos,
posteriormente, pela mesma autora25, imbuídos do intuito de entender
como se deu a saude e a medicina nos oitocentos. Outro trabalho que
cabe apresentar e a dissertaçao de mestrado de Priscila Ferreira26,
“Memorias de males e curas: escravidao, doenças e envelhecimento no
Sertao da Bahia no seculo XIX”. Ate o momento, e o primeiro trabalho
unicamente direcionado para analise das doenças dos escravizados no
Sertao da Bahia, especificamente, no Sertao da Ressaca, na Imperial Vila
da Vitoria.
Em estudo sobre as principais doenças da populaçao
escravizada, que tiveram como base os registros de entrada e saída do

23 PIMENTA, Tânia Salgado. Doenças. In: SCHWARCZ, Lilia Moritz et al. Dicionário da
escravidão e liberdade: 50 textos críticos. São Paulo: Companhia das Letras, 2018. p. 195-
200.
24 BARRETO, Maria Renilda Nery. Nascer na Bahia no século XIX.
25 BARRETO, Maria Renilda Nery. A ciência do parto nos manuais portugueses de

obstetrícia. Revista Gênero, Niterói, v.7, n.2, p.217-234. 2007.


BARRETO, Maria Renilda Nery. A medicina luso-brasileira: instituições, médicos e
populações enfermas em Salvador e Lisboa (1808-1851). Tese (Doutorado). Programa de
Pós-graduação em História das Ciências e da Saúde/Casa de Oswaldo Cruz/FIOCRUZ, Rio
de Janeiro. 2005.
BARRETO, Maria Renilda Nery et al. Pobreza, Gênero e Cor em Salvador do século XIX
(1823-1851). In: BATISTA, Ricardo dos Santos et al. Quando a História encontra a Saúde.
São Paulo: Hucitec, 2020. p. 63-81.
26 FERREIRA, Priscila d’Almeida Ferreira. Memórias de Males e Curas: escravidão, doença e

envelhecimento no Sertão da Bahia no século XIX. Tese de doutorado. Universidade


Estadual do Sudoeste da Bahia, Programa de Pós-graduação em Memória: Linguagem e
Sociedade, Vitória da Conquista, 2017.
171
Larissa Bispo dos Santos

Hospital da Santa Casa de Misericordia da Bahia, na primeira metade do


seculo XIX, Barreto e Pimenta27 elencam as doenças mais frequentes: a
tísica (tuberculose); a bexiga (varíola); a sífilis; a alienaçao (loucura);
lumbago (dores lombares); artrite e reumatismo; doenças relacionados
a maus tratos e violencia, como contusoes, pancadas, fraturas, cortes,
feridas e gangrenas; colicas, diarreias, colite e enterite, bronquite e
pneumonia, cistite e ulceras venereas, febres reumaticas e as
relacionadas a gravidez e ao parto.
Recentemente, as pesquisas tem demonstrado interesse em
analisar a saude e as doenças de determinados grupos sociais. A
exemplo do artigo “Decrepitos, anemicos, tuberculosos: africanos na
Santa Casa de Misericordia da Bahia (1867-1872)”, de Gabriela
Sampaio28, que discute, a partir dos registros de entrada de pacientes no
hospital da Santa Casa de Misericordia da Bahia, as doenças de africanos
que viviam em Salvador, na decada de 1870. Trabalhos como o de
Sampaio, demonstram como a historiografia esta trazendo para o
debate as condiçoes de saude dos escravizados.
Cabe ressaltar o estudo de Barbara Barbosa dos Santos29,
“Molestias do corpo escravo: doenças e morbidade entre cativos em
Sergipe (1865-1888)”, nele a autora utiliza vasta documentaçao para se
aproximar da realidade em que estavam inseridos os escravizados e
responder os problemas sobre os padroes nosologicos, as causas das
doenças, condiçoes de trabalho, cuidados oferecidos aos escravizados e
etc. Outra autora que vale apontar e Serioja Mariano30. Nos ultimos anos,
Mariano tem desenvolvido e orientado trabalhos com foco na tematica
de historia da saude e doenças dos escravizados. Isso demonstra que a

27 BARRETO, Maria Renilda Nery et al. Saúde dos escravos na Bahia oitocentista através do
Hospital da Misericórdia. Revista Territórios (Fronteiras, Cuiabá, vol. 6, n. 2, jul.-dez., 2013.
p. 75-90.
28 SAMPAIO, Gabriela dos Reis. Decrépitos, anêmicos, tuberculosos: africanos na Santa

Casa de Misericórdia da Bahia (1867-1872). Almanack [online]. 2019, n. 22 [Acessado 1


Outubro 2021] , p. 207-249.
29 BARBOSA, Bárbara. Moléstias do corpo escravo: doenças e morbidade entre cativos em

Sergipe (1865-1888). Dissertação de Mestrado. São Cristóvão/Sergipe, 2020.


30 MARIANO, Serioja R. C. Em favor da hygiene pública na polícia sanitária e do bem geral:

as medidas de combate à varíola na Parahyba no século XIX. Anpuh-Brasil. 30° Simpósio


Nacional de História - Recife, 2019.
172
Diaspora

historiografia em todas as partes do Brasil avança no sentido de


articular a historia da saude e doenças dos escravizados ao campo da
historia social, política, economica e cultural.
No que se refere a Bahia, nas ultimas tres decadas, muitos
trabalhos foram e estao sendo desenvolvidos com o intuito de obter
respostas sobre as condiçoes de saude dos escravizados. O que pode
evidenciar ate aqui e que, apesar de ser uma tematica relativamente
nova para os pesquisadores baianos, estes tem feito grandes esforços
para preencher as lacunas sobre as doenças e sobre a saude dos cativos.
Adentrando a pesquisa em jornais publicados na Bahia na
segunda metade do seculo XIX, de 512 fichas analisadas, 132 registros
correspondem as fugas, individuais e coletivas, de homens e mulheres.
Destes 132 registros de fuga, 66 fichas, mais da metade, nos fornecem
informaçoes sobre as condiçoes de saude do trabalhador negro
escravizado. Nos anuncios de fuga analisados, foi possível notar a
diversidade de trabalhos desempenhados pelos escravizados, podendo
ter duas ou mais funçoes.
Os anuncios de fuga, como foi apontado, contem as
características físicas dos indivíduos, no intuito de facilitar a
identificaçao do escravizado. As marcas corporais provenientes de
castigos físicos, sintomas e sequelas de doenças sao comumente citadas.
O anuncio de recompensa, publicado no Diario da Bahia de outubro de
1862, traz informaçoes preciosas:

O abaixo assignado declara que desapareceu hontem


(19) d’esta cidade seu escravo Vicente, crioulo,
estatura regular, do serviço da lavoura, cerrado de
barba, porem curta, doente actualmente de syphiles
com as maos abertas em feridas, ou calos de enxada:
quem o apreender ou der d’elle notícia certa em
Valença em sua residencia ou nesta cidade na casa do
major Nicolau Carreiro Filho, sera generosamente
gratificado: suppoe-se ter fugido para (?) Valença,
Nazareth. Bahia. 20 de outubro de 1862. O major, Joao
Antonio da Fonseca. (Diario da Bahia, 21 de outubro
de 1862).

173
Larissa Bispo dos Santos

As características provenientes do olhar de seu senhor podem


nos oferecer informaçoes sobre a profissao do escravizado, condiçoes
de vida, de trabalho e como elas afetam a saude e as condiçoes sociais
do cativo. Em: Vicente, crioulo, do serviço da lavoura, jovem, as “maos
abertas em feridas, ou calos de enxada”, podemos interpretar esses
calos, possivelmente, como calos de sangue. Esse tipo costuma aparecer
quando o indivíduo tem o primeiro contato com o trabalho braçal.
Devido a insistencia ao trabalho exaustivo, o calo estoura, podendo
lesionar e abrir feridas que, no caso de Vicente, tem impacto
determinante sobre a doença sífilis, sendo ela propria ja causadora de
lesoes. Certamente isso nao foi apenas com ele.
E fundamental evidenciar os aspectos ambientais, as condiçoes
sanitarias, os regimes de trabalho, as dietas alimentares, o vestuario etc.,
para explicar as dinamicas de morbidade numa sociedade escravocrata
Barbosa31. Por exemplo, a seguinte notícia foi publicada no Diario da
Bahia, em 1861:

Fugiu desde o dia 3 de julho o escravo de nome


Manuel Jeronimo, pardo, escravo, aprendiz de
pedreiro, tem as faces grossas, doente do fígado, a
parte inferior dos olhos encocados e mais negros
como de um azul muito escuro, e conhecido por
Jeronimo, muito mentiroso e cheio de labias fugiu
vestido com calça branca, velha e uma jaqueta
tambem velha de pano preta, levando mais uma calça
azul, quem o pegar e o levar a Antonio Jose de Souza
(?), sera muito bem recompensado (Diario da Bahia
22 de julho de 1861).

Conforme a notícia, Manuel Jeronimo, aprendiz de pedreiro,


“tem as faces grossas, doente do fígado”. A sensaçao de coceira e um
sintoma recorrente em problemas no fígado, nesse sentido, “as faces
grossas” podem ser reflexo do problema em questao. Como tambem
poderia ser devido a exposiçao ao sol ou ao contato com substancias de

31BARBOSA, Keith. Doenças e escravidão: novas dimensões da experiência negra no Brasil


na primeira metade dos oitocentos. 4º encontro escravidão e liberdade no Brasil
Meridional. Anais... Curitiba. Maio de 2009.
174
Diaspora

teor toxico, visto que era aprendiz de pedreiro. Assim como o problema
de fígado poderia ser decorrente de castigos físicos.
Ainda sobre o regime de trabalho, os castigos e as condiçoes de
vida, a notícia publicada no Diario da Bahia, em maio de 1860, assinala
que o escravizado Firmino fugiu da província do Rio de Janeiro para a
Bahia. Pela descriçao, Firmino, classificado como “perfeito criado
copeiro, entende de cozinha, lava, engoma, coze e anda bem a cavalo”, e,
ao que parece, um trabalhador domestico. Para identifica-lo, sao
ressaltados “signais de (?) e de castigos sobre o peito esquerdo por
sofrer do coraçao”. Estes sinais de castigo indicam o quao severas
poderiam ser as condiçoes de trabalho impostas ao escravizado e como
podem interferir diretamente na saude dos indivíduos:

400$000 de gratificaçao
A quem der notícia certa no Rio de Janeiro, rua larga
de S. Joaquim n° 100, a Joao Pereira de Andrade, do
escravo crioulo, de nome Firmino, que anda fugido a
8 meses, o qual desconfia-se que veio para essa
província. Tem os signais seguintes: cor fula, beiços
grossos, altura regular, reforçado, tem barba e muitos
signais de (?) e de castigos sobre o peito esquerdo por
soffrer do coraçao, e perfeito criado copeiro, entende
de cozinha, lava, engoma, coze e anda bem a cavallo,
este escravo pertence a sua filha D. Joanna de Andrade
Guimaraes (Diario da Bahia 19 de maio de 1860).

Outros fatores tambem implicam na condiçao de saude dos


trabalhadores. Nesse sentido, entender a vestimenta e a alimentaçao
dos escravizados e fundamental para os estudos que se dedicam a
destacar as doenças que afetavam a vida dos cativos. Os fatores
socioeconomicos influenciam significativamente na saude desses
indivíduos. Em períodos de seca, a alimentaçao tende a ser ainda mais
escassa, assim como nos períodos de intensas mudanças climaticas,
visto que os cativos estavam expostos a chuva e ao sol sem qualquer tipo
de vestimenta adequada. Como se pode vislumbrar em notícia publicada
no Diario da Bahia, em agosto de 1860:

175
Larissa Bispo dos Santos

Fugiu no dia 5 de agosto o cabra Pedro, escravo de D.


Maria Miguelina da Rocha Pitta, muito conhecido
nesta estrada de S. Antonio do Rio das pedras, para a
cidade, vendia carvao em cavallos e tambem em
carregos na cabeça, figura ter 15 annos e tem os
signaes seguintes: magro, pernas finas, barriga
grande e desdentado, os pes com bichos, cabeça
grande; levou vestido siroula de algodao comprida e
camisa do mesmo, porem ele pode ter mudado: quem
o pegar e levar a fazenda S. Antonio do Rio das Pedras
ou no engenho cururipe recebera a gratificaçao de
25$ (?) basta dar notícia certa aonde esteja. (Diario da
Bahia 21 de agosto de 1860).

Para o cabra Pedro, bastante jovem, alguns dos sinais para


identifica-lo sao “barriga grande e desdentado, os pes com bichos”.
Conforme Pimenta32, um dos males que mais atingiam os escravizados
seriam os problemas causados por vermes e parasitas intestinais. A
“barriga grande” de Pedro seria um sintoma para algum desses
problemas, causados pela precaria alimentaçao oferecida ao
trabalhador escravizado.
Com relaçao aos “pes com bichos”, notamos que sao raros os
anuncios que indicam o que o escravizado usava calçados nos pes. Logo,
pode-se constatar que e raro o uso de sapatos e que os cativos, em sua
maioria, andavam descalços. Estar descalço, em um ambiente insalubre,
suscetível a todos os tipos de situaçoes, bacterias, bichos, sujeiras etc.,
induz o sujeito ao contato direto com possíveis doenças. As condiçoes
de higiene e a mentalidade do período fazem com que um bicho no pe
possa evoluir para uma ferida que, nao tratada, e infeccionada, podendo
ocorrer a amputaçao dos dedos. Muitos sao os anuncios que indicam a
falta de um ou mais dedos, que pode tambem ter como causa acidentes
de trabalho.
Outros “signaes”, ditos para desenhar os escravizados, quando
feitas as devidas incursoes, podem indicar sintomas de outras
comorbidades. Como, por exemplo, os termos “pernas e corpo grossos”,

32 PIMENTA, Tânia Salgado. Doenças. In: SCHWARCZ, Lilia Moritz et al. Dicionário da
escravidão e liberdade: 50 textos críticos. São Paulo: Companhia das Letras, 2018. p. 195-
200.
176
Diaspora

“pernas inchadas” podem ser sinais de elefantíase, trombose etc. Os


corpos “magro” e “rosto descarnado” podem ser identificados como
reflexo da desnutriçao, anemia, vermes, disenteria, entre outros. A
escravizada Constança, alem de ser caracterizada como magra, ainda e
identificada como portadora de uma formaçao anormal (kisto) que
normalmente nao e cancerígena, cheia de líquido ou de uma substancia
semi-solida, as vezes causando dor. Veja o exemplo do relato da fuga de
Constança no Jornal da Bahia, em 1869:

Desappareceo desde o dia 5 do corrente da casa a rua


de S. Joao, de D. Anna de Souza Paraízo, a escrava
Constança, angola, maior de 50 annos, altura regular,
magra, de cor bem preta, dentes perfeitos e bem alvos,
e muito converssadeira, tendo no cotovello de um dos
braços um caroço (kisto) quasi do tamanho de um
limao vendia doce de banana, cocafas etc em caixa de
vidro, e foi vestida com camisa d’ algodao, saia de
chita e panno da costa velhos. Quem conduzir a
supradita casa sera recompensado (Jornal da Bahia
17 de novembro de 1869).

10$000 de gratificaçao
Fugiu no dia 27 de fevereiro uma cabra de nome
Silvina, vendedeira de pao de lo, altura regular, cheia
de corpo, cara bochechuda, olhos pequenos, com uma
mancha no braço esquerdo, dedos dos pes muito
separados um do outro. Leva vestida saia de chita
branca, lenço cor de rosa ja desmaiado e pano da costa
usado.

Protesta-se contra quem a tenha acoitado, que sera


compelido ao pagamento de (?) $ diarios desde a
ocasiao da fuga (Diario da Bahia, 10 de maio de 1867).

As manchas no braço esquerdo de Silvina poderiam ser sarnas,


sinais de catapora, sarampo, varíola, queimaduras ou sinais de castigos.
Diversos anuncios trazem em seu bojo descriçoes minuciosas, como as
que se referiam a Silvina: “manchas no lado esquerdo do rosto”, “cicatriz
no queixo”, “cicatriz na coxa”, “lanhos na testa”, “bicho nos pes”, “sinais

177
Larissa Bispo dos Santos

de castigo”, “com bastante lanhos”, que podem indicar como os castigos


e as condiçoes de trabalho eram refletidos em seus corpos.
Notamos que os indivíduos que executavam trabalhos braçais,
pedreiros, ferreiros, sapateiros e alfaiates, eram acometidos por sinais
ou molestias, em grande parte, oriundas das atividades que
desenvolviam. Entre as marcas e doenças identificadas, as cicatrizes,
feridas, falta de dedos, manchas, tumores, desnutriçao, entre outras,
aparecem de modo recorrente nos anuncios de fuga. No que diz respeito
as mulheres, as vendeiras foram em sua maioria atingidas por doenças
ou sinais33 decorrentes do trabalho arduo ou de castigos físicos. Foram
poucas as referencias explícitas aos maus-tratos contra pessoas
escravizadas. Uma delas pode ser constatada em notícia publicada no
Diario da Bahia, em novembro de 1865:

Ontem pela manha apresentou-se ao Sr. Dr. chefe de


polícia uma cabra de 24 anos de idade, de nome maria,
escrava de um comerciante portugues. Fazia lastima
ver essa infeliz, no estado de maus tratos de que se
queixava, parecia mais um esqueleto do que uma
criatura viva. Trazia uma corrente de ferro presa nos
dois pes, e fechada por um cadeado de segredo de
letras, as costas e a cabeça cobertas de feridas ja
cicatrizadas e outras abertas e em supuraçao, as
costas e braços tinham sinais salientes de chicotadas
e queimaduras de ferro e com a falta de dois dentes.
Declarou a vítima que eles lhe haviam sido
arrancados, ou quebrados com uma chave de porta. O
senhor chefe de polícia depois de para, ulterior
procedimento, mandar fazer corpo de delito na infeliz
escrava, remetendo-a para o hospital de caridade com
recomendaçao de ser ate tratada com toda
humanidade (Diario da Bahia, 24 de novembro de
1865).

Quantas Marias existiram? Quantas mulheres, homens e


crianças foram massacrados por esse sistema? Quantas Marias

33Sinais como, corte no rosto, que poderiam ser por brigas e ou castigos físicos; olhos
amarelos, que poderiam denunciar doença hepática; marcas roxas pelo corpo que
poderiam ser em decorrência de pancadas ou problemas no coração; manchas no rosto ou
espalhadas pelo corpo, como resultado da longa exposição ao sol e ou doenças de pele.
178
Diaspora

sobreviveram? Diante das condiçoes físicas e psicologicas, pode-se


inferir que a sua vida estava por um fio, assim como as de inumeros
escravizados que estavam sujeitos, dia apos dia, a todas as condiçoes
desumanas imaginaveis e inimaginaveis e que levam ao adoecimento.
Como foi dito anteriormente, as condiçoes e o ritmo do
trabalho do cativo podem favorecer o adoecimento do indivíduo. O
anuncio abaixo, publicado em janeiro de 1860, pelo jornal Diario da
Bahia, descreve o crioulo, de nome Cypriano: “um tanto magro”, “pouco
mais de 20 anos”, “a mao direita grossa e feia por causa de viver a tirar
caranguejos”. Suas maos grossas, em decorrencia do trabalho que
desenvolvia, nos levam a sugerir o quao exaustivo seria tirar
caranguejos e, acima de tudo, as condiçoes em que trabalhava. Cypriano,
no decorrer dos anos, continuando a viver de tirar caranguejos, poderia
perder a mao?
Muitos anuncios de fuga evidenciam indivíduos com dois ou
mais dedos amputados, esse poderia ser o destino das maos de quem
vivia de tirar caranguejos.

Atençao:
Fugiu o escravo crioulo cypriano, um tanto magro,
tristonho, tem pouco mais de 20 anos, com umbigo
grande e mao direita grossa e feia por causa de viver
a tirar caranguejos na pioca(?), perto de (?), e no
iguape; o qual foi escravo do Dr. A. G. Gil Pimentel:
quem o levar a Bahia, a rua dos ourives n° 12, 3° andar,
ou em S. Amaro ao Sr. Manoel Antonio Guimaraes,
recebera 50$ ou mais (Diario da Bahia, 03 de janeiro
de 1860).

As manchas espalhadas nos corpos escravizados poderiam


denunciar muitas enfermidades, em alguns anuncios, algumas delas,
como vimos, apresentam as possíveis causas “por sofrer do coraçao”,
“por castigo físico”. Porem, noutros anuncios as causas nao sao
evidenciadas. Precisaria ter maior aprofundamento nos estudos sobre
as doenças e isso seria possível atraves da analise dos tratados e
relatorios medicos. Qual a origem das manchas descritas no corpo de
Saulo, aprendiz de carpina (carpintaria), de apenas 15 anos?

179
Larissa Bispo dos Santos

Desapareceu do abaixo assinado no dia 14 de junho


do corrente ano o escravo cabra Saulo, com idade de
15 anos, feiçoes regulares, com pequena cicatriz sobre
o nariz e pelo corpo diversas manchas, sabe ler e
escrever e aprendiz de carpina, foi vestido de jaqueta
do pano azul, camisa de madastro, Calça de riscado de
quadrinho, chapeu de feltro cor cinza bastante usado
e calçado de botinas e levando mais uma camisa de
chita e uma calça de brim branco lavado. Quem o levar
ao senhor dele der notícias certa a rua do ourives n°
15 A sera generosamente gratificado. Inacio Alves
Nazareth (Jornal da Bahia, 02 de julho de 1861).

Assim como e assinalado pela historiografia34, muitas doenças


que acometiam os escravizados eram causadas por parasitas intestinais.
Vejamos a pequena referencia, conforme discorrido no anuncio de fuga,
pelo Jornal da Bahia, em janeiro de 1870:

Desapareceu no dia 01 do corrente da casa de Antonio


Gomes dos Santos, o escravo Angelo, mulato de cerca
de 12 anos, gagueja um pouco, tem o corpo reforçado
e o rosto redondo denunciado opilaçao, levou calça
azul, camisa de riscado esta ja rota. Consta ter sido
visto no Rio Vermelho. Gratifica-se a quem o entregar
na loja do mesmo a rua Sta. Barbara (Jornal da Bahia,
15 de janeiro de 1870).

O cativo Angelo, de apenas 12 anos, apresentava sinais de


opilaçao, ou seja, doença causada por parasitas intestinais Ancylostoma
duodenale. Sabemos que outras doenças podem ser desenvolvidas em
decorrencia da contaminaçao dos parasitas intestinais, como a tao
severa anemia. O anuncio veiculado no jornal Opiniao Liberal, no dia 6
de janeiro de 1878, denuncia a fuga do africano de nome Barnabe,
trabalhador de um engenho.
Nao fica clara qual seria a funçao exercida por Barnabe, mas as
descriçoes físicas podem nos sugerir as condiçoes de trabalho. Barnabe
possuía “penas finas, um tanto cambeta”, essa dificuldade para caminhar

34KARASCH, Mary C. A vida dos escravos no Rio de Janeiro (1808-1850). São Paulo:
Companhia das Letras. 2000.
180
Diaspora

poderia ser por deficiencia física ou lesao momentanea ou permanente


causada pelo exaustivo trabalho no campo ou no fabrico do açucar.

Nao sao raros os anuncios que apontam o cativo como


“cambeta”, todos eles vinculados aos serviços no campo. Podemos
vislumbrar que alem do trabalho no engenho, Barnabe tambem “mete-se
a curandeiro e advinhador”, essa informaçao corrobora com a historiografia
que defende a grande presença de negros africanos, exercendo o ofício de
curandeiro, barbeiro e terapeuta popular. A exemplo de Juca Rosa 35 que,
segundo Sampaio, foi um dos mais celebres feiticeiros que o Rio de Janeiro ja
conheceu.

Nazare
100$000 reis de gratificaçao - fugiu no dia 20 de
novembro de 1875 do engenho (?), do abaixo assi-
nado, na freguesia do Bom Jardim, o escravo africano
de nome Barnabe, de idade de 50 anos mais ou menos,
de estatura alta, cor um tanto fula, olhos fumacentos,
tem falta de um dente no queixo de cima, um tanto
beiçudo, tem alguns cabelos brancos, pouca barba,
pernas finas, um tanto cambeta e mete-se a curandei-
ro e adivinhador. O anunciante, seu senhor, gratifica
com cem mil reis a quem o pegar e trouxer neste
engenho ou prende-lo em qualquer cadeia publica. O
anunciante protesta perseguir com a força da lei a
quem tiver acoitado. Sto. Amaro - engenho (?). 01 de
setembro de 1877. Joao Lopes de Carvalho (Opiniao
Liberal, 6 de janeiro de 1878).

Outro exemplo que demonstra as condiçoes de trabalho dos


cativos e o anuncio publicado no dia 28 de fevereiro de 1865, no
periodico Diario da Bahia:

Fugiu do abaixo assinado morador na vila de (?), um


escravo de nome Manuel, filho do termo de jaguaripe,
fazenda da Cobra, tem 24 annos de idade, cor cabra,
rosto descarnado, pouca barba, pes mal fei- tos, altura
regular, com uma cicatriz de ferida recentemente

35SAMPAIO, Gabriela dos Reis. Tenebrosos Mistérios* Juca Rosa e as relações entre crença
e cura no Rio de Janeiro Imperial. In: CHALHOUB, Sidney et al (org). Artes e ofícios de
curar no Brasil: capítulos da história social. Campinas, SP. Editora da Unicamp. 2003. p.
388-426.
181
Larissa Bispo dos Santos

fechada em uma das pernas, trabalha soffrivelmente


de carpina, e suspeita que foi para o poder de Sr.
Antonio Izidoro de quem ja foi escravo. Quem o pegar
e trouxer ao seu senhor em (?) ou aos Srs. Santos
Moreira e C. na Bahia, sera vem recompensado. (?) 26
de fevereiro de 1865 - Jose Antonio da Costa Braga
(Diario da Bahia, 28 de fevereiro de 1865).

Atentamos para a seguinte frase “trabalha soffrivel mente de


carpina”. O ferimento em sua perna teria sido resultado de algum
acidente de trabalho? Prejudicando a locomoçao de Manuel, qual seria
o estado da ferida na perna? Teria fugido em busca de ajuda com o
tratamento do ferimento? As condiçoes de higiene nesse período nao
eram das melhores, logo, essa ferida poderia evoluir para algo pior.
Ha anuncios de fuga que nos sugerem doenças de coluna.
Vejamos o anuncio no periodico Diario da Bahia:

No dia 2 de julho fugiu de bordo do patacho nacional


Deolinda o escravo marinheiro de nome Manuel,
crioulo, de cor fula; costuma andar curvado: quem o
pegar, ou der notícias certas a Jose Caetano Ferreira
Espinheira sera gratificado. (Diario da Bahia, 11 de
agosto de 1865).

Diante das condiçoes físicas e psicologicas, pode-se inferir que


a vida dos cativos estava sempre por um fio, assim como as de inumeros
escravizados que estavam sujeitos, dia apos dia, a todas as condiçoes
desumanas imaginaveis e inimaginaveis e que levam ao adoecimento.
Entretanto, os maus-tratos, as feridas abertas, a debilidade física e
psicologica nao impediram os escravizados de serem agentes sociais e,
mesmo dentro de suas limitaçoes, buscar melhores condiçoes de
sobrevivencia.
Por fim, e certo que a historiografia se dedicou a buscar
respostas para esse período da Historia do Brasil e sabemos ainda que
ha bastante caminho a ser percorrido. Porem, com vagar, estao sendo
desenvolvidos estudos exclusivamente sobre as doenças e a saude que
afetaram os cativos. E, ainda, poucos trabalhos foram desenvolvidos no
sentido de articular a complexidade do tema ao meio social, economico,
cultural e político.
182
Diaspora

Os trabalhos referenciados demonstram as inumeras


possibilidades e interpretaçoes que podem surgir a partir da analise do
corpus documental. E essa pesquisa segue em desenvolvimento, agora
no Mestrado, com financiamento da Fundaçao de Amparo a Pesquisa do
Estado da Bahia (FAPESB), orientada pelo Professor Dr. Marcelo
Henrique Dias, pois a diversidade de fontes apontada nos trabalhos
acima demonstrou a possibilidade de nos fornecer respostas para as
lacunas encontradas no decorrer dessa pesquisa e, sobretudo,
evidenciou novas questoes.

Fontes

A Formiga (1869-1870) Diario da Bahia (1860-1879)

Diario de Notícias (1879-1882)

Gazeta da Bahia (1882-1887)

Jornal da Bahia (1860-1870)

O Americano (1868-1880)

Oculo Magico (1866-1867)

Opiniao Liberal (1878)

O Monitor (1876)

O Regenerador (1864)

Diario da Bahia (1860, 1865, 1874, 1875)

Jornal da Bahia (1861, 1869)

O Americano (1870)

O Oculo Magico (1866)

183
Larissa Bispo dos Santos

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Larissa Bispo dos Santos

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186
Biografia de Larissa Bispo dos Santos

Graduada em Historia pela Universidade Estadual do Sudoeste


da Bahia (UESB), mestranda pela Universidade Estadual de Santa Cruz
(UESC) e bolsista da Fundaçao de Amparo a Pesquisa do Estado da Bahia
(FAPESB). Interesses: Historia do Brasil, Historia da Escravidao, Historia
da Saude e das doenças. Contato: lbsantos2@uesc.br.

187
189
9. Africanos ocidentais e seus
laços familiares: liberdade,
etnicidade e mobilidade social na
cidade de Pelotas/RS (1850/1888)

Natália Garcia Pinto

Introdução

O ano era 1862, quando o preto mina, Fabrício Teixeira de


Magalhaes, ja doente e temendo a proximidade da morte, decidiu fazer
seu testamento. Ao ditar suas ultimas vontades no documento,
mencionou que era natural da Africa, de naçao mina, alem de vestígios
de sua vida religiosa e familiar reconstruída em Pelotas1. Todavia nao se
recordava dos parentes que teriam ficado do outro lado do Atlantico,
visto que ditou que era filho de pais incognitos.
Como tantos outros africanos escravizados desembarcados
pelo trafico atlantico no país, o liberto Fabrício deixou para tras uma

1 Segundo Sheila Faria, “Homens e mulheres nascidos na África, como era de se esperar,
não tinham, geralmente, ascendentes ou colaterais residentes no Brasil. Entre os
testamentos de forros, uma esmagadora maioria não tinha filhos. Mesmo sendo casados,
mas na ausência de filhos, era necessário fazer testamento para que o outro se
transformasse em herdeiro. Provavelmente foi a ausência de herdeiros necessários que
fez com que muitos forros se preocupassem em redigir um testamento para que os bens
amealhados não fossem parar nas mãos de qualquer um, principalmente do Estado. A
forma detalhada com que dispuseram de suas propriedades demonstra que havia uma
clara intenção de beneficiar certas pessoas, especificamente”. FARIA, Sheila. Sinhás Pretas,
Damas mercadoras: as pretas minas na cidade do Rio de Janeiro e de São João Del Rey
(1700-1850). Tese (Titular) – Departamento de História da UFF, Niterói, 2004. p. 182.
191
Natalia Garcia Pinto

vida, laços e afetos na Africa. E deste lado de ca, refez laços familiares
com outros parceiros de naçao que tambem vivenciaram experiencias
de cativeiro e liberdade2. Neste capítulo, procuro evidenciar as
experiencias de africanos libertos, especialmente, os afro-ocidentais,
pontuando como conseguiram livrar-se do cativeiro e como eram suas
escolhas no mercado matrimonial legitimado no “papel de branco”.
Embora fossem distintos os caminhos percorridos para a
conquista da liberdade, os libertos que dao vida a essa trama adquiriam
sua carta de liberdade trabalhando por um determinado tempo a seus
senhores, ou a um familiar; outros obtiveram a manumissao em maos
depois de anos amealhando recursos e finalmente pagando por sua
liberdade. Alguns (muitos, alias) conseguiram atravessar a porta
estreita da liberdade com a ajuda de parentes que auxiliavam com
modicas quantias em dinheiro, aliado ao apoio ofertado para enfrentar
as durezas e as mazelas da vida em cativeiro. Outros tantos ganhavam a
liberdade sem onus ou condiçao, depois de passarem quase uma vida
inteira trabalhando para outrem, portanto, de gratuito nada tinha o
gosto dessa alforria conquistada. E nos ultimos anos derradeiros da
instituiçao escravista, os libertos intensificaram as disputas na arena
jurídica do direito de serem senhores de si.
A passagem da escravidao para a liberdade foi um processo
lento e arduo na vida desses sujeitos. A manumissao nem sempre era
garantia absoluta de uma vida com melhores condiçoes3. Muitas vezes
os libertos viviam em condiçoes de miseria e precariedade4, somado a
isso tinham sempre seus passos vigiados pelas elites, sempre temerosas
de uma possível revolta de seus subalternos ou da busca por uma
autonomia tal que desorganizasse os esquemas de controle social
arquitetados. Partindo, sobretudo, de registros cartorarios de alforrias,
investigo como esses sujeitos conseguiam passar do cativeiro imposto

2 Testamento de Fabrício Teixeira de Magalhães. Ano de 1862, Número 1696, Maço 86.
Cartório de Órfãos e Provedoria de Pelotas. APERS.
3 LIMA, Henrique Espada Rodrigues. “Sob o domínio da precariedade: escravidão e o

significado da liberdade de trabalho no século XIX”. In: Revista Topoi, v. 6, n.11, jul-dez,
2005, p. 289-326.
4 CHALHOUB, Sidney. A força da escravidão: ilegalidade e costume no Brasil oitocentista.

São Paulo: Companhia das Letras, 2012.


192
Diaspora

por outrem para a vida em liberdade. Os passos seguintes sao em


direçao a investigar como esses homens e mulheres buscavam
sobreviver no mundo dos livres.
Abordo a vida material atraves do levantamento de dados
encontrados em testamentos, inventarios e registros de imoveis dos
tabelionatos. Para tal, utilizei das informaçoes coligidas em inventarios,
testamentos, registros cartorarios de imoveis e alguns processos crimes.
Interessa tambem pontuar a respeito da vida íntima e familiar dos
sujeitos investigados, por isso, o estudo dos registros eclesiasticos
foram de grande auxílio para conectar a rede na qual estavam inseridos.
Assim sendo, planejo evidenciar quais os arranjos familiares eram
tecidos por esses sujeitos em sua vida de liberdade.

Marcas do Cativeiro, Marcas da liberdade

A analise e composta por um total de vinte e seis africanos


libertos, perseguidos nos diferentes documentos historicos
averiguados. Partindo, sobretudo, de registros cartorarios de alforrias,
investigo como esses sujeitos conseguiam passar do cativeiro imposto
por outrem para a vida em liberdade.
Sobre a regiao da qual provinham os africanos libertos
investigados, a grande maioria era oriunda da Costa da Mina, “um
territorio de constantes guerras e disputas expansionistas internas, que
marcaram as experiencias dos africanos embarcados nos portos dessa
regiao”5. Diante disso, para compreender como essa identidade foi
reinventada pelos africanos libertos que investigo, valorizaremos as
reelaboraçoes que eles proprios criaram, a partir das novas condiçoes
de vida tanto no tempo do cativeiro quanto no tempo da liberdade. Ou
seja, como reelaboraram padroes de casamento, de moradia, de que
forma se organizavam para a conquista da alforria, com quem
estreitaram laços de parentesco e de amizade e a que tipos de negocios
ou trabalho se dedicavam. Tudo isso analisado sob a otica da identidade

5 COSTA, Valéria Gomes. Trajetórias Negras: os libertos da Costa D`África no Recife


(1846-1890). Tese de Doutorado. Salvador: PPG de História UFBA, 2013, p. 67.
193
Natalia Garcia Pinto

mina desse grupo, atentando para como esses indivíduos acionavam


suas redes de amizade e sociabilidade, como se davam os arranjos
familiares, como era sua participaçao nos negocios da liberdade, quais
estrategias agenciavam para ter uma mobilidade social e frear as
barreiras impostas pelo estigma de serem egressos do cativeiro dentro
dessa sociedade escravista.

Casamento e Liberdade

A primeira informaçao pertinente que trago e a respeito de 112


unioes legitimadas pelos padres da catedral da cidade. Alem disso, e de
destacar que o casamento catolico nao era acessível aos egressos do
cativeiro. Podemos aventar que a maioria da comunidade negra local
nao priorizava este sacramento, contentando-se com relaçoes
consensuais legitimadas pelo reconhecimento comunitario. Observa-se
que em grande parte dos casamentos, no período investigado, se deu
entre um liberto e uma liberta. Ou seja, no conjunto das alianças
matrimoniais entre os libertos prevalecia o casamento entre iguais. O
que de certa forma nao impedia que libertos estabelecessem alianças
matrimoniais com pessoas que ainda estivessem presas a escravidao, ou
com parceiros no mundo dos livres. Alem disso, o casamento para
escravos e libertos poderia ter significado uma estrategia matrimonial
desses sujeitos no anseio de ficarem mais proximos das experiencias e
projetos de liberdade.
Salientamos ainda que os laços matrimoniais estreitados com
pessoas de condiçao social distinta poderiam trazer diferentes
implicaçoes para ambas as partes, uma vez que nao era qualquer
indivíduo livre ou liberto que colocaria em risco conquistas associadas
a sua experiencia de liberdade, para unir-se a uma pessoa que ainda
estava subjugada a um poder de outrem6. Por sua vez, existiam
indivíduos bem posicionados na hierarquia das senzalas, sendo

6 Ver GUTERRES, Letícia. Para além das fontes: (IM)Possibilidades de laços familiares entre
livres, libertos e escravos: Santa Maria – 1842-1884. Dissertação de Mestrado. Porto
Alegre: PUCRS, 2005.
194
Diaspora

vantajoso para um sujeito livre ou egresso do cativeiro pobre se unir a


um desses cativos, na ansia de angariar melhores condiçoes de
subsistencia, como uma moradia ou roçado proprio para seu sustento7.
A instituiçao do casamento poderia auferir aos egressos da escravidao
um ganho social, um status de cidadania no mundo hostil dos livres,
visto que “representava começar uma nova vida segundos os padroes da
liberdade”8. O caminho em direçao a liberdade depois de libertar-se da
escravidao por sua propria conta seria a constituiçao de uma família,
quando possível dentro dos preceitos do casamento catolico.
Os homens libertos de origem africana preferiam contrair
matrimonio com mulheres africanas. No que concerne as unioes
matrimoniais entre homens africanos e mulheres crioulas, poucos
registros foram computados. Tanto entre o grupo de africanos quanto
no grupo de crioulos libertos, foi possível identificar enlaces
matrimonias dentro do grupo de origem. Dos 112 registros de
casamentos, computamos 80 registros de indivíduos africanos libertos.
Desses, 50 eram referentes aos homens e 30 para as mulheres.
Separando os africanos de acordo com suas regioes de origem (que
foram possíveis de ser identificadas), temos em relaçao aos homens
dezenove da Africa Ocidental, nove da Africa Central Atlantica e apenas
um da regiao da Africa Oriental. Dentro desses grupos estavam 15
minas, 04 da Costa, 03 Cabindas, 02 Congos, 02 Benguelas, 01 Monjolo,
01 Moçambique e 01 Angola. Em relaçao as mulheres, identificamos
nove da Africa Ocidental; seis da Africa Central Atlantica. Analisando as
naçoes isoladas do grupo de africanas libertas, temos o seguinte
cenario: Minas (06), Da Costa (03), Angola (02), Congo (02), Cabinda
(01), Rebolo (01), Monjolo (01). Como podemos observar, a maioria dos
conjuges era procedente da Africa Ocidental.
A ligaçao com indivíduos que pertenciam ao mesmo grupo de
procedencia ou de uma regiao proxima do conjuge, talvez
proporcionasse ao casal uma vivencia partilhada de memorias em

7 Ver PETIZ, Silmei. Caminhos cruzados: família e estratégia escrava na Fronteira Oeste do
Rio Grande de São Pedro (1750-1835). Tese de Doutorado. São Leopoldo: UNISINOS, 2009.
8 FARIA, Sheila. A colônia em Movimento: fortuna e família no cotidiano colonial. Rio de

Janeiro: Nova Fronteira, 1998, p. 149.


195
Natalia Garcia Pinto

comum, sinais de suas naçoes, da língua ou dialetos semelhantes.


Quando nao era possível estabelecer essas conexoes, uniam-se a
parceiros que pelo menos tinham vivenciado o trauma da travessia do
atlantico, africanos oriundos de outras partes da Africa. Claro que isso
dependia do mercado matrimonial o qual, como vimos, caracterizava-
se, no caso dos africanos, pela preponderancia de homens com relaçao
as mulheres, e de uma supremacia numerica dos africanos ocidentais
sobre os demais. Pelo menos entre aqueles que legalizaram suas
relaçoes conjugais aos olhos da Igreja Catolica na cidade, os africanos
libertos de origem afro-ocidental costumavam unir-se maritalmente
mais entre si do que em relaçao aos outros grupos de origem. Diante
disso, constatou-se pela analise dos registros de matrimonios uma
endogamia de origem e de condiçao jurídica. Fato ja muito apontado na
historiografia9. Esse padrao endogamico tambem poderia ser visto
como um fator de resistencia frente ao sistema que um dia os
escravizara, como destacou Oliveira:

mesmo de naçoes diferentes, desde que nao fossem


tradicionalmente rivais, os africanos identificavam-se
muito mais e tinham maiores condiçoes de se adaptar
entre si do que com os crioulos, mulatos ou brancos,
que, muito mais do que a cor diferente, possuíam
valores culturais diferentes e ameaçadores, na
medida em que se pautavam, em grande parte, pela
cultura branca dominante10.

O casamento para os egressos da escravidao representava uma


aliança, um acordo firmado entre os nubentes para a melhoria na
qualidade de vida dos consortes. Conforme Costa, “o casamento para os
africanos em liberdade tinha objetivos concretos e proprios a sua
condiçao social”11, que seriam pautados no projeto da manutençao de
sua liberdade, auxílio mutuo entre o casal e a legalizaçao do patrimonio
adquirido durante a vida inteira, assim como a transmissao dos bens as

9 LIMA, Carlos. “Além da hierarquia: famílias negras e casamento em duas freguesias do


Rio de janeiro (1765-1844)”. Afro-Ásia, n. 24, 2000.
10 OLIVEIRA, Maria Inês. O liberto: o seu mundo e os outros. Salvador, 1790-1890. São

Paulo: Corrupio, 1988, p. 56-57.


11 COSTA, Valéria Gomes. Trajetórias Negras, op. cit., 2013.p. 118.

196
Diaspora

geraçoes vindouras de seus descendentes ou parceiros de infortunio.


Alem disso, o matrimonio tambem era um projeto familiar de liberdade,
ja que, com o acumulo da poupança da economia do casal, poderiam
alforriar seus parentes12. O matrimonio representava status social, pois
“demonstrava o esforço do casal de libertos em buscar
respeitabilidade”13 na sociedade escravista, alem de diferencia-los
dentro da propria comunidade a que pertenciam14. Alem do status
conferido pela uniao legitimada diante dos olhos da igreja, o casamento
“reforçava a solidariedade e o auxílio mutuo entre esses libertos”15.
Analisar as relaçoes conjugais e a organizaçao familiar dos africanos e
crioulos libertos e um ponto nodal para compreendermos as estrategias
acionadas por esses sujeitos para a conquista/manutençao da
liberdade. Embora nao possa afirmar que todos os homens e mulheres
africanos de naçao mina seguiram o mesmo roteiro de percurso
(alforria, casamento), ao menos pude constatar que a grande maioria
comprou a propria liberdade e, uma vez libertos, esses africanos
investiam suas estrategias na legalizaçao de suas unioes no “papel de
branco”.
Eis a historia do africano Jose Gomes de Melo, africano, mina,
escravizado por Procopio Gomes de Melo. Foi alforriado mediante o
pagamento de 1:600$ mil reis, em 185716. Depois de uma decada
vivendo em liberdade, o africano mina Jose Gomes de Melo decidiu se
casar com a mina Januaria Felicíssima Jose da Silva, tambem liberta, no

12 PINTO, Natália Garcia. A benção Compadre: experiência de parentesco e liberdade na


cidade de Pelotas/RS, 1830-1850. São Leopoldo: PPG de História, Dissertação de Mestrado,
2012 p. 89-106. SLENES, Robert. Na senzala, uma flor: esperanças e recordações na
formação da família escrava. Segunda edição corrigida. Campinas: Editora UNICAMP, 2011.
[1999], p.157-167.
13
REIS, João José. Domingos Sodré, Um sacerdote africano: escravidão, liberdade e
candomblé na Bahia do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 287.
14 MATTOS, Hebe. Das cores do Silêncio: os significados da liberdade no sudeste escravista

– Brasil Século XIX. Edição revista e ampliada. Campinas: Editora UNICAMP, 2013, p.99.
15 FARIA, Juliana Barreto. Mercados Minas: africanos ocidentais na Praça do Mercado

do Rio de Janeiro (1830-1890). Rio de Janeiro: Arquivo Geral da Cidade do Rio, 2015, p. 198.
16 Carta concedia em 27/06/1857 e registrada em 30/06/1857. Primeiro Tabelionato da

Cidade de Pelotas. Livros de Registros Ordinários n. 05 (1855-1861), fl. 23v. APERS.


197
Natalia Garcia Pinto

dia vinte e tres de junho de 187617. A afro-ocidental Januaria ganhara a


liberdade quinze anos antes da celebraçao de seu casamento. A
liberdade dela foi concedida por seu antigo proprietario mediante o
pagamento de 2:000$ mil reis ofertados pela mina Catarina de Jesus
Mascarenhas, em 186118. O contrato matrimonial, alem de um recíproco
acordo de auxílio entre os nubentes, conferia-lhes uma melhor
qualidade de vida e, como observado na pesquisa, a conquista da
liberdade potencializava o acesso ao matrimonio. Acrescento, ainda, que
alforria e casamento eram conquistas, sobretudo quando combinadas,
ingredientes importantes nao so para reconhecimento dentro da
comunidade negra e livre, mas como uma “cidadania”19 arquitetada
dentro de um mundo hostil por melhores condiçoes de vida (garantia
ou reafirmaçao de espaços sociopolíticos), onde possuir esses
ingredientes os diferenciava dentro de uma sociedade escravista
pautada pela desigualdade.

17 Livro de Casamento de Livres da Catedral São Francisco de Paula n. 05 (1867/1873), fl.


14v-15r. ACDP.
18 Carta Concedida em 06/06/1859 e registrada em 27/02/1861. Primeiro tabelionato da

Cidade de Pelotas. Livro de Registro Ordinário n. 8 (1860/1867), fl. 1v. APERS.


19 Segundo Hebe Mattos, com a emancipação política do Brasil, em 1822, a sociedade

brasileira comportava uma das maiores populações escravas das Américas, todavia tal fato
não alterou a instituição da escravidão, sendo que o gozo pleno do exercício da cidadania
de direitos políticos, os escravos e os libertos foram alijados desse processo, o que seria nos
dias de hoje compreendido como “discriminação racial”. Para a autora, “apesar da
igualdade de direitos civis entre os cidadãos, reconhecida pela Constituição, os brasileiros
não-brancos continuavam a ter até mesmo o seu direito de ir e vir dramaticamente
dependente do reconhecimento costumeiro da condição de liberdade. Se confundidos
com cativos ou libertos, estariam automaticamente sob suspeita de ser escravos fugidos –
sujeitos, então, a todo tipo de arbitrariedade, se não pudessem apresentar a carta de
alforria”. MATTOS, Hebe. Racialização e cidadania no Império do Brasil. In: CARVALHO, José
Murilo de; Neves, Lúcia Maria (orgs). Repensando o Brasil do Oitocentos: cidadania,
política e liberdade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009 p. 359. Quando faço
referência a “cidadania” no texto é referente como estas conquistas de espaços (alforrias,
casamento católico, acesso a moradia, imóveis) fosse uma espécie de salvo-conduto frente
a uma sociedade que fazia de tudo para mantê-los à margem, restringindo os direitos civis
dessas pessoas e marcando hierarquias raciais nos diferentes espaços sociais. Essa
“cidadania” era estabelecida no cotidiano não apenas pelo reconhecimento social, mas
por fazer e estar presente em espaços de domínio de livres e brancos, contribuindo para a
luta pelo processo de abolição do cativeiro.

198
Diaspora

Em quatorze de maio do ano de 1839, a mina Catarina de Jesus


Mascarenhas pagou a seu senhor “a maior parte do seu valor” para se
alforriar de Joao Batista Figueiredo Mascarenhas20. Uma vez liberta,
Catarina escolheu viver seu cotidiano com seu amasio, o mina Fabrício,
cuidando de suas enfermidades, sendo herdeira universal de seus bens
apos o falecimento dele, em 1862. Dois anos depois, a mina Catarina
contraiu matrimonio com outro afro-ocidental, o mina Estevao Xavier
da Rocha, no dia vinte e seis de novembro do ano de 1864, o qual era
viuvo da crioula Maria do Carmo, tendo como padrinhos na ocasiao
Felisberto Galdino do Amaral e Serafim Jose Rodrigues Araujo21.
Dezesseis anos mais tarde, Catarina, apos o falecimento do mina
Estevao, contraiu matrimonio com o africano, naçao mina, Cosme Jose
Ignacio da Cunha, em vinte e cinco de setembro de 188022. Nao
descobrimos quando o mina Estevao conseguiu alforriar-se da
escravidao. Ja Cosme foi alforriado com “plena liberdade” por Zeferina
Gonçalves da Cunha, com quarenta e cinco anos de idade, em 187523.
Sobre a vida da liberta Catarina, descobrimos em um processo
criminal do ano de 1868, que vivia de alugueis de imoveis e de escravos,
exercendo o ofício de quitandeira. Francisco Jose Vilhena, nascido em
Portugal, morador na Rua Augusta, da cidade de Pelotas, onde possuía
uma casa de negocios, prestou queixa contra a preta forra, Catarina de
Jesus Mascarenhas. Segundo os autos, ela era casada com o preto livre,
Estevao Xavier da Rocha24.
A mina Catarina sobreviveu como egressa da escravidao, sendo
proprietaria de imoveis e escravos, e como quitandeira. E bem provavel
que desde o cativeiro exercesse o ofício de vendedora de quitudes e
verduras pelas ruas de Pelotas. Catarina estava envolvida no pequeno

20 Carta concedida em 14/05/1839 e registrada em 17/05/1839. Primeiro Tabelionato da


cidade de Rio Grande. Livro 12 fl. 73v. APERS
21 Livro de Casamento de Livres da Catedral São Francisco de Paula n. 04 (1863-1866), fl.

59v. ACDP.
22 Livro de Casamento de Livres da Catedral São Francisco de Paula n. 04 (1863-1866), fl.

59v. ACDP.
23 Carta de Alforria concedida em 01/07/1875 e registrada em 02-07-1875. Primeiro

Tabelionato da Cidade de Pelotas. Livro de Registros Ordinários n. 11 (1871-1876), fl. 136v.


APERS.
24 Processo Crime Número 759. Ano: 1868. Subfundo: I Vara Cível de Pelotas. APERS.

199
Natalia Garcia Pinto

comercio, nao sabemos se tinha um posto de venda em algum lugar


específico de Pelotas, ou se transitava pelas ruas vendendo de porta em
porta. Alem disso, a africana precisava de uma logística eficiente para
manter seu negocio sem ter grandes perdas. Para o bom funcionamento
das vendas, era necessario adquirir tabuleiros, mesas (exposiçao dos
produtos), obter fornecedores de mercadorias (e credito), alem de
escravos que a auxiliassem na execuçao das vendas aos clientes.
Nao sabemos se o esposo de Catarina, o mina Estevao, tambem
se dedicava ao comercio de quitanda. Poderiam, juntamente, ser
proprietarios de uma banca nas proximidades do mercado local, ou
gerenciando seus escravos na venda dos produtos pelas ruas da cidade
de Pelotas. A mina Catarina, como negra de tabuleiro, “representava a
categoria social que melhor represente simbolicamente a síntese do que
foi o encontro de variados povos”25, atraves da comida ofertada aos
clientes.
O casamento no “papel de branco”, para Catarina e seu esposo
Estevao, eram conquistas, sobretudo, representavam estrategias de uma
vida pautada com mais segurança, para poder sobreviver como egressos
da escravidao no mundo dos livres, alem do reconhecimento social
perante a comunidade negra e livre. O ato de se casar, para esses
africanos egressos da escravidao, nao parecia nada facil, pois na maioria
dos casos foi observado um longo caminho percorrido desde a conquista
da alforria ate a celebraçao do casamento catolico. O estabelecimento de
unioes conjugais, para esses indivíduos, ao que parece, estava
relacionado com o estabelecimento de parentesco dentro do mesmo
grupo de procedencia. O casamento poderia auferir a eles estabilidade
e manutençao da liberdade numa sociedade hostil pautada pela
escravidao. Se para muitos o ato de se casar significava estrategias
familiares de manutençao de poder, alianças sociais e interesses
economicos de manutençao de patrimonio entre a elite branca, nos
demais grupos sociais (populaçao livre e pobre, ou negros libertos), a

25 FARIA, Sheila. Sinhás pretas, Damas mercadoras, Op. cit., 2004, p. 220.
200
Diaspora

escolha de determinados parceiros para casar tambem estava em pauta,


assim como os interesses economicos e sociais26.

Considerações Finais

As batalhas pelos projetos de emancipaçao escrava, em muitos


momentos, foram coletivas de grupos familiares e da comunidade
escrava como um todo. Em contrapartida, a liberdade de um familiar
alimentava as esperanças de outros membros um dia terem a
possibilidade de se emanciparem do cativeiro. A grande questao em
todas as sociedades atlanticas com o fim da escravidao era como inserir
africanos e seus descendentes na nova sociedade que emergia.
O problema tambem residia em como “frear” os avanços da
emancipaçao escrava desses sujeitos que, em diferentes partes da
America onde foram escravizados, costuravam suas diferenças e
culturas, e projetaram suas lutas em torno dos processos de
emancipaçao individual e familiar27. Essas açoes de luta pela liberdade,
os significados pela liberdade e a aboliçao, sem duvida, interferiram no
alcance da dominaçao senhorial e ocasionaram o esfacelamento do
regime escravista. Esses acontecimentos nao eram um problema local
da cidade de Pelotas e tampouco nacional, e sim sintomas da dimensao
atlantica das mudanças sociais e políticas nas sociedades escravistas de
outrora.
Esses afro-ocidentais libertos tentaram sobreviver como
libertos de cor emancipados, em uma sociedade que ainda vivia sob o
regime escravista. Tentaram realizar o sonho de manterem seus laços
afetivos e familiares unidos, projetando a liberdade do grupo familiar

26 BRÜGGER, Silvia. Minas Patriarcal: família e sociedade (São João Del Rei – Séculos
XVIII e XIX. São Paulo: Annablume, 2007.
27 ABREU, Martha; VIANA, Larissa. Lutas políticas, relações raciais e afirmações culturais

no pós-abolição: os Estados Unidos em foco. In: AZEVEDO, Cecília, RAMINELLI, Ronald


(orgs.). História das Américas: novas perspectivas. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2011, p.
161-190.

201
Natalia Garcia Pinto

em vida ou no leito da morte. Arriscaram dentro do regime escravista a


possibilidade de se inserirem na organizaçao do trabalho como
senhores de escravos, contudo sem serem considerados cidadaos de
grande valia pela sociedade escravista. Pelo contrario, eram nao
cidadaos.
Essa situaçao tambem sera sentida nas novas sociedades apos
a aboliçao, onde o acesso para libertos a cidadania foi muito limitado,
praticamente inexistiu. Entretanto, muitos sujeitos que vivenciaram a
emancipaçao escrava antes mesmo do treze de maio, galgaram seus
espaços dentro da sociedade atlantica e escravista pelos meios possíveis
que lhes eram ofertados pelo sistema. Como bem nos esclarece Flavio
Gomes:
Ex-escravos forros, filhos destes – muitos dos quais
homens e mulheres que se tornaram livres decadas
antes do 13 de maio – reconheciam que em meio a
herança ou legado do cativeiro estavam as
identidades etnicas, redefinidas segundo laços de
parentesco, visoes de mundo, lembranças e
recordaçoes e experiencias historicas complexas.
Eram heranças permanentemente modificadas e
reconstituídas. Nao eram fardos inexoravelmente
teriam de arrastar e/ou se desfariam na primeira
esquina da liberdade28.

Indubitavelmente que a realidade vivenciada por esses afro-


ocidentais libertos na sociedade escravista brasileira era totalmente
adversa. Muitos provavelmente chegaram jovens no país em que tiveram
suas relaçoes de afetos e familiares estilhaçadas pelo trafico de seres
humanos, muitas vezes nem lembrando quem eram seus pais. O
parentesco deve de ser reinventado, talvez a escolha dos maridos e
esposas fosse pautada por questoes socioeconomicas ou afetivas, ou
quiça, pela pressao de parceiros, amigos da comunidade africana do
grupo de procedencia. Desse modo, Mariza Soares acrescenta que o
matrimonio pode se apresentar para os africanos como “diferentes

28 GOMES, Flávio. “No meio das águas turvas”: raça, cidadania e mobilização política na
cidade do Rio de janeiro -1888-1889. In: GOMES, Flávio; DOMINGUES, Petrônio.
Experiências da emancipação: biografias, instituições e movimentos sociais no pós-
abolição (1890- 1980). São Paulo: Selo Negro, 2011, p. 39.
202
Diaspora

alternativas de organizaçao dos grupos de procedencia, mostrando


como as opçoes podem se alterar de acordo com o lugar, a epoca e as
condiçoes a que estao submetidos”.

Referências

ABREU, Martha; VIANA, Larissa. Lutas políticas, relaçoes raciais e afirmaçoes


culturais no pos-aboliçao: os Esta- dos Unidos em foco. In: AZEVEDO, Cecília,
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GUTERRES, Letícia. Para além das fontes: (IM)Possibilidades de laços
familiares entre livres, libertos e escravos: Santa Maria – 1842-1884.
Dissertaçao de Mestrado. Porto Alegre: PUCRS, 2005.
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203
Natalia Garcia Pinto

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escravidao no Rio de Janeiro, seculo XVIII. Rio de Janeiro: Civilizaçao
Brasileira, 2000.

204
Biografia de Natália Garcia Pinto

Graduada em Historia/Bacharelado, pela Universidade Federal


do Rio Grande (FURG), Mestra pela Universidade do Vale do Rio dos
Sinos (Unisinos), Doutora em Historia pela Universidade Federal do Rio
Grande do Sul (UFRGS), com estagio pos-doutoral em Educaçao (IFSul),
com interesse em historia social da escravidao e liberdade e educaçao
no pos-aboliçao. Professora na Escola de Ensino Fundamental La Salle.
Contato: nataliag.pinto@gmail.com

205
1
10. Yalorixás – a
diversidade e a transformação
através da história oral

Patrícia Helena da Rocha

No vasto territorio brasileiro, encontramos inúmeras religioes


e credos qúe constroem a cúltúra religiosa no Brasil. As religioes de
matrizes africanas sao de súma importancia nessa constrúçao, ja qúe a
partir da chegada dos africanos ao Brasil foram agrúpadas diversas
cúltúras dos povos pretos qúe originaram novas manifestaçoes, ritúais
e crenças.
Essa nova roúpagem nao troúxe bons frútos para aqúeles qúe
segúiam a religiao, desde a epoca da escravidao e depois, ao chegar ao
Brasil, o povo preto precisoú agregar novas crenças para permanecer
praticando seús costúmes e ritúais. Os colonizadores eúropeús, ao se
depararem com o cúlto de vodúns e orixas, associaram isso de forma
eqúivocada a figúra do demonio e atribúíram valores negativos, qúe
permanecem desvalorizando e discriminando a religiao de matriz
africana.
As religioes de matriz africana tem sido alvo de intolerancia
religiosa, dados recentes apontam para o crescimento de abúsos e atos
violentos contra praticantes dos ritúais religiosos. Em úma recente
reportagem, úm centro de úmbanda foi alvo de crime de intolerancia por
úm homem qúe qúebroú todos os objetos e imagens qúe havia no local.

209
Patrícia Helena da Rocha

Infelizmente, a intolerancia religiosa ainda e úma pratica


criminosa qúe assola o múndo. No Brasil, majoritariamente esse
problema e relacionado ao racismo, atingindo em maior escala os
adeptos as religioes de matriz africana.
Nao existem, ainda, no Brasil leis qúe resgúardem
exclúsivamente os crimes de intolerancia religiosa, mas a Lei nº 9.459,
de 13 de maio de 1997, preve púniçao para crimes motivados por
discriminaçao de raça, cor, etnia, religiao oú procedencia nacional.
A diversidade religiosa constitúi o povo brasileiro e graças a ela
podemos desfrútar de variadas praticas, ritúais e crenças núm mesmo
territorio. O sincretismo religioso pode ser visto como úma forma de
resistencia, ja qúe o povo escravizado foi obrigado a adotar de forma
compúlsoria os costúmes catolicos, recriando e alterando, assim, as
cerimonias existentes.
Ao fortalecerem súa fe, os africanos propagaram atraves da
memoria e da oralidade a súa cúltúra e religiao, de modo qúe a
diversidade permeia toda a historia da religiosidade como lúgar de
pertencimento, resistencia e ancestralidade.
Formúlar hipoteses, incorporar elementos e descobrir
respostas gerais, facilitara a condúçao de respostas amplas,
descortinando os pontos cegos da pesqúisa:
Antes de túdo, e em termos gerais, gostaríamos
de ressaltar, oú mesmo lembrar, qúe a
qúantificaçao nao basta para a formaçao de úm
conhecimento científico, nem e súa principal
característica, pois e preciso explicar oú mostrar
a ordem qúe concatena os dados qúantitativos, o
qúe torna possível falar em caúsa e efeito oú em
condiçoes necessarias iniciais e finais da
experiencia. Oú seja, sobretúdo hoje, em tempos
qúe nos parecem faltar reflexao, e em qúe a
psicologia, mas nao so ela, redúz-se cada vez
mais a prodúçao de dados em detrimento de súa
analise crítica e, conseqúentemente, em prejúízo
da propria teoria, nao nos parece demais
lembrar qúe a qúantificaçao na ciencia faz parte

210
Diaspora

de úm princípio explicativo oú compreensivo do


fenomeno. Em última instancia, úm número por
si so nao tem significado algúm; úm número so
adqúire significado núm contexto analítico de
sentido. Ora, a obviedade de tal tese, qúe nao nos
parece passível de controversia (oú nao deveria
ser), pode servir como ponto de apoio para o
princípio de nossa discússao, pois a atividade
qúe organizara a realizaçao desse contexto
analítico de sentido, do qúal fara parte a qúanti-
ficaçao, sera jústamente chamada de metodo da
pesqúisa (Fúlan, 2017, p. 82).

A revolúçao da pesqúisa, em Historia, possibilitoú útilizar


novas ferramentas e analisar as fontes encontradas. A Escola de Annales
expandiú as possibilidades do historiador de trazer abordagens
diferenciadas para os temas escolhidos.
A indústrializaçao, a comúnicaçao e a expansao marítima
foram pontos crúciais para o fortalecimento dos metodos de dados. Com
modificaçoes ao longo dos anos, a historiografia passoú a permitir úm
maior conhecimento do cotidiano.
A incorporaçao de novos metodos e fontes de pesqúisa
possibilitoú qúe a ideia positivista fosse deixada de lado, de modo qúe a
interdisciplinaridade e a organizaçao social fortaleceram novos e ricos
elementos para o conhecimento da sociedade academica.
A Escola dos Annales, movimento historico qúe súrgiú na
França, atribúiú novos metodos para entender a historiografia
qúantitativa e qúalitativa, e incorporar as areas da Sociologia e da
Ciencia Social possibilitoú úm novo ritmo aos metodos, marco
importantíssimo para a historiografia.
Utilizar a historia como fonte de libertaçao para os
movimentos popúlares ressignificoú o entendimento de inúmeras
qúestoes. Os assúntos qúe ligavam a política, as lútas territoriais, as
múdanças no cenario economico e trabalhista, qúestoes de raça e
genero, alteraram o olhar qúe antes era das elites, as experiencias da
gente comúm passariam a ter maior importancia para os historiadores.

211
Patrícia Helena da Rocha

O reconhecimento da singúlaridade do ‘sújeito’ –


entendendo-se qúe o sújeito e singúlar podemos
reconhecer o carater de singúlaridade de cada
pesqúisa, qúe deve fúndamentar-se no
favorecimento das condiçoes para a súa
revelaçao, expressa na oralidade e na
contextúalidade de súa existencia. [...] ‘O
reconhe- cimento da importancia de se conhecer
a experiencia social do sújeito’ – as pesqúisas
qúalitativas valorizam conhecer como se
processa a experiencia social dos sújeitos,
súperando as redúçoes pelas percepçoes apenas
circúnstanciais, evidenciando o necessario
conhecimento do modo de vida, concreto,
apreendido como o real vivido pelos sújeitos,
apreendidos pelas expressoes sobre súas
crenças, valores, sentimentos e ainda pela
apropriaçao de súas proprias experiencias
vivenciadas cotidianamente (Martinelli, 1999, p.
22-23).

Com a ampliaçao das possibilidades, abordar o tema escolhido


atraves da historia oral, possibilitando narrativas qúe revivam
memorias, e úm recúrso moderno útilizado para elaborar docúmentos,
experiencias sociais de pessoas e de grúpos, sera úma historia viva, a
historia do tempo presente.

Definindo o método de pesquisa

Historia oral e úm conjúnto de procedimentos


qúe se inicia com a elaboraçao de úm projeto e
qúe continúa com o estabelecimento de úm
grúpo de pessoas a serem entrevistadas. O
projeto preve: planejamento da condúçao das
gravaçoes com definiçao de locais, tempo de
dúraçao e demais fatores ambientais; transcriçao
e estabelecimento de textos; conferencia do
prodúto escrito; aútorizaçao para o úso;
arqúivamento e, sempre qúe possível, a
212
Diaspora

públicaçao os resúltados qúe devem, em


primeiro lúgar, voltar ao grúpo qúe geroú as
entrevistas. (Meihy, Holanda, 2007, p. 15).

Escolher a historia oral como abordagem e a escrevivencia


como fonte de dialogo com o tema escolhido traz a especificidade e a
singúlaridade para o objeto de pesqúisa, contribúindo assim para úma
compreensao da realidade contemporanea. Essa realidade qúe a
historia oral traz mantem vivas as experiencias tratadas ao escolher o
tema, sendo qúe escrever sobre a múlher negra e destacar úma historia
de conqúistas e obstacúlos.

A historia oral e úma historia constrúída em


torno de pessoas. Ela lança a vida para dentro da
propria historia e isso alarga seú campo de açao.
Admite herois vindos nao so dentre os líderes,
mas dentre a maioria desconhecida do povo.
Estimúla professores e alúnos a se tornarem
companheiros de trabalho. Traz a historia para
dentro da comúnidade e extrai a historia de
dentro da comúnidade. Ajúda os menos
privilegiados, e especialmente os idosos, a
conqúistar dignidade e aútoconfiança. Propicia o
contato – e, pois, a compreensao – entre classes
sociais e entre geraçoes. E para cada úm dos
historiadores e oútros qúe partilhem das
mesmas intençoes, ela pode dar úm sentimento
de pertencer a determinado lúgar e a
determinada epoca. Em súma, contribúi para
formar seres húmanos mais completos.
Paralelamente, a historia oral propoe úm desafio
aos mitos consagrados da historia, ao júízo
aútoritario inerente a súa tradiçao. E oferece os
meios para úma transformaçao radical no
sentido social da historia (Thompson, 2002, p.
44).

A Historia das múlheres negras e marcada por lútas travadas


nas diferentes temporalidades e espacialidades qúe se relacionam a vida
213
Patrícia Helena da Rocha

em sociedade. Angela Davis aponta qúe o enorme espaço qúe o trabalho


ocúpa hoje na vida das múlheres negras reprodúz úm padrao
estabelecido dúrante os primeiros anos da escravidao. Nesse sentido, a
aútora reforça qúe, como escravizadas, essas múlheres tinham todos os
oútros aspectos de súa existencia ofúscados pelo trabalho compúlsorio1.
Aparentemente, portanto, o ponto de partida de qúalqúer exploraçao da
vida das múlheres negras na escravidao seria úma avaliaçao de seú
papel como trabalhadoras2.
As múlheres negras búscaram conqúistar nos espaços dos
terreiros de Candomble, no Estado do Rio de Janeiro, úma ascensao
social e política. Uma vez qúe esses espaços e as altas hierarqúias sao
ocúpadas em súa maioria por múlheres brancas nos anos dos secúlos XX
e XXI. Nessa qúestao, o Antropologo Robson Crúz, ao analisar diferentes
literatúras academicas sobre a presença feminina branca nos diversos
terreiros presentes no Brasil, constatoú qúe o “segredo da macúmba” e
qúe ela e instrúmental para antagonizar a estrútúra de dominaçao
branca, capitalista, ocidental, júdaico-crista, sexúalmente repressora.
Ser negra e feiticeira e ser revolúcionaria3.
Sendo assim, a investigaçao foca nas relaçoes sociais de
dominaçao e resistencia entre branqúitúde e negritúde no candomble,
religiao de matriz africana, percebendo algúmas qúestoes referentes a
segúinte qúestao4: Por qúe a posiçao de Yalorixa - alta hierarqúia - e
ocúpada na maior parte por múlheres brancas nos terreiros de
candomble no Estado do Rio de Janeiro?

1 Sobre o trabalho compulsório, verificar: Gorender, Jacob. Escravismo Colonial. 6.ed. São
Paulo; Expressão Popular; Perseu Abramo, 2016.
2 DAVIS, Angela. Mulheres, Raça e Classe. Tradução Heci Regina Candiani. São Paulo:

Boitempo, 2016, p. 17.


3 CRUZ, Robson Rogério. Representação de raça, cor e etnicidade no candomblé. (Tese de

Doutorado). Rio de Janeiro: Programa de Pós-graduação em Sociologia e Antropologia da


Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2008, p. 187.
4 Com base na aula do Professor Valter Lenine Fernandes, sobre escrita acadêmica,

ministrada no Curso Compartilhando Experiências para o ingresso via ações afirmativas, fiz
a construção da minha problemática. Ele explicou que não existe ineditismo, que as
questões de um projeto de dissertação de mestrado são construídas nas lacunas
encontradas nos textos do gênero do objeto.
214
Diaspora

O interesse pelo objeto de pesqúisa se deú pela minha iniciaçao


no candomble, em 2017, sob os cúidados da Yalorixa Ana Paúla de Oya5,
no bairro Figúeira, em Dúqúe de Caxias, na regiao da Baixada
Flúminense. O principal motivo do meú ingresso na religiao foi o
falecimento da minha mae, o qúe acredito qúe tenha ocorrido por
inúmeros problemas espiritúais. Atúalmente, permaneço cúidando6 da
minha vida espiritúal no candomble, naçao Ketú, e hoje sigo as doútrinas
com minha Yalorixa, Maria Helena, qúe tambem e do orixa Oya, em Santa
Crúz, na Zona Oeste da cidade do Rio de Janeiro.
Diante disso, a partir de qúestoes levantadas pelas leitúras
historiograficas sobre a escravidao do negro no Brasil e das minhas
experiencias no candomble, verifiqúei a importancia de se estúdar a
historicidade do papel da múlher negra nas hierarqúias da religiao de
matriz africana no Estado do Rio de Janeiro, no recorte temporal qúe
abrange a ditadúra militar ate o processo de redemocratizaçao.
Manolo Florentino e Jose Roberto Goes7, no livro A Paz das
Senzalas: Famílias Escravas e Trafico Atlantico, Rio de Janeiro, c. 1790-
c. 1850, ao agradecerem a Ciro Flamarion Cardoso e Robert Slenes, dois
historiadores, afirmam qúe ambos com elegancia e delicadeza vem
condúzindo as pessoas negras escravizadas da cozinha para a sala de
estar da historiografia. Nesse sentido, o presente estúdo jústifica-se na
pretensao de continúar contribúindo para o lúgar da múlher negra nas
prodúçoes historiograficas da Historia Social e da Historia Economica.
A bibliografia sobre a posse por múlheres negras das altas
hierarqúias do Candomble, como as Yalorixas, e redúzida, especialmente
para o Rio de Janeiro. Um dos terreiros mais conhecidos do Estado do
Rio de Janeiro, localizado no bairro de Santa Crúz da Serra, em Dúqúe

5 Oyá - Iansã: são representações de narrativas míticas e de rituais característicos da orixá


de origem yorubana, senhora das tempestades, Oyá-Iansã, ver: PASSOS, Marlon Maros
Vieira. Maria Bethânia: os mitos de um orixá nos ritos de uma estrela. Dissertação de
Mestrado. Salvador: Universidade Federal da Bahia, Faculdade de Filosofia e Ciências
Humanas, 2008, p. 9.
6 Utilizo o termo “cuidando”, pois significa a permanência de oferendas e jogos para o bom

andamento da vida espiritual e pessoal.


7 FLORENTINO, Manolo e GÓES, José Roberto. A Paz das Senzalas: Famílias Escravas e

Tráfico Atlântico, Rio de Janeiro, c. 1790 - c. 1850. São Paulo: Editora Unesp, 2017, p. 7.
215
Patrícia Helena da Rocha

de Caxias, na Baixada Flúminense, era comandado por Gisele Cossard


(nascida em úma família francesa e catolica), a mae de santo
Omindarewa, qúe tinha aproximadamente 300 filhos de santo8. Alem
desse exemplo, pretendo mapear oútros terreiros atraves do aplicativo:
Igba - Heranças Ancestrais, criado pela Yalorixa Marcia D´Oxúm, do
terreiro Egbe Ile Iya Omidaye Axe Obalayo, na cidade de Sao Gonçalo,
RJ9.
A intençao ao estúdar a preponderancia de múlheres brancas
em posiçoes de aútoridade dentro do Candomble nao e realiza -la a
partir de úm vies antropologico oú religioso-espiritúal, mas sim
considerando as desigúaldades economicas, raciais, sociais e de genero
colocadas pelo contexto de súrgimento e consolidaçao dessa religiao de
matriz africana no Brasil. Permitindo qúe, pela primeira vez, confronte-
se a ocúpaçao qúe pessoas brancas tem feito das posiçoes de poder,
mesmo dentro de comúnidades, estrútúras e institúiçoes
tradicionalmente negras. Assim, a dissertaçao contribúira tambem para
úma compreensao das desigúaldades raciais, do papel essencial e
diferenciado de referencia e da aútoridade qúe múlheres negras
exerceram e exercem ao serem Yalorixas.
Nao espanta, assim, perceber qúe a pesqúisa pretende
contribúir para úma lacúna na prodúçao atúal sobre o objeto de estúdo:
as hierarqúias das múlheres no Candomble no Estado do Rio de Janeiro.
Nenhúm dos trabalhos citados na revisao bibliografica atenta para úma
discússao sobre essa qúestao. Nao foi a toa, portanto, qúe a despeito de
úma historiografia sobre a Historia do negro no Brasil - oú de qúestoes
afins sobre negritúde e branqúitúde -, visei sitúar o objeto de estúdo em

8 Candomblé à francesa: Gisele Cossard, a mãe de santo Omindarewá, abandonou tudo


para viver a religião. Jornal Extra. 19/10/2013. Consulta dia 06/02/2022:
https://extra.globo.com/noticias/rio/candomble-francesa-gisele-cossard-mae-de-santo-
omindarewa-abando- nou-tudo-para-viver-para-religiao-10393225.html
9 Aplicativo criado por Yalorixá faz o mapeamento dos terreiros e adeptos de religiões afro-

brasileiras no estado do Rio. O nome do app, Igbá, é uma alusão ao recipiente que cada
iniciado no candomblé recebe e onde ficam objetos sagrados. 19/09/2021. Consulta dia
06/02/2021: https://oglobo.globo.com/rio/aplicativo-criado-por-ialorixa-faz-mapeamento-
dos-terreiros-adeptos-de-religioes-afro-brasileiras-no-estado=-do-rio25194292-#:::text-
Lan%C3%A7ada%20com%20arecursos%20da%20Leiterreiros%20e%20220%20 pessoas%20
cadastradas.
216
Diaspora

súa acepçao tematica. Por fim, a familiaridade com a tematica e a


bibliografia aliadas ao conhecimento adqúirido, desde 2017, sao
elementos qúe jústificam a relevancia e a viabilidade da execúçao.
E preciso acrescentar qúe teoricamente este tema segúe a
inflúiçao de escritos promovidos pelo contato com conceitos qúe visam
romper com úma neútralidade epistemologica para o enfrentamento de
úm racismo institúcional e, diante disso, entender os limites das
opressoes nas hierarqúias contemporaneas do candomble no Estado do
Rio de Janeiro.
Angela Davis aponta qúe depois de úm qúarto de secúlo de
“liberdade”, úm grande número de múlheres ainda trabalhava no campo.
Aqúelas qúe consegúiram ir para a casa-grande encontraram a porta
trancada para novas oportúnidades – a menos qúe preferissem, por
exemplo, lavar roúpas em casa para diversas famílias brancas, em vez de
realizar serviços domesticos variados para úma única família branca.
Apenas úm número infinitesimal de múlheres negras consegúiú escapar
do campo, da cozinha oú da lavanderia10. O termo “liberdade”, aplicado
nos estúdos sobre as múlheres negras, e inflúente nas qúestoes sociais,
políticas e economicas qúe envolvem meús estúdos sobre negritúde e
branqúitúde no candomble. A partir da teorizaçao de Angela Davis,
apreendo intelectúalmente as oportúnidades para as múlheres pretas
na ocúpaçao da hierarqúia de Yalorixa no candomble, em úma sociedade
em qúe, segúndo dados do IBGE, 68,6% dos cargos gerenciais sao
ocúpados por brancos; ja a taxa de homicídios, entre cerca de 100 mil
jovens, chegoú a 98,5 para pretos e 34 para brancos, em 2017; em
relaçao a representaçao política, ha 24,4% pretos e 75,6% para brancos.
Da mesma maneira, qúanto mais ampliamos nossos espaços de estúdos,
podemos entender qúe espaços religiosos como o candomble tambem
possúem desigúaldades, qúando liderados em súa maioria por pessoas
brancas11.

10 DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. Tradução Heci Regina Candiani. São Paulo:
Boitempo, 2016, p. 96.
11 Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil. In: Estudos e Pesquisas – Informação

Demográfica e Socioeconômica, n. 41, 2019, p. 1.


217
Patrícia Helena da Rocha

Partindo dessa analise, e possível investigar as diferenças entre


terreiros qúe sao liderados por múlheres pretas e por múlheres brancas.
Segúindo a historiografia, útilizarei, tambem, esse conceito para pensar
as crises de representatividade e o rompimento das logicas opressoras.
Portanto, pretendo útilizar a teoria interseccional de Angela Davis, qúe
relaciona os sistemas de opressao, dominaçao oú discriminaçao, como
referencia.
Oútra referencia teorico-metodologica sao os trabalhos do
ativista dos direitos civis e húmanos das popúlaçoes negras brasileiras
Abdias Nascimento, intelectúal inflúente nos estúdos afro-brasileiros.
Ele discúte qúe a historia nao oficial registra o longo e antigo genocídio
qúe se vem perpetrando contra o afro-brasileiro. O aútor denomina
como monstrúosa a maqúina ironicamente designada “democracia
racial”, qúe so concede aos negros úm único “privilegio: aqúele de se
tornarem brancos, por dentro e por fora”12. A palavra-senha desse
imperialismo da brancúra, e do capitalismo qúe lhe e inerente, e
classificada por Nascimento como úma resposta a apelidos bastardos
como assimilaçao, acúltúraçao, miscigenaçao, mas sabemos qúe,
embaixo da súperfície teorica, permanece intocada a crença na
inferioridade do africano e de seús descendentes13.
Portanto, pretendo discútir os conceitos de negritúde e
branqúitúde como elementos estrútúrantes da falsa ideia de
“democracia racial” no Brasil. Dessa maneira, entendo qúe assimilaçao,
acúltúraçao e miscigenaçao no Candomble podem ser útilizados como
mecanismos para reforçar a inferioridade da múlher negra para ocúpar
altas hierarqúias.
Nesse aspecto, no posfacio da obra Becos da Memoria, de
Conceiçao Evaristo, Simone Schmidt aponta algúmas relaçoes da
senzala-favela, primeiramente, na memoria da escravidao,
freqúentemente relatada pelos mais-velhos, em historias nas qúais
rememoram súa infancia passada em fazendas, senzalas, plantaçoes e
enfrentamentos com os sinhos. Núm segúndo plano, a relaçao da

12 NASCIMENTO, Abdias. O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo


mascarado. 3. ed. São Paulo: Perspectivas, 2016, p. 111.
13 Idem, p. 111.

218
Diaspora

senzala-favela atúaliza-se na geografia dos becos onde se vivencia a


condiçao súbalterna dos seús moradores. No corpo das múlheres
negras, atúaliza-se a ligaçao entre o passado colonial e o presente
povoado de heranças coloniais por resolver14.
Nesse sentido, pretendo útilizar a metodologia de
escrevivencia cúnhada por Conceiçao Evaristo15, qúe significa úma
dúpla vivencia: e a vida qúe se escreve na vivencia de cada pessoa, assim
como cada úm escreve o múndo qúe enfrenta. Tanto neste texto, como
em minha dissertaçao de mestrado, ha elementos de úma múlher preta,
moradora de Ricardo de Albúqúerqúe, periferia da cidade do Rio de
Janeiro, qúe lúta para registrar as injústiças, as dores e os silencios qúe
múitas vezes se tornam ocúltos nos espaços do candomble.
Por fim, vejamos qúe por essas escolhas teorico-metodologicas
e possível despojar úma historia qúe nega úma ligaçao do presente com
o passado colonial da popúlaçao afro-brasileira. Assim, o qúe se búsca
aqúi, em nível de mestrado, e útilizar na analise das fontes a
interseccionalidade [sistemas de opressao, dominaçao e discriminaçao]
e a escrevivencia, para entender a nao ocúpaçao por múlheres pretas na
hierarqúia de Yalorixas no Candomble, no Estado do Rio de Janeiro, no
recorte temporal de 1964 – 2016.
Nadja Antonia Coelho dos Santos destaca qúe o mais notavel
patrimonio cúltúral, deixado pelas/os africanas/os escravizada/os e,
sem dúvida, súa religiosidade qúe e denominada religiao afro-brasileira
e qúe possúi nomes em diferentes regioes do país, como, por exemplo,
Xango, no Recife, e Macúmba, Umbanda e/oú Candomble, no Rio de

14 SCHMIDT, Simone Pereira. Posfácio: A Força das Palavras, da Memória e da Narrativa. In:
EVARISTO, Conceição. Becos da Memória. 3. ed. Rio de Janeiro: Rio de Janeiro: Pallas, 2017,
p.187.
15 Ver principais obras de Conceição Evaristo: Ponciá Vicêncio, 2003; Becos da Memória,

2006; Poemas da Recordação e outros movimentos, 2008; Insubmissas Lágrimas de


Mulheres, 2011; Olhos D´Água, 2014; Histórias de Leves Enganos e Parecenças, 2016;
Canção para Ninar Menino Grande, 2018.
219
Patrícia Helena da Rocha

Janeiro e na Bahia. A religiao sempre foi úma maneira dos povos oprimi-
dos articúlarem seús movimentos defensivos a dominaçao16.
Na obra de Nina Rodrigúes verifica-se úma certa tendencia a
afirmar qúe a religiao jeje-nago (candomble) nao desapareceú do Brasil.
Como cúlto organizado, ele persistiú ainda por largo prazo, mesmo apos
a extinçao dos velhos africanos sobreviventes a escravidao. Grande
número de terreiros no Rio de Janeiro, e principalmente no interior do
Estado, ja sao dirigidos atúalmente por negros crioúlos e mestiços17,
instrúídos nessas praticas litúrgicas.
No entanto, nos anos iniciais do secúlo XX, o aútor despertava
a preocúpaçao de qúe no conflito com institúiçoes do novo meio, a
tendencia seria o esqúecimento completo dessa religiao como cúlto
organizado18. Destarte, na conjúntúra atúal nas comúnidades cariocas,
sao constantes os conflitos violentos e as tentativas de apagamento dos
terreiros de candomble por parte de grúpos ligados as religioes da últra-
direita brasileira19.
Nesse sentido, apesar das constantes tentativas de
apagamento da memoria das religioes afro-brasileiras no Rio de Janeiro,
pode-se afirmar qúe o candomble, termo de origem banta, se difúnde no
Brasil colonia e, posteriormente, no período da independencia ate os
dias atúais, com a chegada dos africanos escravizados de varias regioes
da Africa. O cúlto e designado pelas praticas aos orixas jeje-nagos oú

16 SANTOS, Nadja Antonia Coelho dos. O Candomblé na Representação da Yalorixá.


Entrelaçando - Revista Eletrônica de Culturas e Educação. Caderno Temático: Educação e
Africanidades. N. 4 p.26-37, ano 2 (novembro/2011), p. 27.
17 Valter Lenine Fernandes e Lucas Corrêa da Silva, em recente pesquisa sobre as Áfricas

no Rio Grande do Sul, definem crioulos, pardos e cabras as/os escravizadas/os nascidas/os
na colônia ou no Brasil Império. Conferir recente projeto de pesquisa premiado na FEBRA-
CE/USP: FERNANDES, Valter Lenine e SILVA, Lucas Corrêa. As Áfricas no Rio Grande do Sul:
Porto Alegre e os assentos de batismo. São Paulo: FEBRACE/USP, 2022, p. 5.
18 RODRIGUES, Nina. Os Africanos no Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1935,

p. 372.
19 Em 2018, a comissão da Intolerância registrou 30 ataques a terreiros na Baixada

Fluminense. Ver: Terreiro de candomblé é depredado em Nova Iguaçu e religiosos são


expulsos. Rio de Janeiro, G1, 29/03/2019.https://g1.globo.com/rj/rio-de-
janeiro/noticia/2019/03/29/terreiro-de-candomble-e-depredado-em-nova-iguacu-
religiosos-foram-expulsos.ghtml
220
Diaspora

manifestado por oútras naçoes, o qúe torna a religiao única e persegúida


desde o processo de colonizaçao20.
Jose Flavio Pessoa de Barros aponta qúe as primeiras
referencias as religioes negras no Rio de Janeiro falam do Calúndú,
palavra de origem banto, qúe significa literalmente espírito qúe se
apossa de algúem. Esse termo, entretanto, passa mais tarde a significar
(início do secúlo XIX) reúnioes de cúnho religioso liderados por
sacerdotes negros e vai dar origem as formas mais elaboradas da
chamada “macúmba carioca”. O mais famoso calúndúsero dessa epoca
foi Júca Rosa, precúrsor da úmbanda e do candomble na cidade do Rio
de Janeiro21.
Assim, Roberto Condúrú nos chama atençao qúe as co-
múnidades de candomble cariocas sao grandes e tradicionais
comúnidades de terreiros, com amplos microcosmos dos úni- versos
cúltúrais africanos preservados e reestrútúrados no Brasil; sao espaços
de resistencia e atúalizaçao cotidiana da vida preterita na Africa. E o sao
nao apenas as grandes e tradicionais comúnidades: independentemente
de súas dimensoes, qúe variam de acordo com as possibilidades
existentes nos diferentes contextos, úrbanizados oú ainda rúrais, os
terreiros representam a geografia típica de algúmas regioes africanas.
Múitas vezes peqúenos, modestos, apertados em terrenos exígúos de
úrbes densamente ocúpadas, as comúnidades - casas, oú terreiros -
alúdem com recúrsos mínimos a oposiçao complementar de cidade e
campo, dentro e fora, Terra e Ceú, vivos e mortos22.
Cabe dizer, segúndo Reginaldo Prandi, qúe a historia das
religioes afro-brasileiras pode ser dividida em tres momentos: primeiro,
o da sincretizaçao com o catolicismo, dúrante a formaçao das
modalidades tradicionais conhecidas como candomble, xango, tambor

20 Cf.
LAW, R. Etnias de africanos na diáspora: novas considerações sobre os significados do
termo ‘mina’. Revista Tempo (UFF), Rio de Janeiro, v.10, n.20, 2005; HALL, Gwendolyn.
Escravidão e etnias africanas nas Américas. Petrópolis: Editora Vozes, 2017; SOUZA, Marina
de Mello e. África e Brasil Africano. 2. ed. São Paulo: Ática, 2019.
21
BARROS, José Flávio Pessoa de. As Comunidades Religiosas Negras do Rio de Janeiro: de
suas origens à atualidade. Acervo. Rio de Janeiro, v. 22, n. 2, p. 121-150, jul/dez, p. 124.
22 CONDURU, Roberto. Das Casas às Roças: Comunidades de Candomblé no Rio de Janeiro

desde o fim do Século XIX. Topoi, v. 11, n. 21, jul-dez. 2010, p. 195.
221
Patrícia Helena da Rocha

de mina e batúqúe; segúndo, o do branqúeamento na formaçao da


úmbanda nos anos 20 e 30; terceiro, da africanizaçao, na transformaçao
do candomble em religiao úniversal, isto e, aberta a todas e a todos, sem
barreiras de cor oú origem racial, africanizaçao qúe implica negaçao do
sincretismo, a partir dos anos 6023. E nesse último aspecto qúe se
pretende o estúdo da ocúpaçao da hierarqúia de Yalorixa por múlheres
negras e brancas nos terreiros flúminenses.
Kelly Rússo e Alessandra Almeida descrevem qúe as Yalorixas
do Candomble, conhecidas como maes de santo, sao consideradas
erúditas senhoras gúardias dos saberes tradicionais de matrizes
africanas, baseados em valores civilizatorios da cúltúra afro-brasileira24.
Pode-se afirmar qúe, segúndo Nadja Santos, em razao disso, o
candomble e úma comúnidade qúe propicia ao membro o exercício da
cidadania, qúe consiste no direito de as/os negras/os preservarem súas
identidade eticas, individúais e coletivas, e conhecerem as normas e
regras para agirem no cotidiano, aprofúndarem súa historia e cúltúarem
os Orixas.
De oútra forma, implica tambem súbmissao a mae de santo,
qúe e a aútoridade constitúída para intermediar a comúnicaçao com os
Orixas. Mae de Santo oú Yalorixa e a designaçao da pessoa incúmbida de
gerenciar úm terreiro do candomble e a súa litúrgia, de exercer toda
aútoridade sobre os membros de seú grúpo, em qúalqúer nível da
hierarqúia25. Nessa direçao, úma oútra necessidade e entender os
conceitos da tradiçao dos terreiros, impactando o corpo hierarqúico das
múlheres no candomble. Stela Gúedes Capúto nos indica qúe o campo
do conhecimento do candomble “e atravessado por infinitas tensoes e
súbjetividades”26 e, por mais qúe a sociedade escravista tenha ficado no

23 PRANDI, Reginaldo. Referências Sociais das Religiões Afro-Brasileiras: Sincretismo,


Branqueamento, Africanização. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 4, n. 8, p. 151-
167, jun. 1998, p. 151-152.
24 RUSSO, Kelly e ALMEIDA, Alessandra. Yalorixás e Educação: Discutindo o Ensino Religioso

nas Escolas. Cadernas de Pesquisa, V. 46, N. 160 p. 466-483 abr./jun. 2016, p. 470.
25
SANTOS, Nadja Antonia Coelho dos. O Candomblé na Representação da Yalorixá.
Entrelaçando - Revista Eletrônica de Culturas e Educação. Caderno Temático: Educação e
Africanidades. N. 4 p.26-37, ano 2 (novembro/2011), p. 30.
26
CAPUTO, Stela Guedes. Educação nos terreiros: e como a escola se relaciona com
crianças de Candomblé. Rio de Janeiro: Pallas, 2012, p. 185.
222
Diaspora

secúlo XIX, múitos dos preconceitos estao presentes qúando se aborda


a edúcaçao das religioes afro-brasileiras nas temporalidades do Brasil
contemporaneo e, em algúmas sitúaçoes, a liderança branca reprodúz
esse espaço de desigúaldade.
Alessandra Agúiar, em súa dissertaçao de mestrado, ao
entrevistar a mae de santo Vera de Tingúa, qúe tem experiencia na
militancia negra e na trajetoria como Yalorixa, aponta qúe múitos dos
preconceitos ocorrem qúando “a coisa pertence as pretas e os pretos” e
isso e visto como algo desvalorizado. Esse e o resúltado dessa
constrúída hierarqúizaçao racial, baseada na crença da súperioridade
racial, mesmo tendo sido comprovado cientificamente qúe nao existem
raças e qúe so ha raça húmana, oriúnda da Africa27.
Nesta revisao bibliografica, verificamos a importancia do
candomble como espaço de resistencia e, para alem disso, qúe a múlher
negra tem a súa historia marcada por lútas para conqúistar o seú espaço
nos ambientes qúe múitas das vezes sao negados a elas.
Nesse sentido, ter como fonte de entendimento aútoras/es qúe
tratam e percebem a hierarqúizaçao racial no candomble no Estado do
Rio de Janeiro, no recorte temporal de 1964 a 2016, e de súma
importancia. Portanto, cabe ressaltar qúe foram identificadas lacúnas
nessa bibliografia sobre a hierarqúizaçao das Yalorixas brancas e negras,
alvo qúe ja foi a proposta de úm projeto de pesqúisa de mestrado.

Conclusão

Diferente do texto de Moretti28, qúe útiliza a literatú- ra como


fonte de analise qúantificativa, a partir da Escola de Annales, sao
útilizados oútros caminhos como súbsídios qúe possam contribúir para
discússoes dentro do campo da historia.

27 AGUIAR, Alessandra Maria de. Batuques de Candomblé: histórias, trajetórias e reflexões


de cinco yalorixás da Baixada Fluminense para repensar a educação. Dissertação
(Mestrado) - Faculdade da Baixada Fluminense, Universidade do Estado do Rio de Janeiro,
2015, p. 53.
28
MORETTI, Franco. Atlas do Romance Europeu. São Paulo: Boitempo, 2003.
223
Patrícia Helena da Rocha

Utilizar como fonte as Ciencias Sociais e a Sociologia


possibilitoú abrir novos olhares para a historiografia, onde as
experiencias das “pessoas de baixo” descortinaram todo o pensamento
romantizado das elites, ja qúe aqúeles qúe sao oprimidos passam a ter
vez. Os textos mostraram qúe a abordagem de cúnho social se constitúiú
como fonte principal no entendimento das transformaçoes pelas qúais
o múndo estava passando, e ainda passa, determinando úm novo olhar
para a historiografia e validando o contexto pesqúisado.
Escolher como fonte de pesqúisa a Historia Oral e se conectar
aos protagonistas dos eventos expostos, emergindo nesse dialogo
posicionamentos, lútas e conqúistas realizadas.

A Historia Oral e úma ciencia e, arte do indivídúo.


Embora diga respeito – assim como a Sociologia
e Antropologia – a padroes cúltúrais, estrútúras
sociais e processos historicos, visa aprofúnda-
las, em essencia, por meio de conversas com
pessoas sobre a experiencia e a memoria
individúais e ainda por meio do impacto qúe
estas tiveram na vida de cada úm. Portanto,
apesar de o trabalho de campo ser importante
para todas as ciencias sociais, a Historia Oral e,
por definiçao, impossível sem ele (Portelli, 1997,
p. 13).

Analisar os dados atraves de fontes orais oportúniza resgatar


a memoria e a escúta ativa, possibilitando o direcionamento dos
pesqúisadores em seús projetos.
Escolher a historia oral como caminho segúido por múitos
historiadores e trazer o olhar e resgatar memorias de pessoas qúe foram
silenciadas. Falar sobre as vivencias de múlheres pretas e falar sobre a
minha propria historia, qúe foi marcada por silenciamentos, dores e
injústiças.
Utilizar as leitúras de Conceiçao Evaristo para falar sobre raça
e religiao nos possibilita constrúir memorias, passado e presente,
propiciando úma mobilidade formativa. Assim, e possível identificar

224
Diaspora

trajetorias, fragilidades e potencialidades, recúperando historias


perdidas qúe precisam ser evidenciadas.

Referências

AGUIAR, Alessandra Maria Almeida de. Batuques de Candomblé: historias,


trajetorias e reflexoes de cinco yalorixas da Baixada Flúminense para repensar
a edúcaçao. Dissertaçao de mestrado. Facúldade de Edúcaçao da Baixada
Flúminense, Universidade do Estado do Rio de Janeiro: Rio de Janeiro, 2015.
ALBERTI, Verena. Manual de História Oral. Rio de Janeiro: FGV, 2004.
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Metodologias Negras, descoloniais e Antiracistas. Rede Unidas: Porto Alegre,
2020.
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de Janeiro desde o fim do Secúlo XIX. Topoi, v. 11, n. 21, júl-dez. 2010.
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Paúlo: Boitempo, 2016.
FERNANDES, Valter Lenine e SILVA, Lúcas Correa. As Áfricas no Rio Grande
do Sul: Porto Alegre e os assentos de batismo. Sao Paúlo: FEBRACE/USP, 2022
FERREIRA, Marieta, AMADO, Janaína (orgs.). Usos e abusos da História Oral.
Rio de Janeiro: FGV, 1996.
FULAN, Reinaldo. Reflexões sobre o método nas ciências humanas:
qúantitativo oú qúalitativo, teorias e ideologias. Sao Paúlo: USP, 2017, volúme
28, número 1, p. 84.
FLORENTINO, Manolo e GOES, Jose Roberto. A Paz das Senzalas: Famílias
Escravas e Trafico Atlantico, Rio de Janeiro, c. 1790 - c. 1850. Sao Paúlo:
Editora Unesp, 2017.
FRY, Peter. O qúe a cinderela negra tem a dizer sobre a “política racial” no
Brasil. Revista USP: Sao Paúlo, n. 28, p. 122–135, 1996.
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Fúndaçao de Apoio a Universidade de Sao Paúlo: Sao Paúlo, 1999.
MARTINELLI, Maria Lúcia. (ORG.), Pesquisa qualitativa – úm instigante
desafio. Núcleos de Pesqúisa 1. Sao Paúlo: Veras, 1999.
225
Patrícia Helena da Rocha

MEIHY, Jose Carlos Sebe B. Manual de história oral. Sao Paúlo: Loyola, 2002.
NASCIMENTO, Abdias. O genocídio do negro brasileiro: processo de úm
racismo mascarado. 3. ed. Sao Paúlo: Perspectivas, 2016.
OLIVEIRA, Marco Davi. A religião mais negra do Brasil. Múndo Cristao: Sao
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OLIVER, Roland. A Experiência Africana: da pre-historia aos dias atúais.
Agúiar, Renato (tradúçao). de Blais, Paúlo. Jorge Zahar Editor: Rio de Janeiro,
1994.
PORTELLLI, Alessandro. O qúe faz a historia oral diferente. Tradúçao: Maria
Therezinha Janine Ribeiro. Revisao tecnica: Dea Ribeiro Fanelon. In: Proj.
História, Sao Paúlo (14), fev. 1997, p. 25-39.
RUSSO, Kelly e ALMEIDA, Alessandra. Yalorixas e Edúcaçao: Discútindo o
Ensino Religioso nas Escolas. Cadernas de Pesquisa, V. 46, N. 160 p. 466-483
abr./jún. 2016, p. 470.

226
Biografia de Patrícia Helena da Rocha

Licenciada em Pedagogia pela Universidade do Estado do Rio de


Janeiro (UERJ), especialista em Gestao Escolar, pela Escola Súperior de
Planejamento e Gestao (ESPG), mestranda em Historia pela
Universidade Federal do Rio Grande do Súl (UFRGS). Areas de interesse:
edúcaçao, múlher negra e candomble. E-mail:
helenyalves21@yahoo.com.br

227
228
11. A inserção de
escravizados no Maranhão como
estratégia para a defesa do
patrimônio colonial

Roger Neves

A partir da analise das estrútúras do antigo sistema colonial, e


possível estabelecer, por diversos meios, úma relaçao direta entre o
escravismo e o fortalecimento dos impe- rios coloniais. Essa modalidade
de trabalho, alem de súa fúnçao predominantemente economica, como
parte importante da reprodúçao da empresa mercantil, tambem serviú
como meio para a defesa e para a expansao da colonizaçao.
Nesse texto, gostaríamos de investigar úm desses aspectos. Os
escravizados, ao mesmo tempo em qúe foram a base social do
desenvolvimento dos setores de exportaçao ligados ao comercio
internacional, tambem cúmpriram, em diversas conjúntúras, a fúnçao
de legitimar a ocúpaçao do territorio, promovendo diretamente o
aúmento popúlacional.
O Estado portúgúes, pela necessidade de estender súas
conqúistas na America, tornoú-se úm importante agente economico
engajado no trafico transatlantico. Teve atúaçao destacada nas regioes
marginalizadas no processo de colonizaçao, pois múitas delas eram
estrategicamente importantes para o imperio, mas nao atraíam
espontaneamente colonos para seú povoamento.

229
Rojane Brúm Núnes

O Maranhao, pela proximidade com as fronteiras da regiao


norte da colonia e com a parte do Atlantico qúe era freqúentemente
navegada pela França e pela Espanha, enqúadrava-se nesse perfil e
passoú a ter grande relevancia estrategica no imperio portúgúes.
Entretanto, pela dificúldade de se inserir de forma relevante no
comercio colonial, nao fez parte das rotas do trafico transatlantico ate a
segúnda metade do secúlo XVIII.
Uma política mínima de ocúpaçao da regiao começoú somente
no secúlo XVII, ainda na epoca da Uniao Iberica, qúando os franceses
empreenderam súa segúnda ofensiva no Brasil, estabelecendo úma
colonia chamada França Eqúinocial, no ano de 1612, a qúal foi liderada
pelo nobre e general da marinha francesa, Daniel de La Toúche.
Apesar de úma experiencia relativamente cúrta, tendo sido
desarticúlada em 1615, a empreitada francesa serviú para despertar a
atençao das aútoridades metropolitanas para o norte do Brasil. Por
conseqúencia desses eventos, a regiao foi transformada em úma
repartiçao aútonoma, em 13 de júnho de 1621, o Estado do Maranhao.
Em 1654, ele foi renomeado Estado do Maranhao e Grao-Para1
e, pelo seú carater geografico específico e estrategico, foi apartado em
úma únidade administrativa do Estado do Brasil, mas, na pratica, seús
administradores e os das capitanias qúe seriam nele criadas, deveriam
responder diretamente a metropole sem a necessidade de mediaçao
pelo governo-geral, sediado em Salvador.
Alem dessa medida, hoúve úma grande preocúpaçao em
estimúlar súa ocúpaçao. Algúns anos depois da carta regia de criaçao do
Estado, o conqúistador Simao Estacio da Silveira descrevia de forma
positiva a regiao norte do Brasil, a fim de atrair colonos para seú
povoamento.
Seú texto, Relaçao Súmaria das Coúsas do Maranhao,
apresentava carater propagandístico e retratava a posiçao específica do

1
MEIRELES, Mário Martins. História do Maranhão. 2. ed. São Luís: Fundação Cultural do
Maranhão, 1980. 426 p.
230
Diaspora

Para e do Maranhao na conjúntúra da Uniao Iberica2. Segúndo o


historiador Alírio Cardoso, a nova únidade administrativa serviria para
constrúir úma linha de defesa no litoral do norte, para travar o avanço
dos ingleses e holandeses, alem de abrir a possibilidade de integrar
comercialmente as Indias de Castela com o Norte do Brasil, pois, como
súgeriú Simao Estacio, isso poderia ser feito pelo estabelecimento de
úma ligaçao entre Perú e Belem, via Rio Amazonas, objetivando
favorecer o escoamento da prata para a metropole3.
Entretanto, nesse momento o processo de ocúpaçao e
colonizaçao era bastante vagaroso. Jomar Marqúes diz qúe múitos
portúgúeses e açorianos foram motivados a se deslocar para as
conqúistas do norte do Brasil, devido a propaganda calorosa de Simao4,
porem, o dispendio de recúrsos e planejamento para a ocúpaçao, por
parte da coroa Espanhola, ainda era bastante incipiente e, como observa
Capistrano de Abreú, qúando chegaram as pessoas para povoar a regiao,
“Nada encontraram feito para recebe-los, e padeceram as maiores
privaçoes”5. No Maranhao, Jeronimo de Viveiros afirma qúe foi somente
a partir da terceira leva de emigrantes, em 1626, no governo de
Francisco Coelho de Carvalho, qúe a administraçao colonial “procúroú
fúndar a prodúçao da súa nova colonia, para fins comerciais”6.
Isso múdoú apos a restaúraçao da Coroa portúgúesa, úma vez
qúe era imprescindível para Portúgal se estabelecer nas regioes
fronteiriças antes ocúpadas pelos castelhanos. O estado portúgúes,
nesse sentido, foi essencial para indúzir o processo de conqúista

2
SILVEIRA, Simão Estácio da. Relação sumária das cousas do Maranhão (1624). São Luís:
Edições Academia Maranhense de Letras. 2012.

3 CARDOSO, Alírio. A conquista do Maranhão e as disputas atlânticas na geopolítica da


União Ibérica (1596-1626). Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 31, nº 61, p. 317-
338 - 2011
4 SILVEIRA, Simão Estácio da. Relação sumária das cousas do Maranhão (1624). p. 8.
5 ABREU, João Capistrano de. Capítulos de história colonial (1500-1800). Brasília: Conselho

Editorial do Senado Federal, 1998. p. 118


6
VIVEIROS, Jerônimo. História do comércio no Maranhão (1612-1895). 1° Volume. São
Luís: Associação Comercial do Maranhão, 1954. p. 21
231
Rojane Brúm Núnes

territorial, devido a prodúçao economica da regiao ainda ser


completamente marginal.
Rafael Chamboúleyron identificoú, desde 1640, úm
povoamento heterogeneo e diretamente incentivado pela Coroa na
regiao, qúe foi caracterizado pela súbmissao dos grúpos indígenas, no
incentivo da migraçao de portúgúeses e açorianos e na tentativa de
inserçao de africanos escravizados. Esse último meio se apresentava
como alternativo ao úso da mao de obra indígena, pois a estrategia
encontrada pelos jesúítas para súbmeter a popúlaçao nativa ao processo
de colonizaçao ocorreú por meio da evangelizaçao e oposiçao ao
trabalho compúlsorio, concretizando-se por meio da fúndaçao de
diversos aldeamentos qúe ficavam sob tútela religiosa da Companhia de
Jesús.
Nesse sentido, como era preciso encontrar braços para o
trabalho agrícola, esse ficoú por conta dos africanos. Ao contrario da
escravizaçao dos índios, os proprios jesúítas viam essa modalidade de
trabalho de forma positiva: segúndo o padre Antonio Vieira, “como
mostra a experiencia de cada dia neste Estado [do Maranhao], e o
mostroú no do Brasil, onde os moradores núnca tiveram remedio, senao
depois qúe se serviram com escravos de Angola”. Rafael Chamboú-
leyron demonstra qúe nas capitanias do norte se tornoú comúm a ideia
de qúe o Estado do Brasil so havia prosperado devido ao úso de
africanos.
Esse argúmento se tornoú fúndamental para defender o envio
de escravizados para o Estado do Maranhao e Grao Para, difúndindo-se
entre os colonos ao longo do secúlo XVIII, o qúe inflúencioú o processo
de formaçao da Companhia do Grao Para e Maranhao, em 1755, como
analisaremos posteriormente. Entretanto, o historiador afirma qúe por
mais qúe os moradores tomassem o exemplo do Estado do Brasil para
solicitar africanos, as relaçoes estabelecidas nas capitanias do norte
devem ser entendidas para alem da relaçao entre a plantation
açúcareira e a escravidao Africana, pois o trafico negreiro tambem

232
Diaspora

aparecia como úma estrategia para resolver os problemas específicos da


ocúpaçao7.
E sobre essas especificidades qúe gostaríamos de analisar o
papel dos escravizados. No secúlo XVII, os principais esforços da Coroa
para inserir a mao de obra africana na regiao foram pensados sob úma
logica diferente do qúe aqúela qúe visava apenas ao desenvolvimento da
agricúltúra para o comercio colonial, pois essa passoú a ser
sistematizada pela Coroa e pela administraçao colonial somente ao
longo dos anos.
Por oútro lado, as epidemias foram úm dos problemas locais e
atraíram a atençao das aútoridades coloniais para o trafico africano. Elas
dizimavam a maioria dos aldeamentos e intensificavam os conflitos em
torno da escravizaçao dos índios, dificúltando, assim, o processo de
ocúpaçao.
Na mesma epoca em qúe sao registradas as epidemias de
varíola e as diversas mortes, ocorridas entre as decadas de 1660 e 1690,
tambem ocorrem as primeiras tentativas sistematicas de importaçao de
africanos, mais precisamente a partir de decada de 1680, logo apos o rei
proibir a escravizaçao indígena. A Coroa, por meio do Conselho
Ultramarino, tomoú a iniciativa de mobilizar recúrsos para integrar a
mao de obra africana na economia do Maranhao e do Para.
A primeira tentativa foi por meio de úm contrato particúlar
com o comerciante metropolitano Pedralves Caldas, qúe deveria realizar
o comercio com a Angola; a segúnda foi a criaçao de úma companhia
monopolista, liderada por Pascúal Pereira Jansen e oútros socios, cúja
finalidade era traficar africanos da Costa da Gúine. Entretanto, ambas
experiencias nao tiveram exito, a primeira sem motivos aparentes e a
segúnda devido a revolta do Beckman, em 16848.

7 CHAMBOULEYRON, Rafael. Escravos do Atlântico equatorial: tráfico negreiro para o


Estado do Maranhão e Pará (século XVII e início do século XVIII). Revista Brasileira de
História. São Paulo, v. 26, nº 52, p. 79-114, 2006.
8
A revolta do Beckman foi liderada pelos irmãos Manuel e Tomás Beckman contra a
atuação da Companhia de Comércio instituída em 1682. Devido ao monopólio de compra
dos gêneros coloniais e à venda das fazendas da Europa, os opositores reclamavam da
manipulação dos pesos e medidas dos produtos, comercialização de alimentos
233
Rojane Brúm Núnes

Na decada de 1690, a Coroa Portúgúesa tentoú novamente


abordar o problema. A administraçao colonial viú o potencial
economico da venda de escravizados, úma vez qúe seria úm meio viavel
de arrecadaçao fiscal para fortalecer o aparelho militar do Estado.
Inicialmente, esse projeto foi concretizado por incentivo direto do
Conselho Ultramarino, qúe, em 1693, financioú o envio de 139
escravizados para a regiao. Essa leva foi vendida para os colonos do
Maranhao e do Para, rendendo 22 contos de reis para a Fazenda Real.
Oú seja, a Coroa útilizoú o recúrso da mao de obra africana para
solúcionar problemas específicos da ocúpaçao territorial da regiao,
primeiro por úma iniciativa de resolver os conflitos em torno da
escravizaçao indígena e segúndo para promover fúndos para a defesa do
patrimonio colonial9.
Porem, devido ao fato do trafico depender em grande parte das
açoes das institúiçoes metropolitanas, isso nao se consolidoú como úma
experiencia estavel para o desenvolvimento agrícola em si, pois hoúve
apenas importaçoes esporadicas, a partir do final do secúlo XVII. Alem
disso, ja na primeira metade do secúlo XVIII, nao se identificam açoes
relevantes para estimúlar a inserçao de escravizados no Maranhao e no
Para, qúe eram as principais capitanias daqúele Estado.
A falta de mao de obra havia sido úm problema
constantemente relatado pela popúlaçao local e era algo qúe tambem
provocava diversos conflitos com a Companhia de Jesús, úma vez qúe o
domínio temporal dos jesúítas sobre os nativos se mostrava como
obstacúlo para a pratica do trabalho compúlsorio com os mesmos.
Isso múda na conjúntúra da segúnda metade do secúlo XVIII,
pois as lútas pela delimitaçao de fronteiras com imperio espanhol,

deteriorados, prática de preços exorbitantes e o não atendimento das demandas de


inserção de mão de obra africana, o que levou uma parte dos colonos resistirem ao
monopólio da empresa. Sobre a revolta do Beckman, ver: COUTINHO, Milson. A Revolta
de Bequimão. Instituto Geia, 2004. Rafael Chambouleyron. “Duplicados clamores” queixas
e rebeliões na Amazônia colonial (século XVII). Projeto História, São Paulo, n.33, dez. 2006,
p. 159-178.
9
CHAMBOULEYRON, Rafael. Escravos do Atlântico equatorial: tráfico negreiro para o
Estado do Maranhão e Pará (século XVII e início do século XVIII).
234
Diaspora

ocorridas a partir do tratado de Madrid, em 1750, compeliram a Coroa


a lidar com esses problemas. Era preciso empreender esforços para
legitimar os territorios ocúpados no Norte, e fazer valer a vantagem
tirada no artigo III do tratado de Madrid, qúe garantia a “Portúgal túdo
o qúe tem ocúpado pelo rio das Amazonas, oú Maranon, acima e o
terreno de ambas as margens deste rio ate as paragens qúe abaixo se
dirao”.
Por esse motivo, no final do reinado de D. Joao V, a metropole
mobilizoú especialistas para a realizaçao de missoes demarcatorias e
inicioú úma reestrútúraçao administrativa na regiao, cúja primeira
medida foi a múdança da capital, deslocada de Sao Lúís para Belem, em
1751. A nova únidade administrativa foi, entao, denominada de Estado
do Grao-Para e Maranhao10.
Alem disso, como o Estado portúgúes aparecia como o
principal agente economico capaz de indúzir as transformaçoes
estrútúrais na colonia, identificoú-se úma preocúpaçao com o perfil dos
administradores coloniais qúe realizariam as reformas necessarias, pois
a inserçao dos escravizados dependeria do nível do engajamento deles
com o projeto desenhado pela Coroa de legitimaçao de súas conqúistas.
Isso fica bem claro qúando Mendonça Fúrtado e Francisco Vasconcelos
Lobo foram escolhidos para seús postos nas principais capitanias. O
primeiro, como governador do Estado em Belem. O segúndo, do
Maranhao.
Poúco tempo antes de Mendonça Fúrtado se deslocar para o
Brasil, recebeú instrúçoes secretas do secretario Diogo de Mendonça da
Corte Real, as tambem deveriam ser segúidas por Vasconcelos Lobo. As
instrúçoes abordavam os principais problemas locais do Grao-Para e
Maranhao. Destacamos aqúela qúe procúrava estimúlar o trafico,
segúndo a qúal cabia aos governadores levantar informaçoes acerca da

10Segundo Fabiano Vilaça, a escolha de Belém como o novo centro de poder ocorreu para
facilitar a logística da expedição demarcatória, para auxiliar na defesa e no socorro da
região, que futuramente se tornaria a capitania de São José do Rio Negro, e para
estabelecer as bases da ocupação das terras do Cabo do Norte, que eram disputadas com
a França, por meio da fundação da vila e fortaleza de São José de Macapá. SANTOS,
Fabiano Vilaça dos. O governo das conquistas do norte: trajetórias administrativas no
Estado do Grão Pará e Maranhão (1751-1780). p. 41.
235
Rojane Brúm Núnes

qúantidade de escravizados necessarios para as lavoúras, da freqúencia


de importaçao por ano qúe as capitanias precisassem, dos moradores
interessados nesse comercio e sobre a forma de pagamento do
negocio11.
Apesar da necessidade, as açoes para concretizar esse objetivo
nao ocorreram de imediato, sendo desenvolvidas de forma gradúal a
partir do dialogo de Mendonça Fúrtado com os colonos. Com isso, ja no
seú primeiro ano como governador e segúindo as instrúçoes da Coroa,
Fúrtado, na capitania do Para, tentoú reúnir em súa casa os principais
moradores “para conferir com eles tanto o número dos escravos negros
qúe aqúi deveriam entrar, como na forma do pagamento qúe se devia
fazer dos seús preços, e o modo mais súave, e qúe com menos vexaçao e
descomodo se poderiam fazer os pagamentos”.
Porem, nao consegúiú úm acordo entre os colonos, a
jústificativa era a falta recúrsos para dar andamento ao projeto, dado
qúe “como nao tinham senao frútos e estes eram incertos, no ano em
qúe lhes faltassem, perderiam os negros e as fazendas, havendo de fazer
os pagamentos efetivos, e qúe desta sorte vinha a ser o remedio, a súa
total rúína”, por conseqúencia, “viriam a perder o qúe tinham, com execú
çoes”12.
Os convocados pelo governador ainda nao vislúmbravam
meios concretos para fomentar o trafico com a capitania, sobretúdo
porqúe o empreendimento necessitava de úm capital mercantil
significativo e a dinamica economica regional era limitada a
manútençao das trocas locais e de algúmas exportaçoes para Portúgal.
Porem, no Maranhao essa qúestao estava mais avançada. O
primeiro esboço de úma companhia foi apresentado ao governador, ja
em 1752, pela camara de Sao Lúís. Na representaçao, os moradores

11 CARTA RÉGIA (minuta) do rei [D. José] para o governador e capitão-general do Estado do
Pará e Maranhão, Francisco Xavier de Mendonça Furtado, dando instruções e justificando
a necessidade de divisão daquele Estado em dois governos, e informando da nomeação
do tenente coronel Luís de Vasconcelos Lobo como governador e capitão-general da
capitania de São Luís do Maranhão. AHU_CU_013, Cx. 32, D. 3050.
12 MENDONÇA, Marcos Carneiro de. A Amazônia na era pombalina 1751- 1759, tomo I. p.

288-289.

236
Diaspora

propúseram a formaçao de úma companhia qúe troúxesse africanos da


Costa da Gúine em troca de generos locais e qúe tambem permitisse o
trafico para qúalqúer negociante interessado. O pedido da Camara foi
atendido. O governador expos a metropole todos os pontos solicitados e
consegúiú a aútorizaçao para os habitantes do Estado fúndarem úma
companhia monopolista. Entretanto o projeto ainda estava em estagio
inicial e os pontos mais importantes, como a arrecadaçao de fúndos e
seús estatútos, ainda nao haviam sido pensados13.
O assúnto so voltoú a aparecer nas correspondencias, em 1754,
núma carta enviada a Pombal. No docúmento, Xavier volta a relatar os
problemas da falta de mao de obra e do alto preço dos poúcos africanos
qúe vinham de Cabo Verde qúe, pelo preço de mais de 100$000, tornava
o acesso qúase impossível. Para ele, a companhia monopolista poderia
aúmentar o volúme de importaçao de escravizados e resolver esse
problema.
Objetivando concretizar o projeto, ele empreendeú novamente
algúmas tentativas para obter investimentos. A primeira delas, feita com
os homens de negocio de Belem, foi frústrada, pois “se escúsaram de
entrar na sociedade com úns frívolos pretextos”. Ja na segúnda, com os
militares, teve súcesso e, apesar de terem investido úm baixo valor,
inflúenciaram oútros moradores a aderirem ao projeto.
Tambem envioú úma carta ao governador do Maranhao,
Gonçalo Pereira Lobato, para sondar os moradores da capitania a
contribúírem com o projeto. Diferente da súa tentativa, em 1752,
consegúiú úm maior engajamento, úma vez qúe os colonos “ainda qúe
nao esperassem da Companhia lúcro algúm, estavam prontos a cada úm
dar o qúe tivesse para úm estabelecimento com qúe se poderia remir a
S. Maj. úma tao importante conqúista como esta”.
Provavelmente, a ideia da companhia, ao longo de dois anos,
passoú a ser difúndida entre os moradores, qúe começaram a
vislúmbrar súa capacidade para a inserçao de mao de obra africana na
regiao. Segúndo o governador, o resúltado desse contato foi a
arrecadaçao de 32.000 crúzados, valor qúe permitiú esboçar o formato

13
Ibidem. p. 399-400.
237
Rojane Brúm Núnes

de úma companhia por açoes. Cada açao da empresa valeria,


incialmente, cem mil reis, ficando “livre a cada úm entrar com múitas oú
com úma so para facilitar as entradas”14.
Apesar da qúantia arrecadada com os colonos, ele reconhecia
qúe ela era “insignificante para úm objeto tao grande como o de fornecer
este Estado de escravatúra e poderem abranger tambem as minas de
Mato Grosso”. Por isso, solicitoú ao reino qúe fossem convocados todos
interessados da praça de Lisboa e do Porto para entrarem na companhia
e múltiplicarem súas açoes15.
Pombal recebeú o plano com entúsiasmo e começoú a recrútar
comerciantes e pessoas interessadas para investir na empresa. Apos ter
consegúido úm bom engajamento do capital metropolitano e ter tido o
aval do rei, institúiú a Companhia Geral de Comercio do Grao-Para e
Maranhao por meio do alvara regio de 6 de júnho de 175516.
Kenneth Maxwell afirma qúe a criaçao da Companhia foi úma
das atitúdes qúe contribúíram para Portúgal diminúir súa dependencia
economica com o estrangeiro, sobretúdo com os ingleses. Alem do oúro
brasileiro qúe era enviado para a Inglaterra a qúitar os deficits
comerciais, as casas de negocio britanicas faziam negocios em Lisboa e
no Porto e detinham úm significativo controle da cadeia mercantil do
comercio Portúgúes.
Entre essas empresas, vale citar a Bristow, Ward and Co. de
John Bristow, qúe prosperoú com a proeminencia dos prodútos ingleses
no comercio entre Portúgal e Brasil. Essas mercadorias entravam por
meio das importaçoes regúlares: os comerciantes metropolitanos as
enviavam para seús correspondentes nos diferentes portos, oú os
negocios eram realizados pelos proprios negociantes reinois
estabelecidos no Brasil, oú por meio de contrabando com os
“comissarios volantes”, qúe vinham de Portúgal, transportando as

14
Ibidem, tomo II. p. 68-73.
15
Ibidem.
16
REGIMENTO do rei D. José, acerca da instituição da Companhia Geral de Comércio do
Grão-Pará e Maranhão. Lisboa, 6 de junho de 1755 AHU_CU_009, Cx. 36, D. 3549.
238
Diaspora

mercadorias nos navios com falsos motivos e nao pagando fretes,


comissoes, armazenagem e demais cústos17.
A criaçao das Companhias monopolistas e a execúçao de oútras
açoes, como a lei qúe proibia os comissarios volantes, segúndo Kenneth
Maxwell, promoviam a “nacionalizaçao da economia lúso-brasileira”.
Pensando a cúrto prazo, as Companhias, tanto do Grao-Para qúanto de
Pernambúco, retiravam os ingleses de úma parte importante do
comercio colonial, pois o monopolio comercial garantia a metropole o
controle de todos os negocios com as regioes vincúladas as companhias.
Isto e, fixaram os preços de compra e venda dos prodútos, determinaram
a porcentagem de lúcro de todas as transaçoes, limitaram a participaçao
no comercio colonial aos acionistas das companhias e restringiram o
transporte de exportaçao e importaçao dos generos as embarcaçoes da
empresa.
Ja a longo prazo, as companhias, ao concederem privilegios
exclúsivos a úm grúpo de comerciantes portúgúeses, possibilitavam
úma acúmúlaçao de capital nacional súficiente “para competir
efetivamente com o credito estrangeiro em todas as areas do comercio
lúso-brasileiro”18.
Alem da criaçao da Companhia de Comercio, a Coroa precisoú
realizar algúmas medidas para o estímúlo ao trafico. Isso começoú antes
mesmo da atúaçao da empresa, devido a úm dos estatútos da
Companhia qúe concedia a liberdade de estabelecimento dos preços a
Júnta dos administradores, pois havia circúlado no Para a informaçao de
qúe o preço de cada escravizado seria de 150$000 reis, fato qúe
desqúalificava o empreendimento, úma vez qúe a razao de súa
existencia era solúcionar o problema da falta de mao de obra nas
capitanias e o preço elevado manteria limitado o acesso dos moradores
do Para e do Maranhao19.

17 MAXWELL, Kenneth. A devassa da devassa: A Inconfidência Mineira: Brasil-Portugal -


1750-1808. São Paulo: Paz e Terra, 2001. p. 25-29.
18 Ibidem. p. 35
19 DIAS, Manuel Nunes. A Companhia Geral do Grão-Pará e Maranhão (1755-1778). p.

461-467.
239
Rojane Brúm Núnes

Pensando nos cústos qúe poderiam onerar esse trafico, algúns


anos antes a Coroa havia abdicado dos direitos de entrada dos
escravizados para a regiao. Açao qúe se apresentava como úm elemento
importante para o fomento mercantil na regiao amazonica e ponto
crúcial das políticas de desenvolvimento colonial.
Medida qúe súrtiú efeito, pois em 1756 os primeiros 94 cativos
qúe entraram no Para e em Sao Lúís foram vendidos por preços
redúzidos, úma media de 76$000 reis por cada úm, oú seja, qúase
metade do valor previsto. No ano segúinte, esse número saltoú para 371,
vindos, dessa vez, do porto de Angola.
Em 1758, confirmando o súcesso do empreendimento, ja
haviam entrado nos portos de Belem e Sao Lúís 1.109 escravizados de
Cacheú, Bissaú e Angola20. Dez anos depois, o trafico ja havia alcançado
úma notavel estabilidade em ambas capitanias, mantendo-se a úma
media de 1.000 escravizados por ano em cada porto, com exceçao dos
anos de prodútividade excepcional, qúando esse número chegava a
triplicar.
Esse fator foi crúcial para o desenvolvimento de úm setor
exportador de larga escala, permitindo a inserçao da regiao norte na
dinamica economica eúropeia no final do secúlo XVIII e estimúlando a
legitimaçao de úma parte importante do imperio. Alem disso, júnto a
isençao dos direitos de entrada, tambem hoúve a implementaçao de
oútras medidas essenciais para essa estabilidade de importaçao da mao
de obra.
Uma delas foi o controle qúe a CGPM exerceú sob as feitorias
de Cacheú e Bissaú, permitindo qúe a regiao fosse a maior fornecedora
de mao de obra no período da atúaçao da empresa no norte do Brasil.
Oú seja, o trafico com aqúela regiao passoú a ser controlado de forma
predominante pela coroa portúgúesa e por comerciantes
metropolitanos.
A companhia começoú a administrar grande parte das
atividades das feitorias por meio do mesmo modelo de organizaçao ja

20 Ibidem.
240
Diaspora

praticado no Estado do Grao-Para e Maranhao, onde dois feitores em


cada regiao geriam o negocio e respondiam diretamente a Júnta da
Administraçao em Lisboa21.
Basicamente, a rota mais comúm da companhia começava em
Lisboa, com as embarcaçoes carregadas com prodútos adqúiridos na
metropole, como ferro, espingardas, agúardente e tecidos. Em segúida,
fazia-se úma escala obrigatoria em Cabo Verde para aqúisiçao dos panos
da terra. Depois, os navios iam ate Cacheú oú Bissaú, para fazer o resgate
da mao de obra. Dali, as embarcaçoes segúiam para o Para e o Maranhao,
onde os escravizados eram vendidos e os navios carregados com
generos da prodúçao local. Por fim, retornavam para Lisboa.
Algúmas rotas alternativas fúncionaram dúrante esse período:
úma delas era entre Lisboa e Angola, mas dúroú somente de 1756 a
1759, pois a coroa portúgúesa ordenoú súa extinçao, a fim de dar lúgar
ao trafico da companhia de Pernambúco e Paraíba; oútra ia de Lisboa
diretamente para o Para e Maranhao, a fim de vender as mercadorias da
metropole e carregar a prodúçao da terra; e úma, exclúsiva entre Cabo
Verde e Lisboa, destinada ao comercio de Urzela e qúe, na volta, fazia
apenas escala em Portúgal, segúindo para Londres, Marselha, Genova e
Amsterda22 .
Essa organizaçao demonstra qúe havia forte controle do
capital mercantil portúgúes dos negocios com o Maranhao e o Para na
epoca da CGPM. Constataçao tambem feita por Maximiliano M. Menz
sobre a Companhia de Pernambúco e Paraíba. O aútor, ao analisar a
atúaçao da segúnda empresa no trafico de escravos em Angola,
demonstroú qúe 74% do valor dos resgates de escravizados eram
compostos por prodútos importados de Portúgal, contra 20% em

21 Além disso, o contato comercial entre a Costa da Guiné e o Brasil não era novo, já existia
uma rede mercantil estabelecida, porém as relações comerciais e as condições materiais
das feitorias estavam arruinadas, o que mudou no reinado de D. José devido aos
investimentos na região. Diego de Cambraia Martins. O tráfico de escravos nos rios da
Guiné e a di nâmica da economia atlântica portuguesa (1756-1806). Dissertação (mestrado
em História Econômica) – Programa de Pós-Graduação em História Econômica, Faculdade
de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo – USP, 2015. p. 52-70.
22 Antônio Carreira. A Companhia Geral do Grão-Pará e Maranhão: volume 1. São Paulo:

Companhia Editora Nacional, 1988. p. 99.


241
Rojane Brúm Núnes

generos enviados pela administraçao em Pernambúco qúe, por mais qúe


enviasse úm volúme maior de embarcaçoes para os portos africanos,
carregavam valores financeiros bem inferiores23. No Grao-Para e
Maranhao, o controle dos comerciantes portúgúeses era incontestavel,
pois, diferentemente de Pernambúco e Paraíba, nao constam registros
de viagens e envios de prodútos do Maranhao e Para para a Africa. O qúe
predominoú no trafico com a Costa da Gúine foram os panos de algodao
de Cabo Verde e as mercadorias da metropole.
Com o decorrer dos anos, esse sistema passoú a apresentar
algúns problemas, tais como o aúmento dos cústos de transporte.
Algúns conflitos da Companhia com os poderes locais, epidemias e
desastres natúrais em Cabo Verde provocavam a falta de panos de
algodao. Isso se refletia no preço da mao de obra nas praças de Sao Lúís
e Belem. Com o intúito de manter estavel o comercio de escravizados,
Pombal públicoú úm decreto, em júlho de 1773, determinando a
súspençao de “todos os interesses qúe ate aqúi fizeram os negros caros”.
Isto e, a CGPM estava impedida de lúcrar com o trafico,
devendo vender os escravizados pelo “preço do verdadeiro cústo, sem o
menor interesse”, apenas inclúindo valores de direitos de saída dos
portos na Africa e das despesas da viagem24. Como conseqúencia, a
Companhia foi prejúdicada em favor do progresso das lavoúras.
Manúel Núnes Dias, ao fazer úm balanço dos lúcros e prejúízos
da Companhia, demonstroú qúe as perdas eram compensadas com o
comercio dos generos coloniais e com a venda das fazendas de Portúgal,
ponto tambem previsto por Pombal no decreto, ao afirmar: “dos
trabalhos deles (escravizados) tirarao o Estado, e a Companhia múitos
oútros mais solidos e importantes lúcros”25.

23 MENZ, Maximiliano M. A companhia de Pernambuco e Paraíba e o funcionamento do


tráfico de escravos em Angola (1759-1775/80). Afro-Ásia. Universidade Federal da Bahia,
n. 48, p. 45-76, 2013. p.55-56
24 AHMF-CGPM - Registro de leis e ordens régias, n° 83 (de 7-7-1756 a 9-1-1879). Citado

por: Antônio Carreira. A Companhia Geral do Grão-Pará e Maranhão. Volume 2. São Paulo:
Companhia Editora Nacional, 1988.
25 DIAS, Manuel Nunes. A Companhia Geral do Grão-Pará e Maranhão (1755-1778). p. 486.

242
Diaspora

Oútro elemento essencial das políticas de desenvolvimento


colonial, talvez o mais importante para o trafico na regiao amazonica, foi
a concessao de credito para os lavradores. O objetivo era facilitar a
aqúisiçao de escravizados e prodútos da Eúropa com o prazo de úm ano
para o pagamento. Dessa forma, pretendia-se resolver em poúco tempo
o problema da baixa prodútividade agrícola e movimentar o comercio
local.
Com isso, no ato de criaçao da companhia a venda a credito foi
oficializada pelo 23° paragrafo do seú estatúto qúe institúiú, júnto com
o lúcro de 45% nas vendas de fazendas da Eúropa, o acrescimo anúal de
5% de júros de qúalqúer prodúto vendido com prazo aos moradores,
inclúindo os escravizados. Uma grande qúantidade de colonos do
Maranhao e Para teve acesso a esse recúrso, pois, segúndo Antonio
Carreira, hoúve úma concessao indiscriminada e sem criterios a todos
qúe solicitavam adiantamentos26.
Isso ocorreú, de úm lado, pelo empenho da companhia em
aúmentar súas transaçoes comerciais ja nos primeiros anos de súa
atúaçao, e de oútro, por interesse pessoal dos administradores locais
qúe recebiam súa remúneraçao baseada no giro mercantil, oú seja, 6%
em todos os negocios realizados.
Algúns deles tambem obtinham diversos benefícios de forma
ilícita, fraúdando a contabilidade, inclúindo valores e júros indevidos
nas contas, deixando de debitar as mercadorias dos emprestimos, nao
enviando listas anúais dos devedores e fornecendo emprestimos
desproporcionais a moradores qúe nao prodúziam27.
No final, ficaram grandes dívidas para a Companhia e os mais
privilegiados com a concessao indiscriminada de credito foram os
comissarios locais, prodútores e comerciantes das capitanias do Para e
do Maranhao, pois, na pratica, nao pagaram súas dívidas e nao tiveram
súas propriedades execútadas28.

26 REGIMENTO do rei D. José, acerca da instituição da Companhia Geral de Comércio do


Grão-Pará e Maranhão.
27 CARREIRA, Antônio. A Companhia Geral do Grão-Pará e Maranhão. Volume 1. p. 284.
28 Ibidem.

243
Rojane Brúm Núnes

Qúando o monopolio da empresa se encerra, em 1777, o


credito foi úm dos mecanismos de fomento mercantil mais reqúerido
para a manútençao do trafico e da prodúçao agrícola, sendo úm dos
pilares do comercio e úm dos meios importantes para resolver o
problema da escassez de moeda metalica na epoca29.
Como o trafico pos-companhia foi organizado de forma
heterogenea, por meio de atúaçoes individúais e na concessao de
contratos como o de Cacheú, a Coroa forneceú emprestimos ao
Maranhao júnto a comerciantes metropolitanos para viabilizar a
continúidade das importaçoes de escravizados.
Em úma carta enviada a Martinho de Melo e Castro, em 1794,
o governador D. Fernando Antonio de Noronha relatoú a existencia de
úm “corpo de comercio” da capitania qúe se mostrava como súcessor da
Companhia de Comercio, por ter realizado adiantamentos aos colonos
de “somas necessarias” para a compra de “escravos, ferramentas,
viveres, vestiarios, e oútras comodidades”. O qúe súrpreende e a qúantia
elevada de 1.255:600$382 reis, distribúídos para úm peqúeno grúpo de
41 moradores – úm padrao de endividamento diferente daqúele
realizado sem criterios pela CGPM, pois, segúndo o docúmento, a
concessao do credito se baseoú na “confiança pública” do corpo de
comercio da capitania em relaçao aqúeles homens.
Na lista dos devedores e possível identificar diversos nomes de
lavradores e comerciantes qúe gozavam de posiçoes importantes na
capitania. Esse docúmento tambem indica úma continúidade do
controle metropolitano sobre o trafico com o Maranhao, pois a maioria
desses valores foram concedidos por meio de fretes em navios da extinta
Companhia e de comerciantes de Portúgal.
Segúndo Carreira, apos a extinçao do monopolio da CGPM, o
qúe caracterizoú o comercio de escravizados foi a volta do sistema de
traficantes, “com cada úm fazendo o qúe podia e como podia”30. Na lista
de devedores com o corpo de comercio, os nomes mais recorrentes eram

29 SAMPAIO, Antonio Carlos Jucá de. Crédito e Circulação monetária na Colônia: o caso
fluminense, 1650-1750. Anais do V Congresso Brasileiro de História Econômica, Caxambu:
ABPHE, 2003. p. 15.
30 CARREIRA, Antônio. A Companhia Geral do Grão-Pará e Maranhão. Volume 1. p. 115.

244
Diaspora

os de comerciantes do Maranhao proprietarios de carga de navios


provenientes de Bissaú, Cacheú e Angola, como segúe na Tabela 1.

Fonte: AHU_CU_009, Cx. 84, D709331. Tabela elaborada pelo aútor.

Conclusão

Realizando úm balanço geral desse processo historico, e


possível verificar qúe essas açoes lideradas pela Coroa foram eficazes
para o aúmento demografico, estimúlando a ocúpaçao territorial,
especialmente, em regioes estrategicas. Inclúsive, hoúve a concretizaçao
dos planos de Mendonça Fúrtado para enviar escravizados
comercializados pela Companhia para o Mato Grosso, na regiao de Vila
Bela, qúe fazia fronteira com o imperio espanhol. Enviaram-se diversos
generos da Eúropa e escravizados para o Maro Grosso, constitúindo
relaçoes comerciais entre a Companhia e os homens de negocio qúe
atúavam em Vila Bela .
Alem disso, no Maranhao, por conta da importancia qúe o
trafico ganhoú, hoúve úma múdança significativa no qúadro
demografico da regiao, pois, entre o período de 1755 e 1808, foram

31 OFÍCIO do governador e capitão-general do Maranhão, D. Fernando António de


Noronha, para o secretário de Estado da Marinha e Ultramar, Martinho de Melo e Castro,
sobre as actividades do corpo do comércio daquela capitania, o orçamento para o cultivo
das terras, a compra de escravos, ferramentas, víveres, vestiário e outras comodidades; o
valor das dívidas à Fazenda Real; a solicitação de um código municipal para combater as
injustiças, violências e a continuação das obras públicas. Maranhão, 13 de junho de 1794.
245
Rojane Brúm Núnes

enviados mais de 63.000 escravizados. Isso foi descrito por Antonio


Bernardino Pereira do Lago, qúe compiloú diversos dados e mostroú
qúe, em 1821, do total de úma popúlaçao de 152.893 almas, 44,7%
(68.359) eram homens livres e 55,3% (84,534) eram cativos pretos e
múlatos. O Maranhao do início do secúlo XIX súperava todas as oútras
regioes na proporçao de escravizados.
Na província, entao, foi consolidado o modelo economico da
grande lavoúra escravista qúe caracterizoú a formaçao social brasileira.
Neste caso, dependente, sobretúdo, da prodúçao de algodao para súa
reprodúçao. Como consta nos dados de Lago, as dúas regioes mais
popúlosas, Caxias (16.513 habitantes) e o Itapecúrú Mirim (14.364),
eram as maiores prodútoras de algodao do Maranhao, segúidas pelas
fregúesias de Gúimaraes (13.782) e Alcantara (12.904), de onde
tambem se exportava úma grande qúantidade de arroz.
Segúndo Caio Prado Júnior, o “algodao, apesar de branco,
tornara preto o Maranhao”. E os escravizados, para alem de seú papel
efetivo no desenvolvimento agrícola, tambem garantiram a ocúpaçao de
regioes inospitas oú qúe tinham úma popúlaçao rarefeita, resolvendo
em parte o problema dos conflitos com os grúpos indígenas.

Referências

ABREU, Joao Capistrano de. Capítulos de história colonial (1500-1800).


Brasília: Conselho Editorial do Senado Federal, 1998
ARRUDA, Jose Jobson de Andrade. O Brasil no comércio colonial. Sao Paúlo:
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Sao Paúlo, v. 31, nº 61, p. 317- 338, 2011.
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1. Sao Paúlo: Companhia Editora Nacional, 1988.
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para o Estado do Maranhao e Para (secúlo XVII e início do secúlo XVIII).
Revista Brasileira de História. Sao Paúlo, v. 26, nº 52, p. 79-114, 2006.

246
Diaspora

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Maranhao (1755 - 1778). Belem: Ed. da UFPA, 1970.
MAXWELL, Kenneth. A devassa da devassa: A Inconfidencia Mineira: Brasil-
Portúgal - 1750-1808. Sao Paúlo: Paz e Terra, 2001.
MEIRELES, Mario Martins. História do Maranhão. 2. ed. Sao Lúís: Fúndaçao
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MENDONÇA, Marcos Carneiro de. A Amazônia na era pombalina 1751-
1759, tomo I.
MENZ, Maximiliano M. A companhia de Pernambúco e Paraíba e o
fúncionamento do trafico de escravos em Angola (1759-1775/80). Afro-Ásia.
Universidade Federal da Bahia, n. 48, p. 45-76, 2013.
SAMPAIO, Antonio Carlos Júca de. Credito e Circúlaçao monetaria na Colonia:
o caso flúminense, 1650-1750. Anais do V Congresso Brasileiro de Historia
Economica, Caxambú: ABPHE, 2003. p. 15.
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administrativas no Estado do Grao Para e Maranhao (1751-1780). Tese
(Doútorado em Historia Social) – Programa de Pos-Gradúaçao em Historia
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SILVEIRA, Simao Estacio da. Relação sumária das cousas do Maranhão
(1624). Sao Lúís: Ediçoes Academia Maranhense de Letras. 2012.
VIVEIROS, Jeronimo. História do comércio no Maranhão (1612-1895). 1°
Volúme. Sao Lúís: Associaçao Comercial do Maranhao, 1954.

247
Biografia de Roger Neves Dezuani

Licenciado em Historia pelas Universidades Metropolitanas


Unidas e mestre em Historia Economica pela Universidade de Sao Paúlo.
Professor da rede pública de ensino da cidade de Ferraz de Vasconcelos
e pesqúisador no grúpo Antigo Sistema Colonial, Estrútúra e Dinamica,
na cidade de Sao Paúlo. Areas de interesse: Historia Economica e
Historia do Pensamento Economico. E-mail:
dezúaniroger93@gmail.com

248
249
12. Notas sobre uma
Pedagogia Antirracista na Escola
Estadual de Ensino Médio Nossa
Senhora de Lourdes e no Instituto
Estadual de Educação Assis Brasil,
Pelotas, RS

Rojane Brum Nunes

A densidade crítico-reflexiva atraves de úma lingúagem


acessível, com a qúal a filosofa e militante negra Djamila Ribeiro aborda
o racismo estrútúral, explicam em grande medida, o alcance das súas
obras entre diferentes públicos, sensibilizando-os para a lúta
antirracista.
No semestre 2020/02, o livro “Peqúeno Manúal Antirracista”
(Ribeiro, 2019) constoú como úma das leitúras obrigatorias na
disciplina Historia e Cúltúra Afro-brasileira e Indígena qúe ministrei no
cúrso de Licenciatúra em Edúcaçao do Campo, da Universidade Aberta
do Brasil/Universidade Federal de Santa Maria (UAB/UFSM). Alem
disso, a referida obra veio a súbsidiar os planos de aúla desenvolvidos
nos estagios dos discentes, cújo enfoqúe era trabalhar a Lei nº
11.645/2008 em sala de aúla.
No entanto, foi no Ensino Presencial, entre alúnos e alúnas do
Ensino Medio do Institúto Estadúal de Edúcaçao Assis Brasil (IEEAB) e

251
Rojane Brúm Núnes

da Escola Estadúal de Ensino Medio Nossa Senhora de Loúrdes (EEEM),


localizadas no múnicípio de Pelotas, qúe se efetivoú úma leitúra mais
aprofúndada do “Peqúeno Manúal Antirracista”.
A problematizaçao das ideias trazidas pela aútora ocasionoú
debates relevantes acerca do ensino das africanidades, dos processos de
invisibilizaçao da popúlaçao negra e das formas de combater o racismo
estrútúral e institúcional no contexto da sala de aúla, e mais
especificamente, na Edúcaçao Basica.
A obra foi lida pelos(as) discentes na forma de seminarios,
configúrando rodas de conversa qúe possibilitaram a dialogicidade
entre os(as) alúnos(as) e a professora, dúrante o ano de 2022, no ambito
da disciplina de Sociologia, júnto a túrmas do 2º ano do Ensino Medio
diúrno do IEEAB e túrmas do 3º ano notúrno da EEEM Nossa Senhora
de Loúrdes.
Em relaçao ao múnicípio de Pelotas, cabe destacar os seús
fortes víncúlos com o processo de escravizaçao, sobretúdo, a partir do
seú protagonismo economico no ciclo do charqúe, cújo povoamento foi
motivado pela búsca de úma boa localizaçao para a atividade
charqúeadora. Nesse contexto, por volta de 1870, existiram em Pelotas,
cerca de qúarenta charqúeadas, com emprego de trabalhadores
escravizados qúe oscilava de no mínimo 21 a no maximo 127 pessoas
por charqúeada (Loner, 1999).
De acordo com Rúas (2019), o progresso tecnico da prodúçao
do charqúe, a indústrializaçao da cidade e a aboliçao dos escravos sao
transformaçoes qúe vao impor úma nova estrútúra social, caracterizada
pela segregaçao socioespacial qúe condicionoú negros e pobres a
habitarem as varzeas do arroio Santa Barbara e do Canal Sao Gonçalo.
Assim sendo, forma-se úma classe súbalterna, garantindo a
“continúidade do processo de dominaçao sobre o negro” de modo qúe
“em Pelotas, dúrante anos existiú úm sistema voltado a desvalorizar a
cúltúra afro-brasileira, núma tentativa de apagar esse passado
escravocrata (Rúas, 2019, p. 152).
Os reflexos dessa segregaçao sao visíveis nos corpos negros de
jovens qúe habitam as periferias da cidade e qúe freqúentam as escolas
252
Diaspora

públicas da cidade, revelando a inter-seccionalidade entre etnia e classe


e denúnciando qúe a desigúaldade socio-economica qúe caracteriza e
assola o nosso país tem úm vies etnico-cúltúral.
Revisitaremos a segúir algúns dos dialogos realizados nas
rodas de conversa qúe tiveram como súbsídio teorico inicial o livro
Peqúeno Manúal Antirracista (Ribeiro, 2019). As falas foram registradas
em diarios de campo e retomadas atraves da realizaçao de entrevistas,
cúja públicizaçao foi aútorizada pelos(as) alúnos(as).

1. Lugares de fala e lugares de escuta: diálogo intercultural entre


negros(as) e brancos(as)

A definiçao de racismo estrútúral, realizada pelo intelectúal


negro Sílvio de Almeida, trazida nos primeiros capítúlos da obra, foi
amplamente discútida pelos(as) discentes e exemplificada a partir das
súas vivencias. Retomemos, portanto, a definiçao do aútor:

Consciente de qúe o racismo e parte da estrútúra


social e, por isso, nao necessita de intençao para
se manifestar, por mais qúe calar-se diante do
racismo nao faça do indivídúo moral e/oú
júridicamente cúlpado oú responsavel,
certamente o silencio o torna etica e
politicamente responsavel pela manútençao do
racismo. A múdança da sociedade nao se faz
apenas com denúncias oú com o repúdio moral
do racismo: depende, antes de túdo, da tomada
de postúras e da adoçao de praticas antirracistas
(Almeida apúd Ribeiro, 2019, p. 07).
As consideraçoes da alúna Fernanda Tavares vao ao encontro
dessas postúras e praticas antirracistas, sobretúdo qúando ela
qúestiona e partilha com o grande grúpo, as súas proprias formas de
pensar e agir:

Professora, ontem eu estava andando na rua com


uma amiga e já estava anoitecendo... Vinha um
253
Rojane Brúm Núnes

homem do outro lado, meio cambaleante. Ficamos


com medo e atravessamos. Eu nem vi direito a cor
da pele dele. Mas fiquei me perguntando e
lembrando do que conversamos sobre o racismo
estrutural em suas aulas... E me perguntei: será
que teríamos a mesma reação se fosse um homem
branco e bem vestido? O racismo está no nosso
inconsciente quando achamos que uma pessoa
branca correndo, não parece algo suspeito, mas
quando uma pessoa preta faz a mesma ação, ele é
um ladrão. O racismo está no nosso inconsciente
quando do outro lado da calçada uma pessoa
branca passa, não sentimos medo, mas quando
uma pessoa preta faz o mesmo, sentimos que algo
possa nos acontecer, algo de ruim. O racismo está
no nosso inconsciente quando, se uma pessoa
branca está com algum objeto na mão, aquilo não
passa de um objeto, mas quando uma pessoa preta
está segurando algo, até mesmo que possa ser o
seu próprio celular, é considerado como arma, e
resulta até muitas vezes na morte dessa pessoa.
Muitas formas de combater o racismo foram
feitas, e são usadas hoje em filmes, documentários,
em palestras e livros como esse que estamos lendo
aqui na escola, mostrando e ensinando que
racismo é crime. Mas ele também vem das famílias
que empregam pensamentos nas crianças que
ainda estão aprendendo o que é certo e errado
(Fernanda Tavares, Trecho de Entrevista, junho de
2022).
A aútocriticidade e a reflexividade da alúna sobre os privilegios
da branqúitúde e os estigmas da negritúde, reiteram a ocorrencia do
racismo estrútúral nas formas de agir e vivenciar o cotidiano, bem como
na esfera familiar.
Por oútro lado, revelam qúe a conscientizaçao e a
problematizaçao acerca da súa existencia, atraves de mediaçoes
pedagogicas antirracistas oportúnizam momentos de dialogo e reflexao
necessarios ao combate do racismo estrútúral. No qúe se refere a

254
Diaspora

importancia do cotidiano, aqúi pensada em termos do cotidiano escolar,


Ribeiro (2019), destaca qúe:

Movimentos de pessoas negras ha anos debatem


o racismo como estrútúra fúndamental das
relaçoes sociais, criando desigúaldades e
abismos. O racismo e, portanto, úm sistema de
opressao qúe nega direitos, e nao úm simples ato
da vontade de úm indivídúo. Reconhecer o
carater estrútúral do racismo pode ser
paralisante. Afinal, como enfrentar úm monstro
tao grande? No entanto, nao devemos nos
intimidar. A pratica antirracista e úrgente e se da
nas atitúdes mais cotidianas (Ribeiro, 2019, p. 7).

Os atribútos fenotípicos da pessoa negra, foram


problematizados ao longo dos seminarios, atraves da ressignificaçao de
praticas qúe afetam a aútoestima e a súbjetividade da popúlaçao negra.
Acerca, disso a alúna acima referida, qúe se aútoidentifica como branca,
fez as segúintes reflexoes:

Além de ações, sentimentos, pensamentos, tem as


“piadas” racistas. Elas ocorrem diariamente. Essas
“piadas”, usadas como ofensa contra essas pessoas,
são muitas das vezes, se não em todas elas, feitas
por pessoas que além de ter o racismo empregado
no inconsciente, está ainda mais presente no
CONSCIENTE, essas falas de mau gosto sã feitas de
propósito, usadas para atingir, ou de alguma
forma diminuir uma pessoa preta.
Por súa vez, a alúna Marina Campelo, qúe se aútoidentifica
como negra, fez o segúinte depoimento:

Durante muito tempo, nós mulheres negras,


alisamos os cabelos, para sermos aceitas e estar
dentro dos padrões de beleza das mulheres
brancas. Depois de muito tempo eu aceitei o meu
cabelo e parei de alisar. Deixei ele ficar crespo.
Agora deixei ele liso de novo, mas eu aliso o meu
255
Rojane Brúm Núnes

cabelo porque eu quero. Porque eu gosto mais. É


uma opção minha. Eu posso usar o meu cabelo
como eu quiser, crespo ou liso. Eu que tenho que
me gostar e os outros terão que me aceitar e me
respeitar do jeito que eu sou (Excerto de diário de
campo, julho de 2022).
O lúgar de fala da alúna aponta aspectos em torno da
constrúçao do seú pertencimento e da súa afirmaçao etnica enqúanto
úma múlher negra, libertando-se dos mecanismos de opressao da
branqúitúde em relaçao a súa corporalidade. Por súa vez, os
qúestionamentos abaixo, recordam-nos das implicaçoes desses
mecanismos opressivos na súbjetivi- dade e na aútoestima da pessoa
negra:

Como uma pessoa preta sentirá que pode se


orgulhar de sua cor, da sua essência, dos seus
antepassados? Muitas das vezes para se sentirem
mais aceitas, elas tentam se encaixar de alguma
forma, mudando cabelo talvez, pois muita das
vezes o cabelo do preto é considerado como “ruim”,
”feio”, para talvez não escutar esses xingamentos,
essas ofensas, elas mudam, durante muito tempo.
Antes não existia sequer produtos específicos para
o cabelo afro, esses produtos foram criados de uns
anos pra cá. (Fernada Tavares, trecho de
entrevista, outubro de 2022).
Uma oútra qúestao abordada pelos(as) discentes foi a
aplicabilidade da categoria classificatoria “pardo”, útilizada em orgaos
institúcionais oficiais, como o Institúto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE).
As consideraçoes feitas pelo alúno Joao Vítor Machado da Costa
sao relevantes para pensarmos sobre os significados e pertencimentos
a essa categoria etnica:

No meu debate, além do livro da Djamila, eu usei


como grande maioria de base a cultura negra e
como ela mudou minha forma de pensar, agir, o
meu jeito de se vestir e até minha

256
Diaspora

personalidade.Tudo que eu sei basicamente, e que


prego, vem da música e de figuras importantes
para a nossa luta. Mas em específico uma música
mudou minha forma de pensar como um todo
sobre mim e minha negritude a música “Eu vim de
lá” do artista Kyan e hoje eu sou eternamente
grato por ouvir essa música e reconhecer quem eu
vejo como os meus nesse caso os negros e como eu
carrego comigo isso diariamente outros artistas
que me influenciaram foram Djonga e Racionais
Mc’s. Eu sempre me vi como negro e eles só
intensificaram minha vontade de lutar pelos meus
e ajudar quem é semelhante a mim. Por muito
tempo fui chamado de “pardo” e pra mim essa
raça não existe sou negro e ponto me vejo assim e
sempre me verei. (Trecho de entrevista, outubro de
2022).
As consideraçoes críticas do alúno a categoria pardo, vao ao
encontro das reflexoes do antropologo Joao Pacheco de Oliveira (1997)
qúando ele pontúa qúe:

A categoria censitaria de “pardo” parece ser o


canal por onde navega essa problematica,
atendendo a úma clara intencionalidade social.
Ao se súbstitúir os úsos e costúmes correntes na
sociedade brasileira por úma categoria
operacional – artificial, arbitraria e de aparencia
tecnico-científica –, na realidade se esta
inviabilizando o censo como instrúmento para
úma analise sociologica mais fina e
transformando-o em úm docil legitimador do
discúrso da mestiçagem. Como sústentacúlo de
úm inqúerito científico, tal categoria revela-se
improdútiva e enganadora, pois súbsúme de úm
modo indiferenciado – e nao permite distingúi-
las depois – as categorias etnicas efetivamente
útilizadas pela popúlaçao brasileira em súas
delimitaçoes identitarias e no estabelecimento
de estrategias e calcúlos para as súas
performances sociais (Oliveira, 1997, p. 65).

257
Rojane Brúm Núnes

Por súa vez, a alúna Isadora Rodrigúes Tabeliao, relata, atraves


das memorias de resistencia e de pertencimento etnico narradas pela
súa mae, o racismo institúcional qúe sofrera logo apos o seú nascimento:

Quando eu nasci, minha mãe ficou incomodada


com a raça parda que tinham botado na minha
Declaração de Nascido Vivo, pois querendo ou não
para ela é uma forma que usaram para me
embranquecer, porém desde quando eu era
pequena ela sempre dizia:` Pardo é cor de papel e
urso, filha minha é preta! (Trecho da entrevista,
outubro de 2022).
Tais formas de desúmanizaçao e de negaçao da alteridade do
oútro, tambem foram problematizadas na abordagem do processo de
escravizaçao no Brasil e das formas contemporaneas de trabalho
escravo.
A partir disso, assinaloú-se as relaçoes do processo de
escravizaçao com a figúra da empregada domestica na sociedade
brasileira, na medida em qúe ha úma predominancia de múlheres
negras nessa profissao, desvelando interseccionalidades entre raça,
genero e classe social.
Nessa ocasiao, úm alúno qúe se aútodefine como “preto”,
compartilhoú a constataçao qúe fizera a partir dos temas discútidos:

Bah, profe, é mesmo! A maioria das empregadas


domésticas são negras. A minha avó e as minhas
tias, que são mulheres pretas, foram empregadas
domésticas e faxineiras a vida inteira. A única que
estudou e não está trabalhando nisso é a minha
mãe! (Excerto de diário de campo, jul. 2022).
Haja vista, o lamentavel fato de qúe a primeira morte por
Covid-19 no Rio de Janeiro foi de úma empregada domestica, negra e
idosa, infectada pela patroa de classe media alta, recem-chegada da
Italia, e mais úma denúncia da vúlnerabilidade e exclúsao socio-
economica em qúe essas múlheres se encontram, tal como nos recorda
a jornalista Eliane Brúm (2020).

258
Diaspora

Por oútro lado, úm aspecto qúe foi recorrente nas falas dos(as)
discentes qúe se aútoidentificaram como negros(as) e/oú pretos(as) foi
o da apropriaçao cúltúral, conforme enfatizado no comentario do alúno
Joao Vítor Machado da Costa:

Outro ponto que eu quero falar é sobre o estilo na


cultura negra e como ele me influencia. Nosso
estilo vai do cabelo a nossa meia e hoje em dia
estilo é tudo os maiores nomes da moda são negros
e poucas pessoas reconhecem isso Jaden Smith,
que praticamente foi um revolucionário na moda
sem gênero e também Pharrell Willians também
posso citar Virgil Abloh que era diretor artístico de
ves- tuário masculino da Louis Vuitton e também
criador da Off White marca gigante entre a
cultura negra. O que eu quero dizer com isso é que
muitas vezes não somos reconhecidos por causa
da nossa cor e também como as pess as achavam
feio nosso estilo e até marginalizavam e hoje todo
mundo quer ter um pedaço disso até se
apropriando de certas coisas como durags,
tranças e qualquer outras coisas da nossa cultura
a pergunta que fica é por que eles achavam feio
quando só a gente usava e hoje querem ter nosso
estilo? (Trecho de entrevista, outubro de 2022).
No decorrer da fala acima, úm alúno qúe se definira como
branco, revida qúestionando “se for assim, entao somente as pessoas
negras podem úsar tranças no cabelo? ”
Por súa vez, úma alúna negra soma-se ao dialogo explicando
qúe:

As tranças têm todo um significado para nós


negros e principalmente para as mulheres negras.
Eu aprendi esses dias que tem a ver com a nossa
resistência e a nossa ancestralidade. Não é que
não possam ser usadas pelos brancos. A questão é
que vocês têm que usar conhecendo esse
significado e lutarem junto com a gente contra o
racismo. Não é só usar o que tem de bonito na

259
Rojane Brúm Núnes

cultura negra e continuarem nos discriminando.


(Marina Campelo, trecho de diário de Campo,
julho de 2022).
Nesse sentido, convem destacar as consideraçoes de Ribeiro
(2019) sobre a apropriaçao cúltúral, tomando como exemplo o úso de
túrbantes pelas múlheres brancas:

[...] O debate sobre apropriaçao cúltúral nao deve


ser redúzido a poder oú nao úsar túrbante. A
discússao pertinente e aqúela qúe denúncia o
qúanto cúltúras negras e indígenas foram
expropriadas e apropriadas historicamente. Nos
processos de colonizaçao, a visao de cúltúra do
colonizador foi imposta, enqúanto bens cúltúrais
eram saqúeados. Um exemplo disso sao as
coleçoes dos principais múseús da Eúropa, onde
hoje se encontram objetos de diferentes países
africanos, asiaticos e americanos—peças qúe,
com certeza, devem significar múito para essas
cúltúras. A qúestao crúcial desse debate e qúe o
interesse pela cúltúra de certos povos nao
caminha lado a lado com o desejo de restitúir a
húmanidade de grúpos oprimidos. Assim, múitas
pessoas qúe consomem cúltúra negra nao se
preocúpam com as mazelas qúe a popúlaçao
negra vive no país (2019, p. 70-71).
Um aspecto qúe merece ser pontúado, a partir das mediaçoes
pedagogicas antirracistas realizadas, e o desafio em nao redúzir o
ensino das africanidades e as praticas pedagogicas antirracistas as
mazelas e atrocidades do processo de escravizaçao.
A fala de Ribeiro (2019) e novamente ilústrativa nesse sentido,
qúando ela conta qúe apesar de ser filha de militantes negros, o qúe
chegava ao seú úniverso era o fato de qúe as pessoas negras apenas
tinham sido escravas, como se nao hoúvesse historia antes e apos disso.
Tal perspectiva, segúndo ela, contribúi para qúe a historia seja contada
apenas pelo vies do branco, desconsiderando a resistencia negra, bem
como a riqúeza, alegria e vivacidade das súas expressoes e
manifestaçoes cúltúrais.

260
Diaspora

Certa manha, a alegria de úma alúna qúe se define como ‘preta”,


apos ir ao show do grúpo músical Raça Negra, atentoú-me para esse
aspecto. Na ocasiao, ela cantarolava a música “Cheia de Manias”, cúja
melodia dançante tornoú-a úm hit nacional.
Ao perceber qúe eú escútava o seú canto, ela me disse:
“Professora, eu estou feliz assim porque eu conheci o preto mais lindo do
mundo. Ele é lindo! Cantou com aquela alegria toda. É que ele é preto,
né?!? Alegria de preto é outra coisa!”
Solicitei-lhe entao, qúe me explicasse o significado dessa
alegria. Ela respondeú-me com úm olhar altivo e sorridente, qúe desde
ja demonstroú seú orgúlho em ser “preta”: Ah, profe, é a alegria da
negritude! Apesar de tudo o que nos fazem, a gente não se entrega e resiste
sendo feliz.

Considerações finais

As mediaçoes pedagogicas em prol do combate e erradicaçao


do racismo estrútúral, súbsidiadas pela leitúra do Peqúeno Manúal
Antirracista entre alúnos(as) do Ensino Medio, em Pelotas (RS), qúe se
aútodefiniram como negros(as), pretos (as) e brancos(as),
demonstraram a possibilidade e a importancia do dialogo intercúltúral
em prol da lúta antirracista.
Atraves da leitúra de úma aútora negra, os(as) discentes
expressaram as súas opinioes e lançaram os seús qúestionamentos, a
partir dos seús diferentes “lúgares de fala”, demonstrando a importancia
da fala e da escúta como ferramentas inclúsivas, emancipatorias e
transformadoras.
Destaca-se, por fim qúe a dimensao identitaria desvelada no
ato de narrar, nos termos de úma identidade narrativa, como ensina-nos
Paúl Ricoeúr (1996), foi perceptível na configúraçao de úma identidade
e pertencimento etnico a negritúde, entre algúns alúnos qúe
inicialmente, definiram-se como “pardos” e ao final da leitúra e
discússao do livro, passaram a se aútoidentificar como negros.
261
Rojane Brúm Núnes

Recordemos novamente de Ribeiro (2019), qúando ela atenta-


nos qúe nao basta dizer qúe nao somos racistas, pois a qúestao e o qúe
se esta fazendo ativamente para combater o racismo.
As falas e as narrativas enúnciadass pelos(as) alúnos(as)
ilústram açoes nesse sentido, enfatizando o qúanto e úrgente e
necessario qúe a escola seja úm lúgar de conscientizaçao e
operacionalizaçao da lúta antirracista. Alem disso, ela deve ser ainda,
úm espaço de acolhimento e de escúta sensível, tendo em vista qúe
múitos deles(as) e seús familiares sao vítimas reincidentes do racismo
estrútúral e institúcional.
Prova disso, e o depoimento da alúna Laiza Ribeiro dos Santos
Dútra, da Escola de Ensino Medio Nossa Senhora de Loúrdes, com o qúal
finalizaremos esse texto:

Um dia desses eu estava na escola e dias antes,


minha mãe passou por uma situação de racismo
na médica que atendeu ela. E então me deparei
com a professora falando sobre racismo, então
resolvi conversar com ela, porque dificilmente
uma professora ou a escola aborda esse assunto.
Passei por isso com a minha mãe e sei o quão
importante é falar e saber abordar, pois a maioria
das pessoas ficam sem reação. Depois da aula eu
consegui conversar com a minha mãe e auxiliar
ela nesse trauma que ela teve e principalmente na
identificação que realmente ela foi mais uma
vítima. Importante mais ainda ter uma professora
que aborde esse tema dificilmente abordado em
escolas e que é visto pela sociedade apenas quando
acontece uma forma trágica. (Trecho de
entrevista, out. de 2022).
Infelizmente o racismo estrútúral ainda faz parte do cotidiano
de milhares de homens e múlheres negras em nosso país, violentando
os seús corpos e estraçalhando as súas identidades, desde a infancia ate
a júventúde.

262
Diaspora

O depoimento acima convoca-nos úrgentemente a lúta


antirracista e ao fato de qúe ela deve ser úma constante nos cúrrícúlos
escolares e estar na paúta de todos(as) nos, ocúpando todos os espaços
possíveis em prol de úma sociedade inclúsiva e intercúltúral, capaz de
garantir a dignidade húmana e o respeito a alteridade.

Referências

BRUM, E. A pandemia expôs o apartheid não oficial do Brasil em toda a


sua brutalidade. Entrevista com Eliane Brúm. Portal Geledes, 3 maio 2020.
Disponível em: https:// www.geledes.org.br/a-pandemia-expos-o-apartheid-
nao-o- ficial-do-brasil-em-toda-a-súa-brútalidade-entrevista-com. Acesso em:
15 ago. 2022.
EVARISTO, Conceiçao. Becos da memória. Belo Horizonte: Mazza, 2006.
LONER, Beatriz Ana. Negros: organizaçao e lúta em Pelotas. História em
revista. Pelotas: UFPel, v.5, dezembro de 1999, p. 07-27.
OLIVERA, Joao Pacheco de. Pardos, Mestiços oú Caboclos: Os Indios nos
Censos Nacionais no Brasil (1872-1980). Horizontes Antropológicos
[online], v. 3, n. 6, 1997. Disponível em:
https://www.scielo.br/j/ha/a/fh9cpRfmbxt4QNkmvn- Zyffg/?lang=pt. Acesso
em: 15 ago. 2022
RIBEIRO, Djamila. Pequeno Manual Antirracista. Sao Paúlo: Cia das Letras,
2019.
RICOEUR, Paúl. Sí mismo como outro. Mexico: Siglo XXI, 1996.
RUAS, Keli S. Territórios e representações sociais em tensão na orla da
Laguna dos Patos, Pelotas-RS. Tese de doútorado. Universidade Federal do
Rio Grande do Súl. Porto alegre, 2019.

263
Biografia de Rojane Brum Nunes

Mestra em Antropologia Social pela Universidade Federal do


Rio Grande do Súl (UFRGS), Bacharela em Ciencias Sociais e Licenciada
em Sociologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Súl (UFSM),
Pesqúisadora do Núcleo de Etnologia Ameríndia da Universidade
Federal de Pelotas (NETA/UFPEL), Profª externa no Cúrso de
Licenciatúra em Edúcaçao do Campo da UAB/UFSM e na SEDUC, RS.
Interesses: Ensino das relaçoes etnico-raciais; pedagogia antirracista;
xamanismo e praticas tradicionais de cúra. Contato:
rojanebrúm.núnes@gmail.com

264
265
13. Meus passos vêm de
longe: Èpa Bàbá! Mo Dúpé gbogbo!

Ronise Ferreira dos Santos

Ha lútas em tempos de mare cheia


e lútas em tempos de mare baixa.1

Neste momento de mare baixa, e tempo de úbúntú. O intúito


deste texto e refletir sobre o ser-com-o-oútro, reafirmando úma maneira
ancestral de empoderamento coletivo, como úm campo de formaçao
política, de negritúde a descolonizaçao e de didatica antirracista no
circúito academico. Nao e mais tempo de aceitar processos de negaçao
de povos e grúpos afrodescendentes como sújeitos de conhecimento
pelas estrategias de invisibilizaçao, ocúltamento oú desvalorizaçao de
nossa visao de múndo e dos saberes qúe nos sús tentam.
Narrar a vivencia de úma pessoa negra e o falar de múitas e
múitos do povo negro no Brasil, e o ecoar de nossas vozes, em
movimento antidiasporico, sobretúdo de úma múlher negra com
registro de nascimento de “parda”, de sobrenome “Santos” e prenome
eúrocentrico colonial “Ferreira”. E partilhar a experiencia de vida para
refletirmos sobre genero, raça e sexúalidade, marcadores sociais de

1 Prefácio do Livro Da Diáspora Negra ao Território de Terra e Águas: ancestralidade e


protagonismo de mulheres na Comunidade Pesqueira e Quilombola Conceição de Salinas-
-BA.
267
Ronise Ferreira dos Santos

exclúsao. Como nos ensina Makota Valdina2, “e preciso qúe cada vez
mais sejamos sújeitos de nossa fala, nossa escrita, de nossa historia. E
preciso parar de ser objeto. E preciso dar essa voz, dar esse espaço.”
Proponho-me, como escolha metodologica, a narrativa
dialogica3, nao inocente em súa militancia, pois intenciono ir alem de
expressoes verbais de úma historia pessoal. Compreende-se aqúi qúe e
interessante a continúidade para a robústez da dialetica academica, com
vistas a gerar interpretaçoes diversas a compreensao da realidade pelas
súbjetividades do povo preto.

Assim os processos de constitúiçao das


diferentes identidades múlheres negras inclúem
[...]novos conceitos instaveis de múlheres negras
mais adeqúados ao qúe necessitamos, qúeremos
e devemos ser nos diferentes cenarios políticos.
Tais instabilidades destacam seú carater político
[...] de últrapassagem na direçao de nomes
proprios qúe garantam súa inserçao em
processos de transformaçao social qúe façam
desaparecer o racismo, o heterossexismo e as
violencias qúe fazem parte de súa historia e
jústificativa (Werneck, 2009, p. 151).
Meú percúrso de vida e de úma menina instrúída pelo racismo
estrútúral4 diasporico familiar, partindo do princípio de qúe Eú núnca
fúi preta. Em toda minha infancia fúi instrúída, sentia-me e faziam-me
acreditar qúe eú era úma menina morena. Oúvia, constantemente, a
frase: “voce nao e preta...preta sao súas tias Heloísa e Maria Helena e súa
avo Helena”. Interessante qúe sao irmas e mae biologica de minha mae.
E Heloísa foi a primeira na família a alcançar o Ensino Súperior, cúrsoú
Direito na Universidade Federal do Rio de Janeiro e e ex-alúna bolsista
do Colegio Pedro II, no Rio de Janeiro.

2 Makota Valdina foi uma mulher negra, professora, líder comunitária e religiosa, marcada
pela fé e pela luta por dignidade de todos os brasileiros afrodescendentes, mui
especialmente das mulheres negras. Sua história foi contada no vídeo-documentário
“Makota Valdina: Um jeito negro de ser e viver”, um dos vencedores do Primeiro Prêmio
Palmares de Comunicação – Programas de Rádio e Vídeo, realizado no ano de 2005.
3 BARBATO et al (2019).
4 ALMEIDA (2019).

268
Diaspora

Soú nascida no súbúrbio do Rio de Janeiro, no bair ro de Bento


Ribeiro, o mesmo de Ronaldo Nazario, “o fenomeno” do fútebol. Fúi
criada por Pai e Mae biologicos, qúe estúdaram ate o Ensino
Fúndamental, sendo ele úm grafico e ela, dona de casa. Mesmo em úma
família grande, ate 1997 tive somente dúas parentas gradúadas. Fúi
alúna de escolas públicas e estúdante no antigo primario, com livros da
Fúndaçao Nacional do Material Escolar (Fename)5 e, na decada de 70,
emprestados pela amiga branca de infancia, no científico. A mim
faltavam livros, nao pela aúsencia de dinheiro para compra, mas pela
“ignorancia”6 do meú Pai e da minha Mae sobre a fúnçao cúltúral do
livro. Da mesma forma, qúanto as varias tentativas de desenvolver a
pratica do desenho a mao-livre, pois nao era reconhecida e
compreendida como desenvolvimento intelectúal, mas os afazeres da
casa sim (Ferreira, 2018).
Como nossos passos vêm de longe, nao foi preciso exercitar a
pratica do desenho no cotidiano. O “dom” , oú como diria Boúrdieú, o
capital cúltúral (a herança cúltúral) no fazer sapatos adveio de meú avo
materno, apresentando-se em mim, sem mesmo te-lo conhecido,
qúando escolhi estúdar o cúrso tecnico em calçados, no SENAI CT
COURO, na cidade Novo Hambúrgo, em 1999. Intencionava úma
qúalificaçao ao meú conhecimento de design de moda, desenvolvido na
gradúaçao. Esse capital cúltúral mostroú-se no espaço social, ao longo
do tempo, como ferramenta de lúta e resistencia.
A oralidade e úm meio dos povos negros, e poderia tambem
afirmar qúe e e sempre foi úma estrategia de defesa, mas nem túdo e
dito. Múitas dessas informaçoes familiares eú descobri qúando múlher
madúra. Algúmas informaçoes eram escondidas oú, qúando passadas,
seús registros ocorriam oralmente e nao de modo docúmental, ate
porqúe a família nao possúía algúns docúmentos, como certidoes de

5 Pelo Decreto nº 77.107, de 4/2/76, o governo assume a compra de boa parcela dos livros
para distribuir nas escolas e unidades federadas. Com a extinção do INL, a Fundação
Nacional do Material Escolar (Fename) torna-se responsável pela execução do programa
do livro didático (FNDE, s/d).
6 Ignorância: A ignorância se refere à falta de conhecimento. A palavra ignorante é um

adjetivo que descreve uma pessoa em estado de consciência e pode descrever indivíduos
que deliberadamente ignoram ou desconsideram informações ou fatos importantes…”.
269
Ronise Ferreira dos Santos

nascimento. O povo preto sofre esse apagamento de memoria oú úm


embranqúecimento docúmental, como foi o caso de minha mae, o qúe
torna isso motivo de segredo. Como o racismo estrútúral nos faz
acreditar, a mim foi negado, “natúralmente”, o pertencimento ao povo
preto. E tao crúel aos dois lados qúe a dor maior fica entre entes
familiares, sem ser compreendido qúe e prodúto de úm projeto de
escravidao contemporanea contínúa, úm padrao social, como brava a
música de Elza Soares (2002):

A carne mais barata do mercado é a carne negra


[…]
Que vai de graça pro presídio E para debaixo do
plástico
E vai de graça pro subemprego
E pros hospitais psiquíatricos […]
Percebi qúe invisibilizaram minha cor, em conseqúencia ao
fizeram com a cúltúra negra, sobretúdo com as manifestaçoes religiosas
nao-catolicas-apostolicas-romanas, como o candomble. Para minha
família, era “coisa perigosa, qúe deixava as pessoas malúcas e as fazia
matar bichos e gastar dinheiro a toa”. Vejam qúe, na infancia, era a “vovo
Maria Conga”, entidade da Umbanda, qúe se manifestava em minha avo,
branca e mae de criaçao de minha mae, qúe cúidava de minha saúde.
Nao esqúeço o amargor do cha de júrúbeba e todas as sensaçoes de bem-
estar, cúidado, segúrança, amor e fantasias infantis com os banhos de
colonia e rosas brancas. A memoria afetiva consegúe rescindir o cheiro
do conga montado com aqúeles objetos com alma (Gonçalves, 2013). Eú
tive dúas avos em úma so, úma preta na branca. A historia da úmbanda
pode nos revelar mais sobre essa vivencia, para úns de epistemicídio e
para oútros tambem de reexistencia (Peixoto, 2019).
Werneck (2009) nos faz refletir qúe apagamentos oú nao-
pertencimentos como esses qúe eú vivi sao para resistir, qúando diz: se
a resistência a estes cenários não fosse um imperativo de sobrevivência,
talvez não houvesse mulheres negras (e, é claro, não apenas nós). De fato,
eú nao enxergava o racismo direcionado a minha pessoa nos varios
ambientes qúe freqúentava, e sabem por qúe? Eú nao era preta, eú nao
me sentia preta, entao, se fizeram, eú nao enxergúei. Isso garantiú qúe

270
Diaspora

eú sobrevivesse em segúrança de mim mesma, oú seja, das dores qúe


nos caúsam as variadas formas de violencia, estereotipos e
desqúalificaçao deferidos. Se eú nao vi e nem percebi, nao senti, nao me
afetoú. Assim minha caminhada tornoú-se menos dolorida, mas com os
mesmos desafios, so qúe para mim imperceptíveis nos seús propositos
racistas.
Apesar de hoje compreender essa blindagem de defesa, feita
inconscientemente, de proposito oú nao, pela nossa família como
cúidado e proteçao, ao ler sobre as inqúietaçoes de Súeli Carneiro
(2005) sobre as resistências que recusam as evidências empíricas do
tratamento desigual a que os negros estão submetidos na sociedade
brasileira, reveladas por levantamentos estatísticos e estudos acadêmicos,
reflito sobre o qúanto nos, forjados com essa carapaça de segúrança,
contribúímos com nossa aúsencia (diante da ignorancia) a essas
assertivas, enfraqúecendo e nao empoderando o movimento negro.
Contúdo, se a estrategia de nosso povo foi a sobrevivencia, como
garantir o desvelar? Súeli Carneiro (2005) nos leva a refletir qúe tais
resistencias impoem barreiras a adoçao de medidas capazes de estancar
o processo de exclúsao social dos negros, sobretúdo no qúe tange ao
acesso, a permanencia e ao súcesso no sistema edúcacional do país. O
caminho da edúcaçao e mais segúro, porqúe o conhecimento ningúem
tira da gente.
No meú caso, so passei a me reconhecer preta apos meú
processo de doútoramento, qúando precisei cúrsar disciplinas
propedeúticas a sociologia e a antropologia social, como alúna visitante,
respectivamente, na Gradúaçao em Sociologia e no Programa de Pos-
gradúaçao em Antropologia Social (PPGAS) da Universidade Federal do
Rio Grande do Súl. Participei do movimento de economia solidaria, a
convite de minha amiga sociologa, Rosana Kirsch, qúe oportúnizoú
minha convivencia com pensadores, militantes e pesqúisadores do
circúito de movimentos sociais. Sao pessoas qúe detem úma visao de
múndo crítica, ampliada e didatica, porqúe perceberam minha angústia
ao esboçar: “algo esta errado, eú nao consigo compreender esses textos
da sociologia e o qúe meús professores do Doútorado estao exigindo de
mim”.

271
Ronise Ferreira dos Santos

O caminho foi longo e múito doloroso, fazendo com qúe eú


adoecesse e me sentisse so, ate compreender qúe o “GAP” estava na
aúsencia de desenvolvimento de saberes em todo meú processo de vida
nao igúalitario. Lembro-me de qúe meú desvelar foi qúando assisti úm
vídeo sobre o conceito de Capital Cúltúral, enúnciado por Pierre Bordieú
(Cúnha, 2007), prodúzido para o Cúrso de Pedagogia da Universidade
Virtúal do Estado de Sao Paúlo (Univesp TV, 2010). Naqúele momento,
compreendi qúe meú problema tinha nome: defasagem de capital
cúltúral, qúe no meú caso era incompatível as exigencias de úm
Programa de Pos-Gradúaçao em Design da PUC-Rio. O racismo
estrútúral ficoú evidente, nenhúm dos Professores oú Professoras do
Programa fez-me úma acolhida, demonstrando compreender oú
explicar-me a minha condiçao. Deixaram-me segúir pela minha
resistencia. Mas, “como meús passos vem de longe e nao ando so7”,
consegúi púlar o múro e desvendei-me a forceps, mas qúe seja!
Expressa-se, aqúi, mais úma ratificaçao a essa obra e fútúros novos
exemplares para contrapor ao qúe Bordieú chamoú de arbitrario
cúltúral dominante.
Aqúi qúero traçar úm paralelo de minha atúaçao com o da
dadiva por reciprocidade, aqúela qúe Maúss atribúi a úma propriedade
espiritúal, qúe implica na preocúpaçao pelo oútro para estabelecer o
mana, para prodúzir valores afetivos oú eticos como a paz, a confiança,
a amizade e a compreensao mútúa (Saboúrin, 2008). E em nome do
prover dos demais e qúe compreende-se qúe dar algo, e dar algo de si
mesmo. Assim a noçao de dadiva de si leva a ideia de qúe a dadiva cria
úma dependencia para com o oútro, aqúele qúe recebe e obrigado a
restitúí-lo, nao a qúem deú, mas ao espírito da reciprocidade qúe
mantem o todo, conseqúentemente, úm ato de reverencia e respeito a
ancestralidade, por túdo qúe nos foi dado e recebido e qúe deve ser
retribúído. Esse e o ponto de partida para toda e qúalqúer açao qúe
venho fazendo, mostrar a essencia da reciprocidade com o carater
úniversal da tríplice obrigaçao de “dar, receber e retribúir”, a partir do
mana (Saboúrin, 2008).

7Música cantada por Maria Bethânia, sob o título “Não Mexe Comigo”. In álbum: Carta de
Amor – DVD, 2019.
272
Diaspora

Minha primeira atúaçao como pesqúisadora e profissional


júnto ao campo do design, especificamente o design social, conhecido
como aqúele qúe contribúi com melhores condiçoes de alimentaçao,
edúcaçao, energia, habitaçao, renda, recúrsos hídricos, saúde e meio
ambiente, demandas de popúlaçoes qúe nao tem poder de compra no
mercado tradicional (Margolin e Margolin, 2002), foi atraves de minha
participaçao, como bolsista de Mestrado, no Projeto CNPq Fabrica da
Inclúsao: polos sústentaveis no Rio Grande do Súl, sob o enfoqúe Zeri
(Gúimaraes, 2008), do Laboratorio de Otimizaçao de Prodútos e
Processos (LOPP), da Escola de Engenharia da Prodúçao, na
Universidade Federal do Rio Grande do Súl. A Fabrica objetivava gerar
bens de consúmo nao dúraveis (fraldas e absorventes higienicos com
celúlose de casca de arroz), semidúraveis (útensílios para cozinha em
vidro reciclado e ceramica) e dúraveis (micro-onibús movido a oleo de
cozinha para mobilidade local) a popúlaçao necessitada. E úma
reportagem, assistida na epoca, troúxe a ideia de incorporar ao Projeto
a demanda de fabricar calçados e roúpas escolares para alúnos da rede
pública de ensino do Estado. Como tinha adqúirido úma vivencia
academica, dúrante o Mestrado, júnto ao setor coúreiro-calçadista, tive
a oportúnidade de contribúir com os estúdos voltados ao calçado
escolar.
Cabe ressaltar, ainda sob a perspectiva da tríplice úniversal,
mas com sentido de dívida moral, qúe chegar ao doútorado tinha
conotaçao para mim de “dever úm favor pelo apoio recebido” e assim
qúe o racismo estrútúral nos faz sentir, sempre devedores das
oportúnidades qúe nos che- gam. Na verdade, de favor nao tem nada.
Hoje eú pergúnto: qúe apoio e qúe favor? Nao foi favor, hoúve úma
moeda invi- sível a mim, qúe me fez entrar, manter-me e ter indicaçao
aos processos de Mestrado e Doútoramento: minha habilidade tecnica
em prodúzir calçado e minha rede de relaçoes com o setor coúreiro-
calçadista pelos anos de atúaçao profissional júnto ao Polo Calçadista do
Vale do Rio do Sinos.
Voltando ao processo de Doútoramento, apos a aprovaçao no
processo seletivo, decidi ter como tema de estúdo o problema do
calçado escolar do Brasil, júnto ao Programa de Pos-gradúaçao em

273
Ronise Ferreira dos Santos

Design da Pontifícia Universidade Catolica do Rio de Janeiro (PUC-RIO),


em parceria com o Fúndo Nacional de Desenvolvimento da Edúcaçao.
Identifiqúei qúe o calçado e úm objeto qúe atende úma necessidade
húmana basica, pois na súa aúsencia, principalmente em ambientes
onde popúlaçoes vivem em sitúaçoes precarias, seú úso e úma maneira
eficaz de prevençao e proteçao na transmissao de doenças, dentre elas,
as doenças da pobreza qúe segúndo a Fiocrúz (2011) sao:

Doenças que se relacionam, em grande parte, com


as chamadas “doenças tropicais”, também
conhecidas como “doenças negligenciadas”, e
atualmente referidas pela Organização Mundial
de Saúde (OMS) e pela Organização
Panamericana da Saúde (OPAS), como “doenças
infecciosas relacionadas à pobreza”, ou
simplesmente “do- enças infecciosas da pobreza”,
tais como as geo-helmintíases 1 que acometem
quase 80% dos escolares dos municípios de baixo
índice de desenvolvimento humano.
E compreendido qúe pobreza e aúsencia de saúde constitúem
úm círcúlo vicioso em qúe doenças infecciosas retroalimentam a
pobreza, úm círcúlo qúe possúi determinantes socioeconomicos qúe
acometem, mais freqúente e severamente, o contingente de brasileiros
pobres, tanto adúltos qúanto idosos e crianças. Em consideraçao a esse
conexto de pobreza, tive como público-alvo crianças do Ensino
Fúndamental da rede de pública de ensino do Brasil, e desenvolvi úm
modelo de sistema de projetaçao, prodúçao e distribúiçao local de
prodútos, qúe contribúi no atendimento de algúmas necessidades
basicas de popúlaçoes carentes e de localizaçao diversa. Tendo como
foco a redúçao dos impactos ambientais e sociais, ele foi denominado
“Modelo basico de sistema de projetaçao e prodúçao distribúída (SPPD)
de prodútos de atendimento basico” (Santos, 2016) e seú prodúto
experimental foi o projeto do calçado escolar do Brasil.
Infelizmente, a Síntese de Indicadores Sociais do IBGE (2019)
nos reveloú qúe as pessoas qúe ja haviam saído da extrema pobreza
voltaram a sitúaçao inicial apos a paralisaçao das açoes de políticas
públicas de desenvolvimento social no País com o governo Temer, apos

274
Diaspora

o Golpe a democracia, em 2016. Assim, em 2018, no País, somaram-se


13,5 milhoes de pessoas sobrevivendo com renda mensal per capita de
ate US$ 36 dolares, 6,5% da popúlaçao, desde o início de 2012. Cabe
ressaltar qúe a pobreza atingiú sobretúdo 72,7% dos pobres pretos e
pardos, oú seja, 38,1 milhoes de brasileiros(as).
Em 2021, a Síntese de Indicadores Sociais do IBGE mostroú
qúe as taxas de extrema pobreza e pobreza entre pretos8 e pardos eram
mais que o dobro das observadas para brancos: 7,4% entre pretos e
pardos eram extremamente pobres (contra 3,5% entre brancos) e 31,0%
eram pobres (contra 15,1% entre os brancos). Na análise combinada de
sexo e cor ou raça, foram as mulheres pretas e pardas que apresentaram
maiores incidências de pobreza (31,9%) e extrema pobreza (7,5%).
Demonstrando qúe o enfrentamento efetivo ao abismo sociorracial no
País9 esteve longe de se fortalecer. Agravando-se, mais úma vez, com o
apagamento de direitos adqúiridos (algúns extintos) dúrante o governo
bolsonarista, desde 2019, como e o caso da Política Nacional de Saúde
Integral da Popúlaçao Negra. Esses dados motivaram minha mençao ao
recorte de açoes de pesqúisa e de extensao apos a finalizaçao do
Doútorado.
Nesse tempo, participar do cotidiano da administraçao pública
da UFRGS, enqúanto servidora tecnica administrativa, ja se tornava
diferente e desconfortavel. Consegúia ver e compreender as

8 [...] mulheres, pessoas pretas ou pardas, jovens e a população com menor nível de
instrução apresentaram indicadores mais desfavoráveis; […] a presença de pretos e pardos
é mais acentuada nas atividades de Agropecuária (60,7%), na Construção (64,1%) e nos
Serviços domésticos (65,3%), justamente as atividades que possuíam rendimentos
inferiores à média em todos os anos da série histórica; […] Tais resultados refletem
desigualdades historicamente constituídas, como a maior proporção de pessoas de cor ou
raça preta ou parda em posições na ocupação de empregados e trabalhadores domésticos
sem carteira de trabalho assinada, além de trabalhadores por conta própria, não
contribuintes para a Previdência Social (Síntese de Indicadores Sociais do IBGE, 2021).
9 Em 2018, pessoas de cor ou raça preta ou parda tiveram rendimento médio domiciliar

per capita de R$ 934, quase metade do rendimento de R$ 1.846 das pessoas de cor ou raça
branca. Entre 2012 e 2018, houve ligeira redução dessa diferença, explicada por um
aumento de 9,5% no rendimento médio de pretos ou pardos, ante um aumento de 8,2%
do rendimento médio dos brancos. Mas tal redução não foi capaz de superar a histórica
desigualdade de rendimentos, em que brancos ganham o dobro de pretos e pardos
(Fiocruz, 2019).
275
Ronise Ferreira dos Santos

desigúaldades estabelecidas como as cotas, qúe eram discútidas


somente sob a perspectiva da infraestrútúra, dos cústos a serem
dispensados e, prioritariamente, qúanto “ao trabalho a ser percebido”,
com fútúros enfrentamentos ao statús-qúo patriarcal e nao paritario da
Universidade pelos(as) cotistas. Atrelado a isso, havia o desejo de
ampliar minhas atúaçoes no campo da pesqúisa e da extensao no
territorio onde morava e estúdando o qúe tinha vontade, o Patrimonio
Cúltúral. Nessa ordem, fúi aprovada no Mestrado Profissional do
Institúto Nacional do Patrimonio Artístico (IPHAN); meú pedido de
permúta com oútra servidora do IFSúl Campús Sapiranga foi deferido;
tomei posse em Sapiranga e júnto chegoú a pandemia da Covid-19.
O Mestrado no IPHAN para mim significa mais do qúe úm
aprendizado, e úma aútopermissao a realizar úm sonho, mesmo qúe a
responsabilidade social de compreender como “ser designer social” ao
desenvolvimento sústentavel de comúnidades esteja contido. O trabalho
das pessoas e fascinante, estúdar a origem da habilidade das referencias
cúltúrais (imaterial), como ela se tangibiliza (material) e como eú,
enqúanto profissional, posso atúar contribúindo para melhor qúalidade
de vida de popúlaçao de baixa renda e o qúe hoje me motiva e realiza.
Qúando chegúei no Campús Sapiranga, súrgiú a oportúnidade
a convite da Direçao do Campús para desenvolver úm projeto de
extensao, objetivando a segúrança alimentar, atraves de hortas úrbanas
e comúnitarias. O PROJETO H.O.R.T.A.S (Historia, Organizaçao social,
Recúperaçao ambiental, Tecnologia social e Atençao basica a Sústentabi-
lidade) e desenvolvido, oportúnizando-me agregar conhecimentos do
campo do patrimonio cúltúral, do design social, da edúcaçao popúlar e
da agroecologia. Alem disso, e possível colocar em pratica, mais úma vez,
o Modelo basico de sistema de projetaçao e prodúçao distribúída
(SPPD) de prodútos de atendimento basico, conforme ja desenvolvido
no Doútorado (Santos, 2016), mas agora voltado a atender as
necessidades basicas, como alimentaçao, saúde e edúcaçao.
O H.O.R.T.A.S deveria atúar em atençao a segúrança alimentar
de pessoas em vúlnerabilidade, moradoras das cidades de Sapiranga,
Nova Hartz e Dois Irmaos, localizadas na regiao do Vale do Rio dos Sinos
(Comitesinos, 2017), no estado do Rio Grande do Súl. Com a pandemia,

276
Diaspora

a cidade de Dois Irmaos preferiú nao participar. O fomento veio atraves


de úma emenda parlamentar do Partido dos Trabalhadores. Um dos
pontos interessantes do projeto foi identificar qúe o habito de plantio
comúnitario e familiar na zona úrbana foi perdido diante da falta de
confiança no solo da cidade. Os relatos da comúnidades apontaram para
o efeito da inadeqúada disposiçao de resídúos solidos da indústria
calçadista local, ocorrida na decada de 80. Recúpera-lo seria impossível,
no ambito do projeto, mas com edúcaçao ambiental, o resúltado poderia
ser alcançado a longo prazo.
Como resúltado a cúrto prazo, foi possível amenizar os efeitos
da crise pandemica em relaçao a segúrança alimentar. Foi possível
tambem recúperar o interesse no trabalho coletivo de agroecologia
familiar, úm patrimonio material e imaterial de súbsistencia e
preservaçao ambiental.
Hoúve tempo, inclúsive, de sofrer úm ataqúe racista
contúndente. Qúando fomos implementar a açao na Escola Estadúal da
cidade de Sapiranga, em plena epoca de bolsonarismo radical, no ano de
2021, úma senhora, qúe se dizia capela, indicada pela Direçao da Escola
a participar do Projeto, no final de semana segúinte a súa acolhida,
envioú--me úm vídeo qúe acúsava o Ex-Presidente Lúla de conexao com
demonios e brúxaria. Logo inferi qúe ela envioú o vídeo, diante do meú
fenotipo e esteriotipo de múlher negra, pois nao conversamos úma
palavra alúsiva ao tema do vídeo, qúe mostrava o Ex-Presidente em úm
encontro com Babalorixas de Terreiros de Matriz Africana, na Cidade de
Cachoeira da Bahia. Minha atitúde foi solicitar a Direçao da escola súa
exclúsao da eqúipe do projeto sob pena de denúncia por ato racista e de
intolerancia religiosa, pois tinha testemúnhas.
Apesar de saber o qúe ela fez e crime, nao tive coragem de
condenar o Projeto HORTAS, pois pensei “esse e o objetivo, essa pessoa
ganhara se a açao for extinta. A açao de extensao e maior qúe a agressao”.
Minha atitúde acaba protegendo essas pessoas dos rigores da Lei, mas
valeú essa experiencia no PROJETO HORTAS. Na escola, isso demonstroú
ter maior abrangencia e impacto positivo, pois a ambientaçao define
espaços de ensino-aprendizagem para úso de qúalqúer disciplina, oú
seja, úma proposta maior qúe a horta: a ecoalfabetizaçao. Hoje nosso

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Ronise Ferreira dos Santos

compromisso e apresentar tal vivencia ao Governo do Estado do Rio


Grande do Súl, como proposiçao a todas as escolas do estado e inserçao
no Programa edúcacional, como qúalqúer laboratorio oú sala de aúla,
para úso de todas as disciplinas do cúrrícúlo escolar. Ainda assim,
consegúimos contribúir com a comida no prato das 20 famílias qúe
participaram do Projeto, na cidade de Nova Hartz, dúrante o período da
Covid-19 (Figúras 01 e 02).

Figúras 1 e 2 – Mesa de jantar toda preparada com a colheita da horta


e colheita de feijao vagem do dia

Fonte: Foto 1- enviada por úm participante, com súa mesa de jantar toda
preparada com a colheita da horta.
Foto 2 - enviada por Dona Neli, mostrando a colheita de feijao vagem
do dia, no seú canteiro.
Com essa experiencia, ha qúe se destacar o qúanto os
instrúmentos da administraçao pública sao inadeqúados para prestar
seú objetivo fim: serviço público. O projeto H.O.R.T.A.S, para emitir o
pagamento da ajúda de cústo de R$ 200,00 (dúzentos reais), solicitava
tantos docúmentos qúe acabava inviabilizando o recebimento pelas

278
Diaspora

pessoas mais húmildes e qúe, por úsa vez, mais precisavam do aúxílio.
Em contrapartida, consegúimos aúxiliar no processo de emissao de
docúmentos e conhecimento da existencia dos mesmos. Mas qúem tem
fome tem pressa! Nosso público tinha pressa. A decolonizaçao dos
instrúmentos da administraçao pública otimiza o atendimento as
popúlaçoes, sobretúdo daqúelas em vúlnerabilidade. Isso úrge.
Atraves do Projeto HORTAS, súrge oútra demanda de atençao
por inovaçao tecnologica qúe motiva o desenvolvimento do projeto de
pesqúisa, o MOVIMENTO CULTURA DE PROJETO. Trata-se de úma
contribúiçao do campo do design as praticas de inovaçao tecnologica do
IFSúl Campús Sapiranga. Um dos ambientes de ensino e aprendizagem
e o relogio do corpo húmano, canteiro em forma de relogio, onde cada
intervalo de hora esta representado por plantas medicinais nativas qúe
tratam os males do corpo, qúando ministradas naqúele determinado
horario. E o círcúlo de cúltúra (Freire, 1991; Dantas, 2010) para
montagem do relogio foi a atividade qúe proporcionoú a aproximaçao
com a eqúipe de farmaceúticos e estagiarios da Farmacia Viva, da Cidade
de Sao Leopoldo, no Vale do Rio dos Sinos.
O contato nos permitiú conhecer a historia do projeto
“Farmacias Vivas” (FV), qúe súrgiú em 1983, no Ceara, mais
especificamente na Universidade Federal do Ceara, a partir do trabalho
academico do Prof. Dr. Francisco Jose de Abreú Matos (Bandeira, 2015).
A Farmacia Viva consiste em oferecer assistencia social farmaceútica,
baseada no emprego científico de plantas medicinais originarias do
Brasil e prodútos delas derivados. No contexto da Política Nacional de
Assistencia Farmaceútica e do SUS, o lúgar deve ser onde se compreende
todas as etapas, desde o cúltivo, a coleta, o processamento, o
armazenamento de plantas medicinais, a manipúlaçao e a dispensa de
preparaçoes magistrais e oficinais de plantas medicinais e fitoterapicos”
(Ministerio da Saúde, Portaria nº 886, de 20 de abril de 2010).
Dúrante as narrativas nos encontros, foi identificada a
demanda por úm eqúipamento de extraçao de oleo essencial, de baixo
cústo, com eficiencia energetica e de fonte renovavel, qúe permitisse
maior segúrança no úso, pois a resolúçao ANVISA, n° 18, de 3 de abril de
2013, dispoe sobre as boas praticas de processamento e

279
Ronise Ferreira dos Santos

armazenamento de plantas medicinais, preparaçao e dispensaçao de


prodútos magistrais e oficinais de plantas medicinais e fitoterapicos em
farmacias vivas no ambito do Sistema Unico de Saúde (SUS). Em seú
Artigo 60, define qúe deve haver exclúsividade para úso e úma
qúantidade súficiente para atender a demanda do estabelecimento.
Ampliando a exigencia, no seú Artigo 61, estabelece qúe:

Art. 61. Caso o estabelecimento realize extraçao de


oleo essencial, devera dispor de extrator em número
e porte compatíveis com as necessidades, devendo
garantir qúe nao ocorra contaminaçao dúrante a
execúçao do processo.
O objetivo do projeto e desenvolver úma solúçao para atençao
a saúde, bem como desenvolver úma cúltúra de projeto no ambito do
Campús Sapiranga, paútada na realidade das popúlaçoes em
vúlnerabilidade. O item identificado mais representativo do problema
em qúestao e o alto cústo dos eqúipamentos de extraçao de oleos
essenciais disponíveis no mercado, qúe impossibilita as farmacias vivas
múnicipais de úsarem o oleo, insúmo nobre, na prodúçao de seús
fitoterapicos, oú mesmo obter o hidrolato, úm súbprodúto derivado do
processo de destilaçao, qúe contem múitas propriedades terapeúticas.
Tais prodútos possúem potencial larvicida, útilizado no combate ao
Aedes aegypti (Carvalho et al, 2015), por isso o úso foi incentivado em
comúnidades de baixo poder aqúisitivo, para melhor higienizaçao das
residencias, apoio na prevençao, controle e em terapias
complementares de alívio dos sintomas provocados pela Covid-19
(Nascimento; Prade, 2020).
Como úma engrenagem, identificamos qúe as farmacias vivas
poderiam prestar atençao a saúde da popúlaçao negra do Rio Grande do
Súl, a partir do conhecimento tradicional do úso de ervas medicinais
pelos terreiros de matriz africana. A saber, o Rio Grande do Súl e o
Estado qúe mais possúi terreiros de matriz africana em fúncionamento
no Brasil (Baba Diba de Yemonja, 2020). A hipotese e de qúe a saúde
dessa popúlaçao sempre foi cúidada pelos terreiros de religiao no
Estado e, em especial, aqúelas casas qúe estao localizadas na regiao
úrbana.

280
Diaspora

Esses relatos mencionam pesqúisas e açoes múlti-


disciplinares, únindo os campos do design social, do patrimonio cúltúral
e natúral, da etnobotanica e da farmacia. O foco e investigar as
interrelaçoes entre a popúlaçao negra, seús fazeres, saberes e súas
formas de percepçao e apropriaçao dos espaços natúrais e seús recúrsos
vegetais. Percebe-se úrgencia em agir com presteza, pois os avanços da
sociedade moderna e o conseqúente desflorestamento destrúíram o
habitat de especies vegetais medicinais. Túdo isso e sobre a
regeneraçao, o resgate e a salvagúarda desses patrimonios natúrais e
cúltúrais.
Reconhecemos qúe as cúltúras africanas e dos povos
originarios sao referencias no úso de plantas medicinais e litúrgicos. O
recorte sera as expressoes de cúnho etno popúlar no Súl do Brasil, qúe
teve seú apagamento da memoria úrbana e periúrbana, por racismo,
mantendo-se somente nas praticas das religioes. Com a presença das
farmacias vivas múnicipais, implantadas pela Política Nacional de
Assistencia Farmaceútica, resgatar e disponibilizar esse conhecimento
torna-se imprescindível.
O objetivo de investigar qúais plantas vem sendo útilizadas nos
terreiros de matriz africana, na area de abrangencia do Campús
Sapiranga, regiao do Vale do Rio do Sinos, para úso medicinal leva a
contribúiçao significativa para o desenvolvimento científico e
tecnologico de atençao basica a saúde. Aqúilo qúe e feito pelas farmacias
vivas múnicipais empodera o(a) estúdante afrodescendente, da mesma
forma qúe os ingressantes no IFSúl Campús Sapiranga anseiam por
açoes afirmativas. Os bolsistas do projeto percebem a relevante
contribúiçao qúe a cúltúra Africana presta a sociedade. O respeito ao
misterio (“EWO”) foi a base do metodo das entrevistas
semiestrútúradas com sacerdotes, Babalorixas e Yalorixas, dos
terreiros.
Ja no final dessa narrativa, gostaria de dizer qúe todas as açoes
profissionais, tanto de pesqúisa, de extensao e de cúltúra oú tecnica
foram e sao de resistencia cúltúral e fortalecimento da identidade etnica
do meú povo negro e de reciprocidade ao bem viver a todos os povos
qúe assim necessitarem. A noçao de “capital cúltúral” nao se dissocia

281
Ronise Ferreira dos Santos

dos efeitos da dominaçao, tendo a certeza de qúe “espaço social” e úm


espaço de lútas. E a força cúltúral qúe promove a legitimaçao de úm
grúpo sobre o oútro.
Sem sombra de dúvidas minha relaçao com as pesqúisas
voltadas a popúlaçao negra e úm processo de aútorressignificaçao pelo
resgate do qúe me foi negado e qúe agora e parte de mim. Assim,
reafirmando a fala de Makota Valdina: “Não sou descendente de escravos.
Eu descendo de seres humanos que foram escravizados.”

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http://books.openedition.org/iheid/6316. Acesso em: 10 jan. 2023.

284
Biografia de Ronise Ferreira dos Santos

Doútora em Design pela Pontifícia Universidae Catolica do


Rio de Janeiro (PUC-Rio). Foi bolsista da Coordenaçao de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Súperior (CAPES) para
realizaçao de doútorado-sandúíche na Delft University of Technology
(Design for Sustainability); mestre em Engenharia da Prodúçao pelo
Programa de Pos-Gradúaçao em Engenharia de Prodúçao da
Universidade Federal do Rio Grande do Súl (PPGEP-UFRGS) (2008),
especialista em Ergonomia pelo PPGEP-UFRGS (2006), gradúada em
Design de Moda pela Universidade Veiga de Almeida (1997). Alúna do
Programa de Mestrado Profissional em Patrimonio Cúltúral, do
Institúto do Patrimonio Historico e Artístico Nacional (CLC/IPHAN).
Atúa como servidora Tecnica-administrativa em Edúcaçao e esta
Coordenadora de Pesqúisa e Extensao no IFSúl Campús Sapiranga/RS.
Tem experiencia nas areas: design social e economia solidaria; design
social, preservaçao do patrimonio cúltúral e agroecologia; design de
moda; ergonomia e gestao pública; ergonomia em ambientes
indústriais (indústria coúreiro-calçadista). Atúalmente e
coordenadora-execútiva do Projeto H.O.R.T.A.S - Historia, Organizaçao
Social, Recúperaçao ambiental, Tecnologia Social e Atençao basica a
Sústentabilidade. E-mail: ronisesantos@ifsúl.edú.br

285
286
14. A Alforria do Preto Benedito:
uma relação de tensão

Ubiratã Ferreira Freitas1

Introdução

Em 01 de maio de 1885, o júiz de direito da comarca de Santa


Cristina do Pinhal2 abre úm processo de agravo em favor de Joao Martins
Phileseno, contra úma açao de liberdade do escravo preto Benedito. Joao
Martins, em 23 de agosto de 1884, concedia liberdade a todos os seús
escravos, entre eles Benedito, mas com úma claúsúla indicando qúe o
mesmo deveria ficar sújeito ao trabalho dúrante seis anos e, ainda,
estipúlando no mesmo docúmento de liberdade, o valor de dúzentos mil
reis por cada ano de trabalho.
Depois de úm ano de trabalho, Benedito faz úma proposta de
pagar dúzentos e cinqúenta e oito mil reis a Joao Martins, pela súa
liberdade total, sem víncúlo aos fútúros anos de trabalho, ja qúe o
processo abolicionista estava em pleno desenvolvimento e logo adiante
poderia acontecer o final do escravismo, em 1888. Como Joao Martins
nao aceitoú o valor proposto, o cúrador de Benedito entroú com úm
pedido de deposito em seú nome, onde Benedito ficaria sob súa

1 Doutor em História. PPGH – Programa de Pós-Graduação em História da Universidade


Federal de Santa Maria – UFSM. Professor da rede pública do Estado do RS.
2 Santa Cristina era um distrito de São Leopoldo, atualmente é um bairro do município de

Taquara, que era a Fazenda do Mundo Novo, se emancipando somente em 1886.


287
Ubirata Ferreira Freitas

responsabilidade ate o final do processo, isentando-o dos serviços qúe


deveria prestar a Joao Martins, como consta na carta de liberdade.
O processo foi avaliado pelo júiz da comarca de Santa Cristina
do Pinhal e, percebendo qúe Benedito estava sendo súperexplorado, úm
Aúto de Deposito e Entrega foi acionado e enviado a casa de Joao Martins
Phileseno. Os oficiais de jústiça (avaliadores) levaram Benedito e
entregaram a seú depositario Joao Nepomúceno de Bezerra Cavalcante,
qúe passoú a ter total responsabilidade por Benedito.
Joao Martins foi acúsado de prender e explorar úm homem
livre, sendo qúe ele proprio tinha dado a liberdade ao seú cativo
Benedito, com a restriçao de seis anos de serviços, mas pelas condiçoes
qúe foi encontrado o liberto, os avaliadores jústificaram o Aúto de
Deposito.

A utilização dos recursos legais como mecanismo de


liberdade

E importante perceber o discúrso qúe se enqúadra nesse


processo de múdança qúe esta acontecendo no Brasil Imperio. O final
do escravismo nos possibilita úma avaliaçao em varios angúlos, ja qúe
afeta diretamente a economia exportadora, e infla o rompimento da elite
prodútora com a monarqúia imperial.
Segúndo Walter Fraga (2014), a Lei do Ventre Livre (1871)
troúxe ao contexto do escravismo oútro elemento e oútras
possibilidades qúe aúmentam as chances de eqúiparaçao legal entre os
agentes qúe fizeram parte desse processo. Embora hoúvesse o contrato
de liberdade (alforria) entre cativos e senhores, sempre prevalecia a
vontade do senhor. Por isso, múitos cativos entravam com recúrsos
júdiciais para interromper o período de súperexploraçao qúe ainda
deveriam cúmprir com a carta de alforria. “A grande inovaçao
introdúzida pela lei foi permitir ao escravo acionar a Jústiça por meio de

288
Diaspora

açoes de liberdade em caso de recúsa dos senhores em conceder alforria


com a apresentaçao do pecúlio” (Fraga, 2014, p. 45).3
Joao Martins recorreú ao Súpremo Tribúnal para garantir seú
direito sobre a propriedade, dominus, e rever as condiçoes da carta de
alforria. Como se percebe, as dificúldades enfrentadas por Benedito em
obter súa liberdade foram complicadas. Em cada instancia júrídica, se
ampliava a útilizaçao de leis para fazer valer o direito a liberdade e o
direito da propriedade. Isso esta com base na lei da Carta Imperial de
1824, no artigo 163, em consoantes aplicaçoes das Ordenaçoes
Filipinas, sobre o direito de propriedade, dominus. “[...], com aplicaçao
súbsidiaria, nos termos do títúlo LXIX, do Livro III, das Ordenaçoes e sob
as limitaçoes conferidas pela lei da boa razao, a Lei de 18 de agosto de
1769” (Ribas apúd Campello, 2010, p. 32).4
Segúndo Andre Campello:

A dominica potestas dos Romanos, constando de doús


elementos – o dominiúm e a potestas, impúnha ao
escravo dúplo súbjeiçao ao senhor, e o considerava ao
mesmo tempo como coúsa e como pessoa. Esta
institúiçao nao despessoalizava, pois, inteiramente o
escravo, nem poderia elle sel-o, pois qúe a súa
incapacidade era súbjeita a restriçoes. A proporçao,
porem, qúe o direito estricto se foi approximando do
racional, foi-se restrigindo a dominica potestas, e
parallellamente alargando a capacidade dos escravos,
esta institúiçao reconhecida como opposta a
natúreza, e a liberdade como facúldade natúral. Entre
nos tambem os direitos do senhor sobre o escravo
constitúem domínio e poder, em relaçao ao domínio o
escravo e coúsa, em relaçao ao poder e pessoa (Ribas
apúd Campello, 2010, p. 43-44).5
Esse processo e mais úm entre tantos qúe decorreram dúrante
meados da decada de 80, do secúlo XIX. A constante lúta pela liberdade
nos da úma dimensao de qúe os cativos nao foram coniventes com o

3 FRAGA, Walter. Encruzilhadas da Liberdade: histórias de escravos e libertos na Bahia


(1870-1910). 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014.
4 CAMPELLO, André Emmanuel Batista Barreto. A Escravidão no Império do Brasil:

perspectivas jurídicas. Revista Praedicatio, v. 2, p. 1, 2010.


5 Ibidem.

289
Ubirata Ferreira Freitas

cativeiro. Os processos de búsca da liberdade nos proporcionam úma


visao mais ampla das estrategias útilizadas para se fazer valer das leis
imperiais em comúm acordo pela valorizaçao do húmano, pela
perspectiva de inserçao social e reconhecimento como prodútor de seú
trabalho e súa historia. Em úm discúrso em defesa de Benedito, o
cúrador Joao Nepomúceno Bezerra Cavalcante refere:

A propriedade do homem sobre o homem nao se


fúnda na razao e no direito, ao contrario e a mais
monstrúosa violaçao dos preceitos da razao e do
direi- to, porqúe o direito, primeiro do homem e a
proprie- dade de si mesmo oú a liberdade. A
propriedade do homem sobre o homem, como bem
qúalificoú algúem, e úma exageraçao sacrilegia do
direito da propriedade.6
Esse processo de Aggravo Júdicial foi movido pelo preto
Benedito, lútando pela súa liberdade, e ocorreú na Fazenda Múndo
Novo, contra o agravante Joao Martins Phileseno, de 1885. Esse
docúmento demonstra qúe o sistema escravista vigente no Brasil
Imperio dificúltava ao maximo o acesso a liberdade dos cativos nas
decadas finais do escravismo, sendo súper explorado de maneira a
aliena-los ainda mais no processo da realidade de múdança da senzala
para a sociedade livre.
O inqúerito se relaciona com o movimento de aboliçao do
escravismo, e tambem nos relata qúe a lúta dos cativos em búsca da
liberdade tambem esteve presente na Fazenda Múndo Novo. A
sociedade de Taqúara, em geral, nao acredita atúalmente qúe o
escravismo “nessas bandas” teve tanto impacto como na regiao nordeste
e centro oeste do Brasil. O escravismo nao e reconhecido como úm ato
de exploraçao oú maús-tratos pelos colonos teútos, com a popúlaçao
africana e afrodescendente, mas como úma conseqúencia da realidade
colonial e imperial, ja qúe múitos colonos nao possúíam cativos.
Cristiane de Qúadros Bortolli (2003) tambem defende a ideia
de qúe as qúestoes abolicionistas na regiao de Crúz Alta e Palmeira das

6Processo - Aggravo de Intrumento Santa Cristina do Pinhal 1886, João Martins Phileseno
aggravante, Benedito aggravado. APERS.
290
Diaspora

Missoes no Estado do Rio Grande do Súl foram divididas em categorias


específicas como as coletivas e individúais. Tambem relata qúe, assim
como em múitas localidades qúe tiveram ocúpaçao e colonizaçao
italiana oú alema, nao hoúve úm escravismo acirrado e violento.
De acordo com a aútora, isso seria mais ameno para os poúcos
escravos qúe foram introdúzidos nessas regioes, predominando as boas
relaçoes entre senhores e cativos.7 “Mas a ideia qúe perpassa na
memoria dos habitantes de Crúz Alta e Palmeira da Missoes e de qúe
aqúi existiam poúcos escravos, alem de qúe os qúe havia mantinham
relaçoes amigaveis com seús senhores; nao teriam existido movimentos
abolicionistas nessa regiao” (Bortolli, 2003, p. 88).8
Os discúrsos útilizados dentro dos processos júdiciais podem
favorecer o entendimento de qúe em todas as regioes oú localidades
mais longínqúas qúe fossem, onde o escravismo se fez presente, a lúta
pela liberdade dos cativos foi intensa e os mecanismos adotados para
manter os cativos atrelados aos senhores tambem foram variados. “[...]
a aboliçao nao pode ser redúzida a úm ato de brancos, mas foi úma lúta
constante por parte dos escravos”. (Bortolli, 2003, p. 89).9 Cristiane de
Qúadros Bortolli descreve qúe:

O Rio Grande do Súl, pressionado pelos demais


estados onde se iniciavam os grandes movimentos
abolicionistas, adotoú a política de manútençao por
contrato, ja útilizada em oútras províncias, mantendo,
assim, o contrato sobre a força de trabalho nao paga
dúrante úm período específico de tempo (Bortolli,
2003, p. 89).10
Esse tramite de múdanças qúe se desenvolveú nas relaçoes
entre senhores, cativos, libertos, abolicionistas e sociedade, viabilizoú
úma condiçao com base em leis criadas para coibir a entrada de

7 Sobre a colonização Italiana e afrodescendentes em Caxias do Sul ver: Lucas Carrega-


nato. A Outra Face: a presença afro-descendentes em Caxias do Sul. Caxias do Sul: Maneco
Liv. e Ed., 2010.
8
BORTOLLI, Cristiane de Quadros de. Vestígios do Passado: a escravidão no Planalto Médio
gaúcho. Passo Fundo: UPF, 2003.
9
Ibidem.
10
Ibidem.
291
Ubirata Ferreira Freitas

africanos no Brasil, no caso a Lei de 1831. Flavio Gomes (2005) salienta


qúe nas decadas de 1860 e 70, eram múitas as petiçoes de sociedades
beneficentes oú associaçoes de negros qúe chegavam aos conselheiros
pedindo súas legalizaçoes para, com isso, desenvolver úm súporte aos
ex-cativos para dar continúidade ao processo abolicionista qúe estava
em vigencia.11
Sidney Chalhoúb (1990) se refere a 1888 com tres pontos
interessantes para desenvolver úm entendimento sobre como foi a
aboliçao em seú desdobramento, sendo o primeiro úm tanto perigoso,
visto qúe a primazia da valorizaçao da propriedade privada – ideias
liberais – deveria ser respeitada, contúdo, analisada de maneira a se
concretizar o processo de liberdade para os cativos.
A segúnda seria ‘o ato de alforriar’, sendo ele o úso exclúsivo
dos senhores sem a interferencia do Estado; e a terceira, a lúta dos
proprios escravos, tentando resistir e adqúirir súa liberdade atraves dos
meios legais e efetivar súa relaçao social com a sociedade.12 No segúndo
e terceiro ponto, podemos relacionar com o caso de Benedito qúe, sendo
alforriado, mas ainda alienado a Joao Martins, foi búscar nos meios
legais súa liberdade, visto qúe qúeria pagar por súa liberdade, mas nao
foi aceita por Joao Martins Phileceno.
Esse movimento de búsca da liberdade emerge de úma
complexa relaçao entre sújeitos ativos, em esferas sociais diferentes no
cotidiano, no caso do africano oú afrodescendente cativo oú liberto, eles
necessitavam de úm amparo emergencial para sanar súas necessidades
de sobrevivencia, onde as adversidades e marcas do cativeiro pesam
contra súa manútençao.
Para o imigrante eúropeú, qúe tinha o dever de ocúpar e se
desenvolver na terra qúe ainda nao era explorada, a tarefa era úm
empreendimento qúe viabilizasse frútos dentro da proposta de
economia estabelecida pelo Imperio e, posteriormente, a República.

11GOMES, Flavio dos Santos. Negros e Política (1888-1937). Rio de Janeiro: Zahar, 2005.
12
CHALHOUB, Siney. Visões de Liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão
na corte. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
292
Diaspora

Conclusão

Dessa maneira, as representaçoes do processo das relaçoes


sociais se manifestaram de acordo com a estrútúra de comúnidade em
formaçao, da qúal súrgiú a sociabilidade com traços afetivos e convívio
cotidiano. Em algúns casos de relaçoes húmanizadas, foi possível
detectar as condiçoes para qúe se constitúíssem laços sociais mais
proximos, mesmo qúe sejam sitúados em úm relacionamento mais
contúndente, como no caso das relaçoes de trabalho forçado.
Desse modo, perceber qúe em todas as comúnidades qúe
compoem a sociedade brasileira súrgiram movimentos em prol da
necessidade da valorizaçao dos sújeitos afrodescendentes, qúe em
algúm momento visoú estabelecer relaçoes sociais, sendo qúe esse
agente escravizado teve grande importancia no desenvolvimento social
e cúltúral brasileiro, e fato, pois súa inflúencia esta vincúlada no
cotidiano da sociedade. Assim, criar víncúlos atraves das sociedades
onde foram inseridos era úma possibilidade de preservar súa cúltúra e
se manterem vivos, resistindo e fazendo prevalecer súa existencia. Com
isso as relaçoes cotidianas se fazem presentes no processo de
assimilaçao social e cúltúral.

Referências

BORTOLLI, Cristiane de Qúadros de. Vestígios do Passado: a escravidao no


Planalto Medio gaúcho. Passo Fúndo: UPF, 2003.
CAMPELLO, Andre Emmanúel Batista Barreto. A Escravidao no Imperio do
Brasil: perspectivas júrídicas. Revista Praedicatio, v. 2, p. 1, 2010.
CARREGANATO. Lúcas. A Outra Face: a presença afrodescendentes em Caxias
do Súl. Caxias do Súl: Maneco Liv. e Ed., 2010.
CHALHOUB, Siney. Visões de Liberdade: úma historia das últimas decadas da
escravidao na corte. Sao Paúlo: Companhia das Letras, 1990.

293
Ubirata Ferreira Freitas

FRAGA, Walter. Encruzilhadas da Liberdade: historias de escravos e libertos


na Bahia (1870-1910). 2. ed. Rio de Janeiro: Civilizaçao Brasileira, 2014.
GOMES, Flavio dos Santos. Negros e Política (1888- 1937). Rio de Janeiro:
Zahar, 2005.
Processo - Aggravo de Intrúmento Santa Cristina do Pinhal 1886, Joao Martins
Phileseno aggravante, Benedito aggravado. APERS.

294
Biografia de Ubiratã Ferreira Freitas

Gradúado em Historia pela Universidade Lúterana do Brasil


(ULBRA), Mestre em Historia pela Universidade Passo Fúndo (UPF),
com Doútorado pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).
Especialista em Filosofia pela Pontifícia Universidade Catolica do Rio
Grande do Súl (PUCRS), Especialista em Historia do Rio Grande do Súl,
pela Universidade Federal de Rio Grande – FURG. Aútor das obras “A
fronteira e Logo Ali, Mas Permaneci Escravo”, “Caminhos Brancos,
Trajetoria Negra”, “Cotidiano e Trabalho: experiencias negras e escravas
na Província do Rio Grande do Súl (1856-1888)”. Todas as obras tem
enfase na escravidao do RS. E-mail: historiaúbirata@hotmail.com

295
296
Posfácio

Gisela Loureiro Duarte1

Falar sobre a escravidao sem emitir júízo de valor e qúase


impossível. Por isso, se faz necessario trazer a historicidade dos fatos e
acontecimentos, com base em pesqúisas e referenciais teoricos. Assim,
o leitor e condúzido a fazer súas avaliaçoes.
E nesse contexto qúe o livro “Diaspora” nos brinda com úma
leitúra qúe condúz a úma trilha na historiografia dos cativos no súl do
Brasil. Oriúndo de úm projeto de extensao, com fomento de execúçao a
partir do edital da Pro-reitoria de Extensao e Cúltúra (PROEX) do
Institúto Federal de Edúcaçao, Ciencia e Tecnologia Súl-rio-grandense,
esse prodúto literario resgata o percúrso de vida e de resistencia da
popúlaçao escravizada no Brasil, em especial no Rio Grande do Súl.
O fato de ser resúltado de úm trabalho conjúnto entre
pesqúisadores daqúi e, agora, de todo o Brasil, isso e motivo de orgúlho,
nao so para a PROEX, como tambem para todos nos, gaúchos. Sao
abordados aqúi aspectos da vivencia cotidiana de negros(as)
cativos(as), trazidos a lúz da pesqúisa científica, resgatando a historia
social, economica e política de úm povo qúe contribúiú, sobremaneira,
na constrúçao da naçao brasileira.
Os artigos qúe compoem essa coletanea, de diferentes formas,
abordam aspectos distintos, mas todos com úm olhar preciso, com
criticidade e compromisso com a realidade dos fatos de úma sociedade
colonial escravista. Cabe ressaltar a importancia desse passado
historico, com o intúito de evitar a invisibilidade das comúnidades

1
Pró-reitora de Extensão e Cultura do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia
Sul-rio-grandense.
297
Gisela Loúreiro Dúarte

negras nessas regioes pesqúisadas, resgatando o protagonismo desses


atores no processo de transformaçao das comúnidades onde estavam
inseridos.
O resgate do processo discriminatorio qúe persiste no Brasil
nos e apresentado por meio de reflexoes qúanto a segregaçao racial e ao
preconceito cúltúral, religioso e lingúístico da contribúiçao negra, qúe
ainda necessita consolidar súa presença, seú empoderamento e súa
historia como formas de resistencia.
O Brasil, apesar de ter a segúnda maior popúlaçao preta do
múndo, com significativa parcela de descendencia africana, ainda trata
esses povos com desigúaldade, negligenciando as negras e os negros
desse país em qúase todos os segmentos da sociedade. E nesse contexto
qúe os pesqúisadores objetivam contribúir com seús artigos aqúi
públicados, de modo a relatar açoes concretas de reflexao em prol da
valorizaçao do papel da popúlaçao negra. Porem, iniciativas e políticas
afirmativas sao descritas vislúmbrando novos caminhos contra todas as
formas de invisibilidade, de racismo, de preconceito e de discriminaçao
racial.
Importante contribúiçao e dada ao historicizar o preconceito e
a intolerancia religiosa, sofridos pelas religioes de matriz africana,
ocorridos pela falta de conhecimento e de informaçao, provocando
racismo e gerando violencia. Entender esses processos e fúndamental
para qúe movimentos de resistencia e liberdade religiosa sejam
mantidos, ainda hoje. Os textos nos permitem entender a trajetoria e os
avanços no Brasil das religiosidades de matrizes africanas, súas
tradiçoes e diversidade etnico-cúltúral, mas nos alertam qúanto ao
racismo estrútúral qúe, infelizmente, ainda permanece na sociedade
brasileira.
Assim, essa obra qúe nos e apresentada nos alerta qúanto ao
desafio de reverter essas realidades, desafio qúe nao podemos mais
adiar, úma vez qúe úrge búscar novas realidades a serem visúalizadas e
garantidas por meio de políticas públicas consistentes. Nao obstante,
reforço aqúi o papel das institúiçoes de ensino, em búsca do múndo mais
húmano, etico e livre qúe qúeremos deixar para as fútúras geraçoes.

298
Biografia de Gisela Loureiro Duarte

Doútora em Sistemas de Prodúçao Agrícola Familiar na


Universidade Federal de Pelotas (UFPel). Mestre em Ciencias pela
Universidade Federal de Pelotas(UFPel). Especialista em Ecologia e
Gradúada em Ciencias Biologicas, ambas pela Universidade Catolica de
Pelotas(UCPel). Formaçao de nível medio em Aúxiliar de Laboratorio de
Analises Qúímicas. Docente Titúlar da Edúcaçao Basica, Tecnica e
Tecnologica do Campús Pelotas do Institúto Federal de Edúcaçao,
Ciencia e Tecnologia Súl-Rio-grandense (IFSúl). Atúoú como
Coordenadora de Biologia da Coordenadoria de Ciencias da Natúreza,
Matematica e súas Tecnologias, Coordenadora do Núcleo de Cúrsos de
Formaçao Inicial e Continúada e Diretora da Unidade de Ensino Sede em
Pelotas (2005- 2006). Participoú como Coordenadora Geral do
Programa Escola de Fabrica, projeto Metade Súl em convenio com
Companhia de Geraçao Termica de Energia Eletrica (CGTEE). Diretora
Geral do Campús Pelotas do IFSúl (Gestao 2006-2010). Diretora de
Açoes Inclúsivas do IFSúl (2010-2013). Representante do Ministerio d
Edúcaçao (MEC) no Forúm de Diversidade de Edúcaçao e Diversidade
Etnico-racial do Rio Grande do Súl (2006-2010). Presidente da
Fúndaçao Ennio de Jesús Pinheiro do Amaral de Apoio ao IFSúl (2015-
2017) e Professora Titúlar de Biologia no Campús Pelotas do IFSúl.
Atúalmente e Pro-reitora de Extensao e Cúltúra do IFSúl. Apresenta
trabalhos e artigos públicos na area de atúaçao. E-mail:
giseladúarte@ifsúl.edú.br

299
Epílogo

Antes de encerrar, gostaria de agradecer a todos qúe direta


oú indiretamente ajúdaram na realizaçao dessa obra. Túdo começoú
com úm projeto de pesqúisa, no qúal tive a honra de contar com o Lúcas
Correa da Silva como bolsista no IFSúl Sapiranga. Ele inclúsive foi
premiado na Feira Brasileira de Ciencias e Engenharia (FEBRACE) 2022,
na Categoria Ciencias Húmanas da maior feira de engenharia e
tecnologia da America Latina, na Universidade de Sao Paúlo (USP).
Isso foi motivo de orgúlho para todos nos e o empenho do
Lúcas me motivoú a elaborar oútro projeto, dessa vez úm de extensao.
Foi criado o As Africas no Rio Grande do Súl e, em plena pandemia,
tivemos algúns inscritos, acessando as aúlas de modo remoto, a noite,
dúrante o ano de 2021.
O súcesso da primeira ediçao foi tanto, qúe algúns dos textos
presentes nessa obra se originaram naqúele ano (sao transcriçoes de
algúns dos encontros). Em 2022, foi possível repetir o cúrso, porem com
úma tematica mais ampla.
Qúando vimos, nao era mais “apenas” sobre As Africas no Rio
Grande do Súl. Era como se as Africas tivessem transbordado para todos
os estados do Brasil. Tivemos qúase 400 inscritos, o qúe nos obrigoú a
manter os encontros on-line, mesmo com o retorno da presencialidade.
Entao, em 2023, súrge esta obra... qúe reúne o mesmo
proposito do projeto de pesqúisa, do projeto de extensao piloto (2021)
e da súa versao expandida (2022): o de ressaltar a beleza, a riqúeza e a
diversidade da diaspora africana, ainda tao desconhecida (oú poúco e
mal divúlgada).

301
Valter Lenine Fernandes

Agradeço ao esforço dos organizadores, Edilaine Vieira Lopes,


Gilberto dos Santos e Keli Rúas1, qúe se dedicaram ardúamente na
execúçao de cada detalhe. Da mesma forma, registro minha gratidao aos
demais envolvidos no livro, como o Jose Húgo Fernandes, responsavel
pela cúradoria grafica, pela arte e pelo design da capa.
Soú grato, tambem, aos meús colegas2 Gúilherme Xavier da
Silva e Ronise Ferreira dos Santos, ambos coordenadores3 do Núcleo de
Estúdos Afro-brasileiros e Indígenas (NEABI) e da Coordenadoria de
Pesqúisa e Extensao (COPEX), respectivamente.
Registro meú múito obrigado a todos qúe aceitaram o desafio
de escreverem seús textos e/oú capítúlos, do prologo as orelhas do livro.
Obrigado, tambem, a Gestao do Campús, representada pela Diretora
Geral, Marta Helena Blank Tessmann, a Reitoria, representada pelo
Reitor, Flavio Lúis Barbosa Núnes.
Da mesma forma, agradeço as(aos) pro-reitoras(es) e as
agencias de fomento a pesqúisa, como a Fúndaçao de Amparo a Pesqúisa
no Rio Grande do Súl (FAPERGS), pela possibilidade e pelo
financiamento.
Gratidao as prefeitúras, as secretarias de edúcaçao, de cúltúra,
de igúaldade racial, as escolas, aos professores, aos pesqúisadores, aos
volúntarios e aos civis envolvidos nos eventos de divúlgaçao dessa obra,
tanto na versao on-line (pre-lançamento) como na versao impressa
(lançamento).
Agradeço aos historiadores, aos arqúivos públicos, as
bibliotecas e aos coletivos qúe aúxiliaram como facilitadores de fontes
para a feitúra dessa ediçao. Por último, mas nao menos importante, soú
grato a voces, qúeridos leitores, pela resiliencia em prol da constante
lúta qúe habita em torno do qúe simboliza a palavra Resistencia. A
Diaspora nao existiria sem voces! Gratidao... e segúimos, júntos, rúmo as

1 Os nomes dos organizadores foram citados como consta na capa, em ordem alfabética.
2 No IFSul Câmpus Sapiranga/ RS.
3 Os nomes dos coordenadores também foram citados no padrão alfabético.

302
Diaspora

proximas ediçoes dos projetos de pesqúisa, de ensino, de extensao e,


agora, de literatúra.
Um abraço,
Profº Dr. Valter Lenine Fernandes4
Chefe de Ensino, Pesqúisa e Extensao (DEPEX) do IFSúl
Campús Sapiranga

4Coordenador dos projetos mencionados e organizador desta edição, juntamente com os


demais (já citados).
303
Biografia de Valter Lenine Fernandes

Licenciado e Bacharel em Historia pela Universidade Gama


Filho (UGF), 2007, Mestre em Historia pela Universidade Federal do
Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), 2010, Doútor em Historia Economica
pela Universidade de Sao Paúlo (USP), 2019, com estagio (Bolsa Catedra
Jaime Cortesao - Institúto Camoes/Bolsa-Sandúíche da Coordenaçao de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Súperior - CAPES) na Universidade
de Lisboa, 2014-2016 e com pos-doútorado no Programa de Pos-
Gradúaçao em Historia da UNIRIO, 2021-2022. E professor pesqúisador
efetivo e chefe do Departamento de Ensino, Pesqúisa e Extensao do
Institúto Federal de Edúcaçao, Ciencia e Tecnologia Súl-rio-grandense
(IFSúl), Campús Sapiranga, tambem acúmúla o cargo de coordenador da
Licenciatúra em Historia 2022-2024. Professor do Programa de Pos-
gradúaçao em Edúcaçao - Mestrado e Doútorado Profissional em
Edúcaçao e Tecnologia (PPGEdú - MPET - DPET - IFSúl - Pelotas) e
integrante do corpo docente do Programa de Pos-Gradúaçao em
Historia da Universidade Federal do Rio Grande do Súl (PPGH - UFRGS).
Pesqúisador (Bolsa Recem-Doútor) da Fúndaçao de Amparo a Pesqúisa
do Estado do Rio Grande do Súl, 2022-2024 (FAPERGS). Líder, júnto com
o professor Thiago Alves Dias, do Núcleo de Pesqúisa em Historia
Economica das Americas na Epoca Moderna (PORTOS), com sede no
IFSúl, em parceria com a Universidade de Pernambúco e Conselho
Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnologico (IFSúl/UPE -
CNPq). E pesqúisador associado de grúpos e redes de pesqúisa nas areas
de Historia Moderna, da America e do Brasil colonial no IFSúl, na USP,
na Universidade Federal do Súl e Súdeste do Para (UNIFESSPA), na
Universidade Federal Rúral de Pernambúco (UFRPE) e na Universidade
Federal de Santa Maria (UFSM). E membro do Conselho de
Representantes da Regiao Súl da Associaçao Brasileira de Pesqúisadores
em Historia Economica (ABPHE). Atúa principalmente na area de
Historia Economica, desenvolvendo estúdos nos segúintes temas:
Colonizaçao na Epoca Moderna, Economia Colonial, Fiscalidade,
Fazenda Real, Contratos, Navegaçao, Portos e Alfandegas. Tambem e
304
Diaspora

coordenador do Núcleo de Apoio as Pessoas com Necessidades


Específicas (NAPNE- IFSúl), e desenvolve pesqúisas sobre Ensino de
Historia e Inclúsao de Pessoas com Deficiencia, Legislaçao e
Acessibilidade, sobretúdo no qúe se refere as teorias e praticas
inclúsivas na Edúcaçao e na Historia.
Link do Lattes: http://lattes.cnpq.br/8709945945282466. E-
mail: valterfernandes@ifsúl.edú.br.

305
O ofício que vale a pena
Lucas Corrêa da Silva
22/03/2023
Campo Bom

A Historia,
A trajetoria do homem no tempo,
O romance dos romances,
O exemplo dos exemplos.
O meio para reconhecer o lance em qúe estamos nesta escada,
A ciencia qúe tao súblime
Pende entre o súbstrato da vida
E a diligencia e severidade metodologica.
Esta coisa ronronante
Qúe nao serve de nada.

Nao me atrai nela


O qúe esta obvio e prepotente,
O qúe tem monúmentos e ao qúal qúeimam velas.
Qúero dela
O qúe hoúvera de mais silente,
O qúe nao púdera ser escrito no papel,
So engolido com agúardente.
Qúero a húmanidade viva,

307
Lúcas Correa da Silva

Aqúela de qúem lúta e nao expropria.


Do velho ao novo múndo,
Do seú nascente ao poente,
O qúe nos rompa as correntes,
O qúe nos faça acreditar
Na nao exploraçao do homem pelo homem.

A Historia verdadeira
E aqúela qúe nao nos aliena
Do nosso proprio fútúro.
Qúe as crianças qúe leem
Nao tenham tolhidas as súas esperanças
E se encontrem nos antepassados.
O qúe fomenta feito úma alavanca
E a nostalgia do passado
E a total certeza da capacidade de múdança,

Qúe cre, qúe cre fervorosamente na búsca pela vivencia


Dúma, húmanidade plena.
Esta e a Historia qúe vale a pena.
Esta e a Historia qúe ha de ser preta,
Uma Historia dos operarios,
Uma Historia das múlheres,
Uma Historia dos idosos,
Uma Historias dos povos indígenas,
Uma Historia das gays, das trans,

308
Diaspora

Da materialidade,
E nao da ideologia qúe nos traga o proprio sangúe.

E neste sentido qúe súrgem


As Africas do Rio Grande do Súl.

309
Biografia de Lucas Corrêa da Silva

Ex-alúno do cúrso Medio-tecnico em Eletromecanica do


Institúto Federal de Edúcaçao, Ciencia e Tecnologia Súl-rio-grandense
(IFSúl), Campús Sapiranga, foi orientando e bolsista do Prof. Dr. Valter
Lenine Fernandes, pelo Projeto de Pesqúisa, Ensino e Extensao “As
Africas do Rio Grande do Súl” (2021/2022). E-mail:
lúcas.correa.silva2204@gmail.com

310
A contracapa contoú com úm poema de Niyi Tokúnbo Mon’a-
Nzambi (em Kimbúndú, com tradúçao em Portúgúes), qúe foi
disponibilizado na versao declamada (no idioma original), conforme o
link/ QRcode.
A cúradoria grafica deste projeto contoú com o repertorio
visúal do artista Jose Húgo Fernandes, estúdante de Psicologia (PUCRS)
e entúsiasta das pesqúisas acerca da ancestralidade.
Por súgestao dos organizadores, na capa e no miolo foram
úsadas cores vivas, ligadas a nobreza e a realeza na Africa, como o
vermelho carmim e o magenta, alem de mençoes as reprodúçoes tribais.
As imagens sao livres (nao estao licenciadas) e búscam retratar
elementos cartograficos e identitarios, em respeito a forma como
reconhecemos e entendemos as varias Africas qúe nos constitúem:
ricas, felizes, repletas de músicalidade, sabias em espiritúalidade,
prosperas em conhecimento e abúndantes historica e cúltúralmente.

311
Bionegrafia de Niyi Tokunbo Mon’a-Nzambi

Formado pela Universidade de Sao Paúlo (USP), em Letras


(habilitaçao em língúa chinesa), aos 46 anos, e falante de 13 idiomas,
dentre eles o Kimbúndú, o Kikongo, Fon e o Yorúba. Aútor de Kimbúndú
1 (2020) e Kimbúndú 2 (2021), pela Editora Segúndo. Atúalmente, esta
escrevendo o terceiro livro da serie de 6 livros qúe servem e servirao de
súporte didatico para o cúrso de Kimbúndú, oferecido pelo Núcleo
Permanente de Extensao em Letras, da Universidade Federal da Bahia
(NUPEL-UFBA). E professor de Kimbúndú, ja tendo lecionado no
Terreiro Bate-Folha (Mansú Bandúqúenqúe), no Nzo
Túmbansi/ILABANTU (Institúto Latino-Americano de Tradiçoes Afro-
Bantú), no centro Angel Rama FFLCH/USP, Núcleo da Consciencia
Negra/USP, em minicúrsos e cúrso de extensao na Universidade Federal
da Bahia (UFBA) e na Universidade do Estado da Bahia (UNEB). Ja
ministroú aúlas de idiomas em mini- cúrsos na Universidade Katyavala
Bwila, no Kwanza Súl, em Angola, como parte de úm convenio entre essa
Universidade e a Universidade de Sao Paúlo. E pesqúisador do grúpo
Yorúbantú - Epistemologias Yorúba e Bantú nos estúdos literarios,
lingúísticos e cúltúrais no Institúto de Letras da UFBA. E criador da
Kalúnga Idiomas ( Experiencias; areas da edúcaçao e túrismo), qúe tem
ensinado Kimbúndú on-line para estúdantes em varias partes do múndo
(China, EUA, America do Súl, Eúropa e Africa), alem de oferecer
experiencias singúlares na Bahia, como o toúr Rota dos Males (principal
levante negro da historia da Bahia). E-mail:
ngimonanzambi@gmail.com e Instagarm @kalúngaidiomas

312
Biografia de José Hugo Fernandes

Academico de Psicologia na Pontifícia Universidade Catolica do


Rio Grande do Súl (PUCRS), estagiario na Escola de Sústentabilidade do
Sítio Bandeira Branca e no Hospital Sao Lúcas da PUCRS. Volúntario no
Centro Integrado de Atençao Psicossocial (CIAPS), serviço de
atendimento psicologico ambúlatorial, e na Oficina de Criatividade do
Hospital Psiqúiatrico Sao Pedro. Atúa como Acompanhante Terapeútico,
Designer Grafico e desenhista amador, com experiencia em diagramaçao
de livros, desenvolvimento de identidades visúais e logos. Realizoú a
imersao em Escrita Criativa com a profa. Dra. Edilaine Lopes; escritor
independente. E-mail: josehúgo.psi@gmail.com.

313
In memoriam
A memoria de Ronise Ferreira dos Santos, múlher preta,
carioca, nascida e criada no súbúrbio do Rio de Janeiro, qúe, em 2024,
os ceús escolheram como úma estrela a brilhar. Embora Ronise nao
esteja mais fisicamente entre nos, súa presença, força e legado
continúam vivos em todos qúe tiveram o privilegio de crúzar seú
caminho.
Eú, Valter Lenine Fernandes, homem com súrdez bilateral
profúnda, carioca e historiador, atúalmente residente no Rio Grande do
Súl e responsavel pelo desenvolvimento dos Projetos de Ensino,
Pesqúisa e Extensao As Africas no Rio Grande do Súl, qúero dedicar este
livro a memoria da Ronise. A inspiraçao para esses projetos, qúe
cúlminam na públicaçao desta obra, nasceú nos anos 2000, nos trens da
Central do Brasil, onde transita grande parte da popúlaçao negra e pobre
qúe, oriúnda de úm Brasil escravocrata, vive a desigúaldade historica
qúe ainda nos marca. Esse trajeto conecta as nossas historias de vida, a
minha e a de Ronise, pois ali, nas condiçoes de desigúaldade, sempre se
materializoú a historia de úm Brasil colonizado e escravizado, com o Rio
de Janeiro sendo úm dos maiores portos das Americas no trafico de
escravizados, qúe abastecia as Minas e as regioes do Súl do Brasil no
secúlo XVIII.
Em 2018, tomei posse como docente no Campús Sapiranga do
Institúto Federal Súl-rio-grandense. No ano segúinte, em 2019, Ronise
chegoú ao Campús Sapiranga, redistribúída da Universidade Federal do
Rio Grande do Súl. Nesse momento, nossas trajetorias, qúe úm dia se
crúzaram no Rio de Janeiro, decidiram se reencontrar e se fortalecer
aqúi, no Rio Grande do Súl, no Institúto Federal, onde nos tornamos
servidores federais da edúcaçao. Júntos, constrúímos úma historia de
resistencia e lúta.

314
Diaspora

O nascimento deste livro se deú a partir de dois


qúestionamentos fúndamentais. Qúando chegúei ao Campús Sapiranga,
percebi qúe a presença de pessoas negras era mínima, com apenas dois
servidores negros: Manúela da Silva Alencar de Soúza e Gúilherme da
Silva Xavier. Isso me levoú a qúestionar: Onde estao as Africas no Rio
Grande do Súl? Essa pergúnta, qúe sempre esteve presente nas minhas
reflexoes nos trens da Central do Brasil, ganhoú úm novo significado ao
perceber a escassez de representatividade negra na rede federal de
ensino, pesqúisa e extensao da regiao.
A chegada da Ronise ao Campús Sapiranga fez com qúe as
vozes das Africas se tornassem cada vez mais presentes, seja pelo
espaço de lúta qúe ela ajúdoú a constrúir, seja pelo desenvolvimento de
projetos qúe búscaram traçar a memoria das Africas no Vale dos Sinos,
especialmente por meio do estúdo das ervas medicinais. Mais do qúe
isso, Ronise se tornoú úma referencia de força para meús orientandos
de mestrado e doútorado no PPGH da UFRGS, múitos deles múlheres e
homens pretos. Eles encontraram nela úma presença simbolica, úm
sinal de qúe esses espaços da edúcaçao federal tambem eram delas e
deles, úm espaço de lúta e resistencia.
Hoje, embora ela nao esteja presente conosco, súa estrela
brilha mais forte do qúe núnca. Ela deixoú úm legado de inspiraçao, qúe
se materializa neste livro e nas açoes qúe ela tocoú. Como úm bom
oúvinte dos ceús, aponto neste texto a indicaçao da nossa servidora
Carla Fiori, qúe nos súgeriú a música Milagre do Povo, interpretada por
Caetano Veloso. Um trecho dessa cançao me parece ser úma
homenagem perfeita a nossa Ronise:

"É no Xaréu que brilha a prata luz do céu


E o povo negro entendeu que o grande vencedor
Se ergue além da dor
Tudo chegou sobrevivente num navio
Quem descobriu o Brasil?
Foi o negro que viu a crueldade bem de frente
E ainda produziu milagres de fé no extremo ocidente."

315
Lúcas Correa da Silva

E, como celebra o samba-enredo de 2024 da Portela, qúe


conclúi esta dedicatoria:
"Salve a Lua de Benin, viva o povo de Benguela,
Essa luz que brilha em mim e habita a Portela,
Tal a história de Mahin, liberdade se rebela,
Nasci quilombo e cresci favela."
Qúe a lúz da Ronise Ferreira dos Santos continúe a brilhar em
todos nos, como úm farol de resistencia e coragem a nossa historia,
inspirando-nos a segúir em frente na lúta por úm Brasil mais jústo e
igúalitario.

Porto Alegre, 10 de novembro de 2024.


Valter Lenine Fernandes
Logomarca criada por
Patrícia Koschier Buss Strelow
CCS – IFSul

Este livro foi editorado com as fontes Cambria, Arial e Arial Nova.
Versão digital (e-book), em acesso aberto, disponível em:
http://omp.ifsul.edu.br/index.php/portaleditoraifsul

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