A Perspectiva Das Crianças-Corpo e Território Na Identidade Quilombola Infantil
A Perspectiva Das Crianças-Corpo e Território Na Identidade Quilombola Infantil
A Perspectiva Das Crianças-Corpo e Território Na Identidade Quilombola Infantil
3 - 2017
Resumo: Este artigo aborda a compreensão da identidade quilombola a partir da observação e escuta de um
grupo de crianças da comunidade remanescente de quilombo Brotas, localizada dentro da cidade de Itatiba/
SP. Dentre as experiências das crianças em torno da identidade e da relação com o território quilombola, abordo
o aspecto ligado ao corpo como lugar que informa quem é na relação com o Outro. Para compreender este
processo que informa a terra como lugar da identidade, primeiramente, apresento a história remota e recente
do Quilombo Brotas e, em seguida, um episódio da pesquisa em que as crianças dialogaram comigo sobre o
processo identitário que subjaz suas experiências infantis, e revelam a importância da escola como espaço de
educação e construção das identidades.
Palavras-chave: quilombos, criança quilombola, educação.
Abstract: This article discusses the understanding of the quilombola identity from the by observing and listening
to a group of children from the remaining community of quilombo Brotas, located within the city of Itatiba/
SP. Among the experiences of children around the identity and the relationship with the quilombola territory,
I approach the aspect linked to the body as a place that informs who it is in relation to the Other. In order to
understand this process that informs the earth as a place of identity, I first present the remote and recent history
of Quilombo Brotas and then an episode of the research in which the children dialogued with me about the
identity process that underlies their childhood experiences, and reveal the importance of the school as a space for
education and the construction of identities.
Key Words: quilombos, quilombola child, education.
Introdução
A “perspectiva das crianças” diz sobre “um modo de ver” o vivido por elas, a partir de
experiências com outras, de mesma idade e de idades diferentes, e com adultos, velhos, mulheres,
homens e jovens em diferentes lugares. Esta é uma “perspectiva” com a qual realizei a pesquisa
etnográfica junto às crianças do Quilombo Brotas1, uma comunidade remanescente de quilombo
situada no estado de São Paulo, e por meio da qual procurei entender a identidade do grupo e as
expressões infantis acerca do pertencimento étnico-racial.
Esta “perspectiva”, enquanto sinônimo de “ótica” ou “modo de ver”, tem sido também uma
abordagem teórico-metodológica que considera as crianças como sujeitos sociais e culturais que
muito podem nos dizer, a partir de diferentes linguagens, sobre onde vivem e como entendem
o universo social do qual são parte. Este artigo aborda a relação entre o território quilombola e a
identidade a ele referida – uma identidade quilombola em relação à identidade negra –, a partir
do olhar das crianças que dele fazem parte e nasceram durante o processo de reconhecimento
identitário do grupo.
Ao considerar as crianças como sujeitos “fidedignos” da pesquisa, como nos diz José de
Souza Martins, em O massacre dos inocentes: a criança sem infância no Brasil2, dialogo com os
estudos da infância e da criança realizados nas últimas duas décadas pelos campos da Antropologia
da Criança3, da Sociologia da Infância4 e da Pedagogia da Infância5, que entendem as crianças como
1 Pesquisa de doutorado concluída em 2015, a partir da imersão etnográfica realizada durante o ano de 2013, com as
crianças da comunidade. Contudo, adentrei na comunidade em 2006, durante a pesquisa de mestrado.
2 Ver Martins (1993).
3 Cohn (2005), Nunes (2002); Pires (2007).
4 Corsaro (2011), Sarmento (2005) e Delalande (2009).
5 Abramowicz, Oliveira (2011); Finco, Faria (2011); Gobbi (1997); Noal (2006); Oliveira (2004); Prado (2006); Santiago
(2014).
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sujeitos sociais que participam a seu modo dos grupos e sociedades das quais são parte, e que
possibilitam novas perspectivas de compreensão das relações sociais e dos processos simbólicos
que as orientam. O que as crianças fazem, pensam ou falam torna-se importante para compreendê-
las, pensar sobre elas e as sociedades. As produções infantis são concebidas e valorizadas como
válidas para analisar grupos e a sociedade mais ampla, deixando o patamar de mera reprodução do
mundo adulto (FINCO, FARIA, 2011; PRADO, 1999; ROCHA, 2008).
Neste sentido, o que as crianças do Quilombo Brotas evidenciaram através de suas falas,
silêncios, brincadeiras, movimentos, durante a etnografia realizada com elas ao longo de um
ano, ampliou a compreensão da territorialidade e da identidade do grupo e, ao mesmo tempo,
explicitou aspectos da própria experiência infantil existente naquele contexto histórico, social,
político e cultural.
Dentre as experiências das crianças em torno da identidade e da relação com o território
quilombola há uma ligada diretamente ao corpo, enquanto criança negra de um lugar específico
– um quilombo –, na relação com uma sociedade que reproduz processos discriminatórios,
desigualdades e exclusão a partir do pertencimento étnico-racial. Para compreender este processo
que informa a terra como lugar da identidade, primeiramente, abordarei a história remota e recente
do Quilombo Brotas e, em seguida, um episódio da pesquisa em que as crianças dialogaram comigo
sobre o processo identitário que subjaz suas experiências infantis.
6 Dado informado por Dona Ana Maria, presidente da Associação Quilombo de Brotas, em 07/12/2013. Vale ressaltar
que toda a pesquisa foi autorizada pelos sujeitos participantes e pela associação quilombola.
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Estadual de Campinas – UNICAMP, em Campinas. Um exemplo foi o menino JO, de 12 anos7, que
até 2014 era levado pela família, duas vezes por semana, a este hospital para a realização de
hemodiálise.
No Quilombo, as casas estão localizadas conforme a proximidade de parentesco
entre filhos e irmãos. Exemplos dessa organização territorial são as casas das quatro filhas de Dona
Maria do Carmo (Amélia, Ana Tersília, Cristina e Sandra), bisneta de Emília e já falecida. Suas casas
são próximas uma da outra. Outro exemplo é de Ana Maria (tataraneta de Emília) cujas filhas
casadas, Patrícia e Paula, construíram suas casas próximas a da mãe.
Essas e as demais casas foram construídas em alvenaria, com salas mobiliadas com
sofás, estantes ou racks, televisão, aparelho de som, dvd. As cozinhas têm fogão, armários e mesa
com cadeiras e aparelhos eletrodomésticos, tais como liquidificador e batedeira. Nos quartos
há camas, guarda-roupas e cômodas. Todas as casas possuem banheiro, variando apenas os
acabamentos, de modo que, alguns têm piso frio no chão e nas paredes e outros não. Algumas
casas possuem teto em laje coberto por telhas de amianto ou cerâmica, e outras são
cobertas diretamente com telhas. Os quintais, geralmente, têm uma horta, muitas árvores
frutíferas, e plantas. Neles, há também indicações da existência de crianças na família,
pois conseguimos avistar seus brinquedos, balanços montados em galhos de árvores, bicicletas
encostadas, carrinhos ou bolas.
As moradias são separadas por cercas, que definem o quintal de cada família.
Outros espaços de convivência do grupo são as pracinhas, demarcadas por árvores suntuosas
e bancos. Além delas há as ruas, a “casinha”, o campinho, espaço ocupado nas festas e eventos
do Quilombo, e onde as crianças e adolescentes jogam futebol ou empinam pipas. Lugares como
o “riozinho”8 e a mata são importantes para as crianças, pois ali se escondem e transitam sem
terem, necessariamente, a presença de um adulto.
A “casinha” é um espaço de realização de diversas atividades pela comunidade. Durante
a pesquisa houve aulas de capoeira, de catecismo e de bordado, refeições para estudantes em
visitação, festas com apresentações de grupos de samba, rodas de conversa com estudantes,
reuniões com comunidades quilombolas e representantes institucionais. Nessas atividades e
fora delas sempre há crianças brincando de maneira livre ou restrita pela presença de adultos.
A ocupação das ruas e dos quintais do Quilombo pelas crianças, desde cedo até ao
anoitecer, tem as marcas do próprio processo de territorialização do Quilombo (ou Sítio)
ao longo dos últimos anos. A existência das três ruas terraplanadas e iluminadas evidenciam
as mudanças ocorridas no Sítio Brotas, desde os anos de 1990, em consonância com as
transformações vivenciadas pelas comunidades remanescentes de quilombo brasileiras nas duas
últimas décadas.
No Quilombo Brotas, as modificações territoriais recentes envolvem o último processo
de ameaça de perda das terras adquiridas por compra. Os quilombolas contam que foram
momentos difíceis, em que observavam, desde 2001, o avanço das obras do loteamento Nova
Itatiba II, que ladeia o território.
O empreendimento impunha um conjunto de mudanças que, desde a década de
1990 ocorria no entorno do Sítio, quando surgiram loteamentos que destruíram a mata
existente. Foi nessa mesma década que houve a terraplanagem no Sítio e a criação das três ruas
de terra principais: Rua Fabiano Barbosa, Rua Bento Barbosa e Rua Claro Barbosa.
O avanço nas obras desse novo loteamento, destinado a casas de alto padrão de luxo,
afetou diretamente os quilombolas, assoreando o córrego (“riozinho”) e diminuindo seu curso
7 Optei pela identificação das crianças a partir de duas letras contidas em seus nomes, buscando garantir-lhes o anonimato.
Ocultar seus nomes, apesar da autorização em Termo de Livre Consentimento Esclarecido, e da assertiva das crianças em
participarem da pesquisa, foi uma forma de não constranger as crianças em relação ao universo adulto. Como fez Paula
(2014), em pesquisa com crianças quilombolas da região Sul, “revelar seus nomes [das crianças] poderia, em certa medida
expô-las, já que falo delas e com elas, tanto nas comunidades onde moram, como também na instituição educativa. E
mais ainda: trago seus depoimentos e pontos de vistas sobre os contextos em que elas transitam” (p. 90, chaves nossas).
Já em relação aos adultos, mantive a descrição de seus nomes, como o fiz durante a pesquisa de mestrado, já que estes
estavam mais acostumados a reter seus depoimentos e ações em pesquisas acadêmicas, documentos institucionais e
livros sobre a história e memória do grupo.
8 Modo como as crianças se referem ao córrego que atravessa o território quilombola.
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d’água. Os quilombolas relatam que o assoreamento causou a perda de água para o consumo nas
casas (poços) e a extinção dos peixes que havia nele. Além disso, o assoreamento também afetou
a prática religiosa da umbanda, que ocorria desde a década de 1950, liderada por Tia Lula (Maria
Emília Barbosa Gomes), neta de Emília. Segundo o relato de Tia Lula, no Relatório Técnico-Científico
(ITESP, 2004) de reconhecimento do Sítio como Quilombo, os danos ao córrego dificultaram a
realização dos trabalhos.
Os quilombolas observavam a construção do loteamento, mas não esperavam que
afetasse suas terras. Entretanto, em meio aos fatos descobriram que havia desde 1970 um projeto
municipal para a construção de um Sistema Viário cujas vias de tráfego atravessariam o Sítio, o que
afetaria a organização das famílias e até mesmo a permanência nas terras.
As ameaças externas mobilizaram os quilombolas a se organizarem em Associação e a
procurarem apoio de grupos políticos e institucionais. Nesse caminho, o grupo conheceu a ONG
Fórum Pró- Cidadania9, que diante dos fatos narrados e da história de formação do Sítio orientou que
solicitassem ao Instituto de Terras do Estado de São Paulo (ITESP) o reconhecimento do território
como quilombola. A mesma organização também auxiliou os quilombolas no encaminhamento
de denúncias aos Ministérios Públicos Estadual e Federal, referentes às irregularidades ambientais
promovidas pelo empreendimento imobiliário (ITESP, 2004).
Os processos jurídicos e institucionais instaurados em 2003 culminaram com a conquista,
em 2004, do reconhecimento do Sítio Brotas como Quilombo Brotas, e com o embargo das obras
iniciadas em torno do território. Do ponto de vista político, o reconhecimento fortaleceu o grupo
diante dos interesses capitalistas em suas terras e das ações municipais em planejamento. Foi uma
forma de dizerem à sociedade que ali residiam famílias negras que deveriam ser respeitadas
em sua história e identidade. Contudo, ao longo dos anos observamos que as construções no
loteamento seguem, ainda que lentamente, o que nos leva a indagar sobre a efetiva execução
das determinações judiciais e o respeito às terras do Quilombo Brotas.
Tais processos inseriram novos significados para a identidade do grupo, que agora
quilombola passou a compor um cenário mais amplo de lutas em defesa de terras quilombolas
e da melhoria de suas condições de vida. Além disso, a participação no movimento
quilombola introduziu no grupo processos de educação responsáveis pela releitura da história,
do significado da terra e, com isso, do significado do “ser quilombola” (SOUZA, 2009).
Tal aprendizado envolveu a reconstrução da memória da infância dos fatos vividos pelos
antepassados, histórias atreladas à terra hoje ocupada, e que se ampliam para a história de
outros lugares, como as cidades de Jundiaí, Campinas e São Paulo, além da própria cidade de
Itatiba. São fatos referentes a tempos remotos, que alcançam a escravidão e estão presentes
no universo das crianças, que os relatam a seu modo, mostrando a importância dos antigos na
atualidade. Estas são histórias ouvidas dos adultos, recontadas em desenhos, conversas, projetos
de teatro ou audiovisuais, mas também em forma de silêncio ou de risada diante de perguntas,
como: “O que seus colegas de escola pensam do Quilombo?”.
A narrativa da terra comprada é uma das histórias sempre presente na conversa com
um adulto. Do mesmo modo, ao pedir para uma criança que diga por que ali é um Quilombo,
sempre há em sua resposta a figura de vó Amélia e o dinheiro guardado num baú, para a compra
da terra. Para todos, é importante dizer da luta dos antepassados para a aquisição das terras onde
vivem e relatar a história de Amélia e de seus pais, Emília e Isaac. É uma forma de dizerem: eu
descendo deles e por isso estou aqui!
9 A ONG Fórum Pró-Cidadania foi criada em 2002, situa-se em Itatiba-SP, e participa de atividades em torno da diversidade
étnico-racial e de gênero, além de desenvolver trabalhos sobre desenvolvimento sustentável.
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São Benedito), onde conheceu Isaac de Lima (por volta de 1850). O casal teve vários filhos, dentre
eles, Amélia, nascida em 1876 (ITESP, 2004).
Quando o fazendeiro faleceu deixou em testamento a liberdade da família de Emília e
Isaac, que foram trabalhar numa fazenda cujos proprietários, Rita Rodrigues e José Francisco
Rodrigues, participavam do movimento abolicionista. Suas terras serviam de esconderijo de
escravizados da região. Os quilombolas relatam que eles “gostavam de negros”, por isso os
escondiam, receberam seus “avós”10 como trabalhadores e, entre 1878 e 1885, venderam parte
da fazenda para Emília e Isaac.
Em fins do século XIX, as terras do atual Quilombo Brotas perfaziam uma fazenda de abrigo
de escravizados fugidos e negros libertos. Com o trabalho nessa fazenda o casal de negros, Emília
e Isaac, adquire através da compra “uma ponta” da fazenda, expressão usada pelos quilombolas
para se referirem aos aproximados 12 hectares de terras que conformam o Quilombo. De
acordo com os quilombolas, o dinheiro da compra foi guardado num baú mantido até hoje na
casa de Tia Lula. Esse baú é uma das referências históricas e simbólicas da existência do grupo, e
representa o trabalho árduo dos antepassados em prol de uma terra para todos.
Dona Ana Maria, bisneta de Amélia, contou que após a compra do Sítio, Amélia reclamava
da dureza do trabalho de carpir a terra onde ia morar. Segundo ela:
Aí depois que minha vó veio, diz que era como mata
verde picadeiro, tinha a entrada da porteira que é lá
mesmo, subia até lá em cima. E ela chorava porque
tinha que devastar aqui, e não tinha lugar pra ela morar
e era a parte de cima que ela tinha que limpar. E ela
chorava, ela chorava! Aí meu vô falava pra ela. Por isso
que eu digo que meu avô era um homem de sabedoria
assim porque ele pensava em nós. Ele não sabia que nós
viríamos, mas ele falava: Amélia, não desanime, porque
isso daqui será usos e frutos de outros que virão!11
A fala de Amélia, rememorada de diferentes maneiras, em muitas conversas e por
todos os quilombolas, representa internamente a expressão da luta, do trabalho, travados por
seus “avós” na aquisição de um lugar de moradia e sustento para as gerações futuras. Luta
pela liberdade e autonomia que iniciou durante a escravidão, quando Emília e Isaac foram
vítimas do trabalho escravizado, e em seguida, como trabalhadores livres que adquiriram uma
terra pensada para si e para a descendência. Atualmente, seus netos e bisnetos traduzem nos
enfrentamentos políticos e institucionais de defesa do território quilombola, os anseios dos
antepassados, de trabalho por autonomia e liberdade, pensando nas crianças e naqueles
que virão.
Amélia é a filha que permanece nas terras dos pais, e por isso, é a sua história que
sustenta a territorialidade do grupo. Casou-se com Fabiano Barbosa e teve dez filhos, a quem
ensinou a importância das terras como sinônimo de autonomia e refúgio, e inclusive, de refúgio
temporário para amigos e parentes que enfrentassem dificuldades financeiras. Ela também
ensinou a importância da ajuda entre parentes e foi conhecida por cuidar de seus netos, bisnetos
e sobrinhos.
A dureza do trabalho dos “avós” também é retratada na forma como Amélia procurava
manter o sustento dos filhos. Tia Aninha (Ana Teresa, neta de Emília, 76 anos) contou que
vó Amélia foi para São Paulo com sua filha Sebastiana para trabalhar como ama-de-leite.
Ela relatou que após a morte de seu avô, Fabiano Barbosa, sua avó procurou trabalho num
sítio, para onde levou consigo alguns filhos. O trabalho era na roça, e vó Amélia o fazia “como um
homem”, de modo que, ao pedir as contas o patrão não aceitou, pois ela “deu mais dinheiro do que
um homem”. Amélia foi embora mesmo diante da recusa do fazendeiro, afirmando que “Se ele
não me deixar eu passar eu corto ele com a foice e vou embora” (relato de Tia Aninha).
10 Expressão usada pelos quilombolas para se referirem tanto aos avós maternos e paternos diretos, isto é, pais de seus
pais e mães, como a Vó Amélia, Emília e Isaac.
11 As falas das crianças e dos adultos quilombolas estão destacadas em itálico.
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12 De acordo com esta legislação: Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas
terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos (BRASIL, 1997).
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Sítio (Quilombo Brotas) é diferente dos outros sítios, das outras áreas rurais ou urbanas pobres.
A menina quilombola sabe que “a divisa de terras” aponta para uma nova linguagem, que
até então era restrita ao mundo do trabalho na cidade, da compra no supermercado, da ida ao
banco, da solicitação de uma consulta médica ou matrícula na escola, e que se ampliou a partir do
ingresso do grupo no campo jurídico, institucional e político do conflito fundiário, que é antigo,
amplo e complexo, mas que passou a ter novos moldes a partir da Constituição Federal.
Ser quilombola é difícil porque impõe o entendimento de quem se é no jogo de relações
sociais com uma cidade que não os reconhece nem valoriza. Com isso, “não é nada fácil”, pois
exige desconstruir a ideia colonizadora de quilombo como lugar remoto, onde negros escravizados
se refugiavam e, ao mesmo tempo, entender e participar do campo de luta pela titulação das
terras, e por direitos que eliminem as desigualdades sociais e raciais que vivenciam.
Em relação ao Quilombo Brotas, durante o processo de reconhecimento do território como
remanescente de quilombo houve um empreendimento interno na desconstrução da ideia
que o próprio grupo tinha acerca do significado do termo “quilombo”. Os moradores afirmam
ainda hoje que são quilombolas de terra comprada, e o fazem afirmando a compra como algo
legítimo, que de fato aconteceu, mas também para dizerem que não viveram a violência e a
perseguição relativa aos quilombos de fuga.
A ideia do quilombo como lugar de negros fugitivos da escravidão carrega no imaginário dos
quilombolas a afirmação de uma infração, de um crime, que seus antepassados não cometeram.
Quando se depararam com a identificação do então Sítio Brotas como um quilombo, os
quilombolas questionaram a definição que aprenderam e que ainda vigora no imaginário social
acerca do que são os territórios quilombolas. A concepção unívoca, definida pelo Conselho
Ultramarino no século XVIII como lugar de negros reunidos em fuga do trabalho escravizado,
e por isso, negros infratores e criminosos, era a que vigorava no grupo quando houve o processo
de identificação quilombola (LEITE, 2000). Uma concepção que não condizia com a história
da terra e do grupo, e cujo processo de ressignificação local intersecciona com outras realidades
quilombolas brasileiras.
Se a história do grupo, que não envolve a fuga, colocava em questão o significado do
quilombo, o que dizer de uma terra e de um grupo que não está isolado da sociedade envolvente?
Hoje o Quilombo Brotas está, geograficamente, situado dentro da cidade de Itatiba, num bairro
urbano, em meio a grandes empreendimentos imobiliários também urbanos. Seus moradores
trabalham em Itatiba, nas cidades vizinhas e em outras terras, desde os primeiros moradores,
elucidando que nunca houve isolamento do grupo. O que pode ser chamado de “isolamento”
no Quilombo Brotas ocorreu até os anos de 1980, quando o território, estabelecido como um
Sítio, ainda estava distante da cidade, que não tinha sofrido o crescimento urbano subsequente.
O crescimento urbano e suas influências no Quilombo Brotas evidenciam que a ideia
do isolamento das comunidades remanescentes de quilombo é um equívoco. A vida nesses
grupos está, historicamente, atrelada à sociedade que os cerca, às cidades e regiões onde
se situam, à economia que subjaz o cotidiano dos sujeitos desses municípios, que influencia
quilombolas e não-quilombolas.
No Quilombo Brotas, a expansão da cidade nas últimas três décadas levou bairros populares
e de alto padrão para suas cercas. A compra de alimentos, o acesso aos serviços de saúde e às
escolas era feito caminhando até a cidade. Essa distância não os impedia de visitar familiares no
centro de Itatiba, frequentar festas ou adquirir produtos no município. Se assim é no presente, não
foi diferente no passado.
A partir dos relatos dos quilombolas, contidos no Relatório Técnico- Científico (ITESP,
2004), evidencia-se como Amélia frequentava grupos da cidade, mantendo relações que
interligavam o Quilombo à cidade e vice-versa.
Maria do Carmo, neta de Amélia de Lima, conta que sua avó
era uma mulher muito católica que era responsável em
fazer a “reza do defunto”, provavelmente, fazia parte da
Irmandade de São Benedito. Amélia de Lima frequentava a
festa para São Benedito do Largo do Rosário (p. 47).
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As irmandades foram criadas como uma forma de apoiar a população negra, frente
à exclusão de espaços sociais, políticos, religiosos e educacionais. A participação de Amélia
num grupo do “movimento de protesto dos negros” informa como ela transpunha os limites
geográficos do então Sítio Brotas, elucidando os equívocos presentes na ideia do isolamento
das comunidades quilombolas.
A presença de pessoas da cidade no Sítio, parentes ou não, era uma realidade
desde os tempos de Amélia. A memória da infância dos adultos traz pessoas que pediam moradia
temporária no Sítio, e de ônibus que chegavam repletos de pessoas de outras cidades para as
festas do terreiro de Umbanda de Tia Lula.
De acordo com o ITESP (2004):
Segundo os moradores do Quilombo Brotas, seus
antepassados tinham por tradição receber em seu sítio
todas as pessoas que tinham problemas financeiros e não
tinham um lugar para morar. D. Maria conta que sua avó
Amélia costumava ter casinhas de barrote vazias, mas sempre
bem cuidadas que ela emprestava para quem precisasse
morar. As pessoas ficavam um tempo e depois que ajeitavam
a vida elas iam embora (Dona Maria, p. 37).
13 Idade em 2013.
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conversamos sobre o que gostavam dentro e fora do Quilombo. Animadas, elas passaram a listar
pessoas das quais gostavam, como parentes e amigas da escola.
A menina RL (8 anos) listou primas e meninas da escola. Em meio a sua fala perguntei se
preferia que eu dissesse quilombo ou sítio. Ela afirmou que eu poderia falar sítio. AB exclamou:
“Tanto faz! Uma palavra bem fácil!”, ao que RL completou: “Pode ser QB!”.
Perguntei a ela se aquelas meninas da escola vinham no Quilombo, ao que respondeu
negativamente. Em seguida, indaguei onde dizia que morava, e uma de suas primas respondeu:
“Aposto que no Nações!” – referindo-se a um bairro próximo. Então perguntei se ela falava sítio,
quilombo ou QB, e ela respondeu: “Sítio!”, seguida de uma sequência de gargalhadas. Curiosa,
juntei-me ao coro interessado em saber por que ela ria tanto. RL nos disse, em meio às risadas: “É
que nós se suja muito!”.
Houve silêncio e falas indignadas das meninas. AB exclamou: “Ahhhhhh! Porque nós se suja
muito! Ahhh!” Eu perguntei: “Como assim?”. RL, já recuperada das risadas, foi assertiva: “Eu tenho
vergonha porque eu acho que eles pensam que eu sou muito suja!”.
A fala de RL engendrou um debate entre as meninas, permeado por minhas indagações:
A menina RL apresenta a percepção que tem acerca de seu corpo negro e quilombola, diante
de padrões de limpeza aceitáveis na sociedade e presentes no universo da escola. Uma leitura
desconectada da realidade quilombola estudada, e da infância nela existente, poderia questionar
o sentido da relação entre o cuidado do corpo e o racismo. No entanto, como diz Gomes (2008, p.
141):
quando o cuidado é sempre vinculado aos sujeitos que
possuem uma aparência física específica, ligada a determinado
pertencimento étnico/racial, ele se torna preocupante.
Quando essa aparência física é vista a priori como suja e sem
higiene, a situação torna-se mais preocupante ainda.
Um corpo negro percebido como sujo pela criança que o possui evidencia uma consciência
corporal infantil, ou seja, a corporeidade em construção num determinado contexto histórico, social,
político e cultural. Apresenta o corpo como lugar de comunicação e com o qual se dão interações
sociais de aceitação ou rejeição (GOMES, 2008). Um corpo que é “simultaneamente vidente (eu
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vejo e eu me vejo) e visível (sou visto)” (p. 232), que é “objeto e sujeito da natureza e da cultura”
(Idem), e nesse sentido, projeta e é percebido pelos sujeitos sociais em interação.
O corpo é um campo de significação onde pairam “as sensações, as pressões, os julgamentos”
(Idem, p. 230), que no caso dos negros, implica em processos históricos de inferiorização e rejeição.
O conjunto de representações sociais negativas em relação à população negra no Brasil decorre de
processos escravistas que, para sustentarem-se, disseminaram a ideia do negro como sujeito sem
alma, animalesco, imoral, promíscuo, sujo, atrasado.
Para Gomes (2008, p. 136):
Tais representações foram se metamorfoseando no decorrer
da história: de incapacidade moral à incapacidade física e
intelectual; de sexualidade exacerbada ao mito da “mulata”
sensual. Fazem parte, portanto, de uma ideologia da
escravidão que, a despeito do momento histórico em que
foi formulada, possui força duradoura e, no Brasil, tem sido
reforçada pela baixa condição social e econômica na qual se
encontra a maioria dos negros desde a abolição.
O corpo negro da criança quilombola é esse lugar que comunica de onde ela vem: uma
comunidade negra, cujas moradias estão em ruas de terra, e os moradores vivem em condições
sócio-econômicas baixas. Ela é uma criança que traz em seu corpo a terra, considerada como
sujeira, em oposição à limpeza e ao asfalto da cidade. Mas, o que de fato está em jogo nessa auto-
identificação é a conotação moral atribuída à limpeza e à sujeira, e a relação com os sujeitos sociais
negros.
De acordo com Gomes (2008), foi com a transformação das cidades, que o termo “limpo”
passou a significar ”distinção, elegância, ordem”, de modo que “A limpeza das coisas passa a ser um
indicador da limpeza da alma e crescentemente se admite que um povo limpo é também ordeiro e
disciplinado” (p. 140).
Para a autora, a sociedade higienizada produz hierarquias que resultam na associação sujeira-
poluição-imoralidade com um determinado grupo social e racial. Na pesquisa realizada sobre corpo
negro e cabelo crespo14, a autora reconheceu a existência de uma hierarquização no modo como
os sujeitos da pesquisa se identificavam, ressaltando a maior aceitação social de seus corpos, desde
que bem aparentados e limpos. Nesse sentido, ela afirma:
é impossível não lembrar de que a acusação de sujeira física,
moral e da “alma” tem sido historicamente imputada ao
corpo do negro e da negra em nossa sociedade. Muitas vezes,
essa leitura racista é introjetada pelo próprio negro. Uma
análise detalhada dessa situação revela-nos que a relação
negro = sujeira é a expressão de relações raciais e de poder
assimétricas. Aquele que acusa o outro de impureza, quer seja
social, quer seja racial, está reivindicando para si próprio a
ideia de superioridade (GOMES, 2008, p. 140).
Algumas considerações...
A partir do processo histórico e político de conquista e defesa das terras do Quilombo
Brotas, apresentei neste artigo a especificidade desse território e aspectos das relações sociais que
traduzem sua territorialidade e a identidade do grupo. O que dizem as crianças sobre o modo como
são percebidas pelos de fora, especificamente, da escola, revela um processo de negação do corpo
negro e do quilombo enquanto símbolo de atraso e em oposição ao desenvolvimento da cidade.
O modo como a criança reage a tal processo de exclusão e preconceito racial revela os
agenciamentos infantis diante das experiências vividas, de modo a evitar a exposição à negação
e à discriminação, revelados como pensa a si mesma na relação com o outro. Assim, ao “achar”
que é vista na perspectiva da sujidade, a criança aponta como seus olhos percebem a maneira
como é vista pelo outro, de fora e morador do asfalto da cidade, detentor de outra história, que
não passa pela escravização, a identidade negra, a história atrelada ao universo rural que afronta o
ideal de desenvolvimento. Afinal, o quilombo se opõe à propriedade privada, ao desenvolvimento
e progresso que representa.
Ao “achar” que seu corpo e o território onde mora são lugares da recusa, a criança mostra
como faz parte de uma sociedade que aloca negros e suas histórias à margem. Ao mesmo tempo,
na medida em que, a criança não convida este Outro ao quilombo por “achar” que ele é visto na
perspectiva negativa, ela revela como seleciona com quem compartilha sua história. Aquele é o
Outro com quem não se fala sobre si, mas há Outros com os quais compartilha com alegria e na
perspectiva afirmativa, a sua história, seus antepassados, suas brincadeiras, descobertas e saberes
sobre o Quilombo.
Assim, tanto RL como as crianças do Quilombo Brotas estão imersas em diferentes processos
educativos que informam sob abordagens diversas, quem são e quem é o Outro. Se de um lado,
a escola é o espaço da negação, da distorção histórica e do silenciamento acerca do negro e do
Quilombo, de outro, os espaços de militância quilombola, os grupos culturais, os visitantes e
pesquisadores, os jornalistas e diferentes estudiosos chegam para ouvi-las, para aprender com elas
e seus familiares, mostrando como são importantes sujeitos históricos.
Os caminhos pelos quais a pesquisa com as crianças do Quilombo Brotas me levaram
perpassaram também a importância da implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais para
a Educação Escolar Quilombola, aprovadas em novembro de 201215. A partir da realidade do
Quilombo Brotas, lidas sob “a ótica” da criança, que nos diz como seu corpo é representado na
escola, urge implementar os ditames da legislação educacional voltada para estudantes quilombolas
e as escolas situadas dentro de seus territórios, uma vez que, o respeito e o diálogo entre saberes
escolares e saberes quilombolas são fundamentais para a garantia dos direitos dessas populações e
o reconhecimento de suas especificidades.
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