Location via proxy:   [ UP ]  
[Report a bug]   [Manage cookies]                

A Pratica Da Igreja de Deus - A - Marcos Granconato-LOGOS

Fazer download em docx, pdf ou txt
Fazer download em docx, pdf ou txt
Você está na página 1de 436

A PRÁTICA DA IGREJA DE DEUS

A fé e o funcionamento da igreja bíblica

3ª Edição Revista e Ampliada

Marcos Granconato

São Paulo
2015
Copyright © 2015 por Marcos Granconato
Publicado pela Hermeneia Editora

Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610


de
19/02/1998.

É expressamente proibida a reprodução total ou parcial


deste livro, por
quaisquer meios (eletrônicos, mecânicos, fotográficos,
gravação e outros) sem prévia autorização por escrito
da editora.

Autorizado o uso de citações breves com indicação da


fonte.

________________________________________

Granconato, Marcos

A prática da igreja de Deus / Marcos Granconato – São


Paulo: Hermeneia, 2015.

3ª Edição Revista e Ampliada

________________________________________

Capa: Thomas Tronco e Níckolas Ramos – Saint Alban’s


Cathedral,
UK (foto do autor)
Ilustração: Carlos A. Ferolla
Preparação de texto: Amorim Leite
Revisão: Simone Matias
Diagramação: Níckolas Ramos Borges

Publicado no Brasil com todos os direitos reservados pela:


Hermeneia Editora Ltda
Nenhum tijolo escolhe seu
vizinho: isso depende do
plano do dono da obra.
É ele quem escolhe e ajusta cada tijolo que
forma a casa e os coloca lado a lado.

Os outros nos apertam e


limitam, mas também nos
sustentam e apoiam.
Quem quiser ficar sozinho será como um tijolo
abandonado, inútil e frio.

Hino alemão

Atendei por vós e por todo o rebanho


sobre o qual o Espírito Santo vos
constituiu bispos, para pastoreardes a
igreja de Deus, a qual ele comprou com
seu próprio sangue.

Atos 20.28
Dedicado a Renato Macieira, Carlos Alberto Ferolla e
Leandro Boer, homens que amam a igreja de Deus e
mostram isso na prática.
SUMÁRIO
APRESENTAÇAO
PROLOGO - O ‘CRISTAO VELHO’ E O ‘CRISTAO NOVO’
Capı́tulo 1 - Igreja local: definição, propó sito, importância e modo válido de
implantação
Capı́tulo 2 – O CULTO CRISTAO
Capı́tulo 3 – AS ORDENANÇAS
Capı́tulo 4 – O EVANGELISMO
Capı́tulo 5 – OS MEMBROS QUE VEM E VAO
Capı́tulo 6 – OS DEVERES DOS MEMBROS DA IGREJA LOCAL
Capı́tulo 7 – OS OFICIAIS DA IGREJA
Capı́tulo 8 – O PATRIMONIO MATERIAL DA IGREJA
Capı́tulo 9 – DESVIOS EVANGELICOS
Capı́tulo 10 – IGREJAS POS-MODERNAS
Capı́tulo 11 – O AUXILIO MATERIAL NA IGREJA
Capı́tulo 12 – O CASAMENTO
Capı́tulo 13 – A LIBERDADE E A CONDUTA CRISTA
Capı́tulo 14 – A PRATICA DE ENFRENTAR A MORTE
CONCLUSAO – AS PEDRAS DE CARBURETO
PRINCIPIOS GERAIS LIGADOS A PRATICA DA IGREJA DE DEUS
REFERENCIAS SOBRE
O AUTOR
A PRÁTICA DA IGREJA DE
DEUS
APRESENTAÇÃO
Este livro surgiu a partir de aulas ministradas na
classe de novos membros da Igreja Batista Redenção na
qual exerço o ministério pastoral desde 1997. Como o
objetivo da classe era tornar a igreja conhecida para
aqueles que demonstravam interesse em fazer parte dela,
era natural que as aulas versassem sobre os princípios que
cremos ser fundamentais na composição das bases de uma
igreja bíblica, bem como sobre os desdobramentos práticos
desses mesmos princípios.
Assim, antes de iniciar a leitura, o leitor deve estar
preparado para entrar em contato com a defesa de
inúmeras convicções, bem como atentar para a solidez dos
fundamentos bíblicos sobre os quais estão edificadas. A
angustiosa situação presente requer definições claras e
objetivas de fé e um total abandono de meias-palavras que
evitam o compromisso sério com qualquer linha de
pensamento. Tal postura, tão comum em nossos dias, não
defende a verdade, antes a obscurece ainda mais. Por isso,
este livro raramente apresentará “leques de opções”.
Antes, sairá na defesa do que cremos ser verdadeiramente
bíblico, recusando clara e veementemente os desvios
eclesiásticos que proliferam nos nossos dias.
Finalmente, devo tecer algumas frases de
agradecimento àqueles que tornaram possível a vinda
deste livro à luz. Agradeço, em primeiro lugar, aos
membros da minha querida Igreja Batista Redenção que
me concederam o tempo e o apoio necessários para a
realização do presente trabalho. Também sou grato aos
alunos do Seminário Bíblico Palavra da Vida, onde tenho
lecionado por quase trinta anos. Esses alunos sempre me
incentivaram a escrever sobre minha filosofia e prática
ministeriais. Sem esse incentivo, o conteúdo deste trabalho
talvez permanecesse para sempre restrito à pequena
classe de novos membros da igreja que pastoreio.
Agradeço ainda aos pastores Thomas Tronco dos
Santos, Marcos Samuel Pereira dos Santos e Adarlei
Martins. Suas preciosas sugestões serviram para sanar
diversas falhas neste projeto e contribuíram para tornar a
presente obra melhor sistematizada e também mais
relevante e atual.

Pr. Marcos Granconato


Novembro de 2014
Soli Deo gloria
PRÓLOGO - O ‘CRISTÃO VELHO’ E O
‘CRISTÃO
NOVO’

Nos dias modernos, os maiores perigos que desafiam


os crentes verdadeiros não são mais os provenientes do
catolicismo, do espiritismo, das religiões afro-brasileiras e
nem do ateísmo. Hoje, é dentro da própria comunidade dita
evangélica que o crente encontra as mais graves ameaças
contra a fé, a verdade e o bom proceder.
Verifica-se atualmente a assustadora e incessante
multiplicação dos pastores da mentira, das igrejas que
ensinam fábulas e dos conjuntos “evangélicos” que cantam
coisas sem sentido enquanto dançam freneticamente. Isso
tudo, além de se encontrar em quase toda esquina, está
todos os dias no rádio, na TV, nas revistas e nos jornais,
deixando muitos crentes confusos diante de tantos ensinos
novos, proclamados aos berros com o propósito de dar a
impressão de que quem os prega está convicto do que diz.
Em virtude desse tão horrível quadro, os raros
pastores bíblicos de hoje têm de alertar os membros de
suas igrejas contra práticas e crendices que,
equivocamente, se denominam cristãs e se preocupar mais
com o perigo que elas representam do que com os
tradicionais inimigos da fé.
Outro efeito desse estado de coisas é a infeliz
associação da superstição, da ignorância, do engano, da
exploração e do escândalo com o nome “evangélico”. Essa
associação promovida pelos movimentos pseudocristãos
dos nossos dias trouxe irreparáveis prejuízos para a
verdadeira igreja de Cristo, comprometendo sua
identidade.
Foi-se o tempo em que as palavras “crente” e
“evangélico” designavam pessoas diferentes, marcadas por
decência, amor à família, responsabilidade, firmeza
doutrinária e zelo pelos interesses do Reino. Atualmente,
essas palavras designam muitas vezes pessoas desprovidas
de virtudes espirituais, de bom discernimento e de
conhecimento bíblico, que se ocupam quase todo o tempo
de correr atrás das mais absurdas heresias, ensinadas por
vigaristas interessados somente em lucro financeiro.
Os crentes verdadeiros, portanto, não podem mais se
sentir à vontade com o título “evangélico”. Esse termo está
muito desgastado, e a maior parte das pessoas a que agora
se refere está bem distante do seu significado original. Nos
dias de hoje, infelizmente, a linguagem tem de sofrer
modificações a fim de se acomodar à nova e triste realidade
e expressar com maior clareza o que um real convertido
quer dizer quando afirma que é crente.
Também as palavras “crente”, “cristão” e
“protestante”, conforme a experiência mostra, não são mais
satisfatórias, de modo que tudo indica a necessidade de
uma nova designação. Em face da urgência em frisar a
diferença, sugere-se aqui a expressão “cristão velho”.
Ainda que evoque lembranças dos tempos da inquisição
espanhola, é possível que essa expressão suporte
eficazmente a ideia
[1]
que pretende aqui transmitir.
Assim, “cristão velho” seria uma forma de designar o
crente verdadeiro, cuja fé e vida se amoldam aos antigos
padrões da igreja neotestamentária. Cristão velho seria,
portanto, o homem que se identifica com o antigo
cristianismo e se distingue por forte apego à sã doutrina e
monumental proceder moral.
Em oposição a essa notável e bela figura surge em
anos recentes o “cristão novo”. Este é o seguidor de fábulas
e superstições das mais diversas espécies. Trata-se daquele
“evangélico” que frequenta as numerosas “comunidades”
modernas e mal conhece quem se senta ao seu lado, já que
nesses lugares há constante vaivém de pessoas que
raramente se firmam em algo, as quais geralmente vivem
de lá para cá ávidas por emoções novas.
Com efeito, enquanto o cristão velho é conhecido por
seus irmãos e por seu pastor e mantém com eles comunhão
e amizade, o cristão novo dificilmente tem vínculos com a
igreja que frequenta, nem se exige isso dele. Aliás, a maior
parte dos pastores das igrejas de cristãos novos não tem
interesse em formar um rol de membros com os quais
tenha de se preocupar, além de cuidar e nutrir. Ao que
parece, tudo que importa para a maioria desses líderes é
ter a casa cheia de uma multidão de desconhecidos que,
impulsionados pela superstição, queiram obter
prosperidade, emprego, saúde e proteção contra males
imaginários.
Outra marca distintiva dos cristãos novos é a
despreocupação em avaliar o que lhes é ensinado. Seja qual
for a mentira que ouçam, se vier acompanhada da fórmula
“em nome de Jesus” ou de três ou quatro “aleluias”,
imediatamente lhe dão crédito. Já foi dito ousadamente
que, se alguns falsos pastores, que a Bíblia chega a
[2]
chamar de cães, literalmente latissem, sem dúvida seus
seguidores os aplaudiriam e gritariam comovidos e em
lágrimas: “Glória a Deus!”. A triste verdade, porém, é que
isso já tem acontecido. Escritores modernos têm
documentado que em certas comunidades evangélicas o
latir ou o emitir outros sons de animais
[3]
têm sido reconhecido como evidência de plenitude
espiritual.
Fato também digno de nota é que, em vez de ser luz do
mundo a brilhar nas trevas e sal da terra a preservar a
sociedade da podridão, os cristãos novos assemelham-se a
tambores: são tão barulhentos quanto vazios. Os crentes
verdadeiros devem ter pena dessas pessoas e orar por elas,
pois sua vida é tão oca, tão privada de conteúdo, tão
carente de satisfação espiritual que todo o barulho que
fazem durante suas reuniões e passeatas pode ser
interpretado como um grito desesperado em busca de algo
que a preencha, mesmo que só por alguns instantes. Ainda
assim, chamam essas manifestações de “fervor” ou de
“reavivamento” e acusam quem delas não participa de
“crente frio”. Se, contudo, iluminados pelo Espírito Santo,
tivessem leve noção do real significado dessas palavras que
tanto usam, saberiam que chamar manifestações bizarras
de “fervor” é o mesmo que chamar um urubu de querubim.
No imenso mar de variedades em que é tão difícil para
o homem comum distinguir entre as igrejas que pregam a
verdade e as que só têm o título de cristãs, mister se faz
manter bem nítidas as diferenças. Em outras palavras,
igrejas compostas por cristãos velhos devem se afastar das
perigosas seitas chamadas evangélicas que dia a dia
atraem e geram cristãos novos. De outro modo, o mundo
jamais saberá que existe um imenso abismo a separar os
dois modelos e continuará acreditando que cristãos novos e
velhos são todos iguais, sem nenhuma distinção essencial
ou vivencial entre ambos.
Além disso, é preciso tornar bastante conhecidos a fé e
o funcionamento da igreja bíblica, aquela que é liderada e
composta por cristãos velhos. Assim, o rebanho do Senhor
poderá se proteger melhor dos ataques das modernas
superstições, percebendo o quanto a verdadeira igreja está
distante delas. Da mesma forma, jovens e sinceros pastores
recém-saídos do seminário saberão que posição tomar
diante de tantas práticas e ideias novas. De fato, até mesmo
os cristãos novos serão beneficiados com o conhecimento
da fé e do funcionamento da igreja bíblica, pois se tornarão
aptos para identificar os traços da verdadeira comunidade
cristã, onde poderão, se quiserem, refugiar-se do ensino
falso em que têm andado.
Tudo isso sugere uma santa expectativa: a expectativa
de que a sã doutrina não seja um veículo de confusão,
destruição e dor, mas sim um instrumento para a formação
de mais e mais cristãos do tipo antigo, já que o sincero
interesse do povo de Deus é a promoção do bem da igreja e
o seu fortalecimento com o que há de melhor. Ora, os
santos sabem o que é o melhor. Eles sabem que hoje o
cristão é como vinho: o velho é que é bom.
Capítulo 1 - Igreja local:
definição, propósito,
importância e modo válido de
implantação
A igreja local não é uma entidade religiosa assistencial como
muitos pensam. Também não se deve conceber a igreja como uma
agência promotora de eventos. Ainda que muitos pastores e lıd́ eres
eclesiásticos tenham transformado suas comunidades em meras
organizações movidas e sustentadas por passeios, festas, retiros,
jantares e outros programas especiais, nenhum desses eventos re lete o
que a igreja é em essência.
E claro que não é errado uma igreja realizar programas como os
mencionados. Contudo, foge do per il bıb́ lico a comunidade eclesiástica
que tem na promoção dessas coisas a sua marca dominante,
dependendo intensamente delas para subsistir e gerar motivação.
Tampouco a igreja local pode ser entendida como uma mera
opção de congraçamento social para os ins de semana. Não há dúvidas
de que a alegre comunhão dos crentes é um ideal bıb́ lico, mas a
natureza e os alvos desse convıv́ io são bastante diferentes e se situam
muito acima daqueles que são buscados por quem vê a igreja como
uma alternativa de programa social para as manhãs ou noites de
domingo (sobre a comunhão cristã bíblica veja-se a
próxima seçãodeste capítulo e também o Capítulo 6).
Igreja local é, isto sim, a comunidade autônoma de crentes em
Cristo unidos entre si por laços de fé, amor e amizade; caracterizada
pelo ensino e proteção da sã doutrina, pela observância das ordenanças
de Cristo e pela aplicação da disciplina bíblica
A Bíblia apresenta de forma clara os dois propósitos
fundamentais da igreja: o imediato, que é anunciar o evangelho (1Pe
2.9); e o final, que é glorificar para sempre a Deus (Ef 1.5-6; 12-14).
Desse modo, um grupo em que as pessoas não têm comunhão
entre si, que não prega a sã doutrina, que não observa adequadamente
as ordenanças de Cristo (o batismo e a ceia do Senhor), que jamais
aplica a disciplina bıb́ lica, que não se preocupa com a expansão do
Reino de Cristo neste mundo mediante a pregação do evangelho e não
persegue o ideal maior de glorificara Deus não pode de maneira
nenhuma ser chamado de igreja. Disso se conclui que pouquıś simas
são as verdadeiras igrejas, o que é de lamentar, dada a importância
vital dessa comunidade em inúmeros aspectos.
Dessa última a irmação brotam, naturalmente, as seguintes
questões: Por que a igreja é importante? Que diferença faz essa
instituição? O que foi dito nos parágrafos anteriores fornece em linhas
gerais o conteúdo da resposta a essas perguntas. E necessário, porém,
maior exatidão.

A importância da igreja local

Em primeiro lugar, pode-se dizer que a igreja é extremamente


importante neste mundo porque fornece o contexto em que ocorre uma
[4]
cura substancial nas relações interpessoais. E na igreja local que
pessoas de diferentes idades, origens, etnias, culturas, formações e
nıv́ eis sociais são convidadas a viver em plena harmonia, formando
uma verdadeira famıĺ ia (1Co 1.10; 12.12-27; 2Co 13.11; Gl 3.28; Ef
4.13; Fp 1.27; 2.1-4; 4.2-3; 1Pe 3.8).
Nesse ponto, nenhum outro grupo social é comparável à igreja. E
essa unidade, a que seus membros são chamados e exortados a manter,
tem como base não o simples interesse na paz social, mas a própria
obra redentora de Cristo (1Co 10.16-17), de modo que quem atenta
contra a unidade da igreja, levanta-se, na verdade, contra um dos
santos propósitos da cruz (Ef 2.13-19).
Sendo a igreja o ambiente em que o indivıd́ uo pode se relacionar
em amor com pessoas diferentes e em que pode se sentir aceito e
respeitado a despeito de qualquer fator secundário, ica difıć il exagerar
sua importância para o sustento e o bem-estar emocional do ser
humano, que procura a todo custo obter o amor e o respeito dos outros
[5]
a im de se sentir importante e seguro.
Em segundo lugar, a relevância da igreja assume proporções
imensas pelo fato de ser o grupo em que a medida do
comprometimento do crente dá a medida da sua saúde espiritual. E
fácil alguém saber se é mesmo um servo obediente a Cristo e se tem
vigor espiritual: basta observar se está de bem com sua igreja, dela
participando, com ela cooperando e nela cultivando suas maiores
amizades (Jo 15.10,12,14; Hb 10.25).
De fato, João mostra como descobrir se alguém está andando na
luz. Diz ele: “Se, porém, andarmos na luz, como ele está na luz,
mantemos comunhão uns com os outros…” (1Jo 1.7). Isso é assim
porque existe ıń tima ligação entre Cristo e a igreja, ligação esta em que
ela é o “corpo” e ele a “Cabeça” (Ef 1.22-23; 5.23; Cl 1.24). Desse modo,
é impossıv́el se afastar da igreja sem se afastar de Cristo; e o terrıv́el
Saulo descobriu perplexo que era impossıv́el odiar e atacar a igreja sem
ao mesmo tempo odiar e perseguir o próprio Cristo (At 9.1-5).
Além disso, Deus determinou que a igreja fosse o celeiro onde o
cristão pudesse encontrar alimento para crescer espiritualmente. Nela
o Senhor pôs pessoas com os mais diversos dons (Rm 12.4-8) para que
quando os exercitassem no contexto eclesiástico, os santos se
aperfeiçoassem, se tornassem aos poucos semelhantes a Cristo e não
seguissem ensinos enganadores (Ef 4.11-14). Como poderá o crente
que não visita esse celeiro se alimentar adequadamente? E sem se
alimentar adequadamente, como demonstrará vigor?
A Bíbliaensina também que os diferentes membros do corpo que
é a igreja formam um organismo só (1Co 12.12) e, uma vez que
realizam funções especı́ icas, todos são essenciais e indispensáveis para
o bem de cada um em particular e o bom funcionamento do todo (1Co
12.17-23). Como será, pois, a saúde espiritual do cristão que, afastado
da comunhão com seus irmãos, deixa de desfrutar do trabalho dos
membros em geral e não coopera, ele mesmo, com o aperfeiçoamento
do corpo?
Tudo isso mostra a importância que a igreja tem para o
crescimento espiritual de cada um e prova que o cristão que não
participa de nenhuma igreja e diz que é possıv́el ser bom crente
adorando a Deus sem sair de casa não compreendeu a espiritualidade
ensinada no Novo Testamento. Esse crente, além de desobedecer
abertamente as determinações bıb́ licas (Ef 4.3; Hb 10.25) e não
cumprir seu papel de membro do corpo de Cristo, privando-o de
funcionamento melhor (1Co 12.25; Ef 4.15-16), deixa de receber o
crescimento que a participação conjunta do estudo, do louvor e da
oração sempre poderá proporcionar.
Em terceiro lugar, a igreja é importante porque é a organização
responsável pelo avanço da obra missionária (At 13.1-3). Ainda que
organizações missionárias de renome internacional façam trabalhos
notáveis, é a igreja local que tem sobre seus ombros a responsabilidade
de, orientada pelo Espıŕ ito Santo, escolher e enviar pessoas aos
campos brancos para a ceifa e sustentá-las ali quando for preciso.
Relevante também é a igreja em sua função didática. Além de
funcionar como centro de educação cristã para todos os que se acercam
dela, tem a igreja a responsabilidade de ser escola preparatória de
pastores e núcleo formativo de novos lıd́ eres (2Tm 2.2; Tt 1.5 cf. At
14.21-23). Isso, é claro, não anula a necessidade dos seminários
teológicos. Porém, não se pode admitir que a igreja deixe de participar
da instrução dos seus novos obreiros mantendo-se alheia à sua
formação e transferindo toda a responsabilidade educacional dos
vocacionados para as mãos das faculdades de teologia.
Não se pode deixar de mencionar aqui outro fator, também de
extrema importância, que é o papel da igreja consistente de zelar pela
[6]
redução do sofrimento humano (1Tm 5.3,16; 2Co 9.1-2,12). A luz da
Bíblia, não há dúvidas de que a igreja deve agir de tal maneira que
todos percebam com clareza que, caso ela não existisse, a dor dos
menos favorecidos seria muito maior.
Finalmente, a igreja é importante porque é a guardiã da sã
doutrina (1Tm 3.14-15). Como protetora de depósito tão precioso,
levanta-se contra tudo que se caracteriza por falsidade e não somente
rejeita a fraude como também a desmascara.
A verdadeira igreja não dá boas-vindas às constantes novidades
doutrinárias que dia após dia aparecem no cenário dito evangélico.
Antes, protege o legado que recebeu dos antigos. A velha fé que habitou
nos seus antepassados cristãos desde os tempos dos apóstolos é a
mesma que nela hoje também habita (2Tm 1.5; 3.14-15), sendo certo
que seus membros atuais conservam esse legado com zelo sem igual
(Gl 1.8-9; 1Tm 1.18-19; 4.16; 6.11-14, 20-21; 2Tm 1.13-14).

Modo válido de implantação

Tendo em vista a grande importância da igreja local, ica evidente


a urgente necessidade do surgimento de mais e mais agências dessa
natureza. No entanto, a própria sublimidade de sua tarefa neste mundo
exige que a fundação de uma nova igreja ocorra debaixo de cuidadosa
tutela.
E recomendável, assim, observar certos critérios e superar
algumas etapas antes de conceder o status de igreja a um grupo de
crentes que eventualmente se reúne. Isso porque a forma estranha
como grande parte das igrejas surge atualmente – um indivıd́ uo
qualquer põe uma gravata, aluga um salão e começa a ensinar qualquer
coisa, atraindo pessoas dispostas a crer em tudo – por não observar
princıṕ ios bıblicos, só tem servido para criar igrejas falsas.́
Por isso, para que igrejas bıb́ licas nasçam, sugere-se o
cumprimento das seguintes fases:

1. Estabelecimento de um ponto de pregação.


Uma igreja devidamente organizada escolhe um local estratégico
e carente onde realizará esforços evangelıś ticos por tempo
indeterminado. Podem funcionar como sede provisória para o
trabalho nascente a casa de um irmão, uma garagem, uma sala
comercial e até mesmo uma praça.

2. Formação de uma congregação. Havendo certo


crescimento com a ocorrência de conversões e a chegada de
outros crentes, o ponto de pregação adquire o status de
congregação. O novo grupo continua a se reunir sob a autoridade
da igreja responsável, que insere em seu próprio rol de membros
os crentes o icialmente comprometidos com a congregação.

3. Estabelecimento de um local exclusivo. O


crescimento do grupo dá ensejo à compra ou locação de um lugar
que sirva como sede exclusiva da igreja em formação. A escolha
desse local deve levar em conta aspectos estratégicos bem como a
possibilidade de expansão futura. Fundamental é que os
membros que cooperam na congregação sejam estimulados a
participar ativamente do estabelecimento desse novo local, seja
por meio do trabalho ou com contribuições inanceiras.

4. Nomeação de um líder. E claro que em todas as


fases de formação da igreja haverá um responsável pelo trabalho.
Porém, nessa fase do processo deve-se dar especial atenção à
necessidade de nomear alguém que se dedique ao ministério no
novo local de forma mais intensa. A escolha e contratação desse
obreiro serão feitas pela igreja responsável, levando seriamente
em conta a opinião e vontade da maioria dos membros da
congregação. Estes, na medida do possıv́el, deverão participar do
sustento desse lıd́ er, a im de que desde cedo aprendam acerca
dos deveres da igreja em relação a seus ministros (1Tm 5. 17-18).

5. Incentivo à capacidade de autogestão.


Superadas as fases acima descritas, tanto a igreja responsável
como os membros da congregação deverão empenhar-se para
que a igreja em formação adquira independência substancial,
estabelecendo uma liderança local e conquistando autonomia
inanceira para, sozinha, poder arcar com o suprimento de todas
as suas necessidades e buscar a realização de todos os seus
deveres e alvos.

6. Organização da nova igreja. Capaz de autogerir-


se, a congregação poderá, caso queira, organizar-se em igreja
independente daquela que a fundou. Essa independência poderá
ser absoluta, como é o caso da maioria das igrejas batistas, ou
relativa, como é o caso da Igreja Presbiteriana e a Assembleia de
Deus, cujas comunidades locais se mantêm sob a autoridade de
um órgão centralizador, mas desfrutam de ampla autonomia.
Para ins administrativos e para que o ato tenha caráter o icial,
recomenda-se que a concessão do status de igreja seja aprovada
em assembleia realizada pela igreja sede ou por eventual órgão
representativo. Se for feito assim, obviamente a medida será
registrada em ata que alistará, inclusive, os nomes dos membros
fundadores da nova igreja como nota de valor histórico.

Evidentemente, esse processo deve ser entendido como mera


sugestão. As particularidades de cada caso, muitas vezes, impedirão
que as etapas acima se concretizem de modo pleno ou na sequência
apresentada. O que deve, porém, permanecer intocável, até onde for
possível, é o princıṕ io de que uma igreja só pode ser
gerada sob os auspícios de outra.
Esse princıṕ io se encontra no Novo Testamento, especi icamente
no livro de Atos, no qual é evidente que as novas igrejas nasciam em
geral graças ao envio de missionários, que, por sua vez, eram sujeitos a
igrejas de sólidos alicerces e autoridade inquestionável (At 13.1-3), às
quais esses mesmos missionários também prestavam relatórios acerca
de suas atividades (At 14.26-28).
Vê-se também em Atos que as igrejas que aos poucos surgiam
icavam a princıṕ io sob a supervisão e o cuidado de outra previamente
estabelecida, que lhes enviava delegados com o intuito de mantê-las
debaixo de necessário controle e proteção (At 8.14; 11.20-22; 15.1-4,
22-31).
E difıć il, portanto, encontrar amparo bıb́ lico para o indivıd́ uo
que, dizendo-se chamado por Deus, toma a iniciativa de, por si mesmo,
“abrir um trabalho”, tornando-se uma espécie de “dono” de igreja.
Tampouco pode encontrar apoio indiscriminado o homem que,
insatisfeito com sua igreja ou denominação, rompe com ela e passa a
trabalhar ao lado de alguns simpatizantes no afã de formar uma igreja
nova nos moldes que considera corretos. De fato, somente em casos
excepcionalıś simos, em que é impossıv́el o patrocıń io de uma
verdadeira igreja, essa conduta poderá ser recomendada e aceita.

Os cinco pilares da igreja de Deus

Uma vez estabelecida, a igreja deve se irmar sobre cinco pilares:


adoração, ensino, comunhão, proclamação e pureza. Esses cinco pilares
manterão a igreja de pé. Por isso, seus membros devem ter como
propósito contıń uo preservá-los e fortalecê-los. A tarefa de manter,
proteger, restaurar e robustecer as cinco colunas aqui elencadas é a
essência do que o cristianismo chama de “servir ao Senhor”.
Observe-se a seguir o que está envolvido em cada um dos itens
[7]
denominados aqui como pilares da igreja de Deus.

Adoração:A igreja verdadeira é uma comunidade que se reúne


para adorar (At 2.47; Ef 5.19-20; Cl 3.16). Essa adoração deve ser
dirigida exclusivamente ao Deus trino. Nenhum outro
personagem, seja humano ou angélico, pode ser objeto dela (At
14.11-18; Ap 19.10; 22.8-9). De acordo com João 4.23-24, a
adoração cristã não deve ser meramente ritual nem repleta de
erros geralmente decorrentes das opiniões, preferências e
invenções de supostos adoradores (Mt 15.8-9). Antes, o culto
deve ser focado em Deus, levando em conta como ele realmente é
(um Espıŕ ito e não um local ou um objeto material) e ser feito do
modo como ele aprova e diz ser correto (esse é o signi icado de
adorar “em verdade”).

Ensino: A tarefa de ensinar a sã doutrina deve ser mantida


pela igreja como um dos seus mais importantes pilares (At 15.35;
18.11; 20.20). Isso porque, de acordo com Efésios 4.11-13, o
ensino faz com que os crentes amadureçam e, assim, se tornem
aptos para o serviço de edi icação da igreja, além de mais
semelhantes a Cristo (Cl 1.28). Ademais, o texto de Efésios
destaca que o ensino protege os crentes de serem enganados
pelos falsos mestres e suas doutrinas fraudulentas (Ef 4.14). E
por isso que o pastor deve ser apto para ensinar (1Tm 3.2; 2Tm
2.24; Tt 1.9-11) e fazer isso com insistência e perseverança (1Tm
4.13). O conteúdo do ensino ministrado na igreja deve ser a
Escritura e
não iloso ias humanas (Rm 15.4; 1Co 2.1-7; 2Tm 3.16), sendo
certo que cada crente deve realizar, em alguma medida, uma
tarefa didática no convıv́ io com seus irmãos (1Ts 5.11).

Comunhão: Diferente do que muitos pensam, o pilar da


comunhão cristã não é construıd́ o apenas com reuniões sociais
em torno de mesas de café e bolos. Ainda que essas reuniões
sejam úteis para estreitar os laços de amizade entre os crentes, de
forma nenhuma elas esgotam o sentido da genuıń a comunhão
dos santos ensinada nas Escrituras. Com efeito, essa comunhão
abrange uma unidade amorosa em que cada um se preocupa
humildemente com os interesses do outro (Fp 2.1-4) e realiza
uma tarefa de encorajamento e exortação junto aos seus irmãos
(Hb 10.25). A comunhão amorosa entre os crentes é uma das
mais e icientes formas de testemunho (Jo 17.20-23) e também
uma das provas mais notáveis do andar na luz (1Jo 1.7).
Proclamação: Trata-se da responsabilidade que pesa sobre os
ombros da igreja de tornar Deus conhecido ao mundo (1Co 9.16;
2Tm 4.5; 1Pe 3.15). Nessa tarefa, a igreja deve proclamar os
atributos divinos (1Pe 2.9) e, especialmente, a obra salvadora do
Pai realizada no envio do seu Filho ao mundo para morrer pelos
pecadores, ressuscitando ao terceiro dia (At 13.38-39; 1Co
15.14). Assim, para ser realmente bıb́ lica, a igreja não pode
perder de vista o evangelismo (At 5.42) e a obra missionária (At
13.1-3), trabalhando para que o pilar da proclamação nunca
desabe e o evangelho alcance os que estão perto e também os que
habitam nos lugares mais distantes da terra (Mt 28.19; Rm 10.13-
15; Ap 14.6).

Pureza: A igreja que não zela pelo pilar da pureza muito cedo
se verá invadida pelos costumes e práticas do mundo que, aos
poucos, tomarão conta dela (1Co 5.6). Então, nenhuma diferença
haverá entre a igreja e qualquer associação de incrédulos. Na
verdade, uma igreja assim será ainda pior do que uma sociedade
de pagãos, pois, por causa dela, o evangelho será desacreditado e
o nome de Cristo será blasfemado entre os perdidos (1Tm 6.1;
2Pe 2.1-2). Se não primar pela pureza em seu meio, a igreja logo
se tornará um covil de hipócritas, perderá sua força espiritual,
desencorajará a vida de temor, afastará do seu convıv́ io os que
buscam a Deus com sinceridade e atrairá sobre si a ira do Senhor
(1Co 10.21-22; Ap 2.12-25). A pureza da igreja, portanto, é
questão de sobrevivência! Se essa coluna for derrubada, toda
igreja cairá, tornando-se apenas um aglomerado de pessoas que
nutrem os padrões do mundo, às vezes de maneira até mais
escandalosa (1Co 5.1). A ferramenta mais importante para a
manutenção da pureza da igreja é a disciplina eclesiástica
prevista em Mateus 18.15-17 e 1Corıń tios 5.1-5.

Esses cinco pilares não devem ser usados somente como


fundamentos da igreja como organização, mas também como alicerces
sobre os quais a vida de cada crente é construıd́ a. De fato, cada irmão,
no seu dia a dia, tem de adorar o Deus trino, aprender a verdade e
ensiná-la aos que estão à sua volta, manter acesa a chama da santa
comunhão com outros crentes, proclamar o evangelho aos perdidos e
buscar pureza no seu proceder.

Digressão: a igreja é o novo Israel de Deus?

Sob o ponto de vista teológico, a igreja local não é uma espécie de


célula visıv́el ou a expressão concreta do que tem sido chamado de
“novo Israel de Deus”.
A teologia cristã antiga, já a partir do século 2, israelizou a igreja
e, nesse particular, tem sido hoje seguida pela teologia aliancista (ou
teologia do pacto), dominante no meio evangélico (tradicional ou não).
Ora, as implicações práticas disso podem ser vistas ao longo dos
séculos e na atualidade em diversos equıv́ ocos.
Entre esses equıv́ ocos podem-se destacar os seguintes:

1. O apoio à preservação de uma igreja estatal, já que Israel era um


[8]
Estado teocrático nos tempos do AT.
2. A negligência, notável já nos escritos dos pais apostólicos (séc.
2), do evangelho ensinado no Novo Testamento que realça a
salvação pela fé somente, em troca de uma soteriologia baseada
na prática da lei moral exposta no Antigo Testamento (salvação
pela justiça própria).
3. A construção de santuários majestosos, comparáveis ao templo
de Jerusalém, onde possam ser praticados os atos “sacerdotais”
[9]
cristãos assimilados do culto levıt́ ico.
4. A de inição do batismo infantil como o correspondente cristão da
[10]
circuncisão (para mais detalhes, veja-se o Capítulo3).
5. A transformação da Ceia do Senhor num sacrifıć io sangrento
(transubstanciação e consubstanciação) realizado
continuamente por um sacerdote (o pastor ou bispo) sobre um
altar, tudo nos moldes da tradição litúrgica judaica e seu sistema
sacri icial. Isso obscureceu a real natureza da morte de Cristo
como um sacrifıć io único, oferecido uma vez por todas.
6. A sacerdotalização da igura e do papel do pastor (ou bispo) que,
num arremedo dos o iciantes levitas, passou a ser visto como
detentor de prerrogativas especiais para dispensar a graça
divina (por meio dos sacramentos), oferecer sacrifıć ios (a Ceia
do Senhor) e realizar a mediação entre Deus e os membros da
igreja. Essas noções serviram, inclusive, como fundamento para
a distinção entre a igura única e suprema do bispo (ou pastor) e
o grupo geral de presbıt́eros. Também geraram a divisão entre
clero e laicato. Finalmente, estimularam a criação de uma
hierarquia eclesiástica e, consequentemente, o aparecimento do
papado.
7. A alegorização de passagens bıb́ licas referentes a Israel a im de
que pudessem ser aplicadas à igreja.
8. A identi icação da igreja da era presente com o reino messiânico
prometido, sendo tal entendimento fortalecido pela alegorização
de textos bıb́ licos que tratam do tema. Essa identi icação foi a
base para o surgimento da teocracia medieval com suas
aspirações de uma igreja onipotente que deveria exercer domıń
io polıt́ ico universal (o chamado Império Cristão).
9. A guarda do domingo como o “sábado cristão”.
10. A imposição da obrigação do dıź imo judaico aos crentes como
dever legal, às vezes sob pena de disciplina. Eventualmente,
contribuições inanceiras dadas além do dıź imo são chamadas de
“ofertas alçadas”, numa demonstração da adoção, por parte da
igreja, da linguagem própria do sistema levıt́ ico.
11. A apropriação por parte da igreja das promessas de bênçãos
(mas não das maldições!) feitas a Israel especialmente no campo
material (teologia da prosperidade).
12. O emprego de sıḿbolos e objetos do culto israelita (candelabro,
arca, altares, vestes especiais, incenso, etc.) na liturgia cristã.
13. A atribuição do tıt́ ulo de “levita” aos componentes de grupos de
louvor, fazendo com que essas pessoas sejam vistas como uma
espécie de elite dentro da igreja.

Em casos mais extremos, a “teologia da substituição”, que de ine a


igreja como o novo Israel de Deus, tem conduzido as pessoas de
algumas épocas e lugares ao desprezo e até à perseguição dos judeus
que, segundo essas propostas, perderam sua relevância ou seu status
como o povo escolhido do Senhor.
De fato, para muitos teólogos aliancistas, com o advento da igreja,
a importância do Israel étnico foi irremediavelmente nublada. Na
verdade, de acordo com essa visão, Deus repudiou Israel e o substituiu
[11]
pela igreja. Adeptos dessa linha doutrinária também a irmam que o
verdadeiro Israel sempre foi a igreja.
Esse raciocıń io, como se sabe, corroborou inclinações
antissemitas durante alguns perıó dos da história, dando ensejo aos
[12]
seguintes desvios:

1. A rejeição da cosmovisão judaica em favor de uma visão de


mundo marcantemente helenista, responsável pela introdução de
elementos da iloso ia grega na teologia cristã e pela adoção do
método alegórico ao tempo da igreja antiga, fonte de inúmeras
interpretações bıb́ licas arbitrárias.
2. A espiritualização de textos bıb́ licos que falam do Israel étnico,
levando os judeus a considerar a hermenêutica cristã do AT
(inclusive em suas conclusões sobre o Messias) indigna de
crédito, o que di icultou ainda mais a evangelização desse povo.
3. A consideração da expectativa de um reino escatológico davıd́ ico
literal e terreno (At 1.6) como uma esperança judaica
[13]
grosseira que deve dar lugar a uma concepção absolutamente
espiritual do reino messiânico.
4. A falta de interesse pelo entendimento judaico acerca do cânon
do AT, o que levou alguns pais da igreja antiga a fazer uso de
[14]
livros apócrifos na construção de sua teologia.
5. A aceitação do uso de imagens no culto cristão tendo como um
dos fundamentos para essa prática a ideia de que sua reprovação
re letia uma perniciosa forma judaica de pensar.
[15]
6. A degradação dos israelitas pela lei canônica e pela tradição
eclesiástica, gerando con litos entre a igreja e a sinagoga e
também massacres perpetrados contra a população judaica
durante toda a Idade Média.
7. O estıḿulo a inclinações antijudaicas, colocando sobre a igreja
uma parcela de culpa pelo Holocausto, o que foi admitido por
vários cıŕculos protestantes, especialmente na Europa, a partir de
1950.

O fato, porém, é que na Bíbliaexiste clara distinção entre Israel e


igreja, ambos ocupando espaços distintos no plano de Deus. De fato,
nada na Escritura corrobora a ideia de que o advento da igreja a
posicionou como substituta de Israel, de maneira que essa nação
deixasse de ocupar espaço de alta importância no projeto de Deus para
a história (Rm 1.16).
Textos como Jeremias 31.35-37 envolvem a promessa de Deus de
preservar Israel para sempre como nação, sem jamais rejeitar sua
descendência. O fato de isso ter sido dito ao povo rebelde dos dias de
Jeremias mostra que se trata de uma promessa incondicional.
Ademais, o Israel étnico é visto também no Novo Testamento
como o povo eleito que Deus não rejeitou (Rm 3.1-2; 9.1-5; 11.1-2).
Isso, é claro, não signi ica que cada judeu é eleito para a salvação. Na
verdade, Paulo diz que apenas um número limitado de israelitas foi
escolhido no sentido salvı́ ico (Rm 11.5-6). Mesmo assim, permanece
intocável a verdade de que a nação judaica inteira foi eleita por Deus
num sentido instrumental, isto é, como veıć ulo por meio do qual ele
realiza seus planos de abençoar e salvar (Gn 12.3; 28.14; Jo 4.22; Rm
11.11-12,15).
Romanos 11.28 alude claramente à eleição não salví ica de
Israel. Isso mostra que nem mesmo a rejeição do evangelho fez com
que essa nação perdesse seu status como povo especial de Deus. Aliás,
esse status também é um dos motivos pelos quais todo o Israel será
salvo na inauguração da futura era messiânica (Rm 11.25-27).
Assim, não é correto de inir a igreja como um novo Israel de Deus.
A verdade é que a igreja se constitui num povo diferente, composto sim
por judeus e gentios, mas de maneira que perfazem juntos uma terceira
classe de homens – os homens novos – livre de distinções raciais (Ef
2.11-18), trazida à luz pela obra de Cristo ao tempo dos apóstolos (Ef
3.1-9) e com um espaço especı́ ico dentro dos propósitos de Deus para
o presente (Ef 3.10-11; 1Tm 3.15) e do seu plano para o futuro (1Co
6.2-3; 15.22-23; 1Ts 4.14-18).

Duas questões

1) Conforme o ensino deste capítulo, fundar uma


igreja sem a tutela de outra não é prática
recomendável. Não foi, porém, exatamente isso o que
izeram os reformadores quando se desligaram da
Igreja Católica?
Não. Os reformadores do século 16 não fundaram
igrejas novas. Eles apenas reformaram as antigas,
purgando-as dos erros e das superstições papistas. Além
disso,é bom lembrar que os reformadores não se
desligaramda Igreja Católica. Na verdade, foi essa
igreja que os expulsou.
2) Se é errado dizer que o domingo é o
sábado cristão, então é lícito os crentes
trabalharem nesse dia?
Sim, sem nenhum problema. A guarda de dias não é
ensinada no Novo
Testamento (Rm 14.5-6). Aliás, Paulo até censura
quemse apega a essa prática, indicando que pessoas
assim nutrem noções judaicas erradas e até ideias
pagãs (Gl 4.10-11; Cl 2.16).
Capítulo 2 – O CULTO CRISTÃO

De todos os aspectos da vida da igreja cristã, o culto é o mais


importante. E no culto que a presença atuante de Deus se focaliza,
instruindo, corrigindo, consolando e transformando vidas, já que o
Senhor habita não somente no corpo fıś ico do crente (1Co 6.19), mas
também (e especialmente) na comunidade dos salvos que se reúne
para servir e adorar (1Co 3.16-17; Ef 2.21-22; 1Pe 2.5). E no culto que o
nome de Deus é exaltado em cânticos e orações, com a força que
decorre da união de vozes, pensamentos e corações (Sl 34.3). E no culto
que a plenitude espiritual dos adoradores se expressa em salmos, hinos
e ações de graça (Ef 5.18-20). E, inalmente, no culto verdadeiramente
cristão que o alimento espiritual é distribuıd́ o aos crentes por meio da
pregação da Palavra viva que nutre, fortalece, ensina e admoesta (Mt
4.4; 2Tm 3.16).
Sendo, assim, tão importante, o culto não é opcional e deve
ocupar lugar central na vida do homem redimido, sendo o próprio Deus
que, em sua Palavra, o conclama a prestá-lo (Sl 95.6-7). Na verdade,
tantos quantos forem os cultos realizados na igreja de Deus, tantas
devem ser as participações dos crentes nesses eventos sagrados, sob
pena de sua vida cristã minguar, seu crescimento espiritual desacelerar
e sua força contra o mundo, contra a carne e contra o diabo entrar em
declıń io.
Também se deve destacar que, sendo tão central na vida da igreja,
o culto precisa ser realizado dentro de critérios instituıd́ os pelo
próprio Deus, bem como ser composto por elementos ixados na Bíblia.
Isso foi corretamente a irmado há muito tempo por teólogos que
propuseram o chamado PrincípioRegulador do Culto, uma
norma que subjaz a adoção de uma liturgia marcada por elementos
como pregação, oração, louvor, dádivas e ordenanças. Cada um desses
elementos será exposto neste capıt́ ulo, exceto as ordenanças – estas
serão objeto de estudo no Capítuloseguinte.
O princípio regulador do culto

A expressão Princípio Regulador do Culto denota a existência


de um valor básico e imutável que deve ser protegido enquanto se
realiza qualquer ato formal de adoração. A proteção desse valor implica
a observância de uma norma geral que rege o culto e lhe dá forma. Esse
preceito básico impõe limites ao adorador, impedindo-o de, levado
pelos ditames de sua consciência depravada, apresentar diante de Deus
qualquer coisa que não corresponda à sua natureza e vontade.
O valor básico e imutável a ser protegido no campo da adoração é
o “direito” exclusivo de Deus de determinar o modo como deve ser
cultuado. A regra básica que protege esse valor pode ser formulada da
seguinte maneira: nada pode ser praticado durante o
culto a Deus que não tenha sido expressamente
estabelecido e determinado por ele próprio nas
páginas da sua revelação escrita. E a essa regra básica que se
convencionou chamar de Princípio Regulador do Culto.
Já em Calvino (1509-1564), é possıv́el encontrar a adoção desse
princıṕ io. Nas suas Institutas, onde se insurge contra os abusos da
igreja de seu tempo, o reformador ensina que somente a Deus compete
estabelecer o modo como importa ser adorado. Diz ele:

De ter-se em mente, ademais, é que


as superstições frequentemente se referem
nestes termos, que são obrasdas mãos dos
homens, e carecem da divina
autoridade, para que seja isto estabelecido:
que são abomináveis todasas formas
[16]
de culto que os homens inventam de si
próprios.

Logo a seguir, Calvino escreve:


Deus,porém, para que a si vindique seu
direito, se proclama ser zeloso e
haver de ser severo vingador, se com
qualquer deidade ictícia se mesclar. Então,
para que lhe mantenha o gênero humano
em obediência,de ine seu legítimo culto.A
um e outrodesses aspectos enfeixa em
sua Lei, quando, primeiramente, a si
adjudica os iéis, a im de serlhes o
legislador único, depois, prescreve a
regrasegundo a
[17]
qual seja devidamente cultuado, conforme seu
alvedrio.

Que Calvino via a Escritura como a fonte de informação acerca da


maneira como deve realizar-se o culto ica claro a partir das citações
acima e também do que ensina logo a seguir, ao enunciar que
“mediante sua Lei, quis ele [Deus] prescrever aos homens que seja
justo e reto e, destarte, adstringi-los a uma norma precisa, para que
ninguém se
[18]
permitisse forjar expressão cultual qualquer que seja”.
O Princípio Regulador do Culto, conforme ensinado por Calvino,
foi posteriormente, ixado pela Con issão de Fé de
Westminster (1646), no primeiro artigo do seu Capítulo XXI:

A luz da natureza nos ensina que há


um Deus, que exerce senhorio e soberania
sobretudo, que é bom e faz o bem a
todos, e que por isso deve ser temido,
amado, louvado, invocado, crido de todo
coração e servido com toda a alma e
com todasas forças; mas o modoaceitável de
adorar o verdadeiro Deus foi instituído por
ele mesmo, e de tal modo determinado
por sua vontade revelada, que não se deve
adorar a Deus conforme as imaginações e
invenções dos homens ou as sugestões de
Satanás, sob alguma representaçãovisível ou
de outromodoque não seja o
[19]
prescrito na Santa Escritura.

Poucas décadas mais tarde, pastores batistas calvinistas reunidos


em Londres reproduziram exatamente o mesmo texto acima transcrito,
o qual passou a compor o Artigo 1 do Capítulo 22 da Con issão de
Fé Batista de 1689.
Levando em conta isso tudo, pode-se conceituar o Princípio
Regulador do Culto como o preceito que reserva exclusivamente a
Deus a liberdade e o poder para determinar o modo como o seu culto
deve ser realizado, sendo tais determinações reveladas de forma clara,
detalhada e especı́ ica na Bıblia.́
Ao tempo em que Calvino pronunciou seus ensinos sobre esse
assunto e também à época em que a Con issão de Westminster e
a Con issão de Fé Batista foram elaboradas, a maior expressão
de culto absolutamente inaceitável para os cristãos verdadeiros era
encontrada na veneração de imagens, praticada especialmente na
Igreja Católica Romana. O próprio texto das con issões mencionadas
revela que esse era o desvio que os teólogos de então tinham em
mente quando enunciaram o Princípio Regulador.
De fato, como se vê na citação supra, assim se pronunciaram: “Não
se deve adorar a Deus conforme as imaginações e invenções dos
homens ou as sugestões de Satanás, sob alguma representação
visıv́ el...”. E, pois, evidente que, num primeiro momento, o Princípio
Regulador foi ressaltado no afã de demonstrar a impiedade manifesta
no culto das imagens.
Ocorre, porém, que a norma que impõe limites ao culto cristão se
revela preciosa não só como base sólida para a rejeição das imagens,
mas também como um padrão ixo por meio do qual o crente pode
medir qualquer prática ou costume que se insinuem no culto a Deus ao
longo dos séculos.
E, portanto, com o Princípio Regulador do Culto em mente que o
lıd́ er cristão moderno poderá avaliar o que pode ou não ser aceito no
culto pelo qual ele é responsável. Por outro lado, a ausência de um
princıṕ io por meio do qual possam ser avaliadas certas práticas
modernas deixará o ministro de Deus à mercê de sua própria
consciência e sem força de argumentos para resistir à pressão de
indivıd́ uos que pretendem fazer do culto um mero perıó do de
descontração.
Para agir, porém, com a consciência irmada na Escritura, onde o
homem de Deus pode encontrar os fundamentos para o princıṕ io aqui
tratado? Ora, é do próprio artigo primeiro do Capítulo XXI da Con issão
de Fé de Westminster (reproduzido pelos batistas reunidos em
Londres, em 1689) que constam os fundamentos teológicos do
Princípio Regulador do Culto. Pode-se reduzi-los a três, a saber: o
senhorio e soberania de Deus sobre tudo; o dever do homem de buscar,
servir e adorar a Deus de forma aceitável; e o fato de Deus ter revelado
sua vontade na Palavra.
A Con issãode Westminster e a Con issão de Fé Batista
de 1689 declaram que a luz da natureza revela a existência de um
Deus soberano. De fato, a chamada revelação geral, a qual inclui em
seus aspectos a própria consciência humana, aponta para a existência
de um criador, preservador e benfeitor soberano (Sl 19.1-6; At 17.24-
25; Rm 1.19-20). Dessa mesma fonte se depreende que esse ser é o
governador moral absoluto, a quem todos os seres pessoais devem
temer e adorar, o que é testi icado universalmente pelo pensar e agir de
todas as nações em todas as épocas (At 17.23; Rm 2.14-15) .
Uma vez admitida a existência de um soberano Senhor, o dever de
buscá-lo, servi-lo e adorá-lo de maneira que lhe seja aceitável é a
verdade a que se chega com fácil e breve re lexão. A Escritura Sagrada é
pródiga nas insistências de que o homem deve adorar a Deus, sendo-
lhe devedor perpétuo de louvor, obediência e serviço, tudo isso feito
com inteireza de coração e empenho absoluto da totalidade de suas
forças (Sl 31.23; 150; Jr 10.7; Mt 22.37-38; Jo 4.24) .
Sendo Deus o Senhor soberano a que se deve honrar de maneira
que lhe agrade, resta ao homem a tarefa de descobrir em que Deus se
compraz quando é cultuado e adorado. Ora, essa descoberta não pode
ser feita quando o homem vasculha sua consciência, sua imaginação,
suas inclinações pessoais ou mesmo o exemplo de povos (antigos ou
contemporâneos) que seguiram os impulsos da criatividade humana
para estabelecer suas cerimônias religiosas em honra à divindade.
Por isso, sendo in initamente misericordioso e não podendo
deixar o homem à mercê de seus impulsos naturais numa matéria de
tão elevada importância, o Senhor lhe revelou em sua Palavra não
somente seu caráter e obras, mas também sua vontade, a qual abrange
determinações que devem ser observadas no culto de sua santıś sima
Pessoa.
O eminente teólogo Archibald Alexander Hodge (1823-1886),
comentando esse ensino, escreve:
Pode haver sucedido que, no estado
natural do homem e em suas relações
morais com Deus antes da queda, sua
razão natural, sua consciência e instinto
religioso tenham sido su icientes para dirigi-lo
nesse culto e serviço. Mas quando sua
natureza moral se corrompeu, seu
instinto religioso se perverteu e suas
relações morais com Deus se transtornaram
em razão do pecado, é evidente que se
fez necessária uma revelação que não somente
dissesse aos homens o que Deus admitiria
no culto,mas que também prescrevesse os
princípios e métodos debaixo dos quais tal
serviço e adoração
[20]
deveriam ser oferecidos.

Assim, na Sagrada Escritura – a revelação a que se refere Hodge –


é ensinado que o culto ao Deus verdadeiro não deve ser maculado com
o uso de imagens de escultura (Ex 20.4-6); que tal culto se torna vão
quando mesclado com ensinamentos que não passam de regras
inventadas por homens (Mt 15.8-9; Cl 2.20-23); que o Deus trino é o
alvo exclusivo da adoração, não podendo o louvor dos adoradores ser
dirigido a nenhum outro, seja homem, anjo ou qualquer outra criatura
(Mt 4.9-10; Rm 1.25; Cl 2.18; Ap 22.8-9); que o culto cristão dispensa o
valor dado a templos de madeira e pedra (Jo 4.21-23); que a adoração
precisa ser feita em espıŕ ito e em verdade (Jo 4.24); que o culto deve
ocorrer num ambiente marcado por decência e ordem (1Co 14.40); que
o crente que cultua deve ter a alma mergulhada em reverência e santo
temor (Hb 12.28-29); e que o culto genuıń o tem de ser oferecido a
Deus por meio de um mediador, o qual é Jesus Cristo (Ef 2.18; 1Tm 2.5).
A totalidade dessas prescrições, como se vê, baseia-se na Sagrada
Escritura, sendo todas elas, quando postas em prática, demonstrações
notáveis da aplicação do Princípio Regulador do Culto.
Resgatado, pois, esse princıṕ io, pouco espaço continuará a existir nas
igrejas para desvios como a realização de danças, as homenagens a este
ou aquele indivıd́ uo (pastores, lıd́ eres, polıt́ icos, etc.), a
espontaneidade desregrada, as apresentações humorıś ticas, os
supostos exorcismos e as inúmeras outras práticas carentes de amparo
bıb́ lico. Em lugar dessas coisas, o culto a Deus, conforme já dito, será
constituıd́ o essencialmente de pregação bıb́ lica, oração, louvor,
dádivas e ordenanças.

A pregação

Nenhum crente instruıd́ o e maduro, do tipo “cristão velho”,


duvida da centralidade da pregação na vida da igreja de Deus. Na
verdade, qualquer cristão bem preparado considerará a proclamação
pública da Palavra um sinal infalıv́el da verdadeira igreja, sendo por
meio dela que as ovelhas são buscadas, curadas e alimentadas
enquanto os lobos são feridos, assustados e afugentados.
Infelizmente, porém, de todos os componentes do culto
verdadeiro, talvez esse seja o mais negligenciado no contexto do
evangelicalismo moderno. Grant Osborne observou com precisão:

A vida da igreja depende de ensino


e pregação, e os dois luem um do
outro– os sermões devem ensinar a
verdade teológica, e o ensino deve
impactar vidas de uma forma prática... Richard
Lischer lamenta que a pregação tenha
sido excluída da teologia e que a
teologia tenha sido excluída da pregação.
O resultado disso é a falta de
substância,a incoerência, a irrelevância e
a perda de autoridadena
[21]
pregação moderna.

Para evitar que as coisas permaneçam nesse estado lamentável, é


necessário que os pastores de hoje façam o que Martinho Lutero
(14831546) fez nos dias da Reforma Protestante, recuperando a
doutrina paulina da proclamação, elevando a pregação a um alto
patamar dentro do culto cristão e tornando-a novamente o núcleo da
liturgia.
Como, porém, isso pode ser feito? Em primeiro lugar, o ministro
de Cristo deve desenvolver uma visão da pregação que, no mıń imo, a
reconheça como um dos aspectos principais do trabalho pastoral (1Tm
4.13) e a conceba como o veıć ulo ordenado por Deus para a salvação
dos perdidos (Rm 10.17; 1Co 1.21; Tg 1.18) e a instrução dos crentes
(2Tm 4.2). A isso o pregador deve acrescentar a noção de que quando
proclama ielmente a Palavra, é como se Deus falasse por seu
intermédio, transformando-o num porta-voz e embaixador do céu (2Co
5.20; 1Ts 2.13).
Munido dessas verdades, o pregador cuidará para que sua
mensagem não seja uma exposição acadêmica e estéril de iloso ias
humanas ou de teorias seculares (1Co 2.4-7). Em vez disso, lerá e
exporá os textos da Bíblia. Se pregar regularmente numa igreja, poderá
expor aos poucos livros bıb́ licos inteiros, apontando o assunto sobre o
qual cada passagem trata, explicando suas di iculdades, destacando os
ensinos doutrinários que dali emanam, ilustrando de forma vıv́ ida e
didática as lições principais, detectando o que o autor quis produzir na
mente e na vida dos leitores originais e, talvez o mais importante,
mostrando como o texto exposto pode ser aplicado à realidade dos
crentes atuais, mudando seu modo de pensar e de viver e
transformando-os em pessoas dotadas de caráter semelhante ao de
Jesus.
Esse último aspecto é de importância vital porque não basta que a
pregação seja doutrinariamente sadia. Ela deve também ser prática e
aplicável, gerando benefıć ios palpáveis para o dia a dia dos santos.
Ao preparar um sermão assim, o mensageiro deve evitar a cópia
completa de outros pregadores, isto é, o tipo de homilia que apenas
reproduz o que diferentes teólogos disseram ou escreveram. Mesmo
sendo necessário que o pastor pesquise todas as fontes disponıv́eis, é
também importante que ele mesmo desenvolva, à luz do texto, suas
próprias observações e re lexões, contando para isso com o auxıĺ io de
Deus buscado em oração.
No tocante à forma como é transmitida, isto é, à sua entrega, a
pregação deve a lorar com linguagem clara para que a mensagem seja
compreendida por todos, desde o mais simples ao mais letrado. No
dizer de Calvino, ao pregar, o pastor deve ser “como um pai repartindo
[22]
o pão em pequenos pedaços para alimentar seus ilhos”.
Cuidando para que seja assim, o pregador não deve entediar os
ouvintes com elucubrações confusas, longos devaneios e
argumentações complexas. Deve, pois, evitar a mistura de assuntos, os
rodeios que não chegam a lugar nenhum, os apelos prolongados e
insistentes que não produzem nada e o falar monótono, moroso e
soporıf́ero, pois um dos erros mais trágicos do pregador é tornar a
Palavra de Deus enfadonha aos ouvintes. Aliás, sabendo disso, é
importante também que o mensageiro cristão tenha tato para perceber
quando está sendo cansativo e quando já passou da hora de se calar.
Em tudo, pois, deve cuidar para, como porta-voz de Deus, dar com
entusiasmo, dinamismo, clareza e sabedoria o recado que seu Senhor
ordenou que desse.
Ainda no tocante à entrega, o discurso santo admite o uso do bom
humor e até da ironia (1Rs 18.27; 1Co 4.8-10). Contudo, não pode
ocorrer do pregador trazer sobre si a fama de palhaço. A igura do
pastor bufão, que todos anelam escutar para dar boas risadas, não é
salutar, pois ao ministro de Cristo não é adequada a tarefa de divertir
os ouvintes ou de deleitá-los continuamente com gracejos. Ainda que o
humor inteligente e saudável tenha seu lugar na pregação como um
artifıć io de retórica, isso não pode em hipótese alguma ser dominante
durante a homilia. Muito menos deve o pregador fazer do púlpito palco
para piadas de duplo sentido (Ef 5.4). Aliás, nunca deve usar linguagem
deselegante em suas mensagens (1Tm 4.12; Tt 2.7-8), nem tampouco
fazer do sermão um veıć ulo para atacar covardemente pessoas da
igreja por quem nutre antipatia.
E necessário dizer, inalmente, que, enquanto prega, o arauto de
Deus não deve se preocupar se está agradando ou não os homens, mas
sim se está sendo leal àquele que o enviou. Isso não signi ica que o
pregador tem licença para ser agressivo ou grosseiro, mas sim que ele
tem de evitar o discurso polıt́ ico que foge do que a Bíbliadiz com medo
de incomodar os incrédulos e os que vivem no erro (Gl 1.10). Expondo
a concepção de Lutero a esse respeito, Timothy George escreveu:

Alguns pregadoreshesitam em proferir


palavras duras de julgamento, com medode
ofender os “grandes” que se assentam em
sua congregação. Tais pregadoressão, na
realidade, mercenários que “tagarelam no
púlpito”, mas não proclamam a verdade,
porque amam seus ventres e a esta
vida temporal mais do que a Cristo... “Deus
nos proteja dos pregadores que agradam a
todose desfrutam de um bom
[23]
testemunho de todos”, disse Lutero.

O pregador que fugir do desejo de aprovação geral, for iel ao


ensino bıb́ lico e sábio na entrega de suas mensagens precisa saber que
nem sempre será ouvido pela maioria (Jo 12.37-38; Rm 10.16). De fato,
muitos escutarão a mensagem, mas isso não lhes será de proveito
nenhum, pois não crerão nela (Hb 4.2) e não a colocarão em prática (Tg
1.22-24). Por isso, o pregador deve lembrar que o sucesso do
mensageiro de Cristo não pode ser medido pela recepção que tem junto
aos homens, mas sim pelo seu grau de idelidade ao Senhor que o
enviou para fustigar o coração dos maus com o aguilhão do bem.

A oração

Outro componente do culto cristão é a oração (At 2.42). Esta, para


ser aceitável, deve ser feita em nome do Filho (Jo 14.13-14), com a
assistência do Espıŕ ito Santo (Rm 8.26) e na expectativa de que
somente a vontade do Pai seja feita (Mt 6.10; 1Jo 5.14). A oração pode
ser dirigida a qualquer uma das três pessoas da Santıś sima Trindade,
[24] mas nunca a santos ou anjos (Fp 4.6-7). Além disso, o crente
deve
rogar por coisas lıć itas (1Tm 2.1-2) e por pessoas vivas ou que ainda
hão de nascer, jamais orando pelos mortos (2Sm 12.16,21-23).
Observe-se ainda que, durante o culto público, a oração deve ser
proferida numa lıń gua conhecida pela congregação (1Co 14.16-19).
Na Bíblia, pode-se encontrar pelo menos seis orientações básicas
acerca da oração que devem ser observadas pelos cristãos na prática de
seus atos cultuais.
Primeiro, as Escrituras ensinam que o crente deve orar com
reverência. Os cristãos têm uma percepção clara da majestade de Deus
e da grandeza da sua santidade. Conhecendo a Santa Palavra, eles
sabem que o Senhor está envolto em sublime esplendor, que ele habita
na luz inacessıv́el, que sua glória é indizıv́el e que sua soberania se
estende sobre todo o universo e além (1Tm 6.15-16; Jd 25). Por isso,
jamais se referem ao Senhor como “o cara lá de cima”. Tampouco falam
com ele como quem fala com qualquer um. Ainda que tenham em Deus
um pai e amigo (Rm 8.15), sua intimidade com ele não lhes dá licença
para
serem irreverentes (1Tm 2.8). Assim, ao orar, os crentes têm de usar
uma linguagem respeitosa e decente (Hb 12.28). Devem fazer da sua
oração uma oferta verbal pura e bonita ao Deus glorioso (Ap 5.8). Os
piedosos personagens bıb́ licos oravam assim e os cristãos devem
imitálos.
Em segundo lugar, o crente deve orar com humildade. A noção de
se aproximar de Deus com palavras de reivindicação, exigindo supostos
direitos, está bem longe do ensino cristão sobre a oração. Trata-se de
uma noção nova, inventada por homens de mente corrompida, que
acham que podem se dirigir a Deus como se fossem senhores dele. A
verdade, porém, é que o homem é sempre pequeno, pobre e incapaz
diante daquele que é grande, rico e poderoso. Por isso, quando oram, os
crentes devem reconhecer sua miséria e necessidade e, numa atitude
súplice, implorar a ajuda imerecida de Deus (Sl 123.1-2), crendo que
essa ajuda virá somente se ele quiser e sabendo que sua vontade é
soberana, não tendo o Senhor obrigação nenhuma de fazer o que lhe é
pedido (Mt 6.10; 2Co 12.7-9).
Em terceiro lugar, o crente tem de orar com contrição. O tempo de
oração, mesmo pública, deve ser como um vestıb́ ulo dentro do qual o
homem se despe de qualquer noção de dignidade e glória pessoal. Toda
con iança em si mesmo, toda autoindulgência devem ser lançadas fora
quando o cristão está orando (Lc 18.10-14). No lugar dessas coisas, ele
deve olhar para os trapos da sua indignidade, da sua desıd́ ia, do seu
pecado e da sua ingratidão (Ed 9.5-15; Is 64.6; Lm 3.40-42). Então, com
o coração arrependido, deve pedir perdão e restauração, sabendo que,
como Juiz, Deus absolverá seus eleitos pelos méritos de Cristo (1Jo 1.9)
e, como Médico, ele os curará pelo poder da sua Palavra, divino
remédio (Lm 3.22-33).
Em quarto lugar, o crente deve orar com gratidão. E na oração
que o homem salvo expressa verbalmente seu louvor a Deus por tudo
que ele é e por tudo que ele tem feito. O crente reconhece em suas
súplicas que nada do que o Senhor lhe confere é devido ao seu
merecimento. Ele se lembra que o ar que respira, o alimento que come
e as roupas que o cobrem são dádivas sublimes de Deus que as
derrama sobre as pessoas, apesar da sua pecaminosidade e vileza (Sl
147.7-19; At 17.25). Isso sem falar das coisas que ele concede sem que
o homem necessite delas, com o propósito doce e paterno de alegrá-lo e
consolá-lo neste mundo mau. E em face disso que o cristão remove de
sua boca as reclamações e o murmurar sombrio, dirigindo ao Senhor
palavras de sincera gratidão e louvor (Fp 4.6-7; Cl 3.15).
Em quinto lugar, o crente tem de orar com fé. Ninguém deve ser
tolo ao ponto de acreditar que pode “fazer a cabeça” de Deus,
induzindo-o a realizar alguma coisa (Is 46.10). Assim, em vez de orar
crendo ingenuamente em sua suposta capacidade de persuasão, o
cristão deve fazer suas petições crendo no amor e no poder de Deus,
con iando que ele o ama como seu herdeiro especial e que lhe fará
sempre o melhor, mesmo quando seus olhos não forem capazes de
enxergar isso (Lc 11.11-13; Hb 4.16). O servo do Senhor deve crer que
ele tem poder para fazer muito mais do que lhe é pedido (Ef 3.20) e que
efetivamente o fará, caso isso se encaixe nos propósitos do seu amor in
inito (1Jo 5.14-15).
Em sexto lugar, o crente deve orar com brevidade. A mente
humana, marcada pelo pecado, com muita facilidade se deixa levar
durante as orações pelo vento de pensamentos desconexos ou de
preocupações terrenas. Por isso, quando o cristão ora longamente, gera
grande di iculdade de concentração tanto para si mesmo (quando ora
sozinho) como para seus irmãos (quando ora em público). A forma de
evitar isso é imitar o exemplo do Senhor (Mt 6.9-13) e fazer uso da
objetividade, abandonando jargões, frases prontas, grandes
formulações doutrinárias e exposições históricas, lembrando, inclusive,
que orações longas não são necessariamente sinais de espiritualidade
(Lc 20.46-47). O crente que ora deve, portanto, apresentar brevemente
seus motivos, seus louvores e sua con issão. Isso ajudará a evitar que
longos rios de preces terminem num oceano de confusões mentais.
Eis aı ́ seis pequenas “dicas” de como orar de modo bıb́ lico e
proveitoso. Que o crente se afaste, pois, das rezas supersticiosas, das
orações de quebra de maldição ensinadas por pastores feiticeiros e das
palavras de ordem e de reivindicação que os falsos mestres estimulam
os incautos a dirigir ao Senhor. Em vez disso, que ore como os santos
de Deus mencionados na Bíblia. E o exemplo deles e o ensino do Senhor
que se devem seguir. O resto é invenção danosa.

O louvor cantado

A arte cristã tem várias formas de expressão. A pintura, a


escultura, o teatro e a literatura são aspectos da realização artıś tica por
meio dos quais os crentes de talento têm manifestado suas percepções
acerca de Deus, de sua Palavra e de sua obra de forma tocante, original
e criativa.
Com efeito, o cristianismo, desde os seus primórdios, encontrou
na arte um aliado tanto para a tarefa de estıḿulo à devoção como para
o trabalho de comunicação da fé. Uma das evidências mais curiosas
disso encontra-se nas antigas catacumbas de Roma. Nas paredes
subterrâneas desses imensos cemitérios cristãos existem pinturas
datadas entre os séculos 2 e 4, ilustrando momentos da vida da igreja
como o batismo e a eucaristia, ou destacando temas ligados à fé como a
igura do Bom Pastor ou a pombinha que foi solta por Noé e que
retornou à arca com um raminho de oliveira no bico, sıḿbolo da alma
redimida chegando ao Paraıś o.
Em que pese a importância de toda forma de arte para a
comunicação da fé, é na música que o talento artıś tico encontra sua
melhor forma de expressão cultual. Sim, pois por meio da música a
igreja reunida entoa louvores e eleva o coração a Deus em tocante
adoração, proclamando os gloriosos atributos do Senhor e anunciando
seus feitos maravilhosos. Por isso, o louvor cantado tem lugar de
extrema importância no culto cristão, sendo, inclusive, estimulado nos
escritos do Novo Testamento (Ef 5.19; Cl 3.16).
Toda forma de arte, porém, para ser plenamente aceita e
desfrutada pelo crente deve apresentar três qualidades: excelência, isto
é, não pode ser malfeita ou isenta de qualquer demonstração real de
talento; legitimidade, ou seja, não pode ser um simples plágio de outras
obras; e veracidade. Essa última qualidade deve ser considerada a mais
importante para o crente, pois signi ica que a obra artıś tica tem de
dizer ou representar a verdade, jamais promovendo qualquer forma de
crença, ideia ou iloso ia mentirosa.
Ora, essas três qualidades precisam ser levadas seriamente em
conta pela igreja na escolha dos hinos que decide cantar durante seus
cultos. Caso contrário, a santa adoração será gravemente ameaçada
pela feiura, pelo ridıć ulo e pela mentira.
A prática do louvor na igreja de Deus deve também assumir um
estilo ordeiro e moderado. E aceitável o uso de qualquer instrumento
musical, mantendo sempre, contudo, o caráter equilibrado que é
apropriado ao culto prestado ao Deus soberano. Disso os adoradores
cristãos jamais devem se esquecer, a im de que, em seus momentos de
louvor, a igreja jamais deixe reinar as desordens, as gritarias e as
manifestações de histeria ou de descontrole emocional tão comuns nas
corrompidas igrejas modernas.
Aliás, nesse sentido, a Bíbliamostra que os homens que estiveram
realmente diante do Deus verdadeiro jamais sentiram qualquer desejo
de pular, rir, dançar ou gritar. Em vez disso, aqueles homens foram
tocados por sentimentos de profundo temor, reverência e contrição
(Gn 28.16,17; Jó 42.5,6; Is 6.1-5; Ez 1.28; Mt 17.1-6; Ap 1.17). Assim, na
igreja de Deus, o louvor, bem como cada momento do culto realizado na
presença do Senhor, é marcado por decência e ordem (1Co 14.40). Isso
porque a preocupação de cada crente maduro consiste em adorar a
Deus “de modo aceitável, com reverência e temor, pois o nosso Deus é
um fogo consumidor” (Hb 12.28,29).
Em busca do equilıb́ rio, a igreja de Deus deve entoar tanto
cânticos avulsos como hinos dos hinários tradicionais, tais como o
Cantor Cristão, o Hinário para o Culto Cristão e a Harpa
Cristã. Pelo fato de a igreja de Cristo ser uma comunidade composta de
pessoas de diversas idades, origens e formações, é necessário
estabelecer uma liturgia equilibrada, na qual todos os crentes se sintam
bem.
No Brasil, uma tradição evangélica antiga considera o bater
palmas pouco recomendável durante o cântico dos hinos. As palmas,
porém, não devem ser absolutamente proibidas, uma vez que não há
amparo bıb́ lico para essa restrição. Contudo, deve-se cuidar para que o
uso constante e desordenado dessa forma de participação
congregacional não con lite com a reverência que deve existir diante do
Deus santo e majestoso.
Ademais, conforme dito, a igreja do Senhor é uma comunidade
mista, composta por pessoas de diferentes percepções, havendo,
inclusive, aquelas que se escandalizam com a prática de bater palmas.
Essas pessoas, como preciosas ovelhas de Cristo, têm de ser
respeitadas em seus sentimentos e reações, pois, segundo o ensino
apostólico, age contra o amor aquele que faz deliberadamente qualquer
coisa que deixe um irmão entristecido ou incomodado (1Co 8.12-13).
O levantar as mãos durante os cânticos não é prática comum nas
igrejas mais tradicionais. Não obstante esse gesto esteja presente na
Bíbliaassociado ao juramento (Gn 14.22,23; Dn 12.7; Ap 10.5,6), à
oração (Sl 28.2; 77.2; 88.9; 141.2; Lm 2.19; 3.41,42; 1Tm 2.8) e ao
louvor (Ne 8.6; Sl 63.4; 134.2), a igreja zelosa deverá ter cautela ao
usálo. Isso porque a boa igreja precisa preservar os traços de sua
identidade, mostrando-se diferente das inúmeras seitas atuais que se
autodenominam evangélicas. Nessas seitas, os frequentadores icam
quase o tempo todo de mãos levantadas sem ter a menor noção do
signi icado disso ou movidos por ideias supersticiosas, sendo
necessário que a igreja verdadeira evite ser confundida com
movimentos assim.
E sabido que levantar as mãos ao Senhor é o mesmo que dizer:
“Pai, olhe minhas mãos; elas estão limpas de pecado. Também nelas
não há nenhum recurso que eu possa usar na difıć il situação em que
me encontro. Elas estão totalmente vazias! Por isso, ouve a minha
súplica!”. Sabe-se também que levantar as mãos é uma expressão fıś ica
que simboliza o desejo de alcançar a Deus (Sl 143.6), o seu perdão, o
seu favor ou os seus ensinos (Sl 119.48).
Conhecendo os sentidos desse gesto, nada há que impeça o crente
de manifestá-lo em suas orações ou expressões de louvor. Tão somente
os membros da igreja séria devem ser orientados a que sejam
criteriosos e sensıv́eis durante o culto público a im de que, com tato em
bom senso, evitem dúvidas e confusões ao adotar gestos assim.
Considerando tudo isso, é fácil concluir que, em seu louvor
cantado, a prática da igreja de Deus deve revelar profunda preocupação
em manter bem nıt́ idas as distinções entre o culto dos cristãos sérios,
os ritmos do mundo enlouquecido e as sandices das seitas ignorantes,
oferecendo sempre a Deus um cântico digno de sua majestade,
marcado por beleza, arte, verdade e amor aos irmãos presentes.

Os chamados ‘momentos de louvor’

As décadas de 1970 e 1980 viram surgir no meio evangélico uma


teologia acerca do louvor absolutamente estranha aos ensinos da
Bíblia. Essa teologia que ainda vigora dentro das igrejas em geral
atribui ao louvor um poder exacerbado, a irmando que essa prática,
quando realizada de forma vitoriosa, maciça, jubilosa e contıń ua, cria
um ambiente que “libera o poder de Deus”, afugenta Satanás ou o
impede de agir, fazendo, a inal, com que todo tipo de mal se desvaneça
e o crente obtenha grandes conquistas e livramentos.
Fundamentadas nessa teologia, a irmações ousadas passaram a
ser feitas acerca do louvor, enaltecendo-o como um instrumento
infalıv́ el por meio do qual o crente pode obter uma fé robusta, uma vida
de oração triunfante, um crescimento espiritual mais acelerado, um lar
feliz e até a cura para a depressão, o estresse e inúmeras doenças
[25]
mentais.
Os re lexos práticos desses ensinos sobre a liturgia cristã foram,
basicamente, dois: primeiro, ocorreu a redução da importância e do
lugar da pregação no culto; em segundo lugar, houve a criação de
equipes responsáveis por promover perıó dos especiais de louvor
dinâmico e entusiasmado durante as reuniões da igreja.
Foi assim, pois, que surgiu na ordem de culto das comunidades
cristãs de todas as vertentes evangélicas o “momento de louvor”,
dirigido geralmente por um grupo de jovens que, via de regra, atua
num dado momento da programação promovendo uma espécie de
culto dentro do culto. Em algumas igrejas, os membros da equipe
responsável por isso são chamados de levitas, sendo assim colocados
numa categoria especial de adoradores, algo totalmente estranho ao
culto cristão.
No instante, pois, em que esse grupo vai à frente é como se um
parêntese se abrisse na sequência que está sendo seguida e uma
liturgia diferente e mais e icaz tomasse então lugar, com músicas,
leituras bıb́ licas, orações e pequenas pregações feitas entre um cântico
e outro.
Quando, en im, esse “momento especial” termina, retorna-se à
sequência litúrgica antes interrompida, fecha-se assim o parêntese, e os
componentes do grupo de louvor voltam para os seus lugares, muitas
vezes do lado de fora da igreja, onde, em rodinhas animadas de
batepapo, aguardam a pregação e tudo o mais acabar. No im das contas,
a impressão que tudo isso passa é que o ápice do culto é o tal momento
de louvor, sendo tudo o mais apenas um apêndice indesejável, quando
não desnecessário.
Tanto por causa de seus pressupostos doutrinários como de seus
efeitos danosos, esse modelo deve ser desencorajado ou mesmo extinto
da igreja de Deus. Uma maneira de fazer isso é por meio da alteração
dessa dinâmica, redirecionando o trabalho dos componentes dos
[26]
grupos de louvor.
Como? Os lıd́ eres da igreja devem trabalhar para integrar o
trabalho desses irmãos ao culto como um todo, fazendo com que não
mais realizem o chamado “momento de louvor”, mas, sendo o culto um
evento uni icado de adoração, dirijam cânticos avulsos em momentos
diversos da liturgia.
Devem ainda lhes dizer, se for o caso, que não são levitas, mas
adoradores no mesmo nıv́el dos demais e, en im, instruı-́ los a não fazer
outras leituras bıb́ licas, outros perıó dos de oração ou outras
pregações (por mais curtas que sejam) enquanto estiverem à frente,
restringindose a dirigir os cânticos nos instantes em que a
programação normal assim requerer.
Isso, ainda que possa gerar certas reclamações e
descontentamentos, fará desaparecer a natureza parentética e
“especial” dos “momentos de louvor” e o culto voltará a ser
caracterizado pela unidade saudável que re lete a igualdade de cada
adorador e a idêntica importância de cada elemento cultual.

As dádivas durante o ofertório

Como será visto adiante (Capítulo6), os crentes têm o dever de


oferecer os recursos que a igreja usará para funcionar bem e realizar
suas metas. Ora, o culto cristão fornece o contexto em que esse ato de
entrega deve ocorrer. Por isso, existe espaço na liturgia cristã para o
ofertório, devendo esse aspecto da adoração ser regido também por
princıṕ ios que emanam da Palavra de Deus.
O primeiro princıṕ io a ser observado no momento do ofertório é
o princípio da exclusividade. Com base nesse princıṕ io a irma-se que
as ofertas dedicadas ao serviço de Deus devem vir somente das mãos
do seu povo redimido. Um exemplo claro disso se encontra em 3João 7.
Esse versıć ulo a irma que os evangelistas itinerantes que haviam sido
enviados pela igreja em que João estava (provavelmente em Efeso)
realizaram sua jornada missionária “nada recebendo dos gentios”, ou
seja, dos pagãos incrédulos. Eles agiram assim porque, em seus dias, os
falsos mestres obtinham dinheiro fácil com a venda de um evangelho
distorcido (2Co 2.17; 4.2; 1Tm 6.5) e aqueles mensageiros de Deus não
queriam ser confundidos com os tais obreiros fraudulentos (2Co
11.13).
Hoje, o mesmo problema permanece, havendo pregadores da
mentira que tiram dinheiro dos incrédulos com mensagens vazias.
Assim, para evitar que a igreja de Deus seja confundida com um covil
onde esses ladrões se reúnem, deve-se acolher a mesma prática sensata
dos antigos evangelistas de Efeso, recusando qualquer recurso que não
venha das mãos de pessoas convertidas.
As ofertas de incrédulos também devem ser recusadas porque,
tomados muitas vezes por uma visão comercial das bênçãos de Deus, os
homens perdidos acreditam que podem comprar o favor do Senhor
oferecendo-lhe alguns trocados, como se o Dono do universo precisasse
de dinheiro. Essa atitude é tão blasfema e tão contrária à natureza
santa, autossu iciente e graciosa de Deus que é imperativo que seja
desencorajada durante o momento de ofertório, a im de que o culto não
seja maculado por impulsos tão perversos.
O segundo princıṕ io a ser observado no momento do ofertório é
o princípio da obediência, pelo qual se estabelece que as ofertas
aceitáveis a Deus são aquelas que vêm de vidas santas, marcadas por
arrependimento, retidão e busca sincera da vontade do Senhor. A base
bıb́ lica desse princıpio pode ser encontrada já no Livro de Gênesis,́
onde a oferta de Caim é rejeitada porque seu procedimento não era
reto diante de Deus (Gn 4.3-7).
Outros textos fortalecem a importância do princıṕ io da
obediência, mostrando que as dádivas que vêm de pessoas perversas,
hipócritas, apóstatas e mundanas são vistas por Deus como verdadeira
abominação (1Sm 15.22; Pv 15.8; 21.27). Aliás, deve-se destacar que
não são somente as ofertas de pessoas assim que Deus rejeita, mas sim
cada gesto cultual que elas realizam (Is 1.11-15). Assim, quando for
iniciar o momento de ofertório, o dirigente deve alertar os adoradores
acerca dessas coisas, a im de que haja arrependimento no coração de
todos e as dádivas oferecidas agradem realmente a Deus (Sl 51.17).
Finalmente, durante o momento de ofertório, os cristãos devem
observar o princípio da responsabilidade pelo qual cada crente deve
contribuir não com qualquer igreja, mas com aquela de que participa,
seja como membro, seja como assıd́ uo frequentador, sendo essa a
prática reinante em todo o Novo Testamento.
E claro que o membro de uma determinada igreja é livre para,
eventualmente, dar ofertas em outra, caso queira. Isso, porém não pode
ser feito em prejuıź o da igreja de que faz parte, igreja essa pela qual é
responsável e que conta com sua cooperação. Cada ovelha de Cristo
deve, pois, saber que seu compromisso maior é com o aprisco de fé e
adoração em que o Supremo Pastor a colocou, sendo livre para dar
ofertas para qualquer agência do Reino, mas sem deixar de lado a
contribuição de que sua própria igreja necessita.

A bênção apostólica

Um costume bastante antigo e comum nas igrejas evangélicas é


encerrar o culto com uma oração especial feita pelo pastor denominada
“bênção apostólica”. Essa oração consiste basicamente da repetição do
texto de 2Corıń tios 13.13 (ou 14, na NVI) enunciada pelo ministro com
o braço estendido sobre a congregação.
A maioria dos crentes tende a crer que a bênção apostólica só
pode ser impetrada por um pastor devidamente ordenado, chegando
alguns a acreditar que ela possui uma força maior do que as orações
comuns feitas pelos cristãos em geral.
Essas noções, porém, não passam de pequenas superstições e
desvios que persistem há várias gerações no meio evangélico, mesmo
nas igrejas mais zelosas. De fato, não existe nada nas Escrituras que
conceda aos pastores o direito exclusivo de pronunciar esta ou aquela
oração. Tampouco existe qualquer base para a crença de que uma
oração feita por um ministro com as mãos estendidas tenha efeitos
mais e icazes sobre o povo.
Na verdade, ao que parece, essas crenças decorrem de um erro
muito comum no contexto cristão, a saber, a ideia de que o pastor é um
sacerdote que ministra ao povo leigo. Essa ideia tem duas fontes: a
teologia católica romana que confere aos seus “pastores” o status de
sacerdotes detentores de prerrogativas espirituais não concedidas ao
cristão comum; e a visão da igreja como um novo Israel (com leis,
rituais e sacerdotes) – concepção que surge como um desdobramento
[27]
natural da teologia aliancista.
De acordo com essa visão, uma vez que o pastor é um sacerdote,
somente ele está autorizado a realizar os “rituais” do culto cristão,
sendo a bênção apostólica apenas mais um deles.
Ora, a noção que de ine o pastor como um sacerdote que ministra
a leigos é absolutamente oposta a uma das colunas teológicas centrais
do Novo Testamento, a saber, a doutrina do sacerdócio universal de
todos os crentes.
Essa doutrina tem sólido amparo bıb́ lico (1Pe 2.5,9; Ap 1.5-6; 5.9-
10) e foi um dos temas principais pregados pelos reformadores do
século 16, os quais viam no ensino acerca do sacerdócio exclusivo dos
padres uma das ferramentas mais nocivas de opressão do povo.
Considerando que a prática da impetração da bênção apostólica é
um resquıć io do sacerdotalismo católico, além de um desdobramento
talvez involuntário da concepção equivocada da igreja como um novo
Israel, duas alternativas se abrem para a igreja de Deus no tocante a
esse assunto: a primeira é permitir que todo e qualquer crente impetre
a bênção apostólica antes de despedir o povo, preservando a igualdade;
a segunda é rejeitar de vez o hábito de encerrar o culto com a bênção
apostólica pronunciada pelo pastor com imposição de mãos.
Salvo melhor juıź o, a segunda opção é a melhor, posto que dá
cabo de initivo de qualquer sombra sacerdotalista que certamente se
insinua nesse antigo costume.

Demônios no culto?
Uma das obras de Satanás e seus anjos que mais escravizam e
destroem vidas é o fenômeno da possessão demonıá ca. Em face dessa
a lição, duas correntes de opinião se formam, ambas marcadas por
extremismo injusti icado. Na primeira corrente, encontram-se os que
em tudo veem os “chifres do diabo”. Basta alguém icar irado, ter um
mal-estar fıś ico, discordar do que disse o pastor, ou simplesmente
tossir, e logo dizem que a pessoa está endemoninhada.
No outro extremo encontram-se os que, mesmo diante das mais
claras evidências de possessão demonıá ca, se mantêm céticos, a
irmando que o que estão testemunhando é mero resultado da bebida
ou de algum problema mental.
O cristão que pretende pensar e agir de conformidade com a
Palavra de Deus deve se situar de modo equilibrado entre esses dois
extremos. Deve aceitar que a possessão demonıá ca é um fenômeno que
realmente existe, pois são inúmeros os textos bıb́ licos que o atestam
(Mt 8.28; 9.32; 12.22; 15.22; Mc 1.23; 5.2; Lc 8.2; At 5.16). Contudo,
deve também ter bom senso para discernir se está diante de alguém
realmente endemoninhado ou de uma vıt́ ima de outro problema
qualquer.
Nem sempre é fácil fazer distinção. Tanto mais quando se sabe
que é possıv́el diferentes problemas serem patentes, ao mesmo tempo,
numa pessoa só. De fato, é comum a mesma pessoa estar
endemoninhada e embriagada, ou endemoninhada e com problemas
mentais, ou até endemoninhada, embriagada e com problemas mentais,
o que torna difıć il, se não impossıv́el, saber onde terminam as
evidências de um problema e começam as do outro.
De qualquer modo, parece ser ponto pacı́ ico que a mudança de
voz, a força fıś ica descomunal (Mc 5.2-4), a alteração notável do
semblante, a imitação de movimentos e sons de animais, o olhar
carregado de ódio assassino e selvagem (Mt 8.28), a fúria incontrolável
diante das verdades da Bíbliae o dizer ou fazer coisas que o indivıd́ uo
em seu estado normal não saberia dizer ou fazer (Mc 1.23,24) são
evidências claras de possessão demonıá ca. Diante de fatores desse
tipo, portanto, o crente deve considerar seriamente a hipótese de estar
lidando com um endemoninhado.
O modo de agir do cristão em face de um problema de tão elevado
grau de gravidade deve levar em conta alguns critérios, especialmente
se a manifestação demonıá ca ocorrer durante um culto. Aqui também é
a Palavra do Senhor que fornecerá orientação para o povo de Deus não
ser enganado nem cair nos mesmos erros de certas seitas modernas
que fazem do endemoninhado o centro de um espetáculo, agradando
com isso somente aos próprios demônios. Estes se deleitam em ser o
alvo das atenções e zombam de todos quando ingem obedecer aos
ministros que, com seus shows de exorcismo, só lhes satisfazem as
vontades e propósitos.
Para evitar tudo isso, deve o cristão e, principalmente o pastor,
ter os seguintes cuidados:

1. Não permitir que o problema ocupe o


lugar central doculto. Satanás tem como maior
objetivo usurpar o lugar de Deus. Esse objetivo fez que ele fosse
expulso do céu (Is 14.12-15). E natural, portanto, que, juntamente
com seus anjos, queira ocupar o lugar central no culto, lugar este
que pertence unicamente a Deus. Sabendo disso, a igreja bıb́ lica
jamais deve cair em tão sutil armadilha (2Co 2.11).
Portanto, ocorrendo alguma manifestação demonıá ca durante as
reuniões da igreja, a vıt́ ima da possessão deve ser imediatamente
levada para outro recinto e o culto deverá seguir normalmente. O
menor número possıv́el de pessoas deverá deixar a adoração
cultual para atender ao endemoninhado. Geralmente, três ou
quatro crentes são su icientes para socorrer o indivıd́ uo que
sofre. O restante dos irmãos permanecerá irme no propósito de
adorar a Deus. Se não agir assim, a igreja “fará o jogo” do diabo, e
ele logrará sucesso em desviar todos dos objetivos principais do
culto: o aprendizado, a adoração, o louvor e o serviço.
Além disso, tangidos por sentimentos de amor e compaixão, os
crentes devem lembrar que, nessas ocasiões, quem está diante
deles não é só um demônio. Ali está também (e principalmente)
um indivıd́ uo escravizado pelo diabo, sofrendo terrivelmente e
sendo por ele humilhado. Levando isso em conta, é preciso
poupar essas tristes vıt́ imas de humilhação e vergonha ainda
maiores, evitando expô-las ao ridıć ulo e jamais usar sua desgraça
para se a irmar diante dos outros ou granjear admiração e
aplauso.

2. Veri icar se o problema é realmente


possessãodemoníaca. Como já dito, é possıv́el que o
problema manifesto não seja de origem espiritual. Ataques de
epilepsia, crises de histeria, doenças mentais, in luência de
drogas, sıń dromes e embriaguez são alguns exemplos de casos
que podem confundir. O crente que considera essas hipóteses não
é alguém que duvida das coisas espirituais. Antes, é pessoa que dá
mostras de zelo, estando preocupado em não usar em vão o nome
de Deus e as armas espirituais que ele colocou à disposição dos
santos.
Por isso, diante da dúvida quanto à natureza do que está sendo
enfrentado, é muito útil entrevistar os familiares ou outras
pessoas que acompanham o suposto endemoninhado a im de
obter informações esclarecedoras acerca dos vıć ios e do estado
de saúde dele. Muitas vezes, indivıd́ uos com sinais de
perturbação não precisam de um pastor, mas sim de um médico.

3. Evitar ferimentos. O endemoninhado geralmente é


lançado violentamente ao solo e, muitas vezes, tenta, de todos os
modos, machucar o próprio corpo (Mc 5.5; 9.17-22). Também
ataca as pessoas ao seu redor, produzindo com isso sérios
ferimentos. Por isso, é preciso deter o indivıd́ uo nessas suas
arremetidas. Em casos extremos pode ser preciso até mesmo
amarrá-lo. A aplicação de sedativos, desde que sob orientação
médica, também pode ser medida necessária e útil. Isso porque,
usando uma analogia não muito feliz, os demônios controlam o
corpo de um homem do mesmo modo que um cavaleiro controla
o animal em que monta. Assim, se o corpo do homem estiver
inerte, nada poderão fazer os demônios, do mesmo modo que o
cavaleiro nada poderá fazer com um cavalo desmaiado.
4. Não dialogar longamente com o demônio. A
prática de entrevistar o demônio, desa iá-lo, ordenar que se
ajoelhe ou faça outras coisas é uma das maiores evidências de
maldade, ignorância e orgulho presentes em certas pessoas que
se dizem aptas para lidar com possessão demonıá ca. Com isso,
geralmente, tenta-se conquistar o respeito que, pelo testemunho
de vida, talvez seja difıć il obter.
Assim, é comum se ver lıd́ eres religiosos demonstrando suas
supostas habilidades em lidar com maus espıŕ itos, enquanto a
multidão sem instrução se revolve em gritos, vaias, risos e
aplausos. Nesses momentos, contudo, quem mais ri e aplaude é o
próprio demônio que, ingindo-se dominado e impotente, alegrase
vitorioso por expor sua vıt́ ima, imagem e semelhança de Deus, a
tantos vexames; por desviar o povo do interesse por igrejas
sérias; e por construir no coração dos falsos pastores o império
do orgulho.
Na Bíblianenhum servo de Deus dá demasiada atenção aos
demônios. Jesus nunca icou a dialogar longamente com eles (Mt
8.28-32; Mc 1.23-26) e o apóstolo Paulo, ao ser incomodado por
uma jovem endemoninhada, só lhe deu atenção depois de muitos
dias, limitando-se, ainda assim, a somente ordenar que o mau
espıŕ ito se retirasse dela (At 16.16-18).
Que os crentes verdadeiros sigam esses exemplos! Em vez de
icarem a ouvir durante horas as podridões que emanam da mente
dos espıŕ itos infernais, trabalhem depressa para que, em nome
de Cristo, eles se retirem. Maior parcela de tempo, então, seja
gasta na evangelização da vıt́ ima agora liberta, pois a possessão
demonıá ca é evidência de que a vıt́ ima não é crente (Ef
[28]
2.2).

5. Não acreditar que o êxitona expulsão de


demônios é, por si só, evidência de maturidade
espiritual.Há quem pense que expulsar demônios é um
dom especial dado por Deus a alguns escolhidos dele. Outros
acreditam que o sucesso no exorcismo é prova cabal de que um
indivıd́ uo é maduro espiritualmente ou detentor de poder
sobrenatural dado por Deus. Pensando assim, muitos pastores
icam preocupados com sua reputação quando estão diante de
algum endemoninhado. E mesmo os crentes em geral põem em
dúvida o grau de espiritualidade dos ministros que,
eventualmente, não logram êxito em libertar um possesso.
E verdade que a falta de fé muitas vezes impede que a vitória
nessas lutas venha na mesma hora (Mt 17.19,20). Porém, o
sucesso na expulsão de demônios não é, por si só, evidência de
que o pastor é um supercrente. Isso porque a Bíbliadiz que até os
incrédulos podem expulsar demônios! Evidentemente, a
probabilidade de eles passarem por vexame nessas ocasiões será
muito grande (At 19.13-16), mas mesmo assim é inegável que
pessoas não salvas também podem praticar o exorcismo com
sucesso (Mt 7.22-23).
De fato, em certas ocasiões, os demônios obedecem às ordens de
incrédulos provavelmente com o im de enganá-los criando neles a
falsa sensação de que estão bem espiritualmente. Por isso, o êxito
nessas batalhas não pode servir de base para avaliar a condição
espiritual de alguém. Aliás, muitas vezes, o crente pode se ver
diante de casos de possessão demonıá ca que hão de requerer
tempo e esforços muito intensos para serem solucionados. Nessa
luta, nem sempre a vitória se obtém num só dia (Mc 9.28-29).

Concluindo, deve ser dito que os anjos de Satanás jamais se


sentirão atraıd́ os por um ambiente em que reinem a santidade, o
louvor e a pregação da cruz. E mais natural que se manifestem em
lugares que lhes sejam mais condizentes com o caráter, onde impere a
soberba, a mentira, a fraude, a má-fé, a perversão das Escrituras, a
superstição, a incredulidade, a desordem e a podridão moral. Por isso,
ainda que possıv́eis, as manifestações de demônios na igreja não devem
ser vistas como coisa normal. Esses casos poderão ocorrer só mui
raramente e, uma vez constatados, devem estimular a igreja à
autoanálise.
Quão infeliz deverá se sentir a igreja em que Satanás se
manifestar ousada e constantemente durante os seus cultos! Deverá
rever sua conduta, sua pureza e sua idelidade a Deus, avaliando-se a si
mesma em busca de algum caminho mau que deva ser abandonado,
pois o contexto em que o Espıŕ ito de Deus verdadeiramente reina e
atua de modo soberano e absoluto não serve ao mesmo tempo de palco
para as apresentações do inimigo.
O que se deve esperar é que tais apresentações ocorram nos
ambientes podres para os quais os anjos do inferno sempre se sentirão
atraıd́ os, cientes de que ali serão recebidos como personagens centrais
de odiáveis espetáculos.

Questões comuns

1) Quantas horas deve durar um cultoe o que


deve ocupar maiorparcela de tempo ao longo
dessa reunião?
No passado, especialmente entre os puritanos, os cultos
podiam chegar a seis ou nove horas! Hoje, por causa
das mudanças nos costumes e no estilo de vida, as
pessoas têm di iculdade para permanecer tanto tempo numa
reunião. Por isso, o melhor é que o culto dure, no
máximo, duas horas. Desseperíodo, a maior parcela
de tempo (quarenta minutos a uma hora) deve ser
reservada para a pregação que é o veículo mais e
icaz para a edi icação dos santos e a proclamação
da fé.

2) No culto, podehaver espaço para homenagens?


Nunca, em hipótese alguma! O culto deve ser centrado
exclusivamente no Deus Trino. Somente ele deve ser
focalizado durante a adoração cristã. Homenagens, como as
que são feitasno Dia das Mães,no Dia dos Pais ou noDia
do Pastor, devem ser realizadas numa reunião à
parte.

3) Muitos cultos têm coreogra ias e danças. Isso é


certo?
A liturgia eclesiástica, conforme encontrada no
Novo Testamento, não tem espaço para essas coisas. O
Antigo Testamento fala sobreadorar a Deus com
danças (Sl 149.3) e fornece alguns exemplos
disso (Êx 15.20; 2Sm 6.14-16). Porém, mesmo ali, a
dança jamais está associada à liturgia levítica, ou seja,
ao culto formal instituído por Deus, mas sim a eventos
festivos ou a atos espontâneos e informais de
alegria e de gratidão. Além disso, em nossasociedade, a
dança tem conotaçõesbem distintas das que tinha nos
tempos bíblicos (alegria e louvor), tendo como alvo
promover exibições artísticas, muitas vezes até com apelos
sensuais. Nada disso se harmoniza com a natureza do
culto cristão.
Capítulo 3 – AS ORDENANÇAS

O Capítuloanterior tratou do culto cristão, sendo ali destacado,


logo no inıć io, que as ordenanças são elementos que compõem os atos
litúrgicos da comunidade da fé.
De fato, a observância das ordenanças estabelecidas por Cristo, ou
seja, o batismo e a ceia, é um traço distintivo da congregação do Senhor.
Infelizmente, porém, ao longo dos séculos, muitos equıv́ocos
macularam também esses elementos tão sublimes da vida eclesiástica.
Concepções supersticiosas, entendimentos heréticos e práticas jamais
ensinadas nos escritos apostólicos geraram e têm gerado intrigas,
produziram rompimentos entre lideranças cristãs, provocaram
zombaria por parte dos incrédulos e macularam a igreja de Deus de
diversas e inusitadas maneiras.
Considere-se especi icamente a Ceia do Senhor. E difıć il imaginar
outro assunto que tenha sido objeto de tantos debates e divisões
dentro da igreja desde os tempos da Reforma. Aliás, está tristemente
marcada na história do protestantismo a inimizade surgida entre
Lutero e Zuıń glio por causa do sentido da frase “isto é o meu corpo”,
presente em Mateus 26.26. Tratava-se de uma sinédoque (Lutero) ou
de uma metáfora (Zuıń glio)? O impasse acerca dessa questão discutida
calorosamente no Colóquio de Marburgo (1529) foi su iciente para que
a igreja reformada suıḉ a e a igreja luterana rompessem entre si e
seguissem direções distintas!
Mesmo, porém, envolvendo temas que suscitam controvérsias tão
densas, a questão das ordenanças deve ocupar a mente do povo santo
que precisa ajustar seu entendimento àquilo que o Senhor revelou em
sua Palavra. E não apenas isso. E necessário também que, como
resultado do bom entendimento daquilo que a Bíbliarealmente diz
sobre o batismo e a ceia, a igreja de Deus observe importantes e
salutares orientações práticas. Este Capítulopretende oferecer alguma
ajuda nessa direção.
O batismo: significado e método

O verbo “batizar”, na lıń gua em que foi escrito o Novo


Testamento (grego koinê), signi ica imergir. De fato, a imersão, era a
forma de batismo adotada pelos apóstolos e pelos primeiros cristãos.
Aliás, é bom dizer desde já que a alegação de que no Novo Testamento
o batismo por aspersão é visto em Atos 9.18; 10.47-48 e 16.33 não se
baseia em nenhuma evidência textual ou histórica, mas somente nas
suposições de alguns intérpretes que imaginam ter sido difıć il realizar
a imersão nas ocasiões descritas nesses textos. Essas suposições,
contudo, não levam em conta a natureza abreviada ou resumida da
narrativa nem a consequente implicação lógica de que as pessoas
mencionadas nos textos de Atos se deslocaram para um lugar onde
houvesse água su iciente para imergir os novos crentes.
A convicção acerca da imersão como prática dos cristãos
primitivos baseia-se em ampla evidência neotestamentária (Mt 3.16;
Mc 1.5, 9-11; Jo 3.23; At 8.36-39). Essa evidência, porém, é fortalecida
por fatores históricos de peso incontestável. Por exemplo: a literatura
produzida nos tempos da igreja antiga mostra, mais especi icamente no
Didaquê, o uso da imersão. Ali ica claro que a aspersão era admitida
[29]
somente quando não havia água su iciente.
E também curioso observar que as catedrais europeias construıd́
as na Idade Média têm ainda hoje marcado no piso do prédio do
batistério o local em que antigamente icava o “tanque” usado para a
imersão. Diga-se ainda que o próprio reformador João Calvino,
praticante do batismo por aspersão, escreveu em suas Institutas: “… na
verdade, o próprio termo batizar signi ica imergir, e é patente haver
[30]
sido observado na igreja antiga o rito de imergir”.
O fato de a imersão ser, inegavelmente, a forma de batismo
adotada pelos primeiros cristãos não implica, necessariamente, na
rejeição do batismo por aspersão como prática herética. Isso porque, à
luz do Novo Testamento, o batismo cristão deve atingir quatro
propósitos fundamentais, sendo certo que a maior parte deles é
alcançada também pelo rito de aspergir.
O primeiro propósito do batismo é proclamativo. Quando é
batizado, o crente, sendo indagado pelo ministrante acerca do seu
relacionamento com Deus, anuncia publicamente que fez as pazes com
ele, por meio da obra realizada por Cristo (1Pe 3.21). Esse alvo é
perfeitamente alcançado, independentemente da forma de batismo
adotada.
O batismo tem também um propósito identi icador, apontando
para a associação do batizando com Cristo e seus seguidores. A
Bíbliaensina que os israelitas libertos do Egito foram batizados na
nuvem e no mar com respeito a Moisés. Isso signi ica que, ao se colocar
sob a nuvem e ao passar pelo mar, cada israelita se identi icou com
Moisés ou, mais especi icamente, com o povo liberto por ele (1Co 10.1-
2). Da mesma forma, o crente, quando se submete ao batismo,
apresenta-se como alguém que faz parte da comunidade de redimidos
por Cristo, identi icando-se com esse grupo que se “revestiu” do Senhor
(Gl 3.27).
De fato, Cristo disse que, por meio do batismo, o homem
demonstra que se tornou um discıṕ ulo dele (Mt 28.19). Obviamente,
não sendo dependente da forma, esse ideal se perfaz não só no rito de
imergir, mas também por meio da aspersão da água sobre o crente.
O terceiro propósito do batismo é simbólico e consiste de prover
uma alegoria da lavagem espiritual que bene icia todo aquele que
recebeu o Salvador. Com efeito, o homem que é justi icado pela fé em
Cristo é lavado dos seus pecados (1Co 6.11). Esse é o lavar regenerador
e renovador do Espıŕ ito Santo de que fala Paulo em Tito 3.5. Ora, o
batismo é uma forma de simbolizar essa realidade (At 22.16) e tanto o
batismo por imersão como o realizado pela aspersão suprem muito
bem esse objetivo (Hb 10.22).
Finalmente, o batismo tem um propósito dramatizador,posto que
na sua realização são encenadas a morte do crente para o pecado e a
sua ressurreição para uma nova vida. A conexão entre o batismo e o
processo abrangente da morte, sepultamento e ressurreição do crente
é vista em Romanos 6.4 e Colossenses 2.12. Nesse aspecto, a imersão
supre perfeitamente o ideal de encenar o que aconteceu com o homem
que recebeu o perdão de Deus. E, de fato, nıt́ ido o signi icado de cada
gesto: o mergulhar na água evoca a morte do crente para o pecado e
seu sepultamento com Cristo; o levantar-se da água denota sua
ressurreição para uma vida nova sob a in luência do Espıŕ ito Santo.
E precisamente na realização desse quarto objetivo que o batismo
por aspersão se mostra ine icaz. Ora, para atingir o propósito
dramatizador, a forma de batismo é essencial, impondo-se a
necessidade da imersão. Isso porque, obviamente, o processo de morte,
sepultamento e ressurreição não pode ser adequadamente simbolizado
por meio da mera aspersão de água sobre o candidato.
Assim, não é correto dizer que o batismo por aspersão é herético.
Também peca pelo exagero quem a irma que o crente aspergido jamais
foi batizado. O que deve ser a irmado é que o crente batizado por
aspersão cumpriu sim a ordenança de Jesus. Porém, o fez de modo
irregular, não realizando um dos propósitos centrais dela, ou seja, a
encenação do processo morte/sepultamento/ressurreição. Em suma:
seu batismo foi existente, mas não foi regular. Naturalmente, o único
modo de suprir essa irregularidade é submeter o crente a um novo
batismo, no qual seja observado o rito da imersão.

O batismo infantil

A prática do batismo infantil foi adotada muito cedo pela igreja


cristã. De fato, já no século 2 há evidências de que os cristãos batizavam
seus bebês, uma vez que criam no batismo como uma forma de
remissão de pecados, capaz de garantir a salvação das vıt́ imas de
morte prematura.
Esse chocante desvio do ensino apostólico é encontrado poucas
décadas depois de concluıd́ o o Novo Testamento. Alguns documentos
do século 2 que o atestam são a Epistola de Barnabé (11:1,11) e
O pastor de Hermas (11:5; 93:2-4). Justino de Roma (Primeira
apologia 66:1) e Teó ilo de Antioquia (A Autólico 2:16) também
estão entre os escritores do século 2 que defendem o batismo como
forma de remissão de pecados.
E verdade que Tertuliano de Cartago († c. 220) se insurgiu contra
essa prática. Porém, ele o fez porque entendia que o arrependimento
para perdão de pecados mortais só poderia ocorrer uma vez depois do
[31]
batismo. Segundo Tertuliano, esse fato deixava os que eram
batizados muito cedo em situação perigosa, sujeitos a perder
irremediavelmente e para sempre o favor de Deus na fase adulta. Para
ele, esse era o motivo pelo qual o batismo devia ser protelado até que a
pessoa se sentisse mais distante do perigo de cometer pecados mortais
[32]
como o adultério, o assassinato ou a apostasia.
Os reformadores do século 16 também foram favoráveis ao
batismo infantil, sendo o pastor anabatista Menno Simons uma exceção.
Timothy George explica por quê:

Em 20 de março de 1531,na cidade


de Leeuwarden, capital da província holandesa
da Frísia, um alfaiate itinerante de
nomeSicke Freerks foi decapitadoporque
havia sido batizado pela segunda vez. Mais
tarde, Menno comentou: “Sooumuito
estranhamente em meus ouvidos o fato de
que alguém falasse sobreum segundo
batismo” ... A execução brutal de Freerks
deve ter deixado uma impressão marcante em
Menno. De qualquer modo, ele começou
a investigar o fundamento do batismo
infantil. Ele examinou os argumentos de
Lutero, Bucer, Zuínglio e Bullinger, mas
achou que em todos faltava algo. Ele
consultou seu colega sacerdote em Pingjum;
leu os pais da igreja. Por im, Menno
pesquisou diligentemente as Escrituras e
considerou seriamentea questão, mas não pôde
encontrar nada sobreo batismo infantil. Ele
chegou à conclusão de que “todos
estavam
[33]
equivocados sobreo batismo infantil”.

Se, por um lado, há ampla evidência histórica em prol do


pedobatismo entre os pais da igreja e os reformadores, de outro, como
Menno Simons descobriu, não há nenhum fundamento bıb́ lico que
favoreça essa prática. A despeito disso, os expoentes do batismo
infantil apresentam basicamente três argumentos em sua defesa.
O primeiro desses argumentos (e talvez o mais popular) é
construıd́ o a partir da história narrada em Atos 16.27-34, referente à
conversão do carcereiro de Filipos e seus familiares. Segundo o texto,
depois que ouviu a Palavra do Senhor, o carcereiro foi batizado, ele e
todos os da sua casa (At 16.33). No entender dos pedobatistas,
certamente havia crianças bem pequenas naquela famıĺ ia, sendo todas
incluıd́ as no batismo realizado na ocasião.
E difıć il, porém, levar esse argumento a sério, posto que se
sustenta unicamente sobre o frágil alicerce da imaginação e da
criatividade dos seus proponentes. Para desmantelá-lo, basta lembrar o
fato óbvio de que nem todas as famıĺ ias têm bebês em casa.
A defesa do batismo infantil tem, na verdade, colunas de apoio
muito mais sólidas do que o argumento exposto acima. Seus
proponentes mais capazes expõem razões que merecem consideração
séria e análise melhor elaborada.
E o caso do argumento relativo ao Pacto. Os pedobatistas
entendem que, assim como os bebês dos israelitas eram circuncidados
pelo fato de seus pais pertencerem ao pacto entre Deus e a nação
judaica (Gn 17.10-14), da mesma forma os bebês dos crentes devem ser
batizados, uma vez que seus pais, desde o dia em que se converteram,
tornaram-se participantes do mesmo pacto por intermédio da fé em
Cristo (Gl 3.7, 29).
Essa concepção ainda admite expressamente que os ilhos de
quem participa do pacto também pertencem eles próprios ao pacto,
estando aı ́ a razão principal para que se sujeitem ao sıḿbolo desse
mesmo pacto. O teólogo reformado Louis Berkhof (1873-1957) diz
expressamente: “Os ilhos dos crentes são batizados porque estão no
pacto, independentemente da questão se já são ou não
[34]
regenerados.”
Levando esse raciocıń io às últimas consequências, muitos de seus
expoentes têm insistido, inclusive, no direito que os bebês, ilhos de pais
crentes, têm de participar até mesmo da ceia (!). Se essas crianças
realmente fazem parte da aliança, dizem, sendo por isso batizadas, por
que impedi-las de participar da eucaristia que, como o batismo, é
também um sıḿbolo pactual?
Retomando a defesa do batismo infantil, os pedobatistas a irmam
que no passado o sıḿbolo do pacto foi a circuncisão, mas, como ela foi
anulada (Gl 5.2, 6; 6.15), o batismo a substituiu. Assim, de acordo com
essa visão, o batismo infantil é o correspondente cristão da circuncisão
judaica.
Essa conexão entre circuncisão e batismo é defendida
especialmente com base em Colossenses 2.11-12. Nesse texto, dizem,
circuncisão e batismo estão ligados, ambos representando o im da
velha vida de pecado, havendo, assim, forte associação entre os dois
[35]
ritos.
Em seu desdobramento inal, toda essa argumentação conclui o
seguinte: se Paulo iguala a circuncisão e o batismo e se o primeiro era
aplicado aos bebês, nenhum absurdo há em aplicar também o batismo
aos recém-nascidos.
Outro intrigante argumento em prol do batismo infantil é baseado
em Romanos 4.11. Esse argumento é construıd́ o assim: em Romanos
4.11, Paulo de ine a circuncisão como “selo da justiça da fé”. Ora, no
Antigo Testamento Deus ordenou que esse “selo da justiça da fé” fosse
aplicado a bebês que não tinham fé (Lv 12.3). Logo, não é errado gravar
com um selo de fé as crianças que ainda não creem. Condenar essa
prática seria reprovar o que o próprio Deus ordenou! Assim,
considerando que o batismo também é um selo de fé, nada há de errado
em aplicá-lo ao bebê que ainda não crê. Se o próprio Deus mandou que
isso fosse feito, quem somos nós, dizem, para a irmar que é preciso crer
[36]
antes de receber o selo da fé?
Esse conjunto de argumentos, ainda que muito bem elaborado,
está sujeito a sérios questionamentos. Primeiro: a noção de que a
participação dos pais crentes no Novo Pacto autoriza o batismo de seus
ilhos, da mesma forma que a participação dos pais israelitas no Velho
Pacto impunha-lhes o dever de circuncidar seus bebês merece grave
objeção. Isso porque o bebê israelita não era circuncidado porque seus
pais eram israelitas. Ele era circuncidado porque, sendo ilho de judeus,
ele próprio era israelita. A causa direta da circuncisão do bebê
judeu não estava nos pais, mas no próprio bebê, no fato de ele mesmo
ser um judeu.
Ora, não é esse o caso dos ilhos dos crentes. Estes não nascem
crentes, inexistindo neles próprios qualquer razão para que recebam o
batismo. De fato, se o ilho do israelita nascia israelita e, por isso, era
circuncidado, o ilho do cristão, por sua vez, não nasce cristão, não
havendo razão nenhuma para ser batizado.
Há também uma grave de iciência no ensino de que o batismo é
um substituto da circuncisão. Na verdade, absolutamente nada na
Bíbliacorrobora essa concepção. Mesmo o texto de Colossenses 2.11-12
está mui longe de con irmá-la. Aliás, uma simples leitura dessa
passagem deixará o leitor surpreso, questionando onde é possıv́el
encontrar ali qualquer base para o ensino de que o batismo ocupa hoje
o lugar da circuncisão.
A eventual surpresa do leitor será fácil de ser compreendida. Isso
porque Colossenses 2.11-12 fala claramente da circuncisão do coração
e do batismo do crente na morte de Cristo, ou seja, trata de realidades
espirituais e não de ritos externos. Ademais, a passagem aponta essas
realidades espirituais como fenômenos distintos e não como se o
segundo fosse substituto do primeiro.
Com efeito, em Colossenses 2.11-12, Paulo explica que o crente foi
circuncidado por Cristo (Rm 2.28-29). Isso signi ica, conforme o
próprio v. 11 esclarece, que sua natureza pecaminosa foi despojada e
enfraquecida (Rm 6.6). Em seguida, o apóstolo a irma que esse milagre
aconteceu quando o crente foi batizado na morte de Cristo (v. 12), isto
é, quando, pela fé, ele se uniu ao Salvador, morrendo para o pecado e
ressuscitando para uma vida nova (Rm 6.3-4).
Assim, Paulo trata nessa passagem de duas realidades ligadas,
porém bastante diferentes: a participação do crente na morte de Cristo
(o que é chamado de batismo) e o amortecimento de sua natureza
pecaminosa (a circuncisão do coração) decorrente daquela
maravilhosa participação. Esse e somente esse é o ensino claro da
passagem, estando mui longe de servir de base para a noção de que o
batismo é a versão cristã da circuncisão judaica. Consequentemente,
batizar bebês sob tal pretexto é prática carente de fundamento sólido.
Outro argumento contrário ao ensino da conexão entre batismo e
circuncisão pode ser construıd́ o a partir da exposição que Pedro fez,
no Concıĺ io de Jerusalém, acerca de seu ministério junto aos gentios
(At 15.6-11).
O relato de Atos mostra como Pedro foi chamado para pregar o
evangelho aos gentios na casa de Cornélio (At 10.1-22) e como todos ali
se converteram a Cristo, sendo, em seguida, batizados (At 10.44-48).
Ocorreu, porém, que, mais tarde, após a Primeira Viagem
Missionária de Paulo, alguns indivıd́ uos procedentes da Judeia
começaram a ensinar que os gentios convertidos deviam ser
circuncidados (At 15.1). Isso deu ensejo a que os apóstolos e
presbıt́eros de Jerusalém, além de Paulo, Barnabé e outros irmãos de
Antioquia, se reunissem para tratar da questão (At 15.2-6). De um
lado,
Pedro, Paulo e Barnabé defendiam a desnecessidade da circuncisão (At
15.2,10). De outro, os que pertenciam à seita dos fariseus exigiam que
os gentios convertidos fossem submetidos ao rito judaico (At 15.5).
No im, o parecer de Tiago foi decisivo e a igreja entendeu que os
crentes gentios não precisavam se submeter à lei de Moisés,
especialmente no tocante à circuncisão (At 15.13-29).
O que chama a atenção no curso dos debates em Jerusalém é a
preleção de Pedro contra a necessidade da circuncisão (At 15.6-11). Ele
havia batizado todos aqueles gentios que tinham se convertido na casa
de Cornélio (At 10.47-48). Ora, se para ele o batismo correspondesse à
circuncisão exigida pelos seus oponentes, por que não fez essa alegação
em seu discurso? Por que Pedro não disse: “Meus irmãos, os gentios
foram circuncidados sim, mas pelo novo método que é o batismo!”.
Nenhum outro momento da história bıb́ lica seria mais apropriado para
enunciar esse ensino e calar de vez a boca dos cristãos judaizantes.
No entanto, Pedro sequer menciona ter batizado os gentios! Paulo
também silencia sobre isso em seu discurso (At 15.12), levando a crer
que a ideia de que o batismo é um substituto da circuncisão jamais
passou pela mente dos apóstolos, sendo apenas fruto da criatividade de
teólogos de séculos posteriores.
Quanto ao argumento construıd́ o sobre Romanos 4.11, em que a
circuncisão é chamada de “selo da justiça da fé”, este também é
facilmente desfeito. Conforme visto, seus proponentes a irmam que a
circuncisão judaica, um selo da justiça da fé, devia ser aplicada a bebês
sem fé, de modo que, segundo eles, nada pode haver de errado em fazer
o mesmo com o batismo, outro selo da justiça da fé.
Essa linha de raciocıń io, contudo, está equivocada, pois, ao
chamar a circuncisão de selo da justiça da fé, Paulo se refere à
circuncisão especı́ ica de Abraão. Tanto isso é verdade que, se o texto
em análise for lido com atenção, fatalmente saltará aos olhos que a
circuncisão ali mencionada é vista como um selo da justiça procedente
da fé que Abraão teve quando ainda incircunciso.
A circuncisão isoladamente considerada, portanto, não era um
selo de fé, mas apenas uma marca distintiva no corpo dos que
participavam da Antiga Aliança. Para receber um selo de fé, é preciso
ter fé. Foi por isso que quando o eunuco etıó pe perguntou a Filipe se
podia ser batizado, o evangelista respondeu: “E lıć ito, se crês de todo o
coração” (At 8.37).
Desse modo, batizar bebês permanece uma prática sem qualquer
base nas Escrituras. Na verdade, apenas crianças que já
compreenderam o evangelho e aceitaram sua mensagem podem ser
batizadas. Isso porque antes de ser batizada a pessoa deve se
arrepender e crer em Cristo (At 2.38, 41-42; 8.37).
Ademais, se, conforme visto, o batismo é um gesto proclamativo,
identi icador, simbólico e dramatizador, só estão aptos a se sujeitar a
ele quem sinceramente proclama ter uma boa consciência para com
Deus, quem se identi ica com a comunidade de discıṕ ulos de Jesus,
quem pode a irmar simbolicamente que foi lavado pelo Espıŕ ito Santo
e quem de fato morreu para o pecado e ressuscitou para uma nova
vida, de maneira que tem o direito e o dever de encenar essas
realidades por meio do rito batismal.

Regeneração batismal

Finalizando esse assunto, é necessário frisar que a doutrina


verdadeira não ensina que o batismo seja fator necessário à santi
icação ou requisito fundamental para que o crente receba bênçãos
espirituais de Deus. Também não é correto crer que o cumprimento
dessa ordenança seja essencial à salvação, posto que esta é obtida
unicamente pela fé (Rm 1.17; 5.1; Ef 2.8).
Os textos que os defensores da regeneração batismal geralmente
evocam em defesa de suas concepções são Marcos 16.16, Romanos 6.4,
Colossenses 2.12 e 1Pedro 3.21.
Quanto ao texto de Marcos, além de ser objeto de sérios
questionamentos no campo da crıt́ ica textual, conforme exposto por
todos os comentaristas bıb́ licos, seu enunciado não a irma, de modo
algum, a salvação por meio da fé somada ao batismo. Antes, fala acerca
do tipo de fé que realmente salva, ou seja, uma fé comprometida, que
leva quem a possui a se submeter ao batismo. E como se o texto
dissesse: “Quem crer ao ponto de ser batizado será salvo”. Isso
porque pode existir uma fé descomprometida e covarde que não salva
ninguém (Jo 12.42-43).
As demais passagens mencionadas anteriormente associam a
salvação ao batismo por uma razão muito simples. Nos dias do Novo
Testamento, o batismo era realizado no momento da conversão. Sendo
assim, eventos simultâneos, conversão e batismo muitas vezes eram
vistos como uma só e mesma realidade. Por isso, algumas vezes os
escritores bıb́ licos falavam do batismo para se referir à conversão da
pessoa. A concomitância dos eventos permitia essa linguagem.
Contudo, não havia qualquer dúvida na mente deles de que, se alguém
cresse e morresse antes de ser batizado, isso em nada afetaria sua
salvação.
Para provar isso, basta recordar que quando Jesus foi cruci icado,
os dois ladrões também condenados escarneciam e zombavam do
Senhor (Mt 27.43-44). Um deles, porém, logo foi tocado pelo
arrependimento e suplicou por misericórdia (Lc 23.39-42). Não teve
ele tempo, após a conversão, de ser batizado. Na verdade, não teve
tempo de fazer nada além de crer. Contudo, o que o Senhor lhe disse?
“Em verdade, em verdade te digo que hoje estarás comigo no paraıś o”
(Lc 23.43).
Os escritos de Paulo também mostram que o batismo não é
essencial para a salvação. Diz ele: “Dou graças a Deus porque a nenhum
de vós batizei, exceto Crispo e Gaio…” (1Co 1.14). E ao concluir o
assunto de que está tratando, a irma: “Porque não me enviou Cristo
para batizar, mas para pregar o evangelho…” (1Co 1.17).
Ora, é evidente que se o batismo fosse fundamental à salvação, o
apóstolo Paulo não se referiria a essa ordenança nesses termos. Antes,
lamentaria ter batizado poucos e tomaria providências para batizar o
maior número possıv́ el de pessoas.
Uma ressalva, contudo, é importante aqui. O fato de não ser
essencial à salvação não torna o batismo uma prática inútil. Ele foi
ordenado por Jesus (Mt 28.19) e serve como testemunho público que o
crente dá de sua fé no Salvador; um testemunho dramatizado, em que
não só sua lavagem espiritual, mas também sua morte, seu
sepultamento para o pecado e sua ressurreição para uma nova vida são
vividamente retratados, marcando de maneira indelével a mente e o
coração de todos os que assistem a ele.

A Ceia do Senhor: concepções divergentes

A a irmação “isto é o meu corpo”, feita por Jesus pouco antes da


sua paixão (Mt 26.26), é uma das frases que mais têm originado
debates ao longo da história da igreja. Conforme dito anteriormente, na
época da Reforma Protestante a falta de acordo acerca do seu real signi
icado foi a causa do rompimento das relações entre Lutero e
[37] Zuıń
glio, após o malfadado Colóquio de Marburgo (1529) e ainda hoje o
meio cristão permanece dividido acerca do modo como a ceia do
Senhor deve ser entendida, tanto no tocante à sua natureza como no
que diz respeito aos efeitos que produz sobre os que participam dela.
Num dos extremos da discussão estão os que entendem a frase de
Jesus de modo igurado, dizendo que se trata apenas de uma metáfora,
como se o Mestre tivesse dito simplesmente “isto representa o meu
corpo”. No outro extremo do debate, há intérpretes que propõem uma
visão absolutamente literal, ensinando que os elementos da ceia são, de
fato, o corpo e o sangue reais de Cristo, num sentido que encerra a sua
mais completa essência. Entre esses dois polos há interpretações
intermediárias, propostas por teólogos que tentam compor uma
opinião mais equilibrada, fazendo uso, inclusive, de argumentos usados
pelos dois extremos.
Basicamente, quatro são as concepções acerca da ceia do Senhor
dominantes do meio cristão: transubstanciação, consubstanciação,
presença espiritual e memorial.
A doutrina da transubstanciação é esposada pela Igreja Católica
[38]
Apostólica Romana , sendo um dos temas centrais de sua teologia e
[39]
prática litúrgica. De acordo com essa visão, a ceia deve ser ministrada
ao povo num só elemento, a hóstia, nome dado a um
[40]
pequeno pão sem fermento, de formato arredondado. Esse elemento,
dizem, após ser consagrado pelo sacerdote ministrante, passa por uma
transformação em sua substância (daı ́ o termo transubstanciação),
tornando-se literalmente carne, sangue, ossos, unhas e cabelos de
Cristo.
Os católicos entendem que essa transformação não é visıv́el
porque ocorre apenas na substância do pão e não nos seus acidentes.
Assim, conforme alegam, o elemento eucarıś tico, ainda que apresente
em sua forma e aparência os atributos do pão, é, na verdade, em sua
essência, carne humana!
Uma das implicações da doutrina da transubstanciação é que
sempre que a eucaristia é celebrada no culto católico (e isso acontece
[41]
em todas as missas), o sacrifıć io de Cristo se repete. Portanto, se
três missas forem realizadas num só domingo numa mesma catedral,
naquele dia o sacrifıć io de Cristo se repetirá ali três vezes, o mesmo
ocorrendo em outras igrejas romanistas ao redor do mundo. E essa
suposta repetição contıń ua do sacrifıcio do Senhor que dá o motivó
pelo qual as igrejas católicas celebram sua ceia num altar e não numa
mesa como fazem as igrejas evangélicas.
A doutrina da transubstanciação também explica porque os
padres, pelo menos há alguns anos, orientavam os iéis a não morder a
hóstia, mas sim deixá-la dissolver-se na boca. Essa era uma forma de
tentar infundir nas pessoas um entendimento maior acerca do suposto
mistério presente no “corpo eucarıś tico de Cristo”.
Essa doutrina é ainda o fundamento pelo qual os sacerdotes
católicos tendem a fazer o “sepultamento” de hóstias consagradas que
sobram após encerrada a missa. No seu entender, jogá-las fora seria
sacrilégio cometido contra o próprio corpo de Cristo e armazená-las
não seria o modo digno de lidar com um cadáver tão santo.
Os católicos acreditam que é somente graças ao milagre da
transubstanciação que o homem pode efetivamente conhecer Cristo
como o pão da vida e se alimentar dele para viver eternamente (Jo
6.4858). Segundo eles, comer a hóstia consagrada ajudará o iel a
conquistar a salvação, sendo, pois, imensos os benefıć ios espirituais
que emanam
[42]
da eucaristia.
Evidentemente, não há como sustentar essa concepção da ceia,
nem racional nem tampouco biblicamente. Primeiro porque não faz
sentido propor a hipótese de uma mudança de substância sem uma
consequente alteração nos acidentes, pois os acidentes de determinada
substância pertencem necessariamente a ela. Assim, não há como um
pedaço de pão deixar de ser pão e continuar com as células do pão.
Negar isso seria contrariar as mais elementares noções de lógica.
O absurdo dessa concepção também é percebido quando se leva
em conta a própria história da instituição da ceia. Ora, é óbvio que,
quando o Senhor disse “isto é o meu corpo”, não estava segurando um
pedaço dele próprio. Com efeito, naquele momento o pão estava nas
mãos de Jesus, não era uma extensão de seus dedos.
A doutrina da transubstanciação, com todos os seus
desdobramentos, também não leva em conta ensinos fundamentais da
Palavra de Deus. As Escrituras ensinam que o sacrifıć io de Cristo
ocorreu uma vez por todas, não havendo necessidade de que se repita
(Rm 6.9-10; Hb 7.27; 9.12, 26, 28; 10.10; 1Pe 3.18).
Ademais, quando o Senhor a irmou ser o pão da vida, sendo
necessário comer o seu corpo e beber o seu sangue para ser salvo (Jo
6.48-58), não pretendia com isso ensinar algum tipo de antropofagia,
como entenderam seus ouvintes naquela ocasião (Jo 6.52).
O que Jesus quis ensinar no discurso registrado em João 6 deve
ser entendido à luz do versıć ulo 35. Esse versıć ulo revela a que Jesus
se referiu quando fez alusão aos atos de comer sua carne e beber seu
sangue. De fato, João 6.35 apresenta Jesus como o Pão da Vida,
destacando que quem vai a ele se alimenta, e quem crê nele mata a
sede. Logo, comer a carne de Cristo é buscá-lo; enquanto beber seu
sangue é crer nele. Alimenta-se, pois, do Senhor, o indivıd́ uo que o
busca e deposita nele sua con iança para ser salvo. Este faz de Cristo
sua comida e sua bebida, jamais tendo fome ou sede outra vez.
Deve-se destacar, inalmente, que a doutrina da transubstanciação
é antibıb́ lica porque conduz sutilmente a uma forma grosseira de
idolatria. De fato, crendo que a hóstia é o próprio Cristo, o católico a
cultua como Deus e deposita nela sua esperança de salvação. Esse erro
chocante foi denunciado vividamente pelo já citado pastor anabatista
Menno Simons (1496-1561), ex-sacerdote católico que se converteu a
Cristo e se tornou um dos grandes pregadores do século 16, tendo
também fundado a Igreja Menonita:

Sim, eu disse a uma criatura débil, perecível,


que veio da terra, que foi quebrada num
moinho, que foi cozida no fogo, que foi
mastigada por meus dentes e digerida por
meu estômago, a saber, a um bocado
de pão: “Tu me salvaste”. [...] Ó Deus, assim
eu, pecador miserável, brinquei com a
prostituta da Babilônia [isto é, a Igreja
Católica] por muitos
[43]
anos.

A doutrina da transubstanciação tem sua irmã gêmea no conceito


de consubstanciação. Esse segundo modo de interpretar a ceia do
Senhor foi proposto inicialmente por Martinho Lutero (1483-1546). Ele
rejeitou a transubstanciação por considerá-la uma doutrina irracional e
também condenou o ensino de que o sacrifıć io de Cristo se repete na
eucaristia. Porém, Lutero não via possibilidade de interpretar a fórmula
“isto é o meu corpo” de outro modo que não fosse o literal. Por isso,
propôs que mesmo o pão continuando a ser pão e o vinho continuando
a ser vinho, a presença fıś ica de Cristo é real na ceia, sendo seu corpo
recebido por todos os participantes da mesa do Senhor.
Para Lutero, portanto, o corpo de Cristo estava nos elementos e
com os elementos, sem que o pão e o vinho se transformassem em
carne e sangue. Assim, por propor que na ceia a substância dos
elementos é recebida pelo crente juntocom a substância do corpo fıś ico
do Senhor, a doutrina ensinada pelo reformador recebeu
posteriormente o nome de consubstanciação.
A concepção de Martinho Lutero acerca da ceia estava atrelada à
sua proposta acerca da ubiquidade do corpo de Cristo. Na verdade, a
doutrina da consubstanciação depende exclusivamente desse conceito.
Ubiquidade signi ica onipresença. Lutero ensinava, pois, que o corpo fıś
ico de Cristo tinha atributos divinos, podendo estar em vários lugares
ao mesmo tempo e não somente sentado à direita do Pai nas alturas.
Daı ́ a possibilidade de estar junto aos elementos da ceia e servir de
alimento para os cristãos.
O maior oponente de Lutero nesse assunto foi o reformador suıḉ
o Ulrico Zuıń glio (1484-1531). Ele combateu a consubstanciação
dizendo que os benefıć ios da ceia eram puramente espirituais, não
havendo sentido nem necessidade de qualquer presença corporal de
Cristo no pão e no vinho.
Além disso, Zuıń glio rejeitou o conceito da ubiquidade exposto
por Lutero, a irmando que a encarnação não ocorreu de tal modo que a
natureza humana de Cristo, em seu aspecto corporal, se tornasse
onipresente. Com base em João 6.63, ele frisou que “a carne para nada
aproveita” e insistiu que a fórmula “isto é o meu corpo” devia ser
interpretada como uma metáfora.
Zuıń glio estava certo em tudo isso. De fato, nunca existiu
qualquer fundamento racional ou bıb́ lico para a doutrina da
consubstanciação, sendo evidente que Lutero a elaborou por estar
ainda fortemente ligado a tradições romanistas, sendo-lhe difıć il
romper radicalmente com elas, depois de ter vivido tanto tempo sob o
papismo. Aliás, vários argumentos expostos anteriormente e usados
contra a crença católica acerca da transubstanciação podem ser usados
também contra as noções de Lutero, o que comprova o notável grau de
semelhança entre as duas posições.
A despeito disso, a doutrina da consubstanciação seguiu seu curso
dentro do luteranismo. Ela apareceu na primeira edição da Con issão
de
[44]
Augsburgo (1530), escrita por Filipe Melanchton , foi claramente a
irmada na Fórmula da Concórdia (1577), um documento
produzido para por im às controvérsias que haviam surgido dentro
do
[45]
luteranismo , e continua sendo defendida pelas igrejas luteranas ao
redor do mundo, por meio da con iante a irmação de que a ceia do
Senhor “é o verdadeiro corpo e sangue de nosso Senhor Jesus Cristo
[46]
para ser comido e bebido por nós, cristãos, sob o pão e o vinho”.
A concepção acerca da ceia conhecida como presença espiritual
foi ensinada pelo grande reformador francês João Calvino (1509-1564).
[47]
Seu conceito acerca da mesa do Senhor é que não se trata de um
ritual em que o corpo de Cristo está presente de alguma maneira fıś ica,
como ensinam os católicos e os luteranos. Para Calvino, a ceia é um
sacramento em que a carne e o sangue do Salvador estão
espiritualmente presentes, sendo exibidos nos elementos, de modo que
os que participam do pão e do cálice alimentam-se em espıŕ ito do
[48]
próprio Senhor. E nesse sentido que Calvino a irma que, ao receber o
sıḿbolo do corpo, o crente deve con iar que a ele está sendo dado
[49]
também o próprio corpo.
Na concepção calvinista, o sacrifıć io de Cristo não se repete
durante a eucaristia, mas os benefıć ios de sua morte substitutiva
(redenção, justiça, santi icação e vida eterna) são renovados e
reforçados em prol dos comungantes. Isso, porém, só acontece com
quem come e bebe com fé. Os que o fazem na incredulidade não
recebem tais benefıć ios. Antes, são condenados por sua indigna
aproximação da mesa do Senhor.
E importante frisar que a doutrina da presença espiritual
esposada por Calvino tem relação direta com seu conceito de
sacramento. Segundo ele, há somente dois sacramentos: o batismo e a
ceia. Em ambos, Cristo e seus benefıć ios são representados. Porém, o
valor desses sinais supera o simples objetivo simbólico. Neles há uma
relação espiritual entre o sıḿbolo e a coisa simbolizada, de tal forma
que os efeitos do que é simbolizado são comunicados ao sıḿbolo,
graças à atuação do Espıŕ ito Santo e à virtude da palavra que instituiu
[50]
os sacramentos.
E, pois, por causa dessa visão que, no tocante à ceia, Calvino
insiste em a irmar que o corpo de Cristo está isicamente presente no
céu, mas, por meio do poder do Espıŕ ito, durante a eucaristia os
cristãos participam da sua carne e do seu sangue, unindo-se desse
modo ao Senhor e recebendo seus benefıć ios.
Ele diz expressamente: “Sustentamos que Cristo desce até nós,
tanto pelo sıḿbolo exterior, quanto por seu Espıŕ ito, para que nossas
almas verdadeiramente vivi ique com a substância de sua carne e de
[51]
seu sangue.” Uma vez que, segundo o reformador, isso ocorre pelo
misterioso poder (arcana virtus) do Espıŕ ito, esse ensino é também
chamado de “virtualismo”.
A doutrina da presença espiritual de Cristo na ceia foi
recepcionada pela Con issãode Fé de Westminster (1646), um
dos documentos mais importantes da fé reformada, e se constitui num
dos ensinos distintivos das igrejas presbiterianas.
Ao longo dos séculos, essa doutrina tem se imposto com notável
força, não com base em sutilezas gramaticais que negam o sentido
igurado da frase “isto é o meu corpo”, mas especialmente pela ênfase
no controvertido enunciado de Paulo em 1Corıń tios 10:16:
“Porventura, o cálice da bênção que abençoamos não é a comunhão do
sangue de Cristo? O pão que partimos não é a comunhão do corpo de
Cristo?”. E com o sentido dessas palavras que os oponentes da doutrina
da presença espiritual são desa iados a lidar.
Esse desa io, porém, talvez não seja tão difıć il. Na verdade, a
leitura de 1Corıń tios 10.16 colocada sob a luz do contexto que abrange
os vv. 14-22 mostra que, certamente, Paulo não fala da presença
espiritual de Cristo nos elementos da ceia, mas sim da comunhão
especial que o crente tem com o próprio Senhor durante a celebração
dessa ordenança.
Na verdade, o próprio v. 16 fala de “comunhão” e não de
alimentação ou sustento. Ademais, nos vv. 20-21 ica claro que a
preocupação de Paulo se centrava no campo da associação. Com efeito,
ele adverte os crentes no tocante à ligação que eles teriam com os
demônios caso participassem de festas pagãs. Isso, segundo o apóstolo,
seria inaceitável, uma vez que, na ceia, se uniam a Cristo, não havendo
sentido em terem comunhão com o Senhor e também com os espıŕ itos
malignos.
Assim, 1Corıń tios 10.16 não ensina que Cristo está
espiritualmente presente nos elementos da ceia. Antes, revela que, ao
participar da mesa do Senhor, o crente se associa com ele de forma
especial, nutrindo, no momento da celebração, uma comunhão mais ıń
tima com o Senhor, presente sim de forma intensa durante o rito,
mas não nos elementos do rito.
Conforme visto de inıć io, a quarta concepção acerca da ceia é
chamada memorial. Essa é a visão segundo a qual a ceia é apenas
uma ordenança do Senhor, útil para trazer à memória dos crentes o
sacrifıć io que Cristo realizou no Calvário. Geralmente, essa doutrina é
atribuıd́ a ao já mencionado reformador Ulrico Zuıń glio. De fato, Zuıń
glio rejeitou qualquer noção sobre a presença de Cristo nos elementos
eucarıś ticos. Para ele, comer a carne do Senhor signi icava crer nele, de
modo que a expressão “isto é o meu corpo” devia ser entendida como
uma metáfora.
Deve-se dizer, contudo, que não é correto atribuir a Zuıń glio uma
concepção memorialista extrema. Isso porque esse reformador via a
ceia não apenas como um momento de recordação, alegria e gratidão,
mas também como um sinal mediante o qual, como no batismo, o
crente comprova sua fé e mostra para a igreja que pertence a Cristo.
Dentre as quatro visões sobre a ceia do Senhor, a que a concebe
basicamente como um memorial parece ser a que melhor se harmoniza
com o ensino das Escrituras. O próprio Senhor, ao instituir essa
ordenança, a irmou: “Fazei isso, em memória de mim” (1Co 11.23-
25).
O memorialismo bıb́ lico, porém, não é do tipo que despreza as
realidades espirituais ligadas à ceia. Na verdade, um enunciado que
leve realmente em conta a totalidade da evidência neotestamentária
deve a irmar que a ceia do Senhor é um memorial que recorda o sacrifıć
io de Cristo, memorial este celebrado em meio a uma realidade
espiritual que transcende a experiência regular da igreja, à medida que
proporciona aos crentes uma cumplicidade mais plena com o próprio
Senhor presente de forma intensa no momento da celebração.
Ora, é evidente que desfrutar de uma cerimônia assim provocará
transformações nos participantes, mais do que meras recordações.

Ceia aberta, restrita e ultrarrestrita

No meio evangélico tradicional, três são as condutas geralmente


adotadas pelos pastores no que diz respeito à participação da ceia do
Senhor. Uma delas é a “ceia restrita”, da qual só podem participar os
membros de igrejas da mesma denominação. Os pastores que adotam
esse procedimento geralmente dizem, antes da distribuição dos
elementos, que só é permitida a participação da ceia de pessoas que
pertençam a uma igreja “da mesma fé e ordem”.
Há também a “ceia ultrarrestrita”, da qual só podem participar os
membros da igreja local, ou seja, a igreja em que a ceia é ministrada.
Esse critério é bem mais raro do que o mencionado anteriormente.
Finalmente há a “ceia aberta”. Esta é oferecida a todos os crentes,
independentemente da denominação a que pertençam. Esse é o critério
correto, devendo ser acolhido, uma vez que a Palavra do Senhor não
oferece nenhum respaldo para a adoção da ceia restrita nem da
ultrarrestrita.
Com efeito, nada dizem as Escrituras sobre a necessidade de
pertencer a esta ou àquela denominação (como todos sabem, na época
em que o Novo Testamento foi escrito, sequer existiam denominações)
para poder participar da ceia. Nem tampouco dizem algo sobre ter de
ser membro da igreja local em que o memorial é celebrado.
Na verdade, segundo o ensino de Paulo, para participar da ceia do
Senhor basta que o crente o faça dignamente (1Co 11.27), o que, pelo
contexto da passagem, signi ica primariamente comer e beber sem
nutrir rancores, desrespeito ou desprezo pelos irmãos (1Co 11.17-22,
33-34).
Além do mais, o texto de 1Corıń tios 11 diz que é o próprio
participante quem deve avaliar se preenche ou não esse requisito em
sua vida (1Co 11.28). Se não o izer, correrá o risco de comer e beber
“juıź o para si” (1Co 11.29). De fato, na ceia, o participante (o que inclui
o pastor e os diáconos) deve avaliar-se a si mesmo, e não os outros. E se
tiver de proibir alguém de comer e beber, que proıb́ a a si mesmo, caso,
depois de se autoavaliar, perceber que corre o risco de comer e beber
indignamente.
Deve-se lembrar que o próprio Jesus não proibiu Judas de
participar da ceia quando a instituiu. Em Lucas 22.21, após instituir
essa maravilhosa ordenança (v.19-20), o Mestre disse: “Todavia, a mão
do traidor está comigo à mesa”. Mesmo sabendo que Judas era ladrão
(Jo 12.6), traidor, controlado e possuıd́ o pelo diabo (Jo 13.2,27), Jesus
não o expulsou da mesa, mostrando que quem tem a responsabilidade
de vedar a participação do pão e do cálice é tão-somente o próprio
indivıd́ uo a quem esses elementos são oferecidos (1Co 11.31).
Desse modo, o ministrante não tem autoridade para proibir a
participação de ninguém na ceia. Sua responsabilidade se limita a
alertar os ouvintes acerca dos perigos de tomar parte indignamente do
santo memorial. Deve mostrar que quem come e bebe nessas condições
será considerado réu do corpo e do sangue do Senhor (1Co 11.27),
comerá e beberá juıź o (castigo) para si (1Co 11.29), sendo até possıv́el
que Deus o visite com doenças e morte (1Co 11.30).

Uma pergunta frequente

Para participarda ceia, o crente tem de ser


batizado?
Não é possível encontrar essa exigência na Bíblia. É
mera invenção humana, não havendo motivo algum para
que a igreja de Deus se submetaa ela.
Os critérios que a Bíblia estabelece para a
participação da ceia estão muito bem de inidos em
1Coríntios 11. Tudo que for acrescentado ao que está ali
estabelecido é fruto da imaginação, ou seja, uma
fonte sem autoridade alguma para o “cristão velho”.
Aliás, deve ser lembrado que todo aquele que crê em
Cristo recebe da parte de Deus o batismo do
Espírito Santo (1Co 12.13). Obviamente, esse batismo
é mais importante do que o batismo na água e,
por si só, autoriza o crente a tomar partena
mesa do Senhor.
Nesseaspecto, é bom recordar que Pedro censurou a
hipótese de negar a ministração de uma ordenança (o
batismo na água) a quemhaviasido batizado pelo
Espírito (At 10.47). Logo, é também evidente que a
quem Deus não negou o seu Espírito, não se pode
negar o pão e o cálice.
Seguindo esse mesmo raciocínio, se a ceia é, entre
outras coisas, um símbolo que aponta para Cristo
como o alimento espiritual do crente, como negar esse
símbolo a quemparticipa da própria realidade que ele
representa?
Capítulo 4 – O EVANGELISMO

Há um mito que circula no meio evangélico segundo o qual as igrejas


de soteriologia reformada, por acolher a doutrina da soberana eleição de
Deus, não se preocupam em fazer evangelismo pessoal ou missões.
Segundo os expoentes dessa lenda, essas igrejas, crendo que Deus já tem
os seus eleitos a quem fatalmente irá salvar, não veem nenhuma
necessidade de evangelizar as pessoas, nem mesmo de orar para que
alguém se converta.
Realmente, as igrejas que acolhem o ensino integral da
Bíbliadefendem tenazmente a doutrina da livre escolha de Deus para a
salvação. E isso por uma razão muito simples: o Novo Testamento ensina
nitidamente essa doutrina, sendo impossıv́el rejeitá-la sem, ao mesmo
tempo, rejeitar as Escrituras.
De fato, mesmo representando um atentado contra a orgulhosa
lógica humana (Rm 9.19-21), a Bíbliaé pródiga em suas a irmações
referentes à soberania absoluta de Deus na ministração de sua graça,
dizendo, inclusive, que ele alcança quem quer e endurece a quem lhe
apraz (Jo 1.13; Rm 8.29-30; 9.18,21-22; Ef 1.5; 1Pe 2.8). E por isso que as
igrejas de coloração calvinista não abrem mão desse ensino tão
controvertido que as torna alvo de constantes acusações falsas.
A questão, então, permanece: a aceitação da doutrina da eleição
inibe o trabalho de evangelismo? Surpreendentemente, a resposta é um
enfático não. Aliás, é até o oposto o que acontece! Com efeito, tanto a
Bíbliacomo a história do cristianismo mostram que a doutrina da eleição
tem se constituıd́ o num dos maiores incentivos à evangelização do
mundo!

A conexão bíblica entre eleição divina e evangelismo

Ao contrário do que alguém poderia imaginar, nas páginas da Bíblia,


um dos maiores impulsos à prática missionária é precisamente a doutrina
da eleição. Como? De que forma as Escrituras destacam a eleição divina
como um estıḿulo ao trabalho de pregação do evangelho?
Basicamente, o texto sagrado faz isso de duas maneiras: a
irmando que os eleitos de Deus estão espalhados pelas diversas
comunidades ao redor do mundo; e ensinando que eles fatalmente
atenderão à mensagem das boas-novas em Cristo.
Jesus foi o primeiro a mostrar essas duas maravilhosas realidades. A
certa altura do Evangelho de João, o autor conta que o Mestre fez uma
intrigante a irmação: “Tenho outras ovelhas que não são deste aprisco
[isto é, não são de Israel]. E necessário que eu as conduza também. Elas
ouvirão a minha voz, e haverá um só rebanho e um só pastor” (Jo10.16).
Em seguida, para mostrar que havia grande distinção entre esse grupo
espalhado pelo mundo e as demais pessoas não escolhidas, ele se dirigiu
aos seus oponentes dizendo: “... vocês não creem, porque não são minhas
ovelhas” (Jo 10.26).
O Senhor ensinou, assim, que ele tem um povo espalhado pelo
mundo, que as pessoas que compõem esse povo ainda estão por ser
alcançadas e que elas fatalmente atenderão ao convite da fé. Como um
evangelista poderia ser desencorajado diante disso? Não seriam essas
palavras exatamente um estıḿulo para o seu trabalho?
O Evangelho de João insiste nessas verdades também no Capítulo11.
Ali, o evangelista comenta algumas palavras pronunciadas pelo sumo
sacerdote, dizendo: “Ele não disse isso de si mesmo, mas, sendo o sumo
sacerdote naquele ano, profetizou que Jesus morreria pela nação judaica, e
não somente por aquela nação, mas também pelosilhos de Deus que
estão espalhados, para reuni-los num povo” (Jo 11.51-52). E mais do que
claro aqui que Deus tem “ ilhos” dispersos pelo mundo. Esses “ ilhos”
ouvirão a mensagem da cruz e serão, a inal, reunidos num povo.
Ora, com essas concepções em mente, seria possıv́el um evangelista
desanimar? E claro que não! Na verdade, sabendo disso, o missionário
trabalhará ainda mais con iante, ciente de que as ovelhas de Jesus, os “
ilhos de Deus que estão espalhados”, cedo ou tarde, seguirão o Bom
Pastor. Sim, amanhã ou depois, serão todos reunidos pelo Pai.
Além disso, o obreiro que aceita essas verdades não se sentirá
fracassado ou frustrado no ministério quando não crerem na sua
pregação. Antes, entenderá que os que a rejeitaram izeram-no por não
serem ovelhas do Senhor e seguirá avante, certo de que as ovelhas
fatalmente ouvirão e o alvo do Pai de reunir seus ilhos num só povo será
inalmente alcançado. Mais uma vez: poderia haver estıḿulo maior para o
trabalho evangelıś tico?
Na história de missões, quem primeiro se sentiu animado por essas
verdades foi o apóstolo Paulo. Isso aconteceu quando ele esteve pregando
em Corinto, um foco tenebroso da multiforme religião pagã, centro
cosmopolita marcado por variados excessos de imoralidade e por todo
tipo de devassidão. Corinto talvez fosse, ao mesmo tempo, o maior desa io
e o mais terrıv́el pesadelo de qualquer missionário cristão; uma boa
desculpa para o abandono do trabalho evangelıś tico.
Paulo esteve ali em cerca de 50 AD, por ocasião da sua Segunda
Viagem Missionária (At 18.1-18). Logo de inıć io, sua presença e
mensagem despertaram a oposição da comunidade judaica local que
trabalhou intensamente para di icultar ainda mais a obra missionária em
Corinto (At 18.6,12-13). Paulo, porém, não desistiu.
Onde o apóstolo encontrou estıḿulo para continuar seu trabalho
num ambiente tão difıć il? A resposta é surpreendente: ele foi incentivado
pela doutrina da eleição! O registro bıb́ lico diz que, certa noite, o Senhor
apareceu a Paulo numa visão e disse: “Não tenha medo, continue falando e
não ique calado, pois estou com você, e ninguém vai lhe fazer mal ou feri-
lo, porque tenho muita gentenesta cidade” (At 18.910).
Conforme exposto, nos dias do seu ministério terreno, o Senhor
havia dito que tinha outras ovelhas que viviam em vários apriscos fora de
Israel. Agora, o mesmo Senhor se manifesta a Paulo revelando que muitas
dessas ovelhas estavam em Corinto. O apóstolo não devia, portanto,
recuar. A realidade de que as ovelhas já estavam ali, somente esperando
ouvir a voz do Supremo Pastor, devia incentivá-lo, pois elas certamente
atenderiam a pregação e seriam salvas.
Paulo ouviu isso tudo e permaneceu irme. Foi assim que a santa
doutrina da eleição fez o apóstolo perseverar por mais um ano e seis
meses no trabalho missionário em Corinto (At 18.11).
Cerca de dez anos mais tarde, Lucas escreveu essa e outras histórias
de Paulo na obra que recebeu o tıt́ ulo de Atos dos Apóstolos. Foi,
talvez, por perceber que a doutrina da eleição servia como estıḿulo para
a evangelização, que Lucas fez questão de frisar, justamente numa obra de
história de missões, que os que acolhiam a pregação de Paulo eram
somente os que faziam parte do rebanho de Cristo espalhado pelo mundo.
“... E creram todos os que haviam sido designados para a vida eterna” (At
13.48), escreveu ele. Vê-se, assim, que o primeiro historiador da igreja
aprendeu, por meio de suas pesquisas e de sua observação, que a eleição
não somente estimula o trabalho do pregador, mas também garante o seu
sucesso.
Conclui-se, assim, que, à luz da Bíblia, a doutrina da eleição não
desencoraja a obra missionária, mas faz exatamente o oposto. Além disso,
todo calvinista sabe que Deus decidiu salvar os eleitos por meio da
pregação (1Co 1.21), sendo, portanto, imprescindıv́el a sua prática
somada ao dever de orar pelos perdidos.
Aliás, no tocante a esses assuntos, é signi icativo que Paulo, mesmo
depois de tratar extensivamente acerca da doutrina da eleição, em
Romanos 9, prossegue, no Capítulo10, falando sobre seu empenho na
oração pelos perdidos (Rm 10.1) e sobre o dever de enviar missionários
aos que nunca ouviram falar de Jesus (Rm 10.14-15). Para o apóstolo, as
verdades que expôs em Romanos 9 não anulavam os deveres que
mencionou em Romanos 10.

Provas históricas

Se o argumento que diz que a doutrina da eleição desestimula a


pregação do evangelho não se sustenta à luz da Bíblia, tampouco esse mito
pode se manter de pé diante da análise histórica. Com efeito, se o ensino
bıb́ lico acerca da eleição gerasse desmazelo no evangelismo, seus
expoentes nada teriam feito em prol da expansão da fé e icariam fechados
dentro de suas igrejas, aguardando sua fatal extinção.
No entanto, não é isso que se vê na história. Antes, um zelo ardente
por missões moveu os expoentes da doutrina da eleição, conduzindo-os
como pioneiros e mártires aos rincões mais distantes do mundo, sempre à
procura das ovelhas dispersas que fatalmente atenderiam a voz do Pastor
Divino.
O primeiro exemplo disso é apontado pelo próprio Calvino. Em suas
Institutas da Religião Cristã, o grande reformador citou Agostinho
de Hipona, dizendo:

Porque não sabemos quempertença ao número


dos predestinados, ou não pertença, assim
nos convém tratar que a todosqueiramos
venham a ser salvos. Assim acontecerá
que, quem quer que seja que se nos haverá
de deparar, esforcemonos por fazê-lo
participante de nossapaz. Mas, nossapaz
repousará somente sobreos ilhos da paz (Mt 10.13;
Lc 10.6). Portanto, quanto a nós concerne,
deverá ser a todosaplicada, à semelhança
de um remédio... A Deus, porém, pertencerá
[52]
fazê-la e icaza quempré-conheceu e predestinou.

Calvino, contudo, não somente ensinou essas coisas. Ele também as


pôs em prática. Uma prova disso está no fato de que, em Genebra, cidade
em que atuou como pastor e estadista, foi criado, após 1545, o Fundo
Francês, uma instituição que tinha como propósito central dar apoio
material aos franceses pobres ali refugiados por causa da perseguição em
sua terra natal. Calvino contribuıá prodigamente para esse fundo e é
provável que tenha sido um dos seus criadores. Ainda que os objetivos
principais da instituição fossem no campo humanitário, é sabido que o
Fundo Francês era também usado para ins missionários, sustentando
pastores em Genebra que deveriam ser enviados à França.
E também preciso destacar que, em meados do século 16, havia em
Genebra 38 tipogra ias, com cerca de dois mil empregados, cujo trabalho
dominante era imprimir literatura evangélica destinada aos paıś es
vizinhos, especialmente a França. Por conta disso, na década de 1540,
Paris foi inundada pela literatura produzida em Genebra e as conversões
começaram a ocorrer.
Isso despertou a atenção e o desagrado do parlamento parisiense, o
qual emitiu sucessivas listas de livros proibidos, nas quais eram incluıd́ as
quaisquer obras que expusessem ideias calvinistas. As grá icas de
Genebra, porém, não paravam de lançar novos tıt́ ulos, numa velocidade
que o Parlamento não podia acompanhar. Assim, as listas de livros
censurados estavam sempre desatualizadas e as obras de Calvino
continuavam a ser vendidas e lidas pelo povo francês.
Além disso, sendo impossıv́el um controle absoluto sobre o
comércio de literatura por parte das autoridades de Paris, os livros
proibidos procedentes de Genebra eram vendidos no mercado negro. O
resultado era que as conversões à fé evangélica não paravam de ocorrer
na França. Os registros históricos apontam que, em 1562, dois anos antes
de Calvino morrer, existiam pelo menos 1.250 congregações calvinistas
naquele paıś , abrangendo mais de dois milhões de membros! Foi
certamente por causa desses extraordinários avanços, que a Venerável
Companhia de Pastores, outra instituição da Genebra
[53]
de Calvino, enviou 151 missionários à França só no ano de 1561! Essa
mesma instituição, entre 1555 e 1562, também enviou 88
[54]
ministros para quase todos os paıś es da Europa.
A obra missionária de Calvino também abrangeu a fundação da
Academia de Genebra (1559), criada para treinar pastores e suprir a
demanda que o crescimento do número de igrejas impunha aos
reformadores. Muitos alunos da academia eram estrangeiros refugiados
(franceses, ingleses, holandeses, italianos e alemães) que, depois de
formados, voltavam para seus paıś es de origem ensinando o que ali
haviam aprendido. Entre esses alunos esteve John Knox, o grande
reformador escocês. Foi assim que a escola fundada por Calvino tornouse
um grande centro missionário, irradiando a fé evangélica para o mundo
inteiro.
E preciso ainda lembrar que os primeiros missionários protestantes
que chegaram ao Brasil foram enviados precisamente por João Calvino.
Eles vieram a pedido de Nicolas Durand de Villegaignon (1510-1571), com
o objetivo de ensinar a fé reformada aos colonizadores franceses do Rio de
Janeiro e evangelizar os indıǵ enas.
O grupo chegou em março de 1557, mas, menos de um ano depois,
foi expulso por causa de con litos doutrinários com
Villegaignon. Esses con litos resultaram na produção da Con issão de
Fé da Guanabara (1558), um documento de orientação reformada escrito
por cinco calvinistas leigos aprisionados por Villegaignon. Desses cinco,
quatro foram estrangulados, pondo im ao trabalho missionário de
[55] Calvino
no Brasil.
No século 17, o Brasil mais uma vez foi cenário da atividade
missionária calvinista. Isso aconteceu como resultado indireto dos con
litos polıt́ icos entre Espanha e Holanda. Movido por esses con litos, Filipe
II, da Espanha, proibiu as relações comerciais entre os holandeses e todas
as áreas de dominação espanhola, o que abrangia a América do Sul. Nessa
época, a Holanda dominava a distribuição de açúcar na Europa e não
podia abrir mão do comércio com a empresa açucareira nordestina. Por
isso, em 1621, foi criada a Companhia das Indias Ocidentais, com sede em
Amsterdã, cujo objetivo era a exploração mercantil na América.
A companhia das Indias Ocidentais promoveu duas invasões
holandesas ao Brasil: uma na Bahia (1624-1625) e outra em Pernambuco
(1630-1654). Esta última foi melhor sucedida e, para garantir a paz e os
seus interesses no Brasil, a companhia enviou um representante, o conde
João Maurıć io de Nassau, que governou o Brasil Holandês de 1637 a 1644.
Maurıć io de Nassau era crente, membro zeloso e assıd́ uo
frequentador da Igreja Cristã Reformada. Seu governo foi brilhante,
cobrindo uma área que ia do Sergipe até o Maranhão.
Ocorreu, porém, que a companhia passou a adotar polıt́ icas que
desagradavam os senhores de engenho, exigindo o pagamento imediato
de empréstimos e impondo certos limites à liberdade religiosa. Quando,
então, Maurıć io de Nassau pediu demissão de seu cargo, iniciou-se a luta
contra os holandeses. A chamada Insurreição Pernambucana (1645-1654)
resultou na expulsão dos invasores, os quais passaram a produzir açúcar
nas Antilhas.
Foram os holandeses desse perıó do que trouxeram para o Brasil a
igreja calvinista. Seu nome o icial era Igreja Cristã Reformada e contava
com 22 congregações locais espalhadas pelo Brasil Holandês. Ela adotava
con issões de fé calvinistas, além de outros credos ortodoxos antigos, e
realizou intensa obra missionária, especialmente entre os ıń dios.
O primeiro pastor dessa igreja a se envolver com a evangelização
dos nativos foi Vincentius Joaquimus Soler. A princıṕ io, ele pregou na
aldeia Nassau, no Recife (atual Bairro das Graças), e somente mais tarde, a
pedido dos nativos da capitania da Paraıb́ a, dedicou-se à evangelização
dos ıń dios. Cabe, porém, a David Doreslaer, cujo trabalho iniciou-se em
1638, o tıt́ ulo de primeiro pastor missionário de tempo integral entre os
nativos do Brasil.
O trabalho missionário dos calvinistas holandeses cresceu muito, a
ponto de, em 1641, ser celebrada a primeira ceia do Senhor na aldeia do
cacique Pedro Poti. Várias tribos pediam que a Igreja Cristã Reformada
lhes enviasse pregadores e congregações indıǵ enas foram abertas. Até os
antropófagos tapuias pediram o envio de missionários. Infelizmente, nem
sempre essas solicitações podiam ser atendidas, até mesmo em virtude da
instabilidade decorrente dos con litos entre Holanda, Espanha e Portugal.
Apesar disso, 17% do trabalho pastoral era dedicado aos ıń dios, graças,
inclusive, à iniciativa pessoal de vários ministros que viam a pregação aos
nativos como parte obrigatória do seu ministério.
Em seu trabalho, os pastores calvinistas ganhavam a con iança dos
nativos dando-lhes assistência social (remédios, alimentos, proteção, etc.).
Além disso, traduziam partes das Escrituras para o tupi, produziam
literatura reformada em português e em tupi, primavam pela educação e
formação de professores ıń dios (alguns se tornaram “consoladores” ou
evangelistas) e zelavam não somente pelo ensino doutrinário, mas
também pelo ideal de santidade que deve acompanhar a fé. De fato, o
puritanismo holandês via a Bíbliacomo norma de fé e prática (norma
credendi et agendi) e isso foi transmitido aos ıń dios.
Infelizmente, com a expulsão dos holandeses do Brasil, em 1654, a
Igreja Cristã Reformada também partiu. Os ıń dios convertidos foram
incluıd́ os no “Perdão Geral” promulgado pelos portugueses. Contudo, sem
acreditar nesse perdão, os ıń dios membros da primeira igreja evangélica
verdadeiramente brasileira fugiram para a Serra de Ibiapaba, no Ceará, a
750 km do Recife. O local tornou-se, então, o que o padre jesuıt́ a Antônio
Vieira chamou de “Genebra de todos os sertões do Brasil”, repleta de ıń
dios calvinistas que consideravam o catolicismo uma fé falsa.
No mesmo ano da expulsão dos holandeses, os ıń dios da Serra de
Ibiapaba enviaram uma pequena delegação a Holanda, suplicando socorro
em prol do povo que havia abraçado a fé calvinista. Porém, a Igreja Cristã
Reformada viu-se atada pelas negociações de paz entre Portugal e
Holanda e não enviou auxıĺ io. Por isso, a igreja indıǵ ena morreu. Aos
poucos seus membros foram novamente submetidos a Roma ou
massacrados como hereges. Foi assim que terminou um dos capıt́ ulos
mais belos da história da igreja reformada no Brasil; e esse Capítuloprova
quão falaciosa é a acusação de que os calvinistas não se
[56]
importam com a evangelização dos povos sem Deus.
As provas históricas do empenho evangelıś tico dos calvinistas são
inumeráveis. Porém, para concluir esse assunto, é su iciente apontar
[57]
somente mais dois personagens: George White ield e Charles Haddon
Spurgeon, sem dúvida os maiores pregadores de todos os tempos, ambos
fervorosos expoentes da fé reformada, com sua ênfase na doutrina da
predestinação dos santos.
George White ield nasceu em Gloucester, na Inglaterra, em 1714, e
morreu em Newbury Port, nos Estados Unidos, em 1770. Ele viveu menos
de sessenta anos, mas di icilmente a história poderá mostrar um homem
mais zeloso no trabalho de proclamação das boas-novas aos perdidos. De
fato, White ield foi o maior pregador da Inglaterra no século 18 e,
certamente, um dos mais notáveis evangelistas de todos os tempos. Com
certeza, ele foi o principal lıd́ er do Grande Avivamento evangélico que
varreu a Inglaterra há mais de duzentos anos.
White ield começou a pregar em 1736 e, já no ano seguinte, era
capaz de reunir grandes multidões em Londres dispostas a ouvi-lo. A ele
cabe a honra de ter sido o primeiro evangelista da igreja moderna a
pregar ao ar livre, rompendo antigas tradições eclesiásticas em prol da
expansão da fé.
A estratégia de pregar a céu aberto foi usada pela primeira vez por
White ield em 1739. Ele foi motivado pelas terrıv́eis informações que lhe
chegaram acerca da vida depravada dos trabalhadores das minas de
carvão que moravam numa vila perto de Bristol. A princıṕ io, White ield
pregou ao ar livre para um grupo de cem homens daquela vila, mas seu
impacto foi tão grande que logo o número passou para cinco mil,
superando mais tarde os vinte mil ouvintes. Aquelas pessoas nunca
tinham entrado numa igreja e, mesmo cansadas e sujas em virtude do
trabalho nas minas de carvão, não iam para casa, preferindo icar de pé
ouvindo a pregação de White ield.
Desde esse tempo até o im da vida, White ield se dedicou à pregação
em lugares abertos, alcançando dezenas de milhares de pessoas tanto na
sua terra natal como na Escócia, onde esteve 14 vezes.
A partir de 1738, White ield fez também diversas viagens aos
Estados Unidos a im de pregar o evangelho ali. Sua coragem em atravessar
o oceano treze vezes em suas idas e vindas à América, enfrentando todos
os perigos que essa viagem representava no século 18, mostra o zelo
missionário desse pastor calvinista que, em 34 anos de ministério, pregou
cerca de 18 mil sermões!
Proclamando suas mensagens ao ar livre ao longo de toda a vida,
White ield enfrentava qualquer situação, mesmo as mais difıć eis. Frio,
calor, chuva e neve, nada disso o impedia de anunciar a Palavra às
multidões que, também sob essas condições se ajuntavam para ouvi-lo.
Ele pregava cerca de seis vezes por dia e fez isso por mais de três décadas!
Não tinha descanso no trabalho, submetendo seu corpo a severas tensões.
Foi por isso que, durante sua sétima visita aos Estados
Unidos, estando extremamente exausto e doente, faleceu em Newbury
Port, Massachusetts, com apenas 56 anos de idade, após árduos esforços
para pregar uma última vez.
Ninguém mais do que George White ield provou como a fé calvinista
move o crente ao evangelismo. Sendo árduo defensor da doutrina da
eleição soberana de Deus, ele foi um evangelista incomparável, superando
todos do seu tempo no nobre trabalho de alcançar os escolhidos do
Senhor.
White ield pregou para a aristocracia inglesa, para os homens
humildes do campo e das minas e para as crianças dos orfanatos, tanto em
sua terra natal como em regiões distantes dali. A fé reformada não o
desencorajava. Muito pelo contrário. Foi essa fé que se constituiu na base
de todo o seu empenho, por décadas a io, até a morte. Hoje, os que dizem
que calvinistas não evangelizam devem estudar a vida de George White
ield. Isso, certamente, os fará mudar de opinião!
Uma dramática mudança de opinião acerca do zelo evangelıś tico
calvinista também ocorrerá no crıt́ ico da fé reformada que estudar a vida
de Charles Haddon Spurgeon (1834-1892), notável pastor batista
[58]
inglês, conhecido como o “Prıń cipe dos Pregadores”.
Mesmo pertencendo a uma famıĺ ia de tradição protestante e sendo
criado sob a forte in luência de seu avô, um pastor congregacional, Charles
Spurgeon só se converteu realmente aos 16 anos de idade. Logo no inıć io
de sua vida cristã, ele mostrou grande preocupação pelas almas,
dedicando-se à distribuição de folhetos, ao ensino na escola dominical e,
eventualmente, à pregação. Aos poucos, porém, suas habilidades como
comunicador da Palavra de Deus começaram a a lorar e Spurgeon viu sua
fama de pregador crescer quando ainda era bem jovem.
Em 1852, ele se tornou pastor e, dois anos depois, assumiu o
ministério na Capela Batista de New Park Street, em Londres. Seu
desempenho ali como pregador e evangelista atraiu tantas pessoas que as
ruas ao redor da igreja logo se tornaram intransitáveis por conta da
multidão que a luıá para ouvir o jovem pastor. Em pouco tempo, a igreja
teve de se mudar para Newington, onde, em 1861, foi construıd́ o o
Tabernáculo Metropolitano, que abrigava cerca de 12 mil pessoas. O local
icava repleto de homens e mulheres desejosos de ouvir os sermões
ardentes de Spurgeon que anunciava o Evangelho com uma paixão e
clareza nunca vistas em nenhum outro pregador daqueles dias.
Charles Spurgeon era calvinista convicto e seus sermões são
[59]
prova cabal desse fato. Defendendo vigorosamente a doutrina da
predestinação dos santos e a eleição incondicional, ele foi, ao mesmo
tempo, um zeloso evangelista de renome mundial, pregando em diversos
paıś es da Europa, tanto em igrejas ou em amplos salões como ao ar livre.
Ele pregava de oito a doze vezes por semana e chegou a falar para um
público de mais de 23 mil pessoas, no Crystal Palace, em Londres.
Tantas foram as pregações de Spurgeon que, quando seus sermões
passaram a ser publicados, a partir de 1855, a obra abrangeu 63 volumes,
com mais de 3.500 homilias. Desejoso de que a mensagem de Cristo
alcançasse o maior número possıv́el de pessoas, Spurgeon se esforçava
para que as publicações dos sermões fossem semanais, revisando ele
próprio os textos antes que chegassem ao público. Como resultado dessa
imensa obra evangelizadora, Spurgeon batizou cerca de 15 mil pessoas ao
longo de quarenta anos de ministério pastoral. Mais tarde, seus sermões
foram traduzidos para diversos idiomas, transformando vidas em todo o
mundo.
Sempre preocupado com a divulgação da mensagem cristã,
Spurgeon também começou um trabalho de treinamento de evangelistas e
pastores, o que deu origem ao posteriormente chamado Spurgeon’s
College. Essa instituição existe até hoje, adotando a mesma visão do seu
fundador e formando evangelistas, missionários e pastores.
Charles Spurgeon adotava uma concepção ortodoxa das Sagradas
Escrituras e, por isso, passou a ser fortemente criticado pelos membros
liberais da União das Igrejas Batistas da Inglaterra da qual sua igreja fazia
parte. Por causa disso, em 1887, ele se desligou da união e, sob severa
oposição, viu sua saúde minguar. Spurgeon tinha gota, reumatismo e uma
enfermidade crônica degenerativa incurável chamada Doença de Bright.
Ele morreu aos 57 anos. Grandes cortejos foram realizados em Londres
por ocasião de seu sepultamento no cemitério de Norwood. Naquele dia,
31 de janeiro de 1892, o Senhor tomou para si um dos maiores
evangelistas de todos os tempos.
Quem conhece a vida e os sermões de Spurgeon vê quão grande é o
impulso que a doutrina da eleição incondicional dá ao evangelismo.
Aquele grande pregador provou que, encorajados pelo precioso ensino
acerca da predestinação dos santos, os homens de Deus se lançam com
maior empenho na busca daqueles que o Senhor escolheu e trazem para o
seio da igreja os convertidos verdadeiros em quem a graça do Senhor
realmente atuou.

Divulgando a fé

Os evangelistas que não acolhem nem compreendem a doutrina da


eleição geralmente se envolvem em práticas reprováveis na tentativa de
“ganhar almas”. Desprezando ou desconhecendo o fato de que a conversão
de pecadores é obra de Deus e que ele, tendo os seus escolhidos, age
graciosamente em seu coração mediante a exclusiva exposição da Palavra,
os evangelistas desse tipo criam estratégias e artifıć ios os mais diversos
no afã de convencer os incrédulos a “tomar uma decisão”.
E assim que, movidos pela crença de que todos os homens são
capazes de crer caso queiram, bastando que os “botões certos” sejam
apertados, esses evangelistas elaboram pregações seguidas de apelos
emocionados, com músicas tocantes ao fundo, com convites prolongados e
insistentes para que o pecador “levante a sua mão” ou “venha à frente”
aceitando Jesus.
Tais pregadores acreditam que, criando essa atmosfera arti icial,
serão capazes de convencer o homem perdido a crer, esquecendo-se que a
fé salvı́ ica não se aloja no coração do homem por meio de métodos
teatrais de manipulação e sim pela ação sobrenatural de Deus (Jo 6.37,44;
At 16.14; Ef 2.8).
Outros vão além e tentam convencer os incrédulos a crer atraindo-os
para a igreja com todo tipo de programação, mesmo as mais mundanas.
Espetáculos de música profana, uso de linguagem indecente, festas
irreverentes, “baladas”, danças e até apelos sensuais são utilizados na
tentativa de trazer o incrédulo para a igreja. Uma vez alcançado esse
objetivo, todas essas práticas são mantidas a im de que o descrente não
seja espantado e volte para o mundo do qual, na verdade, nunca saiu –
apenas passou a expressar sua velha carnalidade num novo endereço.
Outro problema se veri ica na prática do evangelismo que despreza a
soberana eleição de Deus. Pastores, evangelistas e missionários com essa
de iciência teológica tendem a acreditar que a conversão dos perdidos
depende não só da vontade deles, mas também das habilidades pessoais
do pregador. Por isso, fazem de tudo para elevar o número de seus
conversos.
Trata-se, na verdade, de uma questão de valor pessoal. Os
ministros precisam mostrar que são oradores hábeis, dotados de
grande poder de persuasão, obreiros de sucesso, pregadores
irresistıv́ eis diante de quem os incrédulos não conseguem se manter
endurecidos. Isso ajuda a explicar os longos e intermináveis apelos à
conversão e as estratégias absurdas de atração dos perdidos à fé
evangélica. Resultados têm de ser vistos a todo custo. Do contrário, a
imagem do pregador icará irremediavelmente manchada.
Naturalmente, essa concepção acerca do evangelismo põe um fardo
enorme sobre os ombros do pregador, o qual se vê obrigado a mostrar
números sob pena de ser considerado um fracasso. Por outro lado, essa
visão estimula o orgulho próprio, pois o pregador passa a ver seus
convertidos como provas de sua habilidade e aptidão, esquecendose que é
mero lavrador, sendo Deus quem dá o crescimento e o fruto (1Co 3.5-7).
Todos esses erros precisam ser evitados pela igreja de Deus. Nela o
evangelismo deve se centralizar na mensagem pura da salvação e não
em estratégias humanas, artifıć ios de retórica ou habilidades imaginárias.
E a mensagem pura da salvação se concentra em basicamente cinco
verdades bıb́ licas:

1. Todos os homens são pecadores (Rm 3.23);


2. Por causa do pecado todos estão separados da glória de Deus,
sendo a morte eterna o destino de cada um (Rm 6.23);
3. Para salvar o ser humano dessa situação, Deus enviou Jesus
Cristo ao mundo, a im de sofrer o castigo pelo pecado em seu
lugar (Rm 5.6-8);
4. Por isso, Cristo foi cruci icado, morto e sepultado, mas ao
terceiro dia ressuscitou como prova de que as exigências da
justiça de Deus foram satisfeitas (Rm 4.25);
5. Agora, os benefıć ios da morte de Cristo são aplicados a todos os
que o recebem pela fé como Salvador. Estes são plenamente
perdoados e o Senhor lhes concede vida eterna (Rm 5.1; 6.23;
8.1).

E com a divulgação dessas verdades que o servo de Deus deve se


ocupar, tanto no púlpito como em suas abordagens individuais, sem
perder tempo com a criação de táticas “infalıv́eis” de propaganda ou de
manipulação de massas.
Então, tendo semeado a boa semente, o evangelista deve descansar
na certeza de que cumpriu seu dever e na convicção de que o Senhor, uma
vez pregada a sua Palavra, agirá no tempo que quiser, da maneira que
quiser e, especialmente, em quem quiser, reunindo soberanamente o
rebanho que de antemão conheceu e um dia glori icará (Rm 8.29-30).
E, pois, dentro dessa objetividade e tocante singeleza que deve ser
realizado o evangelismo na prática diária da igreja de Deus, pois o que se
requer dos despenseiros dos santos mistérios não é que tenham sucesso a
qualquer preço, mas sim que sejam considerados iéis (1Co 4.2).

Três perguntas

1) Já existiram pessoas de convicção calvinista que deixaram


oevangelismo de lado por crerem na doutrina da
eleição?
Sim, existiram e ainda existem! Não só pessoas, mas
igrejas inteiras! São os chamados hipercalvinistas. Aliás, é
sabido que William Carey, o pai das missões
modernas, encontrou barreiras para iniciar o seu ministério
exatamente em pessoas que tinham essa mentalidade. A
visão hipercalvinista é mais um entre os inúmeros exemplos
de como uma doutrina santapode ser desvirtuada e usada
para embasar erros terríveis. O fato de fazerem isso, porém,
não signi ica que a doutrina da eleição é má. Signi ica
apenas que o coração do homem é mau, sendo capaz
de realizar coisas perniciosase usar o ensino bíblico
como justi icativa (Jd 4).

2) Fazer apelos após o sermão é errado?


Se o apelodá a entender que a pessoa é salva
pelo gesto de levantar a mão ou de ir à frente,
então é errado, pois a salvação é unicamente
pela fé (Ef 2.8-9). Por isso, uma boa sugestão para quem
gostade fazer apelos é pedir que os incrédulos venham à
frente não para serem salvos, mas para que a igreja
ore por eles, suplicando que o Senhor lhes conceda a fé
(Hb 12.2).O pastor poderá dizer: “Se você não tem a
fé em Cristo, mas gostaria de ter e luta com esse
dilema, venha à frente para que a igreja ore por
você”. Há muitas pessoas nessasituação, lutando com
dúvidas e temores, percebendo que não conseguemcrer em
Cristo de fato (Mc 9.24). Essas pessoas, se atenderem o
convite aqui sugerido, saberão que não foram salvas ao ir
à frente, mas sim que se tornaram alvos das orações
da igreja para que o Senhor lhes abra o coração (At
16.14).

3) Com que intensidade o pregador deve insistir para


que alguémse converta?
Essas insistências, muitas vezes, partem da ideia (ou
dão a entender) que a pessoa tem de ir à frente
para ser salva. Por isso, “martelar” o convite porlongos
períodos pode ser mais prejudicial do que se imagina.
Também na esfera do evangelismo individual, a prática
de insistir ininterruptamente para que alguém creia em Cristo
é estranha ao modelo bíblico. O livro de Atos mostra
que os evangelistas apresentavam o evangelho com clareza e
até se envolviam em longos debates visando a convencer
as pessoas acerca da salvação em Cristo (At 6.9-10;
28.23). Porém, quando a inalos incrédulos diziam “não”à
mensagem,eles se dirigiama outros ouvintes (At 13.46;
28.24-29). Na verdade, os pregadores do NT apresentam o
evangelho a um mesmo grupo no máximo duas vezes!
Isso mostra que, quando há rejeição, ataque ou zombaria,
o evangelista deve interromper seu trabalho e buscar
outras pessoas (Mt 7.6).
Capítulo 5 – OS MEMBROS QUE VÊM E
VÃO

O meio evangélico de hoje revela uma ampla ausência de


qualquer noção de congregacionalidade. Isso acontece porque muitos
lıd́ eres eclesiásticos atuais de destaque desprezam o
congregacionalismo bıb́ lico – um modelo que realça a importância da
participação do povo santo nos rumos e decisões da igreja. O modelo
congregacional é claramente visto em textos como Mateus 18.17, Atos
6.2-3, 15.2 e 2Corıń tios 2.6. Porém, não levando em conta esse aspecto
da eclesiologia apostólica, vários movimentos (pseudo?) evangélicos
evitam formar uma comunidade eclesiástica local de inida, ixa, bem
identi icada e comprometida. Tudo que importa é apenas atrair
multidões variáveis, formadas por milhares de anônimos sem nenhum
vıń culo o icial com a igreja.
Muito diferente disso, o que se vê na Bíbliaé que as igrejas locais
são formadas por grupos certos e determinados em que cada
componente da comunidade cristã está conectado a ela de forma
intensa e responsável, participando ativamente da vida, dos problemas,
das escolhas, dos planos e dos destinos da igreja a que pertence.
Por isso, dada a importância da congregação na eclesiologia bıb́
lica, e considerando que a congregação é, obviamente, formada por
indivıd́ uos, toda igreja precisa de um rol de membros de inido. Isso
deixará claro quem de fato compõe a congregação local e desfruta,
assim, do precioso direito de participar das decisões e direções
eclesiásticas.
Neste Capítuloserão brevemente expostas as formas mais comuns
pelas quais um crente pode se tornar parte do rol de membros de uma
igreja local e também as maneiras como pode ser desligado.
Dá-se aqui especial realce à conversão como requisito essencial
para sua admissão e também se destaca a vida de santidade como fator
determinante da participação permanente de um membro da igreja na
comunhão dos santos.
Contudo, antes de tratar desses assuntos, é bom apontar quando
um crente pode solicitar desligamento da igreja a que pertence e o que
deve procurar na nova comunidade eclesiástica de que pretende ser
membro.

Quando, como e porque procurar uma nova igreja

Os “cristãos velhos”, ou seja, aqueles que não se deixaram levar


pelos vıć ios do evangelicalismo atual, não veem com bons olhos a
prática comum nos dias atuais de se mudar de igreja por qualquer
motivo ou sem nenhum critério. Os homens espirituais entendem que o
vıń culo existente entre o crente e sua igreja deve ser muito forte, de
modo que não é por qualquer razão que alguém pode abandonar a
congregação de que faz parte e se iliar a outra.
Com efeito, na Palavra de Deus é ensinado que a comunhão dos
crentes requer perseverança e grande esforço (At 2.42; Ef 4.3; Cl 3.13).
Não é, portanto, correta a mudança constante de uma igreja para outra
e muito menos o total abandono da comunhão com os crentes (Hb
10.25; 1Jo 1.7).
Nesse sentido, é interessante notar que mesmo quando Paulo
escreveu a igrejas marcadas por discórdias, imoralidades e
desregramentos, jamais ensinou que a solução para os descontentes
seria sair da igreja ou buscar a comunhão com outros irmãos. Ao
contrário, seu ensino sempre consistiu em exortar os crentes a buscar
soluções, a pensar concordemente (Fp 4.2-3 [veja tb. o ensino de Pedro
em 1Pe 3.8-9]), a aprender a vencer as contendas (1Co 6.7-8), a
extirpar o mal e a desordem de seu meio (1Co 5.1-5; 14.40), a manter a
paz, o amor e a unidade (2Co 13.11; Cl 3.12-16), permanecendo,
inalmente, unidos (1Co 1.10; Fp 2.2). E, pois, notável que o grande
apóstolo jamais orientou alguém a deixar sua igreja por mais
problemática que fosse.
Todavia, é claro que há razões mais do que justas para que
alguém queira se iliar a outra igreja. Uma delas é o fato de a igreja de
origem abandonar obstinadamente o ensino da doutrina bıb́ lica ou a
ênfase na pureza necessária em seu meio. Também o recebimento de
alimento espiritual fraco, dado por pregadores incorrigıv́eis e
negligentes no ensino, é motivo justo para alguém mudar de igreja.
Acontece também de uma famıĺ ia procurar outra igreja quando
percebe que aquela em que está tem estrutura irremediavelmente
frágil no que diz respeito ao trabalho com crianças, adolescentes ou
jovens. Nesses casos, os pais procuram uma comunidade em que seus
ilhos recebam instrução melhor por meio de programas e atividades
bem elaborados, próprios para a idade de cada um.
Como se pode deduzir do ensino bıb́ lico acima exposto, as razões
ora mencionadas não devem fazer com que os crentes corram afoitos
para outras igrejas sem tentar, por todos os meios lıć itos, mudar o
quadro difıć il instalado na comunidade em que cooperam.
Por isso, antes de se mudar pelos motivos mencionados, o crente
deve orar por sua igreja, tentar ajudar na correção dos erros, trabalhar
para que as coisas melhorem, apontar com amor e brandura os
problemas e as soluções que a Palavra de Deus ensina, en im, deve fazer
tudo para restaurar a igreja em que o Senhor o colocou, empenhandose
para fazer dela a melhor igreja jamais vista.
Só quando todas as suas tentativas forem infrutıf́eras, quando
perceber que não há mais o que fazer, quando tiver a consciência
tranquila por saber que trabalhou com todo o empenho para destruir o
erro e não logrou sucesso em suas justas e constantes tentativas é que
o crente deve mudar de igreja. Se em tais circunstâncias não o izer,
correrá o risco de se acostumar com o mal e desenvolver tolerância em
relação à heresia, ao pecado, à super icialidade e à desordem.
Deve icar claro, portanto, que o pular de igreja em igreja, sem
criar raıź es em nenhuma; o mudar-se porque teve problemas de
relacionamento facilmente solucionáveis; o insurgir-se contra os
irmãos ou contra os lıd́ eres, nutrindo mágoas e rancores no coração
que culminem num pedido de transferência; en im, a mudança de igreja
por motivos que podem ser relevados ou solucionados com um mıń
imo de disposição e humildade não pode ser aprovada pelo povo de
Deus, pois vai contra o ensino das Sagradas Escrituras, além de revelar
um vıń culo muito fraco entre o crente e a igreja em que o Senhor o
colocou, o que é sinal de imaturidade e falta de amor.
Assim, quando pessoas que revelam essas di iculdades
procurarem a igreja bıb́ lica interessadas em fazer parte de seu rol de
membros, esta, por meio de seu pastor e lıd́ eres, deverá orientá-las a
que retornem para sua igreja de origem e se empenhem em resolver as
tais di iculdades. Isso porque é notório que quem critica sua igreja e
depressa a abandona porque nela enfrenta problemas, também da sua
nova igreja sairá e a criticará tão logo ali encontre di iculdades que o
desagradem. E claro que crentes assim precisam não de uma igreja
nova, mas de uma mentalidade nova. E é isso o que a igreja verdadeira
deve oferecer a membros de outras comunidades que a procuram
nessas condições.
Finalmente, uma palavra de alerta precisa ser dita a quem sai em
busca de uma igreja a que possa se iliar. E preciso ter cuidado com a
tendência dos crentes modernos que, na escolha de uma igreja, não
levam em conta o que realmente é importante. E frequente os crentes
procurarem uma igreja que tenha belos espetáculos musicais durante
os cultos, bastante conforto e comodidade para desfrutar (boas
instalações, amplo estacionamento, bela decoração, etc.), e inúmeras
atividades sociais, como festas, retiros e passeios. Obviamente, tudo
isso tem certa importância. No entanto, esses elementos não podem
servir como fatores determinantes da igreja que se deve escolher.
O que é preciso procurar numa igreja é, basicamente, ensino bıb́
lico de qualidade, aplicação da disciplina eclesiástica e primor pela
ordem e pela decência. A igreja que não enfatiza essas coisas não
deve jamais atrair o crente, não importa quão espetaculares sejam
seus cultos, nem quanta comodidade ofereça, nem ainda quantas
festas, acampamentos ou atividades promova.
Isso porque o que deve atrair o crente a iliar-se a outra igreja é o
desejo de ser alimentado espiritualmente com o ensino sólido da
Palavra de Deus, dentro de um ambiente genuinamente cristão, em que
sua edi icação e a de sua famıĺ ia sejam promovidas com alegria e paz
entre pessoas que, com coração puro, invocam ao Senhor (2Tm 2.22).
Os membros que chegam

Geralmente, quatro são os meios pelos quais alguém se torna


membro de uma igreja evangélica, a saber: carta de transferência,
batismo, aclamação e reconciliação.
A carta de transferência é usada quando um crente que faz
parte de determinada igreja manifesta o desejo de ser membro de
outra da mesma denominação.
Em linhas gerais, funciona assim: a pedido do candidato à
membrezia, uma determinada igreja reunida em assembleia ou na
igura de seu conselho (dependendo da forma de governo que adota),
decide solicitar à igreja de onde ele procede uma carta da qual conste
que nenhuma pendência existe em sua vida que o impeça de fazer parte
da igreja que o está recebendo.
Em seguida, a igreja solicitada, também após a aprovação da
assembleia ou voto favorável do conselho, envia a carta requerida,
tomando ciência de que o irmão em pauta está se desligando de seu rol
de membros e fornecendo as informações solicitadas. No momento em
que essa carta é formalmente lida diante da igreja solicitante ou do seu
conselho de lıd́ eres, não constando nenhum impedimento, o candidato
passa a integrar o seu rol de membros.
Esse método, com ligeiras variações, é o mais usado pelas
principais denominações históricas, na sua forma de administrar o
trânsito de membros entre suas próprias congregações. Quando o
candidato à membrezia provém de outra denominação igualmente bıb́
lica, o documento que algumas vezes é solicitado por essas igrejas é a
carta de referência ou de apresentação.
A segunda forma de recebimento de membros é o batismo. Os que
se tornam membros por essa via são geralmente crentes novos,
pessoas que conheceram a Cristo em data recente.
E recomendável que esses irmãos, antes de serem batizados,
frequentem uma classe preparatória e, somente ao inal de um perıó do
indeterminado de ensino cristão básico, façam pro issão de fé diante da
igreja e sejam batizados, passando a integrar o rol de membros.
E verdade que, no Novo Testamento, o batismo era realizado tão
logo a pessoa se convertesse (At 2.41; 8.38; 9.18, etc.). Contudo, isso
ocorria porque, em geral, os convertidos, sendo em grande parte judeus
ou pessoas familiarizadas com a fé judaica, eram dotados de um grau
de conhecimento bıb́ lico que tornava desnecessária qualquer
preparação prévia. Com o tempo, porém, essa realidade mudou e os
pastores viram a necessidade de conscientizar melhor os novos
convertidos acerca dos pontos essenciais do cristianismo, antes de os
receberam em suas congregações como membros.
A aclamação é o meio de aceitação de um novo membro pela
simples aprovação da assembleia ou do conselho da igreja (nesse caso,
é mais propriamente chamada de recebimento ex of icio), sem
necessidade de nenhuma outra formalidade. Ocorre quando, depois de
conhecer por algum tempo o candidato, a igreja ou seu conselho, dando
crédito ao testemunho dele de conversão e batismo, aprova a sua
inclusão em seu rol de membros.
Uma pessoa também pode se tornar membro de uma igreja
verdadeira mediante pedido de reconciliação. Esse método deve ser
utilizado exclusivamente quando o candidato foi excluıd́ o de sua igreja
de origem por causa de pecado obstinado.
Evidentemente, o requisito fundamental para que alguém seja
aceito na igreja mediante pedido de reconciliação é o arrependimento.
Este, é claro, deverá vir acompanhado de evidências de sua
veracidade. Tanto que, quando possıv́el, é útil exigir que o solicitante
procure a igreja à qual ofendeu e lhe peça perdão humildemente, antes
de ser o icialmente integrado na nova comunidade que está
frequentando.
A aceitação de alguém mediante pedido de reconciliação deve ser
precedida de muito cuidado. Do contrário, corre-se o risco de dar
oportunidade para que pessoas rebeldes, expulsas de suas igrejas, se
refugiem atrás de outras trazendo consigo pecados horrıv́eis que
depressa contaminarão a igreja descuidada (1Co 5.6), causando
prejuıź os, tristezas, sofrimentos e vergonha para todos.

O requisito essencial

Seja qual for o método mediante o qual alguém se torne membro


de uma igreja verdadeira, deve-se exigir de todos os candidatos um
requisito essencial sem o qual ninguém poderá sequer sonhar em fazer
parte da igreja de Deus: ser realmente crente em Jesus Cristo.
Por isso, quando uma pessoa diz que quer ser incluıd́ a no rol de
membros de determinada igreja local, a primeira pergunta a ser feita é:
“Como foi a sua conversão?”. Com essa pergunta, espera-se que o
candidato conte como e quando se rendeu aos pés de Cristo, crendo
nele a ponto de recebê-lo como único e su iciente Salvador (Jo 1.12).
Se o indivıd́ uo que quer ser membro da igreja nunca reconheceu
que é pecador (Rm 3.23), nunca aprendeu que Cristo morreu pelos
pecados e ressuscitou ao terceiro dia a im de justi icar os pecadores
diante de Deus (Rm 4.25; 5.1,8), nunca se curvou aos pés de Cristo,
crendo nele como Salvador (Mt 11.28-30; Jo 6.37), en im, nunca
“nasceu de novo” (Jo 3.3 cf. 2Co 5.17), esse indivıd́ uo não deve ser
recebido de modo nenhum como membro até que, pela fé em Jesus (Jo
3.16, 36), seja feito nova criatura.
Ser portador de cartas de transferência ou de referência emitidas
por outras igrejas, pertencer a famıĺ ias tradicionalmente evangélicas,
frequentar assiduamente os cultos, nutrir amizade com os lıd́ eres
eclesiásticos... nada disso substituirá o requisito essencial para se
tornar membro da igreja, isto é, a conversão.
Por isso, em conversa particular com o interessado a ingressar
na igreja, o pastor deve sempre perguntar acerca de sua conversão e,
veri icando pelo testemunho dado os sinais do novo nascimento, deve
aconselhar o candidato a frequentar os cultos, a participar da classe de
novos membros (especialmente se será recebido por meio do batismo)
e a cultivar amizades durante alguns meses, ao cabo dos quais será
conhecido por quase todos e também conhecerá melhor a igreja à qual
deseja pertencer.
Somente depois disso, as medidas práticas para o efetivo
arrolamento do candidato, tais como cartas, entrevistas e pro issões de
fé, poderão ser tomadas.

A saída da igreja por vias administrativas

O desligamento de um membro da igreja por vias meramente


administrativas pode ocorrer de duas maneiras: pedido de carta de
transferência e desligamento direto.
Conforme visto, quando um membro de determinada igreja
manifesta o desejo de pertencer a outra da mesma denominação, o
instrumento pelo qual se realiza essa mudança é a carta de
transferência. O interessado dirige o pedido à igreja a que quer
pertencer e esta formaliza o pedido à igreja de onde o crente procede.
Se for aprovado, a igreja solicitada emite uma carta à igreja solicitante
concedendo a transferência.
A rigor, no exato momento em que a referida igreja, por
intermédio da assembleia ou do conselho que a representa, aprova a
concessão da carta, o membro interessado na transferência deixa de
pertencer ao seu rol. Logo, não é necessária a chegada da carta à igreja
solicitante para que o membro deixe de fazer parte do rol da igreja
solicitada. Para tanto, basta que esta aprove a concessão da carta.
Assim, o perıó do em que a carta está em trânsito constitui um
interregno em que o membro não pertence nem à igreja solicitada (pois
o seu pedido de transferência já foi deferido), nem à igreja que pediu
sua carta (pois a carta que concede a transferência ainda não chegou a
ela).
O desligamento direto, por sua vez, é um procedimento muito
simples. Nesse modelo, o nome de um membro da igreja é tirado do rol
de maneira imediata, logo após a aprovação da igreja em assembleia ou
em reunião de lıd́ eres, no caso das igrejas que conferem essa
prerrogativa a um conselho.
Esse método é usado geralmente quando um membro de
determinada igreja ilia-se a outra de diferente denominação, ou
quando um membro confessa que nunca foi de fato crente em Cristo (a
exclusão por motivos disciplinares não é cabıv́el aqui, pois a disciplina
bıb́ lica, como se verá, só pode ser aplicada a crentes), ou ainda quando
abandona a comunhão com os irmãos por ter mudado de residência,
indo morar em local distante e incerto, tornando o contato impossıv́ el.
Em suma, sempre que o caso não trouxer os contornos que
tornem possıv́el a transferência mediante carta ou a exclusão por
razões disciplinares (conforme exposta a seguir), o meio de remoção de
um membro será o desligamento direto.

A disciplina eclesiástica

A exclusão por razões disciplinares (ou excomunhão, isto é, a


remoção de alguém da comunhão) é a forma mais dolorosa de
desligamento de um membro. De acordo com as Escrituras, essa severa
medida só se aplica nos casos de pecado obstinado, quando todas as
tentativas de recuperar o ofensor forem infrutıf́eras.
Desse modo, ninguém na igreja de Deus pode ser excluıd́ o por
adultério, fornicação, mau testemunho ou homossexualismo. Não são
esses pecados em si que levam à exclusão, mas sim a prática obstinada
desses ou de qualquer outro pecado. Assim, a obstinação é a
única causa de exclusão disciplinar. Só a postura rebelde,
orgulhosa e contumaz levará a igreja a agir com mão forte e amputar o
membro que, gangrenado pela prática insistente do mal, põe em risco a
saúde de todo o corpo (1Co 5.6-7).
Portanto, se alguém praticar qualquer pecado,
independentemente da gravidade, e em seguida demonstrar real
arrependimento, o desligamento não poderá ocorrer. Por outro lado,
mesmo os pecados que causem menor comoção, como desobediência
aos pais, má administração do dinheiro ou maledicência, poderão dar
causa a medidas disciplinares se aqueles que os praticarem se
revelarem obstinados, não aceitando a correção.
Isso é assim porque, na Bíblia, a rebelião e a obstinação são
comparadas respectivamente à feitiçaria e à idolatria (1Sm 15.23). Fica,
portanto, fácil entender porque a igreja não pode tolerar esses pecados,
seja qual for a maneira que se expressem.
O processo que culmina na aplicação da medida disciplinar é
lento. Baseia-se em Mateus 18.15-17. Nesse texto é dito que, ao se
tomar conhecimento de pecado na vida de um irmão, é necessário
admoestá-lo individualmente. Se a postura desse irmão não for de
arrependimento, deve-se levar mais dois ou três até ele a im de que o
admoestem. Se o trabalho do grupo for infrutıf́ero, o caso deve ser
levado à igreja não para exclusão, mas para que todos os irmãos
admoestem o pecador impenitente, tentando convencê-lo da
necessidade do arrependimento. Se também nessa etapa do processo o
arrependimento não ocorrer, procede-se à exclusão.
E recomendável que a medida seja aplicada em reunião
especialmente convocada para esse im. Tudo deve ser feito a portas
fechadas, presentes apenas os membros da igreja. No inıć io da reunião,
o pastor ou lıd́ er apresentará um relatório de todo o processo
mostrando que, biblicamente, a medida a ser tomada agora é a
“amputação”. Os membros da igreja deverão ter oportunidade de se
manifestar, apresentando suas dúvidas ou enriquecendo o relatório
dado com testemunhos pessoais.
Em seguida, a igreja unânime, convencida de que a exclusão é,
infelizmente, o único caminho a seguir, declarará removido o membro
rebelde da comunhão com o corpo de Cristo representado pela igreja
ali reunida e pedirá ao Senhor que o trate como alguém fora do convıv́
io dos santos (Mt 18.17), preso ao seu pecado (Mt 18.18) e sob a severa
disciplina de Deus (Hb 10.26-31). Esse pedido corresponde ao
“entregar a Satanás” de que Paulo fala em 1Corıń tios 5.5 e 1Timóteo
1.20.
Depois que esse ato for realizado pela igreja, o crente rebelde se
verá lançado novamente aos domıń ios de Satanás. Espera-se assim
que, experimentando as mais terrıv́eis agruras espirituais e até fıś icas,
ele se arrependa e se volte humildemente para Cristo e sua igreja,
suplicando perdão e acolhida.
Deve-se observar que, em reunião especialmente convocada para
aplicação da disciplina bıb́ lica, não há votação. Isso porque não
cabe à igreja decidir se deve ou não fazer o que Cristo ordena em
Mateus 18.15-17.
O que pode ocorrer é o consenso de que a medida deve ser
aplicada mais tarde, a im de que o impenitente tenha mais tempo para
considerar sua situação e os irmãos que ainda não o izeram tenham
oportunidade de admoestá-lo antes da exclusão, já que, depois dela,
todas as relações com o crente rebelde deverão ser cortadas, conforme
será visto a seguir. Essas decisões protelatórias poderão ocorrer com
relativa frequência, e a igreja deve cuidar para que o constante
adiamento não perpetue o mal em seu seio.
Após a reunião disciplinar, o membro excluıd́ o será desligado do
rol de membros na assembleia ordinária que sobrevier. Esta será uma
simples medida administrativa, tendo por propósito cumprir mera
formalidade, pois não fará sentido manter no rol de membros o nome
de alguém que foi desligado por razões disciplinares.
Como já foi dito, o processo que culmina na exclusão por razões
disciplinares é lento. Em muitos casos se arrasta por meses a io. Isso
porque, antes de se tomar medida tão séria, é fundamental que a igreja
esteja convicta de que fez todo o possıv́el para recuperar o irmão caıd́
o.
Há casos especiais, porém, em que a exclusão por razões
disciplinares segue um rito sumário. Isso ocorre quando o membro está
vivendo em pecado sem a menor discrição, apresentando-se em sua
conduta vil diante de toda a sociedade, sem demonstrar nenhum
constrangimento por isso.
E o caso, por exemplo, do crente que abandona a esposa e vai
morar com a amante, passando a andar com ela pelas ruas e
apresentando-a às pessoas com toda a naturalidade. Em casos como
esse, a obstinação é veri icada de pronto e a igreja não
poderá se demorar em aplicar a medida de exclusão, pois o nome do
evangelho estará sendo publicamente manchado. Algo, portanto,
deverá ser feito de imediato.
E nessas ocasiões que, em vez de adotar o modelo descrito em
Mateus 18.15-17, aplica-se o processo descrito em 1Corıń tios 5.1-5, em
que Paulo trata de um pecado chocante que era de conhecimento
público. O processo consistirá em apresentar o problema diretamente à
igreja que, sem mais delongas, munida de provas incontestáveis,
realizará a imediata “amputação”.
Há outra hipótese em que os passos de Mateus 18 podem ser
substituıd́ os por outro procedimento. Trata-se dos casos de pecados
cometidos por grupos da igreja.
Nessas ocasiões, ica difıć il para o membro que toma
conhecimento do problema procurar cada indivıd́ uo em particular e
dar o primeiro passo no processo de recuperação. Aliás, muitas vezes, o
crente que ica sabendo de problemas assim sequer tem estrutura
emocional para confrontar cada membro do grupo.
Por isso, ocorrendo essa hipótese, recomenda-se seguir o
procedimento mencionado em 1Corıń tios 1.11. Nesse texto é dito que
os “da casa de Cloe”, ao perceber a conduta errada de certos grupos da
igreja de Corinto, comunicaram o problema diretamente a Paulo, que
passou a tratar do assunto. Esse exemplo mostra que é possıv́el o
crente que sabe do pecado conjunto de seus irmãos procurar o lı d́ er da
igreja e lhe transferir o dever de confrontar os que se têm associado
para agir de modo reprovável e vergonhoso.
A aplicação da disciplina bıb́ lica suscita uma importante questão:
como devem os crentes se relacionar com o membro excluıd́ o por
razões disciplinares? O ensino neotestamentário mostra que a
disciplina consiste em abandono e afastamento. O membro excluıd́ o,
conforme o ensino de Jesus e de Paulo, deve ser cortado da esfera de
relacionamentos e dos cıŕculos de amizade dos cristãos (Mt 18.17; Rm
16.17; 1Co 5.11; 2Ts 3.6).
Observe-se que essa é a essência da punição eclesiástica, capaz de
fazer o crente rebelde sentir, em alguma medida, o gosto amargo do seu
castigo. Na verdade, sem isso, a exclusão não fará o menor sentido,
tornando-se apenas a remoção de um nome da lista de membros da
igreja.
Em vista disso, na igreja de Deus, quando alguém chega ao
extremo de ser excluıd́ o por razões disciplinares, todos os irmãos são
orientados a se afastar dele. Espera-se, então, que, ao sentir a perda da
comunhão com a igreja, o pecador rebelde, que não pôde ser levado ao
arrependimento pelas constantes e pacientes admoestações de todos, o
seja pela disciplina dolorosa sentida quando é tratado como “gentio e
publicano” (Mt 18.17).
Note-se que o irmão que não segue essa orientação e continua a
se relacionar normalmente com o excluıd́ o frustra o propósito da
disciplina e torna-se empecilho para a recuperação do ofensor, uma vez
que abranda o peso da medida, além de demonstrar completo
desrespeito às orientações bıb́ licas e às decisões da igreja.
A história eclesiástica mostra que esse procedimento, ensinado
pelo apóstolo Paulo, foi precisamente o adotado na igreja antiga.
Edward Gibbon (1737-1794), ao escrever sobre a disciplina na igreja
dos primeiros séculos, diz:

Os cristãos contra os quais ela tivesse


sido lançada se viam privados de participar
das oblações dos iéis. Dissolviam-se os
vínculos de amizade quer religiosa, quer
pessoal; ele se tornava objeto profano de
aversão por parte das pessoas às quais mais
estimava ou pelas quais houvesse sido mais
ternamente amado; e na medida em
que uma expulsão do seio de uma sociedade
pudesse imprimir-lhe no caráter um
sentimentode desonra, as pessoas em
geral o
[60]
evitavam ou o encaravamsuspeitosamente.

Uma das mais claras evidências de que a descrição de Gibbon é


exata pode ser colhida no sermão Contra os Espetáculos,
pronunciado por João Crisóstomo (c. 354-407). Nesse sermão, o grande
pregador, ao falar sobre a hipótese de alguns crentes serem excluıd́ os
da comunhão, orienta sua igreja nos seguintes termos:

Sejam expulsas, pois, tais pessoas, a im


de que os sãos tenham saúde mais
robusta ainda e os doentes se
restabeleçam de sua grave moléstia… Portanto,
quemquiser continuar na vida impura não
entre na igreja, mas seja censurado por
vós… Fazei assim, não converseis com tal pessoa,
não a recebais em casa, não comais com
ela, evitaisua companhia nas viagens, passeios
e negócios. Destamaneira
[61]
será reconquistada com facilidade.

Há quem diga que tal procedimento, mesmo tendo sido ensinado
por Jesus e por Paulo, não revela amor (!), pois os membros caıd́ os,
dizem, precisam ser buscados, não abandonados.
Deve-se, porém, lembrar de que antes da exclusão, essas pessoas
são persistentemente buscadas e só se tornam objeto da disciplina
quando se revelam inamovıv́eis em sua decisão de não dar ouvidos às
palavras de exortação e sabedoria que lhes são dirigidas.
Essa atitude obstinada mostra que tais pessoas não querem de
modo nenhum abandonar os seus pecados. E só quando se veri ica esse
estado de coisas que a dura disciplina bıb́ lica é aplicada. Se não for, o
amor e a paciência se transformarão em tolerância para com o pecado e
o Senhor Jesus Cristo repreenderá a igreja, acusando-a de abrigar
passivamente o mal em seu seio (Ap 2.20).
Por isso, o povo de Deus deve evitar que a pureza da igreja seja
sacri icada com o argumento aparentemente piedoso de que é preciso
ter mais amor. Ademais, deve ser reconhecido que a disciplina
eclesiástica não é um im em si, mas é, na verdade, um meio empregado
para recuperar o pecador obstinado. Trata-se, assim, de um ato de
amor, pois quem ama, corrige; quem ama às vezes precisa ferir (Pv
27.6). O próprio Deus age assim com seu povo (Hb 12. 4-11).
Outro fator a se considerar com seriedade é que a disciplina
eclesiástica é, acima de tudo, uma forma de sobrevivência! Isso porque
é por meio dela que a igreja se livra do fermento do mal que fatalmente
leveda a massa toda, caso não seja removido (1Co 5.6-7). Além disso, é
preciso destacar que a disciplina também tem efeito preventivo, já que
incute um temor salutar nos demais crentes, fazendo-os ser mais
cuidadosos e vigilantes em seu proceder (At 5.11).
Por tudo isso, feliz será a igreja que zelar pela disciplina em seu
meio. Aliás, é precisamente o desmazelo nesse campo que tem gerado
tantas tristezas e dissabores dentro das comunidades eclesiásticas,
além de inúmeros escândalos.
Antes de encerrar este assunto, uma palavra precisa ser dita
quanto a um instrumento de desligamento muito usado por aqueles
que querem viver no pecado sem enfrentar os incômodos da disciplina
bíblica Trata-se da “carta de pedido de exclusão”. Como se pode
deduzir do próprio nome, essa carta é escrita e assinada pelo membro
da igreja interessado em seu próprio desligamento. Nela, o referido
membro pede para ser excluıd́ o alegando motivos particulares ou
razões pessoais.
Quando perceber que uma carta desse tipo tem como alvo driblar
a disciplina bıb́ lica, a igreja zelosa não poderá aceitá-la. Se o izer, será
conivente com os membros que buscam subterfúgios para se ver livres
da maneira que a Bíbliaensina tratar o pecado.
Dúvidas comuns

1) O batismo realizado em seitas podeser


reconhecido comoválido no recebimento de um
novomembro?
Os batismos realizados nas seitas geralmente são
rituais supersticiosos de puri icação ou formas de se
obter a salvação. Algumas seitas não batizam em
nomedo Deus Trinoe há ainda aquelas, geralmente
do meio neopentecostal, que ensinam que o batismo é
uma forma de se conquistar sucesso, curase bênçãos
especiais. Por tudo isso, os batismos realizados nas
seitas não são batismos bíblicos e verdadeiramente
cristãos. Assim, não podem ser aceitos como válidos.

2) O terceiro passo do processo disciplinar


descrito em Mateus 18 (“leva-o à igreja”) di
icilmente podeser dado, pois os crentes obstinados,
muitas vezes, se recusam a ir à igreja.
Como fazer, então?
Muito simples. Se o crente em pecado se
recusa a comparecer diante da igreja para ser
admoestado e, en im, conduzido ao arrependimento, ica
de pronto caracterizado o fato de ele “se recusar
ouvir também a igreja”. Nesse caso, o terceiro passoserá
considerado superado e a exclusão será aplicada.

3) Como agir no caso do membro da igreja que


sempre searrepende quando é admoestado
pelos irmãos, mas nunca muda de initivamente
de vida?
O nomedado a isso é “arrependimento icto”. Essa
forma de arrependimento é apenas um subterfúgio
que algumas pessoas adotam para tentar se livrarda
disciplina. Na verdade o arrependimento icto é uma
forma branda e disfarçada de obstinação que, se for
tolerada, perpetuará o pecado na igreja. Por isso,
percebendo sua ocorrência,a igreja não deve se deixar
enganar, mas sim dar sequência normal ao processo
disciplinar.

4) Como cortar a comunhão com um crente


disciplinado, quandoesse crente é da própria
família (cônjuge, pai, ilho, irmão, etc.)?
Não há previsão bíblica para essa hipótese. Obviamente,
não haverá como cortar totalmente o contato com
alguém da família imediata e o tratamento amigo,
simpático, respeitoso e amoroso deve permanecer dentro do
lar mesmo no trato com o parente que foi
disciplinado pela igreja.Contudo, uma boa sugestão é os
membros da família fazerem o excluído sentir seu
abandono pelo menos no âmbito espiritual. Isso eles farão
interrompendo as admoestações bíblicas que antes lhe
dirigiam, parando de convidá-lo para ir à igreja,
deixando-o fora dos cultos domésticos e das conversas
relacionadas à igreja e à fé, en im, cortando-
o de tudo que se relaciona à vida com Deus. Agindo
assim o parente excluído perceberá que, mesmo morando
na casa de pessoas crentes, não desfruta mais dos
privilégios da comunidade da fé e ali também é
tratado como gentio e publicano. A dor que isso
causará no cristão verdadeiro que está em disciplina o
fará abandonar depressa a vida de pecado.

5) O que fazerquando um membro da igreja, ao


longo do processodisciplinar, confessa que não é
crente?
A disciplina é para alguém que, “dizendo-se irmão”,
vive no pecado (1Co 5.11). Se um membro da igreja
diz que não é crente, não é possível que a igreja
o entregue a Satanás”(1Co 5.3-5), pois não há
como colocá-lo nas mãos de quemele nunca deixou de
estar. Por isso, no caso de membros que confessam ser
incrédulos, a igreja deverá apenas removê-los do rol
de membros numa assembleia administrativa comum. Se
o ex-membro quiser continuar a vir à igreja, é
até possível permitir, icando os líderes atentos ao
perigo de sua in luência. Se perceberem que sua
presença ali está sendo danosa, então poderão
proibir sua entrada.

6) É possível impedir que um membro disciplinado


entre na igrejae participe dos cultos?
É claro que sim. A igreja realiza cultos abertos
ao público, mas ela não é uma entidade pública, nem
seus imóveis são públicos. Em vez disso,sob o ponto de
vista legal, a igreja é uma pessoa jurídica de
direito privado. Por isso, pode gerir o ingresso às suas
propriedades como bem lhe parecer. Assim, se seus membros
e administradores entenderem que devem limitar o
acesso às suas dependências, proibindo que alguém
entre, poderão fazêlo livremente,desdeque as causas
dessarestrição não sejam ilegais ou criminosas.

7) Quando a disciplina acaba?


A disciplina não tem um tempo de inido de duração.
Ela acaba quando ocorre o arrependimento. Se o
arrependimento nunca ocorrer, a disciplina perdurará inde
inidamente. Caso, porém, o crente excluído se
arrependa, deverá comunicar isso à igreja, pedir perdão
por tê-la ferido e desprezado e suplicar sua
readmissão. A igreja então, deverá perdoar o
suplicante imediatamente e a disciplina, tendo alcançado
seu objetivo, terminará (2Co 2.5-8).
Capítulo 6 – OS DEVERES DOS
MEMBROS DA IGREJA LOCAL

Após seu ingresso numa igreja bıb́ lica, o crente passa a ter certos
deveres e obrigações diante da irmandade. Isso é tão claro no Novo
Testamento que é de surpreender que, nos tempos atuais, esse aspecto
do ensino apostólico seja tão negligenciado.
Na verdade, a impressão que se tem nos dias de hoje é que o
envolvimento do crente com a igreja de que é membro é meramente
opcional, sendo o bastante que compareça aos cultos eventualmente.
E claro que todo trabalho e compromisso assumido por um crente
diante de sua igreja é voluntário. Porém, os cristãos que conhecem o
ensino bıb́ lico sabem que essa voluntariedade é a voluntariedade de
um servo, ou seja, é a voluntariedade de quem disse: “Sou um discıṕ ulo
e servo de Cristo e estou comprometido com sua causa nesta igreja de
que faço parte”. E, pois, essa “livre obrigação” que deve mover o crente
na direção de um envolvimento mais intenso no dia a dia da igreja,
fazendo disso um dos aspectos prioritários da sua vida.
E pelo fato de muitos crentes não entenderem essas verdades que
os dias modernos viram o surgimento de uma geração de discıṕ ulos
sem compromisso algum com a igreja, distantes da sua realidade,
ignorantes quanto às suas particularidades e apáticos diante de seus
problemas, lutas e ideais.
Sem dúvida, toda essa situação precisa mudar para que a presente
geração cause um impacto maior na história e deixe um legado mais
rico para os que estão por vir. Para que isso aconteça, é necessário que
os discıṕ ulos de Cristo ouçam a voz da Bíbliae aprendam dela como
deve ser sua participação na comunidade da fé.
Ora, o crente que se empenhar nesse sentido descobrirá que suas
responsabilidades junto à igreja podem ser resumidas em três
palavras: comunhão, cooperação e contribuição. Ele também se
surpreenderá ao perceber que sobre o cristão pesam sérios deveres em
relação aos seus pastores, conforme será visto neste capıt́ ulo.
A comunhão

Por comunhão entende-se a convivência amorosa, pacı́ ica, pura e


produtiva que deve marcar todo ajuntamento cristão. Sendo, a princıṕ
io, amorosa e pacı́ ica, a comunhão cristã revela o sentido da
verdadeira unidade e, com isso, mostra ao mundo que a igreja é uma
autêntica comunidade de discıṕ ulos de Jesus (Jo 13.35).
Como isso ocorre? E simples: a unidade que caracteriza o convıv́
io cristão revela que os membros da igreja estão nutrindo “o mesmo
sentimento que houve também em Cristo Jesus” (Fp 2.5), provando,
assim, que são seus verdadeiros seguidores.
O texto que mais ajuda na compreensão disso é Filipenses 2.1-8,
passagem que trata do que os teólogos chamam de “esvaziamento”
(kenosis) de Cristo. Nesse texto, Paulo ensina que o Senhor não se
apegou aos magnı́ icos privilégios que tinha antes de se encarnar. Em
vez disso, se “esvaziou”, ou seja, deixou para trás o esplendor da sua
glória, fez-se homem, assumiu a forma de servo e humilhou-se até a
morte de cruz (v. 5-8)!
Observe-se que essa passagem, talvez a mais rica da Carta aos
Filipenses em termos de conteúdo doutrinário, foi escrita por Paulo
precisamente com a inalidade de ilustrar como deve ser a disposição do
coração dos crentes no convıv́ io entre si.
De fato, após ensinar que os ilipenses deveriam ter seu
ajuntamento marcado por amor, compaixão, unidade, humildade e
desprendimento (vv. 1-4), o apóstolo resumiu todos esses itens num
exemplo magnı́ ico, apontando para o autoesvaziamento do Senhor. E,
pois, como se dissesse: “Irmãos, sejam amorosos e humildes no seu
convıv́ io, ou seja, imitem o Senhor. Assim como ele se esvaziou por
amor de nós, abrindo mão de sua glória real, esvaziem-se vocês
também no trato de uns com os outros, abrindo mão de sua glória
imaginária.”
Assim, a base do apelo à comunhão cristã amorosa não é o
simples anelo pela paz social (presente até nos incrédulos), mas sim a
cristologia ortodoxa que destaca a disposição humilde do Filho de
Deus, apontando-a como modelo a ser seguido pelos discıṕ ulos no
cultivo do relacionamento que têm entre si.
Negligenciar, pois, essa santa comunhão, ou militar contra ela, é,
em último caso, desprezar o exemplo dado por Cristo em sua
encarnação, humilhação e morte.
A comunhão cristã, além de amorosa e pacı́ ica, também deve ser
produtiva. Não basta ao membro da igreja ser apenas um “cara legal”,
um amigo bonzinho que nunca se indispõe com os outros. Mais do que
isso, sua aproximação dos irmãos deve também promover crescimento,
consolo e correção.
No fundamento desse ensino está, por exemplo, a ordem de Jesus
dirigida a Pedro: “E quando você se converter, fortaleça os seus irmãos”
(Lc 22.32), mostrando que a restauração da comunhão com Deus deve
ser seguida de trabalho em prol da saúde espiritual da igreja.
Há também a verdade ilustrada por Paulo na igura da igreja como
organismo vivo, no qual cada crente deve atuar como membro singular,
usando seus dons e desempenhando suas funções em favor do
crescimento do todo (Rm 12.3-8; 1Co 12.12-31; Ef 4.1-16).
Finalmente, existe a irme exortação dirigida aos cristãos hebreus,
ordenando que eles não deixem de se congregar. O que chama a
atenção nessa ordem é que o autor bıb́ lico não diz que a conduta
oposta ao abandono da congregação é apenas voltar a reunir-se. Em vez
disso, ele diz: “... mas procuremos encorajar-nos uns aos outros...” (Hb
10.25), dando a entender que o contrário de abandonar a igreja é mais
do que frequentá-la. E frequentá-la realizando um trabalho de
aconselhamento, correção, admoestação e consolo.

A cooperação
Cooperação é o termo usado para referir o trabalho conjunto.
Cooperar, pois, com alguém é labutar ao seu lado, empenhando-se por
alcançar seus mesmos objetivos. Assim, quando se diz que o crente
deve cooperar com sua igreja, isso signi ica que ele deve empreender
esforços ao lado de seus irmãos para fazer com que a comunidade
eclesiástica de que faz parte realize seus ideais da maneira mais célere
e da melhor forma possıv́el.
Quais seriam os ideais da igreja pelos quais os seus membros
deveriam juntos lutar? O Novo Testamento aponta pelo menos três: a
promoção e defesa da fé evangélica; a edi icação do corpo de Cristo; e a
pureza da comunidade dos santos.
Que os crentes devem trabalhar unidos pela promoção e defesa
da fé cristã está claro na expectativa de Paulo em relação aos irmãos de
Filipos, sobre quem ele anelava ouvir que permaneciam “ irmes num só
espıŕ ito, lutando unânimes pela fé evangélica” (Fp 1.27).
Quanto ao empenho conjunto visando à edi icação do corpo de
Cristo, sua base mais nıt́ ida encontra-se em Efésios 4.16, o qual diz que
o corpo de Cristo, isto é, a igreja, edi ica-se em amor, “segundo a justa
cooperação de cada parte”. Aliás, conforme foi destacado no subtıt́ ulo
anterior, esse deve ser um dos objetivos da comunhão cristã
verdadeira.
Já no tocante à cooperação dos crentes entre si tendo em vista a
pureza da igreja, o fundamento desse ideal pode ser veri icado em
1Corıń tios 5.7, texto em que Paulo ordena que a igreja como um todo
tome sobre si a tarefa de lançar fora o velho fermento do pecado.
Notese que os corıń tios deveriam fazer isso quando estivessem
reunidos (1Co 5.4), de maneira que o trabalho de puri icação da igreja
fosse coletivo.
Na prática, a colaboração do crente na busca desses alvos tão
importantes do povo de Deus pode assumir os mais diferentes
contornos. Ministrar uma aula ou apagar uma lousa para que essa
mesma aula possa ser ministrada são igualmente formas de cooperar
com o ideal de defesa e expansão da fé. De forma semelhante, o irmão
que recebe com simpatia um visitante e o irmão que varre o salão de
cultos onde esse mesmo visitante é recebido estão cooperando com o
ideal sagrado de promover a verdade que liberta. Também o crente que
exorta um irmão em particular dentro de uma sala e o crente que troca
a lâmpada queimada dessa mesma sala em que a exortação é feita
laboram lado a lado em prol da pureza da igreja, sendo colegas de
serviço no Reino, desfrutando do mesmo status diante do Senhor para
quem trabalham.
Infelizmente, porém, o quadro evangélico atual mostra um grande
distanciamento dessa visão. De fato, poucos crentes cooperam com
intensa dedicação na realização dos alvos santos da igreja, sendo
imenso o número de membros de comunidades locais que não fazem
absolutamente nada, mantendo-se distantes e apáticos, muitas vezes
até murmurando contra quem obedece a ordem bıb́ lica de cooperar.
Crentes assim devem avaliar onde realmente está seu coração e
trazer à superfıć ie de sua memória o ensino de Paulo acerca do alvo
sublime que devem perseguir nesta vida, conforme registrado em
2Corıń tios 5.15: “E ele morreu por todos para que aqueles que vivem já
não vivam mais para si mesmos, mas para aquele que por eles morreu e
ressuscitou”.

A contribuição

Uma forma branda de legalismo controla a prática de muitas


igrejas evangélicas. Esse legalismo leve se expressa especialmente na
obrigação imposta aos crentes de “pagar” o dıź imo, tomando como
base a Lei Mosaica.
De fato, a Lei de Moisés exigia que os israelitas entregassem o
dıź imo de tudo ao Senhor (Lv 27.30-32; Dt 14.22-26; Hb 7.5), sendo
certo que nos dias de Jesus essa norma ainda vigorava, já que ele
nasceu sob a Lei (Gl 4.4) e, por isso, até aprovou a obediência a essa
regra (Mt 23.23).
Porém, com a morte do Senhor, uma nova fase começou. A Nova
Aliança, diferente da mosaica, apontando Cristo como o novo sumo
sacerdote diante de Deus, trouxe mudança de lei (Hb 7.12), livrando o
crente das exigências do código imposto a Israel no deserto (2Co 3.711;
Gl 3.19, 23-25; Ef 2.14-15; Cl 2.13-14; Hb 7.18-19; 8.6-7,13).
Isso faz, entre outras coisas, com que os dıź imos dos cristãos
sejam semelhantes aos de Abraão e Jacó, homens que viveram antes da
entrega da Lei a Moisés e que, assim, deram seus dıź imos não por
obrigação legal, mas voluntariamente, como demonstrações de
gratidão, compromisso e devoção (Gn 14.20; 28.22).
Com efeito, sob a Nova Aliança, o crente é estimulado pelo Espıŕ
ito Santo que nele habita a cumprir espontaneamente a justiça que há
na Lei (Rm 7.4-6; 8.3-4; Hb 8.10-12). Por isso, todo crente genuıń o se
vê impelido por Deus a honrá-lo com recursos materiais a im de que a
causa do Senhor seja mantida neste mundo. E o bom cristão deve
atender a esses impulsos livremente, cheio de alegria no coração, sem
barganhar com Deus e sem ser ameaçado ou forçado por seus lıd́
eres.
Surge, então, a pergunta: que necessidades e deveres materiais
recaem sobre a igreja local para que seus membros sejam sensıv́eis ao
estıḿulo do Espırito Santo e contribuam inanceiramente com ela?́
A resposta a isso é muito simples. O Novo Testamento ensina que
sobre a igreja pesa o dever de enviar recursos para obreiros que estão
passando por di iculdades no trabalho que realizam (2Co 11.8-9;
12.13). Paulo diz que dádivas assim apresentadas são como “uma
oferta de aroma suave, um sacrifıć io aceitável e agradável a Deus” (Fp
4.1418).
E ainda claro no Novo Testamento o costume de a igreja auxiliar
nas despesas de quem viaja como missionário aprovado por ela (Rm
15.24; 3Jo 5-8). O socorro material de irmãos que são verdadeiramente
carentes é também responsabilidade da igreja de que fazem parte, caso
não tenham famıĺ ia (1Tm 5.3-6,16). Além disso, a igreja tem o dever de
sustentar os pastores que a governam e ensinam bem, sendo esse tipo
de obreiro “digno do seu salário” (1Tm 5.17-18). Aliás, o ensino de que
os ministros de Deus devem receber recursos materiais da igreja se
constitui num dos princıṕ ios defendidos por Paulo com mais vigor e
veemência (1Co 9.4-14).
Ora, pesando todos esses deveres sobre a igreja local, além das
despesas comuns próprias de qualquer organização, de onde devem vir
os recursos para sua realização? Do Estado? Dos incrédulos? De
empresas ou entidades simpatizantes do evangelho? E certo que não.
Os crentes individuais é que devem ser a fonte de todos esses recursos
e o Novo Testamento mostra que mesmo os cristãos mais pobres se
dispõem a assumir esse papel quando atendem ao impulso do Espıŕ ito
que habita neles e são agraciados por Deus com o desejo de contribuir
(2Co 8.1-5).

Os deveres do crente para com seu pastor

Muito se fala sobre as responsabilidades dos pastores em


relação às suas ovelhas. Entretanto, quase nenhuma ênfase é dada ao
que a Bíbliadiz sobre os deveres das ovelhas em relação ao seu pastor.
Esses deveres, porém, existem e podem ser resumidos em três
palavras: sujeição, consideração e sustento.
Os dias atuais são marcados por uma verdadeira crise no campo
da autoridade. O homem moderno perdeu qualquer noção de
obediência a indivıd́ uos legitimamente investidos no poder (2Pe 2.10).
Por isso, quando se fala em sujeição, certo desconforto se insinua no
coração das pessoas como se essa palavra evocasse apenas noções de
opressão, privação de liberdade, tirania e manipulação egoıś ta.
Contudo, goste ou não, o cristão de verdade deve encarar o fato de
que a Bíbliaexige que os servos de Deus se sujeitem às autoridades que
o Senhor estabeleceu, quais sejam os governadores e seus
representantes no âmbito estatal (Rm 13.1-7; Tt 3.1; 1Pe 2.13-14), os
maridos e pais na esfera familiar (Ef 5.22-24; 6.1-2; 1Pe 3.1) e os
ministros de Cristo no contexto eclesiástico (At 20.28; Ef 4.11-12; 1Pe
5.1-3).
Ocorre, porém, que, assim como o cristão mundano não se
importa em obedecer a autoridade civil e a esposa com mentalidade
secular não aceita submeter-se ao marido, da mesma forma, crentes
comuns, movidos por conceitos antibıb́ licos, opõem resistência ao
ensino apostólico acerca da obediência ao lıd́ er da igreja. A Escritura,
porém, é clara e coloca sobre o crente o dever de se sujeitar ao seu
[62]
pastor (1Pe 5.5).
E óbvio que essa obediência não deve ser cega, disposta a acolher
ordens tolas, insensatas ou injustas. Há lıd́ eres maus que emitem
comandos errados e até perversos como era o caso de Diótrefes,
mencionado em 3João 9-10. Obedecer a lıd́ eres assim é contribuir para
a deterioração da igreja e trabalhar para o enfraquecimento da causa
do Mestre.
Por isso, diante de situações em que a ordem do pastor tem
claramente o potencial de gerar prejuıź os, o crente deve expor com
brandura os motivos porque não pretende fazer o que foi ordenado,
ajudando o lıd́ er a enxergar os perigos que sua ordem encerra e
fazendo isso sem provocar atritos.
Em situações normais, porém, a sujeição dos membros ao pastor
deve ser branda e marcada por prontidão. O texto bıb́ lico que mais
claramente encerra esse dever imposto às ovelhas encontra-se em
Hebreus 13.17: “Obedeçam aos seus lıd́ eres e submetam-se à
autoridade deles. Eles cuidam de vocês como quem deve prestar
contas. Obedeçam-lhes para que o trabalho deles seja uma alegria e não
um peso, pois isso não seria proveitoso para vocês”.
De acordo com o texto citado, os crentes devem obedecer aos seus
pastores porque eles cuidam do rebanho como quem terá de dar
explicações a Deus acerca do modo como realizou suas tarefas.
A noção presente no texto grego é de um cuidado constante e sem
descanso (agrypnéo). Assim, parece que uma das bases que dão ao
pastor suporte para exigir a obediência das ovelhas é precisamente seu
trabalho contıń uo de proteção, vigilância e amparo em prol daqueles
que lhe foram con iados. Dessa forma, quanto mais o pastor
demonstrar cuidado do rebanho, mais será merecedor de obediência.
O texto diz ainda que a obediência dos crentes fará com que o
pastor realize seu trabalho com alegria e não com gemidos (stenázo).
Com efeito, nada tortura, desanima e entristece mais o ministro
eclesiástico do que a postura rebelde de alguns membros de sua igreja
que insistem em desprezar suas ordens, fazendo-lhe oposição. O autor
de Hebreus mostra que essa atitude faz com que o trabalho pastoral se
torne um peso e, segundo ele, isso trará prejuıź os ao rebanho.
Sem dúvida, esses danos ocorrerão porque o pastor que vê seu
ministério como um fardo fará tudo sem ânimo ou entusiasmo,
preparará suas mensagens com má vontade, perderá a alegria e o vigor
na busca dos alvos da igreja, não terá forças para sustentar os feridos
(uma vez que ele mesmo estará ferido) e, sentindo-se frustrado e
abatido, logo pensará em desistir de tudo. Com certeza, produzir esses
sentimentos no lıd́ er da igreja não será, de modo nenhum, proveitoso
para o povo de Deus.
Consideração ou apreço são palavras que se aplicam ao segundo
dever que os membros da igreja de Deus têm em relação ao seu pastor.
A base bıb́ lica para esse ensino se encontra em 1Tessalonicenses
5.1213: “Agora lhes pedimos, irmãos, que tenham consideração para
com os que se esforçam no trabalho entre vocês, que os lideram no
Senhor e os aconselham. Tenham-nos na mais alta estima, com amor,
por causa do trabalho deles. Vivam em paz uns com os outros”.
Esse texto a irma, primeiro, que os crentes devem ter
consideração para com seus lıd́ eres eclesiásticos. O verbo que Paulo
usa aqui (oida) signi ica, basicamente, conhecer. Porém, quando o
contexto exige, esse termo adquire o sentido de respeitar,
reconhecer, destacar ou mostrarinteresse.
Na prática, Paulo está dizendo que os crentes não devem agir com
descaso ou ser indiferentes diante da igura do pastor e, para reforçar
isso, ele acrescenta: “Tenham-nos na mais alta estima, com amor”. A
construção grega dessa frase pode ser traduzida da seguinte maneira:
“Considerem-nos como altamente merecedores de amor”.
A razão pela qual os pastores devem ser tidos em tão grande
apreço não repousa sobre seus possıv́eis dotes intelectuais, nem sobre
seu ocasional magnetismo pessoal, nem mesmo sobre a simpatia que
eventualmente demonstrem no trato com as pessoas. Ainda que essas
coisas sejam importantes, os crentes não devem fazer delas a causa do
seu respeito pelo pastor. Segundo Paulo, a consideração devida aos
ministros da Palavra deve ser tributada a eles por causa do
trabalho que realizam.
Assim, no tocante a esse assunto, é secundário se o pastor é jovem
ou velho, pobre ou rico, imponente ou acanhado, animado ou
melancólico, genial ou um homem comum. Tampouco importa se sua
origem, aparência ou personalidade impressionam ou não. A
consideração e estima devidas ao pastor têm como causa o trabalho
nobre e santo que ele realiza. Esse é o fator primordial que o torna
digno de respeito e o faz merecedor da amizade e da simpatia dos
membros da igreja.
Nesse ponto, porém, uma ressalva se faz necessária. A
consideração devida ao pastor não deve ser do tipo que silencia diante
de suas falhas e desvios. Isso se depreende, por exemplo, de 1Timóteo
5.19: “Não aceite acusação contra um presbıt́ero se não for apoiada por
duas ou três testemunhas”. Essa passagem mostra, em primeiro lugar,
que os pastores são denunciáveis, ou seja, são passıv́eis de acusação
quando praticam o mal. Isso deixa claro que tratar o pastor com apreço
não signi ica colocá-lo acima da verdade e da justiça, fazendo vistas
grossas diante dos seus desvios. Aliás, o texto vai além e ensina que os
pastores estão sujeitos até mesmo à repreensão pública (1Tm 5.20).
Porém, a consideração devida aos presbıt́eros é demonstrada também
aqui na proibição de aceitar gratuitamente e sem provas qualquer
acusação que lhes for dirigida.
Paulo sabia que, na defesa da verdade e da pureza da igreja, o
pastor despertaria o ódio de cruéis inimigos que não poupariam
esforços para atacá-lo, caluniá-lo e, en im, destruı-́ lo. Por isso, colocou
em sua volta um muro de proteção, proibindo que o ministro do
evangelho seja punido sem que existam provas seguras de sua culpa.
Observar, pois, essa diretriz com cuidado é também uma forma de
revelar consideração pelo homem de Deus que está à frente de uma
igreja.
O último dever do crente em relação ao seu pastor é no campo do
sustento. Esse assunto já foi tratado no subtıt́ ulo anterior, bastando
aqui recordar que os presbıt́eros que lideram bem a igreja e que se
afadigam no ensino da Palavra são merecedores de um salário
adequado (1Tm 5.17-20), sendo cada membro da igreja responsável
por prover os recursos que deverão compor o sustento material do
ministro do evangelho.
Uma pergunta importante

Como um crente podeservir ao Senhor na


igreja quando todos os cargos e funções já
estão ocupados?
Em Atos 13.1-3, a Bíblia mostra que o simples
fato de se reunir com os irmãos para cultuar a Deus
já é uma forma de servi-lo. Ademais, não é preciso
ter cargos na igreja para trabalhar nela. Esvaziar um
cesto de lixo, dar boas-vindas a um visitante ou
encorajar um irmão que está triste são ministrações
sempre necessárias que podem ser feitaspor qualquer
crente que queira realmente servir ao Senhor. A
experiência mostra, portanto, que não trabalhar na
igreja tem somente uma causa: a falta de vontade!
Capítulo 7 – OS OFICIAIS DA IGREJA

O Deus pregado e cultuado na igreja bıb́ lica é um Deus Trino que,


em seu âmago, se estrutura de forma hierárquica. Pai, Filho e Espıŕ ito
Santo coexistem numa igualdade essencial que, contudo, não anula a
submissão da Segunda Pessoa à Primeira (Jo 8.28-29), nem tampouco a
sujeição da Terceira Pessoa ao Filho e ao Pai (Jo 15.26).
Por ser um Deus que “funciona” dentro de uma estrutura assim,
foi do seu agrado imprimir marcas de hierarquia em tudo quanto criou.
Desde os anjos até os insetos foram postos dentro de uma pirâmide
funcional em que alguns exercem atividades de liderança, enquanto
outros se ocupam de tarefas distintas, sempre sob o comando dos
primeiros.
Esse modelo impresso por Deus em sua criação é tão salutar que
quaisquer núcleos ou conjuntos sociais que o desprezam, apelando
para formas variadas de anarquia, caem fatalmente no fracasso e na
desordem total. Com efeito, governos, empresas, instituições e famıĺ ias
que não funcionam dentro de uma ordem hierárquica descambam
facilmente para o caos completo, o que comprova que, num universo
criado pelo Deus Trino, num universo em que ele imprimiu as marcas
de sua própria realidade operacional, o funcionamento hierárquico é
requisito essencial para o bom andamento de tudo.
Ora, se nas estruturas que criou, o Senhor ixou relações de
subordinação, é obvio que essas relações também foram impostas à
igreja que, à luz do ensino bıb́ lico, deve ter uma liderança real e
operante, à qual os crentes devem se sujeitar.
Essa liderança, porém, como será visto, deve ser formada
conforme os padrões impostos pelo Senhor em sua Palavra, fonte de
orientação que a igreja de Deus leva muito a sério, especialmente nesse
campo, sob o risco de se enfraquecer e até ter alguns de seus núcleos
locais levados à extinção completa.
Deve-se dizer de antemão, que essa liderança deve ser formada
por duas classes de o iciais, os pastores (também chamados de bispos e
de presbíteros) e os diáconos, conforme Paulo deixa transparecer em
Filipenses 1.1 e 1Timóteo 3.1-13

A vocação ministerial: reconhecimento e auxílio

Reconhecendo a importância de estar sob uma liderança nos


moldes ixados por Deus, a igreja bıb́ lica tem como um dos seus
objetivos principais o investimento em vidas que exerçam as funções
de ensiná-la, orientá-la e presidi-la, enquanto persegue o ideal maior de
expandir o Reino do Senhor Jesus Cristo.
Ademais, é preciso ser destacado que, segundo o ensino
apostólico, a igreja tem papel essencial, inclusive, no chamado de
obreiros e não somente em seu preparo. Esse papel, vale lembrar, se
realiza à medida que a assembleia dos santos reconhece expressamente
os vocacionados por Deus para o ministério da Palavra.
O desdobramento lógico e prático disso é que nunca a
investidura de um membro da igreja na função pastoral pode ser
baseada no mero desejo pessoal dele. Ainda que o chamado para o
ministério abranja, sem dúvida, o anelo individual (1Tm 3.1), é
inegável que a igreja como um todo tem participação ativa na vocação
do Senhor. Na verdade, nos tempos do Novo Testamento, era por meio
da aprovação do povo de Deus que o chamado pastoral se efetivava, o
que se vê especialmente em Atos 14.23, texto em que igura o termo
grego cheirotonéo, (traduzido na ARA como “eleição”, e na NVI como
“designar”), cujo signi icado básico é “estender a mão para votar”.
A luz disso tudo, é óbvio que o crente que quer ser pastor precisa
demonstrar submissão à vontade da igreja e respeito por suas decisões.
Aliás, em hipótese alguma a igreja zelosa agirá em prol do candidato
debaixo de pressões impostas por ele ou por outras pessoas que
partilhem dos seus interesses.
Para ser escolhido pela igreja a im de exercer o ofıć io pastoral, o
candidato deve, necessariamente, enquadrar-se nos requisitos
constantes em 1Timóteo 3.1-7 e Tito 1.5-9, o que signi ica, entre outras
coisas, que ele deve demonstrar convicções doutrinárias sadias e
ortodoxas, ser membro em plena comunhão com os irmãos e estar livre
de qualquer processo disciplinar.
A escolha de futuros ministros da Palavra também levará em
conta a opinião pessoal do pastor da igreja, uma vez que este, à luz do
Novo Testamento, tem responsabilidade direta na constituição de
outros pastores (1Tm 5.22; Tt 1.5 — em ambos os textos, ica evidente
que os pastores Timóteo e Tito eram responsáveis diretos pela escolha
de novos ministros).
Caso a igreja veja a necessidade de o candidato ingressar num
seminário, um auxıĺ io inanceiro poderá ser destinado a ele para esse
im. E recomendável, porém, que o futuro pastor só receba essa ajuda se
for matriculado numa escola teológica conservadora, evitando, assim,
instituições liberais ou heterodoxas.
E ainda recomendável que a eventual ajuda inanceira seja
calculada com base na necessidade presente em cada caso. Uma boa
sugestão é que essa ajuda seja dada somente depois de concluıd́ o o
primeiro ano de seminário para que, ocorrendo as desistências tão
comuns nessa fase, a igreja não sofra prejuıź os.
A ajuda inanceira a um seminarista só poderá ser mantida caso
ele demonstre bom desempenho no âmbito acadêmico, ausência de
desvios doutrinários e reto procedimento ético e moral. Se esses
fatores forem inexistentes, não fará qualquer sentido a igreja investir
em sua formação. Caso o faça, estará contribuindo para o surgimento
de maus obreiros, os quais só trarão prejuıź os e vergonha para a causa
do Mestre.

A ordenação ao ministério pastoral

No Novo Testamento é estranha a prática tão comum em nossos


dias de alguém se autointitular pastor. Na verdade, essa prática não
tem nenhum precedente na literatura neotestamentária.
Também não existe na Bíblianada que permita um pastor ordenar
alguém ao ministério segundo sua livre vontade ou opinião pessoal. E
claro que essa opinião deve ser levada em conta (Tt 1.5), mas a decisão
inal quanto a quem será investido no múnus pastoral não é
prerrogativa de um ministro, nem mesmo de um grupo de ministros.
Conforme visto, é a igreja que, soberanamente, detém o direito de
decidir quem deve ser investido na função pastoral (At 14.23),
observando os requisitos elencados em 1Timóteo 3.1-7 e Tito 1.5-9.
Aliás, textos como Atos 6.1-6; 15.22 e 2Corıń tios 8.18-19, 23 mostram
que a igreja neotestamentária era notadamente democrática, sendo
decisiva sua participação em escolhas dessa natureza.
Assim, somente se for aprovado pela igreja, o candidato a pastor,
caso a igreja julgue necessário, poderá passar pelo exame
de conhecimento teológico exigido por sua denominação. Esse exame
não é requisito imposto pela Bíblia, sendo, portanto, opcional. Porém,
seu valor reside especialmente no fato de dar ao candidato a
oportunidade de demonstrar seu preparo para o cargo importante que
irá ocupar, além de habilitá-lo o icialmente para ser ministro de
qualquer igreja pertencente à sua denominação.
Passada essa fase, procede-se à cerimônia de imposição de mãos,
que é um gesto simbólico de investidura do candidato no cargo de
ministro do evangelho, com todos os seus deveres e prerrogativas. De
fato, na Bíblia, a cerimônia de imposição de mãos tem relação com a
consagração de alguém para um serviço especial (At 6.6; 13.3). E, pois,
natural que esteja presente na constituição de novos obreiros.
E bom frisar que a imposição de mãos se faz exclusivamente por
pastores presentes na cerimônia e nunca por todos os membros da
igreja, já que estes não têm autoridade pastoral a ser transmitida (1Tm
4.14).
Realizado o ato solene, o candidato será o icialmente reconhecido
como pastor, encarregado de todas as tarefas relativas a esse ofıć io.
Outros nomes pelos quais poderá ser designado são presbítero e bispo,
pois, conforme dito, no Novo Testamento, esses termos são igualmente
usados para referir o cargo de pastor (At 20.17,28; 1Tm 3.1-3; Tt 1.6-
7).
Como se vê, tornar-se pastor não é simples e rápido. Aliás, a
Bíbliaproıb́ e que seja assim quando Paulo diz a Timóteo: “A ninguém
imponhas precipitadamente as mãos…” (1Tm 5.22). Todo o processo
acima descrito, demorado talvez, visa ao cumprimento dessa ordem e
também à preservação da soberania da igreja em escolher novos
pastores.
Nesse aspecto, é preciso repisar a verdade de que a função
pastoral é delegada por Deus. Ele, porém, faz isso por intermédio do
seu instrumento chamado igreja. De fato, ainda que em última análise
seja o Espıŕ ito Santo quem constitui os bispos (At 20.28), as Escrituras
ensinam que a constituição deles é feita por meio de homens que,
reunidos como igreja, a concretizam (At 14.23; Tt 1.5).
Por isso, o método descrito aqui e usado com ligeiras variações na
prática das igrejas de Deus não pode ser alterado de modo substancial.
Tampouco podem ser adotados os critérios novos e arbitrários
presentes em comunidades cristãs da atualidade nas quais um lıd́ er
supremo detém o poder exclusivo de investir quem quiser no
ministério. Esses novos métodos e critérios são antibıb́ licos e
perigosos, já que não observam as instruções que o próprio Deus
estabeleceu em sua Palavra. Por isso, as igrejas formadas por “cristãos
velhos” — aqueles comprometidos com as antigas verdades da Bíblia—
jamais poderão acolhê-los.
Finalmente, é bom alertar que conferir arbitrariamente poderes a
alguém para o exercıć io do ministério é puro “micaıś mo”. O livro de
Juıź es conta a história de um homem chamado Mica, o qual investiu
primeiro seu ilho e, depois, um levita num ministério religioso
abominável que acreditava ser do agrado de Deus (Jz 17.5-13). Ora,
mesmo se a religião de Mica se voltasse unicamente para o Senhor e
fosse livre de idolatria, o que não era o caso, esse homem não tinha
autoridade alguma para investir alguém na função sacerdotal (Hb
5.14). Além disso, seu ilho não preenchia os requisitos impostos por
Deus para o ministério santo, já que só os levitas ilhos de Arão podiam
realizar esse serviço (Ex 29.44).
Assim, micaıś mo é a prática de investir no ministério quem não
preenche os requisitos impostos por Deus. E também a prática de,
arbitrariamente, um indivıd́ uo consagrar quem bem entender num
serviço que acredita ser santo. Ora, o micaıś mo é abominável aos olhos
do Senhor e as igrejas de Deus devem sempre evitá-lo com todo o zelo e
cuidado.

Requisitos bíblicos para ser pastor

Na igreja de Deus, a posição de destaque procedente do múnus


pastoral não é concedida a alguém em razão de seu mero desejo
pessoal (Mc 10.35-37, 40), nem pelo fato de esse alguém ter lutado ou
sofrido em prol da causa (Mc 10.38-40). Isso porque, de acordo com o
ensino de Jesus, somente os que servem humildemente os irmãos
podem ocupar uma posição de destaque dentro da igreja (Mc 10.4145).
Logo, o bom candidato a lıd́ er eclesiástico é aquele que responde
mais prontamente do que qualquer outro ao chamado de servir aos
irmãos, demonstrando assim que em seu coração impera “o mesmo
sentimento que houve também em Cristo Jesus” (Fp 2.1-11). Por isso,
para que um membro da igreja se torne pastor, é fundamental que seja,
antes de tudo, servo.
Existem, contudo, outros requisitos a serem exigidos dos
candidatos ao múnus pastoral. Esses requisitos, conforme referido
anteriormente, estão elencados em 1Timóteo 3.1-7 e Tito 1.5-9.
Observando-se essas listas, descobre-se que o pastor deve ser,
primeiro, irrepreensıv́ el. Os dois termos gregos traduzidos dessa forma
(anepílemptos em 1Timóteo e anénkletos em Tito) apontam para
alguém que não oferece nenhum motivo para ser acusado de mancha
em seu caráter ou conduta. São termos genéricos que evocam a
necessidade de o pastor nutrir todas as demais virtudes elencadas pelo
apóstolo.
O ministro de Cristo também deve ser marido de uma só mulher,
ou seja, não pode ser bıǵamo ou polıǵamo. A luz desse ensino, o
homem divorciado e recasado também está impedido de exercer o ofıć
io pastoral, pois o vıń culo com a primeira esposa permanece mesmo
depois da separação e só se dissolve com a morte (Rm 7.2-3). Na esteira
desse ensino, ica evidente que homens viúvos que se casaram
novamente não são alcançados pela restrição bíblica
E bom destacar ainda que as expressões usadas por Paulo nos
textos em análise podem também ser traduzidas literalmente como
“homem (andrósou anér) de uma só mulher”, o que indica que não
basta o pastor ter somente uma esposa, sendo necessário ainda que
seja iel a ela.
O bispo também tem de ser moderado ou sóbrio (nephálios). Isso
signi ica que ele não pode ser um homem que age de modo impetuoso
ou precipitado. Signi ica também que deve se mostrar livre de qualquer
tipo de excesso, seja no campo das atitudes, seja nos hábitos individuais
da vida social, do trabalho ou mesmo da alimentação. Numa palavra, o
pastor deve ser uma pessoa equilibrada.
Os requisitos de Paulo incluem também o vocábulo “sensato”, cujo
correspondente grego (sóphron) também pode ser traduzido como
“controlado”. No uso dessa palavra, Paulo tem em vista o homem con
iável, prudente e que, tendo autodomıń io, é também disciplinado e
discreto. Na lista que consta na Carta a Tito, Paulo usa um sinônimo
dessa palavra, o termo enkratés, cujo sentido aponta para a qualidade
de quem tem força sobre si mesmo ou é mestre de si (Tt 1.8).
Outra exigência que consta das epıś tolas pastorais é que o bispo
seja respeitável (kósmios). A palavra grega aponta para alguém cuja
vida não apresenta desordens, alguém que realiza seus deveres com
seriedade e disciplina, impondo limites a si mesmo. Tendo uma vida
em que não reina o caos, esse homem revela também ser possuidor de
uma mente livre de confusão, com responsabilidades e rumos
claramente de inidos.
Na antiga cultura grega, a hospitalidade era tida na mais alta
conta e Paulo ensina que essa prática deveria marcar a vida dos
pastores no cuidado com os discıṕ ulos de Jesus, especialmente num
tempo em que evangelistas itinerantes dependiam da hospedagem de
outros crentes nas cidades por onde passavam (3Jo 5-8). Mesmo sendo
certo que a realidade presente é distinta da que marcava aqueles dias,
não há dúvida de que o pastor, em todas as épocas, deve ser alguém
que busca amparar os crentes que precisam de apoio e ajuda.
Paulo exige também que o bispo seja apto para ensinar
(didaktikós). Assim, ele deve demonstrar notável habilidade para
comunicar as verdades cristãs, tendo uma didática e icaz e um bom
preparo intelectual, estando capacitado tanto para admoestar e
encorajar através da exposição da sã doutrina como para refutar o erro
doutrinário dos oponentes da fé (2Tm 2.24-26; Tt 1.9).
O cristianismo não proıb́ e o uso de bebidas alcoólicas (Cl 2.16;
1Tm 5.23), mas condena a embriaguês (Ef 5.18). Por isso, o ministro de
Cristo não pode ser um homem apegado ao vinho (pároinos), ou seja,
alguém que, mesmo eventualmente, ica bêbado. Daqui também se
infere que o pastor deve ser uma pessoa livre de qualquer forma de
desregramento ou falta de moderação.
O ensino paulino também veda o ofıć io pastoral ao indivıd́ uo
violento (pléktes). O homem que Paulo reprova aqui é o tipo brigão, que
ameaça e agride os liderados. Na carta a Tito, o apóstolo, além de dizer
que o bispo não pode ser violento, a irma também que ele não deve ser
irascıv́el (orgílos), termo que descreve a pessoa de “pavio curto”, que
explode facilmente. Em vez de ter esse per il, o bispo precisa ser um lıd́
er amável (epieikes) e pacı́ ico (ámachos), tratando especialmente os
membros da igreja de forma gentil e fugindo de disputas e contendas.
Como servo sincero e verdadeiro, o pastor não pode ser homem
avarento e amante do dinheiro (aphilárgyros, na lista de 1Timóteo),
nem tampouco alguém que busca obter lucro de forma desonesta
(aischrokerdés, na lista de Tito) pois essas são marcas distintivas dos
falsos mestres (1Tm 6.5-10; 2Pe 2.3). O bispo que for amante do
dinheiro ou desonesto facilmente se desviará do cuidado do rebanho,
preocupando-se apenas com formas de elevar rapidamente seu padrão
de vida, muitas vezes às custas da própria igreja.
Quanto ao seu lar, o pastor tem de governá-lo bem. A palavra
“governar” usada por Paulo em 1Timóteo 3.4-5,12 (proístemi) não signi
ica apenas liderar. O termo também abarca as noções de proteção,
cuidado e direção. Assim, o pastor ideal é aquele que exerce autoridade
sobre a sua famıĺ ia com afeto e compaixão, mostrando-lhe a direção a
seguir, livrando-a de perigos e suprindo suas necessidades tanto fıś icas
como emocionais e espirituais.
Em 1Timóteo 3.4, Paulo diz ainda que o pastor deve ter os ilhos
em sujeição (hypotagé), isto é, sob seu controle. O apóstolo esclarece
que esse controle deve ser exercido com todo respeito (semnotés), o
que signi ica que o pastor não pode humilhar seus ilhos, nem desprezá-
los, irritá-los, a ligi-los ou adotar uma postura indecente e desonrosa no
trato com eles.
Várias traduções da Bíbliapara a lıń gua portuguesa sugerem que,
quando escreve a Tito, Paulo diz que os ilhos do pastor devem ser
“crentes” (Tt 1.6). A palavra adotada pelo apóstolo nessa passagem
(pistós) pode signi icar alguém que tem fé (o crente) ou alguém que é
digno de fé (o homem iel ou con iável). O termo aparece dezesseis
vezes nas Epıś tolas Pastorais, sendo dominante o uso no segundo
sentido (dez ocorrências). Aliás, nas outras duas ocorrências em Tito
(1.9 e 3.8), o único sentido possıv́ el é “con iável”.
Assim, tudo indica que, no ensino paulino, os ilhos do pastor não
precisam ser convertidos, mas devem ser, no mıń imo, pessoas
idedignas, verdadeiras e honestas. Isso se harmoniza em parte com o
restante das exigências relativas aos ilhos do pastor constantes em Tito
1.6. De fato, o texto prossegue dizendo que eles não podem ser pessoas
acusadas de vida desregrada (asotía), nem ser insubmissos
(anypótaktos).
O apóstolo explica que o pastor precisa mostrar que governa bem
a sua casa porque, se não for capaz de desempenhar bem essa função
junto à própria famıĺ ia, certamente também não terá competência nem
habilidade para cuidar da igreja de Deus (1Tm 3.5). Sem dúvida, sua
forma errada de liderar o lar será adotada também na condução da
igreja e, então, o caos, a discórdia, o desrespeito e a indecência reinarão
ali absolutos.
Ao homem recém-convertido também é vedado o exercıć io do
pastorado. Em 1Timóteo 3.6, Paulo usa a palavra “neó ito” (neóphytos)
para descrever o indivıd́ uo nessa condição. Seu uso primário pertence
ao contexto agrário e signi ica recém-plantado.
O novo convertido é, de fato, como uma planta nova e não tem
raıź es profundas nem tampouco forças su icientes para sustentar um
trabalho tão pesado como o atribuıd́ o ao bispo. Ademais, Paulo, ainda
em 1Timóteo 3.6, a irma que se o neó ito for conduzido ao cargo de lıd́
er eclesiástico, facilmente será dominado pelo orgulho, talvez por ter
sido alçado tão depressa a uma posição de destaque.
Se isso ocorrer, cairá na “condenação do diabo”. Essa expressão
pode signi icar que o pastor será punido por Deus da mesma forma que
o diabo foi, perdendo sua posição (Ap 12.7-9), ou que o pastor será vıt́
ima do diabo, caindo no laço a que Paulo alude no versıć ulo seguinte
(1Tm 3.7). E possıv́el que uma descrição do que ocorre com quem cai
nesse laço se encontre em 1Timóteo 6.9. Seja qual for a hipótese que
Paulo tinha em mente, ica fora de dúvida que é imprudente e errado
investir o crente novo no ofıć io pastoral.
Falando ainda sobre a soberba, é bom destacar que esse pecado
não é exclusivo do recém-convertido que é posto em cargos de
liderança. Por isso, ao escrever a Tito, Paulo a irma que o candidato ao
episcopado, mesmo antes de ser investido no cargo, não deve ser
arrogante (authádes).
E preciso ainda que o bispo tenha bom testemunho dos de fora.
Os incrédulos observam a conduta dos cristãos e, com a luz que advém
do senso ético natural, conseguem detectar aquilo que não se
harmoniza com a justiça e a retidão decorrentes da fé. Por isso, quando
não baseada em calúnias, a opinião do mundo acerca da reputação de
um determinado irmão deve ser levada em conta, caso o seu nome seja
apontado para o exercıć io do episcopado.
Se essa cautela não for observada, Paulo diz que o pastor cairá em
reprovação (oneidismós). Os próprios descrentes vão reprová-lo,
insultá-lo e expô-lo vergonhosamente ao descrédito. Ele também cairá
no “laço (ou armadilha) do diabo”. Essa igura aparece novamente nas
pastorais em 2Timóteo 2.26 e serve para descrever o estado deplorável
de pessoas que, enganadas por Satanás, vivem fazendo a sua vontade. E
assustador que um pastor possa chegar a essa condição, mas a
experiência e a história mostram a realidade desse perigo.
Restam três qualidades do bispo mencionadas por Paulo que
ainda não foram destacadas. São traços alistados em Tito 1.8 que não
aparecem na lista de 1Timóteo: amigo do bem, justo e consagrado. O
amigo do bem (philágathos) é o homem benevolente, que ama e pratica
o que é bom. O justo (díkaios) é aquele que observa os preceitos divinos
e cumpre as leis humanas, andando em retidão. Já o indivıd́ uo
consagrado (hósios) é o homem santo, livre de iniquidade, que é
também devoto e piedoso.
Todas essas marcas devem ser encontradas no pastor sob pena de
ele não poder exercer o ministério. Até porque a ausência de qualquer
uma delas redundará num ministério fraco, carente de vigor e de
impacto espiritual, levando o ministro a buscar substitutos para essas
coisas em programas especiais, eventos chamativos, espetáculos
vibrantes e outras distrações.

Os deveres dos pastores no trato com os membros da


igreja

Nas seções anteriores deste capıt́ ulo, foram feitas alusões ao fato
de que o homem que ocupa o cargo pastoral na igreja de Deus é
designado no Novo Testamento por três termos distintos: pastor,
presbıt́ero e bispo (At 20.17,28; Ef 4.11; Tt 1.5,7). Cada um desses
termos destaca diferentes aspectos das funções que o ministro cristão
deve exercer junto ao povo que Deus lhe con iou.
O termo “pastor” (poimén) é o mais abrangente entre os três
supracitados, pois realça as tarefas de proteger e apascentar (o que
inclui conduzir) um rebanho.
A igura do pastor da igreja como protetor do rebanho de Deus
aparece em Atos 20.28-31. Nessa passagem, Paulo, despedindo-se dos
pastores da igreja de Efeso, diz que lobos vorazes atacariam as ovelhas
do Senhor que estavam sob seus cuidados e não as poupariam,
arrastando-as à destruição por meio de ensinos perversos. Segundo
Paulo, diante dessa ameaça, os pastores deveriam vigiar, mantendo-se
sempre atentos e prontos, a im de afugentar aquelas feras malignas e
manter o rebanho de Deus ileso.
Obviamente, esse aspecto da função pastoral é imperativo aos
ministros de Cristo de todas as épocas e de todos os lugares, enquanto
dirigem as igrejas em que foram postos. Aliás, o Apocalipse revela que
os pastores de Pérgamo e de Tiatira foram negligentes precisamente na
realização dessa tarefa, sendo esse o motivo pelo qual o Senhor os
censurou tão severamente (Ap 2.14-16, 20-23).
Conforme já referido, o vocábulo grego poimén (e o verbo
poimaino, associado a essa palavra) também aponta para a tarefa de
apascentar, ou seja, prover as necessidades das ovelhas, conduzindo-as
na direção de bons pastos e de água fresca. Com base na igura que esses
termos evocam, conclui-se que o pastor, como o icial eclesiástico,
também deve apascentar o povo de Deus, garantindo-lhe o suprimento
de alimento e de refrigério espirituais.
Não resta dúvidas de que o crente precisa de alimento para a
alma (Mt 4.4; 1Pe 2.2). Ora, o ofıć io de pastor está entre aqueles que
Deus instituiu exatamente para fornecer esse alimento aos crentes
(2Tm 4.12), a im de que eles sejam equipados para o serviço dos
santos, cresçam na unidade da fé, amadureçam nas virtudes de Cristo e
deixem de ser como meninos facilmente levados por qualquer vento de
doutrina (Ef 4.11-14).
Apascentar o rebanho de Cristo, porém, não abrange somente
oferecer-lhe o alimento da Palavra com o im de transmitir
conhecimento e gerar maturidade. O pastor zeloso tem de ir além disso
e, sempre com a Palavra do Senhor em punho, deve trabalhar para
satisfazer também as necessidades de consolo e descanso das ovelhas
de Jesus. Nesse aspecto, é notório que, nas Escrituras Sagradas, a
condução ao alıv́ io e ao refrigério é uma prática distintamente pastoral
(Sl 23.1-3; Ap 7.17), sendo certo que a falta desse trabalho é um dos
motivos pelos quais as pessoas passam a viver cansadas e a litas (Mt
9.36).
Ora, há diversas situações em que o pastor poderá atuar como
alguém que conduz a ovelha cansada ao repouso, mas um exemplo
prático dessa forma de agir é mencionado em Tiago 5.14-15. Nesse
texto, o escritor bıb́ lico (ele mesmo um pastor) ensina que quando
alguém estiver doente, deve chamar os presbıt́eros da igreja. Estes,
então, orarão pelo enfermo e tentarão trazer-lhe algum alıv́ io tanto
[63]
fıś ico como espiritual. Esse tipo de visita, marcada por afeição,
cuidado e até serena admoestação, é uma das mais tocantes expressões
do trabalho do homem de Deus ocupado em apascentar o rebanho de
Cristo, levando-lhe refrigério.
O Novo Testamento ensina ainda que o pastoreio cuidadoso das
ovelhas de Cristo é uma das provas principais do amor do ministro por
seu Senhor (Jo 21.16). Conforme o ensino de Pedro, esse nobre
trabalho deve ser realizado de boa vontade, nunca por mera obrigação
e em hipótese alguma movido pelo anseio de receber alguma vantagem
inanceira desonesta (1Pe 5.2). Pedro diz ainda que o homem de Deus,
no exercıć io do pastorado, não pode agir como um déspota dominador
que subjuga e oprime as pessoas. Antes, tem de exercer sua autoridade
apresentando-se como modelo para os irmãos (1Pe 5.3).
O segundo termo designativo da atividade pastoral é “presbıt́ero”
(presbyteros). Essa palavra também está ligada à tarefa de ensinar
(1Tm 5.17), pastorear (1Pe 5.1-2) e cuidar (Tg 5.14). Porém, o termo
evoca ainda outros deveres, os quais apontam para uma posição de
destaque e de liderança (At 21.17-19).
Em seu signi icado básico, o presbıt́ero é um ancião. Assim, num
sentido não técnico, o termo se refere a um homem idoso (At 2.17). Já
num sentido técnico, como nos casos em que é usado para designar os o
iciais da igreja, a palavra sugere a ideia de honorabilidade e sabedoria.
Vista ainda a partir da realidade cultural dos tempos bıb́ licos, o
vocábulo “presbıt́ero” evoca a igura do homem revestido de autoridade
que realizava a tarefa de julgar demandas e dirimir con litos entre
indivıd́ uos em litıgio.́
Ora, tanto a experiência como a própria Escritura mostram que
essa função é necessária na igreja, sendo uma forma de evitar que as
disputas entre crentes sejam levadas ao magistrado civil, contrariando
o ensino apostólico (1Co 6.1-6). Sendo, pois, esse trabalho tão
importante e delicado, é o pastor que, atuando como presbıt́ero, deverá
realizá-lo ou, no mıń imo, presidi-lo, aplicando a cada caso concreto os
princıṕ ios e preceitos especı́ icos da Palavra de Deus que sejam então
cabıv́ eis.
Realizando a importante função de julgador dentro da
comunidade da fé, o presbıt́ero será, obviamente, alvo especial de
pessoas que se sentirem contrariadas por suas decisões. Por isso, a
Escritura proıb́ e que acusações contra ele sejam aceitas, exceto sob o
depoimento de duas ou três testemunhas (1Tm 5.19).
No Novo Testamento, o termo “presbıt́ero” também aparece
ligado à tarefa de receber recursos destinados ao auxıĺ io dos carentes,
indicando que os pastores são os responsáveis por avaliar a real
necessidade de cada um no momento da distribuição da ajuda material
ofertada aos pobres da igreja (At 11.29-30). Como juıź es, eles também
aparecem deliberando acerca de disputas ético-doutrinárias,
examinando as razões expostas pelas partes em con lito e, inalmente,
emitindo seu parecer que, estando em harmonia com a revelação de
Deus em sua Palavra, é acolhido por toda a igreja (At 15.2,4,6,22).
O terceiro vocábulo usado na Bíbliapara designar o ofıć io
pastoral é “bispo”. O substantivo grego (epískopos) aparece somente
cinco vezes no Novo Testamento, sendo que em uma dessas vezes
refere-se a Cristo (1Pe 2.25). As outras quatro ocorrências (At 20.28;
Fp 1.1; 1Tm 3.2; Tt 1.7) dizem respeito a lıd́ eres da comunidade cristã.
Epískopos é um termo relacionado à atividade de supervisionar
ou administrar. Esse sentido se encaixa perfeitamente em um dos
deveres pastorais, ou seja, o trabalho de inspecionar a igreja de Deus,
primando pela sua pureza vivencial e doutrinária, a im de que em tudo
ela re lita o caráter do Senhor e seu reto ensino.
Evidentemente, para realizar as funções implıć itas nos termos
“pastor”, “presbıt́ero” e “bispo”, o ministro eclesiástico precisará ter um
amplo conhecimento bıb́ lico e teológico (2Tm 2.15). Sem isso, seu
trabalho destruirá a igreja, arruinará vidas e, do ponto de vista bıb́ lico
e espiritual, será um fracasso completo.

O diaconato

Apesar de não conter nenhuma vez a palavra “diácono”, o texto de


Atos 6.1-6 é comumente aceito como o trecho bıb́ lico que narra as
origens do diaconato. Nesse texto os homens ali escolhidos tinham
como função o atendimento das necessidades de pessoas carentes.
Eram, pois, diáconos no sentido literal da palavra, cujo signi icado é
designativo de um indivıd́ uo que presta serviço ou auxilia.
Segundo João Calvino, na igreja primitiva havia duas classes de
diáconos, ambas voltadas para o serviço aos pobres:

O cuidado dos pobres foi con iado aos


diáconos. Todavia, na Epístola aos Romanos,
lhes são referidas duas modalidades: “Aquele
que distribui”…[e]…”aquele que faz
misericórdia”…(Rm 12.8).Uma vez que certo seja
estar ele a falar dos o ícios públicos da
Igreja, de mister é haja havido dois
graus distintos de diáconos. A não ser
que me engana o julgamento, no primeiro
membro da cláusula designa ele os
diáconos que administravam as esmolas; no
segundo, porém, aqueles que se haviam
dedicado a cuidar dos pobres e dos
enfermos... Se recebemos isso…duas serãoas
modalidades de diáconos, dos quais uns
servirão à Igreja em administrando as
cousas dos pobres, outros em cuidando dos
próprios pobres. [64]

E digno de nota que, no desempenho dessas funções sociais, os


primeiros “diáconos” deveriam ser homens que preenchessem três
requisitos básicos (At 6.3): ter boa reputação; ser cheio do Espıŕ ito
Santo (Ef 5.18); e ser cheio de sabedoria (At 6.9,10). Os dois últimos
itens relacionam-se intimamente, ou seja, os diáconos deveriam ter
sabedoria concedida pelo Espıŕ ito.
Tendo sido instituıd́ os a princıpio com o simples objetivo dé
aliviar o trabalho dos apóstolos, a função que os diáconos exerciam nos
primeiros dias de sua existência sequer tinha um nome formalmente
ixado. Como tıt́ ulo designativo de um o icial da igreja, o termo
“diácono” só surgiu mais tarde, e é uma variação da palavra grega
diakonia (serviço), ou do verbo diakonéo (servir), ambos
encontrados em Atos 6.3-4. Com efeito, é nas epıś tolas que
encontramos esse termo já evoluıd́ o, sendo usado com relação a um
grupo restrito de homens que tinham o ofıć io de diáconos (Fp 1.1; 1Tm
3.8).
Pelo fato de serem responsáveis desde o princıṕ io por facilitar o
trabalho dos ministros da Palavra, as funções dos diáconos se
ampliaram com o passar do tempo à medida que as responsabilidades
dos ministros se tornavam mais numerosas. De conformidade com os
costumes atuais, suas funções geralmente se resumem nas seguintes
atribuições:

1. Cuidar dos necessitados. Como já dito, essa foi a


primeira função dos diáconos, sendo para o exercıć io dela que
foram constituıd́ os. Um conselho diaconal que não exerce essa
atividade dentro dos moldes bıb́ licos deve rever seus objetivos.

2. Participardos processos disciplinares. Toda a igreja


deve participar dos processos disciplinares, conforme o ensino de
Jesus em Mateus 18 e de Paulo em 1Corıń tios 5. Contudo, a
experiência mostra que muitas vezes a natureza do caso exige o
acompanhamento e a participação prévios de um grupo mais
restrito de pessoas maduras que tenham estrutura emocional e
espiritual para analisar com sigilo os diversos problemas em seus
diversos ângulos, antes de tudo ser levado à igreja. Essa atividade
é geralmente (mas não obrigatoriamente) realizada pelos
diáconos e protege o pastor, evitando que ele se exponha sozinho
a situações perigosas ou que impliquem imensas cargas
emocionais.

3. Funcionarcomo grupo de conselheiros para o


pastor. A
Bíbliadiz que na multidão de conselheiros há segurança (Pv
11.14), bom êxito (Pv 15.22) e vitória (Pv 24.6). Daı ́ o supremo
valor de um conselho diaconal constituıd́ o de homens sérios,
experientes e maduros. Eles ajudarão o pastor a tomar decisões
de modo que a possibilidade de erro seja reduzida. Também
conversarão sobre os prós e os contras desta ou daquela medida
e, nos casos em que o problema deva ser levado à igreja, já terá
sido debatido vastamente, podendo ser apresentado de forma
mais objetiva, o que poupará tempo e discussões inúteis na
assembleia. Eventualmente, o conselho dos diáconos também
valerá nas horas em que o pastor tiver de tomar decisões
pessoais ou quando novos rumos e desa ios estiverem diante da
igreja.

4. Zelar pela decência e ordem na igreja. Os


diáconos atuam também como auxiliares do pastor na
manutenção da ordem e decência na igreja. E recomendável que,
a cada domingo, sejam escalados diáconos de plantão que
observem com atenção o desenrolar dos cultos, repreendendo
com docilidade as pessoas que eventualmente se comportem de
forma inadequada.
5. Resolver problemas de natureza
econômicoadministrativa. Agindo na área de ação social e
atuando como conselheiros do pastor, inúmeras vezes os
diáconos se verão às voltas com problemas de natureza
econômico-administrativa. Nesses casos, terão de agir em
conjunto com o departamento de inanças ou outros órgãos que
tenham competência para atuar nas áreas em questão. Dentro
ainda desse tópico, há igrejas que conferem exclusivamente aos
diáconos poderes para deliberar acerca do salário do pastor e de
outros ministros e funcionários. Essa conduta é positiva, pois
evita que o pastor e outras pessoas se sintam expostos e
constrangidos durante discussões públicas acerca de quanto
devem receber mensalmente.

6. Supervisionar o procedimento, o ensino e


as necessidadesdos ministros. Muitas vezes, a igreja
local ica à mercê de homens inescrupulosos que assumem o cargo
de pastor e causam grandes prejuıź os à causa do Mestre.
Frequentemente, esses homens agem livremente, sem haver
quem se coloque diante deles e os impeça de continuar sua obra
tão destruidora. Se ocorrer de algum membro sábio e corajoso se
insurgir contra o falso pastor, é logo excluıd́ o, não sem antes
sofrer os mais severos e injustos ataques. A igreja, porém, que
conta com um bom conselho diaconal, estará protegida dos
ataques de falsos pastores. Percebendo que o pastor da igreja tem
mantido conduta escandalosa ou ensinado doutrinas estranhas ao
cristianismo, o grupo de diáconos se reunirá, independentemente
de o pastor convocar a reunião ou concordar com ela, e decidirá o
que fazer diante de tão sério problema. O fato de esse grupo ter
alcançado “justa preeminência” (1Tm 3.13) fará com que a igreja
acolha suas decisões, pondo im a obra pastoral ruim. Dentro
desse assunto, é bom lembrar que a realização de reuniões do
conselho diaconal sem a presença do pastor é prática comum e
legıt́ ima. Para se reunirem, os diáconos não precisam de
autorização. Basta que o presidente do conselho diaconal
convoque o grupo para uma reunião sempre que julgar
inconveniente a presença do pastor em face do assunto que será
tratado. Finalmente, nos diáconos o pastor encontrará também
um grupo atento às suas necessidades fıś icas, emocionais,
espirituais, sociais e pro issionais. Percebendo que o pastor tem
enfrentado problemas nessas áreas, os diáconos estudarão um
modo de lhe oferecer apoio e amizade, proporcionando-lhe maior
alıv́ io.

7. Cuidar da ceia do Senhor. Tradicionalmente (não


necessariamente) são os diáconos que cuidam dos preparativos e
da distribuição da ceia do Senhor. Para melhor funcionamento
desse serviço, é comum existir escalas em que igurem o nome dos
que deverão providenciar e distribuir os elementos. Quem
geralmente faz essas escalas e as comunica aos lıd́ eres é o
presidente do conselho diaconal, um diácono escolhido pelo
próprio grupo com o im de representá-lo.

Na Bíblia, os diáconos desfrutam da posição que a igreja lhes


atribui por intermédio da imposição de mãos dos pastores (At 6.6). Na
prática mais recomendável, são os pastores também que indicam os
candidatos ao diaconato. A investidura é posteriormente aprovada ou
não pela assembleia.
E melhor que seja assim porque a indicação dos diáconos, se feita
pela igreja, pode colocar o pastor em situações delicadas. Pode ocorrer
de o pastor ser contra determinada indicação por motivos que, em
razão de sua função, só ele conhece. Se a igreja indicasse e o pastor, por
motivos que merecessem sigilo, se opusesse à indicação, isso exporia o
nome do membro indicado a comentários maldosos e exigiria do pastor
explicações que nem sempre ele pode dar.
A investidura numa função de tanta responsabilidade só pode ser
feita após um perıó do de experiência (1Tm 3.10) em que os candidatos
serão observados pelo pastor e pela igreja. Somente após o término do
tempo de prova é que os membros da igreja terão condições de votar
sabiamente na aprovação daqueles que farão parte da liderança como
diáconos. Uma vez investidos na função, os novos lıd́ eres deverão
exercer as atividades a eles atribuıd́ as. Deve icar claro, porém, que o
diácono só poderá exercê-las na igreja que reconhecer e solicitar seu
trabalho.
Em muitas igrejas, o cargo de diácono é relativamente vitalıć io
(pois o diácono pode ser de initivamente afastado do cargo se deixar de
ter as quali icações bıb́ licas exigidas). Porém, isso não signi ica que
alguém que foi consagrado ao diaconato exercerá necessariamente essa
função em qualquer igreja de que se tornar membro.
Se ocorrer de um diácono mudar de igreja, continuará sendo
diácono, pois foi consagrado a esse cargo e investido nele por quem
legitimamente tinha poder para tanto. Porém, será diácono de direito,
não de fato. Para ser diácono de fato, exercendo suas funções, deverá
ser convidado pelo pastor e ter sua indicação aprovada pela igreja.
Nesse caso, não haverá necessidade de nova cerimônia de consagração.
Trata-se, portanto, de procedimento semelhante ao adotado no
caso de pastores. Efetivamente, nenhum ministro se torna pastor de
uma igreja pelo simples fato de se tornar membro dela. Num caso
assim, o ministro será pastor de direito (uma vez que adquiriu esse tıt́
ulo ao ser ordenado), mas não de fato, só podendo pastorear se para
isso for convidado pela igreja.

Requisitos bíblicos para ser diácono

A lista de requisitos pessoais exigidos dos diáconos encontra-se


em 1Timóteo 3.8-13 e é curioso observar que várias qualidades que
devem estar presentes na vida dos pastores também são impostas a
essa classe de o iciais da igreja.
Com efeito, assim como o bispo, o diácono não deve ser inclinado
a muito vinho, nem voltado para a obtenção de lucros desonestos
(aischrokerdés). Da mesma forma que o pastor, o diácono deve ser
irrepreensıv́ el (anénkletos), marido de uma só mulher e também um
homem que mantém os ilhos e toda a casa sob boa direção e sábia
autoridade.
A explanação mais detalhada desses requisitos já foi feita no item
anterior, onde foram expostas as necessárias quali icações dos bispos.
Contudo, o ensino paulino inclui determinações relativas aos diáconos
que não estão presentes nos textos de 1Timóteo e Tito que tratam dos
pastores. Isso não signi ica que os bispos não precisam demonstrá-las
em sua vida e conduta (até porque estão implıć itas nas diversas
virtudes que se requer deles), mas sim que, ao pensar na igura do
diácono, o apóstolo achou por bem destacá-las, certamente levando em
conta a natureza de suas funções.
A primeira dessas determinações é que o diácono seja um homem
respeitável. Respeitabilidade é qualidade que deve estar presente nos
cristãos em geral (1Tm 2.2; 3.11; Tt 2.2). Porém, para os diáconos, essa
exigência é ainda mais forte. A palavra usada por Paulo aqui (semnós)
aponta para a pessoa venerável e nobre, que desperta reverência nos
outros. Trata-se de um adjetivo grego que abrange não só a postura
exterior da pessoa, mas também seu temperamento. Isso precisa ser
levado em conta porque alguém pode ter postura que inspire respeito
no dia a dia da vida social e, contudo, demonstrar-se desprezıv́el e
reprovável no modo como reage em face das eventuais contrariedades
da vida.
Do diácono também se exige que seja homem de uma só palavra.
A expressão grega que consta do texto (dílogos) pode signi icar “não
difamador”, o que seria um requisito essencial para quem, no exercıć io
de suas funções, constantemente toma conhecimento dos problemas
pessoais dos outros. Parece, contudo, mais correto entender o termo no
sentido de “não ser alguém de conversa dupla”.
Assim, o diácono não pode ser pessoa que diz uma coisa enquanto
tem outra em mente. Também não pode dizer uma coisa a um homem e
outra a outro. Suas palavras têm de ser expressão da verdade, sem
duplos sentidos e revestidas de valor e peso notáveis.
Na prática, essa qualidade deve receber maior destaque no
relacionamento dos diáconos com os demais lıd́ eres, pois, na busca do
bem da igreja, o grupo de o iciais deve nutrir idelidade mútua. Não se
pode, pois, conceber que, durante suas reuniões, os lıd́ eres da igreja
tenham um bom relacionamento, mas que isso seja seguido de
comentários maldosos feitos às escondidas.
Paulo prossegue dizendo que o diácono deve conservar o mistério
da fé com uma consciência limpa. Essa determinação impõe que os
componentes desse grupo de o iciais eclesiásticos sejam homens de
clara e irme convicção cristã; homens que preservam o corpo
doutrinário sadio e nele perseveram.
A expressão “mistério da fé” diz respeito às verdades que a razão,
por si só, não pode alcançar, mas que foram divulgadas pela revelação
divina, ou seja, refere-se aos ensinos contidos no Novo e no Antigo
Testamentos (Rm 16.25-26; 1Co 2.7-10). A guarda dessas doutrinas
deve ser acompanhada de consciência limpa, isto é, a consciência livre
de mácula e de coisas vergonhosas, só adquirida por quem vive
retamente.
E necessário ainda que o diácono seja casado com mulher
respeitável, não maldizente, temperante e iel em tudo. O modo como o
apóstolo Paulo escreve em 1Timóteo 3.11 não deixa claro se ele tinha
em mente as esposas dos diáconos ou mulheres investidas no cargo de
diaconisas. Os comentaristas bıb́ licos estão divididos e, qualquer que
seja o caso, deve-se levar em conta que as mulheres da igreja primitiva,
ainda que prestassem serviços semelhantes aos dos diáconos (e.g.,
ajuda a pobres e doentes), como era o caso de Febe (Rm 16.1-2), jamais
eram investidas na autoridade própria de um o icial eclesiástico,
mantendo-se a liderança da igreja nas mãos dos homens (1Co 14.34;
1Tm 2.9-15).
Assim, é possıv́el que Paulo se re ira aqui a um grupo de mulheres
que servia a igreja, mas sem exercer a autoridade própria dos o iciais
ou, o que é mais provável, a alusão às mulheres diz respeito às esposas
dos diáconos, a irmando que suas quali icações deviam ser semelhantes
às exigidas de seus maridos. Essa última alternativa é corroborada pelo
v. 12, que mostra que Paulo, quando escreveu essas linhas, estava
pensando no lar do diácono casado.
Sem as quali icações expostas, não é possıv́el alguém se tornar
diácono. Também é verdade que, se alguém for consagrado ao
ministério diaconal e, depois de algum tempo, perder as quali icações
mencionadas, deverá ser afastado do cargo por tempo indeterminado
até que volte a satisfazer os requisitos bıb́ licos.
Finalmente, é bom observar que, ao concluir sua lista de quali
icações, o apóstolo Paulo aponta dois resultados do bom desempenho
do diaconato: “Justa preeminência” e “muita intrepidez na fé” (1Tm
3.13). O primeiro signi ica que o bom diácono se tornará um homem de
in luência e granjeará o respeito da comunidade em que ministra; o
segundo signi ica que desenvolverá coragem e con iança tanto para
anunciar o evangelho (At 7.51-60) como para se aproximar de Deus em
profunda comunhão (Ef 3.12).

O ministério da mulher na igreja

O padrão de liderança espiritual adotado pela igreja de Deus é


estritamente neotestamentário e não leva em conta tendências
modernas ou culturais. Por isso, nela, a liderança é masculina, do
mesmo modo que era masculina a liderança espiritual da igreja nos
tempos dos apóstolos (1Co 14.34,35; 1Tm 2.11,12; 3.1-13; Tt 1.5-9).
E verdade que, conforme a irmam alguns defensores da
ordenação de pastoras, no século 20 as mulheres conquistaram espaço
em várias linhas de frente, uma conquista que se iniciou por causa da
ausência de homens como mão de obra no perıó do imediatamente
posterior à Primeira Guerra Mundial.
Amauri Mascaro Nascimento, citando Alain Touraine e Bernard
Mottez, diz:

A I Guerra Mundial precipitou o


movimentode penetração da mulher nas o
icinas. Em 1900,na GrãBretanha, todavia, não
ultrapassaram a proporção de 10% do efetivo
dos empregados e, pouco antes da
guerra, passam a constituir ¼. Com a
guerra, 200.000 mulheres ingressaram nas o
icinas; em 1911,foram 185.000; em 1931,
580.000; em 1951, 1.200.000, mais da metade
do efetivo. Na França, em 1954, 48,3%
dos empregados do setor secundário e
52,5% do setor terciário eram mulheres,
somando 26% da força do trabalho
subordinado. Nos Estados Unidos, passaram
de 3,7 a
[65]
27%.

Essa necessidade do pós-guerra intensi icou-se em face do tão


acelerado progresso tecnológico que marcou o século 20 e abriu
espaços que até então eram não só inexistentes, mas também
inimagináveis para as mulheres dentro da esfera social.
Deve icar claro, no entanto, que já no século 18, com a Revolução
Industrial, um grande contingente de mulheres passou a integrar a
força de trabalho, numa proporção nunca vista anteriormente, o que,
indubitavelmente, também cooperou para a formação do cenário que
hoje se vê.
Também acerca disso escreve o professor Amauri Mascaro
Nascimento:

Por ocasião da Revolução Industrial do


século XVIII,o trabalho feminino foi
aproveitado em larga escala, a ponto
de ser preterida a mão de obra
masculina. Os menores salários pagos à
mulher constituíam a causa maior
que determinava essa preferência pelo
elemento feminino […] O processo industrial
criou um problema que não era conhecido
quando a mulher, em épocas remotas,
dedicava-se aos trabalhos de natureza
familiar e de índole doméstica. A
indústria tirou a mulher do lar, por 14, 15
ou 16 horasdiárias, expondo-a a uma
atividade pro issional em ambientes insalubres
e cumprindo obrigações muitas vezes superiores
às suas
[66]
possibilidade ísicas.

O mesmo autor, na obra citada, oferece ainda uma visão clara do


enorme espaço que a mulher passou a ocupar no processo de produção
naqueles dias. Diz ele:

A situação das mulheres não era


diferente… Em ins do século XVIII trabalhavam
em minas, fábricas metalúrgicas e fábricas
de cerâmica. A tecelagem, no entanto,
passou a absorvê-las em maior escala.
No estabelecimento DollfusMieg, em Mulhouse,
havia100 homens, 40 menores e 340
mulheres, proporção considerada normal na
indústria têxtil. Na mesma época, na
fábrica de porcelanas de Gien, a quinta
partedos efetivos era feminina. Em Creusot
haviaalgumas mulheres que trabalhavam nas
escavações de carvão, mais precisamente 250,
de um efetivo de 10.000 pessoas… Em
Londres, por volta de 1830,cerca de metade do
trabalho do ramo de indumentária era
realizada por mulheres. Contribuiu muito para
esse estado de coisas o emprego cada
vez maior da máquina de coser, inventada
por Thimonnier em 1830 […]. Essa máquina
não necessitava de qualquer energia
muscular e permitia a uma mulher fazer o
trabalho para o qual antes eramnecessárias
6 ou 7 […]. Reconheça-se, no entanto,
que não cabe à Revolução Industrial a
iniciativa da utilização da mão de obra
feminina. As mulheres sempre trabalharam.
A fábrica e os novos sistemas apenas
intensi icaram a sua participação no mercado
de trabalho que aumentou muito. [67]

Todos esses dados revelam que os espaços conquistados pelas


mulheres na atualidade foram abertos por causa de necessidades
econômicas seguidas de avanços tecnológicos que, como sempre,
tiveram forte impacto sobre a sociedade em geral. Isso, posteriormente,
atingiu a igreja, deixando fora de dúvida que a ordenação de mulheres é
o resultado tardio de um processo histórico e não de um processo
exegético.
Na verdade, quando algum debatedor que rejeita a ordenação de
mulheres apela para a exegese de textos bıb́ licos, seus oponentes
evitam o campo hermenêutico, dizendo apenas que as passagens que
fazem restrições ao ministério feminino na igreja foram produzidas
dentro de um contexto social machista, próprio do mundo antigo, não
devendo ser aplicadas no novo ambiente em que funciona e se
desenvolve a igreja contemporânea.
E sabido que a sociedade antiga era mesmo machista. Porém, de
modo nenhum se pode aceitar que os escritores bıb́ licos se deixaram
in luenciar tão largamente pela mentalidade do mundo em que
viveram. Ao contrário, o que se percebe é que o advento do
cristianismo deu impulso a uma verdadeira revolução no modo que a
mulher era vista na sociedade tanto judaica como pagã dos primeiros
séculos.
Com efeito, a fé pregada pelos apóstolos destacou o valor da
mulher, realçou a importância do seu papel, incentivou o respeito que a
ela é devido e a colocou em posição de igualdade com o homem diante
de Deus. Toda essa revolução, porém, não deixou de estabelecer
distinções funcionais entre ambos os sexos, ou seja, foi uma revolução
que, mesmo rejeitando o extremo machismo reinante naqueles dias,
manteve nıt́ idas as diferenças de papéis do homem e da mulher, tanto
na famıĺ ia como na igreja.
E nesse ponto que a revolução cristã difere da revolução feminista
do século 20. Esta desconsiderou as bases teológicas que explicavam o
porquê das restrições impostas pela igreja às mulheres e teve como
base principal, conforme dito, as necessidades econômicas oriundas do
primeiro grande con lito mundial e do progresso tecnológico. Isso,
somado à ausência de uma justi icativa para a limitação do papel da
mulher, fez com que, nas últimas décadas, alguns traços funcionais
distintivos entre homens e mulheres passassem a se confundir.
E difıć il calcular os prejuıź os dessa confusão. Há quem lhe
atribua especialmente a má formação moral e psıq́ uica das crianças de
hoje, bem como a fragilidade dos vıń culos familiares.
De fato, na sociedade de outrora, percebia-se uma distinção
bastante de inida entre os papéis do homem e da mulher: geralmente, o
homem saıá de manhã para trabalhar, enquanto a mulher icava
cuidando das crianças e da casa.
Na sociedade moderna, as funções dos dois não são tão distintas.
Muitas vezes o homem e a mulher trabalham e, nas “horas de folga”,
cuidam da casa. No inal das contas, as crianças têm uma relação muito
pobre com a famıĺ ia e deixam, por isso, de receber elementos
essenciais à formação de sua estrutura emocional, de suas capacidades
afetivas e do seu caráter.
Além disso, o modo de vida de seus pais ensina pouco sobre o que
é devido ao “papai” e o que é devido à “mamãe”. Desse modo, as
crianças crescem sem saber direito quais funções especı́ icas deverão
exercer quando formarem suas próprias famıĺ ias, o que contribui para
a frustração nos relacionamentos matrimoniais e o consequente
aumento do número de divórcios.
Enquanto a liberdade ou a igualdade das mulheres
permaneceram como um traço geral da sociedade moderna, a igreja
não sofreu grandes afrontas. Porém, a confusão funcional entre homens
e mulheres da sociedade avançada começou a se in iltrar na igreja — e
livros e debates sobre ordenação feminina, incomuns em outras épocas,
surgiram tentando oferecer a palavra inal sobre o assunto.
Nessas discussões, os defensores do pastorado da mulher sempre
apresentam os argumentos acima mencionados: “Vivemos numa época
em que a mulher conquistou grandes espaços; e os textos bıb́ licos que
limitam as funções da mulher na igreja devem ser considerados
impraticáveis hoje em dia por revelarem apenas o modo de pensar do
homem antigo”.
Independentemente, porém, do que se diga ou pense na
atualidade, o fato é que, no que se refere ao procedimento da mulher na
igreja, os cristãos têm diretrizes bem objetivas na Palavra de Deus.
Essas diretrizes foram observadas à risca pelas igrejas dos tempos
antigos, com as quais, sem dúvida, os crentes de hoje têm muito que
aprender.
Sabe-se, por exemplo, pelo testemunho literário, que a mulher
teve papel extremamente dinâmico nas diversas atividades ministeriais
da igreja antiga. Pelo fato de os cristãos daqueles tempos olharem com
admiração os seus mártires, qualquer evidência de rejeição de prazeres
era enaltecida como virtude e, por isso, as virgens que pertenciam às
diversas comunidades cristãs exerceram nos primeiros séculos do
cristianismo funções de destaque.
Isso ocorreu principalmente na igreja oriental, em que as funções
das virgens passaram mais tarde a se identi icar com as das viúvas.
Estas últimas, quando preenchiam as quali icações de 1Timóteo 5.9-10,
eram “inscritas” como membros de um grupo ministerial cujas
responsabilidades implicavam a prática da oração e de boas obras, bem
como o auxıĺ io a mulheres doentes.
Digno de nota é que, mesmo vistas pelos membros da igreja com
olhos do mais profundo respeito e apreciação, a evidência literária
demonstra que as viúvas, ou qualquer outra classe de mulheres, eram
proibidas de ensinar na igreja ou de batizar. Em toda a igreja antiga, o
consenso era que elas não podiam exercer funções consideradas então
como tipicamente masculinas.
Os documentos antigos também apontam para o fato de que
existia no perıó do pós-apostólico uma ordem de “diaconisas”. Sem
embargo, esse termo não tinha nada que ver com o modo que é usado
hoje. As diaconisas da igreja antiga não eram lıd́ eres, mas sim
auxiliadoras que tinham suas funções claramente de inidas. Seus
deveres terminavam onde começavam os dos bispos e tinham o
objetivo de ajudá-los quando os serviços deles se tornavam
inadequados pela força das circunstâncias.
Desse modo, elas eram chamadas a ministrar a outras mulheres
quando a ocasião não era favorável ao serviço de um bispo ou diácono.
Eram elas que auxiliavam no batismo de senhoras ou moças numa
época em que essa ordenança era realizada com o candidato totalmente
despido. Elas visitavam outras mulheres crentes e ministravam às
doentes. Assim, o ministério delas era extremamente importante na
igreja, porém, direcionava-se unicamente às mulheres.
Como se vê, dentro da comunidade cristã antiga, as distinções
funcionais entre homens e mulheres eram bem delineadas. Isso não
ocorria por questões culturais. Na verdade, se os cristãos antigos se
deixassem levar pela cultura reinante na sociedade daqueles dias, as
[68]
mulheres não teriam tido espaço nenhum dentro da igreja.
A verdade, porém, é que as limitações funcionais da mulher
tiveram como base a herança doutrinária deixada pelos apóstolos.
Foi de fato a doutrina cristã, não a cultura judaica ou pagã, que impôs
limites ao papel da mulher na igreja. H. Wayne House escreve:

O ensino da igreja apostólica era, e


a prática da igreja antenicena con irma,
que as mulheres receberam um novo status
na igreja, o qual di icilmente teriam
tido no mundo antigo. Mesmo com esse
reconhecimento de sua dignidade idêntica à
do homem, ainda assim, restrições
foram feitascom respeito à mulher por
causa do entendimento apostólico acerca
da relação entre masculino e feminino
presente na criação e na queda. Às
mulheres não era concedido ministrar numa
posição de autoridadeespiritual sobreos
homens na vida da igreja. Isso incluia
proclamação pública das Escrituras a
homens e funções pastorais tais como a
ceia do
[69]
Senhor e o
batismo.

Essas limitações ao ministério da mulher mencionadas por Wayne


House baseavam-se em textos como 1Corıń tios 14.34-37 e 1Timóteo
2.11-14. Quem observa essas passagens percebe que o apóstolo Paulo
em nenhum momento embasa suas restrições às funções das mulheres
em argumentos voltados para a cultura ou os costumes de seu tempo.
Em vez disso, o apóstolo põe como fundamento para as restrições ao
papel da mulher na igreja as seguintes doutrinas: a inspiração bıb́ lica;
a doutrina da criação; e a doutrina da queda.
Em 1Corıń tios, Paulo diz que o que escreve sobre o ministério da
mulher é “mandamento do Senhor” (v. 37), o que implica o ensino
acerca da inspiração divina daquilo que acabou de dizer no texto, não
sendo aceitável que algum crente o questione. Já em 1Timóteo, todas
as suas orientações se fundamentam no fato de primeiro ter sido
formado Adão e depois Eva (doutrina da criação), e no fato de Adão não
ter sido enganado, mas sim sua mulher (doutrina da queda).
O que Paulo escreveu, portanto, sobre o ministério feminino na
igreja, não se baseou nos costumes do seu tempo, mas sim em dogmas
inquestionáveis para o povo de Deus. Ele não deixou aos crentes de
hoje apenas vestıǵ ios acerca de como a mulher era vista ou tratada em
seus dias. Ele lhes deixou uma herança teológica e vivencial; algo que
deve ser defendido e aplicado com seriedade no dia a dia da igreja local
de hoje, do mesmo modo que foi no perıó do apostólico e na igreja
antiga.
Em face disso tudo, não há na igreja zelosa pastoras nem
diaconisas. Isso não signi ica que as mulheres não possam realizar um
trabalho abençoado junto à comunidade da fé (Rm 16.1-2). Na verdade,
a elas pode ser con iada a educação cristã dos pequeninos, a visitação
de pessoas enfermas e idosas, o ensino de classes de senhoras, o
trabalho em comissões especiais, a organização de campanhas, o
envolvimento direto com evangelização e missões, o desempenho de
cargos da diretoria estatutária e inúmeras outras atividades. Os cargos
de liderança espiritual, porém, são reservados a homens.
Deve icar bem claro que não existe nenhum tipo de superioridade
espiritual em alguém pelo simples fato de ser do sexo masculino. Em
Cristo, todos desfrutam a mesma posição diante de Deus (Gl 3.27-28).
Também não se deve questionar a competência ou capacidade de
alguém por ser mulher. Simplesmente, a igreja de Deus deve adotar um
modelo de funcionamento bıb́ lico e com ele conviver de modo pacı́ ico,
sem preconceitos ou menosprezos.

Superioridade ontológica e superioridade funcional

Para que o posicionamento bıb́ lico acerca do ministério feminino


não seja acusado de machista ou preconceituoso, é necessário que se
entenda a diferença entre superioridade ontológica e superioridade
funcional.
A superioridade ontológica diz respeito à supremacia que um
ente tem sobre outro como ser (ontos, em grego, signi ica “ser”). Por
exemplo, o homem é um ser superior aos animais ou às árvores. Por
outro lado, é inferior a Deus. Por isso, é correto dizer que existe uma
hierarquia ontológica entre Deus, o homem e o cavalo, estando Deus no
topo da pirâmide e o cavalo na base.
Ora, não é esse tipo de superioridade que existe entre o homem e
a mulher. Como seres, os dois estão no mesmo nıv́el, nenhum se
situando acima do outro, ambos desfrutando de igualdade ontológica
inquestionável.
A concepção religiosa, ilosó ica ou cultural que nega isso “coisi
ica” a mulher, tende a reduzi-la a um animal falante e acaba por
destruir sua dignidade. De fato, quando se adota a crença na
inferioridade ontológica da mulher, os homens se dão ao direito de
comercializá-las, escravizá-las, torturá-las e até matá-las.
Diferente da superioridade ontológica é a superioridade
funcional. Esta não diz respeito às distinções ligadas essencialmente ao
ser, mas sim ligadas aos cargos e funções que cada ser,
ontologicamente igual, exerce numa determinada instituição ou
comunidade.
Assim, numa famıĺ ia, por exemplo, enquanto há igualdade
ontológica entre pai, mãe e ilhos, existe uma hierarquia funcional entre
eles, estando o marido/pai no topo da pirâmide e os ilhos, na base (Ef
5.22-6.1; 1Pe 3.1-2).
Numa empresa, numa escola, numa corporação militar, num
estado, en im, em qualquer organização humana existe (ou deveria
existir) uma hierarquia funcional para que tudo tenha bom andamento.
Isso ocorre sem que ninguém possa dizer que o chefe, diretor, general
ou presidente seja um ser superior aos seus subordinados. De fato,
somente seu cargo é superior. A diferença entre o que ocorre nesses
casos e o que ocorre na igreja é que nesta a distinção funcional está
ligada ao gênero por força do ensino bıb́ lico.
E, pois, essa superioridade funcional entre homem e mulher que
deve ser ensinada e vivida na igreja, e não a superioridade ontológica,
destacando-se que, mesmo sendo seres de valor, dignidade e
capacidades iguais, homem e mulher foram dispostos funcionalmente
por Deus de forma desigual, ocupando o homem a posição de lıd́ er no
lar e na igreja, enquanto a mulher, nessas duas instituições, atua como
auxiliadora.
Perguntas frequentes

1) Como se dá, na prática, o chamado de um


indivíduo para o ministério pastoral?
O chamado para o ministério pastoral se realiza sob
dois aspectos: o interno e o externo. O chamado
interno é o desejo que a pessoa tem de ser
pastor (1Tm3.1). Sem esse anseio não se pode dizer que
alguém é vocacionado. É verdade que o chamado dos
profetas do AT con litava, às vezes, com a vontade
deles (Êx 4.10,13; Jn 1.1-3), mas não é assim no
caso do chamado para o ministério pastoral.
Quanto ao chamado externo, trata-se da decisão da
igreja que vê num de seus membros um ministro de
Cristo em potencial. O chamado externo é visto em Atos
14.23, onde se fala das igrejas elegendo seus
presbíteros.
Se faltar um só desses fatores, a vocação
pastoral será inexistente.

2) A Bíblia apresenta regras claras sobre liderança


eclesiástica?
É claro que sim. Podemos enumerar as seguintes:
a. Não negligenciar o espírito de servo (Mt 20.26-28;
Lc 22.26).
b. Não esquecer que sua função lhe foi con iada pelo
próprio Senhor (At 20.24; Cl 4.17).
c. Não lançar novos fundamentos doutrinários (1Co
3.10-11).
d. Não se afastar do padrão de excelência (1Co
3.12-17; 2Tm 4.5).
e. Não fomentar tensões (1Co 16.12; 2Co 2.1).
f. Não recusar o perdão (2Co 2.10-11).
g. Não negligenciar a família (1Tm3.4,15; Tt 1.6).
h. Não se descuidar do estudo da Palavra (2Tm2.15;
3.16-17).
i. Não tolerar a heresia e o pecado (2Tm2.22;
Ap 2.2,6,14-15,20).
j. Não ser contencioso (2Tm2.23-24).
k. Não buscar o interesse próprio (1Pe 5.2; Fl 2.3-
4,19-20).
l. Não ser dominador (1Pe 5.3; 3Jo 9-10).

3) O pastor não tem também a obrigação de fazer


visitas regularesnas casas?
O texto de Mateus 25.34-36 fala sobrevisitar doentes
e presos, dizendo que essa é uma prática que
distingue os justos dos injustos. No entanto, a
passagem não se refere a uma atividade pastoral, mas
sim a algo que se espera de todosos discípulos de
Cristo. Note-se ainda que as visitas mencionadas têm
como alvos especí icos os doentes e presos e não os
crentes que estão vivendo vidas normais.
Ademais, é preciso notarque o contexto indica que
as pessoas visitadas mencionadasna passagem não são
doentes e presos comuns, mas sim discípulos de Jesus
que adoeceram, foram encarcerados, fugiram para
outras terras e passaram privações por causa das
tragédias que marcarão o tempo da Grande
Tribulação e por causa da perseguição contra os
justos que haverá naqueles dias (Mt 24.7-10). Nada se
diz, portanto, no texto,sobrequalquer suposto deverpastoral
de ir regularmente às casas dos membros da sua igreja.

Na Bíblia, só existe a menção de um tipo de


visita especi icamente pastoral. É a hipótese prevista em
Tiago 5.14. Ainda assim, a iniciativa para a
realização dessavisita partedo enfermo que chama os
presbíteros para orar por ele. Tiago também fala de
visitar órfãos e viúvas nas suas necessidades (Tg
1.27),mas o signi icado desse texto não aponta para a mera
prática de ir à casa de alguém, mas sim para
gestos que aliviem os fardos dos menos favorecidos.
Ademais, Tiago 1.27 não é um texto dirigido
exclusivamente a pastores. Seu alvo são os crentes em
geral.
Não há, portanto, nenhuma exigência bíblica que obrigue
o pastor a fazer visitas sociais, didáticas,
admoestatórias ou de aconselhamento.Todos esses aspectos
do envolvimento do pastor com os membros da
igreja podem ser feitos em diferentes contextos, sendo a
visita no lar somente mais uma opção.
Assim, não é correto impor ao pastor o
deverde ir à casa dos irmãos com regularidade. Essa
prática é boa, conforme a experiência mostra, e
em alguns casos pode ser a únicaalternativaque o ministro
do evangelho tem para alcançar certos objetivos. Contudo,
a prática da visita regular não pode ser elevada à
categoria de obrigação pastoral.
Quanto aos perigos ligados ao costume de fazer
visitas constantes aos lares, vejam-se Provérbios 25.17,
Mateus 23.14, 1Timóteo 5.13 e 2Timóteo3.6.

4) Como o pastor deve lidar com membros


ranzinzas,que vivem reclamando e criticandotudo?
A princípio, ele deve admoestá-los brandamente, usando
as Escrituras para mostrar que essa atitude é
pecaminosa (Ef 4.29-32; Fl 2.1-2,14; Cl 3.12-17). A
permanência no erro dará ensejo a processos
disciplinares (veja-se cap. 5 ). Casosmais sutis e que
inviabilizam a aplicação da disciplina bíblica, podem
ser resolvidos se o pastor orientar a ovelha
insatisfeita a procurar outraigreja. Ao fazer isso, porém,
o líder não deve transmitir a ideia de raiva ou desprezo.
Nessa hipótese, o pastor pode dizer ao membro
descontente algo mais ou menos assim: "Irmão,
nossa igreja, assim como qualquer outra, tem suas
virtudes e seus defeitos. As virtudes tentamos preservar; os
defeitos tentamos superar, mas nem sempre temos
sucesso. Também temos nossas características próprias,
nossos estilos e costumes. Ocorre que, pelo que vejo,
esse nossoper il não oagrada, fazendo com que o irmão
se sinta sempre descontente e insatisfeito. Não é bom
que alguém venha à igreja e se sinta assim.
Por isso, creio que o irmão deveria buscar outro
lugar para se congregar. Há muitas igrejas boas por aí
afora e, certamente, Deus tem preparado uma que se
ajuste melhor aos anseios e expectativas do
irmão".
Seja qual for o caso, o que não pode ocorrer em
hipótese alguma é o pastor se retrair e,
intimidado, tentar agradar os que vivem
descontentes. Se agir assim, seu ministério girará sempre
em tornodessas pessoas e ele será, praticamente,
submisso a elas, agindo com medoe fazendo de tudo
para conquistar sua aprovação. Então, a igreja inteira
perceberá essa fraqueza e o líder perderá o respeito
de todos.

5) Existem crentes que, pelo seu modo de ser,


assim que chegamnaigreja vão logo ganhando
espaço, assumindo tarefas e tomando
iniciativas. Como lidar com esses casos?
Muito simples. Corte as "asinhas" depressa. Pessoas
assim geralmente agem em igrejas que têm liderança
fraca, mas pastores de pulso irme também têm que lidar
eventualmente com elas, pois muitas vezes essas pessoas
querem testar a liderança pra ver até onde podem
ir. Na verdade, há casos de excessos absurdos em que
o indivíduo mal chega na igreja e já assume a
postura de líder, convocando reuniões, manifestando suas
opiniões e questionando o modode funcionamento das
coisas. Diante de pessoas com esse per il,o pastor e
os demais líderes da igreja devem de pronto
obstruir a busca de espaço do crente recém-
chegado, chamando-o ao lado e dizendo que ele não tem
autorização nenhuma para tomar aquelas iniciativas, devendo
permanecer no seu lugar de novato. Infelizmente, muitos
pastores que passam por essa situação acreditam, por
ingenuidade, que estão sendo abençoados com a
chegada de um irmão (ou um casal,ou ainda uma
família) dinâmico e cheio de entusiasmo. Mais tarde,
porém, descobrem que não deviam ter dado espaço tão
depressa a um desconhecido e que a presença
daquele novo irmão na igreja é fonte mais de
problemas do que de soluções.

6) Como deve agir a mulher que acredita ter dons


ligados àatividade pastoral ou diaconal?
Ela deve realizar o pastoreio dos irmãos (cuidado,
conselho, consolo, etc.), sem exercer o pastorado (o
cargo de líder o icial da igreja). Também poderá
exercer a diaconia entre os santos (serviço, ajuda,
socorro, etc.), sem assumir o diaconato (a posição de
líder dentro da comunidade). Muitas senhoras fazem isso,
sendo extremamente úteis à igreja de Deus (Rm
16.1).

7) Foi dito neste capítulo que a mulher não


podeser líder naigreja. É possível, porém, que ela,
sem ser líder, pregue ocasionalmente nos cultos?
Muitos entendem que sim, a irmando que, nesses casos,
a mulher pregaria debaixo de uma autoridadeque lhe fosse
emprestada pelo pastor. Contudo, não existe base
nenhuma para se aceitar a noção de “autoridade
emprestada”. Aliás, se isso pudesse ser feito, então,
qualquer pessoa poderia assumir o púlpito da igreja,
desdeque o pastor lhe “emprestasse” sua autoridade.
Assim, em vez de buscar refúgio em conceitos
ilusórios de autoridade, o que se deve fazer é respeitar
a autoridadereal da Bíblia. Nela é clara a proibiçãode
a mulher ensinar na igreja, icando óbvioque se
ela o izer, exercerá autoridadecabível somente aos
homens e inverterá o modelo propostona doutrina da
criação, desconsiderando também um dos efeitos da Queda
(1Tm2.11-14).

8) O ministro de Música não é também um o icial


da igreja?
O cargo de ministro de Música não iguraentre os
o ícios eclesiásticos apontados no Novo Testamento.
Trata-se de uma criação recente que surgiu para suprir
as necessidades da igreja no campo do louvor
congregacional e das apresentações musicais litúrgicas
(coros, quartetos, orquestras, etc.). Obviamente, não existe
nada de errado em manter esse cargo na igreja. No
entanto, todos(inclusive o ministro de Música) devem
compreender que essa função não tem relação nenhuma
com a liderança espiritual da comunidade, nos termos
ixados pelo ensino apostólico. Isso signi ica que o
ministro de Música não é um tipo de pastor, nem
mesmo um diácono no sentido técnico do termo. De
fato, o chamado “ministro de Música” deve ser visto como um
membro comum da igreja que atua na área musical,
coordenando esse aspecto da vida eclesiástica sob os
auspícios da liderança bíblica.
Capítulo 8 – O PATRIMÔNIO MATERIAL
DA IGREJA

As verdades bıb́ licas devem permear cada aspecto da vida da


igreja. A administração dos seus bens materiais não é exceção.
E evidente que toda igreja, grande ou pequena, rica ou pobre,
detém a posse ou a propriedade de um determinado número de bens. O
modo como essas coisas são usadas pelos crentes, além do grau de
cuidado que recebem deles, re lete algo de sua visão acerca do senhorio
de Deus sobre tudo que a igreja tem.
Em tempos passados, quando se falava sobre esse assunto, a
palavra mordomia era bastante frequente na boca dos cristãos. Ao
pronunciar esse termo, os crentes reconheciam que, mesmo as coisas
materiais mais simples, pertencem, na verdade, a Deus, sendo dever
dos santos apenas cuidar delas com zelo elevado, como servos que
administram os bens do seu senhor.
Essa noção, porém, parece ter-se apagado um pouco da mente dos
cristãos, fazendo surgir na igreja a concepção equivocada de que não há
nenhum problema em usar o que lhe foi dado ao bel-prazer, como se o
que é material tivesse pequena importância e como se noções de
ordem, limpeza, estética e preservação não izessem parte dos ideais
cristãos.
Tudo isso deve ser corrigido na igreja que anseia re letir em sua
prática a natureza e o caráter de Deus. Para que essa correção seja feita,
porém, o povo santo deve resgatar os antigos fundamentos
doutrinários da mordomia cristã mencionada supra. E não somente
isso, mas também deve construir uma concepção bıb́ lica acerca do
espaço que possui, domina e sobre o qual exerce in luência
praticamente completa.

Os fundamentos bíblicos da mordomia cristã


A palavra mordomia é tradução do termo grego oikonomia, cujo
signi icado básico denota a administração ou gerenciamento de uma
casa habitada. Geralmente, o vocábulo correlato oikónomos (mordomo,
gerente ou tesoureiro) é traduzido nas Bíblias em português como
despenseiro, encarregado ou administrador.
No NT, o conceito de mordomia abrange o uso cuidadoso dos
dons espirituais que o Senhor concede a cada crente em particular (1Pe
4.10), a proteção, divulgação e manejo da sã doutrina (1Co 4.1-2) e o
bom trabalho pastoral (Tt 1.7). Aqui, porém, a mordomia cristã será
considerada sob um aspecto mais estrito, focalizando somente o modo
como a igreja local deve cuidar do seu patrimônio material. Nesse
sentido, uma boa de inição para a expressão em pauta é a seguinte:
mordomia cristã é a administração responsável e
sábia dos bens pertencentes a Deus que foram con iados
ao cuidado do seu povo.
As bases teológicas da mordomia cristã podem ser resumidas em
quatro proposições:

1. O Senhor é o criador de todas as coisas, de maneira que tudo


lhe pertence no céu, na terra e no mar. Sendo ele o dono de
tudo, todas as coisas que os homens recebem (e a vida dos
próprios homens! — Sl 24.1) são, a priori, dele (Dt 10.14; Sl
50.9-12; Ag 2.8).
2. Os homens detêm a posse e o uso das coisas graças à bondade
e liberalidade de Deus que é o único titular de sua propriedade
(1Cr 29.14; Jó 1.21; Sl 104.27-28; Mt 6.25-34; At 14.17; Tg
1.17).
3. Os crentes, conhecendo as verdades acima mencionadas,
devem zelar pelo que está em seu poder (Gn 2.15; Pv 24.3031),
usando tudo para a honra e glória do dono supremo de tudo
que há (Pv 3.9; Mt 25.14-30; At 4.36-37; 2Co 9.7-15).
4. Os bens materiais colocados por Deus sob a administração do
seu povo e a própria administração deles são, um e outro,
passageiros, de maneira que não deve haver apego excessivo
nem aos bens nem ao uso deles, sob o risco de se tornarem ins
em si e não meios que viabilizam o serviço santo (Sl 62.10; Lc
12.15-21; At 2.45; 4.31-35; 5.1-11; 2Co 8.1-4; Hb 13.5; 1Jo
3.17).

E essencialmente sobre esse fundamento quádruplo que a igreja


deve construir o modo como fará uso de todo o seu patrimônio, bem
como as medidas que adotará para protegê-lo e mantê-lo em ordem.

A teologia do espaço

Além das noções básicas de mordomia cristã, o uso e o cuidado do


patrimônio material eclesiástico devem também se sustentar sobre
aquilo que se pode chamar de uma teologia cristã do espaço, ou seja,
um grupo de verdades ligadas ao modo como Deus lida com a extensão
que rodeia tudo e todos e na qual a criação inteira está inserida.
A construção de uma teologia assim designada deve partir da
a irmação de que Deus é o criador do espaço e, por isso, é também
senhor dele. E necessário, pois, lembrar que não somente a matéria
veio à existência por um ato criador divino, mas também, e
necessariamente, o espaço que essa matéria ocupa em suas variadas
formas.
Aliás, se for aceito que o universo veio à existência pela palavra
que Deus pronunciou (criação pelo Fiat — Gn 1; Hb 11.3), então
é preciso reconhecer que, antes de criar qualquer outra coisa, o Senhor
primeiro criou o tempo (pois as sıĺ abas que compõem as palavras são
pronunciadas cronologicamente, uma após a outra) e o espaço (pois o
som das palavras pronunciadas se propaga no espaço e o que veio à
existência precisava de espaço para ocupar).
De fato, o espaço foi criado por Deus e a ele pertence, sendo que
disso decorrem importantes questões práticas. Por exemplo: sendo
Deus o senhor do espaço, como a igreja e o crente em particular devem
preenchê-lo? Outra questão: se o espaço é parte da criação e um dia a
criação será redimida, como o cristão e sua igreja podem hoje mesmo
resgatar o espaço, fazendo o reino vindouro ser percebido desde já
também nesse aspecto?
No tocante à primeira pergunta, está fora de dúvida que a igreja
deve santi icar todo espaço a que tem acesso e sobre o qual tem algum
grau de autoridade ou in luência. Isso não signi ica fazer cultos de
consagração de templos (tema que será tratado no Capítulo9), mas sim
usar o espaço de modo agradável a Deus, deixando-o livre de tudo que
desonre o Senhor e fazendo de cada salão, cômodo, corredor ou saguão
da igreja um ambiente em que Cristo seja glori icado.
Obviamente, sendo Deus o senhor do espaço, a igreja não pode
permitir que o ambiente que ocupa e administra seja usado para a
prática da impureza, da mentira, da fraude, da desonestidade e da
intriga. Antes, o lugar con iado pelo Senhor ao seu povo deve ser um
espaço no qual ele é obedecido, inclusive por ser seu verdadeiro dono.
Quanto à segunda pergunta formulada supra, de fato, a
Bíbliaensina que a criação um dia será redimida da corrupção do
pecado (Rm 8.18-22). Sem dúvida, isso abrange o espaço. Aliás, basta
olhar ao redor para perceber como o pecado afetou não somente o que
(as coisas), mas também o onde. Por toda parte são vistas a feiura, a
desorganização, a sujeira, a desolação e o mau gosto. E isso não se
percebe somente em favelas e becos. A própria arquitetura e a arte
contemporânea parecem ter perdido a noção de beleza, de ordem e de
estética, à medida que o homem foi se afastando da visão de que Deus é
o criador e o senhor de tudo.
Um dia, porém, conforme ensina a Escritura, quando o reino
milenar de Cristo inalmente se estabelecer neste mundo, todo espaço
será redimido dos efeitos do pecado e haverá completa beleza
permeando tudo. Toda a realidade criada — matéria, tempo e
espaço — estará livre do cativeiro da corrupção e o conhecimento
de Deus encherá toda a Terra, “como as águas cobrem o mar” (Is 11.6-
9).
Ora, o Novo Testamento convida os cristãos a, na medida do
possıv́el, trabalhar para que as bênçãos futuras do reino de Cristo se
realizem em alguma medida desde já (Rm 13.11-14; Hb 12.28). Por
isso, o crente que espera a redenção do espaço atua de modo a tornar
parcialmente real, aqui e agora, aquilo que será plenamente real
quando Cristo voltar. Assim, a igreja de Deus sempre se preocupará em
tornar bonito e bem-cuidado todo espaço que administra, sejam as
paredes de seus salões, seja sua área externa, ou mesmo sua cozinha e
seus sanitários.
A igreja que aguarda o reino e sabe que é seu dever antecipar
seus efeitos até onde a realidade presente permite eliminará dos
espaços que tem sob seus cuidados toda feiura, toda desolação, toda
sujeira e toda desordem. Assim, as pessoas verão, nos lugares em que
os cristãos vivem e convivem, verdadeiras partıć ulas do reino
vindouro e poderão enxergar uma “pontinha” de como será todo
espaço redimido quando, a inal, tudo estiver sob o cetro adorável do
Senhor.
Uma teologia do espaço deve também considerar o modo como o
próprio Deus se relaciona com o espaço que criou, sendo certo que isso
revelará muito do seu caráter e da sua vontade. Nesse aspecto, é
notável que, no relato da criação, Deus preenche o espaço com beleza e
ordem (Gn 1). Também no perıó do do êxodo, é nıt́ ida a preocupação
do Senhor em fazer com que as doze tribos de Israel ocupassem seu
espaço no deserto dentro de um programa prede inido de organização
(Nm 2). Ele também ixou ordens ligadas à limpeza do acampamento, a
irmando que a razão daquelas leis residia no fato de o povo ser santo e
de o próprio Senhor andar no meio do arraial, não sendo do seu agrado
ver coisas indecentes nos lugares de habitação temporária de Israel (Dt
23.12-14).
Ainda na época do êxodo, o valor que o Senhor dá à beleza e à arte
como fatores que devem digni icar um lugar pode ser visto no
tabernáculo e nas peças que o guarnecem. Nesse templo portátil, Deus
exigiu que tudo fosse belo, benfeito e organizado (Ex 25-27; 30.1-21),
qualidades que foram reproduzidas com excelência ainda maior no
templo construıd́ o posteriormente por Salomão (1Rs 5-6).
Algo da forma como Deus lida com o espaço pode, inclusive, ser
visto no túmulo de Jesus, local em que também ressuscitou dos mortos.
O relato de João diz que, quando entraram no túmulo na manhã de
domingo, os discıṕ ulos perceberam que o corpo de Cristo não estava
mais ali. Então viram o lenço que estivera sobre a sua cabeça enrolado
(Gr. entylísso) e posto num lugar à parte (Jo 20.7). E signi icativo que o
glorioso Senhor do universo, ao romper vitorioso os grilhões da morte,
mostrou a sublimidade de seu caráter ao arrumar e deixar em ordem o
local em que jazera, antes de, en im, deixá-lo e mostrar-se aos discıṕ
ulos.
Em tudo isso, é possıv́el ver o valor que o Deus verdadeiro dá ao
espaço, ornamentando-o sempre com tudo que é decente e aprazıv́el,
usando-o como cenário de cuidado e esmero, a im de ensinar aos
crentes de todas as eras um modo de vida ordeiro, limpo e
bemarrumado para que, vivendo assim, eles também anunciem ao
mundo algo mais das virtudes do Senhor que os resgatou de toda forma
de sujeira e caos. Ora, em nenhum outro lugar, essas lições devem ser
postas mais em prática do que na verdadeira igreja de Deus.
Uma pergunta importante

Todadoutrina bíblica corre o riscode ser mal


entendidae mal aplicada. Quais os perigos da má
compreensão da mordomia cristã e da teologia do
espaço?
Se a doutrina da mordomia cristã não for bem
compreendida, poderá desembocar numa proteção tão
intensa do patrimônioda igreja que as pessoas mal
poderão usá-lo, sentindo-sesufocadas sob inúmeras restrições.
Por isso, a concepção correta da mordomia cristã deve
levar em contaque o Senhor coloca bens nas mãos dos
crentes não somente para que eles cuidem deles,mas
também deles desfrutem. Do contrário, a igreja se tornará
serva e não bene iciária do seu patrimônio.
Quanto à teologia do espaço, o perigo de sua
má compreensão é tentar tornar o espaço tão belo
ao ponto de se gastar dinheiro com luxos
desnecessários. Quando isso acontece, o desejo de
resgatar o espaço atingido pela Queda acaba levando
à má mordomia dos recursos, pois estes passam a ser
empregados em futilidades.
Assim, no afã de cuidar do seu espaço,
resgatando a beleza e a ordem que Deus
tanto preza, a igreja deve primar especialmente pela
limpeza, pela boa arrumaçãoe por uma estética moderada
e equilibrada, livre de luxos inúteis.
Capítulo 9 – DESVIOS EVANGÉLICOS

Os tempos atuais têm se revelado imensamente férteis na


produção de desvios e heresias dentro do contexto dito evangélico. Na
verdade, é difıć il imaginar um ambiente em que a prática de distorção
das Escrituras seja maior do que a percebida hoje dentro das igrejas de
origem protestante.
Na verdade, ao que parece, muitas igrejas que se denominam
evangélicas concedem a si mesmas certas liberdades no campo da
hermenêutica, da ética, da liturgia e da eclesiologia aplicada que nem
mesmo as seitas mais danosas jamais ousaram arrogar para si. Essas
liberdades, obviamente, têm produzido desvios horrıv́eis que maculam
o nome do cristão diante da sociedade, exibindo a todos um
cristianismo caricaturizado, bem diferente daquele ensinado pelo
Senhor e pelos seus santos apóstolos.
Em face dos prejuıź os que esses modelos têm gerado para a
verdadeira igreja do Senhor, o crente de hoje deve evitá-los a todo
custo, retomando à mesma postura do pastor anabatista Menno Simons
(1496-1561), lıd́ er da reforma radical que loresceu no século 16 e
fundador da Igreja Menonita:

Irmãos, digo-lhes a verdade, não minto.


Não sou nenhum Enoque, não sou nenhum
Elias, não sou ninguém que tenha visões, não
sou profeta que possaensinar e profetizar
algo além do que esteja escrito na Palavra
de Deus e seja compreendido no Espírito.
[...] Mais uma vez, não tenho visões nem
inspiraçõesangélicas. Nem as desejo, para não
ser enganado. A Palavra de Cristo, por
si só, é su iciente para
[70]
mim.
Para estimular os membros da igreja de Deus a imitar Menno
Simons em seu apego à Palavra de Cristo, fugindo assim dos chocantes
desvios evangélicos da atualidade, este Capítulotratará de alistar esses
mesmos desvios, expondo suas principais ilusões sob a luz da Bíblia.
[71] O pentecostalismo

Ao longo de sua história, a igreja cristã tem enfrentado três graves


perigos: o paganismo, o papismo e o pentecostalismo.
O paganismo ameaçou a igreja logo nos primeiros anos de sua
existência, especialmente por meio de um misto de religiões, iloso ias e
fábulas que mais tarde icou conhecido como gnosticismo. Esse modelo
exercia forte atração sobre os cristãos menos preparados porque, além
de oferecer experiências mıś ticas, como visões e coisas do tipo (Cl
2.18), também impunha aos seus seguidores normas de conduta que
pareciam piedosas — regrinhas como “não pode isso, não pode aquilo”
(Cl 2.20-23). O maior atrativo do gnosticismo, porém, estava na
alegação de que seus adeptos formavam uma elite espiritual detentora
de um grau de espiritualidade e conhecimento (gnosis) que outras
pessoas eram incapazes de ter.
O papismo, por sua vez, desenvolveu-se em decorrência de
processos muito mais longos e complexos, iniciados já no século 2, e
que culminaram no surgimento de uma espécie de prıń cipe
eclesiástico com autoridade universal, supostamente dotado de in
initos poderes temporais e espirituais — uma espécie de deus,
reconhecido, aliás, como infalıv́el!
Por causa do papismo, a igreja medieval icou muitas vezes nas
mãos de homens inescrupulosos, imorais e corruptos que, em nome de
Cristo e em benefıć io próprio, cometeram atrocidades como as guerras
das Cruzadas, os crimes da Inquisição e a exploração impiedosa do
povo por meio da venda de relıq́ uias e de indulgências. O caos e a
vergonha a que o papismo lançou a igreja deram ensejo à Reforma
Protestante do século 16.
O terceiro perigo, o pentecostalismo, é de todos o mais recente e
também o mais danoso, posto que abriga elementos dos dois primeiros
e, conforme será demonstrado, trouxe prejuıź os para o cristianismo
que nem mesmo os piores inimigos da fé foram capazes de causar
nesses 2 mil anos de história eclesiástica.
O surgimento do movimento pentecostal geralmente é datado de
1906, ano em que William Joseph Seymour, um pregador
afroamericano, iniciou reuniões num barracão na Rua Azuza, número
312, em Los Angeles, EUA. Nessas reuniões, a ênfase era a busca do
batismo com o Espıŕ ito Santo, o que Seymour cria ser uma experiência
mıś tica pós-conversão, acompanhada pelo falar em lıń guas.
Ora, a Bíbliaensina que o batismo do Espırito Santo é dado á todos
os crentes, sem que eles precisem se esforçar para obtê-lo (1Co 12.13;
Gl 3.2). Também ensina que isso ocorre no momento da conversão (Ef
1.13), sem nenhuma necessidade de ser evidenciado pelo dom de lıń
guas, já que, na Igreja Primitiva, esse dom era dado somente a alguns
(1Co 12.30).
Contudo, os seguidores de Seymour criam que o batismo do
Espıŕ ito Santo era uma espécie de segunda bênção (a primeira bênção
seria a conversão) dada por Deus somente a quem a buscasse com
orações, jejuns, clamores, lágrimas e vigıĺ ias.
Por isso, testemunhas oculares relataram que, na Rua Azuza, as
pessoas passavam dias e noites gritando, chorando, gemendo, uivando,
pulando, girando e se contorcendo, enquanto clamavam pela “bênção”.
Já os que eram “batizados” balbuciavam o que criam ser lıń guas
estranhas e, em êxtase, caıá m no chão, onde icavam rolando ou se
sacudindo, numa manifestação frenética de loucura total. Outros, ainda,
desmaiavam e icavam deitados por horas a io, inertes como se
estivessem mortos.
Tudo isso, pensavam, era necessário e valia a pena, pois o batismo
do Espıŕ ito Santo, uma vez recebido, elevaria o crente a um novo e
mais rico patamar espiritual, tornando-o participante de uma elite de
homens santos e fazendo-o desfrutar de uma vida repleta de
experiências poderosas e arrebatadoras com Deus.
Foi dito aqui que o primeiro grande perigo que ameaçou a igreja
de Cristo foi o paganismo manifesto em doutrinas gnósticas. Com isso
em mente, note-se que o pentecostalismo demonstrou ser um dos
maiores danos que já sobrevieram à igreja porque, com sua ênfase
numa doutrina jamais ensinada nas Escrituras, trouxe de volta para o
cristianismo precisamente aquelas velhas noções pagãs, apegando-se
ao êxtase, ao frenesi espiritual e, especialmente, ao principal conceito
gnóstico da existência de uma elite espiritual que se situa acima dos
crentes comuns.
Então, como ocorreu com o gnosticismo nos séculos 1 e 2, a
possibilidade de provar emoções novas e de fazer parte de uma elite
espiritual fez com que o pentecostalismo atraıś se uma imensa massa
de pessoas ávidas por experiências mıś ticas e sedentas por conquistar
o reconhecimento e a admiração dos seus correligionários.
Conforme dito anteriormente, a segunda maior ameaça sofrida
pela igreja ao longo dos séculos foi o papismo. Ora, o pentecostalismo
também não deixou de fora os principais elementos desse mal. Com
efeito, além de trazer novamente para a igreja de Cristo o velho
paganismo combatido pelos pais apostólicos do século 2, o movimento
pentecostal trouxe também, para a igreja evangélica, o velho papismo
combatido pelos reformadores do século 16. A diferença é que o
papismo pentecostal é um papismo múltiplo e numeroso.
De fato, se no romanismo foi acolhida a igura de um papa apenas,
no movimento pentecostal ocorreu a proliferação de um exército de
pequenos papas locais, todos reivindicando autoridade divina e
infalibilidade absoluta sob os tıt́ ulos de bispo, apóstolo, profeta ou
patriarca.
Essas iguras alegam que Deus lhes fala diretamente e, à
semelhança dos pontı́ ices medievais, não aceitam que suas opiniões ou
condutas sejam questionadas por ninguém e em nenhum grau.
Também à semelhança dos papas renascentistas, muitos lıd́ eres
pentecostais exploram a boa-fé do povo e juntam tesouros para si,
vendendo quinquilharias que dizem ser santas e dotadas de poder.
Os seis males do pentecostalismo

Se o pentecostalismo abriga elementos do paganismo e do


papismo, há também outras razões muito mais perceptıv́eis que
comprovam que essa vertente dita evangélica prejudica a causa cristã.
Para expor essas razões, basta descrever o pentecostalismo como uma
fábrica de seis males: heresia, superstição, falsos irmãos, hipocrisia,
desordem e desilusão.
Por que o pentecostalismo pode ser considerado uma fábrica de
heresias? A resposta é simples e lógica: crendo que Deus fala
diretamente aos seus apóstolos e profetas, bem como àqueles que
foram agraciados com a “segunda bênção”, os pentecostais raramente
valorizam o estudo teológico, a exegese ou mesmo as lições mais
elementares da hermenêutica bíblica Para que — dizem muitos deles
— se afadigar na análise do texto bıb́ lico, no aprendizado das lıń guas
originais ou na leitura de obras de profundidade doutrinária se Deus
nos fala diretamente?
Aliás, no afã de ressaltar essa fábula, alguns pastores pentecostais
mais criativos deixam uma cadeira vazia ao seu lado no púlpito, a
irmando que aquele lugar é ocupado por um anjo ou pelo próprio Espıŕ
ito Santo que, pondo-se ao seu lado, sussurra as coisas que ele deve
dizer à multidão.
Agravando essa situação, grande parte dos lıd́ eres pentecostais
se opõe ferozmente ao estudo da teologia, dizendo que “a letra mata”
(2Co
3.6). Ora, o claro contexto dessa citação é su iciente para mostrar que
Paulo fala ali da Lei Mosaica (a letra) e seu impacto mortal sobre
aqueles que tentam ser justi icados por meio da sua observância. Para
muitos pentecostais, porém, nesse texto, Paulo, justamente o apóstolo
mais estudioso do Novo Testamento (At 26.24), reprovava o
dedicado estudo da Palavra de Deus!
O resultado dessa forma de pensar é que o pentecostalismo acaba
sendo uma cadeira de balanço para os que se deleitam na preguiça
intelectual e dá ensejo para que homens sem preparo, seguindo as
imaginações de seu próprio coração e chamando tudo que lhes vêm à
mente de “revelação”, ensinem aos seus seguidores absurdos que vão
desde as parvoıć es mais ingênuas até as heresias mais deploráveis e
destruidoras.
Diante disso, é triste dizer, mas a conclusão a que se chega é que
poucas vezes na história do pensamento cristão existiu uma fábrica de
heresias tão produtiva como o pentecostalismo. Com efeito, os
estudiosos de história eclesiástica sabem que nem Márcion, o
arquiherege do século 2, nem os montanistas, nem os defensores da
cristologia heterodoxa que ameaçou a igreja nos séculos 4 e 5, nem os
cátaros, nem o catolicismo medieval, nem os radicais da época da
Reforma, nem as seitas pseudocristãs da atualidade superaram o
pentecostalismo na produção de doutrinas estranhas, desvios
teológicos, erros de interpretação, ensinos destruidores, lições
[72]
perigosas e propostas antibıb́ licas.
O segundo mal que a máquina pentecostal produz
incansavelmente é a superstição. Mais uma vez, a noção de que Deus
fala diretamente a seus profetas, revelando coisas novas a cada dia, fez
com que o pentecostalismo abrisse as portas para o misticismo
religioso, repleto de crendices toscas inventadas por pessoas que
diziam ter recebido uma “revelação” do céu.
Os reformadores do século 16 a irmavam que a superstição é ilha
da ignorância. Assim, conhecendo pouco da doutrina bıb́ lica e iando-se
nas ilusões de inúmeros sonhadores, muitos irmãos em Cristo foram
ensinados a acreditar em frases mágicas (“eu determino”, “tá
amarrado”; “eu tomo posse”, “eu não aceito...”), em rituais de quebra de
maldição, na força maior de orações feitas de madrugada, no poder de
objetos ungidos com óleo de cozinha e até em água milagrosa obtida
por meio de um copo deixado sobre o aparelho de TV durante a
transmissão de algum programa evangélico.
Percebendo a facilidade com que as massas criam nessas coisas,
homens perversos e impostores foram atraıd́ os para o meio
pentecostal onde conquistaram postos de liderança e se tornaram
pastores de muitas ovelhas verdadeiras de Jesus. Então, movidos pela
ganância, esses homens inventaram ainda mais superstições, criaram
um amplo comércio de relıq́ uias muito semelhante ao que a igreja
católica explorou na Idade Média e enriqueceram vendendo cacarecos
ungidos, prometendo saúde e prosperidade por meio dessas coisas
(2Pe 2.1-3).
[73]
Muitos, sofrendo debaixo de graves problemas pessoais, seguiram
esses homens, acreditando que a vida ia melhorar e, então, os salões
pentecostais icaram lotados, fazendo com que o movimento atingisse
um grau de crescimento talvez jamais visto no meio cristão.
Infelizmente, contudo, grande parcela desse crescimento não
decorreu da genuıń a conversão, mas da grosseira superstição. Por
causa disso, a maravilhosa fé cristã, exposta e defendida por gigantes e
santos do passado, passou a ter em vários lugares a pecha de uma
religião de feiticeiros, muito semelhante à macumba, ao candomblé, ao
baixo catolicismo e ao fetichismo de tribos primitivas.
O terceiro mal que o pentecostalismo fabrica incessantemente são
os falsos irmãos. Se, de um lado, não se pode duvidar da veracidade
da fé de muitos irmãos pentecostais, nem da nova vida que receberam
em Cristo, de outro, não há como negar que um número enorme de
pentecostais jamais conheceu a salvação anunciada no verdadeiro
evangelho.
Isso acontece especialmente porque, quem se ilia a esse
movimento, geralmente, o faz em busca dos milagres de Cristo e não do
seu perdão. Porém, outra causa para o grande número de incrédulos
dentro dessa vertente evangélica está no fato de que a maior parte dos
pentecostais acredita, piamente, na heresia arminiana da perda da
salvação.
Consequentemente, ainda que a irmem em teoria que a salvação é
somente pela fé em Cristo, na prática, muitos pentecostais vivem
tentando se manter salvos por meio da religiosidade aparente, das
práticas rituais e da observância de regras criadas pela igreja. Em casos
mais extremos, muitos deles chegam a acreditar que preservam a
salvação porque não deixam a barba crescer ou porque nunca vestiram
uma bermuda!
Tudo isso mostra, tristemente, que muitos pentecostais jamais
entenderam as boas-novas de Cristo, sendo apenas incrédulos
oprimidos tentando melhorar de vida ou buscando ser salvos pelo
esforço próprio.
Obviamente, essa presença enorme de falsos crentes no meio
evangélico, produzida especialmente pelo movimento pentecostal, é
uma das principais causas do descrédito a que foi lançado o
cristianismo nos tempos modernos.
A hipocrisia é o quarto mal que a máquina pentecostal fabrica.
A ênfase numa espiritualidade marcantemente exterior, com gritos,
pulos e quedas no chão, deu espaço para constantes representações
teatrais. Com efeito, simulando o que chamam de “transbordar do Espıŕ
ito”, muitos pentecostais sapateiam, rodopiam e se contorcem
freneticamente, tudo para convencer os outros de que são fervorosos
espiritualmente.
Também a altıś sima valorização do falar em lıń guas impeliu esse
povo ao ingimento ou à autossugestão, levando-os a repetir, por conta
própria, três ou quatro sıĺ abas desconexas a im de dar a impressão de
que foram agraciados com o maravilhoso dom descrito em Atos 2.
Buscando ainda status dentro da igreja, muitos pentecostais
ingem profetizar, quando, na verdade, somente dizem qualquer coisa
que lhes venha à mente e que possa estar relacionada à vida alheia.
Naturalmente, todo esse teatro é facilmente percebido por qualquer
pessoa normal, o que transforma a fé cristã em motivo de piadas aos
olhos dos incrédulos.
O quadro descrito acima desemboca facilmente no quinto mal
produzido pelas igrejas pentecostais: adesordem. Durante os cultos de
várias igrejas pentecostais, uns riem sem parar, outros uivam; uns
correm de lá para cá, outros rolam no chão; uns dançam; e outros oram
aos gritos. No inal, dizem que tudo isso é fervor ou ação do Espıŕ ito
Santo e acusam as igrejas ordeiras, centradas no estudo da Palavra,
marcadas por decência, reverência e santo temor, de frias e carentes de
vigor espiritual.
Finalmente, o sexto mal que se origina no pentecostalismo é a
desilusão. Ouvindo profecias vazias e revelações inventadas, muitos
crentes sinceros que pertencem a essas igrejas criam esperanças que
jamais se cumprem e que os lançam, en im, num poço de frustração.
Quando isso acontece, para agravar a situação, são acusados por quem
diz que as ditas profecias não se cumpriram por causa da falta de fé.
Então, além de frustrados, esses irmãos passam a se sentir também
culpados, vivendo infelizes por muitos anos.
Outros, seguindo orientações que lhes disseram ter sido reveladas
por Deus, tomam decisões ou praticam coisas que põem em risco sua
famıĺ ia, seu casamento, sua juventude, seu futuro, sua saúde, sua
carreira e seu patrimônio. Infelizmente, inúmeros irmãos, quando en
im despertam para isso, percebem muitas vezes que é tarde demais.
Há ainda aqueles que, numa busca cansativa pelo que acreditam
ser o batismo do Espıŕ ito Santo, entregam-se a um rigorismo cruel que
os priva do lazer (cinema é pecado!), do conforto (mulher de calça
comprida? Nem pensar!), do alegre convıv́ io com os ilhos pequenos (ir
à praia com eles seria pura carnalidade!) e até dos prazeres do leito
conjugal. No im de tudo, ao descobrir que nada disso teve qualquer
proveito, passam a se lamentar frustrados, percebendo que foram
enganados, que a vida passou e que aquilo que perderam não pode
mais ser recuperado.
Veem-se, assim, quantos males são causados pelo
pentecostalismo. Como evitá-los? Como fugir deles? Isso será visto na
próxima seção.

Opções para o pentecostal realmente convertido

Muitas pessoas vão dizer que este Capítulofaz confusão entre


pentecostalismo e neopentecostalismo. Dirão que, na verdade, é
somente o neopentecostalismo que realiza os abusos aqui
mencionados, estando o pentecostalismo “clássico” livre disso tudo.
Esse parecer resulta de certas distinções que foram feitas no
passado entre o chamado pentecostalismo de “primeira onda” (com
ênfase no batismo do Espıŕ ito acompanhado de lıń guas estranhas), o
pentecostalismo de “segunda onda”, também chamado de “movimento
carismático” (com ênfase em curas e milagres) e o da “terceira onda”
(que, além das doutrinas tipicamente pentecostais e carismáticas, adota
[74]
ainda a teologia da prosperidade). Sem dúvida, essa distinção tem
certo valor como forma de classi icação que auxilia a análise histórica
do movimento. Contudo, a observação do cenário atual mostra que, na
prática, a referida diferenciação tornou-se obsoleta, não fazendo mais
qualquer sentido.
Com efeito, como acontece em qualquer praia em que uma “onda”
logo se mistura com outra, o mesmo ocorreu com o pentecostalismo.
Por isso, hoje é possıv́el perceber que a “primeira”, a “segunda” e a
“terceira onda” se mesclaram, viraram uma vaga só, espumando juntas
os mesmos erros e perigos. Isso faz com que igrejas ligadas ao
pentecostalismo clássico exponham doutrinas e práticas tipicamente
atribuıd́ as ao neopentecostalismo (e vice-versa), tornando difıć il
separar as duas vertentes.
Ao que parece, a diferença entre pentecostalismo e
neopentecostalismo, se houver, poderá talvez ser encontrada na
eventual ênfase que cada igreja em particular dá a um erro especı́ ico.
No alicerce, porém, e em muitos desdobramentos práticos, todo o
movimento se iguala, pois as comunidades que o compõem adotam os
mesmos pressupostos, praticam e pregam basicamente as mesmas
coisas, a irmando a crença na “segunda bênção”, abraçando doutrinas e
ensinos estranhos e buscando as revelações e os portentos que
acreditam ser concedidos por Deus aos seus supostos apóstolos e
profetas.
Feita essa ressalva, importa agora voltar a atenção para os crentes
em Cristo que se encontram nas igrejas pentecostais. Há muitos
cristãos de verdade nessas comunidades. São irmãos em Cristo que
percebem que algo está errado, que sentem a falta de alimento sólido,
que observam inconformados aquelas manifestações forçadas de
arrebatamento espiritual, que sofrem percebendo a ação de falsos lıd́
eres e a santidade hipócrita de pessoas que louvam a Deus com gritos,
mas tem a vida cheia de impurezas (Is 29.13).
São também irmãos que, à vezes, se sentem culpados, pensando:
“Será que o errado sou eu? Será que não tenho fervor? Será que Deus
está realmente agindo aqui e só eu não estou vibrando? Por que não
sinto vontade de gritar e pular? Por que não consigo falar em lıń guas?
E quanto a essas profecias, curas e orações barulhentas? Será que só eu
percebo que são forçadas?”.
Há muitos irmãos amados que enfrentaram esses dilemas no
meio pentecostal e que hoje estão num aprisco bıb́ lico. Outros, porém,
geralmente por causa de vıń culos sociais e afetivos, ainda vivem nesse
meio, mesmo se sentindo incomodados e pouco à vontade. Para esses
crentes de verdade, há quatro opções:

1. Permanência com in luência. Nessa primeira opção, o


crente permanece na igreja em que está, tentando mudar as
coisas. Trata-se de uma decisão nobre, mas a experiência mostra
que tem poucos resultados. Ademais, essa opção tem se mostrado
perigosa, pois, geralmente, com o passar do tempo, os crentes que
a adotam icam indiferentes diante do erro. Aos poucos, sem que
percebam, tornam-se menos rıǵ idos em seus julgamentos. A
constante e tácita convivência com o desvio faz com que, para
eles, o mal se torne normal (e até engraçado). O resultado inal é
que, sem alimento espiritual e com as faculdades amortecidas,
seu testemunho entra em colapso, seu casamento começa e
enfrentar crises e seus ilhos, quando crescem, correm para o
mundo, dizendo que tudo na igreja não passa de representação
barata.

2. Ecclesiola in ecclesia. Essa expressão, que signi ica


“pequena igreja dentro da igreja”, foi usada especialmente pelos
puritanos da Inglaterra para se referir a pequenos grupos de
crentes verdadeiros que se reuniam para cultuar a Deus de
maneira correta, sem, contudo, se desligar da igreja maior, cheia
de erros, à qual pertenciam. Essa opção pode ser útil,
especialmente porque uma ecclesiola seria um bom lugar para
levar o visitante, sem passar por constrangimentos. Além disso,
talvez seja uma forma de obter alimento verdadeiro. Porém, essa
alternativa é perigosa porque pode gerar orgulho espiritual ou
até mesmo uma forma de elitização. Ademais, a liderança da
igreja maior se indisporá com grupos assim e os problemas serão
inevitáveis.

3. Formação de uma nova igreja por um grupo. A


vantagem dessa opção é o surgimento quase imediato de uma
igreja séria. Porém, os perigos dessa medida a tornam
desaconselhável. Isso porque a nova igreja nascerá com a fama de
dissidente, enfrentando a forte oposição da igreja de origem. Esta,
em regra, não poupará esforços para caluniá-la, enfraquecê-la e
até destruı-́ la. Ainda que possa sobreviver a tudo isso, o
sofrimento decorrente dessas investidas deixará marcas que
poderiam ser evitadas caso fosse adotado um modo de agir
diferente.

4. Saída individualpací ica. De todas as alternativas, essa


é a melhor. Nessa opção, o crente simplesmente se desliga da
comunidade maculada em que se encontra e se ilia a uma igreja
séria, onde poderá nutrir comunhão com seus irmãos e cultuar a
Deus longe de escândalos, encenações e desordens. Conforme
dito, muitos crentes de origem pentecostal têm tomado essa
iniciativa e hoje fazem parte de outras igrejas. O senso de terem
achado inalmente o seu lar, a alegria de aprender a Palavra de
Deus a partir da hermenêutica sadia e o alıv́ io de terem se
livrado de um ambiente eclesiástico nocivo, repleto de excessos,
fazem desses irmãos os mais gratos e vibrantes crentes que há no
meio cristão.

Seja qual for a opção adotada pelo crente que pertence a uma
comunidade pentecostal, o fato é que ele não deve, de modo algum,
perpetuar sua participação ali de maneira que comprometa seu
crescimento espiritual e o de sua famıĺ ia. A santi icação é valor
inegociável e nenhum tipo de paz pode ser nutrido à parte dela (Hb
12.14).

Estratégias perigosas

O grande avanço da causa pentecostal se deu, muitas vezes, pelos


meios comuns de expansão, como a evangelização, o trabalho
missionário e o plantio de igrejas. Contudo, nem sempre o
pentecostalismo realizou suas conquistas usando métodos corretos e
honestos. Na verdade, em vários casos, o crescimento dessa vertente
evangélica ocorreu em prejuıź o de muitas igrejas sérias e às custas do
bem-estar espiritual de inúmeras ovelhas, isso sem falar das dores e
angústias causadas a um número in indável de pastores e obreiros.
Entre esses métodos espúrios de expansão, dois deles se
destacam dada a grande frequência com que foram e têm sido
empregados ao longo das últimas décadas. O primeiro deles consiste
em colocar em marcha um processo relativamente lento de
pentecostalização de igrejas tradicionais, dando passos às escondidas,
sem que os pastores saibam. Esse processo comumente ocorre pela
superação das seguintes etapas:

Etapa 1 – In iltração. Um determinado indivıd́ uo de


convicções pentecostais começa a frequentar uma igreja
tradicional, mesmo havendo várias igrejas de sua linha
doutrinária próximas de sua casa. Esse indivıd́ uo geralmente
acredita ser um enviado de Deus com a missão sagrada de iniciar
um avivamento naquela igreja “fria”. Ele, porém, a princıṕ io, não
revela o que pensa. Isso ocorrerá lentamente nas fases que se
seguirão.
Etapa 2 – Proselitismo. Aos poucos, enquanto
frequenta assiduamente a igreja, o suposto enviado de Deus,
ainda sem revelar abertamente suas ideias, começa a fazer
amizades com os membros, detectando os mais vulneráveis e
conquistando sua con iança. Junto a essas pessoas, ele começa a
disseminar ensinos pentecostais com relativa discrição, chegando
a fazer alguns discıṕ ulos. Nessa fase, já é possıv́el notar
publicamente alguns sinais de suas tendências doutrinárias, pois,
estando mais à vontade, ele deixa escapar traços do
pentecostalismo em suas orações, durante os perıó dos de
cânticos ou em conversas triviais.

Etapa 3 – Reuniões no lar. Tendo conquistado a


amizade mais estreita de vários membros da igreja, o agente
secreto pentecostal os convida para uma “reunião de oração” em
sua casa, sem o conhecimento do pastor e de outros lıd́ eres que
possam representar ameaça aos seus planos. Nessa reunião, o
pentecostal assume a direção de tudo, a inal de contas foi ele
quem a convocou e a reunião é em sua casa. Ali ele propõe que os
participantes orem para que Deus desperte o pastor e faça uma
obra de vivi icação na igreja que está morta. Essa proposta de
oração tem dois objetivos: primeiro, acusar o pastor e a igreja de
estarem mal espiritualmente; segundo, aliviar a consciência dos
participantes, dando a entender falsamente que a reunião ali não
tem como objetivo fazer oposição, mas sim dar suporte em
oração. Essas reuniões começam a se tornar frequentes, mais
membros da igreja são convidados a participar (exceto o pastor)
e, nesses “cultos”, o pentecostal passa a expor abertamente todas
as suas doutrinas e práticas, induzindo os crentes despreparados
a aceitá-las.

Etapa 4 – Divisão. O pastor (que já havia notado que


algo estranho estava acontecendo) toma inalmente ciência das
reuniões “avivadas” e tenta interferir. O grupo que, por meses a
io, ouviu sugestões de que o pastor não tinha uma “experiência
real” com o Espıŕ ito Santo resiste, dizendo que ele está se
opondo à obra poderosa de Deus. A partir desse ponto, a igreja
se divide, com pessoas dando apoio ao pastor e outras se unindo
ao grupo dissidente. No im, um dos partidos é obrigado a se
retirar, num rompimento que deixa marcas profundas na vida de
todos e enfraquece a igreja por longos anos.

Esse método de avanço pentecostal foi muito utilizado nas


décadas de 1970 e 1980, sendo enorme o número de igrejas
tradicionais que foram vıt́ imas do que é descrito aqui. Não se deve,
porém, pensar que se trata de uma estratégia obsoleta. Na verdade,
ainda hoje essa forma terrıv́el de agir é adotada e as igrejas bıb́ licas
devem estar alertas a im de que, caso esse perigo se insinue em seu
meio, o mal seja cortado pela raiz.
Especialmente os pastores de hoje — homens que aprenderam
com a história recente quão grandes são os danos causados pelo
expediente descrito acima — têm de sempre alertar suas igrejas e,
estando vigilantes, devem logo no inıć io expulsar corajosamente do
seu meio os indivıd́ uos que chegam e dão sinais de querer conduzir os
irmãos por outros rumos doutrinários.
A segunda estratégia espúria muito usada por pentecostais no afã
de expandir sua doutrina e se apossar de igrejas inteiras é ainda mais
danosa, pois, uma vez bem sucedida em sua primeira etapa, fatalmente
sairá vitoriosa no alvo de conquistar toda a comunidade. O processo se
desdobra da seguinte maneira:

Etapa 1 – Ascensão. Um pastor com convicções


pentecostais, escondendo sua linha doutrinária, é convidado para
assumir o ministério numa igreja tradicional. Ele aceita o convite
nutrindo reservas e alvos secretos em sua mente.

Etapa 2 – Mapeamento. Analisando a membrezia, o


pastor detecta os que têm inclinações pentecostais, os que são
doutrinariamente neutros e os que são mais “duros” e que jamais
aceitarão suas ideias.

Etapa 3 – Avanço cuidadoso. A medida que vai


ganhando a amizade, a simpatia e a con iança das pessoas, o
pastor começa a emitir frases em suas orações, sermões e
conversas com conteúdo marcantemente pentecostal. Nessa
etapa, ele também tenta fortalecer sua posição e consolidar sua
autoridade, conquistando o apoio de alguns lıd́ eres menos
rigorosos em termos teológicos. Simultaneamente, ele ainda se
aproxima dos jovens e adolescentes, ganhando sua simpatia e
aprovação, na expectativa de que, por meio deles, obtenha o
apoio dos pais e de outros familiares. Quanto mais vê sua posição
fortalecida, mais o pastor avança na exposição de suas doutrinas.

Etapa 4 – Revolução. Percebendo que tem a igreja


quase inteira ao seu lado, que os doutrinariamente neutros não
vão se opor a ele (inclusive para não “perder os jovens”) e que os
“duros” não têm mais força para fazer frente a ele, o pastor
declara que chegou a hora de um “despertamento espiritual”
naquela igreja. Então, as mudanças ocorrem num ritmo bastante
acelerado. Preletores pentecostais são convidados para realizar
uma “conferência de poder”, pessoas são ungidas com óleo,
manifestações bizarras começam a ocorrer e são até mesmo
estimuladas nos cultos, experiências sobrenaturais são
compartilhadas nos sermões, en im, uma verdadeira revolução
acontece na igreja.

Etapa 5 – Domínio total. O pequeno remanescente


que discorda de tudo que está ocorrendo já vinha sentindo certa
hostilidade por parte do pastor. Agora, porém, os ataques a eles
são menos discretos, sendo feitos até mesmo do púlpito e com o
apoio da maioria. Percebendo esse estado de coisas, esse
remanescente iel não vê outra saıd́ a senão procurar outra igreja,
deixando, inclusive, nas mãos dos pentecostais todo o patrimônio
eclesiástico construıd́ o por crentes zelosos do passado.

Essa segunda estratégia é bastante frequente ainda na atualidade.


Por isso, antes de convidar um pastor para assumir o ministério local, a
igreja deve lhe fazer perguntas especı́ icas relativas ao seu
posicionamento em face das doutrinas pentecostais. Questões como “o
que o senhor pensa sobre o dom de lıń guas?”, “qual a sua opinião
acerca do batismo com o Espıŕ ito Santo?”, “o senhor acredita que há
apóstolos e profetas hoje?”, ou ainda, “o que o senhor diria a alguém
que alega ter o dom de curas e milagres?” podem ajudar bastante os
membros a não cair em armadilhas. O preço pago pelo descuido é tão
alto que vale a pena a igreja ser rigorosa ao máximo na hora de avaliar
um candidato ao seu pastorado.

A prática de falar em línguas

Seguindo na esteira do pentecostalismo, é comum nos dias atuais


alguns cristãos a irmar que têm o dom de lıń guas. A boa hermenêutica,
porém, mostra ser impossıv́el que esse dom exista hoje. De fato, o que
se vê atualmente são manifestações estranhas sendo chamadas de dom
de lıń guas.
Para veri icar o quanto isso é verdade, basta assistir a um culto
em que as pessoas aleguem falar em lıń guas. Então será possıv́el
perceber que o que ocorre ali é a simples emissão de sons ininteligıv́eis
ou a pronúncia repetida de duas ou três sıĺ abas sem sentido. E, o que é
pior: se alguém argumentar que aqueles sonidos repetitivos não
encontram paralelo em nenhum idioma do mundo, responderão que
estão a falar lıń guas “estranhas” ou lıń guas de anjos!
Quão longe está essa prática do verdadeiro dom de lıń guas
existente nos dias da igreja primitiva e descrito nas páginas do Novo
Testamento! Ali é demonstrado que o referido dom era uma capacidade
sobrenatural dada por Deus aos cristãos daqueles tempos. Essa
capacidade consistia em falar sobre as grandezas do Senhor em
idiomas que nunca tinham aprendido (At 2.5-11), com o propósito de
indicar o juıź o vindouro para os judeus incrédulos (1Co 14.21-22) e,
por meio da interpretação, edi icar os ouvintes salvos (1Co 14.6-9, 27-
28).
Ao contrário do que alguns pastores ensinam hoje em dia, o Novo
Testamento não diz em lugar algum que todos os crentes tinham de
falar em lıń guas (1Co 12.8-11, 28-30). Também não há na
Bíblianenhuma relação entre a prática desse dom e a maturidade
espiritual. Aliás, na igreja de Corinto havia todos os dons (1Co 1.7) e, no
entanto, Paulo diz que seus membros eram crianças em Cristo (1Co 3.1-
3). Na verdade, para Paulo, os cristãos deviam preocupar-se mais com o
amor do que com o dom de lıń guas (1Co 13.1-3).
E importante também salientar que as lıń guas de que fala o Novo
Testamento eram de natureza terrena (At 2.4,6,8,11; 1Co 14.21-22). De
fato, no Novo Testamento, duas palavras são empregadas para se
referir às lıń guas: glossa e dialektos. Essas duas palavras denotam
sempre lıń guas terrenas. O fato de a Bíbliaem português na versão
Almeida Revista e Corrigida (ARC) da Imprensa Bıb́ lica Brasileira
(IBB) apresentar a expressão “lıń gua estranha” (1Co 14.2,4,5, etc.)
pode dar a impressão de que as lıń guas eram de natureza angélica ou
coisa parecida. Mas é importante notar que, no texto original do Novo
Testamento, a palavra “estranha” não aparece.
Nos tempos da igreja primitiva, quando o dom de que se trata
aqui ainda existia, algumas normas estabelecidas pelo apóstolo Paulo
regiam o seu uso. Em primeiro lugar, somente duas pessoas ou, no
máximo três, podiam falar em lıń guas no culto público e, ainda assim,
esses dois ou três deviam falar um de cada vez (1Co 14.27). Não era
permitido o uso do dom sem que houvesse intérprete (1Co 14.27-28),
pois isso tornaria seu exercıć io inútil para a igreja e sem proveito para
o visitante (1Co 14.9, 16-19, 23-25). Finalmente, às mulheres era
proibido falar em lıń guas durante o culto público (1Co 14.34). Se
exercido dentro dessas regras, o dom de lıń guas não podia ser proibido
(1Co 14.39-40), e a aceitação das diretrizes mencionadas era evidência
de que a pessoa era espiritual (1Co 14.37-38).
Compare-se tudo isso com o que se faz hoje em dia e facilmente se
conclui que não há nada de bıb́ lico no suposto dom de lıń guas
praticado por alguns crentes atualmente. Acresça-se a isso o fato de o
dom de lıń guas, conforme será demonstrado, ter cessado, deixando
evidente que o que se vê atualmente é simples resultado de
autossugestão ou algo que vários crentes, geralmente por in luência do
grupo a que pertencem, acabam fazendo com uma pequena parcela de
esforço próprio, sem contar com nenhuma atuação sobrenatural de
Deus.
Mas por que, a inal, pode-se dizer com tanta convicção que o dom
de lıń guas não existe mais? Basta um ligeiro passeio pelas Sagradas
Letras e pela história para que essa pergunta seja respondida
satisfatoriamente.
No Novo Testamento, a permanência de um dom estava ligada ao
seu propósito. Uma vez atingido esse propósito, já não havia mais razão
para a existência do dom. De fato, em 1Corıń tios 13.8, Paulo diz que o
dom de lıń guas era temporário — “lıń guas cessarão”.
No que diz respeito ao propósito do dom em análise, somente
uma passagem do Novo Testamento o aponta com clareza. Trata-se de
1Corıń tios 14.22. Nesse texto, Paulo a irma que o propósito das lıń
guas era ser um sinal. Isso signi ica que o objetivo principal das lıń guas
não era a edi icação pessoal de quem as falava. Ainda que o crente que
falava em lıń guas fosse edi icado, Deus queria que esse fosse
especialmente um dom de sinal, não somente de edi icação particular.
Isso mostra o erro de alguns que dizem que só falam em lıń guas
sozinhos, para a sua própria edi icação. Essa prática é contrária ao
propósito do dom. Ele devia ser um sinal e, por isso, tinha de ser
público. Se o dom de lıń guas fosse praticado a sós, não seria
propriamente um sinal como Deus queria que fosse.
Outro detalhe muito importante à luz desse texto é o grupo de
pessoas a quem o dom de lıń guas se destinava. Paulo diz que lıń guas
constituem um sinal para os incrédulos. Duas perguntas surgem
naturalmente diante dessa a irmação: “Sinal de quê?” e “Para que tipo
de incrédulos?”.
As respostas a essas perguntas podem ser encontradas no mesmo
texto de 1Corıń tios. Se o próprio v. 22 for observado atentamente, será
possıv́el perceber que suas primeiras palavras indicam o desfecho de
um pensamento. Paulo escreve “de sorte que” para concluir um
assunto. Essa conclusão se baseia no que está escrito no v. 21, em que
Paulo cita Isaıá s 28.11. Usando esse texto do Antigo Testamento, ele
diz qual é o propósito das lıń guas na igreja. Resta agora estabelecer a
relação entre Isaıá s e esse propósito.
O contexto de Isaıá s 28 mostra que os lıd́ eres de Israel
rejeitavam as mensagens claras do profeta de Deus. Apesar de os
discursos de Isaıá s serem claros e simples, havia grande resistência a
eles por parte dos lıd́ eres religiosos do seu tempo. Então, como uma
forma de castigo por essa resistência, Deus diz que não lhes falaria mais
de modo simples e claro. Em vez disso, levantaria estrangeiros que
falariam uma lıń gua que eles não entenderiam. O juıź o de Deus viria
pela mão daqueles estrangeiros e, ao ouvirem sua lıń gua, desconhecida
para eles, os israelitas deveriam reconhecê-la como um sinal do juıź o
de Deus contra os que rejeitaram sua mensagem dada primeiro de
forma clara.
Algo semelhante também pode ser observado em Jeremias
5.1015. Nos tempos de Jeremias, Deus enviara profetas a Israel dizendo
que o julgaria por causa de seus pecados. Mais uma vez, porém, os
israelitas rejeitaram a mensagem de Deus e seus profetas. Israel
duvidava das ameaças de juıź o feitas por Deus mediante seus
mensageiros e dizia que os profetas não passavam de vento (v. 12-13).
Diante disso, nos v. 14-15, Deus diz o que faria. Por terem rejeitado sua
mensagem e seus mensageiros, Deus trataria os israelitas de outra
forma, levantando contra eles uma nação que falaria uma lıń gua que
eles não conheciam.
Isso seria um sinal de que os israelitas estavam sob o juıź o de Deus por
terem rejeitado sua mensagem e seus mensageiros.
Esse modo particular de Deus agir com o povo de Israel quando
ele se rebelasse já havia sido predito em Deuteronômio 28. Deus diz
nesse Capítuloque, se a sua mensagem fosse rejeitada, ele amaldiçoaria
o povo (v.15). Uma dessas maldições está no v. 49, que mostra que, se
Israel não ouvisse a voz de Deus, ele falaria de outro modo com a nação.
Nos versıć ulos 45 e 46, é interessante notar que as maldições
relacionadas em todo o Capítuloseriam um sinal para sempre.
Portanto, sempre que os mensageiros de Deus fossem rejeitados
pelos israelitas, em qualquer geração, Deus forçaria Israel a ouvir uma
lıń gua que não entendia como sinal de que estava sob seu juıź o. E
importante observar que somente para a nação de Israel Deus falou
dessa maneira, e nunca para os gentios.
Esse princıṕ io está, conforme visto, no Antigo Testamento. Paulo,
porém, lança mão dele no Novo Testamento para mostrar qual era o
real propósito das lıń guas na igreja, a saber: ser um sinal de juıź o para
os incrédulos de Israel.
A relação entre esse princıṕ io do Antigo Testamento e o dom de
lıń guas na igreja pode ser melhor compreendida se for considerado
quem foi o profeta supremo enviado por Deus a Israel. Na Epıś tola aos
Hebreus (evidentemente uma carta escrita aos judeus), o autor diz em
1.1-2 que, “nos últimos dias”, o mensageiro de Deus fora o seu próprio
Filho. Contudo, como se sabe, aquela geração rejeitou o Filho de Deus.
Durante seu ministério terreno, Jesus alertara os judeus do seu
tempo acerca do perigo que corriam de cair na maldição de Deus. Em
Mateus 23, ele diz que o Senhor traria uma condenação sobre aquela
geração que serviria como castigo pelo sangue de todo justo
assassinado nos tempos antigos, desde Abel até Zacarias (v 34-39).
Jesus dizia assim que Deus traria sobre aquela geração uma
condenação inédita por ela ter rejeitado o Filho dele. Mais uma vez,
como nos tempos de Isaıá s e Jeremias, as maldições de Deuteronômio
28 estavam prestes a cair sobre os israelitas rebeldes.
E de conhecimento geral que, no primeiro século da era cristã,
Israel estava sob o domıń io de Roma. Os judeus, estando muito tempo
em contato com os romanos, eram conhecedores de sua lıń gua. Além
disso, por esse tempo, o Império Romano era tão poderoso que não
havia outro império que pudesse vir contra os judeus falando uma lıń
gua desconhecida. Foi então que Deus usou sua igreja para dar o sinal
de que aquela geração estava sob juıź o por ter rejeitado seu
mensageiro supremo.
Algo importante para lembrar é que a primeira vez que o dom de
lıń guas se manifestou foi em Atos 2, ou seja, depois da total rejeição do
Messias pelo povo judeu. Nem mesmo Jesus jamais falara em lıń guas.
Em Atos 2, depois de a igreja ter falado em lıń guas, Pedro dirigiu-se
aos “varões judeus” (v. 14) e lhes chamou a atenção para a coisa
horrıv́ el que haviam feito com Jesus (v. 22-23). No versıć ulo 40, Pedro
indica que aquela geração estava prestes a sofrer uma condenação
horrıv́ el — “Salvai-vos desta geração perversa”. Ele disse isso de modo
signi icativo no primeiro dia do dom de lıń guas e exortou seus ouvintes
a mudar o modo de pensar sobre Jesus e assim escapar do juıź o que
viria sobre aquela geração.
Quando, a inal, o juıź o representado pelas lıń guas na igreja veio
sobre aquela geração de judeus? Jesus, certa vez, re letiu sobre a cidade
de Jerusalém e chorou por causa do que ia acontecer. Disse que os
inimigos a destruiriam, mostrando assim o tipo de juıź o que estava
prestes a vir. Esse juıź o veio de 66 a 73 d.C. Aquela geração de judeus
rebelou-se contra o Império, e Roma inundou a Palestina com soldados
que, liderados pelo general Tito, mataram mais de um milhão de
judeus. A cidade de Jerusalém e o templo foram destruıd́ os e milhares
de israelitas foram vendidos como escravos.
Algo curioso, entretanto, aconteceu. Registros históricos antigos
mostram que, antes da chegada dos romanos, todos os judeus crentes
abandonaram Jerusalém e foram para o Leste do rio Jordão, onde
[75]
passaram a morar na cidade de Pela. Quando os soldados romanos
chegaram a Jerusalém, nenhum cristão judeu pereceu no massacre!
Tendo servido assim como sinal para os judeus incrédulos da
destruição que havia de vir por mãos de estrangeiros, o dom de lıń guas
cumpriu seu propósito e, uma vez concluıd́ o o juızo em c. 70 d.C., ó
exercıć io desse dom cessou. Seu propósito foi atingido e, por isso, não
havia mais razão para que permanecesse. E por isso que se pode dizer
com segurança que o dom de lıń guas de que falam as Escrituras não
existe mais nos dias de hoje.
Aqueles que, com base em 1Corıń tios 14.39, dizem que não se
deve proibir o falar em lıń guas, deve-se responder que a igreja de
Deus jamais faz essa proibição. E isso por um motivo muito simples:
não é possıv́el proibir o uso de algo que não existe mais. Proibir hoje o
falar em lıń guas seria o mesmo que proibir a caça aos dinossauros.
Ora, é sabido que os dinossauros foram extintos há milhares de anos e
não há como nem porque proibir que sejam caçados. O mesmo ocorre
com as lıń guas. Não é possıv́el proibir o uso delas, uma vez que
deixaram de existir há séculos. O que na verdade é e deve ser proibido
na igreja são manifestações desordenadas que às vezes são chamadas
de dom de lıń guas.
Outras considerações importantes ligadas ao debate sobre o dom
de lıń guas são as seguintes:

1. O fato de esse dom não existir mais não signi ica que Deus
nãopode realizar milagres na área da comunicação. Deus tem
poder para fazer com que, em alguma situação especial, duas
pessoas de idiomas diferentes se comuniquem de forma
surpreendente. Se isso, porém, acontecer, não será correto dizer
que houve uma manifestação do dom de lıń guas, pois, conforme
visto, não era assim o funcionamento desse dom (quem o tinha o
usava com frequência na igreja), nem era seu objetivo quebrar as
barreiras linguıś ticas entre as pessoas (tanto que exigia a
atuação de intérpretes). Por isso, diante da hipótese levantada, o
certo será dizer que ocorreu um milagre no campo da
conversação.

2. A a irmação de que o dom de lıń guas está em vigor não


conseguiu ainda produzir nenhuma prova séria e observável de
sua veracidade. Com efeito, se esse dom ainda existe, em que local
é possıv́el encontrá-lo? Até agora, tudo que os defensores da
atualidade das lıń guas têm apresentado são sonidos
ininteligıv́ eis, algo muito diferente do que ocorreu em Atos 2,
quando idiomas reais foram falados. Isso é de surpreender, pois a
a irmação de
que o dom de lıń guas bıblico existe ainda hoje deveria seŕ
provada facilmente pela simples apresentação de centenas ou
milhares de crentes que falam outros idiomas sem jamais tê-los
aprendido. Essa prova, contudo, nunca foi produzida.

3. As lıń guas de anjos mencionadas em 1Corıntios 13.1 nãó


servem de base para a irmar que o dom de lıń guas envolve
linguagem estranha e ininteligıv́el. Na verdade, a expressão usada
por Paulo representa apenas um recurso retórico muito comum
que tem como objetivo levar uma hipótese ao nıv́el do absurdo
(uma forma de hipérbole) a im de reforçar um determinado
ensino ou argumento. Ademais, anjo algum jamais aparece na
Bíbliafalando uma lıń gua ininteligıv́el. Na verdade, mesmo a
noção de que os anjos têm seus próprios idiomas distintos é
inaceitável, pois signi icaria que sobre eles sobreveio um juıź o
semelhante ao que houve em Babel (Gn 11.1-9). Finalmente,
considere-se que, se os anjos falassem uma lıń gua especıicá
deles, di icilmente seria do tipo que é ouvido nas comunidades
pentecostais, posto que os sons emitidos nessas igrejas, conforme
facilmente se percebe, correspondem a quinze ou, no máximo,
vinte palavras pronunciadas repetidamente sem estrutura frasal
e sem signi icado.

4. Segundo pareceres médicos e/ou psiquiátricos, falar em lıń


guasé, algumas vezes, um mero distúrbio de linguagem
observado em alguns doentes mentais que acreditam ter
inventado uma lıń gua
[76]
nova ou ainda a linguagem pessoal de psicopatas que adotam
[77]
esse comportamento como forma de diversão. A diferença é
que esse tipo de glossolalia muitas vezes cria neologismos e pode,
assim, ser traduzida, algo que não ocorre na glossolalia
[78]
pentecostal. Informações desse tipo deveriam levar os
pentecostais a serem mais criteriosos em sua avaliação da
glossolalia em vez de simplesmente taxar de carnal e incrédulo
qualquer pessoa que questione a validade das lıń guas.

5. Estudos linguıś ticos, ao analisar a prática da glossolalia no


meio pentecostal, têm concluıd́ o que as lınguas faladas nesse
contexto,́ diferente do que ocorria nas igrejas do NT, não são lıń
guas em hipótese alguma. De fato, os linguistas não puderam
detectar na experiência pentecostal um sistema de signos, ou seja,
um sistema em que conceitos ou ideias sejam transmitidos por
meio de sons (as palavras). O que há nesses casos é o som
destituıd́ o de conceito, a emissão de ruıd́ os articulados numa
sequência de fonemas sem signi icado — uma fala sem lıń gua ou
uma lınguá
[79]
imaginária! Por causa disso, diferente do que ocorreu em
Atos 2, por exemplo, as "lıń guas" de hoje nunca comunicam nada.
Tão somente um indivıd́ uo simula falar um idioma e os demais
apenas o observam, sem entender coisa alguma e também
simulando provar algum enlevo espiritual naquele instante.

6. O ensino comum entre pessoas do movimento pentecostal


deque as lıń guas mencionadas em Atos 2 eram humanas, mas as
mencionadas em 1Corıń tios eram de outra natureza esbarra no
fato de que em 1Corıń tios 14.21-22, Paulo faz referência aos
idiomas das nações gentıĺ icas para explicar o propósito do dom
de lıń guas, o que revela que ele tinha em mente um fenômeno da
mesma natureza daquele narrado por Lucas em Atos dos
Apóstolos. Outrossim, o argumento que a irma que as lıń guas de
Atos eram diferentes das de 1Corıń tios porque quem usava estas
últimas falava “mistérios” (1Co 14.2) não é válido, pois a palavra
“mistério” empregada no texto signi ica apenas que as lıń guas
então faladas permaneciam enigmáticas, não sendo entendidas
pelas pessoas em geral. O próprio v. 2 indica esse sentido ao
enunciar a frase “porque ninguém o entende”.

7. Análises modernas da glossolalia religiosa feitas por


linguistascom o auxıĺ io de tecnologia computadorizada
descobriram que, na cadeia de sons emitidos pelos que exercitam
o suposto dom, é impossıv́el fazer qualquer segmentação que
aponte para a existência de palavras especı́ icas. Também não há
qualquer indıć io de sintaxe. Ademais, a transcrição dessas falas
revelou que nelas não existe nenhum fonema estranho à lıń gua
materna do falante. Tratam-se, assim, apenas de produções vocais
fundamentadas em próprio sistema fônico de quem fala, com a
utilização estrita de alguns sons que se repetem excessivamente
durante a experiência de "lıń guas", numa sequência variável e
com caracterıś ticas de declamações ou recitações. Nesse último
aspecto, nunca há, por exemplo, entonações interrogativas,
interrupções para se pensar no que vai dizer ou retomadas para
correção — fatores presentes na fala de qualquer idioma
[80]
verdadeiro. Aliás, é impossıv́el que a experiência pentecostal
dominante abranja lıń guas verdadeiras, pois há muito mais
variações glossolálicas do que lıń guas reais. De fato, existem mais
de nove milhões de glossolalistas (dado do inıć io da década de
80), cada um praticando uma ou mais formas diferentes de
"lıń guas estranhas", enquanto só existem três mil lıń guas
[81]
verdadeiras no mundo.

8. Entre alguns pentecostais existe o ensino de que Deus


concedeuma lıń gua estranha especı́ ica para cada diferente
indivıd́ uo, a im de que a pessoa ore na “nova lıń gua” que Deus
lhe deu, ou seja, numa lıń gua concedida somente a ele. Esse
ensino não encontra respaldo em nenhuma linha da Sagrada
Escritura. E simples invenção.
9. A ideia tão comum entre os pentecostais de que o falar
emlıń guas é uma prática que foi resgatada por eles no inıć io do
século XX, inaugurando uma nova fase de vigor espiritual para a
igreja, desconsidera a realidade histórica de que a glossolalia
sempre esteve presente em formas deturpadas de cristianismo
desde os seus primórdios. Ao tempo da igreja antiga, o herege
Montano (157-212) e seus seguidores alegavam falar em lıń guas.
O corrompido catolicismo medieval também fornece diversos
exemplos de personagens tidos como "santos" que a irmavam
praticar a glossolalia. Alguns deles são: Hildegard von Bigen
(1098 – 1179), São Domingos (1170 – 1221), Santo Antônio de
Pádua (1195 – 1231), São Vicente Ferrer (1350 – 1419), São
Francisco Xavier (1506 – 1552), São Louis Bertrand (1526 –
1581), São João D’Avila (1500 – 1569), Santa Teresa D’Avila
(1515
– 1582), São João da Cruz (1542 – 1591) e Santo Inácio Loyola
(1491 – 1556). O fato desses nomes estarem ligados ao
romanismo tão tosco como foi o vivenciado na Idade Média,
deveria ser levado em conta quando se diz que o falar em lıń guas
[82]
marca uma época de maior vitalidade espiritual na igreja.

10. Na visão pentecostal, na glossolalia o que importa não é o


signi icado das palavras, mas sim o signi icado da experiência.
Como ocorre na magia, em que o mágico não se preocupa com o
signi icado de "abracadabra", mas apenas com o que acredita que
o pronunciamento dessa palavra produz, também o pentecostal
se concentra na experiência, atribuindo validade a ela por se
sentir bem ao exercê-la. Nesse aspecto também se afasta das
Escrituras, pois estas ensinam que o signi icado do que era dito
por quem falava em lıń guas era essencial, tanto que esse dom só
podia ser exercido da igreja quando houvesse intérpretes.

11. Um olhar atento para o contexto pentecostal mostrará


quemuitos passaram a exercitar o dom de lıń guas depois de o
terem aprendido formalmente. Em algumas igrejas até mesmo
cursos de glossolalia são oferecidos, mostrando que não há nada
de sobrenatural nessa prática. Além disso, é comum ex-
pentecostais a irmarem que falavam em lıń guas por indução,
autossugestão ou pressão do grupo. Sabe-se, porém, que a prática
desse tipo de exercıć io é perigosa, pois produz certo alıv́ io
mental (pois, entre outras coisas, o indivı́duo se vê livre das leis
que regem a linguagem) e fı́sico (pelo uso descontraıd́ o dos
órgãos que produzem a fala). Por causa disso, essa prática vicia,
fazendo a pessoa buscar mais e mais satisfação na experiência
extática, o que pode gerar comportamentos bizarros, práticas
anormais, preguiça intelectual, enfraquecimento do raciocıń io
lógico,
[83]
autoengano, frustração e culpa.

12. Dentro de cada comunidade pentecostal especı́ ica, as


lınguaś faladas pelos membros são sempre parecidas, com uma
recorrência de sons comum a todos. Há sempre, na verdade, uma
grande repetição de combinações vocálicas e consonantais,
indicando uma padronização. Isso mostra que as pessoas que
falam "lıń guas estranhas" seguem inconscientemente um padrão
geral fornecido pela sua comunidade e aprendido por meio da
convivência. Mesmo repetindo basicamente os mesmos sons vez
após vez — sons semelhantes aos produzidos por quase todos os
demais membros da mesma igreja — os pentecostais acreditam
que, a cada nova experiência com lıń guas, dizem coisas novas e
[84]
diferentes das faladas pelos demais.

13. O fato de que as lıń guas faladas pelos pentecostais na


atualidade são falsas, além de receber o apoio da exegese bıb́ lica,
passou também a contar com provas cientı́ icas. Isso porque em
2006, uma equipe de cientistas da Universidade da Pensilvânia
realizou experimentos num grupo de pentecostais enquanto eles
praticavam a glossolalia. Usando técnicas especı́ icas de medicina
nuclear, os cientistas avaliaram o luxo sanguıń eo em
determinadas porções do cérebro dessas pessoas e descobriram
que as regiões associadas à linguagem não, eram ativadas durante
o exercıć io do "dom", mostrando que os pentecostais não
estavam falando lıń gua alguma. Por outro lado, a análise revelou
que porções do cérebro fortemente associadas ao aprendizado
inconsciente e à memorização implı́cita (regiões ricas em
"neurônios espelho") icavam mais ativas durante o "falar em lıń
guas", deixando claro que os pentecostais estavam apenas
reproduzindo ou imitando sons que ouviram em suas igrejas ou
em outras reuniões. A equipe de cientistas veri icou ainda que
durante a experiência de "lıń guas estranhas", a parte do cérebro
que coordena e integra atividades conscientes e inconscientes (o
tálamo) entra em atividade mais intensa. Em meio a isso tudo, a
pessoa "sente" que o "dom" está " luindo naturalmente", tem uma
sensação agradável e experimenta certo alıv́ io do estresse. Todas
essas conclusões tiraram o debate sobre lıń guas do campo da
opinião pessoal, revelando de forma objetiva que a glossolalia
moderna não tem nada de sobrenatural, sendo algo muito
diferente do que os cristãos experimentaram em Atos 2 e nas
[85]
igrejas do século 1.

14. As manifestações de "lıń guas estranhas" ou de "lıń guas de


anjos" apresentam semelhanças muito grandes com as lıń guas
naturais. Essas semelhanças envolvem: nıt́ idas segmentações em
grupos respiratórios (ritmo, pausas e tonicidade); organização de
sıĺ abas combinadas de forma rıǵ ida; recorrência de elementos
que compõem palavras (morfemas); e padrões de inidos de
marcação ou de acento tônico. Isso mostra que quem fala essas
"lıń guas", na verdade as cria usando os mesmos elementos das
lıń guas naturais, adotando-os como modelo e os organizando de
forma semelhante, sem expor qualquer indıć io de
sobrenaturalidade. Outra evidência da naturalidade dessas
manifestações é a seleção e exacerbação que, inconscientemente,
o falante faz de recursos fônicos adequados somente à função
expressiva da fala (não há preocupação com a função
comunicativa), mostrando a inclinação de fazer com que a lıń gua
se encaixe melhor no ambiente alvoroçado dos cultos
[86]
pentecostais.

15. A análise linguıś tica da glossolalia pentecostal mostra a


construção de uma lıń gua a partir de um conjunto limitado de
[87]
sons pertencentes ao universo idiomático do falante. No
contexto brasileiro, por exemplo, esse conjunto ica estrito aos
sons utilizados para falar a lıń gua portuguesa. O falante, porém,
não usa todos os sons do português durante a prática glossolálica,
mas um número muito menor. De fato, a média de segmentos
utilizados é de nove sons consonantais e apenas seis variações
vogais. No caso de pessoas de baixa instrução, cujo vocabulário é
pequeno, as variações glossolálicas são ainda menores. A
predominância e repetição de alguns dos sons que compõem os
pequenos conjuntos sonoros usados pelos que falam em "lıń
guas" depende claramente da preferência do falante. Sequências
ou sıĺ abas que tenham conotação grosseira ou chula são
claramente evitadas.

16. A alegação de que a experiência com lıń guas eleva a pessoa


a uma vida espiritual de maior qualidade não tem sido con
irmada em hipótese alguma. Escândalos sexuais, fraudes
inanceiras, disputas polıt́ icas, intrigas pessoais, crises familiares,
hipocrisias, mentiras e chocantes desvios de caráter são comuns
nas igrejas pentecostais, precisamente entre pessoas que a irmam
falar em lıń guas, sejam lıderes ou membros comuns. Por outro
lado, é́ possıv́el veri icar uma vida cristã equilibrada em
inúmeros crentes que, ao longo de décadas de serviço e de bom
testemunho, nunca tiveram qualquer experiência com lıń guas.
De fato, se o dom de lıń guas, segundo dizem, promove o crente a
um nıv́el mais alto de maturidade cristã, então as igrejas
pentecostais fornecem a maior prova de que as lıń guas faladas
por seus membros não são verdadeiras.

17. O registro histórico e o relato de testemunhas


recentesapontam para a possibilidade de muitas experiências
com lıń guas serem procedentes de atuação demonıá ca.
Estudiosos a irmam que, nas antigas religiões de mistério, o falar
em lıń guas era procedimento comum. Também as seitas
modernas adotam essa
[88]
prática. Ademais, há testemunhos recentes de pessoas que, em
visita a um determinado paıś , ouviram blasfêmias serem
proferidas em sua lıń gua materna durante manifestações de
glossolalia ocorridas em igreja pentecostais. Com efeito, o texto
de 1Corıń tios 12.3 dá indıć ios de que algumas manifestações
extáticas comuns nos dias de Paulo levavam as pessoas a
pronunciar blasfêmias.

18. A glossolalia não está associada apenas ao cristianismo


emsua vertente pentecostal. Registros históricos informam que,
no Egito, ao tempo de Ramsés XI (1100 – 1070 a.c), um jovem
adorador de Amon, após ter oferecido sacrifıć ios ao seu deus, foi
por ele possuıd́ o e começou a falar uma lıń gua estranha. Séculos
depois, Platão a irmou na sua obra, “Fédon”, que nos seus dias
várias pessoas praticavam a fala extática sob possessão ou
inspiração divina. No século 1 a.C., Virgıĺ io disse na “Eneida” que
as pitonisas sibilinas da Ilha de Delfos falavam lıń guas estranhas
como resultado da sua união com o deus Apolo. Em transe, elas
diziam coisas sem nexo, palavras confusas e enigmáticas, sem
nenhum sentido. Fenômenos semelhantes ocorriam no culto egıṕ
cio a Osıris, nó mitraıś mo dos persas e nos Mistérios
Eleusianos. Em tempos mais recentes, a glossolalia pode ser
encontrada no catolicismo da Renovação Carismática, no
espiritismo, onde o fenômeno é chamado de xenoglossia ou
mediunidade poliglota (havendo também alegações de se falar lıń
guas extraterrestres), nos rituais indıǵ enas, no xangô, no
candomblé e no xamanismo, onde as lıń guas faladas são
reproduções de sons emitidos por animais. Esses dados deveriam
promover uma cautela maior por parte dos pentecostais e não
uma postura tão aberta às lıń guas como se veri ica nesse meio.
Também deveriam servir como incentivo para a revisão de seu
conceito de lıń guas como evidência de alta condição espiritual.
[89]

19. A acusação de que as igrejas tradicionais são opositoras


dodom de lıń guas precisa ser revista, pois quem de fato deprecia
esse dom são exatamente os pentecostais. Isso porque são eles
que reduzem o dom de lıń guas ao mero pronunciar voluntário e
grosseiro de sıĺ abas desconexas, enquanto as igrejas tradicionais
honram e enaltecem esse dom, a irmando que se constituiu num
dos milagres mais extraordinários testemunhado nos dias dos
apóstolos: a magnı́ ica capacidade de alguém falar perfeitamente
outro idioma sem jamais tê-lo aprendido!

20. Os pentecostais a irmam que os tradicionais


blasfemamcontra o Espirito Santo por não aceitar as
manifestações que ocorrem em suas igrejas, especialmente o que
chamam de dom de lıń guas. No entanto, o que realmente ofende
o Espıŕ ito Santo é atribuir a ele a emissão de sonidos toscos e
banais. Da mesma forma, o Santo Espıŕ ito é ofendido quando
dizem que ele é a fonte de profecias inventadas, revelações falsas,
curas imaginárias, ensinos heréticos, comportamentos bizarros e
desordens chocantes.

As considerações acima enumeradas devem ser levadas muito a


sério pelos crentes, pois, na igreja de Deus, tudo deve corresponder à
verdade e nenhum espaço deve ser concedido dentro dela para
encenações grotescas que des iguram a santa fé e fazem do culto cristão
um show de desatinos.

O dom de profecia

Geralmente, os crentes que aceitam a continuidade do dom de


lıń guas também acreditam na atual existência de profetas.
E verdade que o dom de profecia esteve presente na igreja
durante o século 1 e que seu papel foi vital para o funcionamento, o
ensino e o encorajamento das comunidades cristãs da época. Contudo,
o fato é que os profetas deixaram de existir antes que raiasse o sol do
século 2. Na verdade, dentro do contexto eclesiástico dos tempos
apostólicos, o fenômeno da profecia tinha propósitos e conteúdos que
apontam para a sua total extinção nos dias de hoje.
Considerem-se, em primeiro lugar, os propósitos do dom de
profecia. Quais eram os objetivos das profecias pronunciadas naqueles
tempos? A leitura cuidadosa do Novo Testamento deixa isso muito
claro. Veja-se, por exemplo, o que diz Efésios 3.4-5: “Por isso, quando
ledes, podeis perceber a minha compreensão do mistério de Cristo, o
qual noutros séculos não foi manifestado aos ilhos dos homens, como
agora tem sido revelado pelo Espıŕ ito aos seus santos apóstolos e
profetas”. Paulo prossegue, então, falando acerca de uma das doutrinas
do Novo Testamento que compõem o “mistério de Cristo”, antes oculto,
mas agora revelado aos seus servos.
Esse texto mostra que o objetivo principal das profecias
dadas no século 1 era revelar doutrinas desconhecidas
por pessoas de outras épocas, doutrinas que os apóstolos
registraram nos livros e cartas do Novo Testamento e que deveriam
servir de base para a fé e a prática das igrejas de Cristo nos séculos
porvir.
Isso ica ainda mais claro em Efésios 2.20, onde Paulo ensina que a
igreja é edi icada sobre “o fundamento dos apóstolos e profetas”. Por
“fundamento” entende-se aqui o conjunto de doutrinas que servem
como alicerce para a igreja; doutrinas sobre as quais ela constrói todas
as suas mensagens e toda a sua maneira de funcionar e agir. Uma vez
que esse fundamento foi trazido à luz pelos apóstolos e profetas do
Novo Testamento, Paulo, sendo apóstolo, pôde escrever: “Segundo a
graça de Deus que me foi dada, pus eu, como sábio arquiteto, o
fundamento...” (1Co 3.10).
Por isso, dizer que existem profecias hoje equivale a dizer que as
bases doutrinárias da igreja ainda não estão prontas, que novas
doutrinas ainda estão por ser reveladas, que o Novo Testamento não
está completo e que a igreja, 2 mil anos depois de fundada por Cristo,
ainda está na fase inicial de construção de alicerces. Ora, isso é
inaceitável para qualquer crente dotado de bom senso e de maturidade.
Por isso, não há como acolher a ideia de que existem profecias ainda
hoje.
Para mostrar que o dom de profecia não existe mais, além de
estudar seu propósito central, é preciso também observar qual era seu
conteúdo. Na verdade, parte disso já foi analisada quando foi dito que o
objetivo principal da profecia era revelar doutrinas outrora ocultas.
Obviamente, se esse era um dos seus objetivos centrais, é claro que o
conteúdo da profecia era predominantemente doutrinário.
Aliás, foi por isso que Paulo escreveu aos romanos dizendo que, se
alguém profetizasse, sua profecia deveria ser de acordo com “a
proporção da fé” (Rm 12.6). Isso signi ica que a profecia dita por
alguém deveria estar em harmonia com a fé já revelada, jamais a
contradizendo. Sabendo, assim, que as profecias tinham conteúdo
doutrinário, Paulo recomendava cuidado, admoestando os profetas a
jamais pronunciar qualquer ensino que não estivesse de acordo com a
verdade já vinda à luz.
Foi também por saber do conteúdo doutrinário das profecias que
Paulo escreveu aos corıń tios, ensinando que durante os cultos
deveriam falar dois ou três profetas e os demais deveriam julgar o que
era dito (1Co 14.29). Esse julgamento tinha por propósito avaliar a
profecia, a im de veri icar se ela se harmonizava com todo corpo
doutrinário entregue por Deus à sua igreja.
O conteúdo da profecia eclesiástica também envolvia consolo,
sempre em harmonia com a revelação dada (At 15.32), e, mais
raramente, o anúncio prévio de eventos vindouros não corriqueiros,
mas que causassem grande impacto sobre as igrejas espalhadas pelo
mundo (At 11.27-28; 21.10-11).
Como se vê, o conteúdo das profecias do Novo Testamento era
muito diferente daquilo que é “profetizado” hoje em dia. De fato, na
atualidade, os supostos profetas se limitam a contar visões e sonhos, à
semelhança dos falsos mestres dos tempos apostólicos (Cl 2.18).
Também tentam adivinhar quem na congregação está com algum
[90]
problema (“tem alguém aqui com dor na coluna!”) ou a predizer
bênçãos imaginárias para alguém (“o Senhor revelou que seu marido
vai voltar para casa!”), criando esperanças vazias, gerando culpa nos
corações a litos (“a profecia não se cumpriu e seu marido não voltou
porque a irmã não teve fé!”) ou induzindo as pessoas a erros graves na
vida.
Uma vez que as profecias modernas se resumem nesses
pronunciamentos ocos e enganosos, isso robustece a a irmação de que
o dom de profecia não existe mais, conforme Paulo previu em
1Corıń tios 13.8-10. Assim, se quiser ser protegida do erro, da mentira
e do desvio, a igreja de Deus deve fugir dos profetas atuais e edi icar
sua fé e comportamento unicamente sobre as Escrituras, onde a
revelação dada aos verdadeiros profetas está presente, fornecendo as
bases doutrinárias e éticas da igreja de todos os tempos.

Curas e milagres

As igrejas pentecostais são afeiçoadas a supostas curas e milagres.


Algumas delas chegam a realizar cultos de libertação, prometendo a
realização de milagres com hora marcada e atraindo, assim, pessoas
oprimidas, doentes e vıt́ imas de problemas difıć eis. E comum em
algumas dessas igrejas até mesmo o comércio de objetos que, segundo
a irmam, têm o poder de proteger e livrar dos mais diversos males.
No tocante às curas, os mestres dessas igrejas se apoiam
geralmente em Isaıá s 53.4 para defender a ideia de que o cristão não
deve icar doente nem se conformar com nenhum abalo em sua saúde,
mas, pela fé, apropriar-se do total livramento das enfermidades que,
segundo dizem, Cristo obteve em favor dos homens.
“Ele tomou sobre si as nossas enfermidades”, repetem. Logo,
concluem que o cristão que tem fé pode repreender a doença e viver
livre dela. Muitas pessoas são atraıd́ as por esses ensinos e os abraçam
com absoluta convicção. Algumas, quando adoecem, chegam ao ponto
de se esconder a im de que aquilo em que creem não ique exposto a
questionamentos.
Falta a essas pessoas o conhecimento da lição elementar de que,
na Bíblia, muitos crentes maduros enfrentaram sérios problemas de
saúde, sendo a doença uma experiência comum na vida do crente neste
mundo (At 9.36-37; Gl 4.13-14; Fp 2.25-27; 1Tm 5.23; 2Tm 4.20).
No tocante especi icamente a Isaıá s 53.4, é preciso compreender
o signi icado desse texto levando-se em conta que o profeta o compôs
adotando uma forma de paralelismo muito comum na poesia hebraica
— o paralelismo sinônimo (Isaıá s 53 foi escrito na forma de poesia).
Esse recurso literário consiste em a irmar uma mesma verdade em
duas frases (ou trechos) paralelas, de maneira que a segunda
[91]
declaração apenas repete a primeira usando sinônimos.
Levando isso em conta, é fácil perceber que Isaıá s 53.4 deve ser
entendido em paralelo com o v. 5, o que leva à conclusão de que as
“enfermidades” e “dores” de que fala o profeta são as “transgressões” e
“iniquidades” do povo. Observe-se que foi precisamente esse o
entendimento que Pedro teve dessa passagem em 1Pedro 2.24, texto
em que o apóstolo ensina que o que Cristo carregou em seu corpo sobre
o madeiro foram “os nossos pecados”.
Ademais, mesmo que o entendimento decorrente do paralelismo
seja desconsiderado, isso em nada fortalecerá o entendimento que os
pentecostais têm da passagem. De fato, a análise do texto livre de
qualquer consideração quanto ao estilo literário mostrará, no máximo,
que Isaıá s 53.4 deve ser interpretado como se referindo apenas ao
ministério terreno de Cristo. E precisamente isso que mostra o
Evangelho de Mateus que, citando a passagem de Isaıá s, a irma que ela
se refere à obra terrena do Messias, marcada pela realização de curas
sobrenaturais.
Sendo um autor bıb́ lico, compondo um evangelho inspirado por
Deus, Mateus pôde atribuir ao texto de Isaıá s um sentido mais amplo
do que aquele que a passagem tinha de inıć io. O resultado disso,
porém, não foi a a irmação de que os crentes em Cristo não devem
aceitar as doenças, mas sim que Isaıá s 53.4 se cumpriu também
quando Jesus, durante seu ministério aqui na Terra, curou, com o
simples uso de suas palavras, os numerosos doentes que lhe foram
trazidos (Mt 8.16-17).
Sobre curas e milagres, é preciso ainda que o crente conheça as
verdades a seguir alistadas, a im de que não se deixe levar pelas
tendências atuais e a igreja de Deus não seja maculada por ensinos e
práticas reprováveis:

1. Os milagres não são numerosos em todas


as épocasabrangidas pela Bíblia. As Escrituras
abrangem, pelo menos, sete mil anos de história. Ao longo desse
tempo, houve longos perıó dos em que poucas ou mesmo
nenhuma atuação divina sobrenatural ocorreu. Na verdade, a
análise da história bıb́ lica mostra que a realização intensa de
milagres teve lugar somente em três épocas: os anos do êxodo, o
tempo de ministério de Elias e Eliseu e os dias de Jesus e seus
apóstolos. Isso mostra um padrão especı́ ico do modo como Deus
intervém no drama humano, destacando que a operação de
maravilhas não faz parte do seu plano principal de ação.

2. A realização de milagres nunca serviu


como prova deespiritualidade ou de
santidade. A Bíblianarra que os sacerdotes egıṕ cios
pagãos, quando se viram diante dos sinais realizados por Moisés,
izeram milagres semelhantes (Ex 7.8-12, 20-22; 8.6-7). No Novo
Testamento, há o registro das palavras de reprovação que Jesus
“naquele dia” dirigirá contra os incrédulos que, no nome dele,
izeram “muitos milagres” (Mt 7.21-23). A realização de
maravilhas por homens perversos e impostores é possıv́el
porque Deus não é a única fonte de poder sobrenatural. Ele é a
fonte suprema, mas não exclusiva de poder. Satanás e seus anjos
também são poderosos e realizam sinais pela mão de seus servos
(Mt 24.24). Aliás, será com a força do poder satânico que o
anticristo e o falso profeta que hão de vir realizarão feitos
extraordinários, obtendo o apoio e a adoração do mundo inteiro
(2Ts 2.9; Ap 13.2-4, 11-14).

3. O pregador deve ser avaliado pela mensagem


que anunciae não pelos milagres que realiza.
Em Deuteronômio 13.1-5, é ensinado que se alguém realiza um
sinal espetacular e prega uma mensagem contrária ao ensino de
Deus em sua Palavra, deve ser rejeitado, não importa quão
grande ou espetacular tenha sido o milagre que fez. E a
mensagem que prega que mostrará se alguém é de Deus (2Jo 9-
11). Deve-se, portanto, observar se a pregação do “milagreiro” é
bíblica Se não for, milagre e mensagem terão de ser rejeitados.

4. A atração por sinais espetaculares é


perigosa e podeserevidência de ceticismo e
fraqueza espiritual. Jesus destacou que a busca de sinais
pode advir não de pessoas piedosas e cheias de fé, mas de
homens maus e adúlteros (Mt 12.38-39). Ele também censurou
aqueles que o buscavam por causa do pão que havia sido
multiplicado (Jo 6.26). E interessante notar que, ao ouvir essa
censura, aquelas pessoas que o seguiam pediram ainda mais
sinais (Jo 6.30). Não sendo atendidas, elas se opuseram a Jesus (Jo
6.41-42,52,60) e, en im, o abandonaram (Jo 6.66). Simão, o mago
é outro exemplo de alguém que era atraıd́ o por milagres, mas
não tinha o coração reto diante de Deus (At 8.13,18-23). Tudo
isso mostra que, ao contrário do que é dito no meio pentecostal, o
apego a milagres não é evidência de uma fé mais forte. Aliás, é
muito perigoso sentir-se atraıd́ o por alguém só porque essa
pessoa faz ou diz fazer milagres, pois, conforme visto no item 2
supra, é essa atitude que levará muita gente a seguir os falsos
profetas e o anticristo no im dos tempos (Mt 24.24; 2Ts 2.9-10;
Ap 13.11-15).

5. O fator mais e icaz na produção da fé


salvadora é apregação e não a
realização de milagres. Há quem acredite que os
milagres são necessários para levar as pessoas à conversão.
Porém, os inúmeros milagres realizados por Moisés, Elias, Eliseu,
Jesus e os apóstolos mostram que isso não é verdade. De fato,
ainda que muitas pessoas tenham crido no evangelho ao ver um
grande prodıǵ io (At 9.42), o efeito avassalador e transformador
que seria de se esperar sobre as multidões que testemunharam
todos aqueles feitos milagrosos nunca ocorreu. Na verdade, a
força dos sinais na produção da fé sempre esteve aquém do
esperado, sendo o efeito dos prodıǵ ios, na maior parte das vezes,
apenas um entusiasmo passageiro. Isso ocorre porque Deus
determinou que a salvação das pessoas acontecesse por meio da
pregação (1Co 1.21). Paulo escreveu que o evangelho (não o ato
milagroso) é o poder de Deus para a salvação de quem crê (Rm
1.16) e a irmou que a fé salvadora se instala no coração dos
homens por intermédio dos ouvidos e não dos olhos (Rm 10.17).
O próprio Jesus disse que se alguém não ouve as Escrituras
(“Moisés e os profetas”) não poderá crer ainda que veja uma
pessoa ressuscitar dentre os mortos (Lc 16.31).

6. Os milagres dos tempos apostólicos


começaram a diminuirjá no século 1.
Conforme exposto no item 1 supra, o perıó do apostólico
foi uma das três fases da história em que feitos sobrenaturais
ocorreram com bastante frequência (At 5.15-16; 6.8; 8.13). Isso
aconteceu porque os milagres tinham por objetivo autenticar a
mensagem nova que estava sendo pregada pelos apóstolos (Mc
16.20; At 14.3; 2Co 12.12). Porém, tão logo esse tempo de
autenticação icou para trás, os sinais miraculosos foram se
tornando mais esparsos. Já nos anos 60 do primeiro século as
curas sobrenaturais eram raras (Fp 2.26-27; 1Tm 5.23; 2Tm
4.20) e o autor da Carta aos Hebreus se referiu aos feitos
milagrosos como pertencentes ao perıó do da primeira geração
de cristãos — a geração que viu a mensagem dos apóstolos ser
autenticada por meio de sinais e prodıǵ ios (Hb 2.3-4). Note-se
ainda que nas listas de dons elaboradas por Paulo (Rm 12.6-8;
1Co 12.8-10,28; Ef 4.11), os dons de curas e de operação de
milagres são mencionados somente em 1Corıń tios, escrita no ano
55. Listas produzidas pouco tempo depois, como as de Romanos
(escrita em 57-58) e Efésios (escrita por volta de 61) não
mencionam esses dons, indicando que haviam entrado em fase de
declıń io, se é que já não tinham desaparecido totalmente.

7. Curas e milagres podem acontecer em


qualquer época,inclusivea atual. Os dons de curas e
de operação de milagres eram capacidades dadas por Deus a
alguns crentes de erradicar doenças e de realizar maravilhas fora
da ordem natural das coisas (1Co 12.8-10,28). As pessoas que
tinham esses dons curavam tudo e a todos (At 5.16), sendo
capazes, inclusive, de ressuscitar mortos algumas vezes (At 9.36-
41; 20.9-12). Conforme visto no item 6, esses dons deixaram de
existir já no século 1. Isso, contudo, não signi ica que o Senhor,
eventualmente, não faça ainda hoje obras grandiosas, além da
compreensão humana. Antes, signi ica que, quando Deus realiza
feitos assim, ele o faz em resposta à oração dos crentes em geral e
não por meio de indivıd́ uos dotados por ele com capacitações
sobrenaturais, como era o caso dos apóstolos e dos crentes que
tinham dons de operar milagres. Por isso, os cristãos que, ao
enfrentar um sério problema, perceberem que a solução está fora
do alcance humano, devem buscar o milagre de Deus na oração e
na súplica
[92]
(sua e de seus irmãos — Tg 5.14-18) e não nas supostas
habilidades dos “curandeiros” atuais, sabendo que, muitas vezes,
o Senhor pode ter um “não” como resposta (2Co 12.7-9).

8. Muitos milagres atuais são extremamente


duvidosos. Os lıd́ eres evangélicos que dizem realizar
milagres sempre os fazem em benefıć io de pessoas que a
multidão que assiste a eles não conhece. Isso torna impossıv́el a
comprovação até mesmo da existência da doença, sendo comuns
as fraudes. Esses lıd́ eres também não apresentam qualquer
comprovação válida de que tenham, de fato, realizado uma cura
espetacular. Além disso, as curas que dizem operar em público
são de doenças que não podem ter sua melhora veri icada de
pronto, sendo casos de enxaqueca, tendinite, dores na coluna,
tumores internos, etc. Ademais, é estranho que ponham seus
“dons” em operação somente em programas promovidos por eles
mesmos, em lugares e horários previamente marcados — e nunca
em hospitais, leprosários ou locais atingidos por grandes
tragédias ou epidemias —, o que mostra que contam sempre com
um ambiente de fácil controle e manipulação. Além disso, os
casos de cura real que acontecem nesse meio sempre envolvem
doenças funcionais e psicogênicas (e.g., dores, palpitações,
problemas respiratórios, rigidez muscular, etc.), ou seja,
enfermidades contra as quais o organismo reage por meio da
sugestão, do otimismo ou da força de vontade. Doenças orgânicas,
isto é, que não podem ser curadas por meio desses fatores (e.g.,
ferimentos, cegueira, surdez, cálculos renais, tumores, tetraplegia,
etc.) nunca são sanadas pelos pastores milagreiros. Nada disso se
encaixa no modelo de curas mostrado na Bíblia. Ali, são
apresentados casos de doentes que eram conhecidos por todos (a
realidade da doença podia, assim, ser veri icada), doentes que
eram curados nas casas, nas ruas, nas praças e em qualquer hora
e lugar, e doentes que eram curados completa, imediata e de
initivamente de todos os tipos de enfermidade. Vê-se, assim, que
em nada as curas atuais se assemelham ao que aconteceu nos
tempos de Jesus e dos apóstolos.

Levando tudo isso em conta, a igreja de Deus afastará de sua


prática qualquer forma de reunião ou campanha que tenha como alvo
produzir curas e milagres. Seus membros também, sendo “cristãos
velhos”, ou seja, crentes do tipo que se protege do erro pelo
conhecimento da sã doutrina, jamais participarão de programas desse
tipo, sabendo que a obra poderosa de Deus se realiza dentro de
contornos bem diferentes daqueles que se veem nos espetáculos
enganosos que marcam o meio evangélico atual.

A busca de sucesso e prosperidade

Muitas igrejas da atualidade adotam a teologia da prosperidade,


um modelo doutrinário que propõe que a vontade de Deus é que os
crentes sejam sempre abençoados inanceiramente, tendo também
sucesso em todas as demais áreas da vida.
O principal expoente dessa vertente teológica é Kenneth Erwin
Hagin (1917-2003), que propôs, inclusive, que o sucesso material ou a
vitória sobre as doenças e outros males são possıv́eis por intermédio
da fé expressa em palavras, ensino chamado de “palavra da fé” ou
[93]
“con issão positiva”.
Assim, para os teólogos da prosperidade (ou triunfalistas, como
também são conhecidos), o crente pode obter vitórias nesta vida por
meio de declarações con iantes (“eu determino”, “eu não aceito”, “eu
tomo posse...”), por meio do uso da fórmula “em nome de Jesus”, ou por
meio de palavras de ordem dirigidas até mesmo ao próprio Deus (“eu
reivindico”), sendo que, quando o ideal da pessoa é eventualmente
alcançado, essa se torna a maior evidência de que ela tem uma fé
[94]
robusta e madura.
E bom destacar que o ensino de que as palavras do crente têm
poder tomou formas e alcançou desdobramentos surpreendentes.
Mestres triunfalistas alegam “liberar o poder de Deus” com algumas
frases que dizem. Outros chegam a a irmar que, em muitos casos, o
falecimento de um paciente em estado terminal não pode acontecer
enquanto os crentes da famıĺ ia não concordarem unânimes em fazer
uma oração “liberando a morte”! Sem o pronunciamento dessa
autorização, Deus, segundo dizem, não pode levar o doente.
Vê-se, assim que, para os mestres da teologia da prosperidade, os
crentes têm certo grau de autoridade sobre Deus, além de direito
completo às bênçãos dele, podendo reclamá-las com ousadia. Nesse
sentido, alguns a irmam categoricamente que é errado dizer a frase
“seja feita a tua vontade” durante as súplicas, pois isso, segundo
entendem, revela falta de fé e pode impedir que o que é buscado seja
inalmente alcançado. Outros, levando seus ensinos às últimas
consequências, concluem que a oração é desnecessária, devendo ser
substituıd́ a por declarações de vitória, por determinações de sucesso
completo e por reivindicações de direitos junto ao trono celeste. Na
verdade, alguns pastores que acolhem esse modelo doutrinário
ensinam seus seguidores a “perdoar Deus” por, em algum momento da
vida, não ter concedido o que lhes era devido.
Os pastores triunfalistas ensinam ainda, e de modo bastante
veemente, que outra forma de demonstrar fé e obter então as sonhadas
bênçãos materiais é por meio de contribuições inanceiras dadas às suas
igrejas. Segundo eles, quanto mais a pessoa ofertar, maior será a
demonstração de sua fé (especialmente se estiver passando por
apertos inanceiros) e, por isso, certamente essa pessoa será
recompensada por Deus com notável prosperidade e sucesso em todas
as áreas da vida.
As comunidades que acolhem essa heresia raramente pregam
sobre o pecado, a salvação pela fé em Cristo ou sobre a vida de
santidade, resumindo-se a mensagens em ensinos ligados à con issão
positiva e em apelos insistentes para que as pessoas demonstrem sua
fé contribuindo de modo pródigo com a igreja, a im de obter sucesso
inanceiro e outras conquistas como curas, restauração de casamentos
ou vitórias sobre algum vıć io. Todos os testemunhos dados pelos iéis
versam apenas sobre essas coisas e têm por intuito reforçar os apelos
dos pastores.
A teologia da prosperidade ensina, assim, um outro evangelho,
divulgando heresias e blasfêmias assustadoras e apresentando o
sucesso inanceiro como um elemento da redenção que Cristo obteve na
cruz, algo jamais pregado pelo Senhor e seus apóstolos. Por isso, esse
“evangelho” deve ser rejeitado com todo vigor pela igreja de Deus (Gl
1.8-9).
Algumas verdades cristãs sólidas que servem para desmascarar o
triunfalismo são as seguintes:

1. O poder de criar novas realidades a partir do


pronunciamentode palavras é detido apenas por Deus (Gn 1.3; Sl
148.5; Hb 11.3). Quando a Bíbliafala sobre a força das palavras
humanas, refere-se apenas ao cuidado que se deve ter com a lıń
gua, já que o mau uso dela em ofensas, mentiras, blasfêmias e
calúnias, tem o “poder” de criar sérios problemas (Pv 18.21;
26.28; Mt 15.11,18; Tg 3.5-9), enquanto o uso sábio da palavra
traz alento, sabedoria e paz (Pv 12.18; 15.2,4).

2. Somente Deus tem autoridade absoluta na administração


edistribuição de suas bênçãos. Ele concede o bem e o mal a quem
quer, quando quer e conforme quer (Ex 4.11; Jó 1.21; 2.10; Lm
3.27-28,38-39; Rm 9.15-18). Ninguém pode questioná-lo,
obrigálo ou se opor a ele no modo como executa seus desıǵ nios
(Is 43.13; 45.9; Rm 9.20-21), até porque o Senhor é
absolutamente soberano (Is 46.9-10) e tudo que faz é bom, santo,
perfeito, sábio e totalmente justo (Dt 32.4; Is 40.13-14; Ap 15.3).
A soberania e a sabedoria de Deus também apontam para o fato
de que o homem não tem o poder de manipulá-lo por meio de
palavras, orações, rituais ou fórmulas especı́ icas. O in inito
entendimento, o imenso senhorio e a suprema liberdade do
Senhor o colocam muito acima da possibilidade de ser controlado
por alguém que, descobrindo um suposto jeito de in luenciá-lo,
“aperta os botões certos” (Jó 23.13).

3. A censura ao uso da expressão “seja feita a tua vontade” é


umataque frontal ao próprio Cristo que orou desse modo e
ensinou seus seguidores a fazer exatamente assim (Mt 6.10;
26.42). Aliás, Tiago censura seus leitores por fazerem planos
ousados de obtenção de lucro sem nunca reconhecer
humildemente que só teriam sucesso se essa fosse a vontade de
Deus (Tg 4.13-16). Nesse sentido, vejam-se também o
entendimento e a postura dos escritores bıb́ licos em Atos 16.6-7,
1Corıń tios 16.7 e Hebreus 6.3.

4. A noção de que a oração é desnecessária também


contrariafrontalmente o ensino bıb́ lico mais elementar (Rm
12.12; Ef 6.1819; Fp 4.6; Cl 4.2-3; 1Ts 5.17,25). Ademais,
substituir a oração humilde e dependente pela exigência ousada é
uma demonstração tão chocante de irreverência, petulância,
destemor, orgulho, atrevimento e blasfêmia que nenhum
verdadeiro convertido seria capaz de aceitar (Hc 2.20), posto que,
para o homem transformado, a serena sujeição a Deus está acima
dos desejos pessoais (Jó 1.21; Lm 3.27-31,38-39; Mq 6.8; Hc 3.17-
18; 2Co 12.7-9).

5. As promessas bıb́ licas de prosperidade material (assim


como as ameaças de miséria) foram dadas a Israel ao tempo da
Lei e seu cumprimento dependia da estrita observância dos
preceitos mosaicos (Dt 28.1-14). Essas promessas (e também as
ameaças — Dt 28.15-68) não se aplicam à igreja que, como se
sabe, é uma realidade nova, surgida nos tempos apostólicos (Ef
2.15-16; 3.4-6) e distinta do Israel nacional (Rm 9.3-4; 10.1;
11.11,25-26). Ademais, a dispensação da Lei teve seu im (Jo 1.17;
Rm 7.4-6;
2Co 3.7-11; Gl 3.19,24-25; Cl 2.13-14; Hb 7.12,18-19; 8.6-7,13;
9.10), havendo a obra de Cristo inaugurado a Nova Aliança (Lc
22.20; Hb 12.24). Nessa Nova Aliança nada se diz sobre
prosperidade material (Hb 8.8-13).

6. O evangelho verdadeiro coloca a condição da alma muito


acimada prosperidade material, sendo sua mensagem focada na
felicidade eterna futura e não na riqueza passageira presente (Mt
16.26). Por isso, a Bíblianão vê como absurdo o fato de alguém
perder bens e posição após a conversão ou por causa dela,
mostrando que, de fato, isso pode acontecer com muitos crentes
(Fp 3.4-8; Hb 10.32-34).

7. Ao contrário do que ensinam os mestres da prosperidade,


aspessoas ricas em fé são exatamente as pobres (Tg 2.5). Uma boa
prova disso se encontra na igura de Pedro. O livro de Atos mostra
que ele não tinha ouro nem prata, mas mesmo assim foi capaz de,
pela fé, curar um paralıt́ ico (At 3.5-8). Além disso, todos os
apóstolos, homens de fé, foram colocados por Deus debaixo das
mais terrıv́eis penúrias materiais (1Co 4.9-13; 2Co 6.4-10). O
mesmo aconteceu com outros que o autor de Hebreus alista entre
os grandes heróis da fé (Hb 11.36-39).

8. Paulo ensina que Deus, ao administrar sua graça salvadora,


deupreferência aos pobres, aos pequenos e aos fracos, a im de
humilhar os de nobre nascimento e os poderosos deste mundo
(1Co 1.26-29). Isso mostra que, para Deus, a prosperidade
material dos homens não provoca necessariamente o seu deleite.

9. Na Bíblia, em vez de serem exemplos de idelidade e de vida


cristã robusta, os ricos são apresentados como pessoas de fé
muito frágil e de vida que tende com mais facilidade para os
prazeres carnais e as perversidades (Mc 10.25; Lc 12.13-21;
16.19-23; 1Tm 6.17-19; Tg 5.1-6; Ap 3.15-17). Logo, não há
nenhum estıḿulo na Bıblia para que o crente almeje ser alguéḿ
demasiadamente próspero. Em vez disso, o texto sagrado
desencoraja o desejo de icar rico, ensinando que a situação
econômica equilibrada é a mais recomendável para o homem que
teme a Deus (Pv 30.8-9; 1Tm 6.8-10).

10. Ao contrário do que propõe a teologia da prosperidade, não


écorreto buscar a Deus tendo em vista a obtenção de bens
materiais (1Tm 6.3-8), pois isso pode servir de laço (1Tm 6.9-10).
Jesus mesmo censurou aqueles que o seguiam por causa do pão
que ele multiplicara (Jo 6.26-27).

11. Os pastores da prosperidade se encaixam perfeitamente


noper il dos falsos mestres que, segundo a Bíblia, ambicionam
dinheiro na prática do ministério (2Co 2.17; Tt 1.11), consideram
a piedade fonte de lucro (1Tm 6.5,9-11), são buscados por
pessoas cheias de cobiça (2Tm 4.3-4), exploram os crentes com
palavras blasfemas e ictıć ias (2Pe 2.1-3,18-19) e se comportam
vergonhosamente (Jd 4,11-16). Diferente desses lıd́ eres, o pastor
bıb́ lico é um homem livre de avareza (1Tm 3.3; Tt 1.7; 1Pe 5.2).

12. Diante dos pobres que há na igreja, não é dever dos
pastoresensiná-los a anelar por riquezas (Mt 6.19-21; 1Tm 6.9-
10), mas sim encorajá-los a trabalhar (1Ts 4.11-12; 2Ts 3.10-12),
ajudar os que são mais pobres do que eles (2Co 8.1-5) e se
contentar com o que têm (1Tm 6.8; Hb 13.5). No caso de haver
pobres que realmente não podem obter sustento, o dever do
pastor é exortar os parentes dessa pessoa a ampará-la (1Tm
5.4,8,16). Também é tarefa do pastor admoestar suas ovelhas
para que ajudem seus irmãos na fé que, por forças alheias à sua
vontade, não podem
[95]
obter pão (Rm 15.26; Gl 2.10; 6.10; Ef 4.28; 1Jo 3.17).
Um dos lados mais tristes da realidade criada pelo evangelho da
prosperidade é que, geralmente, seus seguidores, depois de doar aos
lıd́ eres tudo que têm, percebem angustiados que foram vıt́ imas de
grave engano doutrinário. Então, vão se queixar aos pastores e estes
lhes dizem que o que os impediu de ter sucesso foi a falta de fé. Assim,
esses infelizes vão para casa (se ainda tiverem casa!) sem os poucos
bens que antes possuıá m e com uma enorme carga de culpa no
coração.
A verdadeira igreja de Deus pode evitar que esse e muitos outros
danos recaiam sobre as pessoas ensinando-lhes as verdades alistadas
supra e combatendo veementemente qualquer indıć io dessa
destruidora heresia.

Quebra de maldições

A doutrina sobre a quebra de maldições consiste no ensino de que


as pessoas, crentes ou não, são em geral alvos de maldições proferidas
contra elas, normalmente num acesso de indignação, cólera ou algo
[96]
semelhante. Segundo esse ensino, a mãe ou mesmo a professora
que disse à criança rebelde: “Você vai se dar mal na vida, não será
ninguém se continuar assim”, já pronunciou, com isso, uma maldição
contra o menino. Essas supostas maldições sempre “pegam”, pois,
conforme visto, para os mestres dessas ideias, as palavras humanas
têm poder.
De acordo com essa doutrina, outra forma de as maldições
alcançarem uma pessoa é uma espécie de transmissão hereditária. Em
suas igrejas, os quebradores de maldição ensinam que os pecados e
práticas cultuais diabólicas dos ancestrais são su icientes para colocar
uma pessoa sob maldição, pois, contrariando o ensino de Ezequiel 18.1-
20 e João 9.1-3, a irmam que essas culpas são transmitidas de geração a
[97]
geração.
Esses mesmos mestres dizem que o resultado dessas maldições é
que o amaldiçoado passa a ter problemas de comportamento de difıć il
solução (alcoolismo, adultério, acessos de ira, etc.), enfrenta graves e
constantes crises de saúde (diabetes, câncer, obesidade, miopia...), não
prospera e nada do que faz dá certo (aqui se encontra o vıń culo entre
essa doutrina e o ensino que proferem acerca da prosperidade
material, já mencionado acima). Faz-se então necessário quebrar a
maldição a im de que o indivıd́ uo desfrute uma vida feliz e abundante.
Mas como?
De acordo com os mestres dessas doutrinas, a solução geralmente
é fazer orações especiais que precisam ser aprendidas ou participar de
cultos de livramento. Especi icamente no caso de maldições originadas
nos antepassados, a “vıt́ ima” tem de orar a Deus pedindo que lhe seja
revelada a geração em que a maldição teve origem e, então, pedir
perdão pelo pecado do ancestral que lhe deu causa. Outros dizem que é
preciso fazer regressões mentais até o momento em que a maldição foi
[98]
adquirida, a im de quebrá-la ali, na própria raiz.
Por isso, em algumas igrejas são realizadas campanhas de
libertação das quais os interessados na “quebra” devem participar.
Segundo entendem, no inal dessas campanhas a maldição terá sido
anulada pelas orações, unções e palavras de ordem dos pastores. Em
outros casos, pessoas supostamente habilitadas na arte de quebrar
maldições vão a uma casa em que, num dia designado, se reúnem todos
os membros (crentes ou não) de uma determinada famıĺ ia que acredita
ser oprimida por maldições. Ali se realiza um culto especial com
orações e repreensões a maus espıŕ itos. Quando tudo acaba, os
membros da famıĺ ia acreditam estar libertos. Se a sorte da famıĺ ia não
mudar, a explicação é sempre a mesma: falta de fé por parte de alguém.
Outras comunidades realizam retiros especiais em que as pessoas
são induzidas a fazer regressões mentais até o tempo da origem da
maldição. Chegando a esse ponto por meio da memória ou da
imaginação, o indivıd́ uo pode en im quebrar o mal que lhe foi lançado,
fazendo uma súplica ou pronunciando uma palavra de ordem.
Na Bíblia, é impossıv́el encontrar apoio para essas noções e
práticas. O que as Sagradas Escrituras ensinam é que todos os homens
estão debaixo de apenas duas maldições: a maldição do Eden e a
maldição da Lei.
Pela maldição do Eden, a mulher passou a ter grande sofrimento
ao dar à luz, di iculdades de relacionamento surgiram no âmbito
conjugal, a terra passou a produzir espinhos e ervas daninhas, o
trabalho árduo tornou-se necessário para a obtenção do sustento e a
morte sobreveio à humanidade (Gn 3.16-19).
No tocante à maldição da Lei, esta é lançada sobre todos os que
transgridem os santos mandamentos de Deus (Pv 3.33; Gl 3.10). Essa
maldição torna os transgressores condenáveis e merecedores do
castigo eterno (Gl 3.12). Uma vez que todos os homens desobedecem às
prescrições do Senhor (Rm 3.10-12), todos são malditos diante dele e,
consequentemente, estão separados de Deus, aguardando o castigo
eterno (Rm 3.23).
A solução para a maldição do Eden não pode ser obtida na
presente era, estando reservada para o futuro, quando Deus criar
“novos céus e nova terra” para a eterna habitação dos salvos (Ap 21.1).
Ali, diz o Apocalipse, não haverá maldição (Ap 22.3).
No que diz respeito à maldição da Lei, Deus proveu a solução por
meio da obra substitutiva de Cristo na cruz. Nesse sentido, Paulo a
irmou que Cristo nos resgatou da maldição da Lei fazendo-se ele
próprio maldição em nosso lugar quando foi pendurado no madeiro (Gl
3.13). Por isso, quando alguém crê em Cristo, imediatamente se bene
icia do sacrifıć io dele e é resgatado para sempre da terrıv́el maldição
que o levaria ao inferno (Rm 5.1; 8.1). Se, todavia, o homem
permanecer rebelde, não crendo em Cristo, não entregando a vida a ele,
en im, não o recebendo como salvador (Jo 1.12), “a ira de Deus sobre
ele permanece” (Jo 3.36) e o próprio Senhor o chama de maldito (Mt
25.41).
Vê-se, assim, que as duas únicas maldições reais que pesam sobre
o homem têm sua forma precisa de solução. Quaisquer outras
maldições são apenas invenções, como também são invenções as
fórmulas que apresentam para saná-las.
De fato, o ensino bıb́ lico mostra que os salvos, especialmente, não
têm nenhuma razão para se preocupar com qualquer maldição
proveniente de seus ancestrais nem de quem quer que seja. Paulo
ensina que os crentes são novas criaturas, que para eles as coisas
velhas já passaram e tudo se fez novo (2Co 5.17). Ele diz também que
não há porque os cristãos se preocuparem com as coisas que para trás
icam, devendo, ao invés disso, manter os olhos ixos em seu futuro
glorioso (Fp 3.13-14). O ensino de Paulo vai além, e ele a irma que
nenhuma condenação há para os que estão em Cristo (Rm 8.1) e que,
por isso, não precisam viver atemorizados (Rm 8.15), pois o Senhor os
protege e deles cuida com zelo sem igual (Rm 8.31-39).
O Novo Testamento enfatiza que a obra de Cristo em favor dos
crentes foi su iciente para libertá-los do poder do pecado (Cl 1.13) e fez
deles membros da raça eleita, da nação santa (1Pe 2.9), um povo
ricamente abençoado (Ef 1.3), contra quem as portas do inferno não
podem prevalecer (Mt 16.18). Portanto, acerca dos salvos pode-se dizer
o que Balaão foi forçado a dizer acerca de Israel: “Como posso
amaldiçoar a quem Deus não amaldiçoou? (...) Ele abençoou, não o
posso revogar... Pois contra Jacó não vale encantamento, nem
adivinhação contra Israel... Benditos os que te abençoarem e malditos
os que te amaldiçoarem…” (Nm 23.8a, 20b, 23a; 24.9b).
Assim, os rituais de quebra de maldição são desnecessários para
os crentes. Todavia, se alguém não é crente, o único modo de livrar-se
das duas reais maldições que lhe pesam (a do Eden e a da Lei) é
renderse a Cristo. Contra essas duas maldições, de nada valerá
participar de cultos barulhentos, fazer orações especiais ou coisas
semelhantes. Somente pela fé em Cristo o indivıd́ uo pode deixar de ser
maldito e tornar-se bendito. Portanto, para o incrédulo, qualquer ritual
de quebra de maldição é inútil.
Ora, se a quebra de maldição é desnecessária para o crente e
inútil para o incrédulo, para que serve então? Para nada! Logo, não há
por que perder tempo com essa prática supersticiosa inventada em
anos recentes.
Concluindo esta seção, é importante destacar o real signi icado de
duas passagens bıb́ licas muito usadas pelos proponentes da doutrina
da maldição hereditária: Exodo 20.5-6 e Romanos 5.12. Diante desses
dois textos é preciso fazer as seguintes ressalvas:

1. Exodo 20.5-6 não trata de maldições hereditárias, nem


dequalquer tipo de feitiço que eventualmente esteja sobre os
ilhos dos perversos, mas sim da experiência comum das famıĺ ias
cujos ancestrais viveram longe dos caminhos de Deus.
Evidentemente, homens que não andam sob o temor do Senhor
deixam para seus ilhos e netos uma herança de sofrimentos,
desajustes e erros que os afetam ao longo de toda a vida.
Ademais, os ıḿpios tendem a gerar uma prole que segue seus
passos de impiedade, trazendo ainda mais miséria sobre si e
outros membros da famıĺ ia. E ao sofrimento decorrente disso
tudo que o Senhor se refere quando diz que visita a iniquidade
dos pais nos ilhos, devendo ser ainda lembrado que essa não
é uma ação que ele realiza sempre. Na verdade,
quando o ilho de uma pessoa perversa se volta para o Senhor,
muitos males (se não todos) decorrentes de sua criação perversa
são evitados, passando a pessoa a obter o favor do Senhor, o que
se pode facilmente veri icar na história bıb́ lica (2Rs 16.1-4
cp.18.1-7) e na experiência comum.

2. O ensino de Romanos 5.12 aponta para o impacto do pecado


deAdão sobre toda a sua descendência. E preciso, contudo,
lembrar que, conforme se depreende do próprio texto em
questão, Adão ocupava o lugar de representante da humanidade
inteira (vejamse o v. 19 e 1Co 15.21-22). Por isso, seu ato de
rebeldia afetou todos os homens. Essa posição, contudo, era
exclusiva de Adão e não há na Bíblianenhum indıcio de que outras
pessoas possaḿ ocupar posições semelhantes em relação aos
seus descendentes. Aliás, Ezequiel 18.1-20 realça exatamente o
contrário, destacando que a responsabilidade pelo pecado de um
indivıd́ uo é pessoal e intransferıv́ el.
A chamada ‘Restauração Apostólica’

Muitas igrejas de hoje acreditam na continuidade do apostolado.


Isso tem como causa um movimento recente denominado “restauração
apostólica”, promovido a partir dos anos 1990, especialmente no
[99]
âmbito pentecostal.
A verdade, porém, é que a igreja de Deus sempre teve de lutar
contra tendências desse tipo. De fato, o tıt́ ulo de apóstolo foi
reivindicado por falsos mestres já nos dias do Novo Testamento (2Co
11.13-15; Ap 2.2) e a doutrina da existência de apóstolos posteriores
aos Doze tem marcado seitas como o mormonismo e desvios como o
romanismo. Este último defende há séculos a continuidade do
apostolado na igura do papa.
A análise desse erro ao longo da história da igreja cristã mostra
que seus proponentes arrogam para si o tıt́ ulo de apóstolo ou investem
seus preferidos nessa função geralmente movidos pelo amor ao
dinheiro, à grandeza e ao poder. Com efeito, gigantescos impérios
inanceiros têm sido construıd́ os pelos “apóstolos” contemporâneos,
mostrando o real objetivo por trás do que chamam de ministério
cristão. Também reivindicações de autoridade absoluta são feitas por
esses homens que escravizam pessoas, exploram a gente ignorante e
condenam qualquer um que avalie ou questione seus ensinos absurdos.
A Bíbliasilencia acerca de qualquer ideia referente à continuidade
apostólica e, por isso, os crentes de outrora jamais acolheram esse
desvio. De fato, a simples análise das Escrituras protege o crente de cair
no engano proposto pelos expoentes da restauração apostólica. Essa
proteção tem como base a distinção que existe no Novo Testamento
entre o apóstolo no sentido geral e o apóstolo no sentido
técnico.
No sentido geral, a palavra “apóstolo” designava apenas um
missionário pioneiro, já que o signi icado básico do termo é mensageiro.
Nesse sentido mais abrangente, Barnabé, por exemplo, foi chamado de
apóstolo em Atos 14.14.
Já no sentido técnico, o vocábulo “apóstolo” tinha aplicação
bastante limitada, designando apenas aqueles que viram o Senhor
ressurreto e foram investidos diretamente por ele na função apostólica
(At 1.21-22; 1Co 9.1; Gl 1.1), recebendo também, da parte de Deus,
revelações doutrinárias especiais que serviram e ainda servem como
fundamento doutrinário para a igreja (Ef 2.20; 3.4-5).
Nesse sentido técnico e estrito, os apóstolos só existiram no
século 1, quando Deus lançou os alicerces teológicos, éticos e funcionais
da igreja (Ef 2.20), sendo seu número limitado a apenas doze
componentes (Ap 21.14).
As marcas distintivas desse pequeno grupo eram as seguintes:

1. Eles eram missionários pioneiros e, nesse aspecto, se


assemelhavam aos apóstolos no sentido geral (Rm 15.20;
2Co 10.13-16).
2. Eles eram testemunhas oculares da ressurreição (1Co 9.1;
15.8).
3. Eles não se autoinvestiam na função apostólica (Rm 1.5;
2Co 11.13; Ap 2.2).
4. Eles realizavam prodıǵ ios milagrosos (2Co 12.12).
5. Eles não entravam nessa função por intermédio de outros
homens, mas somente por ordem direta de Cristo (Gl 1.1,
11-12). A única exceção que ocorreu no caso de Matias (At
1.21-26) foi provavelmente por causa do caráter provisório
de seu papel como décimo-segundo apóstolo.
6. Eles eram canais de revelação doutrinária inédita (1Co
15.3; Ef 3.4-6).
7. Eles eram colocados por Deus numa posição de desprezo,
miséria e sofrimento (1Co 4.9-13).
Se alguém não apresentasse essas marcas, poderia ser chamado
de apóstolo no sentido geral e não técnico, isto é, poderia ser, no
máximo, um missionário pioneiro. Para ser, contudo, um apóstolo no
sentido técnico e estrito, cada um desses traços devia ser real em sua
vida. Ora, é evidente que os apóstolos contemporâneos não apresentam
nenhuma das marcas supraenumeradas, sendo, portanto,
absolutamente falsos.
Na exposição do funcionamento correto da igreja de Deus, é muito
importante destacar que o apóstolo no sentido técnico, já nos tempos
do Novo Testamento, foi perdendo a posição de liderança absoluta na
igreja, cedendo lugar aos bispos ou pastores.
Isso pode ser visto claramente no modo como a forte liderança do
apóstolo Pedro é nublada pelo decisivo governo de Tiago que era
pastor e que não fazia parte do grupo dos Doze. De fato, Pedro mostra
temor diante de uma comitiva que Tiago enviou a Antioquia (Gl 2.11-
13) e, no Concıĺ io de Jerusalém, a palavra inal e decisiva foi dada por
Tiago e não pelos apóstolos Pedro e Paulo (At 15.13ss).
Ademais, em Atos 21.17-26, há sinais de que a liderança da igreja
de Jerusalém passou a ser formada apenas por presbıt́eros (v. 18),
havendo ainda evidências de que o apóstolo Paulo reconhecia a posição
daqueles homens, chegando a prestar-lhes relatórios e a seguir suas
orientações.
Tudo isso dá indıć ios de uma mudança de primazia já na igreja
primitiva que, aos poucos, foi substituindo a liderança apostólica pela
pastoral. A inal, com a morte dos Doze ainda no século 1, o cargo de
apóstolo no sentido estrito desapareceu de maneira de initiva.
E, portanto, pertinente a observação de Joachim Rohde:

Depois de Atos 16.4 os apóstolos não são


mais mencionados e Lucas apresenta os
anciãos [ou pastores], com Tiago, o irmão
de Jesus, à sua frente, como a nova
liderança da comunidade de Jerusalém,
postulandouma espécie de
[100]
conselho superior para a igreja em geral (21.18).

Evidentemente, o desejo de ser apóstolo tem como causa o anseio


de galgar uma posição mais elevada na igreja, suplantando, inclusive, o
cargo pastoral. Esse mau anseio se baseia na visão equivocada de que o
apóstolo está acima do pastor.
Porém, conforme visto, no Novo Testamento a liderança máxima
dos apóstolos só perdurou durante algum tempo, cedendo depois lugar
aos bispos.
Isso serve para mostrar, entre outras coisas, que, mesmo que
existissem apóstolos ainda hoje, eles em nada seriam superiores aos
pastores, sendo estes os lıd́ eres que Deus designou para conduzir sua
igreja depois que os Doze cumpriram seu papel especı́ ico antes mesmo
do im do século 1.
Assim, nenhuma igreja bıb́ lica deve se curvar aos apóstolos
atuais, uma vez que todos são falsos e, mesmo se fossem verdadeiros,
seu papel de liderança na igreja não poderia superar a autoridade
pastoral.

Avivamentos estranhos

In luenciadas por falsos mestres, inúmeras pessoas acreditam que


as práticas bizarras que hoje se veem em muitos cultos evangélicos são
prova de avivamento. Para essas pessoas, a igreja avivada, ou seja, a
igreja em que o Espıŕ ito Santo está realmente atuando é aquela em que
todos gritam, sapateiam, dançam e choram freneticamente. A crença
geral é num tipo de “avivamento” em que não há nada de
arrependimento, con issão, santi icação, consagração ou transformação,
mas somente barulho e confusão.
Em certas comunidades, essa forma bizarra de “avivamento”
chega a excessos incrıv́eis, com pessoas emitindo sonoras gargalhadas,
rolando no chão, latindo, rosnando e uivando como animais ou
[101]
imitando bêbados cambaleantes. Todas essas práticas chocantes são
atribuıd́ as ao poder do Espırito Santo em atuação notável sobre ó seu
povo.
Será, porém, que essas manifestações tresloucadas são mesmo
evidência da ação do Espıŕ ito na vida de alguém? Será que o Espıŕ ito
que moveu os profetas no Antigo Testamento (1Pe 1.11), atuou na vida
e no ministério de João Batista (Lc 1.13-15), ungiu o Messias prometido
(Lc 4.16-19), capacitou a igreja para o testemunho do evangelho (At
1.8) e inspirou os escritos da Bíblia(2Pe 1.20-21) é o mesmo espıŕ ito
que faz pessoas icarem latindo de quatro no chão da igreja ou rolando
freneticamente entre os bancos da congregação?
E óbvio que não. Na verdade, no Novo Testamento, as pessoas
dominadas pelo Espıŕ ito Santo faziam uma só coisa: testemunhavam
ousadamente acerca da sua fé por meio da pregação e do viver piedoso
(At 1.8; 4.8-13,31; 6.3; 11.22-24). Assim, os atos de histeria que se
veem em muitas igrejas hoje em dia não re letem nada do verdadeiro
avivamento espiritual.
Outro equıv́oco comum é considerar avivado qualquer
movimento que Deus use para promover conversões. Todo crente deve
lembrar que ser usado por Deus não é prova de vigor espiritual, uma
vez que Deus usa quem quer, até mesmo os piores incrédulos!
De fato, a Bíbliamostra que o diabo foi usado por Deus na vida de
Jó e de Paulo a im de que esses homens conhecessem melhor o Senhor
e sua graça (Jó 42.5; 2Co 12.7-9). Demônios foram usados pelo Senhor
para que os planos dele se realizassem (1Sm 16.14; 1Rs 22.20-23).
Pessoas e até nações incrédulas foram usadas por Deus no
cumprimento de seus propósitos (Is 10.5,6; At 4.27,28).
Também na história da igreja cristã é possıv́el ver Deus usando
instituições religiosas terrivelmente corrompidas para promover a
conversão de seus eleitos. Lutero e os demais reformadores de
primeira geração são exemplos de conversões ocorridas dentro da
Igreja Católica Romana, num tempo em que essa igreja era um
verdadeiro covil de malfeitores.
Não há, portanto, porque considerar avivado um movimento
simplesmente porque é usado por Deus na salvação dos perdidos.
Tampouco deve o crente estranhar quando o Senhor usa igrejas falsas
ou mesmo as mais horrıv́eis seitas pagãs para cumprir seus desıǵ nios
salvadores. Além do mais, é necessário destacar que o verdadeiro
crente, quando convertido em contextos assim corrompidos, logo
percebe, pelo Espıŕ ito Santo que nele habita (1Jo 2.20-21,27), que ali
não é seu lugar e depressa foge para dentro dos muros de uma igreja
que prega a verdade.
Também bastante comum na atualidade é o pensamento errado
de que a igreja avivada tem um crescimento estrondoso. Ainda que
muitas vezes Deus abençoe a igreja viva com crescimento numérico, o
aumento de membros de uma comunidade evangélica não é
necessariamente prova de que se trata de um movimento cheio de
vigor espiritual.
Na verdade, Jesus nunca disse que o evangelho e a sã doutrina
teriam grande aceitação neste mundo. Antes, ele falou que a pregação
da verdadeira fé atrairia um número reduzido de pessoas (Mt 7.13-14;
22.14; Lc 12.32; 13.22-28) e em seu ministério provou quanto isso é
verdade (Jo 6.66). Além do mais, disse que o que teria grande aceitação
seria a mentira, e o que se multiplicaria seria a iniquidade. Já o amor,
procedente de corações transformados, esse se esfriaria em quase
todos (Mt 24.11-13).
Assim como Jesus, Paulo e João também a irmaram que a doutrina
verdadeira teria poucos seguidores e que as fábulas teriam imenso
sucesso entre os homens (2Tm 4.1-4; Ap 3.4), o que faz crer que o
rápido e descontrolado crescimento numérico de uma igreja é prova,
muitas vezes, de que seus lıd́ eres não pregam a sã doutrina.
Com efeito, os crentes não podem esquecer o fato de que “onde
estiver o cadáver, aı ́ também se ajuntarão abutres” aos montes,
saltando histéricos sobre a carne pútrida da pregação mentirosa (Mt
24.28).
Todas essas noções distorcidas acerca do que é uma igreja
avivada devem, portanto, ser rejeitadas e substituıd́ as por um conceito
fundamentado nas Escrituras e não nas invenções de falsos mestres.
Ora, à luz da Bíblia, uma possıvel de inição de igreja avivada seria á
seguinte: aquela cujos membros são doutrinariamente maduros,
têm uma vida reta de santidade, se dedicam ao serviço
a Cristo e demonstram alegria por sua salvação
numa adoração vibrante e numa comunhão dinâmica
e amorosa. Qualquer grupo que se diga avivado e não se encaixe de
forma alguma nessa de inição é orgulhoso, engana-se a si mesmo e, com
suas desordens e desatinos, mancha o bom nome da igreja de Deus
diante dos homens.
Era precisamente isso o que acontecia na igreja de Corinto. Ali os
cultos eram marcados pelo uso errado do dom de lıń guas (que na
época ainda existia) e por grande confusão (1Co 11.20-21; 14.19,23).
Apesar disso, aqueles crentes se consideravam a nata do cristianismo e
andavam cheios de si (1Co 5.2). O apóstolo, porém, lhes escreveu
dizendo que, na verdade, eles eram imaturos, carnais (1Co 3.1-2),
tolerantes com o pecado que reinava em seu meio (1Co 5.1) e
desunidos (1Co 1.10-13; 6.7; 11.18). Paulo os enxergava como pessoas
carentes até de noções básicas de decência e ordem, chegando a ter de
lhes ensinar como se comportar durante os cultos (1Co 14.26-40).

O princípio do santuário

Entre os erros mais comuns cometidos no meio cristão está


também o princípio do santuário. Segundo esse princıṕ io, o
edifıcio qué a igreja usa para realizar seus cultos e reuniões é um
templo, ou seja, uma espécie de lugar sagrado em que habita a
divindade, um recinto em que o piso, as paredes e os móveis que o
guarnecem são revestidos de santidade especial que jamais deve ser
maculada.
Que esse princıṕ io está errado é evidente, em primeiro lugar,
porque o cristianismo é uma religião sem templos. Desde os seus
primórdios, a igreja cristã nunca foi obrigada por qualquer disposição
divina a ter um lugar santo onde seus membros devessem se reunir. Se
os cristãos de Jerusalém se reuniam no templo (At 2.46), é preciso
[102]
lembrar que aquela magnı́ ica construção feita por Herodes
pertencia ao judaıś mo, não ao cristianismo. Além disso, não se deve
esquecer que os crentes de Jerusalém se reuniam nos imensos pátios e
pórticos do templo (ali não existiam auditórios) porque, sendo judeus,
mantinham ainda certos costumes judaicos relativos à prática da
oração (At 3.1).
Também é preciso frisar que, como todos em Jerusalém naqueles
dias, os cristãos viam os amplos espaços do templo como lugares de
convıv́ io social, muito convenientes para seus encontros e para a
[103]
pregação do evangelho ao povo (At 3.11; 4.1; 5.21,25,42). Ainda,
porém, que nutrissem esses costumes, a pregação de Estevão proferida
diante do sinédrio mostra que até os crentes judeus do perıó do
neotestamentário sabiam que “o Altıś simo não habita em casas feitas
por homens…” (At 7.48-49).
Além do mais, é sabido que a igreja do Novo Testamento, mesmo
em Jerusalém, se reunia nas casas dos crentes (At 2.2,46; 5.42; 12.12).
Esse fato se torna ainda mais notório quando são observadas as
comunidades cristãs espalhadas pelas diversas cidades distantes de
Jerusalém, onde o templo judaico estava. Todas aquelas comunidades
se reuniam nos lares, sem jamais se preocupar com a edi icação de um
“santuário” (At 20.20; Rm 16.5; 1Co 16.19; Cl 4.15; Fm 2).
Aliás, para o cristão da igreja primitiva, a construção de templos
era uma prática tipicamente pagã (At 14.13; 19.27,35; 1Co 8.10). Tanto
que, ao que parece, foi só no limiar do século 3 que o princı ṕ io do
santuário começou a integrar o pensamento cristão. Prova disso é que o
mais antigo templo cristão já encontrado é uma casa-igreja em Dura-
[104]
Europos, que foi construıd́ a por volta de 232 e destruıd́ a em 258.
A suposta conversão do imperador Constantino, ocorrida por
volta do ano 312, imprimiu o princıṕ io do santuário com força ainda
maior na mentalidade da igreja. Segundo o notável historiador Edward
Gibbon, a partir dessa época esse princıṕ io foi totalmente assimilado
pelos cristãos. Com isso, as ideias pagãs sobre edi icações dedicadas aos
deuses foram cristianizadas e os templos de Júpiter e Minerva
[105]
foram consagrados a Cristo.
Desde então, muitos lıd́ eres eclesiásticos passaram a ensinar que
as sedes em que as igrejas locais se reúnem são templos e, com base
nisso, inventaram novos rituais e estranhas restrições que têm ares de
[106]
piedade, mas não servem para nada.
Por exemplo: muitas igrejas realizam “cultos de consagração”
quando terminam a construção de um “templo” novo. Essas
consagrações, comumente, abrangem móveis e utensıĺ ios como bancos,
instrumentos musicais e microfones. Outras igrejas consideram o
púlpito a parte mais sagrada do “santuário” e não permitem que
ninguém sequer pise ali, exceto os pastores e os pregadores (como os
faxineiros fazem para limpar essas áreas?). Outras ainda proıb́ em que
se entre no “templo” fora do horário dos cultos e censuram quem
[107]
conversa ali depois de indas as reuniões.
Além da criação dessas práticas, regras e rituais, o acolhimento do
princıṕ io do santuário também passou a ser usado por lıd́ eres
inescrupulosos para manipular as pessoas ignorantes, subjugando-as e,
então, tirando proveito delas.
Isso passou a ser feito por meio da construção de imensos
santuários, dotados de grande majestade arquitetônica. E sabido que
esse tipo de suntuosidade imprime nas pessoas um senso muito forte
de pequenez e insigni icância, fazendo-as resignar-se diante da
imensidão e do luxo que as cerca. Ora, esse sentimento de baixeza
também remove das pessoas comuns qualquer disposição crıt́ ica, faz
crescer nelas uma reverência cega e inibe toda sua capacidade de
perceber erros, abusos, desvios e mentiras propagados dentro
daqueles grandiosos recintos.
De fato, contemplando as colunas gigantes de um opulento e
luxuoso edifıć io religioso, ao som de uma música solene, esplêndida e
inebriante, o homem simples é tomado de assombro, sente-se
esmagado em face de tanta “glória” e facilmente se curva diante de
qualquer coisa que ali veja ou escute. Além disso, impressionado com
toda aquela falsa majestade e percebendo o forte sentimento de
contemplação, arrebatamento e espanto que o invade, esse homem
tende a interpretar sua tocante experiência como uma prova de que
Deus de fato está naquele lugar e, a inal, duplamente enganado, é
levado pelos lıd́ eres desses “templos” a satisfazer todas as suas
vontades.
Como se sabe, esse expediente tão e icaz na manipulação da gente
ignorante é muito antigo e comum, sendo usado com bastante
habilidade pela igreja católica (basta observar a opulência de suas basıĺ
icas), por seitas como o mormonismo e por várias igrejas que se dizem
evangélicas.
Tudo isso jamais teria espaço entre os crentes de hoje se os
verdadeiros ministros da Palavra cultivassem uma visão melhor
elaborada acerca do que a Bíbliadiz sobre santuários, em especial o
templo usado na época do Antigo Testamento. Ora, mesmo um estudo
super icial desse assunto revelará que sua análise deve envolver dois
aspectos: o interno e o externo.
Em seu aspecto externo, o ensino bıb́ lico sobre o templo judaico
aponta para as disposições dadas por Deus sobre o local em que devia
ser construıd́ o o edifıcio (Dt 12.4-14), suas dimensões, a maneira qué
seus móveis e utensıĺ ios deviam ser dispostos, os detalhes acerca das
práticas a ser realizadas em suas dependências e as normas gerais
sobre sua utilização (Ex 25-30).
Já o aspecto interno do ensino sobre o templo realça os santos
princıṕ ios que cada um dos fatores externos visava a transmitir. E o
autor de Hebreus quem ensina claramente que o templo judaico, com
suas formas e utensıĺ ios, era uma representação de verdades e
princıṕ ios eternos (Hb 9.1-10). Ora, é sabido que esses princıṕ ios
são imutáveis e permanentes, enquanto as regulamentações de
natureza exterior são mutáveis e passageiras.
A efemeridade do que é meramente exterior no tocante ao templo
pode ser comprovada pelo próprio testemunho histórico. O templo de
Jerusalém foi destruıd́ o pelo general Tito no ano 70 d.C. e jamais foi
reconstruıd́ o. Aliás, o próprio Senhor predisse essa destruição quando
seus discıṕ ulos se revelaram admirados com as imensas colunas do
templo de Herodes (Mt 24.1-2). Diga-se de passagem que, nessa
ocasião, o Mestre mostrou que o entusiasmo com monumentos
religiosos de pedra, tão comum ainda hoje, é vão.
Além disso, mostrando a importância passageira do templo em
seu aspecto fıś ico, Jesus disse em outra ocasião, quando conversava
com a mulher samaritana, que a época de adorar a Deus levando em
conta lugares fıś icos chegara ao im (Jo 4.19-24).
O que importa, portanto, para a igreja de Deus é o “aspecto
interno” do ensino sobre o templo. O que signi icavam todas as
disposições exteriores ligadas ao santuário? Para quais verdades
apontavam aquelas prescrições? Como a igreja pode observar e viver
essas verdades hoje, num tempo em que santuários de pedra não têm
mais valor algum?
Em resposta a isso tudo, é preciso destacar primeiramente que o
ensino bıb́ lico sobre o templo indica a necessidade que o homem tem
de um mediador para ter acesso a Deus. No templo, o “lugar santıś
simo” icava separado do “lugar santo” por um véu que só o sumo
sacerdote transpunha uma vez por ano, a im de oferecer sacrifıć ios por
seus próprios pecados e pelos do povo (Hb 9.2-4,6-8).
Isso signi icava que o acesso a Deus permanecia fechado (Hb 9.8),
aguardando um mediador perfeito, por meio de quem o pecador
pudesse se achegar ao Pai. Como se sabe, o mencionado mediador é o
Senhor Jesus Cristo (1Tm 2.5-6; Hb 9.11-12,15; 12.24). Foi, talvez, por
esse motivo que, quando ele morreu, o véu do templo se rasgou de alto
a baixo (Mt 27.51). Isso provavelmente mostrou, entre outras coisas,
[108]
que o caminho do homem para Deus acabara de ser aberto.
A implicação prática desse fato é que o cristão pode agora se
aproximar de Deus com con iança (Hb 10.19-22) e junto dele desfrutar
de boa comunhão, misericórdia, graça e auxıĺ io (Hb 4.16), sem
precisar, por exemplo, da ajuda de um sacerdote a quem deva se
confessar.
O fato de o véu ter-se rasgado também mostra que a necessidade
do templo como veıć ulo de acesso a Deus desapareceu. Isso signi ica
que construir um templo hoje equivale a a irmar que a obra de Cristo
não foi su iciente para abrir o caminho do trono da graça para o
pecador, necessitando ele ainda de lugares sagrados e rituais especiais
para se achegar ao Senhor e obter o seu favor (Hb 9.8).
Em segundo lugar, o estudo das verdades que subjazem a igura do
templo mostra que a ira de Deus suscitada pelo pecado humano só
pode ser aplacada por meio de sangue (Hb 9.22). A justa indignação do
Senhor contra toda iniquidade exige propiciação, e esta só pode ser
feita com a morte. A existência do altar no templo, bem como todos os
rituais de sacrifıć io pelo pecado ali realizados, aponta para essa
realidade (Lv 16).
Isso tudo explica a necessidade da morte de Cristo, destacando
sua importância singular, uma vez que o Novo Testamento ensina que,
por sua morte, Cristo fez propiciação pelos pecados (Rm 3.25; 1Jo 2.2;
4.10), desviando do crente a ira de Deus (Rm 5.1,9; 8.1) ao lhe oferecer
um sacrifıć io perfeito e de initivo, suprindo assim uma necessidade
que os sacrifıć ios realizados no templo judaico não podiam suprir (Hb
9.1112; 10.11-14).
Nesse aspecto em particular, a morte de Cristo mostra ainda quão
desnecessário o templo se tornou, pois sendo ali o local em que os
holocaustos eram feitos, sua importância desapareceu tão logo o
Senhor ofereceu a si mesmo como sacrifıć io inal e completo pelos
pecados, feito uma vez por todas (Hb 7.26-27).
O caráter marcantemente sangrento dos rituais realizados no
templo também revela o quanto Deus é santo e não pode suportar a
iniquidade (Hc 1.13).
Assimilando essas verdades ensinadas simbolicamente pelo
sistema sacri icial do Antigo Testamento, o cristão entenderá melhor o
sentido da cruz e também verá com maior nitidez o quanto Deus odeia
o pecado (Hb 10.26-31), já que este só pode ser punido com a morte
(Ez 18.4; Rm 6.23) e, considerando essas coisas, tentará viver uma vida
grata e reta (Hb 12.28-29).
Outra verdade que deriva da análise do templo do Antigo
Testamento advém do seu papel na centralização da religião israelita. O
estudo do templo mostra que Deus se preocupou muito em criar um
núcleo central para o culto verdadeiro. Com efeito, o Senhor proibiu
que diversos templos fossem construıd́ os em Canaã. Sua ordem era
que somente um fosse edi icado no lugar que ele próprio escolhesse (Dt
12.4-14). Na verdade, construir um santuário em outro local
equivaleria a criar uma nova religião, sujeita a outro deus (1Rs
12.2633).
Evidentemente, a centralização do culto determinada pelo Senhor
tinha por propósito preservar a unidade nacional e evitar que as doze
tribos de Israel espalhadas pela Palestina, em contato com as diferentes
formas cananitas de culto pagão, dessem origem a alguma espécie de
sincretismo religioso, comprometendo com isso a qualidade moral e
espiritual de toda a nação que, então, sofreria fatalmente as terrıv́eis
consequências da quebra da aliança (Dt 28.15-68).
Para evitar, ou pelo menos retardar tudo isso, a lei de Deus
determinava que o templo fosse um só, sendo instalado no local que
Deus escolhesse (Dt 14.23; 15.20; 16.2; 17.8), ao que Josué obedeceu e
instalou o tabernáculo em Siló (Js 18.1), onde permaneceu por cerca de
trezentos anos, até os dias de Samuel (1Sm 1.3).
Posteriormente, nos dias de Davi, um novo local para o templo
foi escolhido pelo Senhor na cidade de Jerusalém (1Cr 21.18 – 22.1;
2Cr 6.6). Nesse lugar, Salomão construiu um magnı́ ico santuário (2Cr
3.1). Depois disso, nenhum outro local foi escolhido por Deus para a
edi icação de sua casa. Os templos edi icados pelos judeus depois do
[109]
exıĺ io babilônico foram todos construıd́ os no mesmo lugar que o
Senhor indicara a Davi.
De todo esse cuidado de Deus em exigir a manutenção de um
núcleo central e singular para a adoração, depreende-se que ele quer
que o culto ao seu nome seja sempre livre de contaminações. O
sincretismo religioso e o tão pregado ecumenismo são abomináveis aos
olhos dele, pois implicam a mistura de atos legıt́ imos de culto com
práticas e crenças supersticiosas, próprias de religiões demonıá cas.
Fuja, portanto, a igreja cristã de qualquer tipo de associação com
[110]
o romanismo, o islamismo, o hinduıś mo e com as seitas que
[111]
parecem cristãs e não são. Que esse zelo ocupe mais a mente dos
pastores de Cristo do que o vão cuidado de consagrar paredes de tijolo
e móveis de madeira.
Do estudo do templo também é possıv́el auferir o princıṕ io de
que o culto a Deus deve ser regido por determinações que emanam da
sua vontade soberana (Hb 8.5). Quando alguém observa as inúmeras
regras divinas que regiam os atos cultuais dentro do templo no Antigo
Testamento, conclui facilmente que é falsa a ideia de que a adoração ao
[112]
Senhor pode ser feita da maneira que o adorador bem entende.
A liberdade concedida por Deus, ao contrário do que muitos
pensam, não é liberdade sem fronteiras (Gl 5.13; 1Pe 2.16). Os
interessados nesse tipo de liberdade devem renunciar à condição de
seres humanos e viver como animais a dar vazão a todos os impulsos
de seus instintos naturais. Mas façam isso nos campos e lorestas, não
durante a adoração ao verdadeiro Deus. Pois o culto cristão não deve
ter espaço para baderneiros, mas sim se desenvolver dentro dos limites
da decência, da ordem, da reverência, do temor e de tudo que é
aceitável (1Co 14.40; Hb 12.28).
E também estudando o ensino bıb́ lico sobre o templo judaico que
o crente descobre princıṕ ios eternos acerca da contribuição inanceira
para a obra de Deus. Sabe-se, por exemplo, que, no Antigo Testamento,
o dıź imo devia ser levado ao templo (Ml 3.10). Ora, essa determinação
tinha por objetivo proteger o princıṕ io de que os bens materiais
devem ser usados para honrar a Deus, sendo aplicados em seu serviço
(Pv 3.9).
Portanto, ainda que, pelo fato de não haver mais o templo, seja
impossıv́el hoje cumprir à risca o preceito de Malaquias 3.10,
permanece intocável o princıṕ io acima exposto. Assim, todo cristão
que quer agir de maneira responsável deve cooperar inanceiramente
para que a obra de Deus seja mantida e levada adiante neste mundo (At
4.34-37; 11.29-30).
Eis, assim, alguns exemplos do aspecto interno do ensino bıb́ lico
sobre o templo. O problema de muitas igrejas, conforme visto, é o
apego às normas acerca do santuário em sua face externa, ignorando
que a época do santuário de pedras icou para trás.
Isso tem gerado preocupações e enormes gastos com a
construção de suntuosos edifıć ios, tem levado pessoas a gastar tempo
precioso com o planejamento de cultos solenes de consagração de
santuários e seus utensıĺ ios e tem feito pastores se desgastarem com a
criação e manutenção de regras acerca do que pode ou não ser feito na
“nave” dos seus templos.
Todas essas enormes parcelas de tempo, trabalho e dinheiro
poderiam ser melhor direcionadas se uma compreensão maior das
Escrituras reinasse no meio evangélico. Com efeito, quantos esforços
deixariam de ser empregados em vão se todos os crentes atentassem
para o ensino de Jesus à samaritana, quando disse que o perıó do de
adoração a Deus em templos ou lugares sagrados havia chegado ao im
(Jo 4.19-24)! E que dizer dos ensinos de Paulo, de Pedro e do autor de
Hebreus que, unânimes, insistem em a irmar que o templo cristão são
os próprios crentes (1Co 3.16; 6.19; Hb 3.6; 1Pe 2.5)?
Quem quiser, pois, consagrar um templo a Deus, consagre-se a si
mesmo; e quem quiser ter reverência dentro de um templo, tenha
reverência em si mesmo. Da mesma forma, se alguém quiser glorificara
Deus num santuário, glori ique-o em seu próprio corpo, com cada
membro que o compõe; e se algum cristão quiser adorar o Pai num
lugar sagrado, adore-o dentro de si mesmo, no templo de sua alma, e de
todo o coração, pois é esse o tipo de adorador que o Pai procura (Jo
4.23-24).
Ora, o que é numeroso e patente não exige busca cuidadosa. Só o
que é raro e difıć il de ver requer a diligência da procura. Que todo
crente seja, pois, parte da classe quase extinta de homens e mulheres
que se preocupam em adorar a Deus no verdadeiro santuário do
coração.

Duas Perguntas

1) É possível que ocorram conversões em igrejas


cheias dedesvios?
É claro que sim. A graça salvadora de Deus não é
impedida pelos desatinos dos homens. Já foi dito neste
capítulo que os reformadores do século 16 se
converteram dentro da Igreja Católica, precisamente
numa época em que essa igreja era uma das
instituições mais corruptas do mundo. Casosassim são
possíveis porque, mesmo participando de igrejas
corrompidas, as pessoas têm ali algum contato com
a Palavra de Deus ou ouvem alguma porção da
verdade em meio a todasas heresias que são propagadas
nessas comunidades. Isso, muitas vezes, desperta a
pessoa para a fé verdadeira e a conversão então
ocorre. Via de regra, porém, os convertidos não
permanecem nessas igrejas. Guiados pelo Espírito
Santo que neles passaa habitar, logo percebem que há algo
errado na comunidade de que fazem partee passam
a buscar uma igreja saudável doutrinariamente.

2) Se não há templos cristãos, é certo vender


mercadorias nasdependências da igreja?
Essa pergunta é baseada no texto de Mateus 21.12-13,
o qual mostra Jesus expulsandoe censurando os
cambistas e vendedoresque faziam comércio no templo de
Jerusalém, um lugar sagrado. Conforme visto, porém, a era
do templo passou. Por isso, não há nenhum problema
em ter, por exemplo, uma cantina ou uma livraria
funcionando na igreja. O que é bom evitar,
porém, é o comércio individual e habitual em que
alguém monta sua “banquinha” de produtos num cantoda
igreja e começa oferecê-los aos irmãos. Isso
fatalmente gera transtornos, perturbações e constrangimentos.
Já vendas mediante catálogos e encomendas, a
princípio, não têm problema, desdeque o “vendedor” não viva
a importunar os crentes, tentando transformar o rol
de membros numa carteira de clientes.
Capítulo 10 – IGREJAS PÓS-MODERNAS

A geração que nasceu nos últimos quarenta anos não teve o


privilégio de conhecer os tempos em que o meio evangélico era
dominado por igrejas decentes e ordeiras. Quatro décadas atrás, se
algum crente fosse visitar uma igreja evangélica qualquer, di icilmente
se depararia com todas as bizarrices que hoje imperam nas
comunidades por aı ́ afora.
De fato, mesmo nas igrejas pentecostais que havia, não era
possıv́el notar tantas expressões de frenesi e desequilıb́ rio como
agora. Além disso, essas igrejas eram poucas e pequenas. O mais
comum era a existência de comunidades em que as pessoas se
comportavam de maneira normal e prestavam cultos caracterizados
em sua maioria por hinos clássicos, leituras, apresentações corais e
sermões bıb́ licos. E claro que nessas igrejas existiam problemas e
muitas vezes se ouvia falar de escândalos sexuais ou inanceiros
ocorridos aqui ou acolá. Contudo, o que predominava era um
cristianismo ordeiro, distinto, mais solene e honroso.
Esse modelo icou gravado na mente de muitas pessoas que
viveram naqueles tempos e a lembrança dele as faz procurar igrejas
atuais que o reproduzam. Porém, os que nasceram durante ou após as
grandes mudanças avivalistas dos últimos quarenta anos, jamais
conheceram o antigo e correto padrão.
Por isso, se antes os crentes em geral estranhavam o menor
excesso quando visitavam uma igreja, hoje eles se sentem deslocados
quando entram nas raras igrejas normais. Como têm somente um
modelo des igurado em mente, anelam encontrá-lo em qualquer lugar e
se decepcionam quando participam de um culto nos moldes que deve
ser, ou seja, com decência, ordem, equilıb́ rio, ensino e adoração
reverente.
Essa falta de bons referenciais coloca os critérios dos crentes na
busca de uma igreja num nıv́el muito baixo. Sendo os paradigmas
modernos tão deformados, qualquer coisa que se ofereça como padrão
eclesiástico novo é aceito de pronto. Para crentes que dizem sim aos
mais horrıv́eis monstros litúrgicos, que mal haveria em aceitar um
bichinho deformado qualquer? Quem dorme com lobisomens não se
importa em tomar café com um duende!
Tem sido em parte por causa da ausência de referenciais na
mente das pessoas e também devido à presente falta de boas opções
eclesiásticas que as igrejas pós-modernas e emergentes têm a lorado
tanto. A maioria dos crentes da presente geração nunca viu uma igreja
séria para que tenha um per il de inido que possa anelar e buscar.
Também está cansado da futilidade do único modelo que conhece.
Então, passa a se envolver com novidades para, muito cedo, perceber
que a comunidade a que se iliou é simpática e dinâmica, mas está bem
longe de ser uma igreja ajustada ao que Deus quer — uma igreja capaz
de suprir suas necessidades espirituais.
Entre essas novidades de hoje existem as igrejas pós-modernas
cujas marcas e modelos expõem-se a seguir.

Marcas gerais

Pós-modernidade é a expressão usada para descrever os últimos


trinta ou quarenta anos, fase em que o homem ocidental desistiu da
busca racional da verdade, a irmando que ela é múltipla e subjetiva.
Segundo a visão pós-moderna, cada indivıd́ uo tem a sua verdade
particular, sendo todas as concepções existentes igualmente válidas e
dignas de respeito.
A visão pós-moderna invadiu a igreja de maneira que até mesmo
as denominações históricas foram contaminadas, deixando de lado a
irme defesa da verdade única do evangelho e dando espaço para uma
“mente mais aberta”, contrária às concepções cristãs sólidas, agora
taxadas de “fundamentalistas” ou “radicais”.
Basicamente, as igrejas pós-modernas apresentam quatro traços
distintivos: hermenêutica subjetiva, discurso conciliador, afrouxamento
ético/moral e ênfase excessiva na liberdade humana.
A hermenêutica subjetiva (ou relativista) é a forma de análise
bıb́ lica que não se preocupa com a busca de um signi icado ixo e único
no texto sagrado. Os pregadores que atuam nessas igrejas não se
empenham na tentativa de descobrir a intenção autoral quando
trabalham sobre uma determinada porção das Escrituras. Antes,
crendo que a verdade é múltipla, atribuem ao texto sagrado o sentido
que acham melhor ou mais conveniente. A pregação pós-moderna é,
assim, mais uma exposição de percepções e insights pessoais do
pregador do que uma apresentação objetiva do que a Bíbliarealmente
diz, com suas inevitáveis implicações e aplicações para a vida das
pessoas.
Essa leitura subjetiva da Bíblianão ica, contudo, limitada ao
púlpito das igrejas pós-modernas. Seus membros também a praticam.
Por isso, é comum ouvir indivıd́ uos que pertencem a essas
comunidades dizendo: “Essa passagem tem várias interpretações” ou,
quando são confrontados à luz da Bíbliapor causa de algum erro que
cometem, se evadir a irmando: “Desculpe, essa é a sua interpretação
dessa passagem. Eu entendo esse texto de forma diferente.”
Conforme se vê, a hermenêutica adotada nas igrejas pósmodernas
esvazia a Bíbliade sua autoridade. Atribuindo ao texto sagrado um
universo in inito de sentidos, a Bíbliase torna para essa nova classe de
cristãos um livro inútil para ensinar, repreender, corrigir e educar na
justiça (2Tm 3.16). Além disso, sob a ótica de que a Bíbliatem múltiplos
sentidos, todos igualmente aceitáveis, qualquer crente sincero que
tentar “impor” a compreensão natural do texto a outro membro da
igreja, tentando admoestá-lo como irmão, é imediatamente visto como
orgulhoso, como alguém que pensa que só a visão dele é a certa, como
pessoa que não tem o fruto do Espıŕ ito, pois não ama até o ponto de
respeitar o ponto de vista do outro.
Assim, quem quiser obter a simpatia dos membros das igrejas
pós-modernas deve ser “politicamente correto”, jamais se
manifestando contra o modo muitas vezes absurdo como os outros
compreendem as questões tratadas na Palavra de Deus.
Isso conduz ao segundo traço das igrejas pós-modernas: o
discurso conciliador. Não havendo uma verdade ixa, ou somente um
sentido nos escritos bıb́ licos, qualquer forma de religião ou de
espiritualidade deve ser considerada válida, segundo o pensamento dos
crentes pós-modernos. Portanto, o caráter exclusivo do cristianismo, a
forma como sempre se apresentou na história como o singular detentor
da única mensagem que pode salvar o homem (Jo 14.6; At 4.12; Ef 4.45;
1Tm 2.5), é totalmente desprezado no discurso evangélico
pósmoderno.
Como resultado, as igrejas que adotaram essas noções jamais
denunciam os erros doutrinários propostos pelo espiritismo, pelas
religiões orientais ou pelas seitas pseudocristãs. Na verdade, é mais
fácil (e mais comum!) atacar crentes convictos, acusando-os de terem
visão estreita e radical, do que reprovar os falsos credos.
Aqui é importante fazer uma ressalva. Não é que os cristãos
pósmodernos concordam com as doutrinas espıŕ itas ou com os ensinos
das seitas ou mesmo com as lições das religiões orientais. O que ocorre
é que, para eles, concordar ou não com essas doutrinas (ou com
qualquer outra) é irrelevante. Segundo os pastores e membros dessas
igrejas, o que deve ser levado em conta na avaliação dos diferentes
credos é que todos supostamente perseguem os ideais supremos de
construir uma sociedade com menos sofrimento e de oferecer paz e
consolo ao triste coração humano. De acordo com o discurso cristão
pós-moderno, só isso é relevante, sendo precisamente nesse ponto que
qualquer forma de espiritualidade ou de religiosidade se iguala ao
cristianismo, tanto em importância como em validade.
O fato de as religiões em geral terem cosmovisões ou sistemas
doutrinários diferentes do que é ensinado na Bíbliaé, pois, assunto
secundário para a nova mentalidade cristã, um detalhe sem
importância, já que, não havendo verdade ixa, o essencial é a
sinceridade de cada um na adoção de suas crenças, a busca (comum a
todas elas) por um mundo melhor e a tolerância com quem pensa
diferente.
Por isso, o pensamento cristão pós-moderno é tão conciliador.
Nele não há espaço (e nem motivo) para o discurso bıb́ lico que
condena o erro, se opõe ao desvio e denuncia a mentira. O homem pós-
moderno não entende que agir assim faz parte do dever cristão (Mt
22.29; 2Co 10.5; Gl 3.1-3; 2Tm 2.25-26). Para ele, o crente zeloso que
exorta e
[113]
corrige é soberbo e sem amor.
O terceiro traço das igrejas pós-modernas, o afrouxamento
ético/moral, é consequência lógica tanto da hermenêutica subjetiva
como do discurso conciliador. Com efeito, atribuindo à Bíbliauma
variedade ilimitada de sentidos, o cristão pós-moderno, em situações
que exigem a tomada de decisões no campo moral, fatalmente
escolherá a interpretação mais cômoda, que melhor se ajuste aos seus
interesses pessoais. Ademais, adotando um discurso conciliador
embasado na crença de que a verdade não é única, o novo cristão
aplicará essa forma de pensar também às questões éticas, dizendo que
não se podem condenar as opções de comportamento de ninguém.
Unindo isso tudo, o resultado é previsıv́el e óbvio: as igrejas
pósmodernas, invariavelmente, revelam posicionamentos muito
frouxos em relação a temas como namoro misto, sexo fora do
casamento, divórcio, homossexualismo, envolvimento do cristão com o
mundo e uso de álcool, cigarro ou mesmo drogas. Em decorrência dessa
frouxidão, os membros das igrejas pós-modernas que adotam posturas
claramente antibıb́ licas acerca dos temas mencionados, ou de outros
assuntos ligados à ética cristã, não recebem qualquer correção. Na
verdade, nada diferente poderia ser esperado, pois, como já dito, na
visão pós-moderna, dizer o que é errado é errado!
Cabe aqui uma observação importante: o fato de as igrejas
pósmodernas apresentarem tão nıt́ ida frouxidão ético/moral talvez
seja a causa do seu espantoso crescimento. Multidões lotam seus salões
não na busca de santidade, conhecimento e correção, mas de qualquer
discurso que gere conforto e bem-estar, longe do incômodo produzido
pela pregação da pura Palavra de Deus, capaz de ferir as consciências e
infundir arrependimento. E que, conforme disse o profeta Jeremias, “a
palavra do Senhor é para eles desprezıv́el, não encontram nela motivo
de prazer” (Jr 6.10). Além disso, sabe-se que é próprio da natureza
humana corrupta cercar-se de mestres que não se opõem às suas
paixões (2Tm 4.3).
O último traço do evangelicalismo pós-moderno é a ênfase
excessiva dada à liberdade humana. Nesse modelo, o crente não é
apenas livre para interpretar a Bíbliacomo quiser e, consequentemente,
adotar o modelo ético que quiser. Sua liberdade vai além. Mais do que
ser dono de suas verdades e dos seus caminhos, o cristão pós-moderno
considera-se também dono do seu destino!
Ocorre o seguinte: a mente pós-moderna tem di iculdades para
aceitar a presciência de Deus ensinada na Bíblia(Is 46.8-10; Jo
21.1819), pois, no seu entender, se Deus conhece de antemão o
amanhã, então o futuro é ixo e o homem, no im das contas, não é livre.
Esse dilema é real para qualquer cristão, estando sua solução
escondida na mente insondável de Deus, verdade que deve ser su
iciente para aquietar qualquer questionamento (Rm 9.19-20).
Diante dessa di iculdade, porém, o crente pós-moderno não passa
apertos. No afã de resguardar a liberdade do ser humano, resolve tudo
dizendo simplesmente que Deus não conhece o futuro, estando o porvir
aberto à in luência do homem que pode escrevê-lo a partir do livre
exercıć io de sua vontade. Essa concepção de Deus e suas relações com
o mundo é uma das caracterıś ticas do modelo teológico denominado
Teísmo Aberto.
Percebe-se, assim, que a hipervalorização da vontade livre do
indivıd́ uo é a mola mestra do pensamento cristão pós-moderno.
Conforme visto, a partir de suas concepções, o crente é livre para
atribuir às Escrituras o sentido que quiser; é livre para construir a ética
que quiser e é livre para dirigir a história como quiser. Trata-se do
império do indivıd́ uo cuja abrangência chega ao ponto de destronar o
próprio Deus a im de preservar a supremacia da liberdade humana.
No im das contas, o impacto mais desastroso dessa mentalidade
sobre a Sã Doutrina é a criação de um deus impotente e ignorante, que
lamenta as desventuras da raça humana, mas que pouco pode fazer, já
que a administração da história depende também do homem e
qualquer interferência divina soberana implicaria imposição de
vontade, tornando Deus culpado por não agir de modo “politicamente
correto”.
Não restam dúvidas, pois, de que o deus do cristianismo
pósmoderno não é o Deus das Escrituras. Trata-se de outro deus, com
tremendas limitações. E lamentável, mas o que se deduz da análise
desses conceitos é que criou, pois, o Homem um deus à
sua própria imagem, à imagem do Homem o criou...

Igrejas emergentes

As quatro marcas das igrejas pós-modernas apresentadas aqui


não abrangem de forma alguma a totalidade das caracterıś ticas dessas
igrejas. Há outras manifestações do pensamento pós-moderno no meio
evangélico e uma das que mais têm chamado a atenção nos últimos
anos é o movimento denominado “igreja emergente”.
E muito difıć il encerrar esse movimento numa de inição, pois as
diversas igrejas associadas a ele têm diferentes ênfases e maneiras de
expressão, todas se apresentando como comunidades cristãs
emergentes. Porém, um conceito genérico talvez seja possıv́el nos
seguintes termos: igrejas emergentes são igrejas pós-modernas
engajadas na busca de formas práticas de funcionamento que sejam
aceitáveis e atraentes para os homens de hoje.
A pergunta crucial, pois, do “movimento igreja emergente” é:
como a igreja pode se tornar relevante e atraente para a sociedade
atual pós-moderna? Sendo certo que as respostas a essa questão
variam muito, o conceito de igreja emergente tem abrangido diferentes
modelos eclesiásticos que vão desde o total abandono de qualquer
padrão tradicional ou formal de culto até a adoção de práticas e
sıḿbolos intensamente mıś ticos e rigidamente litúrgicos.
No tocante à sua apresentação e formato, podem-se dividir as
igrejas emergentes em quatro classes distintas:
1. Conformistas. As igrejas emergentes conformistas
entendem que o homem pós-moderno busca manifestações mais
livres de religiosidade, sentindo aversão por qualquer expressão
formal ou tradicional de adoração, posto que liturgias assim,
segundo entendem, re letem uma mentalidade estreita e rıǵ ida
demais. Por isso, os cultos e atividades das igrejas emergentes
conformistas buscam reproduzir formas seculares de
entretenimento, especialmente shows musicais, danças e
“baladas” nos quais recursos visuais e eletrônicos de ponta são
empregados (globos espelhados, gelo seco, canhões de luz, etc.),
além de des iles de moda, apresentações de capoeira e formações
de blocos de carnaval. Os cristãos emergentes conformistas
entendem que nenhum descrente permanecerá numa igreja se, ao
chegar, encontrar os irmãos em oração ao som suave do prelúdio.
Daı ́ a necessidade de medidas práticas que sejam sensıv́eis às
expectativas do incrédulo pós-moderno. Evidentemente, essa
preocupação também se re lete na pregação. Geralmente, os
pastores dessas igrejas evitam falar sobre pecado, condenação,
cruz e arrependimento. Esses assuntos, no seu entender,
espantariam os descrentes da atualidade.

2. Místicas. As igrejas emergentes mıś ticas se opõem


frontalmente às conformistas no que diz respeito ao modo como
o culto deve ser. Segundo seus representantes, o homem
pósmoderno está cansado de espetáculos e shows com efeitos
especiais. Essas coisas, dizem, estão à disposição das pessoas em
qualquer lugar e o tempo todo. Por isso, no tocante à religião, o
mundo pós-moderno nutre uma expectativa mais espiritual, que
deve ser acompanhada de sıḿbolos e práticas mıś ticas.
Adotando essa visão, algumas igrejas evangélicas americanas têm
usado cruzes, incenso, velas, colunas e altares de oração em seus
cultos, produzindo um ambiente sombrio semelhante ao das
antigas
[114]
catedrais católicas. No entender dos lıd́ eres dessas igrejas,
essas coisas servem como atrativo para o homem pós-moderno
que anseia por experiências espirituais intensas.

3. Pluripartidárias. Esse modelo de igreja emergente focaliza


o fato de que, para a mente pós-moderna, há muitas verdades
sendo todas igualmente válidas. Transportando esse raciocıń io
para o funcionamento da igreja, tais instituições oferecem aos
seus frequentadores uma espécie de self service teológico.
Assim, em suas escolas de ensino doutrinário há classes para
calvinistas, para liberais, para pentecostais e para várias outras
vertentes. As igrejas emergentes pluripartidárias dizem não se
identi icar exclusivamente com nenhum desses modelos,
recusando qualquer rótulo. Seus lıd́ eres entendem que toda
concepção doutrinária é válida e deve ser respeitada. A visão
oposta só serve para criar divisões que atrapalham o crescimento
da igreja e a consecução dos seus objetivos.

4. Ultrainformais. Igrejas emergentes ultrainformais apegam-


se à descon iança que o homem pós-moderno nutre contra o
caráter das instituições em geral. Seus expoentes ensinam que as
igrejas nos moldes institucionais criam barreiras para o
evangelho ao tentar impor sobre as pessoas a visão de um só
indivıd́ uo ou de uma pequena minoria que, aliás, se bene icia da
estrutura formal estabelecida. Reagindo a isso, as igrejas
emergentes ultrainformais recusam tudo que ameace
institucionalizar o grupo. Por isso, em regra, defendem a
realização de cultos nos lares (nunca em supostos templos ou
edifıć ios religiosos), opõemse a todo tipo de hierarquia
eclesiástica, desprezam formalidades litúrgicas (o culto busca ser
uma celebração livre, criativa e artıś tica em que todos participam
de forma espontânea usando talentos pessoais como música,
poesia, pintura e dança), evitam iliar-se a qualquer denominação
religiosa e recusam-se até mesmo a criar um rol de membros. Os
representantes desses grupos a irmam que seu modelo é o único
verdadeiramente neotestamentário e recorrem a textos como
Atos 2.46-47 para tentar provar o que dizem.

E claro que há igrejas emergentes que, na medida do possıv́el,


combinam caracterıś ticas de duas ou mais diferentes classes. Todas,
porém, têm algo em comum: obter sucesso na atração dos descrentes
de hoje, propondo formas de religiosidade que lhes satisfaçam as
expectativas, jamais se insurgindo contra os pressupostos de sua
cosmovisão secular.
A crıt́ ica bıblica aos modelos de igreja emergente aponta trêś
erros básicos presentes na raiz de suas propostas. Esses erros são
pilares sobre os quais todo o pensamento emergente acerca do culto é
construıd́ o. Se tais pilares forem removidos, o edifıć io inteiro cairá.
Ora, essa demolição é muito fácil. Na verdade, um leve sopro da
verdade é su iciente para fazer esses pilares de isopor vir abaixo.
O primeiro erro que subjaz o pensamento dos defensores da
chamada igreja emergente é a crença na falácia de que as conversões
a Cristo ocorrem como resultado de táticas e artifıć ios humanos. Os
lıd́ eres das igrejas emergentes, ainda que digam não estar
comprometidos com nenhum “rótulo” doutrinário, na verdade são
ferrenhos defensores da teologia arminiana, segundo a qual o homem
tem em si a livre capacidade de “tomar uma decisão por Cristo”.
A partir dessa concepção, o trabalho desses ministros se
transforma na elaboração incessante de estratégias de convencimento.
Seus esforços se voltam, assim, para a criação ou descoberta de técnicas
que sejam mais e icazes na atração do não crente. O pastor da igreja
emergente sonha, portanto, em encontrar métodos que sejam capazes
de persuadir o incrédulo a usar seu “livre arbıt́ rio” de modo certo,
recepcionando a inal o cristianismo.
Essas noções, contudo, estão muito longe do ensino bıb́ lico. Para
começar, é preciso lembrar que, segundo o Novo Testamento, o
incrédulo é um cadáver espiritual, insensıv́el às coisas do Senhor e
incapaz de desejá-las (Rm 3.10-11). Por isso, a conversão do pecador
nunca tem como causa primária a vontade do homem, mas sim a de
Deus (Jo 1.13; 6.65; Tg 1.18). Prosseguindo na análise bıb́ lica,
descobrese que, sendo o homem tão insensıv́el às coisas espirituais,
somente Deus tem o poder de atraı-́ lo (Jo 6.44), sendo inútil o uso de
táticas humanas para isso.
Aliás, é bom lembrar que o Senhor atrai o pecador perdido, não
por meio de iscas arti iciais, mas pela atuação sobrenatural do Espıŕ ito
Santo que convence de forma e icaz a mente entorpecida (Jo 16.8; At
16.14; 1Co 12.3). Como o Espıŕ ito faz isso? Usando estratégias de
marketing? Não! Ele usa a pregação da Palavra, já que Deus determinou
que somente por intermédio dela a salvação fosse operada (Rm 10.17;
1Co 1.21; 1Pe 1.23).
A Bíbliaensina ainda que, dada a condição deplorável do homem,
é o próprio Deus quem, a inal, lhe concede a fé. Na verdade, o texto
sagrado ressalta que ninguém pode crer em Cristo sem que isso lhe seja
concedido pelo Pai (Jo 6.65; At 11.18; Rm 8.30; 9.18; Ef 2.8; Hb 12.2).
Assim, à luz das Escrituras, os diversos pregadores pós-modernos
que anelam despertar no incrédulo o desejo por Cristo com atrativos
arti iciais são como a criança que tenta acordar o cãozinho morto
mostrando-lhe o prato de ração. A pobre criança, ao agir assim, mostra
que não compreendeu as suas próprias limitações, nem a ine icácia da
ração, nem tampouco o estado horrıv́el em que se encontra o
cachorrinho.
O segundo equıv́oco do pensamento emergente é a crença de que
o culto cristão deve ser planejado tendo como alvo o homem,
[115]
posicionando-o no centro de tudo. A Bíbliase insurge contra essa
falácia. Em Mateus 4.10, Jesus aponta o Senhor Deus como o único
personagem em torno do qual o culto deve se desenvolver. Cristo
ensina ainda que a verdadeira adoração não é a que se preocupa com
aspectos cultuais exteriores a im de satisfazer as expectativas das
pessoas (Jo 4.20-21). Segundo ele, a adoração genuıń a é aquela em que
o homem ixa seu coração exclusivamente em Deus, ansiando cultuá-lo
de forma sincera, num louvor que emana da sua própria alma (Jo 4.23-
24). Ora, um adorador assim não se ocupa de agradar incrédulos ou
quem quer que seja. Seu alvo exclusivo durante o culto é honrar e
enaltecer o Senhor.
Ademais, o autor de Hebreus ensina que, enquanto cultua, a alma
do crente deve estar mergulhada em reverência e santo temor (Hb
12.28-29). Isso signi ica que a mente do cristão deve se voltar
totalmente para Deus durante o culto, lembrando-se da sua grandeza,
santidade e justiça e preocupando-se, assim, em evitar qualquer coisa
que o desonre ou desagrade. Essa e somente essa deve ser a
preocupação do crente enquanto adora.
Por isso, se de um lado o cristão emergente pergunta: “Será que
os irmãos estão gostando do culto? Será que os incrédulos
estão entusiasmados? Será que os visitantes estão satisfeitos e
pretendem voltar?”, de outro, o cristão bıb́ lico faz as seguintes
indagações: “Será que o Senhor está se agradando do que
estamos fazendo aqui? Será que a nossa adoração está
sendo sincera e reverente? Será que o que estamos
dizendo nos cânticos, nas orações e na pregação
correspondem à mensagem que Deus ordenou que
protegêssemos e proclamássemos?”.
Esse segundo conjunto de perguntas re lete quem deve ser o singular e
verdadeiro foco de qualquer gesto cultual.
Intimamente relacionado ao segundo desvio das igrejas
emergentes está o seu terceiro erro. Este consiste em acreditar que a
adoração a Deus pode ser realizada conforme bem entendem os
adoradores. Movidos por essa crença, as igrejas emergentes dão ao
culto o formato que acham mais conveniente, atrelando-lhe práticas
estranhas, nascidas a partir das percepções de seus lıd́ eres ou criadas
segundo o bel-prazer dos responsáveis pelo planejamento de suas
reuniões.
Esse erro decorre da falta de conhecimento daquilo que, em
teologia, é tecnicamente chamado de Princípio Regulador do
Culto, segundo o qual somente Deus pode determinar o modo como
deve ser
[116]
adorado. Ora, esse princıṕ io parte da verdade de que Deus revelou
na Bíbliacomo quer que o adorem, tendo feito isso para evitar que os
homens caıś sem no erro de prestar-lhe um culto maculado por
práticas nascidas na mente corrompida.
O amparo bıb́ lico para o Princípio Regulador do Culto
pode ser visto tanto no Antigo como no Novo Testamento. Nos tempos
da Antiga Aliança, todas as prescrições ixadas pelo Senhor acerca da
forma como deveria ser o culto no Tabernáculo e, posteriormente, no
Templo, deixam claro que somente Deus detém o direito de de inir
como deve ser o culto que lhe é devido (Dt 12.13-14). No Novo
Testamento, o culto aceitável ao Senhor abrange orações (At 13.1-3),
louvor cantado (Ef 5.19), celebração das ordenanças, comunhão (At
2.42,46), exercıć io dos dons (1Co 14.26), leitura e exposição das
Escrituras (1Tm 4.13).
Nem sempre um só culto abrangerá todos esses fatores, mas
devese reconhecer que é lıć ito (e necessário) incluı-́ los na liturgia,
sempre primando pela decência e pela ordem (1Co 14.40). Por outro
lado, cerimônias de homenagem a este ou aquele indivıd́ uo, decisões
administrativas, apresentações de coreogra ia ou dança, práticas de
entretenimento, uso de objetos religiosos, momentos de trato com
demônios e outras invenções devem ser afastadas do culto público na
busca de moldá-lo àquilo que o Senhor requer e não ao que as pessoas
anseiam ver ou fazer.
Os três erros básicos aqui apontados são cometidos pelos
diferentes tipos de igreja emergente alistados anteriormente: as
conformistas, as mıś ticas, as pluripartidárias e as ultrainformais. No
entanto, duas palavras ainda precisam ser ditas sobre o desvio das
mıś ticas e das ultrainformais.
Conforme dito, as igrejas emergentes mıś ticas são aquelas que,
em suas reuniões, usam cruzes, velas, incenso, cortinas escuras e vários
objetos cultuais, tudo com o propósito de criar um ambiente lúgubre
que, segundo dizem, é capaz de satisfazer o anelo religioso do homem
pós-moderno.
Ainda que aleguem que o uso desses recursos seja bıb́ lico, o fato
é que é simplesmente impossıv́el encontrá-los nos cultos realizados
pelas igrejas locais do Novo Testamento. Aliás, a atmosfera cultual
lúgubre presente nos cultos da Idade Média, atmosfera que essas
igrejas pretendem reproduzir, jamais resultou da análise de textos bıb́
licos, sendo, na verdade, o desdobramento da corrompida teologia
escolástica que marcou a época e também da pessimista visão de
mundo que permeou a mente dos homens daqueles séculos.
De fato, segundo a teologia escolástica, na missa, o sacrifıć io de
Cristo acontecia literalmente, sendo a catedral (aliás, construıd́ a em
forma de cruz), o lugar sagrado em que esse sangrento holocausto se
repetia vez após vez. Daı ́ a atmosfera melancólica e sombria daqueles
imensos edifıć ios que, como túmulos medonhos, abrigavam dentro de
si o “corpo eucarıś tico” de Cristo.
Além disso, deve-se considerar que os séculos 11 a 13, perıó do
em que se ergueram as grandes catedrais europeias, o mundo estava
imerso num ambiente geral fúnebre, estando a realidade da morte
presente de forma contıń ua na mente das pessoas. As guerras, a fome e
a miséria decorrentes dessas mesmas guerras, a queima pública de
hereges, as epidemias de peste bubônica e outras doenças, tudo isso
fazia com que o homem medieval tivesse uma visão lutuosa da vida, o
que se manifestava no culto cristão, sempre sombrio e repleto de
imagens e sıḿbolos tenebrosos.
Ora, a realidade evangélica atual não compartilha nada disso. A
teologia protestante (pelo menos “o icialmente”) não adota nada da
concepção escolástica e o contexto histórico-cultural em que as igrejas
emergentes se desenvolvem não tem nada de lúgubre, estando mais
voltado para a diversão e o entretenimento numa intensidade jamais
vista em qualquer outra fase da história humana.
Assim, o ambiente criado pelas igrejas emergentes mıś ticas é
apenas um arremedo da liturgia medieval, uma reprodução teatral
grosseira do culto escolástico, a montagem de um cenário repleto de
componentes arti iciais que não traduzem nem o ensino bıb́ lico, nem a
teologia evangélica, nem o momento histórico atual. Ao que parece,
trata-se de apenas mais uma estratégia de marketing religioso
destinado a causar impacto em jovens fascinados pela temática fúnebre
ou atraıd́ os por qualquer coisa que tenha coloração mıś tica.
Considere-se agora, especi icamente, as igrejas emergentes
ultrainformais. Conforme se viu, os proponentes desse modelo
entendem que qualquer grau de institucionalização deve ser evitado na
igreja, a im de que o formato neotestamentário seja preservado.
Para entender essas igrejas, é preciso frisar que a mente
pósmoderna, mergulhada no pluralismo relativista, tende a resistir a
qualquer forma institucionalizada de agrupamento humano. Isso
porque as instituições, em regra, nutrem uma forma o icial de liderança,
além de normas ixas de funcionamento, fatores esses que inibem a livre
expressão de pensamento e de ação de seus membros.
E por isso que as igrejas emergentes ultrainformais insistem num
tipo de funcionamento totalmente espontâneo, livre de elementos
organizacionais tais como prédios de educação religiosa, grupos de o
iciais eclesiásticos, sequências litúrgicas, departamentos e quaisquer
outros aspectos próprios de uma instituição formal.
Geralmente, essa proposta é acompanhada pelo argumento de
que as igrejas neotestamentárias não eram unidades
institucionalizadas, de modo que seus membros se reuniam no
contexto informal dos lares, livres dos complexos mecanismos
organizacionais de hoje, os quais, segundo entendem, servem apenas
para manter uma minoria intransigente em privilegiados postos de
controle.
A pergunta que a análise crıt́ ica dessa proposta levanta é a
seguinte: será mesmo que as igrejas do Novo Testamento não tinham
nenhuma marca institucional? A resposta a essa pergunta, quando
construıd́ a sobre bases bıb́ licas, desfere um terrıv́el golpe contra a
visão ultrainformal. Sim, pois desde o evento de Pentecostes (c. 30 AD)
até a composição do Livro de Apocalipse (c. 90 AD), ou seja, ao longo de
um perıó do de, aproximadamente, sessenta anos, a igreja primitiva
desenvolveu uma estrutura de funcionamento que passou de um alto
grau de informalidade para a ixação de um modelo institucional
comparativamente complexo, criado a partir das necessidades que as
circunstâncias foram impondo com o passar do tempo.
Assim, se no ano 30 AD tudo que havia era a liderança dos
apóstolos, dedicados somente à oração e ao ministério da Palavra (At
6.4), naquele mesmo tempo surgiu um grupo eleito pela comunidade
cuja responsabilidade era cuidar das mesas das viúvas (At 6.1-6). Já a
partir daı ́ pode-se ver o germe da institucionalização, com a prática do
voto por parte dos membros (At 6.3,5) e a criação de um grupo
autorizado para a realização de funções distintas (At 6.6). Em termos
de nıv́el de organização, portanto, a igreja de Atos 6 é diferente da
igreja de Atos 2!
E as mudanças continuaram. Ao im da Primeira Viagem
Missionária (c. 47 AD), as igrejas fundadas por Paulo e Barnabé
assumiram um formato diferente daquele inicialmente visto em
Jerusalém. Com efeito, nas novas comunidades, o povo também aparece
votando, dessa vez, porém, para escolher presbıt́eros (At 14.23).
Logo em seguida, em cerca de 48 AD, a liderança eclesiástica
apostólica, tão ligada ao modelo informal da igreja recém-inaugurada,
começou a dar sinais de declıń io. A supremacia da voz do bispo Tiago,
pondo im aos debates do Concıĺ io de Jerusalém (At 15.1-29), indica o
inıć io do im da primazia dos apóstolos como chefes absolutos da igreja
local. Essa percepção deve ser válida porque, no Concıĺ io de Jerusalém,
estavam presentes Pedro (até então o lıd́ er máximo da comunidade
cristã em Jerusalém) e Paulo, ambos apóstolos. No entanto, o destaque
da narrativa de Atos recai sobre a participação de Tiago (At 15.13-21),
um pastor cujo parecer foi acatado na ıń tegra pela assembleia, que
novamente participou das decisões por meio do voto (At 15.22).
Vê-se assim a ascensão da igura do bispo. Recorde-se ainda que,
cerca de dez anos depois, quando viajava para Jerusalém, Paulo se
dirigiu aos presbıt́eros de Efeso (um grupo também denominado
“presbitério”, cf. 1Tm 4.14), apontando-os como os lıd́ eres legıt́ imos
da igreja (At 20.17,28). Ora, a convocação de um concıĺ io, a promoção
de eleições em assembleia e a formação de presbitérios nas igrejas
locais, tudo isso dá sinais óbvios da lenta institucionalização da igreja,
menos de trinta anos depois da sua fundação.
Componentes que marcam a igreja do Novo Testamento como
uma instituição bem-organizada podem ser encontrados também nas
epıś tolas. Por exemplo, em Romanos 12.8, Paulo fala do dom de quem
preside, dando a entender que, por volta do ano 58 AD, a igreja cristã já
contava com indivıd́ uos que se destacavam dentre os demais,
liderando e dirigindo a comunidade. Esse fato é também percebido na
Carta aos Efésios (c. 61 AD), em que Paulo menciona quatro categorias
distintas de lıd́ eres eclesiásticos, todos capacitados por Deus com
vistas ao “aperfeiçoamento dos santos” (Ef 4.11-12).
Outro exemplo se encontra em Filipenses 1.1. Esse texto mostra
que o grupo que, por volta de 30 AD, foi eleito para servir as mesas das
viúvas (At 6.1-6), isto é, os diáconos, em cerca de 61 AD, transformou-
se num conselho de o iciais da igreja, ao lado dos bispos e distinto da
assembleia como um todo.
Torna-se, assim, evidente que aquela equipe voltada apenas para
o trabalho assistencial, num perıó do aproximado de trinta anos galgou
uma posição eclesiástica mais elevada. Aliás, os “diáconos”, como
passaram a ser chamados, começaram a exercer um papel tão sério
como lıd́ eres que, em cerca de 66 AD, Paulo escreveu a Timóteo
dizendo que os mesmos requisitos impostos a quem desejasse ser
bispo deveriam também ser exigidos dos que quisessem ser diáconos. A
única exceção parece ter sido a aptidão para ensinar (1Tm 3.8-13).
Ademais, é impossıv́el fazer alusão às Epıś tolas Pastorais (1 e
2Timóteo e Tito), sem lembrar que essas cartas, escritas em meados da
década de 60, não somente mostram uma liderança institucional na
igreja (1Tm 3.1-13; 5.22; Tt 1.5-9), como também revelam a ixação de
uma liturgia (1Tm 2.1; 4.13-14), além de regras de funcionamento que
os crentes deveriam observar a im de que se comportassem
adequadamente na “casa de Deus” (1Tm 3.14-15).
Na organização mais complexa que já havia por volta de 66 AD, há
até uma ordem de viúvas, na qual as participantes só podiam ser
inscritas se preenchessem certos requisitos enumerados pelo apóstolo
(1Tm 5.9-12). As mulheres inscritas nessa ordem receberiam provisão
material da igreja.
Não são somente as cartas de Paulo que mostram a
institucionalização da igreja. Especialmente no tocante a uma liderança
de inida, as Epıś tolas Gerais (Hebreus, Tiago, 1 e 2Pedro, 1, 2 e 3João e
Judas) também apontam para essa realidade (Hb 13.7; Tg 5.14; 1Pe
5.15). O fato de existirem já naqueles dias lıd́ eres corruptos e
dominadores (2Pe 2.1-3; 3Jo 9-10; Jd 12), não era causa para a
informalização da igreja. Pelo contrário, esse perigo mostrava quão
importante era o estabelecimento de um governo eclesiástico forte ao
qual a igreja pudesse se submeter sem correr qualquer perigo (Hb
13.17).
Quanto ao modelo de liderança eclesiástica centralizado na igura
de um só pastor, padrão tão comum hoje em dia, é possıv́el vislumbrar
seu embrião já nos tempos do Novo Testamento. De fato, a igura do
“bispo monárquico” que tanto marcou a igreja a partir do século 2,
pode encontrar suas raıź es nos pastores das sete igrejas do Apocalipse
(Caps. 2-3), cada um atuando como lıd́ er máximo de uma comunidade
cristã especı́ ica (Ap 1.20).
Quão diferentes são entre si, portanto, as igrejas do Novo
Testamento quando observados os diversos estágios em que se
encontram no seu lento processo de organização. Realmente, a igreja
de Jerusalém, sob a liderança de Pedro, é marcada por quase completa
informalidade. A de Efeso, porém, debaixo da autoridade de Timóteo,
tem todos os traços de uma instituição religiosa madura, com um
presbitério, um conselho de diáconos, um processo ixo para a formação
e investidura de lıd́ eres, um conjunto de regras objetivas de
funcionamento, várias normas relativas ao culto e uma associação
[117]
formalmente organizada de mulheres carentes.
Assim, é vazia a crıt́ ica das igrejas emergentes ultrainformais,
não havendo nada de antibıb́ lico no modelo de funcionamento de
igreja como instituição. Além disso, ao que parece (e a experiência
aponta nessa direção), os defensores da plena informalidade não estão
realmente interessados em reconstruir o modelo neotestamentário.
Tudo indica que o que verdadeiramente almejam é evitar associar-se a
uma igreja num grau maior de compromisso, livrando-se, inclusive, dos
incômodos de viver sob a autoridade eclesiástica instituıd́ a pelo
próprio Deus. O fato é que a busca da informalidade pode ser, na
verdade, a fuga da responsabilidade.
Uma questão frequente

De que maneira a igreja atualpodese tornar


relevante para o homem do século 21?
A igreja sempre será relevante seja em que século
for, desdeque preserve a tarefa dada exclusivamente ela
de anunciar com idelidade o único caminho para a
salvação do homem perdido. Se, porém, querendo
atrair e agradar os descrentes do seu tempo, a
igreja mudar sua postura, seus valores, seu discurso
e sua conduta, amoldando-se à cultura depravada que
a cerca, sua relevância desaparecerá e ela se
tornará apenas uma opção secundária de lazer ou uma
alternativapassageira de congraçamento social.
Capítulo 11 – O AUXÍLIO MATERIAL NA
IGREJA

A maioria dos membros da igreja de Deus é composta por


pessoas de poucas posses. De fato, não há entre os crentes muitos de
nobre nascimento, nem um grande número de homens poderosos e in
luentes.
A leitura dos antigos registros históricos mostra que sempre foi
assim. Na verdade, os pagãos viam na condição social dos cristãos em
geral mais uma causa para zombar do evangelho e dizer que a fé
pregada pela igreja era a fé dos ignorantes, dos iletrados, da gente de
baixo nıv́el social — uma doutrina indigna de ser seguida por pessoas
nobres e de boa formação.
O que os inimigos de Cristo não sabiam é que a condição social
dos crentes já tinha sido percebida e comentada pelo apóstolo Paulo, o
qual apresentou uma explicação teológica para essa realidade.
De fato, Paulo disse que Deus chamou poucas pessoas grandes
segundo os padrões do mundo para que a verdadeira sabedoria fosse
predominantemente propriedade dos fracos e dos que nada são. Dessa
forma — ensinou ele — a sabedoria dos nobres e dos poderosos seria
confundida e humilhada e ninguém poderia se vangloriar na presença
de Deus (1Co 1.26-29).
Sendo, então, a igreja marcada pela presença de pessoas pobres,
constantemente ela tem de lidar com a questão da ajuda aos carentes.
Nessa matéria, porém, ao contrário do que muitos pensam, as
Escrituras não deixam o povo de Deus à mercê de suas próprias
percepções e julgamentos. Antes, estabelecem diretrizes claras, as
quais devem ser observadas pela igreja caso esta queira obedecer em
tudo à palavra do seu Senhor.

Diretrizes bíblicas para a ajuda aos carentes


Conforme destacado, desde os primeiros dias de sua existência, a
igreja cristã teve de lidar com o problema dos membros carentes de
auxıĺ io material. Na verdade, foi o agravamento desse problema que
impulsionou a criação do diaconato (At 6.1-6).
Desse modo, não há como a igreja voltar as costas para a
realidade dura da existência de pessoas que, temporária ou
permanentemente, precisam ser assistidas não só no âmbito espiritual
e emocional, mas também com alimentos, roupas e, às vezes, até
moradia.
A palavra de Deus disciplina essa matéria. Antes de tudo, porém,
cada crente em particular precisa saber que, no tocante à assistência
aos pobres, tudo indica que deve ser observada a seguinte ordem de
prioridade:

1. As pessoas da própria famıĺ ia (1Tm 5.8);


2. Os irmãos da igreja a que o cristão pertence (Gl 6.10);
3. Os crentes de outras igrejas ou desconhecidos (At 11.29-
30; 1Co 16.1-4; 2Co 8.1-4,24; 9.1-2, 11-14);
4. Os incrédulos conhecidos (Pv 3.27,28; 14.21; 21.10; Rm
12.17,20);
5. Os incrédulos não conhecidos (Mt 22.37-40).

Note-se nessa lista que os crentes carentes devem ter prioridade


sobre os incrédulos. Isso deve ser assim porque o auxıĺ io material deve
fazer com que os necessitados deem muitas graças a Deus, glori iquem
o nome dele por causa da liberalidade do seu povo e orem em prol dos
seus irmãos que os ajudam, nutrindo grande afeto por eles (2Co
9.1115). Ora, esses efeitos só podem ser obtidos quando a assistência
material é dirigida a crentes.
A ordem de prioridade apresentada aqui é útil principalmente
para o crente como indivıd́ uo, o qual, com frequência, se vê diante de
pessoas que olham para ele esperando alguma ajuda material. Se o
cristão não tiver critérios embasados na Palavra de Deus, cometerá
erros e injustiças nesse campo, desconsiderando o que tem primazia e
aplicando mal os recursos que Deus lhe dá.
Os princıṕ ios de ajuda a pessoas carentes aplicáveis à vida do
crente individual devem, entretanto, ser aproveitados, o máximo
possıv́el, na formação de uma iloso ia de ajuda material a ser adotada
pela igreja como instituição. Porém, há também normas especı́ icas
dirigidas à igreja como um todo, as quais versam sobre o modo que ela
deve atuar no sustento dos menos favorecidos.
E dito, por exemplo, com meridiana clareza, que a igreja jamais
deve ajudar pessoas que enfrentam di iculdades porque não trabalham.
O apóstolo Paulo chega a a irmar que quem não trabalha deve passar
fome (2Ts 3.10). De fato, a igreja que auxilia pessoas acomodadas
incentiva a ociosidade, o mau testemunho, a maledicência e as intrigas
(2Ts 3.11; 1Tm 5.13).
E verdade que, muitas vezes, ocorre de o indivıd́ uo não estar
trabalhando por não conseguir emprego. Nesse caso, a liderança terá
de avaliar as particularidades da questão: o irmão desempregado tem
por hábito ser inconstante em todos os seus empregos? E mau
funcionário e, por isso, sempre é demitido? O crente desempregado
está procurando emprego com real dedicação? Os empregos que lhe
são arranjados têm sido rejeitados por ele sob pretextos injusti icáveis?
Tudo isso deve ser avaliado com bastante seriedade pelos lıd́ eres
antes que a ajuda inanceira seja dada.
Ainda no nıv́el de igreja como instituição, a prática da ajuda
inanceira aos membros deve seguir dois princıṕ ios básicos: a
necessidade real e a temporalidade.
Por necessidade real entende-se a situação caracterizada por
inevitável penúria, em que a pessoa, por motivo legıt́ imo, não tem de
onde tirar recursos para sua alimentação, moradia, saúde e vestuário.
Esse princıṕ io é absoluto, ou seja, não tem exceções. Desse modo,
a igreja nunca se verá obrigada a ajudar inanceiramente quem não
esteja enfrentando essa circunstância (como, por exemplo, quem
contraiu dıv́ idas e pede ajuda inanceira para não ser protestado ou
executado).
O princıṕ io da necessidade real está previsto em 1Timóteo
5.36,16, em que Paulo fala das mulheres que são verdadeiramente
viúvas, ou seja, mulheres idosas da igreja (com sessenta anos ou mais)
que não apenas tinham perdido o marido, mas também não contavam
com ilho ou neto algum que as pudesse ajudar. Senhoras naquela
situação deviam ter seus nomes inscritos numa lista especial para
receber auxıĺ io da igreja, desde que tivessem também um histórico de
bom testemunho e serviço (1Tm 5.9-10). Membros que não estivessem
nessas circunstâncias não podiam se inscrever (1Tm 5.11-13).
O segundo princıṕ io (o da temporalidade), intimamente
relacionado ao primeiro e dele decorrente, aponta para o fato de que a
ajuda inanceira a membros carentes não é necessariamente
permanente. A ajuda deverá cessar assim que a situação de
necessidade real chegar ao im. Ora, é evidente que cessando a
necessidade, o auxıĺ io não será mais justo. E bom ressaltar que a ajuda
também poderá cessar quando os lıd́ eres perceberem que a
necessidade perdura em razão de negligência ou comodismo do
auxiliado.
O princıṕ io da temporalidade é relativo, pois haverá casos
excepcionais em que a ajuda se perpetuará. Isso ocorre, por exemplo,
no caso de pessoas inválidas ou de bastante idade que vivem sozinhas,
sem nenhum parente, e recebem apenas uma pequena pensão mensal.
Casos como esses trazem em seu bojo situações que di icilmente se
alterarão — e a igreja terá de ajudar o indivıd́ uo nessas condições
talvez até o im de sua vida.
No tocante à ajuda material da igreja dirigida a pessoas
incrédulas, é bom dizer que essa conduta não é regulada pelo Novo
Testamento. Em toda a literatura neotestamentária, a preocupação da
igreja com os carentes tem sempre como objeto os irmãos na fé. Se
não houver pessoas carentes numa determinada igreja local (o que di
icilmente ocorre), então essa igreja direcionará sua ajuda a pessoas
carentes de outras igrejas (At 11.27-30; Rm 15.25,26; 1Co 16.1-4; 2Co
9.1,2, 12-14).
Concluindo, deve icar bem claro que a administração e o uso do
dinheiro da igreja são assuntos muito sérios. Todo centavo que entra
para o caixa, proveniente dos dıź imos e ofertas, deve ser usado com
responsabilidade e critérios que se harmonizem com a Palavra do
Senhor, o qual, em última análise, é o dono de todos esses recursos,
sendo os crentes apenas administradores.
Por isso, os lıd́ eres cristãos, ao deliberar acerca da ajuda material
a alguém, não devem se deixar levar por apelos emocionais ou por
temores de desagradar a uns e outros, ou ainda por situações que
gerem constrangimento. Acima das circunstâncias, do agrado aos
homens e das fortes emoções está a Palavra de Deus, que deve ser
sempre aplicada, seja em que caso for.
Em regra, é bom que os pastores detenham a palavra inal acerca
de quem deve receber recursos destinados ao suprimento de
necessidades materiais, julgando eles conforme a necessidade de cada
um e a partir do conhecimento especial que têm do seu rebanho. Ao
que tudo indica, essa foi a prática adotada em Atos 11.29-30.
Com efeito, a experiência pastoral ensina que, se o crente em
particular assumir essa tarefa, será facilmente movido pelas aparências
e pela manipulação de quem se mostra excessivamente carente e
acabará suprindo necessidades ilusórias, deixando os realmente
necessitados vivendo em desamparo. Por isso, o crente que quer ajudar
os irmãos carentes de sua igreja deve pedir orientação ao pastor que,
quase sempre, saberá distinguir quem realmente precisa de quem
apenas parece precisar.

A proposta liberal

Os membros da igreja de Deus devem tomar cuidado ao se


envolver com comunidades evangélicas que dão muita ênfase ao
trabalho social. Isso porque essa tônica pode ser decorrente não da
concepção cristã acerca do sofrimento e da pobreza, mas sim de
tendências doutrinárias liberais.
O liberalismo foi um movimento teológico que surgiu no século
18 e que acolheu a cosmovisão reinante na modernidade gerada pelo
iluminismo. Essa cosmovisão dava lugar de supremacia à razão (a
lógica humana — e não a revelação bıb́ lica — de ine o que é
verdadeiro), propunha o funcionamento uniforme da natureza (a
ordem natural não se altera; logo, não existem milagres) e cria no
progresso da humanidade pelo uso da razão, do avanço cientı́ ico e da
educação moral.
Os teólogos liberais perceberam que a visão de mundo desse tipo
não atribuıá nenhum sentido às doutrinas ortodoxas cristãs, uma vez
que estas entram em choque com a mentalidade cientı́ ica moderna.
Por isso, temas como a transcendência divina, a inspiração bıb́ lica, a
divindade de Jesus, a morte expiatória de Cristo, a ressurreição e o juıź
o eterno foram totalmente rejeitados pelos teólogos liberais ou, no mıń
imo, reinterpretados em termos meramente morais ou simbólicos. Seu
objetivo com isso era tornar o cristianismo atraente e relevante para as
novas gerações que não estavam mais dispostas a sacri icar a razão,
aceitando o sobrenatural.
Como, porém, manter as portas de uma igreja abertas quando o
coração de sua mensagem é removido? Em outras palavras: como a
igreja poderia continuar existindo e fazendo alguma diferença se a
doutrina do Deus-homem que morreu e ressuscitou para livrar os
pecadores da condenação eterna é, segundo diziam, somente uma
fábula inspirada em velhos mitos pagãos? Despojada de sua mensagem
fundamental, não seria melhor que a igreja fechasse suas portas e
colocasse seus prédios à venda?
A resposta dos teólogos liberais a essas questões foi a seguinte: a
igreja deve mesmo abandonar seus velhos dogmas tão inaceitáveis
para a mente cientı́ ica moderna, mas pode, ainda assim, continuar
funcionando e até se tornar relevante para o mundo desde que abrace a
tarefa de educadora moral e agente de auxıĺ io social. Em vez de ser,
portanto, a proclamadora de um evangelho sem sentido e de histórias
bıb́ licas fantasiosas, a igreja deveria agora mostrar sua importância
para o mundo agindo como uma promotora de valores éticos e como
uma entidade assistencial.
Filósofos e teólogos como Immanuel Kant (1724-1804), Albrecht
Ritschl (1822-1889) e Adolf Harnack (1851-1930) restringiram então o
cristianismo ao âmbito da ética e, especialmente Ritschl e Harnack,
realçaram a tarefa da igreja de promover o reino de Deus e a
fraternidade universal transformando este mundo por meio de gestos
práticos de amor e de justiça.
Os danos doutrinários do liberalismo foram devastadores e são
percebidos claramente ainda hoje em muitas igrejas e seminários em
que essa vertente teológica permanece viva a ativa. Com efeito, como
resultado de suas propostas, os dogmas cristãos foram desacreditados,
sendo hoje ridicularizados em alguns cıŕculos teológicos. Também uma
nova concepção de Deus foi adotada: ele passou a ser apresentado
como um espıŕ ito universal imanente que está por trás da natureza, da
história e da cultura e que evolui com elas (Hegel), sendo também o
Todo, a realidade in inita da qual o homem depende e faz parte
(Schleiermacher) — um conceito bem diferente do Deus pessoal, livre,
soberano e transcendente apresentado na Bíblia. Também a crença na
salvação de toda a humanidade foi desenvolvida pelos teólogos liberais,
como desdobramento teórico de suas ideias.
Em termos de eclesiologia aplicada, porém, o legado do
liberalismo foi a construção de uma mentalidade em que a igreja
mostra especialmente sua relevância à medida que atua como escola de
valores éticos ou associação de amparo aos necessitados e às vıt́ imas
de injustiça social.
Essa mentalidade, ao que parece, se tornou bastante popular no
Brasil na década de 1970 graças ao forte impacto causado pelo livro
Em
[118]
seus passos o que faria Jesus?, de Charles M. Sheldon.
Numa atmosfera de notável entusiasmo liberal, marcada ainda pelos
atraentes desa ios propostos por obras como a de Sheldon, muitas
igrejas passaram a abrir creches, distribuir alimentos, fazer campanhas
de agasalho e oferecer cursos de alfabetização aos menos favorecidos.
Ainda que essas ações não fossem erradas em si mesmas, todas
eram desdobramentos de uma teologia que negava ou deixava em
segundo plano a mensagem pura do evangelho e tentava resguardar a
relevância da igreja, transformando-a numa entidade assistencial, com
pouca ênfase no ensino, na pregação, na santidade e na disciplina.
A ironia disso tudo pôde ser vista no fato de que, ao tentar dar
relevância à igreja, privando-a da sã doutrina e dando-lhe uma função
social, o liberalismo a tirou do seu foco principal e acabou por diminuı-́
la. De fato, em muitos casos, a igreja, única detentora da mensagem de
salvação, envolveu-se em distrações assistenciais, pondo de lado a
pregação da cruz. Adotando um discurso demagógico, sentimental e
apelativo, ela deixou de cumprir a missão dada por Deus de distribuir a
verdade salvadora e passou a cumprir tarefas que cabiam ao Estado,
distribuindo sopa e cobertores.
Em outras ocasiões, igrejas que se deixaram levar pelos discursos
sociais se tornaram organizações realmente inúteis e até prejudiciais,
dando ajuda a famıĺ ias e indivıd́ uos desocupados, inanciando
indiretamente, dessa forma, o ócio, a bebida, a farra, a prostituição e as
drogas. Também algumas igrejas, seguindo as mesmas aspirações de
“causar impacto” na comunidade em que estavam, tornaram-se
verdadeiramente banais, promovendo campanhas de proteção a
animais, realizando cultos de oração pelas árvores ou formando grupos
que distribuıá m abraços aos transeuntes na rua (!).
Assim, o povo que deveria formar um exército de soldados que
defendem corajosamente a fé e a verdade, foi, em alguns casos,
transformado num grupo de escoteiros sentimentais que acariciam
gatinhos abandonados nas praças.

A proposta da chamada Missão Integral

Em julho de 1974, reuniu-se em Lausanne, na Suıḉ a, o Primeiro


Congresso Internacional de Evangelização Mundial, com o objetivo
principal de de inir a identidade e a missão evangélica no mundo
contemporâneo.
Os lıd́ eres reunidos em Lausanne revelaram preocupação com
muitas ameaças atuais dirigidas contra a igreja. Eles perceberam
corretamente que uma dessas ameaças eram as propostas liberais
que privavam o cristianismo da genuıń a mensagem bıblica.
Posicionando-́ se, então, contra esse e outros perigos, os teólogos de
Lausanne rea irmaram algumas doutrinas centrais da fé e se
dispuseram a estimular a igreja a oferecer novamente ao mundo o
evangelho verdadeiro.
Envolvidos nessas re lexões e debates, alguns teólogos presentes
em Lausanne, especialmente os procedentes da América Latina, como
René Padilha e Samuel Escobar, ambos palestrantes no congresso,
insistiram na a irmação de que esse evangelho verdadeiro, ao ser
anunciado, deveria abarcar ações de impacto social, econômico e polıt́
ico. Mesmo participando de um congresso antiliberal, o fato é que
esses teólogos suspiravam os ares assistencialistas soprados pelo
liberalismo da época e pela Teologia da Libertação, tão in luente em
seus paıś es de origem.
Assim, segundo eles, o envolvimento da igreja com as
necessidades sociais da humanidade era parte integrante de sua tarefa
de testemunho cristão. No entender desses teólogos, para que o
evangelho fosse anunciado de forma integral, era preciso acentuar o
que entendiam ser sua “dimensão social”.
Os teólogos de Lausanne acolheram substancialmente essas
concepções e, ao im do congresso, produziram um documento
denominado Pacto de Lausanne (redigido por John Stott) que,
mesmo sendo claro e enfático em seus enunciados ortodoxos (como a
a irmação da autoridade bıb́ lica, a rejeição do universalismo e a
crença no retorno literal de Cristo), deixou-se in iltrar por ecos da
Teologia da Libertação, um modelo de forte coloração liberal.
De fato, o Pacto de Lausanne a irmou que a igreja deve mostrar
interesse “pela libertação dos homens de todo tipo de opressão” e que
“a evangelização e o envolvimento sócio-polıt́ ico são ambos parte do
[119]
nosso dever cristão”.
E verdade que o Pactode Lausanne, sendo predominantemente
ortodoxo, declarou expressamente que a ação social não é
evangelização, que a libertação polıt́ ica não é salvação (Artigo 5) e
que a igreja não pode se identi icar com nenhum sistema social ou polıt́
ico, nem com ideologias humanas (Artigo 6).
No entanto, apesar dessas ressalvas, pastores de tendências
liberais e marxistas, considerando as conclusões do congresso muito
tıḿidas no tocante ao papel social da igreja, deram ênfase aos
enunciados do pacto que lhes eram mais convenientes. Então passaram
a falar sobre a missão integral da igreja com uma tônica nitidamente
libertária e esquerdista, algo certamente jamais pretendido pelo
próprio texto do Pacto de Lausanne.
Foi assim que a expressão MissãoIntegral da Igreja passou a
ser fortemente relacionada com um “evangelho” que é pouco mais do
que a defesa de uma ideologia polıt́ ica igualitária, contrária à distinção
entre classes — uma ideologia que insiste na necessidade de grandes
intervenções sociais por parte da igreja mas que, em geral, não dá
nenhuma ênfase à cruz, ao perigo da perdição eterna e à necessidade
de arrependimento do pecador diante do Deus santo. De fato, o
evangelho proposto pelos defensores liberais e marxistas da Missão
Integral da Igreja acaba por encher estômagos (às vezes!), deixando os
corações vazios (sempre!).
Obviamente, a igreja de Deus deve recusar o discurso
assistencialista da chamada Missão Integral. Os princıṕ ios e
prioridades relativos à ajuda aos carentes, conforme elencados aqui,
estão todos expostos nas Escrituras e é com eles que o povo de Deus
deve se comprometer e não com vertentes ilosó icas, sociológicas ou
partidárias de esquerda que são, na verdade, versões evangélicas da
Teologia da Libertação.
A igreja de Deus deve fugir disso tudo não só porque a ênfase
exacerbada na ação social a afasta de sua tarefa essencial de
proclamadora da cruz e do arrependimento. A igreja deve fugir disso
tudo porque a proposta aparentemente piedosa da Missão Integral é
apenas um re lexo mais ou menos velado da teologia liberal e libertária
que permanece viva e que não aceita a realidade da perdição eterna,
anunciando, por isso, uma salvação meramente polıt́ ica e social no
presente.
Além disso, é preciso destacar que, ao contrário do que muitos
crentes de hoje pensam, nunca foi dever nem responsabilidade da
igreja ser fonte de socorro material para o mundo. Com efeito, a igreja
jamais foi idealizada por Deus como uma organização que tem por
obrigação reduzir a pobreza e o sofrimento das pessoas do mundo. Se,
conforme visto, ela tem essa responsabilidade em relação aos
domésticos da fé (Gl 6.10), isso de modo nenhum se estende à
sociedade como um todo.
Essas a irmações podem chocar os ouvidos dos cristãos
modernos, familiarizados que estão com os constantes apelos da
Missão Integral, mas a verdade é que Deus jamais colocou sobre os
ombros da comunidade da fé a tarefa de melhorar o mundo por meio
de programas sociais ou obras assistenciais. Absolutamente, nada na
Bíbliaensina ou mesmo sugere isso. Israel, o povo da aliança, nunca
recebeu essa incumbência em face das nações a quem deveria anunciar
o Deus verdadeiro e as igrejas neotestamentárias jamais foram instadas
a isso.
Há quem diga que as mensagens dos profetas do AT eram
centradas em apelos sociais e que a igreja deve acolhê-las também
nesse aspecto. Porém, essa percepção está equivocada. Ainda que
condenassem os pecados sociais de seus contemporâneos, os profetas
não viam isso como sua preocupação central, mas sim como evidências
adicionais de que o povo havia abandonado os preceitos da aliança com
Javé. O centro de suas denúncias era, na verdade, a apostasia religiosa
da nação. Esse era o quadro maior de que as opressões sociais eram
apenas mais um componente. Por isso, na visão dos profetas, a solução
para as injustiças que tanto atacavam era o arrependimento e não a
[120]
implementação de programas assistenciais.
Por isso, é errado dizer (como fazem muitos proponentes da
Missão Integral) que os profetas eram reformadores sociais urbanos e
que a igreja precisa ouvir suas mensagens como uma espécie de voz
dos oprimidos. Na verdade, a única tarefa que cabe à igreja diante do
mundo é pregar o evangelho da cruz, o evangelho do Deus verdadeiro
que dá salvação eterna e completa. Esse evangelho, quando acolhido
por alguém por meio da fé, acaba por enobrecer a pessoa, tirando-a da
ignorância, da vadiagem, da sujeira, das más companhias, dos vıć ios e
da criminalidade.
Vê-se, assim, que o real convertido sofre e promove um impacto
que se faz sentir não apenas na sua vida espiritual, mas também no seu
trabalho, nas suas escolhas polıt́ icas, na sua avaliação do direito e das
leis, nas suas concepções éticas, no seu comportamento moral, na sua
visão e prática econômica e na importância que passa a dar à educação.
O indivıd́ uo transformado pela fé também começa a agir em
prol do seu semelhante (especialmente seus familiares e irmãos em
Cristo), não movido por conceitos marxistas ou por tendências polıt́
icoilosó icas, mas sim por uma santa inclinação que passa a ter como
criatura nova (2Co 5.17). Ele é o homem que furtava, mas agora não
furta mais, antes trabalha para socorrer o que tem necessidade (Ef
4.28).
Todo esse impacto social do evangelho não é, contudo, o alvo inal
do trabalho da igreja diante do mundo que a cerca. E “apenas” o efeito
transformador comum que o Espıŕ ito Santo opera no homem salvo.
Mais uma vez: o alvo supremo da igreja diante dos perdidos é tentar
livrá-los da condenação do pecado, mostrando que a única forma de se
proteger da ira de Deus é buscando refúgio na cruz de Cristo.
Realizando essa tarefa proclamativa, a igreja verá pecadores sendo
salvos do inferno e, como um “bônus”, os verá também sendo libertos
de inúmeras outras formas de opressão, inclusive a social.
Note-se que o evangelho de Cristo sempre produziu esse efeito
magnı́ ico, basta observar a mudança de vida de incontáveis indivıd́ uos
alcançados pela graça salvadora no decorrer da história; basta também
olhar para os inúmeros hospitais, creches, escolas e abrigos fundados
por cristãos ao longo dos séculos, muito antes de surgir qualquer
proposta liberal ou de “missão integral”. Isso tudo mostra quão
desnecessários são os apelos demagógicos desses movimentos e leva a
suspeitar de que se trata apenas de artifıć ios para transformar a igreja
numa aliada na promoção de doutrinas heréticas e ideologias de
esquerda, sob o disfarce de serva de Cristo.
Por isso, se a igreja quer realmente causar impacto no mundo,
concentre seus esforços na pregação do evangelho autêntico,
destacando a obra de Cristo, o arrependimento, a fé e o livramento do
castigo eterno. Isso fará com que ela veja o homem perdido ser liberto
da ira vindoura e de muitas desgraças presentes. Se não cumprir essa
tarefa, não verá nem uma coisa nem outra.

Possíveis questões

1) Qual deve ser a resposta do crente às pessoas


em geralque lhepedem socorro?
Este capítulo desaprova os projetos sociais eclesiásticos
que reduzem a igreja a uma entidade assistencialista e
fazem com que ela se desvie de seus alvos principais,
os quais envolvem a pregação, o ensino, a santidade
e a disciplina.
Quanto ao cristão individual, é seu deverajudar
qualquer pessoa que lhe pedir socorro (Mt 5.42; Rm
12.20), tendo apenas cuidado para não ser enganado
por pessoas de má-fé e por aproveitadores (Pv 3.27;
2Ts 3.10). O crente também deve evitar se
comprometer em ajudar alguém deixando seus familiares
e seus irmãos na fé sem amparo (Gl 6.10; 1Tm 5.8;
1Jo 3.17).
Ainda no tocante ao âmbito individual, há cristãos
que criam entidades humanitárias ou associações
ilantrópicas. Essas iniciativas são bastante louváveis e não
há nada de condenávelnelas, desdeque esses grupos não
deixem de pregar o evangelho puro, não tentem
desviar a igreja de sua tarefa principal de
proclamação e pratiquem o ensino bíblico de
socorrer primeiro os da família da fé.

2) Não há nadaque a igreja, como instituição,


possa fazerparaaliviar o sofrimento deste
mundo e reduzir as injustiças sociais?
É claro que há. Uma boa sugestão é a igreja
cooperar como entidade mantenedora de instituições bene
icentes cristãs que tenham zelo evangelístico. Se a
igreja tiver condições inanceiras, poderá destinar verbas para
essas instituições, ajudando no sustento do seu trabalho.
Isso aenvolverá na obra central de evangelismo e a
tornará presente numa esfera mais ampla da vida
social, sem comprometer a verdadeira razão da sua
existência e sem perder o foco do seu trabalho. A
ajuda da igreja a essas instituições, porém, deve
ser dada sem prejuízo do amparo aos membros
necessitados da própria comunidade ou de irmãos
de outros lugares que enfrentam miséria e calamidade
(veja-se a lista de prioridades acima).
Capítulo 12 – O CASAMENTO

A banalização do matrimônio é uma das marcas da sociedade


contemporânea — uma marca presente tanto no contexto secular como
cristão.
Com efeito, não é somente a mıd́ ia, os governos e as instituições
antiDeus que apregoam o afrouxamento dos laços matrimoniais.
Também pastores, escritores cristãos, igrejas, seminários e
denominações inteiras propagam discursos que são verdadeiras
apologias à fragilidade do vıń culo conjugal, dando ensejo e estıḿulo a
separações e fazendo com que seus ıń dices de incidência atinjam
nıv́ eis surpreendentes.
Raras são as comunidades e solitários são os lıd́ eres evangélicos
que se opõem ao divórcio. Mais raros ainda são os crentes que se
insurgem contra o recasamento. E toda essa “tolerância”, na maior
parte das vezes, não repousa sobre a análise bıb́ lica séria ou sobre a re
lexão madura acerca de um tema tão crucial para a felicidade das
pessoas e para o bem da igreja.
Em vez disso, a defesa do casamento solúvel é construıd́ a sobre
jargões pobres (“você tem o direito de ser feliz com outra pessoa”),
sobre bases teológicas fracas expostas em retórica barata (“nosso Deus
é o Deus da segunda chance” ou “Deus não quer que iquemos com
alguém por mera obrigação”) e sobre uma hermenêutica que faz
malabarismos com passagens da Bíblia(um dos exemplos mais
chocantes é a defesa do recasamento com base em Ageu 2.9: “A glória
desta última casa será maior do que a da primeira...”).
Isso tudo produz práticas erradas das quais a igreja de Deus deve
fugir. Para tanto, é preciso que os crentes corrijam suas ideias sobre o
santo matrimônio e construam uma estrutura conceitual bıb́ lica e
sólida acerca do tema. Essa construção deve partir da análise do que, de
fato, produz o vıń culo matrimonial.
Os três elementos que perfazem o casamento

Quando e em que circunstâncias nasce o vıń culo matrimonial


entre um homem e uma mulher?
A resposta a essa pergunta é fundamental porque, enquanto não
houver vıń culo conjugal unindo um casal, obviamente não existirá
casamento, sendo então impossıv́el falar em divórcio, novas núpcias ou
qualquer outro assunto ligado à ética matrimonial.
Por isso, antes de lidar com as complexas questões ligadas ao
ensino bıb́ lico acerca do matrimônio, é preciso determinar quando o
casamento se perfaz, isto é, quando se torna existente na experiência
do homem e da mulher que nutrem uma relação de afeto.
A partir da análise das Escrituras, é possıv́el concluir que o
vıń culo matrimonial se perfaz quando ocorrem três fatos: a
decisão livre de casar, o ato solene de união e o intercurso sexual.

1. A decisão livre de casar. Para que o casamento


seja considerado existente, é preciso que os cônjuges tenham se
unido de livre vontade, isto é, sem a força ou a in luência dos vıć
ios da vontade (coação, erro e dolo).
A antiga cláusula “deixará o homem pai e mãe” (Gn 2.24) implica
um ato espontâneo, em que o indivıd́ uo decide sair da casa
paterna e iniciar um novo núcleo familiar. Obviamente, para que
essa vontade seja exercida livremente, não podem haver coação,
ameaça ou constrangimento (o famoso casamento com “uma
arma nas costas”). Tampouco haverá o livre exercıć io da vontade
no caso das pessoas que são induzidas a erro pelas
circunstâncias, como na situação em que os cônjuges descobrem
mais tarde que são irmãos entre si.
Também estará ausente o exercıć io livre da vontade no caso de
um dos envolvidos ser maliciosamente enganado e, então, levado
a se casar — algo que jamais faria caso tivesse conhecimento da
totalidade dos fatos que lhe foram sonegados. E o caso da mulher
que se casa e depois descobre que seu marido já é casado há
muito tempo, tendo esposa e ilhos em outro lugar. E ainda a
hipótese da esposa que logo descobre que seu marido não tem
interesse sexual por ela e que se casou apenas para encobrir sua
homossexualidade. Em casos assim, é evidente que a vontade foi
viciada pelo dolo (a intenção de enganar), não tendo sido
exercida livremente.
Uma vez veri icado o fato de que não houve a decisão livre de
casar, conclui-se que o vıń culo conjugal jamais surgiu e que o
casamento pretendido nunca se perfez, sendo inexistente de fato.
E importante salientar que, no caso de erro ou dolo, para que o
casamento não se perfaça, o fato oculto deve ser de tal natureza
que, se fosse conhecido antes, a pessoa não se casaria. Ninguém,
portanto, pode alegar que seu casamento não se perfez porque, à
época da união, desconhecia fatos de segunda importância.

2. O ato solene. O ato solene é a formalidade que o


icializa e dá publicidade ao casamento, diferenciando-o do
concubinato ou da mera convivência ıń tima. Dependendo da
cultura em que se realiza, o ato solene pode assumir diferentes
formas. Pode ser a celebração de um pacto nupcial
consubstanciado num contrato escrito (como ocorria na Palestina
a partir do perıó do
[121]
interbıb́ lico ), pode ser um evento festivo (como os
banquetes de bodas mencionados nos evangelhos), pode ser
composto pela entrega formal de um dote ou de presentes
nupciais (como em Gn 24.52-54 e 34.12), pode ser uma cerimônia
religiosa (como os casamentos feitos na igreja) ou um rito jurıd́
ico (como os enlaces realizados em cartórios).
Dentre os elementos que perfazem o casamento, o ato solene é o
mais desprezado na atualidade. Até mesmo pastores se referem a
essa formalidade como algo desnecessário e irrelevante, dizendo
que só produz um “pedaço de papel” (a certidão de casamento).
Contudo, de forma surpreendente, a Bíbliamostra que o ato
solene é fundamental para que o casamento exista, sendo o único
elemento que distingue o matrimônio do concubinato e o cônjuge
do simples convivente.
Começando pelo Antigo Testamento, é possıv́el notar que os
escritores sagrados fazem diferença entre a igura da esposa e a da
concubina (2Sm 5.13; 19.5; 1Rs 11.3; 2Cr 11.21; Dn 5.2). Qual era,
porém, a principal distinção entre essas duas posições? E simples.
A esposa havia se casado formalmente, por meio de uma
[122]
cerimônia especı́ ica. Já a concubina havia entrado no
relacionamento de convıv́ io por outras vias, às vezes até como
escrava (Gn 30.3-4 cp. 35.22). Daı ́ a evidência de que, no AT, o
ato solene é essencial para que o casamento se perfaça.
Corroborando essa ideia, observe-se, por exemplo, o Salmo
45.815. Esse texto mostra o grau de pompa e de formalidade a
que uma cerimônia nupcial podia chegar, tudo para que um real
matrimônio se efetivasse. Ora, isso jamais foi exigido no caso de
relações de concubinato.
No Novo Testamento, a necessidade do ato solene como fator
fundamental para a criação do vıń culo matrimonial é percebida
especialmente no ensino de Jesus. Em seu diálogo com a mulher
samaritana (Jo 4.16-18), o Senhor disse que ela tinha tido cinco
maridos (homens com quem se casara) e o que tinha então não
era seu marido, apesar de estar com ela.
Nessa passagem, o Mestre dá a entender que a simples
convivência não perfaz o casamento. Daı ́ a irmar que o sexto
homem não era marido da samaritana. O casamento não havia
ocorrido de modo formal. Logo, não era considerado existente
pelo Mestre.
O entendimento de que o ato solene é o único fator que distingue
o casamento do concubinato, sendo essencial para que alguém se
torne cônjuge e não apenas convivente era uma noção
amplamente aceita nos tempos antigos. O Rabino Meir, que viveu
por volta do ano 150, quando perguntado sobre a diferença entre
a esposa e a concubina, respondeu: “A esposa dispõe de um
[123]
contrato de casamento, a concubina não o possui”.
Esse entendimento tem amplo amparo bıb́ lico, deixando claro
que a ausência de ato solene faz da convivência de um homem
com uma mulher um modo de vida irregular, reprovado por Deus
e sem o poder de gerar o vıń culo conjugal.
Assim, os envolvidos nesse tipo de situação são apenas solteiros
que vivem juntos e a separação de ambos, caso ocorra, sequer
exigirá o expediente do divórcio. Ademais, como solteiros que
são, após separados poderão se casar com outra pessoa caso
queiram, desta vez cumprindo as eventuais formalidades.

3. O intercurso sexual. A base bıb́ lica para a


relação sexual como fator que perfaz o casamento está em
Gênesis 2.24: a frase “serão ambos uma só carne” tem clara
conotação sexual (1Co 6.16).
O intercurso sexual é o ato sexual em seu sentido pleno, sendo
excluıd́ as desse conceito as carıć ias ıntimas e outras práticaś
sexuais que não envolvem o intercurso propriamente dito. Sem
esse ato sexual pleno, ou seja, sem o real intercurso, o casamento
não existirá.
Essa é uma das razões pelas quais é impossıv́el que haja
casamento entre pessoas do mesmo sexo. “Parceiros” nessas
condições são capazes de trocar carıć ias ou praticar
extravagâncias de ordem sexual, mas é impossıv́el que realizem
um intercurso sexual por razões fıś icas e inadequações orgânicas
impostas pela própria natureza.
E preciso destacar aqui que o intercurso sexual só é considerado
uma prática santa dentro do contexto matrimonial (Hb 13.4) e
que tem por objetivos consumar a união do casal (Mt 19.5-6) e
promover a felicidade e satisfação dos cônjuges (Pv 5.15-19; Ec
9.9; 1Co 7.9), protegendo-os, assim, da imoralidade (1Co 7.1-5).
Eis aı ́ os três elementos que perfazem o casamento. Se um só
deles estiver ausente, o vıń culo conjugal não existirá. Com efeito, se
não houver a vontade livre, surgirá uma relação no mıń imo
questionável ou controvertida. Já na ausência do ato solene, virá à luz
somente uma relação biblicamente irregular de concubinato.
Finalmente, caso não exista intercurso sexual, o matrimônio igualmente
não existirá, surgindo apenas uma relação de mera convivência.
Havendo, porém, a ocorrência dos três fatores, o consórcio
matrimonial se concretizará, produzindo os efeitos mencionados mais
adiante.

Ressalva: o casamento religioso

Não existe na Palavra de Deus nenhuma prescrição acerca do que


é chamado de “casamento na igreja”. Na verdade, essa prática não é
mencionada nenhuma vez em todo o Novo Testamento. Tampouco é
possıv́el encontrar nas Escrituras qualquer indıć io de que uma das
tarefas do ofıć io pastoral seja realizar casamentos. Aliás, o “casamento
religioso” não pode ser embasado em nenhum texto da Bíblia, posto
que em momento algum os autores sagrados tratam desse assunto.
Assim, cerimônias cristãs de enlace matrimonial são atos solenes
originados certamente no desejo antigo de buscar a bênção de Deus
para a união entre um homem e uma mulher. Essa prática passou a
fazer parte da tradição cristã e parece ser um bom costume que, aliás,
acaba por suprir um dos requisitos para que o casamento se perfaça (o
ato solene). Contudo, os crentes não devem elevar as solenidades
cristãs de enlace à categoria de exigência divina, pois isso seria ir além
do que está disposto na própria revelação escrita de Deus.
Isso, entre outras coisas, signi ica que, para se unir em
matrimônio, um casal não precisa “casar na igreja”, podendo perfazer
sua união por meio de ritos meramente jurıd́ icos (o chamado
“casamento civil”) ou culturais (celebrações, gestos simbólicos,
reuniões solenes, etc.).
Porém, se o casal for crente, é aconselhável que promova uma
cerimônia religiosa nos moldes da tradição, não para cumprir preceitos
bıb́ licos, posto que, conforme já dito, não existem, mas para suprir a
formalidade necessária ao casamento da maneira que melhor promova
a fé e também para evitar ferir os escrúpulos de irmãos mais sensıv́eis
à observância dos bons e antigos costumes do cristianismo.

Os dois efeitos do casamento

Tão logo o vıń culo conjugal se complete pelo preenchimento dos


três requisitos elencados neste capıt́ ulo, dois efeitos são produzidos.
São os dois efeitos básicos do casamento, a saber, a convivência e a
indissolubilidade. Ambos estão previstos em Gênesis 2.24: “Por isso,
deixa o homem pai e mãe e se une à sua mulher (convivência),
tornando-se os dois uma só carne (indissolubilidade)”. O primeiro é
considerado o efeito programado, o segundo pode ser chamado
também de efeito não programado.

1. Convivência, o efeito programado do


casamento — A convivência é o efeito programado do
casamento porque quem se casa obviamente o faz com o objetivo
assumido e consciente de conviver. De fato, ao deixar pai e mãe, o
indivıd́ uo que se une ao seu cônjuge tem planos de morar sob o
mesmo teto, construindo um lar, um patrimônio e uma história ao
lado da pessoa com quem se casou.
O casamento é o fator que legitima essa convivência e a
Bíbliamostra que esse efeito programado da união conjugal deve
ser regido por diretrizes que o próprio Senhor ixou, a im de que
seja feliz, realizador e edi icante.
A primeira lição que emana das Escrituras sobre a convivência do
casal casado é que ela deve ser marcada por uma vida sexual
dinâmica (Pv 5.15-19; 1Co 7.3-4). Na verdade, o texto sagrado
ensina que os cônjuges não devem se privar mutuamente, exceto
por consentimento mútuo, e isso somente por algum tempo, com
o objetivo exclusivo de se dedicarem à oração. Depois desse perıó
do, devem se unir novamente, para que Satanás não os tente,
aproveitando-se da di iculdade dos cônjuges em se conter por
mais tempo (1Co 7.5). O apóstolo Paulo é bastante direto ao
tratar desse assunto, mostrando que o casal que não tem uma
vida sexual ativa e constante está longe do ideal de Deus e se
mantém exposto a perigos.
A convivência do casal também deve ser marcada pela sujeição
(Ef 5.21). O marido deve se sujeitar à sua mulher movido pelo
amor, do mesmo modo como Cristo se sujeitou em amor à igreja
(Ef 5.25). Algo, porém, deve icar bem claro nesse ponto: assim
como
Cristo é o lıd́ er da igreja, também o marido é o lıd́ er do lar (Ef
5.23; 1Tm 3.4,12). Por isso, a sujeição do marido não é do tipo
que obedece, mas sim do tipo que se sacri ica (Ef 5.25b). Se acaso
o marido se sujeitar à esposa como quem obedece, inverterá o
modelo estabelecido por Deus e o lar icará desestruturado.
Algo também importante a se destacar é que, ao se sujeitar
sacri icialmente à esposa, conforme estabelecido na Bíblia, o
marido deve ter como alvos sublimes protegê-la e sustentá-la,
bem como aperfeiçoá-la espiritualmente (Ef 5.26-29).
Se o traço principal da sujeição do marido é o amor que se
sacri ica, o traço principal da sujeição da esposa é o respeito que
se rende. Sua sujeição é, portanto, do mesmo tipo que a
igreja deve a Cristo (Ef 5.22,24). Isso implica auxıĺ io (Gn 2.18),
dedicação (Pv 31.13-27), obediência e o reconhecimento de que
as rédeas do lar estão nas mãos do esposo (1Pe 3.5-6).
Os cônjuges também devem conviver livres de amarguras,
rancores, brigas e disposições ofensivas. Em vez disso, a esposa
deve ser pacı́ ica, dócil e serena (Pv 31.12; 1Pe 3.1-5) e o marido
deve ser sábio no trato com sua mulher, tributando a ela honra e
cuidado especial (1Pe 3.7).
2. Indissolubilidade, o efeito não programado
do casamento — A indissolubilidade é o efeito não
programado do casamento porque não depende do planejamento,
da vontade ou mesmo da ciência dos noivos para que seja
produzido. Quando duas pessoas se casam, preenchendo os três
requisitos que perfazem o casamento enumerados acima, a
indissolubilidade surgirá, quer os cônjuges queiram ou não, quer
saibam ou não, quer concordem com isso ou não.
Que o vıń culo conjugal é insolúvel se depreende de textos como
Mateus 19.6, Romanos 7.2 e 1Corıń tios 7.39. De fato, as duas
últimas referências mostram que o único fator que tem força para
quebrar o liame matrimonial é a morte. Nem a decisão dos
envolvidos, nem os sentimentos das partes, nem o afastamento
dos cônjuges, nem os erros do casal, en im, nada exceto a morte
tem o condão de destruir o elo que foi estabelecido entre um
homem e uma mulher casados entre si.
Obviamente, essas a irmações suscitam a seguinte pergunta: e
quanto ao divórcio? A Bíblianão mostra que há casos em que esse
expediente pode ser usado, pondo im ao matrimônio?
Sim. Ainda que Deus odeie o repúdio (Ml 2.14-16) e Jesus ensine
que a causa básica da separação de um casal seja a dureza de
coração (Mt 19.6-8), a verdade é que o divórcio é tolerado na
Bíbliaem dois casos especıicos: em razão de relações sexuaiś ilıć
itas, como o adultério (Mt 5.32; 19.9), e quando o cônjuge
incrédulo quiser se apartar do cônjuge crente (1Co 7.12-13,15).
Nessa segunda hipótese, o texto bıb́ lico deixa claro que a
iniciativa
[124]
da separação deve ser do incrédulo.
Sem dúvida, há algumas situações que não se encaixam nas
hipóteses acima, nas quais a separação dos cônjuges é inevitável.
E o caso, por exemplo, do marido que expõe a perigo a vida e a
integridade fıś ica da esposa e dos ilhos, espancando-os
violentamente. Também é o caso do pai que estimula a corrupção
dos ilhos, ensinando-os a roubar ou a usar drogas, tornando
impossıv́el a convivência familiar.
Situações terrıv́ eis assim, ainda que não sejam previstas na Bíblia,
muitas vezes justi icam o divórcio, uma vez que põem em risco
valores que estão acima da unidade conjugal — valores como a
vida e a integridade moral e fıś ica. Contudo, deve-se frisar que,
antes de chegar ao ponto de se separar, o casal deve empregar
todos os recursos possıv́eis para que a unidade familiar seja
preservada.
Tendo sido demonstrado aqui que o divórcio é admitido na
Bíbliaem algumas poucas hipóteses, deve-se agora fazer a
seguinte ressalva: o divórcio de que a Bíbliatrata tem força para
destruir o efeito programado do casamento (a convivência), mas
não o efeito não programado. Isso signi ica que, mesmo com o
advento do divórcio, o vıń culo matrimonial entre um homem e
uma mulher casados entre si perdura, sendo um elo estabelecido
por Deus que só se dissolve com a morte de um dos cônjuges.
E por causa disso que a Bíblianão aprova o recasamento de
pessoas divorciadas. Com efeito, à luz do texto sagrado, o
casamento de alguém separado, cujo ex-consorte permanece em
vida, implica adultério para ambas as partes envolvidas (Mc
10.11-12; Lc 16.18; Rm 7.3; 1Co 7.10-11).
Daı ́ se conclui que o divórcio, conforme abordado na Bíblia, tem
força menor do que aquela que lhe é dada no âmbito jurıd́ ico. Se,
de um lado, a lei civil entende o divórcio como o expediente que
dissolve o vıń culo conjugal e, consequentemente, abre a
possibilidade de se contrair novas núpcias, de outro, o Novo
Testamento atribui a esse recurso e icácia mais restrita.
De fato, segundo as Escrituras, o divórcio é capaz de interromper
somente a convivência do casal, sem, contudo, destruir o elo que
vincula o marido e a mulher. Esse elo, mesmo com o divórcio,
permanece intacto, fazendo de ambos “uma só carne” — algo que
perdura misteriosamente pelo poder de Deus até o advento da
morte.
Ora, sendo a morte o único fator que quebra o vıń culo conjugal, é
evidente que o casamento de viúvos é lıć ito (1Tm 5.14). A única
ressalva feita pelo apóstolo Paulo referente a esses casos é que o
viúvo crente se case com alguém que também seja cristão (1Co
7.39). Na verdade, o casamento entre um crente e um incrédulo
nunca é aprovado na Bíbliaque, aliás, condena qualquer
associação intensa da luz com as trevas (2Co 6.14-16).

A cláusula de exceção

Nos tempos do Novo Testamento, os judeus abrigavam na mente


algumas sérias diretrizes acerca do casamento. Por exemplo, eles
sabiam que, no caso de adultério, tanto o homem como a mulher
envolvidos deviam ser executados (Lv 20.10 cp. Jo 8.3-11). Eles
também conheciam a restrição que pesava sobre os sacerdotes que, por
exercerem uma função santa, não podiam se casar com uma prostituta,
nem com uma moça que não fosse virgem ou com uma mulher
divorciada (Lv 21.7).
Dentre os trechos da lei que tratavam sobre o casamento, talvez a
passagem de Deuteronômio 24.1-4 fosse a que mais causava
controvérsias. Segundo esse texto, uma mulher que tivesse se
divorciado e casado novamente não poderia voltar para o seu
exconsorte, nem mesmo se o seu segundo marido morresse (Dt 24.2-4).
E provável, porém, que a parte mais discutida do texto de
Deuteronômio 24 fosse o versıć ulo 1, que dizia que o marido podia dar
certidão de divórcio à sua esposa caso encontrasse nela algo que não
fosse do seu agrado. Como é praticamente impossıv́el de inir nessa
passagem o limite exato do direito dado ao marido que quisesse se
divorciar, os rabinos da época defendiam opiniões divergentes, sendo
uns mais liberais, enquanto outros se mostravam bastante rigorosos
em suas concepções.
No tocante a esse assunto, as escolas rabıń icas mais conhecidas
que se opunham entre si eram a de Hillel e a de Shammai. Stuart Weber
resume muito bem a concepção dessas duas vertentes:

Em Israel, durante o primeiro século,


o divórcio e o novo casamento eram
temas tão polêmicos quanto são hoje. A
escola de pensamento do rabino Hillel
nutria visões bastante liberais sobreo
assunto, admitindo o divórcio por qualquer
motivo. Hillel aceitava o divórcio até no caso
de uma refeição malcozida ou se o
marido visse uma mulher que considerasse
mais atraente. Já a escola do rabino
Shammai era bem rigorosa, permitindoo
divórcio somente por motivos graves,
[125]
especialmente o adultério.

Inspirados, assim, nessas discussões sobre o divórcio, os inimigos


de Jesus, movidos especialmente pelo desejo de colocá-lo à prova,
perguntaram-lhe certa vez se era permitido ao homem se divorciar de
sua mulher por qualquer motivo (Mt 19.3). A resposta do Mestre
destacou então a origem sobrenatural do casamento (Gn 1.27) e a
indissolubilidade implıć ita na expressão “uma só carne” (Gn 2.24),
frisando a inal que marido e esposa não devem se separar (Mt 19.4-6).
Diante dessa reposta, os fariseus recorreram a Deuteronômio
24.1, precisamente o texto que diz que o homem pode dar certidão de
divórcio à sua esposa, caso não se agrade dela. O claro objetivo deles
era acusar Jesus de ensinar lições contrárias às Escrituras.
Nesse ponto, porém, Jesus enunciou uma importante verdade:
Deus não criou o divórcio e, então, o inseriu na lei, como pensavam
muitos judeus da época (e ainda pensam muitas pessoas hoje). Não! Ele
havia apenas dado instruções para regulamentar uma prática
desordenada inventada pelos homens por causa da dureza do seu
coração (Mt 19.8).
Em seguida, Jesus acrescentou: “Eu, porém, vos digo: quem
repudiar sua mulher, exceto no caso de relações sexuais ilıć itas, e casar
com outra comete adultério” (Mt 19.9). Como se vê, sua concepção
acerca do divórcio é rigorosa, permitindo que se recorra a esse
expediente somente em caso de “relações sexuais ilıć itas”.
No aspecto referente à possibilidade do divórcio, o ensino de
Jesus é, de fato, bastante claro. O problema que se levanta em face de
Mateus 19.9 é que a expressão “exceto no caso de relações sexuais ilıć
itas” (a chamada cláusula de exceção) parece aceitar a
possibilidade não só do divórcio, mas também do novo casamento, pelo
menos para a parte que foi vıt́ ima da in idelidade do seu cônjuge.
Essa impressão que o texto passa, contudo, não deve enganar o
estudioso da Bíblia. Isso porque, na verdade, à luz da gramática grega e
do ensino geral do Novo Testamento, a cláusula de exceção
pronunciada por Jesus só pode ser aplicada ao repúdio e não ao novo
casamento.
[126]
De fato, um número notável de grandes exegetas é unânime em
dizer que, no texto em questão, a exceção é aplicável apenas ao
divórcio, permanecendo vedado o segundo casamento, mesmo em
casos de adultério.
E o que explica o doutor em lıń guas bıblicas Carlos Osvaldó
Cardoso Pinto:

As palavras de Jesus em Mateus 19.9,


conforme entendidas por todosos comentaristas
cristãos até o século XVI (com a única
exceção, Ambrosiastro, no século IV),
declarava que recasamento depois de divórcio
implica adultério para todosos envolvidos...
Essa posição, menos popular e praticamente
mais complexa, entende que a frase “exceto
em caso de relações sexuais ilícitas” (a
chamada “cláusula de exceção”) modi ica
apenas a frase “Se um homem se divorciar
de sua mulher”, o que, em linguagem
técnica, se chama prótase (oração
condicional) e não a frase seguinte, “e
casarcom outracomete adultério”, que os eruditos
chamam
[127]
de apódose (oração principal).

Continuando sua exposição, o professor a irma que “a gramática e


a estatıś tica do Evangelho de Mateus exigem que a cláusula de exceção
se re ira apenas à frase que a precede”. Daı ́ conclui que “o sentido das
palavras de Jesus em Mateus 19.9 seria, portanto: ‘O marido não pode
repudiar (divorciar-se de) sua mulher a não ser que ela seja
culpada de comportamento sexual ilıć ito.’ E mais: ‘Quem se casar
depois de
[128]
repudiar sua esposa comete adultério’.”
Ao im de toda essa discussão, alguém poderá perguntar: Por que o
nexo matrimonial é tão forte até o ponto de somente a morte poder
quebrá-lo? A resposta a essa questão está no fato de o casamento não
ser um simples contrato irmado entre duas partes, produzindo efeitos
meramente naturais. Antes, o casamento tem origem divina,
produzindo nexos que ultrapassam a compreensão humana.
Recorde-se mais uma vez que, segundo a Bíblia, quando duas
pessoas se casam, ambas se tornam uma só carne (Gn 2.24), passando a
existir um elo tão forte entre elas que a simples separação de corpos ou
a distância geográ ica é incapaz de quebrar.
Trata-se, portanto, de um elo mais forte que o da iliação. Com
efeito, todos sabem que o vıń culo natural entre pais e ilhos é fortıś
simo, de maneira que ninguém deixa de ser ilho pelo simples fato de
não conviver mais com os pais. Ora, se é assim no caso do elo natural de
iliação, muito mais forte deverá ser considerado o elo sobrenatural do
casamento em que as partes são tidas como “uma só carne”, algo jamais
dito acerca da relação pai/ ilho.
Vê-se, desse modo, que a ética cristã do casamento é
extremamente elevada e deve ser defendida a todo custo nos dias
modernos. Aliás, é signi icativo que João Batista, o primeiro mártir do
Novo Testamento, foi preso e decapitado precisamente por defender a
ética bıb́ lica do matrimônio (Mt 14.3-12), o que deveria inspirar os
cristãos modernos a se dispor muito mais na defesa desses mesmos
valores.
Concluindo, em face de tudo que foi dito, a igreja de Deus não
pode concordar com o segundo casamento de alguém cujo cônjuge
ainda esteja vivo. Por isso, essa igreja não incentivará nem promoverá o
casamento de pessoas nessa condição, apontando o erro de quem segue
nessa direção.
Entretanto, é bom destacar que pessoas divorciadas que chegam à
igreja já tendo constituıd́ o nova famıĺ ia não devem ser rejeitadas.
Evidentemente, nesses casos, não há nada que fazer senão aceitar a
situação tal qual se encontra, pois seria muito prejudicial forçar a
dissolução do segundo casamento e quase sempre impossıv́el viabilizar
a restauração do primeiro. Por isso, crentes nessas condições devem
ser recebidos normalmente na igreja, sendo-lhes apenas vedada a
ocupação de cargos de liderança ou orientação espirituais (1Tm
3.2,12).

Perguntas frequentes

1) É necessário que o crente se case na igreja?


Não. Conforme visto, o casamento na igreja não é
sequer mencionado na Bíblia. Já foi exposto que nos
tempos do AT existiam formalidades muito diferentes das
realizadas em igrejas cristãs. Também nos tempos do
NT, os casamentos seguiam rituais que envolviam
cortejos, banquetes e festividades. Essas são as formas de
casamento mencionadas na Bíblia. Nenhuma cerimônia na
igreja é mencionada, ainda que essa seja uma boa
e útil tradição.

2) Uma pessoa que convive há décadas com outra,


tendo ilhos ebens em comum, sem, no entanto,
casar-se, tem vínculo conjugal com seu consorte?
Não, não tem. O vínculo conjugal não se perfaz com
a passagem do tempo, nem com o nascimento de
ilhos, nem com a aquisição conjunta de bens. Tudo que a
passagem do tempo faz numa relação de
convivência entre um homem e uma mulher não
casados é tornar seu pecado mais velho, pois qualquer
conúbio carnal fora do matrimônio é pecado.
Comodito acima, para que o vínculo conjugal se
perfaça, é preciso que haja vontade livre, ato solene
e intercurso sexual. No caso em pauta, falta o ato
solene. Portanto, não há vínculo conjugal unindo o
casal hipotético mencionado na pergunta.

3) É possível que alguém estabeleça vínculo conjugal


com mais deuma pessoa?
Sim, é errado, mas é possível. A Bíblia vislumbra
essa possibilidade, fazendo alusão a homens com mais de
uma esposa (recorde-se os vários personagens do AT
e também 1Tm 3.2,12).
O fato é que sempre que se realizarem os três
fatores que perfazem o casamento (vontade livre, ato
solene e intercurso sexual), o vínculo surgirá, mesmo
que o outrocônjuge ainda esteja em vida. Isso, no
entanto, gerará uma condição de bigamia (ou até
poligamia), reprovada na Bíblia.
4) A pessoa que se divorcia e se casa
novamente, estando o seu exconsorte ainda em
vida, não passa a viver em adultério permanente?
A relação sexual inaugural da pessoa que contrai
novas núpcias estando o seu ex-consorte ainda em
vida é uma relação adulterina, como se depreende de
Mateus 5.31, 19.9 e Romanos 7.2-3.
Essa relação, porém, uma vez consumada e estando
presentes os outros dois elementos que perfazem o
casamento (a vontade livre e o ato solene) gera
vínculo, tornando o novo consorte um cônjuge de fato.
A partir daí, não se pode mais dizer que as relações
sexuais do novo casal são adulterinas, postoque ambos
estão realmente casados entre si.
O quese poderá dizer é que vivem numa
situação irregular de bigamia (o que impede o
exercíciode cargos de liderança na igreja, nos
termos de 1Tm 3.2,12), mas não na condição de
adúlteros(o que os impediria até de serem membros da
igreja), postoque o casamento deles existe e é real,
[129]
aindaque seja irregular.
É bom frisarque na igreja do NT haviahomens com
mais de uma esposa.
Do contrário, Paulo não teria de fazer as restrições
encontradas em 1Tmóteo 3.2,12. Talvez os homens
a que Paulo se refere fossem considerados maridos
de mais de uma mulher por terem se casado
novamente estando o ex-cônjuge ainda em vida. É
curioso, porém, que não há nenhuma ordem para que
aqueles homens sejam disciplinados por viver em
adultério. Existe somente a orientação para que não
assumam cargos de liderança espiritual. Esse é um forte
indício de que o recasamento não implica adultério
permanente. Se fosse assim, não haveria como manter
aqueles homens mencionados em 1Timóteo 3.2,12 na
membreziada igreja.

5) Como tratar os casais que chegam à


igreja e não são casados, vivendo uma relação de
concubinato?
O pastor deve orientá-los a suprir o elemento que
falta para o surgimento do vínculo conjugal — no caso,
o ato solene. Isso poderá ser feito por meio do
casamento civil.

6) Como receber na igreja os casais que


vivem em concubinato, mas um dos conviventes é
divorciado?
O ideal é que se separem e que a parte
divorciada se reconcilie com o excônjuge ou
simplesmente ique só (1Co 7.10-11). Porém, muitas
vezes, a convivência de um casal assim é
muito antiga, tendo gerado ilhos e muitos
liames entre os cônjuges. Nesses casos, a
separação entre ambos e/ou a volta do divorciado
para seu cônjuge anterior são, geralmente, impossíveis
ou podem trazer danos ainda maiores às
pessoas envolvidas (especialmente os ilhos).
O fato é que várias situações com as quais o
pastor e a igreja precisam lidar não têm solução
perfeita. Então, o melhor é reduzir os erros até
onde for possível, fazendo apenas com que o casal se
case, saindo pelo menosda relação de concubinato.

7) Como o pastor deve lidar com a ameaça de


ser punido peloEstado, caso se recuse a
realizar casamentos homossexuais?
Ele deve enfrentar corajosamente a situação, mantendo-se
irme em suas convicções. Na Bíblia, é ensinado que as
ordens das autoridades humanas não podem ser
postas acima da Palavra de Deus e que os
santos devem preferir o castigo humano a se
curvar diante de ordens que contrariam a vontade
do Senhor (Dn 3.13-18; 6.6-10; At 4.18-20).

8) Que orientações seriam úteispara o pastor


seguir na realizaçãode uma cerimôniade
casamento?
Devido à profunda preocupação de harmonizar
todosos atos da igreja com o que está disposto na
Palavra de Deus, somente casamentos entre pessoas que
não estejam em jugo desigual devem ser realizados pelo
pastor. Assim, ele jamais deve celebrar a cerimônia
de enlace de um crente com um incrédulo (1Co 7.39; 2Co
6.14-16).
Também em face de suas convicções ético-doutrinárias,
sempre fundamentadas na Sagrada Escritura, o pastor
não realizará casamentos entre pessoas divorciadas (Mt
5.31; 19.9).
À igreja que quer ser zelosa, recomenda-se que
todasas cerimônias de enlace feitasem suas dependências
sejam realizadas pelo seu próprio pastor. A eventual
participação de outros pastores na cerimônia deverá ser
precedida de cuidados, pois não se pode admitir que
programas conduzidos por pessoas sem nenhum preparo
comprometam a identidade e o bom nomeda igreja
diante do número enorme de convidados presentes a
esses eventos.
Visando também à preservação de sua identidade,a
igreja cuidadosa terá controle sobreas participações
especiais nos programas de casamento, cuidando para que
sejam feitassomente por pessoas crentes.
Capítulo 13 – A LIBERDADE E A
CONDUTA CRISTÃ

Com a proliferação das seitas evangélicas, acompanhada da


crescente ignorância do povo acerca do que a Bíbliaensina, um número
enorme de pessoas que se dizem cristãs passou a se sujeitar a severos
sistemas de conduta inventados por homens, sempre sob a ameaça da
perda da salvação para aqueles que tentam se livrar desses jugos.
Normas que restringem a vestimenta, o corte de cabelo e o uso de
maquiagem para as mulheres; regras que vedam a ida ao cinema, à
praia e aos estádios de futebol; leis que proıb́ em ouvir música secular
e assistir à televisão; e, especialmente, regulamentos que impõem a
guarda de dias e a abstenção de alimentos fazem parte da vida religiosa
de muita gente que, sob a ilusão de estar fazendo o que Deus manda,
vive debaixo de intensa escravidão.
O fato é que a liberdade para a qual Cristo libertou o homem salvo
(Gl 5.1) não é nem de longe conhecida por esse povo infeliz que,
quando se vê cansado sob o peso de tantas exigências, busca alıv́ io na
hipocrisia, na farsa e na tentativa de fazer as coisas às escondidas.
A igreja de Deus não compactua com essas ou outras formas de
escravidão. Nela a liberdade do crente é preservada e protegida como
um bem precioso conquistado na cruz (1Co 7.23) — um bem do qual o
cristão deve desfrutar com sabedoria, equilıb́ rio, maturidade e amor.

Os critérios para o desfrute da liberdade cristã

O cristianismo não é uma religião caracterizada por proibições.


Com efeito, o apóstolo Paulo ensina que todas as coisas são lıć itas para
os crentes (1Co 6.12; 10.23), e que o servo do Senhor não deve se
deixar escravizar por regrinhas tolas (Cl 2.20-23). Por isso, a igreja de
Deus não mantém nenhum conjunto de normas legalistas que diga o
que o crente pode ou não fazer.
Contudo, é preciso levar em conta que, no mesmo texto em que
Paulo diz que todas as coisas são lıć itas, também diz que nem tudo
convém e que o crente não pode se deixar dominar por nada (1Co
6.12). Noutra passagem, o apóstolo acrescenta que, apesar de todas as
coisas serem lıć itas, nem tudo edi ica (1Co 10.23b).
Paulo declara ainda que não é certo fazer qualquer coisa que
escandalize ou entristeça um irmão, mesmo quando o que se faz não
seja necessariamente errado (Rm 14.21; 1Co 8.13; 10.32). Ele explica
que isso deve ser levado muito a sério porque o amor se situa acima da
liberdade (Rm 14.15; 1Co 8.9; Gl 5.13).
Assim, para desfrutar de sua liberdade de maneira sábia, o crente
deve avaliar suas ações sob a luz de quatro perguntas:

1. O que faço ou pretendo fazer convém a um cristão?


2. Esse modo de agir edi ica?
3. A prática que tenho adotado está me escravizando?
4. Ao fazer isso, algum irmão em Cristo ica escandalizado, triste
ou decepcionado comigo?

Se responder honestamente a essas perguntas, o crente, mesmo


livre do pesado fardo das regras legalistas, evitará, por exemplo, as
diferentes formas de excesso (na comida, na bebida ou no lazer), o
modo de vestir impróprio (1Tm 2.9-10; 1Pe 3.3-4) e a escravidão ao
trabalho, à TV, à Internet ou às redes sociais. Ele também será tolerante
e paciente no trato com os irmãos que nutrem escrúpulos diferentes
dos dele.
Desse modo, a vida do crente maduro jamais será pautada por
regrinhas sem im. O que determinará sua conduta serão os critérios
acima elencados, os quais são mais sólidos e e icazes do que meras
normas exteriores.
E por isso que, na igreja de Deus, os membros não são forçados a
usar esse ou aquele tipo de roupa, não são ensinados, no caso das
mulheres, a usar ou deixar de usar maquiagem, não são proibidos de
ouvir música nem de assistir à televisão, não são ensinados a evitar
este ou aquele alimento (Mc 7.15-20; Rm 14.1-3,6; 1Tm 4.1-5; Hb 13.9),
nem são exortados a guardar o sábado, o domingo ou outro dia
qualquer (Rm 14.5; Gl 4.10,11; Cl 2.16-17).
Em vez disso, o que é exigido de cada um é que aja levando
sempre em conta o que convém, o que edi ica, o que não escraviza e o
que não fere a consciência dos irmãos. Nenhuma outra carga pode ou
deve ser colocada sobre os ombros dos crentes.

As festas e símbolos religiosos

Ainda que para alguns, o assunto pareça de pouca relevância, é


notável o número de pessoas que procuram orientação pastoral no
tocante a ser lıć ito ou não ao cristão ter em casa um pinheirinho de
Natal ou comprar um ovo de Páscoa. Muitos desses questionamentos
surgem como resultado de preocupações reais, uma vez que há
vários lıd́ eres eclesiásticos dizendo que semelhantes festas
(especialmente por causa das datas em que são comemoradas) e seus
respectivos sıḿbolos são de origem pagã e, por isso, o cristão deve se
afastar de tudo que está ligado a essas coisas.
Esse modo de ver as coisas, porém, não é correto. Na verdade, as
bases sobre as quais essas opiniões se fundamentam são
excessivamente frágeis e não suportam o confronto histórico ou bıb́
lico, sendo apenas uma espécie de “terrorismo psicológico” travestido
de zelo espiritual, tudo com o objetivo infantil de impressionar os mais
simples com sua aparência de seriedade.
Em primeiro lugar, deve-se salientar que as origens pagãs de um
costume não podem, por si só, torná-lo inválido ou reprovável.
Inúmeros são os elementos da cultura moderna que surgiram da mais
detestável superstição pagã e, no entanto, são recebidos por crentes e
incrédulos com toda a naturalidade. Na verdade, é impensável e até tola
a mera sugestão de bani-los.
Vejam-se alguns exemplos: o costume de a noiva vestir-se de
branco para a cerimônia do casamento, a instalação de lareiras dentro
de casa, a construção de muros nos limites das propriedades, o uso de
colares, pulseiras e outros ornamentos, a realização de festas de
aniversário... Todas essas práticas tão comuns no dia a dia das pessoas
de hoje são apenas alguns exemplos de costumes que nasceram no seio
da religião pagã dos povos antigos, sempre com conotações cultuais e
com o objetivo de obter o favor de falsos deuses.
Acresçam-se a isso tudo os conceitos atualmente tão familiares de
adoção, cidadania, propriedade e herança, todos oriundos do
[130]
paganismo pré-cristão. Ora, se a origem pagã de algo o torna ilıć
ito, como os crentes devem reagir a isso tudo? Devem remover as
lareiras de suas casas? Devem quebrar seus muros? Devem proibir
que as moças da igreja se casem de branco? Devem evitar festas de
aniversário? A simples menção dessas questões mostra quão absurdo
é o rigor de quem se insurge contra enfeites de Natal ou ovos de
chocolate!
O fato é que, se a origem pagã de uma prática constituıś se fator
su iciente para que essa mesma prática fosse rejeitada, os cristãos não
poderiam sequer praticar esportes, já que os jogos olıḿpicos, nas suas
mais diversas modalidades, surgiram no contexto religioso helenista da
[131]
Antiguidade.
Em face disso tudo, é possıv́ el deduzir o seguinte princıṕ io:
quando o crente se vê diante de um determinado costume, não deve
olhar para as suas origens, mas sim para o propósito com que o
referido costume é praticado no presente. E a partir dessa análise que
se deve concluir se tal costume é bom ou mau.
Esse princıṕ io será denominado aqui Princípio da
Legitimidade de Propósitos. Tendo-o em mente, será possıv́el
perceber, por exemplo, que não há nada de errado em ter lareira em
casa, pois, ainda que essa prática, quando se originou entre os pagãos,
tivesse por propósito manter acesa a chama dos deuses nos lares (daı ́
o nome “lareira”), hoje seu propósito é outro: o homem moderno que
constrói uma lareira quer apenas aquecer sua casa, nada mais.
Se esse mesmo princıṕ io for aplicado a certos costumes que há
nas igrejas de hoje, será possıv́el descobrir facilmente que os
propósitos com os quais são observados nem sempre são reprováveis,
nada havendo de errado em mantê-los.
Considerem-se agora, à luz disso tudo, as eventuais (e
improdutivas!) controvérsias sobre pinheirinhos, ovos de Páscoa e
coisas do gênero. Se os pagãos dos tempos antigos veneravam o
pinheiro como sıḿbolo de imortalidade, ou davam ovos de presente
para manter viva a crença nos deuses da fertilidade, ou mesmo
adoravam (num determinado dia) esta ou aquela “deusa-mãe”, nenhum
desses propósitos persiste atualmente quando alguém enfeita um
pinheiro no Natal, compra ovos de Páscoa ou comemora o Dia das
Mães.
Os pinheiros de Natal de hoje têm propósitos meramente
ornamentais, distribuir ovos de Páscoa tem o simples alvo de deixar as
crianças contentes e comemorar o Dia das Mães tem como objetivo
somente dizer a elas um “muito obrigado” de forma mais especial.
Tudo isso é muito lógico. Contudo, não é só com a ajuda do
raciocıń io lógico que o crente deve adotar o princıṕ io da legitimidade
de propósitos. Na verdade, esse princıṕ io está presente nas Sagradas
Escrituras de modo surpreendente!
De fato, há algumas notáveis ocasiões em que a Bíbliaatribui
pecaminosidade ao propósito de uma prática — e não à pratica em si.
Por exemplo: no Antigo Testamento, Deus proıb́ e fazer imagens de
escultura (Ex 20.4). No entanto, o mesmo Deus ordenou que dois
querubins de ouro fossem fabricados e colocados sobre o propiciatório,
cobrindo a arca da aliança (Ex 24.17-22). Também é dito no livro de
Números que o Senhor ordenou que Moisés izesse uma serpente de
bronze para a qual os israelitas picados por serpentes deviam olhar a
im de ser curados (Nm 21.4-9).
Desses exemplos se conclui que o pecado não estava em fazer
uma imagem, mas sim no propósito com o qual a imagem fosse feita. As
imagens de ouro dos querubins sobre a arca tinham o propósito de
ilustrar a presença, a santidade e a glória de Deus; e a imagem da
serpente de bronze tinha o propósito de curar os israelitas que para ela
olhassem, simbolizando também a morte de Cristo, que, como aquela
serpente, seria “levantado” um dia (Jo 3.14-15). Uma vez que o
propósito daquelas imagens era bom, nada havia de errado em
construı-́ las e, de fato, o Senhor mesmo ordenou que as izessem.
Vale insistir, portanto, no fato de que o pecado não está em ter ou
fazer uma escultura, mas sim no uso que se faz dela. Aliás, deve-se
lembrar que quando Deus proibiu que se izessem imagens, mostrou
que o erro seria adorá-las e curvar-se diante delas (Ex 20.5). Quando o
propósito das imagens fosse a ornamentação ou a ilustração, como
visto acima, nada havia que condenar.
A citada história da serpente de bronze, quando considerada em
seu todo, ilustra ainda mais o princıṕ io da legitimidade de propósitos.
A Bíbliamostra que, enquanto o objetivo daquela imagem foi fazer com
que os israelitas exercitassem sua fé ao olhar para a serpente
esperando a cura, ou enquanto permaneceu apenas como um sıḿbolo
de Cristo, que também um dia salvaria todos os que para ele olhassem,
nada houve de errado em manter a serpente de bronze entre o povo.
Quando, porém, o propósito com que a mantinham mudou, e os
israelitas passaram a guardá-la com o objetivo de adoração,
queimando-lhe incenso e chamando-a de Neustã, foi necessário
destruı-́ la (2Rs 18.1-4). O bom propósito pelo qual foi feita foi
substituıd́ o por um propósito perverso e, por isso, não foi possıv́el dar
continuidade à sua preservação.
Fica, pois, provado que as Escrituras Sagradas admitem o
princıṕ io exposto aqui, a saber: muitas vezes, a manutenção de
certas práticas ou costumes é válida dependendo das razões que a
motivam. Em outras palavras, uma mesma prática pode ser certa ou
errada, dependendo do propósito com o qual é mantida.
Desviar-se de passar por debaixo de uma escada pode ou não ser
pecado. Se alguém se desvia para evitar o azar, como fazem os tolos em
geral, comete o pecado da superstição. Se, entretanto, alguém se desvia
porque vê a possibilidade de uma lata de tinta cair na sua cabeça,
demonstra prudência.
Note-se que, em ambos os casos, a conduta é idêntica. Contudo,
cada hipótese é motivada por razões distintas: uma reprovável, outra
não. No primeiro caso, o que se desvia da escada incorre no desagrado
de Deus; no segundo, o que se desvia demonstra cautela, o que Deus
aprova, já que sempre censura os incautos em sua Palavra.
Aplicando tudo isso à questão de festas cristãs tradicionais
(notadamente o Natal e a Páscoa) acompanhadas de seus sıḿbolos
tantas vezes mantidos dentro de casa e da igreja, conclui-se que nada
obsta a sua manutenção, uma vez que os propósitos que abrigam são
aceitáveis e em nada perniciosos.
E importante que uma ressalva seja feita aqui. Se essas práticas
deixam pessoas da igreja escandalizadas e confusas, o melhor será não
mantê-las. A paz no seio da igreja é mais importante do que a
decoração — e é melhor manter a unidade do que as tradições.
A liberdade de que os crentes desfrutam na casa de Deus ou em
qualquer lugar deve ser limitada pelo amor aos irmãos, conforme já foi
destacado (Rm 14.15-16,19-21; 15.1-3; 1Co 8.9-13). Se o uso dessa
liberdade faz alguém sofrer, que se abra mão dela, pois nenhum
proveito haverá em iluminar um pinheiro com lâmpadas coloridas e
deixar o próprio coração na escuridão do descaso e da indiferença para
com os que, entre os santos, estão incomodados e tristes.
Duas questões

1) Os pais crentes podem deixar seus ilhos


participarde festas juninas e das comemorações de
Halloween?
Se o propósito das festas juninas é manter
acesaa tradição cultural e religiosa do povo brasileiro em
seu aspecto de veneração a Santo Antônio, São João
e São Pedro (e esse parece ser o caso),
então nenhum crente deve participar delas.
Ainda que certo tom de inocência e ausência de
malícia permeie essas comemorações, é inegável que as
escolas, na busca de seus objetivos sociais, que incluem
situar os pequeninos no ambiente cultural em que
nasceram, e no deverde ensinar aos alunos de
modoilustrativo as tradições do seu povo, nunca poderão
deixar de dar às festas juninas cunho
fundamentalmente católico-romano. Tanto isso é
verdade que as imagensdos “santos” celebrados estão sempre
presentes nessas festividades.
Sendo, portanto, esses os objetivos dessas festas, os
pais cristãos não devem permitir que seus ilhos participem
delas e devem aproveitar a oportunidade para ensinar aos
pequeninos que os crentes em Cristo têm um só
Deus e é somente a fogueira de adoração a ele
que deve ser mantida sempre acesano coração (Dt 6.4-
7).
Quanto às comemorações de Halloween, é possível que
um de seus objetivos, além da diversão, seja a
banalização do mal sobrenatural, criando e nutrindo a
mentalidade de que os poderes de trevas são
apenas temas de brincadeiras. Mais uma vez, se for esse
o caso, os crentes não devem de forma alguma
cooperar com o sucesso desse tipo de evento.
2) Se não é errado fazerimagens para ins
decorativos ou didáticos, por que os crentes não
usam iguras e estátuas somente com esses
objetivos?
Na verdade, os crentes usam imagens religiosas com esses
objetivos. Os livros infantis adotados nas classes de
crianças das igrejas evangélicas são repletos de iguras
de Maria, de José, de Jesus, dos profetas e dos
apóstolos. Em muitas igrejas evangélicas também
existem quadros com temas bíblicos e até cruzes
ornamentando as paredes. Nenhum crente se opõe a
isso porque sabe que o objetivo dessas iguras é
o ensino e a decoração, nunca a veneração.
Já no tocante à questão das imagens esculpidas, a
história eclesiástica alerta para o fato de que seu uso,
mesmo para ins de decoração, não é recomendável. Os
vários séculos de história do cristianismo revelam
que, por alguma razão, diante de estátuas de
natureza religiosa, o vulgo, movido pela ignorância e pela
superstição, logo passaa venerá-las, desvirtuando o
propósito original para o qual foram feitas(Veja-se o
já citado texto de 2Rs 18.1-4).
Por isso, a igreja cuidadosa não tem nenhuma imagem
de escultura, nem mesmo para ins de estética. Essa foi
uma lição aprendida a partir da longa observância de
fatos passados.
Capítulo 14 – A PRÁTICA DE
ENFRENTAR A MORTE

A igreja de Deus, representada na pessoa de cada um dos seus


membros, deve aprender a se comportar adequadamente diante da
morte. O estilo de vida do crente verdadeiro não é mera representação
teatral que, em face dos mais profundos sofrimentos da vida, permite
tirar a máscara de santidade e revelar desespero e ódio contra Deus. Ao
contrário, a verdade é que no enfrentar das situações realmente difıć
eis, nas quais é impossıv́el manter qualquer grau de hipocrisia ou falsa
piedade, a magnitude do caráter cristão maduro desponta com brilho
ainda maior.
Que situação mais difıć il o homem pode enfrentar do que a
morte? E ela o terrıv́el legado que a humanidade herdou dos seus
primeiros pais, que desobedeceram ao Criador no Eden (Gn 2.15-17;
3.19; Rm 5.12). E o pagamento indesejado que o ser humano recebe por
ter pecado (Rm 6.23). E o im para o qual cada um caminha a passos
largos (Ec 12.1-7). Mais do que isso, é o inimigo inexorável que vem no
encalço de todos para, no inevitável dia do encontro, deixá-los
prostrados, sem exceção (Lc 12.20).
Que é ensinado na igreja de Deus sobre o modo como o cristão
deve se comportar diante da morte? Conforme o entender dos mestres
dessa igreja, qual deve ser a postura do crente quando um ente querido
seu parte desta vida? Como ele pode ajudar de modo real e signi icativo
os enlutados? E quando a morte, en im, o vier chamar, como deverá
proceder?
As respostas dadas a todas essas perguntas devem ter como
fundamento as Sagradas Escrituras. E na Bíbliaque se obtêm respostas
claras e precisas para todas as questões relacionadas à morte, o cruel e
último inimigo.
Práticas salutares para o crente enlutado

O Livro Sagrado mostra que, quando se perde um ente querido, a


tristeza e o choro diante de fato tão doloroso não são censuráveis.
Davi, homem de Deus, pranteou amargamente a morte de seu
ilho Absalão (2Sm 18.32-33). Marta e Maria foram consumidas de
tristeza pela morte de Lázaro, morte essa que levou o próprio Senhor
Jesus, doador da vida, às lágrimas (Jo 11.33-35). O historiador Lucas
conta que, quando Estevão morreu apedrejado, homens piedosos o
sepultaram e izeram “grande pranto sobre ele” (At 8.2). O mesmo
Lucas narra o quanto os crentes de Jope choraram a morte de Dorcas,
irmã amada por todos daquela igreja (At 9.36-39).
Com efeito, inúmeros são os exemplos de homens e mulheres de
Deus que choraram muito quando viram seus queridos mortos.
O apóstolo Paulo ensina que, quando o falecido é crente, o
desespero por sua morte deve ser evitado. Entretanto, Paulo não diz
que é errado se entristecer nessas ocasiões. Na verdade, diz apenas que
o cristão não deve se entristecer “como os demais que não têm
esperança” (1Ts 4.13). Conforme se deduz do ensino do apóstolo, esse
tipo de tristeza tão comum nos incrédulos só se aloja no coração de um
crente quando ele esquece o fato de que os salvos ressuscitarão um dia.
De fato, para Paulo, a amarga tristeza dos incrédulos enlutados
está associada à sua falta de esperança. Logo, segundo o apóstolo, os
crentes não devem se entristecer como eles, uma vez que, cientes da
ressurreição futura, têm real esperança (1Co 15; 1Ts 4.13-18). E, não
bastasse essa bendita certeza, vem ainda em auxıĺ io dos crentes
enlutados a lembrança do lar celestial, presente morada das almas dos
santos que partem deste mundo (Lc 16.22; 23.42-43; Fp 1.21-23; 2Tm
4.18).
E claro que esses consolos não funcionam na hipótese de o
defunto ser incrédulo. Porém, mesmo nesses casos, não ica o crente
desamparado, pois conta com a atividade sobrenatural do Consolador
Divino, que lhe alivia as mais profundas dores (Jo 14.16-17; Rm
8.2627), podendo ainda descansar na realidade da soberania de Deus.
Segundo a Bíblia, uma prática que pode ajudar muito o coração
enlutado é o isolamento temporário. Esse isolamento tem por
propósito o dedicar-se à oração e não deve ser feito em prejuıź o de
deveres e responsabilidades comuns.
Isso se aprende com o exemplo do próprio Mestre. Quando Jesus
recebeu a notıć ia de que João Batista havia sido decapitado (Mt
14.112), procurou um lugar isolado (Mt 14.13). O grande assédio de
uma multidão doente e faminta interrompeu seu retiro por algum
tempo (Mt 14.13-21). Porém, depois de cumprir seu trabalho, ele
buscou novamente o isolamento e orou só, sobre o monte (Mt 14. 22-
23). Mateus diz que esse isolamento em razão do luto durou cerca de
dez horas (Mt 14.25)!
Talvez os crentes entristecidos pela morte de alguém icassem
surpresos com o efeito restaurador e didático dessa prática.
Infelizmente, o que se veem com frequência são cristãos enlutados
derramando o coração diariamente diante de amigos, psicólogos,
pastores e conselheiros. E claro que isso tem seu lugar e valor, mas
nada pode substituir a busca do consolo de Deus, diante de quem se
deve derramar o coração todo o tempo (Sl 62.8; Mt 11.28-30; Fp 4.6-7)
e em cuja Palavra é possıv́el encontrar alıv́ io para a alma (Sl 19.7;
119.50).
No episódio narrado por Mateus e citado acima, é notável outro
exemplo deixado pelo Mestre. O texto mostra que, mesmo entristecido
pela morte tão cruel de João, o Senhor Jesus Cristo, ao invés de ser
amparado, amparou os outros. Ele socorreu uma multidão necessitada,
quando seu próprio coração sofria (Mt 14.14, 19-21). Nisso também os
crentes devem imitar seu Salvador. Devem ser como o trigo que,
esmagado, produz pão puro para alimentar os que estão ao redor.
Outra lição acerca do comportamento do crente enlutado está no
livro de Jó. Todos conhecem a tocante história desse homem piedoso
que perdeu bens, saúde e ilhos em meio a uma tempestade de provas
que o Senhor lhe enviou (Jó 42.11). Todos também conhecem aquelas
que talvez sejam suas palavras mais marcantes, pronunciadas logo
depois que recebeu a notıć ia da morte de seus ilhos: “…o Senhor o deu,
e o Senhor o tomou; bendito seja o nome do Senhor!”. O texto bıb́ lico
diz que Jó fez essa declaração após ter se lançado em terra, em atitude
de plena adoração a Deus (Jó 1.18-21).
Isso mostra que, quando está enlutado, o cristão deve fazer que
de seus lábios lua o louvor decorrente do reconhecimento da soberania
de Deus. Trata-se de um gesto chamado pelo autor da carta aos
Hebreus de “sacrifıć io de louvor” (Hb 13.15), ou seja, um louvor
associado à dor, que brota do coração sangrento de quem sofre. Esse
tipo de louvor só pode ser esperado do homem que confessa Jesus
Cristo e descansa na certeza de que todas as coisas o Senhor realiza de
conformidade com sua vontade boa e soberana.
Por isso, quando morre um ente querido, não é correto o crente
icar perguntando inconformado por meses e anos a io: “Por quê? Por
quê? Por quê?”. Na Bíbliaestá escrito que é pecado discutir com Deus e
questionar suas ações (Jó 38.1-2; 40.1-2; Is 45.9; Rm 9.20). Proceder
desse modo pode ser evidência de fé rasa, de má compreensão de quem
é o Senhor e de disfarçada revolta contra sua vontade soberana.

A prática de lidar com os enlutados

Convém agora falar acerca de como o crente deve agir diante de


pessoas que sofrem a dor da separação ocasionada pela morte de um
parente ou amigo. E comum nessas ocasiões que vários indivıd́ uos
tentem desempenhar o papel de consolador, dizendo palavras com as
quais pretendem suscitar certo conforto nos que pranteiam.
Infelizmente, porém, esses consoladores (alguns deles se
apresentam até como pastores!), muitas vezes, dizem as mais
grosseiras tolices e devaneios, acreditando que seus ares arti iciais de
sabedoria podem emprestar autoridade às palavras absurdas que
proferem. Um diz que o incrédulo morto descansou (!); outro, que, de
algum lugar, a alma do defunto estará cuidando agora daqueles que
aqui permanecem; e outro, ainda, ica enaltecendo virtudes imaginárias
do falecido, suscitando dúvidas nos presentes sobre se vieram ao
velório da pessoa certa.
Todas essas demonstrações de ignorância são absolutamente
infrutıf́eras. E na Bíbliaque se aprende como ajudar os enlutados. Paulo
ensina em 1Tessalonicenses 4 com que palavras se devem consolá-los.
Ele diz nos versıć ulos 13-17 que, assim como Jesus morreu e
ressuscitou, Deus, mediante Jesus, um dia trará juntamente em sua
companhia os crentes que morreram. Diz ainda que o Senhor, depois de
dar sua palavra de ordem, uma vez ouvida a voz do arcanjo e ressoada
a trombeta de Deus, descerá dos céus, e os crentes mortos
ressuscitarão. Diz também que os cristãos que estiverem vivos nesse
dia serão arrebatados junto com os que hão de ser ressuscitados e,
entre nuvens, todos subirão ao encontro do Senhor nos ares e, então,
estarão para sempre com ele.
Depois de expor tudo isso, Paulo diz: “Consolai-vos, pois, uns aos
outros com estas palavras” (v. 18). Por isso, todos os cristãos devem
conhecer a fundo “estas palavras”. Isso os tornará mais úteis no auxıĺ io
dos que sofrem em razão da separação, evitará que emudeçam diante
dos que, inconsoláveis, pranteiam a morte de alguém e colocará freio
nos desvios que os indoutos proclamam em momentos tão propıć ios à
re lexão da verdade.
Evidentemente, as palavras que Paulo escreveu servem apenas
para o consolo dos que choram a morte de crentes. No texto analisado,
o apóstolo ensina sobre a tranquilidade que se pode ter quando se
pensa nos mortos em Cristo (1Ts 4.16).
Em se tratando da morte de incrédulos, nenhuma palavra
agradável pode ser dita a respeito do estado ou do lugar em que a alma
deles se encontra. Isso porque a Palavra de Deus é extremamente
amarga quando fala sobre o destino eterno dos que não receberam
Jesus Cristo, crendo nele como Salvador de sua vida. Tais pessoas,
segundo as Escrituras, estão condenadas ao tormento eterno no
inferno, preparado para o diabo e seus anjos, onde o verme não morre
e o fogo nunca se apaga! (Mt 25.41,46; Mc 9.43-48; Lc 16.19-31; Jo 3.36;
2Ts 1.7-9; Jd 13; Ap 20.11-15).
E claro, porém, que o cristão deve ter tato. Há maneiras sábias e
ocasiões mais propıć ias para dizer essa verdade aos queridos de um
incrédulo que morreu. Por isso, na hora mais pesada do luto pela morte
de um perdido, é recomendável que o crente concentre suas conversas
e discursos não na condição espiritual do defunto (que já não importa
mais), mas na condição espiritual dos ouvintes. Esse proceder
preservará o que realmente é importante e livrará o crente de situações
embaraçosas.
E evidente, entretanto, que se alguém perguntar sobre o destino
da alma do falecido incrédulo, o cristão terá de, cuidadosamente, dizer
a verdade. O consolo enganador é obra do mundo e do diabo, não dos
ministros de Cristo. E é melhor os ouvidos dos enlutados serem
alertados por verdades dolorosas que o coração deles ser iludido com
uma falsa paz.
Uma forma sábia de agir diante de perguntas embaraçosas
formuladas nesses momentos é fazer o interlocutor chegar a suas
próprias conclusões. Basta lhe responder brandamente com perguntas
do tipo: “A Bíbliadiz que só os crentes em Cristo são salvos. Ele era
crente em Cristo?”. Respondendo a essa questão, o interlocutor chegará
às suas próprias conclusões, sejam elas tristes ou não. Caso responda
que não sabe, então o servo do Senhor deverá dizer: “Se não sabemos
se ele morreu tendo fé em Cristo ou não, também não podemos saber
onde a alma dele está”.

O crente em face de sua própria morte

Finalmente, é mister que o crente aprenda, ele mesmo, a morrer.


Não somente a vida do cristão deve servir de exemplo de piedade a
todos, mas também a sua morte (Rm 14.8). Não há dúvida, contudo, de
que aprender essa lição não constitui preocupação presente na mente
das pessoas. A inal, pensam, no momento fatal não bastará fechar os
olhos e partir? O que haveria de aprender?
O problema é que, por estar despreparado para a morte, o crente
poderá demonstrar fraqueza, covardia e falta de fé diante dela. En im,
poderá dar péssimo testemunho exatamente no momento em que sua
postura mais deveria falar ao coração de todos. Pior, depois de dar esse
exemplo ruim, não terá oportunidade de consertar a situação, nem de
se explicar diante de quem assistiu ao vexame, uma vez que a morte é
experiência única (Hb 9.27). Quem se comportou mal no momento de
sua partida deste mundo, jamais terá uma segunda oportunidade.
Os crentes verdadeiros devem se preocupar em honrar o Salvador
em tudo. O Senhor Jesus deve ser engrandecido no corpo do cristão,
quer pela vida, quer pela morte (Fp 1.20). Daı ́ a importância desse
tema.
Para morrer de modo exemplar, é fundamental, primeiro, que,
nos momentos inais, o crente mantenha a serenidade (Sl 23.4).
E natural que certo grau de agonia permeie os sentimentos do
moribundo, mesmo sendo ele cristão maduro, visto que a morte, até a
mais branda, é sempre amarga. O próprio Jesus sofreu diante da
iminência dela (Mc 14.32-36) e, embora sua agonia não tivesse como
causa apenas o morrer isicamente, mas toda a terrıv́el experiência de
fazer-se maldição em lugar dos pecadores (Gl 3.13), é inegável que,
sendo plenamente humano, Cristo experimentasse o ardente desejo de
viver.
Sendo a morte a experiência que marca o instante em que corpo e
alma têm de, inalmente, se separar (Gn 35.18; Ec 12.7); sendo ela o
momento em que é preciso deixar para trás tudo o que foi construıd́ o e
todos os amados deste mundo (Ec 5.15; Lc 12.20); sendo ela o golpe
temido por qualquer ser vivo — uma vez que todos, sem exceção, têm
ao menos o instinto de autopreservação e forte apego à vida, que
inegavelmente é boa, já que dada por Deus —, não é de estranhar que,
ao morrer, as pessoas, mesmo crentes, experimentem certa dose de
angústia.
No que estiver a seu alcance, porém, desde que a morte não seja
súbita ou precedida de longo perıó do de inconsciência, deve o cristão,
ao enfrentá-la, esforçar-se por demonstrar irme con iança e até
promover a edi icação dos que o cercam em momento tão difıć il.
Era assim que Paulo dizia estar pronto para enfrentar a morte.
Quando ele escreveu aos ilipenses, estava preso (Fp 1.12-14) e sabia
que havia uma pequena possibilidade de ser condenado à morte. Em
face disso, em vez de revelar preocupação, medo ou insegurança, suas
palavras demonstram entusiasmo, coragem e ousadia (Fp 1.20-21). E
que o justo sempre tem esperança, ainda que veja a morte vindo ao seu
encontro (Pv 14.32).
Para se comportar dessa maneira, algo que também pode ajudar
muito é o cristão fazer o que estiver ao seu alcance para deixar em
ordem os negócios que estão sob sua responsabilidade. Essa lição, o
próprio Deus ensinou ao rei Ezequias quando lhe revelou, por meio do
profeta Isaıá s, que sua morte era iminente (2Rs 20.1).
A preservação da tranquilidade diante da morte é ainda possıv́el
especialmente se o cristão mantiver vivas cinco lembranças: o Senhor
está com ele naquele instante difıć il (Sl 23.4); a morte é inimigo já
vencido por Cristo (1Co 15.3,4; 2Tm 1.10); pelo fato de Cristo viver,
seus servos também viverão, já que um dia serão ressuscitados como
ele foi (Jo 6.40; 11.25; 14.19; 1Co 15.52; 2Co 4.14; 1Ts 4.16); sua alma
vai para o céu assim que seus olhos se fecharem nesta vida (Sl 49.15; Lc
16.22; 23.43; Fp 1.23; 2Tm 4.18; Ap 14.13); e Jesus morreu para livrar
também do medo da morte, não havendo, portanto, razão para se
aterrorizar com a sua aproximação (Hb 2.14-15).
Além de demonstrar serenidade, outro procedimento
recomendável para o crente que está morrendo é dar orientações
sábias àqueles que o Senhor lhe con iou nos dias
desta vida. Vários homens de Deus agiram desse modo quando
perceberam que seus momentos inais se aproximavam. Assim izeram
Moisés (Dt 32.44-50), Josué (Js 23-24) e Paulo (2Tm 4.1-8), bem como
o próprio Senhor Jesus Cristo (Jo 14-16).
Nem mesmo no leito de morte, o cristão pode esquecer que uma
das grandes responsabilidades que Deus lhe impõe nesta vida é a
orientação de pessoas colocadas por ele sob sua responsabilidade,
sejam elas ilhos, esposa, alunos ou quaisquer outras sobre as quais
exerça certo grau de in luência. Por isso, é bom terminar a jornada
neste mundo realizando essa tarefa.
Assim, evite o cristão perder minutos inais preciosos com o
costume comum de enumerar desejos pessoais vazios do tipo
“enterrem meu corpo na cidade tal”; “não me sepultem sem que antes
cheguem todos os meus parentes”; ou ainda “não se esqueçam de
cantar o meu hino preferido no funeral e de ornar o caixão com lores
brancas”. Em vez de perder tempo dizendo o que as pessoas deverão
fazer com seu corpo morto, o cristão deverá mostrar o que elas deverão
[132]
fazer com seus próprios corpos vivos.
Em suas horas inais, o crente deve também fazer das
promessas e dos feitos passados de Deus os seus assuntos
principais. Essa prática edi ica e consola os circunstantes, além de
gerar profunda paz no coração de quem está partindo.
José, em seus últimos momentos, trouxe à memória de seus
irmãos as promessas de Deus quanto à posse da terra de Canaã (Gn
50.24). Moisés, em meio às bênçãos que no dia de sua morte proferiu
aos ilhos de Israel, apontou-lhes as obras que o Senhor havia feito em
benefıć io deles (Dt 32.1-43). Também as expressões da benignidade do
Senhor e o conteúdo das suas promessas foram o tema das últimas
palavras de Davi (2Sm 23.1-7).
Esses exemplos mostram que, às portas da morte, o coração do
cristão deve estar repleto de gratas lembranças do passado e da doce
expectativa quanto ao futuro glorioso e tão próximo. Por isso, é de
esperar que fale dessas coisas, já que a boca fala daquilo que está cheio
o coração (Lc 6.45).
Que ao morrer o crente também demonstre aos que estiverem
ao seu redorque em seu coração não existem rancores
e mágoas contra eventuais inimigos ou desafetos. Morra o
cristão como também morreu seu Senhor Divino: perdoando os que
mais o feriram nesta vida e suplicando o favor de Deus sobre eles (Lc
23.33-34).
Hora tão solene quanto a hora da morte do crente — minutos tão
cheios de signi icado, já que precedem o momento em que a alma
bemaventurada irá ao encontro de Cristo — não pode ser manchada
por demonstrações de ódio e contenda. Por isso, todo crente deve
partir deste mundo como partiu também Estevão, isto é, em plena paz:
paz consigo mesmo (At 6.15), paz com seu Senhor (At 7.55-56, 59) e
paz com todos os homens (At 7.60).
Finalmente, antes do último suspiro, o cristão deve esforçar-se
para que suas últimas palavras sejam uma oração de
autoentrega a Deus. E que o cristão que tanto imitou Cristo na
vida, naturalmente também desejará imitá-lo na morte. Ora, nosso
Senhor cruci icado bradou ao morrer: “Pai, nas tuas mãos entrego o
meu espıŕ ito!” (Lc 23.46). Estevão, crente piedoso, fez também o
mesmo quando, acometido de terrıv́eis dores, orou dizendo: “Senhor
Jesus, recebe o meu espıŕ ito!” (At 7.59).
Ainda dentro deste assunto, existe a importante questão de se o
crente, ao ver a morte se aproximar, deve pedir mais anos de vida ao
Senhor. Há quem suspeite que isso seja sinal de medo, despreparo e
fraqueza.
De fato, não há dúvida de que o cristão deve buscar grau tão
elevado de realização na obra cristã que o faça ter a morte como único
anelo em certo ponto da vida (Lc 2.25-32; Fp 1.23). Nem sempre,
porém, esse estado já foi alcançado pelo crente quando o dia da sua
morte chega. Além disso, já foi dito que é natural até mesmo o homem
salvo enfrentar certa dose de angústia em face da morte.
Nada obsta, pois, que, nos momentos em que vê a vida se esvair, o
cristão peça a Deus o prolongamento de seus dias. Não há nada de
errado nisso. O rei Ezequias o fez e obteve resposta positiva do Senhor
(2Rs 20.1-7).
Erradamente, muitos pastores ensinam que a longevidade que
Deus concedeu a Ezequias em resposta às suas súplicas foi, na verdade,
castigo por sua insistência na oração. Dizem que nos quinze anos a
mais que o Senhor lhe deu, Ezequias cometeu o terrıv́el erro de
mostrar tudo que possuıá aos embaixadores do rei de Babilônia (2Rs
20.12-19; 2Cr 32.24-31) e teve um ilho idólatra, assassino e feiticeiro
chamado
Manassés, o qual induziu o povo a inúmeras abominações (2Rs
21.19,16), fatos esses que poderiam ter sido evitados se o rei tivesse
aceitado a morte assim que ela lhe foi anunciada.
Diante disso, alguns professores da Bíbliaconcluem que não se
pode insistir com Deus nos pedidos de oração, nem mesmo quando a
pessoa está triste com a gravidade de uma doença que a levará à morte.
Se isso for feito, dizem, as consequências do atendimento do pedido
poderão ser terrıv́eis!
Quem ensina essas coisas, porém, não re letiu o su iciente sobre o
texto das Sagradas Escrituras e demonstra conhecer bem pouco o
ensino bıb́ lico sobre a oração e a história veterotestamentária.
Em primeiro lugar, deve ser observado que o rei Ezequias não
insistiu com Deus em sua oração. A Bíbliadiz que ele orou apenas uma
vez (2Rs 20.2-3) e no mesmo instante o Senhor lhe respondeu por
intermédio do profeta Isaıá s (2Rs 20.4-5). Além do mais, mesmo que o
rei tivesse insistido, nada haveria de reprovável nisso. Ao contrário, sua
conduta teria sido correta, uma vez que o próprio Mestre ensinou que
se deve insistir na oração (Lc 11.5-10). Na verdade, os homens de Deus
sempre agiram assim (Dt 9.18; At 12.5), e alguns deles só pararam
quando o próprio Senhor ordenou (Dt 3.23-26; Jr 14.11; 2Co 12.7-9).
Em segundo lugar, é preciso salientar que o nascimento de
Manassés não foi uma consequência má da oração de Ezequias, mas sim
um fato de extrema relevância para a continuidade da linhagem davıd́
ica pela qual o Messias viria ao mundo. Era, na verdade, necessário que
Manassés nascesse, uma vez que sua igura seria fundamental para a
continuidade da linhagem messiânica (Mt 1.10). Além disso, sabe-se
que o ilho de Ezequias, apesar de ter sido um dos reis mais diabólicos
que houve em Judá, no im de sua vida se arrependeu e se tornou um
piedoso servo do Senhor (2Cr 33.10-16).
Logo, ao contrário do que dizem, a resposta de Deus ao clamor
tristonho de Ezequias não foi castigo, mas uma bênção belıś sima,
verdadeira demonstração de misericórdia e amor (2Rs 20.5-6). Isso
porque o Senhor não atende a súplica do coração a lito de modo
vingativo pela insistência e importunação. Por esse motivo, pode sim, o
moribundo clamar por mais tempo. O Senhor não o castigará por isso.
Antes, responderá conforme o seu querer e a multidão de suas
misericórdias, concedendo o melhor para aquele que o busca no
desespero.
De tudo que foi dito, conclui-se que somente quem aprendeu a
viver dignamente saberá morrer dignamente. E ao longo da vida que se
adquire estrutura para enfrentar com intrepidez a morte. Quem, ao
longo do viver, jamais cultivou a serenidade, o senso de
responsabilidade, a meditação sobre a Palavra de Deus, o compartilhar
de suas bênçãos, o falar de suas promessas, a preocupação com os que
estiveram sob seus cuidados, o perdão, a vida de oração e de
autoentrega e a busca do socorro em Deus nunca na verdade viveu
como cristão e, por isso, também não deve esperar morrer como
cristão. Pois é vivendo a vida cristã virtuosa que o homem se prepara
para morrer a morte cristã virtuosa. E vivendo do modo que se deve
morrer que se morre do modo que se deve viver.
Dúvidas frequentes

1) No céu, os salvos se lembram das pessoas que


conheceram na terra ou das coisas que lhes
aconteceram aqui?
Há quemensine que a alma do crente, ao entrar
no céu, deixa de ter ciência da existência do inferno ou
de outras coisas ruins que possam ameaçara sua
felicidade. Dizem que, se no céu a alma tiver
conhecimento dessas coisas, icará triste, e o lar
eterno, que é doce, em face dessas lembranças, se
tornará amargo.
Contudo, não há a menor razão para crer que a
alma do salvo sofra algum tipo de amnésia quando
entrano céu. Na parábola do rico e Lázaro, Jesus mostra
Abraão tendo a mais plenaconsciência do sofrimento
do rico no inferno e do anterior sofrimento de
Lázaro na terra (Lc 16.25). Também em Apocalipse 6.9-
11, veem-se as almas dos mártires clamando diante
de Deus. A simples leitura desse texto mostra que eles
tinham consciência de que haviam sido brutalmente
mortos por seus perseguidores, além da consciência de
que o Senhor tomaria vingança contra os seus inimigos,
e que vários de seus irmãos ainda vivos na
terra deveriam ser mortos como eles mesmos haviam sido.
É, pois, infundada a ideia de que, no céu, o crente
será mais ignorante do que é agora. Lá, ao contrário,
seu conhecimento será muito mais amplo. Ele se lembrará
de quemfoi neste mundo e poderá identi icar aqueles
que conheceu na terra (Elias e Moisés puderam ser
identi icados quando apareceram no monte da trans
iguração, de acordo com Lc 9.28-33), saberá que Deus o
livrou do pecado, da morte e do inferno
(aliás, essa será a base do seu louvor eterno, cf.
Ap 7.9-10), saberá que sua salvação só pôde ser
obtida graças ao sacri ício sangrento de Cristo (Ap
5.8-10) e, inalmente, saberá que muitos estão
eternamente perdidos (Lc 16.25).
Apesar de ter consciência disso tudo, a alma salva não
será acometida de tristeza alguma, pois, ainda que não
anulenenhuma porção do conhecimentoda verdade que há
no crente, Deus lhe dará um coração inabalável, no qual
será impossível a tristeza se alojar (Ap 21.4).

2) É errado cremar os corpos dos falecidos ou


doar os órgãos dosmortos?
Não, não é errado. Ao tempo da igreja antiga,
os cristãos não cremavam seus mortos porque essa era
uma prática ligada à religiosidade pagã que os
cercava. Por isso, não querendo ser confundidos com
doutrinas falsas, os crentes apenas sepultavam seus
entes queridos. A rigor,porém, nada há de errado em
cremar um cadáver. A Bíblia diz que a morte
faz a pessoa voltar ao pó (Gn 3.19) e a cremação
apenas acelera esse processo.
Não há, portanto, porque reprovar essa prática. Ademais,
os crentes sabem que na ressurreição seus corpos
serãorestaurados, não importa o grau de decomposição
ou de destruição em que se encontrem (Dn 12.2,13; 1Co
15.22-58; 1Ts 4.16).
No tocante à doação de órgãos, obviamente a
Bíblia silencia. A doutrina da ressurreição, porém,
mostra que essa prática não representa prejuízo nenhumpara
o crente que, naquele dia, terá seu corpo
totalmente restituído. Isso indica que o cristão que doa
seus órgãos, não os doa de fato. Somente os empresta
por algum tempo!

3) É errado ir ao cemitério visitar o túmulo de


pessoas falecidas?
Nos dias da igreja antiga, os cristãos, especialmente
do Norte da África, tinham o hábito de visitar
os túmulos dos mártires para ali celebrar festas em sua
homenagem. Isso originou certas crendices e práticas
de veneração que os pastores da época tiveram de
censurar com muita razão.
A ida, porém, ao cemitério com o simples objetivo
de honrar a memória de um falecido ou re letir
de maneira mais centrada sobreo que ele signi icou não
é um procedimento errado. O crente só deve
evitar a intensi icação de sua tristeza por meio dessas
visitas. O ideal é que, com o tempo, esqueça a
realidade do im da vida no presente e olhe para a
promessa do im da morte no futuro.
CONCLUSÃO – AS PEDRAS DE
CARBURETO

Os caçadores de rã são familiarizados com um curioso minério: o


carbureto. Empregam-no como combustıv́el para as lanternas
peculiares que usam em suas incursões noturnas pelos brejos.
Quando eu era criança, participei de uma dessas “caçadas”.
Acompanhando um tio que apreciava muito a carne desse anfıb́ io,
aventurei-me mato adentro em busca do animal, cuja carne, a bem da
verdade, nunca tive coragem de por na boca.
Para um menino, aquela aventura se tornaria inesquecıv́el: entrar
no brejo à noite; as instruções sobre os lugares preferidos pelas rãs
nessa hora; os golpes velozes da isga… Quanta novidade! De tudo,
porém, o que mais me deixou intrigado foi a lanterna de carbureto.
Nela eu via perplexo algo que parecia mágico.
As pedras do tal minério, que na aparência externa não sugeriam
nada de especial, quando colocadas em contato com a água, produziam
um efeito que eu jamais vira ou imaginara. Começavam como que a
ferver. A água borbulhava e fumaça, gases e calor eram produzidos.
Meu tio explicou que aquilo fornecia o combustıv́el para manter acesa
a chama da lanterna. Não fossem as pedras de carbureto, o grande
fenômeno que eu testemunhava não ocorreria — e a lanterna seria
inútil.
As doutrinas da Palavra de Deus são como pedras de carbureto.
Muitos olham para elas e não veem nada de especial ou fantástico no
modo que se apresentam. Até entre os crentes é raro ver-se pessoas
vibrando mesmo diante das mais fascinantes doutrinas cristãs. O que
há de errado?
E que as doutrinas bıb́ licas têm um ambiente dentro do qual
manifestam toda sua maravilha e todo seu poder. Há um contexto em
que elas surtem efeito fantástico e espetacular. E esse ambiente, sem o
qual as doutrinas cristãs parecem pedras frias, é a igreja. A igreja é a
água em que as verdades doutrinárias fervilham e revelam toda sua
força. Sem ela os ensinos bıb́ licos não têm nenhum campo em que
possam demonstrar quão e icazes são.
Todavia, a igreja que não acolhe a sã doutrina ou não a preserva
não ferve. E água sem calor, inútil como combustıv́el para suprir as
necessidades espirituais de seus membros.
Precisamos da água e do carbureto. Um sem o outro tem pouca ou
nenhuma utilidade. Precisamos da igreja e da teologia. Uma sem a
outra não produz efeito algum. Sem a teologia a igreja é morta: um
simples aglomerado de gente nutrindo-se com programas sociais e
intrigas antissociais. Sem a igreja, a teologia não tem onde ser aplicada
— consequentemente, é impossıv́el veri icar seu valor prático, sua
utilidade e seu poder.
A razão disso é muito simples: a teologia do Novo Testamento
originou-se por causa da igreja. Foi a igreja que motivou sua existência.
Tudo que foi produzido pelos escritores neotestamentários teve como
alvo a edi icação, a correção, o aprimoramento e o crescimento do povo
que Cristo comprou com seu próprio sangue (At 20.28).
Qualquer outro propósito para a teologia é secundário. O homem
que a usa exclusivamente para sua satisfação intelectual, não a
mergulhando no contexto eclesiástico e mantendo-se, ele mesmo, longe
da igreja, jamais poderá vislumbrar sua real grandeza nem
compreendê-la em sua plenitude. Tal homem saberá expressões
gregas, latinas e alemãs; aprenderá de inições complexas e
impressionará muita gente. Sentir-se-á muitas vezes inchado de
orgulho quando, em suas palestras, em diversas igrejas (com as quais
tomará o cuidado de nunca se comprometer profundamente),
apresentar seu show de conhecimento aos ouvintes, que a ele
assistem boquiabertos. Mas a dimensão completa da teologia, ele
jamais compreenderá realmente, pois não a verá em ação, funcionando
no ambiente em que foi produzida e para o qual é direcionada.
Um “teólogo” assim terá compreensão muito rasa da relevância
das doutrinas que ensina para o ser humano nas mais complexas e
variadas situações em que ele se encontra ao longo da vida. A teologia,
para esse homem, será pouco mais que um belo quadro que ele se
deleita em contemplar. Seus limites, porém, não ultrapassarão a
madeira que o emoldura.
E claro que um quadro tem valor. Mas as doutrinas da Palavra de
Deus são mais do que mera obra de estética. Elas podem e devem ser
aspiradas, sorvidas, apalpadas e saboreadas pelo homem salvo — e é
só na igreja que esse fenômeno, esse borbulhar das pedras na água, é
testemunhado e provado pelo estudioso das Escrituras. Isso ocorre,
nunca é demais frisar, por uma razão muito simples: a teologia do NT
originou-se na igreja, com ela e para ela; e é na igreja que percebemos
sua verdadeira dimensão.
Na igreja, tão grande a teologia aparecerá, tão relevante para
todos, tão e icaz para todo e qualquer problema que o teólogo
comprometido com o corpo de Cristo, percebendo tão tocante
imensidão, será um homem mais humilde, o que di icilmente ocorrerá
com o teólogo que vive longe da igreja.
Este último, por jamais enxergar a real grandeza, maravilha e
utilidade do objeto de seu estudo, viverá na ilusão comum a muitos
intelectuais de que ele é que é grande. Será, por isso, homem orgulhoso,
inacessıv́ el, incapaz de suportar ofensa, implacável com quem de algum
modo expõe suas fraquezas e sempre pronto para tratar os outros com
desprezo. Isso mostrará que, no fundo, no fundo, ele não conhece
realmente a teologia. Se conhecesse, diante do gigantismo e dos
insondáveis mistérios da fé, perceberia quanto é pequeno e
dependente e seria a pessoa mais humilde da Terra.
Por ser a igreja o campo em que a teologia mostra toda sua força;
o ambiente em que a e icácia, a infalibilidade e a sobrenaturalidade
desta se evidenciam; e o ambiente em que esta se movimenta e age, é
de esperar que todo pastor seja teólogo e que todo teólogo seja pastor.
A teologia tem de ser o instrumento de trabalho do pastor, o seu
cajado. A igreja será o campo em que, com seu instrumento em punho,
trabalhará. Se o ministro não conhecer teologia, será como o pastor de
ovelhas sem cajado: não terá instrumento para trabalhar e, em regra,
usará instrumentos inadequados. O teólogo que, por sua vez, não atuar
de modo ixo e comprometido numa igreja, será como o pastor que tem
cajado, mas não vai ao aprisco ou não acompanha as ovelhas no pasto.
As pessoas o observarão e ninguém saberá ao certo por que, a inal de
contas, ele tem um cajado.
Muitos pastores, em vez de usar o verdadeiro cajado, vivem a
buscar artifıć ios para promover o despertamento e a motivação de sua
igreja. Alguns frequentam cursos e compram livros sobre técnicas
“infalıv́ eis” para o sucesso no ministério. Tudo isso, porém, não passa
de bobagem. São recursos que servem apenas para transformar o
pastor num “marqueteiro” de baixa categoria.
Os ministros precisam é de coragem. Coragem para sair com o
cajado a campo, coragem para lançar as pedras na água e não se
assustar com o borbulhar que produzem. E isso que deve fazer o
ministro de Deus. Em todo este livro mostramos isto: a teologia em
alguns de seus aspectos e o modo como deve ser mergulhada no
contexto eclesiástico. O fato é que a “receita” para a realização de um
bom ministério junto ao povo de Deus é mais simples do que se pensa.
O que não pode ocorrer, em hipótese alguma, é o pastor ter medo.
Não foi espıŕ ito de temor que lhe foi dado (2Tm 1.7). Peguemos,
portanto, as pedras na mão. Elas parecem tão frias, não é mesmo? Mas
sejamos ousados e mergulhemo-las na água. Ouviremos um ruıd́ o.
Não,
não será o ruıd́ o de multidões a luindo porta adentro (aliás, é hora de
os pastores abandonarem esse sonho ingênuo, ao mesmo tempo
[133]
infantil e soberbo) . Nem tampouco será o ruıd́ o incômodo de
frenéticos instrumentos musicais a acompanhar louvores barulhentos
e pouco produtivos. Antes, será o alvoroço de cristãos nominais
incomodados com a verdade e, o que é mais importante, o burburinho
de vibração de vidas comovidas, de crentes autênticos a despertar para
a beleza e profundidade da Palavra de Deus, de gente impressionada
com a descoberta de verdades acerca das quais nunca nada ouviram,
apesar de membros da igreja há vários anos.
Podemos dizer que esse ruıd́ o será o som de uma espécie de
revolução que ocorrerá na vida cristã dos santos; o inıć io de um
fervilhar constante e aquecedor na igreja local; o im da água morta e
quase inútil. A igreja vibrará, se puri icará, se alegrará. Seus membros
sentirão muitas vezes o coração arder durante os cultos, do mesmo
modo que ardia o coração dos discıṕ ulos no caminho de Emaús
enquanto o Senhor lhes expunha as Escrituras (Lc 24.32).
Lancemos depressa, portanto, as pedras na água. Não teremos de
esperar muito para ver os resultados. E esses são os únicos resultados
que realmente importam. Somente eles poderão ser levados em conta
no estabelecimento das distinções entre uma igreja viva e uma morta.
PRINCÍPIOS GERAIS LIGADOS À
PRÁTICA DA IGREJA DE DEUS

Os princıṕ ios comentados neste livro estão grafados em itálico e


negrito, com indicação de página.

1) PRINCÍPIOS RELATIVOS À LIDERANÇA


PASTORAL
Princípio da proteção do valor real
No exercıć io efetivo de suas funções, o lıd́ er deve estabelecer somente
normas que protejam valores morais ou materiais de reconhecida
relevância.

Princípio da alteridade
Ao dirimir con litos interpessoais, o lıd́ er não deve tomar qualquer
medida ou decisão sem antes ouvir ambas as partes.

Princípio da via menos gravosa


A solução de problemas de qualquer natureza deve seguir a via menos
gravosa para todos os envolvidos, sem prejuıź o da justiça e da
verdade.

Princípio da reserva normativa


Nenhuma exigência poderá ser feita pelo lıd́ er aos seus subordinados
ou aos membros da igreja em geral sem uma ordem ou uma norma
clara que a preceda.

Princípio do equilíbrio
O rigor da exigência deve ser temperado com bom senso e a dureza do
castigo deve ser mesclada de misericórdia.
Princípio do limite de competência
O pastor não tem autoridade para, sem ser consultado, decidir
questões relacionadas à vida particular dos crentes, exceto no caso em
que essas questões afetem a pureza, o nome e os interesses da igreja.

2) PRINCÍPIOS RELATIVOS AO FUNCIONAMENTO DA


IGREJA
Princípio da supremacia das Escrituras
A tradição e o costume não devem se sobrepor às Escrituras, mesmo
quando isso contrarie o desejo expresso da maioria.

Princípio da santidade como valor supremo


A paz dentro da igreja não deve ser promovida ou mantida com o
sacrifıć io da santidade.

Princípio da responsabilidade do agente


As Escrituras não podem ser invocadas na defesa ou abrandamento do
erro, nem a sua ignorância pode ser alegada para suprimir a culpa do
transgressor.

Princípio da congregacionalidade
Em matérias que não envolvem a preservação da sã doutrina, a
vontade expressa da assembleia de crentes formalmente reunida se
situa acima da vontade da liderança formalmente constituıd́ a.

Princípio da legitimidade da origem


Uma igreja só pode ser gerada sob os auspıć ios de outra, excetuando-
se somente os casos de real impossibilidade.
Princípio regulador do culto
Nada pode ser praticado durante o culto a Deus que não tenha sido
expressamente estabelecido, determinado ou permitido por ele
próprio nas páginas da sua revelação escrita.

Princípio da legitimidade de propósitos


A legitimidade de um costume não depende de suas origens, mas sim
dos propósitos com que hoje é observado.

3) PRINCÍPIOS RELATIVOS ÀS OFERTAS TRAZIDAS


À IGREJA
Princípio da exclusividade
As ofertas dedicadas ao serviço de Deus devem vir somente das mãos
do seu povo redimido, em especial daqueles que, como parte desse
povo, contribuem livre e espontaneamente.

Princípio da obediência
As ofertas aceitáveis a Deus são aquelas que procedem de vidas santas,
marcadas por arrependimento, retidão e busca sincera da vontade do
Senhor.

Princípio da responsabilidade
O crente que quer contribuir inanceiramente para a causa do Mestre
deve fazer isso na igreja de que participa, seja como membro, seja
como assıd́ uo frequentador, ainda que a ajuda dirigida a outras
comunidades de linha ortodoxa seja aceitável, desde que eventual.

4) PRINCÍPIOS RELATIVOS À AJUDA DE PESSOAS


CARENTES
Princípio da preferência
O socorro da igreja dirigido a pessoas carentes deverá ter sempre como
alvo preferencial os irmãos na fé.

Princípio da necessidade real


A igreja de Deus só oferecerá amparo material a crentes que, por
motivos alheios à sua vontade e conduta, não podem trabalhar e, assim,
passam por inevitável penúria, sendo ainda defeso o auxıĺ io dirigido a
pessoas cuja famıĺ ia imediata tem condições de sustentar.

Princípio da temporalidade
A ajuda material a irmãos carentes deverá cessar tão logo termine a
condição de necessidade real.
REFERÊNCIAS

Livros

A Con issão de Augsburgo. Edição bilıń gue. São Leopoldo:


Sinodal, 1980.
A Con issão de Fé de Westminster. São Paulo: Cultura
Cristã, 1994.
ACHTEMEIER, Paul (Edit.). Harper’s Bible Dictionary. New York:
Harpercollins, 1985.
ANTONIAZZI, Alberto (Edit.). Nem anjos nem demônios:
Interpretações sociológicas do pentecostalismo. Petrópolis: Vozes,
1996.
ARICHEA, D. C. e Hatton, H. A handbook on Paul’s letters
to Timothy and to Titus. UBS handbook series – Helps for
translators (70). New York: United Bible Societies, 1995.
BALZ, Horst e SCHNEIDER, Gerhard (Edits.). Exegetical Dictionary of
the New Testament. Edimburgo: T&T Clark, 1990.
BERKHOF, L. Manual de Doutrina Cristã. Campinas: Luz para o
Caminho, 1985.
BILLHEIMER, Paul E. Seu destino é o trono. São José
dos Campos: CLC, 1984.
CAIRNS, Earle E. O cristianismo através dos séculos: uma
história da igreja cristã. São Paulo: Vida Nova, 1984.
CALVINO. João. As institutas ou tratado da religião cristã. 4 vols.
Traduzido por Waldyr Carvalho Luz. São Paulo: Casa Editora
Presbiteriana, 1985.
CAROTHERS, Merlin. Louvor que liberta. Belo Horizonte:
Betânia, 1988.
CARSON, D. A. The PillarNew Testament Commentary: The Gospel
According John. Grand Rapids / Cambridge: Eerdmans, 1991.
CHISHOLM, Robert B. From exegesis to exposition. Grand Rapids:
Baker, 1999.
COULANGES, Fustel de. A cidade antiga. São Paulo: Editora das
Américas, 1961.
CRABB JR., Lawrence J. Aconselhamento bíblico efetivo. Brasıĺ
ia: Refúgio, 1985.
DANIEL-ROPS, Henri. A vida diária nos tempos de
Jesus. São Paulo: Vida Nova, 1988.
DIPROSE. Ronald E. Israel and the church: The origin and effects of
replacement theology. Waynesboro, GA: Authentic Media, 2004.
ELLINGWORTH, P. e Nida, E. A. A handbook on Paul’s letters
to the Thessalonians. UBS Handbook Series (116). New York: United
Bible Societies, 1976.
FERREIRA, Franklin. Gigantes da fé. São Paulo: Vida, 2006.
GEORGE, Timothy. Teologiados reformadores. São Paulo: Vida Nova,
1993.
GIBBON, Edward. Declínio e queda do Império Romano.
São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
GOMES, Cirilo Folch (Edit.). Antologia dos Santos Padres:
Páginas Seletas dos Antigos Escritores Eclesiásticos. São Paulo:
Paulinas, 1985.
GONZALEZ, Justo L. Uma história do pensamento cristão.
3 vols. São Paulo: Cultura Cristã, 2004.
GOSSET, Don. Há poder em suas palavras. São Paulo: Vida,
2009.
GRUDEM, Wayne. Teologia Sistemática. São Paulo: Vida Nova, 1999.
HENDRY, George S. LaConfessión de Fe de Westminster para
el día de hoy. Traduzido para o espanhol por Jorge Lara-Braud.
Bogotá: CCPAL, 1965.
HETH, William A. e Wenham, Gordon J. Jesus and divorce. London: The
Chaucer Press, 1984.
HODGE. Archibald Alexander. Comentário de la Confesion de
Fe de Westminster. Barcelona: CLIE, 1987.
HUNT, David e McMahon, T. A. Laseducción de la cristianidad.
Grand Rapids: Editorial Portavoz, 1988.
JEREMIAS, Joachim. Jerusalém no tempo de Jesus. São Paulo:
Paulinas, 1983.
KAYSERLING, M. História dos judeus em Portugal. São Paulo:
Pioneira, 1971.
KIMBALL, Dan. A igreja emergente: cristianismo clássico para
as novas gerações. São Paulo: Vida, 2008.
KNIGHT, G. W. The Pastoral Epistles: A commentary on the
Greek text. Grand Rapids / Carlisle: Eerdmans e Paternoster, 1992.
KORSTENBERGER, Andreas J.; JONES, David W. Deus, casamento e
família: reconstruindo o fundamento bıb́ lico. São Paulo: Vida Nova,
2011.
LEA, T. D. e Grif in, H. P. 1, 2 Timothy, Titus (electronic ed.).
Logos Library System. The New American Commentary. Nashville:
Broadman & Holman Publishers, 2001.
LLOYD-JONES, D.M. Os Puritanos: suas origens e sucessores. São Paulo:
PES, 1993.
LOPES, Augustus Nicodemus. O culto espiritual. São Paulo: Cultura
Cristã, 2004.
_____________. O que estão fazendo com a igreja. São
Paulo: Mundo Cristão, 2008.

MacARTHUR. John. O caos carismático. São José dos Campos: Fiel,


1992.
MATTOS, Alderi Souza de. Fundamentos da teologia histórica.
São Paulo: Mundo Cristão, 2008.
MAX, Frédéric. Prisioneiros da Inquisição. Porto Alegre: L&PM, 1991.
McGRATH, Alister. A vida de João Calvino. São Paulo: Cultura
Cristã, 2004.
McLAREN, Brian. Umaortodoxia generosa. Brasıĺ ia: Editora Palavra,
2007.
NASCIMENTO, Adão Carlos e MATOS, Alderi Souza de. O que todo
presbiteriano inteligente deve saber. Santa Bárbara d’Oeste:
SOCEP, 2007.
NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Curso de Direito do Trabalho.
São Paulo: Saraiva, 1995.
NEWMAN, Barclay M. e NIDA, Eugene A. A translator’s handbook
on the Gospel of John. New York: United Bible Societies, 1980.
OSBORNE, Grant R. A espiral hermenêutica: uma nova abordagem à
interpretação bíblica São Paulo: Vida Nova, 2009.
REILING, J. e Swellengrebel, J. L. A handbook on the Gospel
of Luke. UBS Handbook Series. New York: United Bible Societies,
1993.
ROBERTS, Alexander e DONALDSON, James (Edits.). The Ante-
Nicene Fathers. 10 vols. Buffalo: The Christian Literature Company,
1886.
ROMEIRO, Paulo. Evangélicos em crise: Decadência doutrinária na
igreja brasileira. São Paulo: Mundo Cristão, 1999.
RYRIE, Charles C. Dispensacionalismo: ajuda ou heresia. Mogi das
Cruzes: Abecar, 2004.
SALVADOR, José Gonçalves (Edit.). O Didaquê ou O ensino do Senhor
através dos doze apóstolos. São Paulo: Imprensa Metodista, 1980.
SCHAEFFER, Francis A. A verdadeira espiritualidade. São Paulo: Fiel,
1980.
SCHAFF, Philip. History of the Christian Church. 8 vols. Grand
Rapids: Eerdmans, 1967.
SCHALKWIJK, Franz Leonard. Igreja e Estado no Brasil
Holandês: 16301654. São Paulo: Vida Nova, 1989.
SHELDON, Charles M. Em seus passos que faria Jesus? São
Paulo: Mundo Cristão, 2011.
STEIN, R. H. Luke. The New American Commentary. Vol. 24. Nashville:
Broadman & Holman Publishers, 1992.
Strong, J. Léxico Hebraico, Aramaico e Grego de Strong.
Barueri: Sociedade Bıb́ lica do Brasil, 2005.
THISELTON, Anthony C. The First Epistle to the
Corinthians: A commentary on the Greek text. Michigan/Cambridge,
UK: Eerdemans, 2000.
VAN BAALEN, J. K. O caos das seitas. São Paulo: Imprensa Batista
Regular, 1982.
WARREN, Rick. Uma igreja com propósitos. São Paulo: Vida,
2008.
WEBER, Stuart K. Holman New Testament Commentary (ANDERS,
Max [Edit.]): Matthew. Nashville, Tennessee: Broadman & Holman
Publishers, 2000.
WENGER, John C. (Edit.). The complete works of Menno
Simons. Scottdate: Herald Press, 1956.
WRIGHT, N. T. Surpreendido pela esperança. Viçosa: Ultimato,
2009.
ZODHIATES, S. The complete word study dictionary: New Testament
(electronic ed.) (G2233). Chattanooga, TN: AMG Publishers, 2000.

Artigos

BAPTISTA, Selma. Glossolalia, o sentido da desordem: a


simbologia do som na constituição do discurso pentecostal. Dissertação
de mestrado apresentada ao Instituto de Filoso ia e Ciências Humanas
— Area de Antropologia Social — UNICAMP, Campinas, 1989.

BOER, Leandro. O dom de línguas hoje: adendo cientí ico


para leigos. Publicado em três partes no Boletim Semanal da
Igreja Batista Redenção nº 806-808 (19 e 26 de abril / 03 de
maio de 2015).

COOK, Randall K. O templo — sua história e seu


futuro. Vox Scripturae, São Paulo, v. 2, n. 1, mar. 1992.
FREIRE, Silvana Matias. Glossolalias: icção, semblante, utopia Tese de
doutorado apresentada ao Curso de Linguı́stica do Instituto de Estudos
da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP,
Instituto de Estudos da Linguagem, 2007.

HART, D. G. e MEUTHER, John R. J. Gresham Machen e o


Princípio Regulador. http://www.monergismo.com/. Traduzido por
Felipe Sabino de Araújo Neto.
HOUSE, H. Wayne. Distinctive roles for women in the
second and third centuries. Bibliotheca Sacra, Dallas, v. 146, n.
581, jan./mar. 1989.
MOTLEY, Michael T. A linguistic Analysis of glossolalia: evidence
of unique psycholinguistic processing. Communication Quarterly, vol.
30, nº 1, 1981.
NORTON, Howard W.; Novinsky, Anita; Nazário, Luiz; Jovanovik,
Aleksandar. A Inquisição. Folha de São Paulo, São Paulo, 15 mai.
1987. Folhetim.
PINTO, Carlos Osvaldo. O Divórcio. Enfoque, Atibaia, nov. 2000.
SOBRE O AUTOR

Marcos Granconato é pastor-titular da Igreja Batista Redenção,


em São Paulo. Formou-se em teologia no Seminário Bıb́ lico Palavra da
Vida.
E graduado em direito pela Universidade São Francisco de Bragança
Paulista e mestre em teologia histórica pelo Centro Presbiteriano de
Pós-Graduação Andrew Jumper.

Notas do prólogo

[1]
Nos tempos da Inquisição, “cristão velho” referia-se ao católico da
Penıń sula Ibérica que estava acima de qualquer suspeita de heresia.
Já “cristão novo” denominava o judeu convertido que passara a ser
perseguido com severidade, acusado de praticar o judaıś mo
secretamente em casa. Veja-se K , M. História dos judeus em
Portugal. São Paulo: Pioneira, 1971. M , Frédéric. Prisioneiros da
Inquisição. Porto Alegre: L&PM, 1991. Veja-se tb. N , Howard W.; N
, Anita; N ́ , Luiz; J , Aleksandar. A Inquisição.
Folha de S. Paulo, São Paulo, 15 mai. 1987. Folhetim.
[2]
Jesus chamou de cães os incrédulos (Mt 7.6) e os pagãos (Mt
15.26), mas o mesmo termo foi utilizado por Paulo para referir-se aos
falsos mestres (Fp 3.2). No Apocalipse, o Senhor emprega a mesma
palavra ao falar daqueles que vão sofrer a perdição eterna, fora da
cidade santa (Ap 22.15).
[3]
Veja-se R , Paulo. Evangélicos em crise. São Paulo: Mundo
Cristão, 1997. p. 77-82.
Notas do capítulo 1

[4]
Nesse sentido, veja-se especialmente S , Francis A. A verdadeira
espiritualidade. São Paulo: Fiel, 1980. p. 192-209.

[5]
O Dr. Lawrence J. Crabb Jr., psicólogo cristão, aponta o significado
e a segurança como as necessidades psicológicas fundamentais de
todo ser humano. Segundo ele, o homem só se sente importante
quando é respeitado e só se sente seguro quando tem o amor
incondicional dos outros. Veja-se C J ., Lawrence J.
Aconselhamento bíblico efetivo. Brasıĺ ia: Refúgio, 1985.

[6]
O modo como a igreja deve agir no suprimento das necessidades
dos que sofrem está exposto no Capítulo11.

[7]
Nos capıt́ ulos subsequentes, todos os itens aqui denominados
como “pilares” serão considerados com maior atenção.

[8]
Um bom exemplo disso é visto na Inglaterra durante o século 17.
Veja-se L -J , Martyn. Os puritanos: suas origens e seus sucessores.
São Paulo: PES, 1993. p. 76-79.

[9]
Essa prática também foi corroborada por concepções pagãs. Veja-
se o Capítulo9.

[10]
Na igreja antiga havia, inclusive, a tendência de batizar crianças
no oitavo dia de vida (Lv 12.3), dado o entendimento de que o
batismo havia substituıd́ o a circuncisão. Nesse sentido, veja-se C .
Epistle LVIII - To Fido, On the baptism of infants. Ante-Nicene
Fathers, vol. 5, p. 353-354). E inegável, assim, que o batismo infantil
surgiu como resultado da concepção nutrida por vários teólogos
antigos que viam a igreja como o verdadeiro Israel.

[11]
Wayne Grudem, defendendo essas noções, escreve: “… a igreja
agora se tornou o verdadeiro Israel de Deus e… receberá todas as
bênçãos prometidas a Israel no Antigo Testamento...”. G , Wayne.
Teologia Sistemática. São Paulo: Vida Nova, 1999. p. 723.
[12]
Para uma exposição mais detalhada desses e outros efeitos, vejase
D , Ronald E. Israel and the church: The origin and effects of
replacement theology. Waynesboro, GA: Authentic Media, 2004.
[13]
O Artigo 17 da Confissão de Augsburgo, escrita em 1530, a irma
que a ideia de um reino messiânico fıś ico a ser instalado no futuro
neste mundo (milenarismo) é apenas uma das diversas “opiniões
judaicas” que as igrejas condenam (A Confissão de Augsburgo.
Edição bilıń gue. São Leopoldo: Sinodal, 1980. p. 25.). Também a
primeira edição dos Artigos Anglicanos elaborados por Thomas
Cranmer em 1553 descreve o milenarismo como “uma fábula
própria da senilidade judaica” (S , History of the Christian Church,
vol.
II, p. 619).
[14]
Nesse sentido, veja-se O , Grant R. A espiral hermenêutica:
uma nova abordagem à interpretação bíblica São Paulo: Vida Nova,
2009. p. 414.
[15]
A lei canônica é o conjunto de normas criadas pelos concıĺ ios
eclesiásticos que se reuniram ao longo dos séculos e que são
reconhecidos pela “igreja o icial”.

Notas do capítulo 2

[16]
C , João. As institutas ou tratado da religião cristã. Vol. III. São
Paulo: Casa Editora Presbiteriana, 1985. p. 119.
[17]
Ibid., p. 133.
[18]
Ibid., p. 136.
[19]
A Confissão de Fé de Westminster. São Paulo: Cultura Cristã,
1994. p. 110.
[20]
H , Archibald Alexander. Comentário de la Confesion de Fe de
Westminster. Barcelona: CLIE, 1987. p. 251. Tradução livre.
[21]
O , Op. Cit., p. 567.
[22]
C , João. Comentário sobre 2Timóteo 2.15: CNTC 10, p. 313.
Citado por G , Teologia dos reformadores. São Paulo: Vida Nova,
1993, p. 241.
[23]
G , Ibid., p. 92.

[24]
Na Bíbliahá orações dirigidas ao Pai (Mt 6.9; Ef 3.14) e ao Filho (At
7.59; 1Co 1.2), mas não há nenhuma súplica feita ao Espıŕ ito Santo.
Negar, contudo, que os crentes possam orar ao Espıŕ ito equivale a
negar a divindade da Terceira Pessoa da Trindade.
[25]
Para livros que apresentam essas concepções, veja-se B ,
Paul E. Seu destino é o trono. São José dos Campos: CLC, 1984
(especialmente pp. 103-116); e C , Merlin. Louvor que liberta.
Belo Horizonte: Betânia, 1988.
[26]
Para excelentes orientações sobre esse assunto, veja-se L ,
Augustus Nicodemus, O que estão fazendo com a igreja. São Paulo:
Mundo Cristão, 2008. p. 157ss.

[27]
Veja-se o Capítulo1.
[28]
Segundo o ensino do , o corpo do cristão é casa habitada de
initivamente por Deus (Jo 14.20,23; 1Co 3.16; 6.19; Cl 1.27), e é
impossıv́el que Satanás e seus anjos façam morada ali, uma vez que
nunca a acharão desocupada (Mt 12.43-45). Veja também 1João
5.18.

Notas do capítulo 3

[29]
S , José Gonçalves (Edit.). O Didaquê ou O ensino do Senhor
através dos doze apóstolos. São Paulo: Imprensa Metodista, 1980.
p. 75.

[30]
C , Op. Cit., IV:XV:19, p. 301.

[31]
A fonte desse ensino é a obra O pastor de Hermas (31.6-7),
produzida por volta de 150 AD.
[32]
Veja-se S , Op. Cit., vol. II, p. 258-262.
[33]
G , Op. Cit., p. 258-259.
[34]
B , L. Manual de Doutrina Cristã. Campinas: Luz para o
Caminho, 1985. p. 288.
[35]
Segundo Berkhof, Colossenses 2.11-12 parte claramente da
suposição de que o batismo tomou o lugar da circuncisão! (Ibid., p.
287).
[36]
Assim argumenta Calvino em suas Institutas. Veja-se C , Op. Cit.,
IV:XVI:20, p. 322-323.
[37]
Para mais detalhes, veja-se C , Earle E. O cristianismo através
dos séculos: uma história da igreja cristã. São Paulo: Vida Nova,
1984. p. 239.
[38]
Essa doutrina é também adotada com pequenas variações pelos
ortodoxos e anglicanos.
[39]
O IV Concıĺ io de Latrão (1215) o icializou a doutrina da
transubstanciação como dogma católico. Essa doutrina foi rea irmada
e plenamente de inida no Concıĺ io de Trento (1545-1563).
[40]
A prática da igreja ocidental de usar pão não levedado na
Eucaristia deu causa ao Cisma de 1054 que culminou no rompimento
das relações entre a Igreja Católica Romana e a Igreja Ortodoxa Grega.
[41]
Aliás, a palavra “hóstia” vem do latim e signi ica vítima.
[42]
Na Idade Média corria a fábula de que o morcego passou a existir
porque um rato, após comer uma hóstia consagrada, foi abençoado
com asas.
[43]
W , John C. (org.). The complete works of Menno Simons.
Scottdate: Herald Press, 1956. p. 76. Citado por G , Op. Cit., p. 258.
[44]
Edições posteriores da Confissão de Augsburgo abrandaram essa
posição.
[45]
A Fórmula foi publicada o icialmente em 1580. Como foi
apresentada num volume que trazia outros documentos, icou
conhecida mais tarde como o Livro da Concórdia.
[46]
O sacramento do altar ou ceia do Senhor. Disponıv́ el em
www.luteranos.com.br/articles/8166/1. Acessado em 02/dez/2010.
[47]
Para uma compreensão mais precisa da concepção de João Calvino
acerca da ceia, veja-se C , Op. Cit., IV:XVII, p. 339-399. Veja-se ainda G
́ , Justo L. Uma história do pensamento cristão. Vol. 3. São Paulo:
Cultura Cristã, 2004.
[48]
Calvino diz expressamente: “... a fração do pão é um sıḿbolo...
Mas... pela exibição do sıḿbolo, no entanto, a própria coisa é exibida.”
(Op. Cit., IV:XVII:10, p. 348).
[49]
C , Idem.
[50]
Deve ser lembrado que os católicos e os luteranos também são
sacramentalistas, crendo a seu modo que, na eucaristia, graças
especiais são comunicadas aos participantes. Zuıń glio, por sua vez,
repudia essa visão. Um dos possıv́eis fundamentos do
sacramentalismo está na expressão “o cálice da bênção” usada por
Paulo em 1Corıń tios 10.16. Se for entendida como um genitivo de
causa, o que é gramaticalmente possıv́el, essa expressão pode ser
interpretada como “o cálice que traz a bênção”, dando suporte para a
concepção sacramentalista. E mais provável, porém, que a expressão
se re ira ao cálice da gratidão, o terceiro cálice usado pelos judeus
durante a celebração da Páscoa. Ao participar desse cálice os
celebrantes davam graças a Deus e o “abençoavam,” isto é, o
bendiziam. Se esse entendimento for aceito, a suposta base para o
sacramentalismo presente em 1Corıń tios 10.16 desaparece.
[51]
C , Op. Cit., IV:XVII:24, p. 365.

Notas do capítulo 4

[52]
A H . De correptione et gratia, XIV-XVI. In C
, Op. Cit., III:XXIII:14, p. 426.
[53]
Para mais detalhes, veja-se M G , Alister. A vida de João
Calvino. São Paulo: Cultura Cristã, 2004. p. 203-222.
[54]
F , Franklin. Gigantes da fé. São Paulo: Vida, 2006. p. 168.
[55]
Mais informações sobre os calvinistas enviados de Genebra ao
Brasil, bem como acerca do conteúdo da Confissão de Fé da
Guanabara, veja-se N , Adão Carlos e M , Alderi Souza de. O que
todo presbiteriano inteligente deve saber. Santa Bárbara d’Oeste:
SOCEP, 2007. p. 39-48.
[56]
A obra mais completa sobre o tema, escrita em português, é, sem
dúvida S , Franz Leonard. Igreja e Estado no Brasil
Holandês: 1630-1654. São Paulo: Vida Nova, 1989. O autor é pastor
reformado holandês e ministrou muitos anos no Brasil, tendo
realizado profundas pesquisas tanto aqui como em sua terra natal.
[57]
Informações mais completas sobre George White ield podem ser
obtidas em L -J , D.M. Op. Cit. p. 112-138.
[58]
Sobre a vida de Spurgeon, veja-se F , Op. Cit., p. 270-278.
[59]
No Brasil, os sermões de Spurgeon têm sido publicados
especialmente pela Editora Fiel e pela PES: Publicações Evangélicas
Selecionadas.

Notas do capítulo 5

[60]
G , Edward. Declínio e Queda do Império Romano. São Paulo:
Companhia das Letras, 1989. p. 224.
[61]
G , Cirilo Folch (org.). Antologia dos Santos Padres: Páginas
Seletas dos Antigos Escritores Eclesiásticos. São Paulo: Paulinas,
1985. p. 284.

Notas do capítulo 6

[62]
Note-se que nesse texto a palavra traduzida em várias versões
como “mais velhos” é presbyteroi, termo que designa pastores. Aliás,
o contexto da passagem (v. 1-4) favorece esse entendimento.

Notas do capítulo 7

[63]
O emprego do óleo mencionado nesse texto tinha objetivos
simbólicos (a representação do favor de Deus vindo sobre o enfermo)
e humanitários (o óleo era usado para dar refrigério). Em nada essa
prática se assemelhava ao curandeirismo evangélico que se vê hoje
em dia.
[64]
C , Op. Cit., IV:III:9, p. 51.
[65]
T , Alain; M , Bernard. Histoire Générale du Travail.
Apud N , Amauri Mascaro. Curso de Direito do Trabalho.
São Paulo: Saraiva, 1995. p. 13-14.
[66]
Idem, p. 560-561.
[67]
Idem, p. 12-13.
[68]
Para uma visão mais clara acerca do espaço concedido às
mulheres no contexto judaico, por exemplo, veja-se J , Joachim.
Jerusalém no tempo de Jesus. São Paulo: Paulinas, 1983. p. 473494.
Veja-se também D -R , Henri. A vida diária nos tempos de Jesus, São
Paulo: Vida Nova, 1988. p. 88-91.
[69]
H , H. Wayne. Distinctive roles for women in the second and
third centuries. Bibliotheca Sacra, Dallas, v. 146, n. 581, jan./mar.
1989, p. 52-53. Tradução livre.

Notas do capítulo 9

[70]
W , John C. (org.). The complete works of Menno Simons.
Scottdate: Herald Press, 1956. p. 310. Citado por G , Op. Cit., p. 278.
[71]
Diga-se de antemão que o autor reconhece que há muitas igrejas
pentecostais que não se encaixam nas crıt́ icas elencadas nesta seção.
Ele também sabe que, mesmo adotando algumas concepções
doutrinárias que este livro reprova, muitos pentecostais são discıṕ
ulos sinceros de Jesus — irmãos amados que repudiam enfaticamente
todos os desvios mencionados aqui, fazendo tudo o que podem para
evitá-los ou corrigi-los.
[72]
Um exemplo chocante do ponto a que isso pode chegar é
fornecido pelo número 47 da revista portuguesa Visão, publicada na
semana de 10 a 16 de fevereiro de 1994. Segundo essa revista, em
junho de 1992, o “apóstolo” Jorge Tadeu, lıd́ er da Igreja Maná em
Portugal, disse numa reunião de pastores na cidade de Loures,
próxima de Lisboa: “Recebi isto por revelação divina: Deus me disse
que hoje o Senhor permite que um homem tenha várias mulheres,
desde que com isso sirva mais a Deus”. Jorge Tadeu já esteve várias
vezes em São Paulo, promovendo conferências ao lado de lıd́ eres
pentecostais brasileiros. Veja-se R , Op. Cit., p. 48.
[73]
A exploração inanceira levada a cabo por essas pessoas passa
ainda pela prática chocante de compra e venda de “campos”, pela qual
pastores e lıd́ eres eclesiásticos, tratando suas comunidades como se
fossem lotes de animais, vendem suas igrejas por uma determinada
quantia em dinheiro, cujo valor oscila dependendo do número de
membros, potencial de crescimento, média de entradas inanceiras,
localização, etc. O apóstolo Pedro disse que os falsos mestres fariam
comércio dos crentes (2Pe 2.3). Esse é certamente o exemplo mais
chocante do cumprimento dessa previsão.
[74]
A expressão “terceira onda” aplicada ao neopentecostalismo tem a
sua criação atribuıd́ a ao teólogo e escritor americano, autointitulado
apóstolo, Charles Peter Wagner (The third wave of the Holy Spirit.
Ann Harbor: Vine, 1988). No Brasil, a história do pentecostalismo é
dividida em três “ondas” pelo sociólogo Paul Freston, no artigo “Breve
história do pentecostalismo brasileiro”, em A , Alberto (edit.). Nem
anjos nem demônios: interpretações sociológicas do
pentecostalismo. Petrópolis: Vozes, 1996.
[75]
Veja-se S , Op. Cit., I:VII:39.
[76]
Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Verbete:
‘glossolalia’. RJ: Objetiva, 2001.
[77]
Le Nouveau Petit Robert. Verbete: ‘glossolalie’. Paris:
Dictionnaires Le Robert, 2000.
[78]
F , Silvana Matias. Glossolalias: icção, semblante, utopia
Tese de doutorado apresentada ao Curso de Linguı́stica do Instituto
de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas
UNICAMP, Instituto de Estudos da Linguagem, 2007. p. 73.
[79]
F , p. 31-32.
[80]
F , p. 67-68, 77, 79.
[81]
M , Michael T. A linguistic Analysis of glossolalia:
evidence of unique psycholinguistic processing. Communication
Quarterly, vol. 30, nº 1, 1981. p. 18-27.
[82]
Para mais detalhes veja-se F . p. 15-16. Veja-se tb. B , Selma.
Glossolalia, o sentido da desordem: a simbologia do som
na constituição do discurso pentecostal. Dissertação de mestrado
apresentada ao Instituto de Filoso ia e Ciências Humanas — Area de
Antropologia Social — UNICAMP, Campinas, 1989. p. 80-81.
[83]
Muitas vezes, a ideia de que o dom de lıń guas produz
esvaziamento mental busca fundamento em 1Corıń tios 14.14, onde
se diz que a mente de quem ora em outra lıń gua “ ica infrutıfera”.
Essa expressão,́ porém, signi ica apenas que a mente de quem orava
em lıń guas não produzia nada em proveito dos irmãos. Nesse sentido,
veja-se T , Anthony C. The First Epistle to the Corinthians: A
commentary on the Greek text. Michigan/Cambridge, UK: Eerdemans,
2000.
[84]
B , p. 267,285.
[85]
Para mais detalhes, veja-se B, Leandro. O dom de línguas
hoje: adendo cientí ico para leigos. Publicado em três
partes no Boletim Semanalda Igreja Batista Redenção nº
806-808 (19 e 26 de abril / 03 de maio de 2015). Disponıv́el também
em www.igrejaredencao.org.br. O artigo traz uma breve lista de
referências de que constam as seguintes monogra ias: D , F.
Religious Dissociation and Economic
Appraisal in Brazil. J Relig Health. 2015 Feb 17. [Epub ahead of
print] PubMed PMID: 25687180; J , K. D. A neuropastoral care
and
counseling assessmentof glossolalia:a theosocial cognitive
study. J Health Care Chaplain. 2010;16(3-4):161-71.
doi:10.1080/08854726.2010.492698. PubMed PMID: 20658429;
K P. K. Brain mechanisms in early language acquisition.
Neuron.
2010 Sep 9; 67(5):713-27. doi: 10.1016/j.neuron.2010.08.038.
Review. PubMed PMID: 20826304; PubMed Central PMCID:
PMC2947444. N , A.B.; W N. A.; M , D.;
W , M. R. The measurement of regional cerebral bloodlow
during glossolalia:a preliminary SPECT study.
Psychiatry Res. 2006 Nov 22;148(1):67-71. Epub 2006 Oct 12.
PubMed PMID: 17046214.
[86]
B , p. 250.
[87]
B , p. 265-266,282. Conclusões semelhantes foram expostas
por William S . antropólogo e linguista americano, que realizou um
dos trabalhos mais completos sobre a glossolalia em Tongues of
menand angels. The religious language of pentecostalism.
Macmillan, NY, 1972.O trabalho de Samarin (e de outros
linguistas que chegaram à mesmas conclusões que ele) foi criticado
num artigo escrito em 1981, por Michael T. M , intitulado A
linguistic Analysis of glossolalia: evidence of unique
psycholinguistic processing (publicado em Communication Quarterly,
vol. 30, nº 1, 1981. p. 18-27).
Contrariando teses já consagradas, Motley a irma que a glossolalia
tem traços de lı́nguas reais e é linguisticamente independente da
lı́ngua nativa dos falantes. Ele admite, porém, que traços desse tipo
podem advir da prática (nota 1 de seu artigo), mas rejeita a
possibilidade de ser essa a hipótese que explica a glossolalia (ainda
que tenha baseado sua pesquisa na experiência de um pentecostal que
falava em "lı́nguas" há vinte anos). Apesar de sua análise abranger
apenas dez páginas e de ter tirado suas conclusões a partir da
observação de somente um praticante da glossolalia, Motley a irma
que o trabalho de Samarin e de outros que chegaram às suas mesmas
conclusões é "super icial".
[88]
Para mais detalhes, veja-se M A . O caos carismático. São
José dos Campos: Fiel, 1992. pp. 293-326.
[89]
Maiores detalhes em F , p. 11-12, 18-22 e B , p. 78.
[90]
Alguns crentes acreditam que 1Corıń tios 14.24-25 serve como
base bıb́ lica para a prática supostamente profética de adivinhar
segredos da vida alheia, especialmente dos visitantes que vão à igreja.
No entanto, esse texto ensina apenas que, tocado pelas verdades
espirituais pronunciadas durante o culto pelos profetas que havia na
igreja primitiva, o descrente se sentiria encorajado a abrir seu coração
em con issão diante dos irmãos. Também pode signi icar que a
corrupção do coração do descrente seria exposta a ele mesmo
através da pregação dos profetas, o que o levaria ao arrependimento.
Nesse sentido, veja-se L , Augustus Nicodemus. O culto espiritual.
São Paulo: Cultura Cristã, 2004. p. 221.
[91]
C , Robert B. From exegesis to exposition. Grand Rapids: Baker,
1999. p. 142.
[92]
Sobre o uso do óleo mencionado em Tiago 5.14, veja-se a nota 1 do
Capítulo7.
[93]
Alguns livros de Hagin que expõem esses ensinos e que estão
disponıv́ eis em português são: Compreendendo a unção; Novos
limiares da fé; Redimidos da miséria, da enfermidade e da morte;
Dons do Espírito; A autoridade do crente; O nome de Jesus, além
de outros, todos publicados no Brasil pela Graça Editorial.
[94]
No Brasil, esses ensinos foram bastante popularizados a partir de
1979 por meio de um pequeno livro chamado Há poder em suas
palavras, de Don Gosset. Nesse livro é possıv́el encontrar a raiz de
diversos desvios doutrinários amplamente aceitos no meio evangélico
de hoje, tais como: 1) O ensino de que a pessoa concretiza tudo o que
declara; 2) O consequente incentivo à repetição de versıć ulos e frases
de vitória a im de se obter sucesso (essa é a razão porque muitos
pastores, durante seus sermões, mandam as pessoas dizer frases
positivas a quem está sentado ao seu lado); 3) A a irmação de que o
crente tem direito a curas, dinheiro e realização e que essas coisas, na
verdade, já lhe pertencem, devendo apenas “tomar posse” delas por
meio da pronúncia de frases; 4) A identi icação de sentimentos e
disposições negativas com espıŕ itos malignos (espıŕ ito do medo,
espıŕ ito do rancor, espıŕ ito da malıć ia, etc.); e 5) O entendimento de
que todas as doenças e males têm como origem o diabo.

[95]
Veja-se no Capítulo11, o modo bıblico como se deve lidar coḿ
membros da igreja que passam por necessidades materiais.
[96]
Para uma exposição sucinta, mas bastante proveitosa dessa
concepção, veja-se R , Op. Cit., p. 97-112.
[97]
Há também o ensino de que as maldições podem estar associadas
ao nome da pessoa, caso esse nome evoque noções de pecado ou de
sofrimento (e.g., Adão, Judas, Maria das Dores, etc.).
[98]
O jejum também é muito enfatizado nesses casos. Porém, o que os
seguidores dessas fábulas chamam de jejum é mera abstinência
supersticiosa de alimentos. A Bíbliamostra que o jejum verdadeiro é
um meio de estimular a concentração na oração quando o crente está
arrependido (Jl 2.12) ou passando por grande tristeza (Mt 9.15) ou
ainda diante de uma imensa tarefa (At 13.2-3). Portanto, quando
alguém jejua não deve apenas abster-se de alimentos, mas também
evitar qualquer outra atividade própria do dia a dia, dedicando-se
exclusivamente à meditação da Palavra e à oração (Is 58.3). Foi esse o
jejum que Jesus praticou no deserto (Mt 4.1-2).
[99]
No Brasil, a proposta de restauração apostólica tem sido defendida
talvez de forma mais elaborada por René Terra Nova, lıd́ er do
Ministério Internacional da Restauração, com sede em Manaus. No
entanto, um número in indável de igrejas evangélicas tem aceitado a
liderança de homens que se autodenominam apóstolos.
[100]
B , Horst e S , Gerhard (Orgs.). Exegetical Dictionary of the
New Testament. Edimburgo: T&T Clark Ltd., 1990. p. 3149.
[101]
Agir como bêbado é visto como sinal de plenitude espiritual
porque, segundo o entendimento dos lıd́ eres dessas igrejas, Atos 2.13
prova que os crentes que estavam em Jerusalém por ocasião do
Pentecoste realmente pareciam embriagados quando o Espıŕ ito veio
sobre eles.
[102]
Herodes, o Grande, reconstruiu o templo de Jerusalém ao longo
de um perıó do de 44 anos (20 a.C. – 64 d.C.), tendo-o feito para cair
no agrado dos judeus sobre quem reinava.
[103]
Para uma noção mais clara sobre as dependências e dimensões do
templo de Jerusalém nos dias do Novo Testamento, veja C , Randall K.
O templo — sua história e seu futuro. Vox Scripturae, São Paulo, v. 2,
n. 1, mar. 1992, p. 67-81. Para o lugar do templo na vida social do
povo de Jerusalém,0 veja D -R , Op. cit., p. 233-43.

[104]
C , Op. Cit., p. 97.

[105]
G , Op. Cit., p. 278.

[106]
Isso também teve como causa o processo de israelização da
igreja. Nesse sentido, veja-se o Capítulo1.

[107]
Tudo isso gera situações inusitadas: Certa vez, um jovem foi
conhecer as novas dependências de uma igreja no Estado do
Espıŕito Santo e, ao subir no púlpito para ter uma visão mais
ampla do todo, foi abordado pelo zelador que, diante de tão
grande sacrilégio, ordenou que ele saıśse dali imediatamente. A
ordem foi de pronto obedecida, mas era tarde: o púlpito já havia
sido profanado!
Numa outra grande igreja, o pastor disse que estava pensando em
“reconsagrar o templo”, pois um conjunto de americanos havia
apresentado ali músicas impróprias para a adoração. A medida
correta teria sido interromper a apresentação e admoestar os
americanos. Se algo devesse ser “reconsagrado”, talvez fosse a vida
deles.
Ainda em outra igreja houve um “culto especial de consagração da
nova bancada”. Durante o evento, a congregação foi obrigada a
permanecer pacientemente em pé por um perıó do interminável.
Jovens, velhos, mulheres e crianças só puderam se sentar nos novos
bancos depois que a “consagração” foi consumada!
[108]
O rasgar do véu também pode indicar a indignação de Deus
(como alguém que rasga as vestes) diante da morte do seu Filho, ou o
prenúncio do juıź o sobre o templo (Mt 23.38), consumado em 70 AD.
Nesse sentido, veja-se N , John. The Gospel of Matthew: a
commentary on the Greek text. Grand Rapids/Michigan: Eerdmans,
2005. p. 1211-1214.

[109]
D -R , Op. cit., p. 233-4.

[110]
A associação da igreja com o romanismo é proposta pelo
ecumenismo. Já a associação com o hinduıś mo é mais sutil e
surge quando os crentes passam a crer, por exemplo, que “há
poder em suas palavras”. Essa crença é não só o corolário da
doutrina hinduıś ta acerca da divindade do homem, mas também
o principal fundamento das práticas tanto antigas como
modernas de feitiçaria. Para mais detalhes sobre o assunto, veja
H , David; MM, T. A. La seducción de la cristianidad. Grand
Rapids: Editorial Portavoz, 1988.

[111]
Quanto à associação da igreja com seitas que se parecem cristãs,
o exemplo mais comum é o espaço dado por alguns pastores aos
adventistas do sétimo dia. Prevalece no meio evangélico a crença
errada de que os adventistas são irmãos na fé, os quais diferem
dos crentes pelo simples fato de se reunirem aos sábados. Nada,
porém, está mais longe da verdade. Os adventistas não são
crentes. Antes constituem uma seita que ensina terrıv́eis
heresias. Dentre elas, sua doutrina sobre o “juıź o investigativo”
contraria Hebreus 9.11-12 e tenta destruir a verdade acerca da
consumação da obra de Cristo realizada na cruz do Calvário. Para
mais detalhes, veja V B, J. K. O caos das seitas. São Paulo:
Imprensa Batista Regular, 1982.
[112]
Veja a exposição sobre o Princípio Regulador do Culto, no
Capítulo2.

Notas do capítulo 10

[113]
No Brasil, um dos livros que melhor re letem essa disposição
teológica conciliadora é M L , Brian. Uma ortodoxia generosa.
Brasıĺ ia: Editora Palavra, 2007. O prefácio à edição americana desse
livro, escrito por John R. Franke, proclama que uma de suas marcas
positivas é a aceitação da possibilidade de salvação para os que estão
fora da fé cristã, recusando que a graça salvadora de Deus esteja
limitada aos crentes (p. 19). De fato, McLaren, no Capítulo4 da sua
obra, se insurge abertamente contra a pregação de Jesus como
salvador pessoal, insistindo que ele é o salvador do mundo. O
propósito do evangelismo, segundo essa concepção, seria convidar as
pessoas a terem uma vida diferente, enquanto participam da
fascinante obra de Cristo de salvar o mundo inteiro.
[114]
Essa é a proposta de Dan Kimball no livro A igreja emergente:
cristianismo clássico para as novas gerações. São Paulo: Vida, 2008.
[115]
Essa é, pelo menos em parte, a proposta de Rick Warren, em seu
livro Uma igreja com propósitos. São Paulo: Vida, 2008.
[116]
Para mais detalhes sobre o Princípio Regulador do Culto veja-se
o Capítulo2.
[117]
O NT também mostra que em meados do século 1 surgiram
credos cristãos e declarações hıń icas que eram adotados pelas igrejas
e que serviam como fator de distinção entre elas e os diversos grupos
heréticos que as rodeavam (Gl 1.9; Fl 2.5-9 [talvez um hino cristão
primitivo]; 2Ts 3.6; 1Tm 3.16 [também um hino cristão antigo]; 6.20;
2Tm 1.14; 2.2). A adoção desses credos e hinos também sinaliza para
as igrejas locais como instituições bem organizadas, com identidade
teológica formalmente de inida, todas comprometidas com uma
tradição doutrinária especı́ ica, cujos contornos eram claros e
inegociáveis.

Notas do capítulo 11

[118]
Até onde a avaliação é possıv́el, não se pode dizer que esse livro
seja proponente da teologia liberal. Sua menção aqui serve apenas
para destacar a contribuição que fez para a visão da igreja como
agente mais presente no campo social – uma visão que coincidiu com
as propostas liberais.
[119]
O texto integral do Pacto de Lausanne em português pode ser
acessado no site www.lausanne.org ou em www.monergismo.com.
[120]
Nesse sentido, veja-se O , Op. Cit., p. 335.

Notas do capítulo 12

[121]
Veja-se Tobias 7.14. O livro apócrifo de Tobias foi escrito em
cerca de 200 a.C. e é reconhecido como canônico pela Igreja Católica.
O judaıś mo e as igrejas protestantes, porém, não o aceitam em seu rol
de livros inspirados.
[122]
Nos tempos do AT, o ritual central de matrimônio era a
condução simbólica da noiva à casa do noivo, o que era seguido de
festejos (Jr 16.9). No dia do casamento, os noivos usavam trajes
especiais (Ct
3.11; Is 61.10) e participavam de um banquete com os convidados (Gn
29.21-23). Esses costumes sofreram modi icações ao longo do tempo,
mas o rito cerimonial que perfaz o casamento nunca deixou de existir
(Veja-se o verbete Marriage in A , Paul (Org.). Harper’s Bible
Dictionary. New York: Harpercollins, 1985.).
[123]
Citado por J , Op. Cit., p. 484.
[124]
Há no meio cristão uma posição ainda mais restritiva que admite
o divórcio somente no caso em que o incrédulo quer se apartar.
Segundo os proponentes dessa visão, o divórcio admitido na hipótese
mencionada em Mateus 5.32 e 19.9 era o rompimento das relações de
noivado. Para uma discussão sobre esse tema, veja-se
K ̈ , Andreas J.; J , David W. Deus, casamento e
famıĺ ia: reconstruindo o fundamento bıb́ lico. São Paulo: Vida Nova,
2011. p. 243-248.
[125]
W , Stuart K. Holman New Testament Commentary (A ,
Max [Edit.]): Matthew. Broadman & Holman Publishers:
Nashville, Tennessee. 2000. p. 328.
[126]
Veja-se, aliás, os textos paralelos de Marcos 10.11-12 e Lucas
16.18, onde não igura nenhuma cláusula de exceção.
[127]
P , Carlos Osvaldo. O Divórcio. Enfoque, Atibaia, nov. 2000, p.
7. Veja-se também H , William A. e W , Gordon J. Jesus and divorce.
London, The Chaucer Press, 1984.
[128]
Outra possıv́el tradução para Mateus 19.9 é: “Quem se divorciar
de sua mulher, o que só poderá fazer se ela for in iel, e se casar com
outra comete adultério”. Note-se que essa opção conecta
corretamente a famosa cláusula de exceção somente à primeira parte
da hipótese – a parte referente ao divórcio.
[129]
Aqui, uma analogia pode ajudar: relações sexuais adulterinas
podem gerar ilhos. Alguém poderá dizer que esses ilhos são
“irregulares”, mas ninguém poderá a irmar que são inexistentes. Da
mesma forma, uma relação sexual adulterina poderá gerar um
casamento irregular. Contudo, não será correto alegar que esse
casamento é irreal ou que não existe. Esse casamento existirá sim,
gerando direitos e obrigações, da mesma forma que um ilho
“irregular” existe de fato e gera direitos e obrigações.

Notas do capítulo 13

[130]
Para análise mais detalhada do assunto, veja-se C ,
Fustel de. A cidade antiga. São Paulo: Editora das Américas, 1961.
[131]
Os jogos olıḿpicos surgiram por volta de 884 a.C. e tinham por
propósito homenagear os deuses da Grécia antiga. Aliás, o imperador
cristão Teodósio I extinguiu a Olimpıá da em 393 d.C. por considerá-la
um rito pagão. A restauração dos jogos só veio em 16 de junho de
1884, num congresso realizado em Paris.

Notas do capítulo 14

[132]
A orientação dada no leito de morte por Jacó (Gn 49.29-33) e
José (Gn 50.24-26) quanto a serem sepultados na terra de Canaã não
foi expressão de capricho tolo. Antes, constituiu ato de fé (Hb 11.22),
uma vez que esses homens criam que um dia ressuscitariam dentre os
mortos e possuiriam para sempre a terra prometida por Deus a
Abraão e seus descendentes (Gn 12.7; 13.14-17; 15.7-21).

Notas da conclusão

[133]
Veja o Capítulo9 (subtıtulo “Avivamentos estranhos”) para ó
ensino bıb́ lico acerca do impacto da verdade sobre as multidões.

Você também pode gostar