Fservienski, 6 - DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA
Fservienski, 6 - DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA
Fservienski, 6 - DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA
PERCEPÇÃO
Resumo
O objetivo deste trabalho é analisar a diversidade religiosa e cultural no contexto das escolhas individuais e
coletivas que envolvem crenças religiosas, no âmbito do ordenamento jurídico pátrio. Para tanto, serão abordadas
questões de religiosidade, fé, liberdade e suas correlações com o Estado Democrático de Direito, frente a conceitos
e diferentes abordagens, pautados no princípio fundamental da dignidade humana bem como em suas dimensões,
no alcance do desenvolvimento histórico, político e social.
Abstract
The objective of this paper is to analyze religious and cultural diversity in the context of individual and collective
choices involving religious beliefs, within the national legal system. To this end, questions of religiosity, faith,
freedom, and their correlations with the Democratic Rule of Law will be addressed, based on the fundamental
principle of human dignity as well as its dimensions, in the scope of historical, political, and social development.
Resumen
El objetivo de este trabajo es analizar la diversidad religiosa y cultural en el contexto de las selecciones individuales
y colectivas que implican creencias religiosas, en el ámbito del ordenamiento jurídico patrio. Para ello, se tratarán
cuestiones relativas a religiosidad, fe, libertad y sus correlaciones con el Estado Democrático de Derecho, ante
conceptos y diferentes enfoques, pautados en el principio fundamental de la dignidad humana, así como en sus
dimensiones, en el logro del desarrollo histórico, político y social.
1 Introdução
A cultura é constituída pelo conjunto dos saberes, dos fazeres, das regras, das normas,
das proibições, das estratégias, das crenças, das ideias, dos valores, dos mitos, que se transmite
de geração em geração, se reproduz em cada indivíduo, controla a existência da sociedade e
mantém a complexidade psicológica e social (MORIN, 2001, p. 56). Assim, a diversidade
1 Doutor em Ciências da Religião (UMESP) e professor na UNINTER (Centro Universitário Internacional). E-mail:
luiz.ro@uninter.com.
2 Graduada em Gestão Pública pela UNINTER. Pós-graduada em Políticas Públicas e Direitos (UNINTER). Graduanda em
Direito pela Universidade do Rio dos Sinos - UNISINOS. Graduanda em Licenciatura em Filosofia pela UNINTER. E-mail:
leila.f@uninter.com.
Dignidade da pessoa humana: levantando o véu da percepção
3 A Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) é um documento marco na história dos direitos humanos. Elaborada
por representantes de diferentes origens jurídicas e culturais de todas as regiões do mundo, a Declaração foi proclamada pela
Assembleia Geral das Nações Unidas em Paris, em 10 de dezembro de 1948, por meio da Resolução 217 A (III), da Assembleia
Geral, como uma norma comum a ser alcançada por todos os povos e nações. Ela estabelece, pela primeira vez, a proteção
universal dos direitos humanos. Traduzida em mais de 500 idiomas — o documento mais traduzido do mundo — inspirou as
constituições de muitos Estados e democracias recentes.
4 O princípio da dignidade da pessoa humana se refere à garantia das necessidades vitais de cada indivíduo, ou seja, um valor
intrínseco como um todo. É um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito, nos termos do artigo 1º, III da Constituição
Federal, sendo fundamento basilar da República (BRASIL, 1988).
5 A cultura pode ser considerada como conjuntos de crenças, conhecimentos, instituições e práticas pelas quais cada
coletividade afirma sua presença no mundo, garante sua continuidade e permanência no tempo.
dos homens, o ser humano é livre para fazer suas escolhas, o que o impede de viver sua vida
em plenitude e gozo de tudo o que lhe apraz?
Pare responder a este e outros questionamentos, é necessário analisar, ainda que
superficialmente, as origens e as implicações concernentes ao livre-arbítrio e à liberdade do ser
humano no convívio em sociedade, se é que em algum tempo ou momento o homem foi
realmente livre debaixo do céu. Pois, na visão do filósofo suíço, Jean Jacques Rousseau6, o
homem é naturalmente bom e, provavelmente, poderia viver com certo grau de reciprocidade
amigável se vivesse em uma floresta à base de seus próprios recursos, em um estado de
natureza. Porém, ao submeter-se a um contrato social, sob o jugo de um Estado, longe do estado
de natureza, o ser humano teria se tornado ganancioso, invejoso e possuidor de um sentimento
contínuo de dominar os outros e tornar-se o centro da atenção.
Assim, vale citar a célebre frase de Rousseau (2011, p. 17): “O homem nasceu livre, e
por toda a parte geme agrilhoado; o que julga ser senhor dos demais é de todos o maior escravo”.
Observando as palavras do autor, é possível inferir que todo ser humano após o nascimento,
ainda que entendesse ser livre, e ainda que imaginasse ser superior aos outros, seria, talvez por
sua arrogância, o escravo maior.
Neste contexto, quais seriam estes lugares, e por qual motivo o homem estaria
acorrentado? Thomas Hobbes (1588 – 1640), ao aborda a origem do poder do Estado, em sua
obra "Leviatã”7, afirma que a humanidade possui um desejo perpétuo e inquieto de poder, que
cessa apenas com a morte. Afirma, também, sobre o poder do Estado:
O maior dos poderes humanos é aquele que é composto pelos poderes de vários
homens, unidos por consentimento numa só pessoa, natural ou civil, que tem o uso de
todos os poderes na dependência de sua vontade: é o caso do poder de um Estado
(HOBBES, 1997, p. 53).
Nota-se uma conexão entre Rousseau e Hobbes: um narra a liberdade ao nascer e o outro
o fim do poder (que escraviza), que só cessa com a morte. Ou seja, de certa forma, os dois
concordam com a falta de plenitude da liberdade, o que pode ser constatado a partir do Contrato
Social (ROUSSEAU, 2011), segundo o qual as pessoas, de bom grado, restringem suas
liberdades em prol da cooperação e da paz, concordando em conceder sua soberania ao Estado,
com poder absoluto, para que atenda a vontade de todos, a paz em casa e a ajuda mútua contra
6 Jean-Jacques Rousseau foi filósofo, escritor, teórico político e compositor. Autor da obra Contrato Social (1762), teve vários
de seus livros banidos pela Igreja Católica por apresentarem conceitos religiosos pouco convencionais para a época, como a
ideia de que a verdadeira religião vinha do coração.
7 Leviatã, muitas vezes é ligado a Behemoth, um terrível monstro marinho mítico que aparece em várias histórias da criação
no Antigo Testamento e em outros lugares. O nome é usado por Hobbes para sugerir o poder do Estado.
os inimigos. Logo, não é difícil perceber que, desde sempre, a liberdade é algo desejável e ao
mesmo tempo complexo.
Sendo assim, passa-se a analisar a liberdade no sentido de livre-arbítrio. Santo
Agostinho (1995), no livro I da obra Livre-Arbítrio, comenta sobre a liberdade de vontade
existente no ser humano e que essa vontade procede da graça; o livre-arbítrio significa ter acesso
ao poder de decisão, de maneira que o mal não vem de Deus, mas do poder de escolha que o
homem exerce através de sua vontade.
O mal é evidente, principalmente nos dias de hoje, com o advento da pandemia da Covid
19 8; a todo o momento famílias estão sendo destruídas, a fome e a miséria assolam várias
nações e o noticiário sobre o número de mortos, nos veículos de comunicação, passa a fazer
parte da rotina, assim como a previsão do tempo. Mas é possível deduzir que foram as escolhas
dos homens que trouxeram esse mal até aqui, neste cenário de tristeza e incertezas. Ben Dupré,
a respeito do livre-arbítrio, menciona:
8 A COVID-19 é uma doença infecciosa causada pelo novo coronavírus (SARS-CoV-2). Uma em cada seis pessoas infectadas
por COVID-19 fica gravemente doente e desenvolve dificuldade de respirar. As pessoas idosas e as que têm outras condições
de saúde, como pressão alta, problemas cardíacos e do pulmão, diabetes ou câncer, têm maior risco de ficarem gravemente
doentes. No entanto, qualquer pessoa pode se contagiar e ficar gravemente doente (OPAS/OMS, 2021).
9 Racista é aquele que demonstra racismo, denominação da discriminação e do preconceito (direta ou indiretamente) contra
indivíduos ou grupos por causa de sua etnia ou cor. Dia 21 de março é o Dia Internacional da Luta Contra a Discriminação
Racial (NAÇÕES UNIDAS, 2021).
10 Xenofóbico é aquele que demonstra temor, aversão ou ódio aos estrangeiros ou à cultura estrangeira, seu comportamento,
ideia e cultura.
11 Homofobia são atitudes e sentimentos negativos, discriminatórios em relação a pessoas que sentem atração por pessoas do
mesmo sexo.
Amartya Sen12 considera que o desenvolvimento está conectado à liberdade, que elege
como indicador de êxito ou fracasso do desenvolvimento. Nessa concepção, a liberdade é o
elemento constitutivo básico do desenvolvimento, responsável pela expansão das capacidades
humanas, pelo aumento das possibilidades de as pessoas viverem o tipo de vida que valorizam
e alcançarem os resultados que desejam, e assim, cuidar de si e influenciar no mundo.
12 Amartya Sen, em 1998, recebeu o Nobel de Economia por sua formulação original sobre desenvolvimento, processo que
passou a ser visto como uma extensão das liberdades para trabalhar, consumir, dispor de saúde e educação de qualidade e
expressar livremente os pensamentos. Sen é um dos criadores do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH).
(https://exame.com/economia/mercados-justica-e-liberdade/).
constitucional. Embora complexo, o direito está impregnado pela essência que invade os
campos — nem sempre floridos e por vezes espinhentos —, das relações no que tange à
diversidade cultural assegurada pela UNESCO (2002) em seu artigo 4º – Os direitos humanos,
garantes da diversidade cultural:
Mesmo hoje, existem rituais relacionados aos povos originários que ferem, sem
consciência, o direito intransponível à vida. No entanto, diante de tais dogmas, ainda que
sagrados, prevalece o direito à vida e à dignidade. Assim, salienta-se que o reconhecimento da
identidade cultural dos povos indígenas constitui questão fundamental para assegurar uma
relação harmoniosa entre direitos humanos e o direito costumeiro indígena. Em meio a tais
13Autóctones são naturais do país ou da região em que habitam e descendem das raças que ali sempre viveram; aborígene,
indígena.
movimentos, caracterizados pela luta contra a supressão das identidades culturais pela
globalização, um de essencial importância refere-se ao movimento de preservação das tradições
e das culturas indígenas, movimento esse que exige a constante interação entre culturas para o
respeito à autonomia e identidade indígenas e para que não haja imposição da cultura nacional
sobre a local.
14O conceito de raça engloba características fenotípicas, como a cor da pele; a etnia também compreende fatores culturais,
como a nacionalidade, afiliação tribal, religião, língua e as tradições de um determinado grupo
pelo Supremo Tribunal Federal na Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.27715, que tratou do
pedido formulado pelo requerente. Trata-se da aplicação do regime jurídico previsto no artigo
1.723 do Código Civil às uniões entre pessoas do mesmo sexo, com a intenção de constituir
família. Para elucidar quão importante é o Princípio da Dignidade Humana no combate a
preconceitos e na promoção da diversidade, vale citar parte do voto do Ministro Celso de Mello
(ADI 4.277):
A cultura é constituída pelo conjunto de proibições, das estratégias, das crenças, das
ideias, dos valores, dos mitos, que se transmite de geração em geração, se reproduz
em cada indivíduo, controla a existência da sociedade e mantém a complexidade
psicológica e social. Não há sociedade humana, arcaica ou moderna, desprovida de
cultura, mas cada cultura é singular (MORIN, 2001, p. 55).
Logo, a educação é a peça fundamental para a real transformação, pois se a cultura está
em toda sociedade e é transmitida às novas gerações, é crucial que exista um olhar atento para
a política educacional, principalmente em âmbito nacional. Nesse contexto, Morin (2001, p.
54), destaca que “cabe à educação do futuro cuidar para que a ideia de unidade da espécie
humana não apague a ideia de diversidade, e que a da sua diversidade não apague a da unidade”.
15 Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) é a ação que tem por finalidade declarar que uma lei ou parte dela é
inconstitucional, ou seja, contraria à Constituição Federal. Disponível em:
http://stf.jus.br/portal/peticaoInicial/verPeticaoInicial.asp?base=ADI&documento=&s1=4277&numProcesso=4277
A promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e
quaisquer outras formas de discriminação está prevista na Constituição Federal de 1988, o que
não significa que não exista, muito pelo contrário. O preconceito e a discriminação, com o
advento da pandemia do Coronavirus, tornaram-se evidentes e visíveis, até para quem não quer
ver. As diferenças sociais, relacionadas com a crise da pandemia podem-se constatar nos dados
do Ministério da Saúde, publicados na Folha de São Paulo em 10/04/2020 (MENA, 2020); a
letalidade da COVID-19 incide nas populações mais carentes e precárias. Importante ressaltar
que o censo do IBGE16 de 2010, identificou que viviam no país 91 milhões de pessoas que se
classificaram como brancas (47,7%), cerca de 82 milhões que se declararam pardas (43,1%) e
15 milhões, pretas (7,6%), formando um contingente maior de pessoas negras e pardas17. Ainda,
segundo dados do IBGE18, mais de 13,6 milhões de pessoas vivem abaixo da linha da extrema
pobreza e quase 46 milhões de brasileiros declaram ter algum grau de dificuldade em pelo
menos uma das habilidades investigadas (enxergar, ouvir, caminhar ou subir degraus), ou
possuir deficiência mental / intelectual19.
Ora, considerando os dados, não se pode esquecer que pessoas pobres e com deficiências
também são alvo de discriminação e preconceitos. De modo que uma parcela importante da
população brasileira está mais vulnerável a sofrimentos físicos e psicológicos, em razão de sua
condição. Sobre a condição de sofrimento do pobre, Rossi apresenta a figura de Jó como um
representante legítimo de todos os seres humanos:
16 O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE se constitui no principal provedor de dados e informações do Brasil.
17https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/21206-ibge-mostra-as-cores-da-
desigualdade
18 Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) 2019.
19IBGE2010 https://educa.ibge.gov.br/jovens/conheca-o-brasil/populacao/20551-pessoas-com-deficiencia.html
Jó descreve para Deus a condição do ser humano que sofre, constituindo-se ele mesmo
um exemplo de todos. Por isso, não devemos ver Jó como uma exceção, mas um porta-
voz de tantas outras vítimas de uma sociedade esmagadoramente desigual. Seus gritos
não são os únicos, nem os primeiros. Eles se juntam aos gritos de tantos que têm
sofrido ao longo da história. As dores de Jó, assim como as nossas, podem ser curadas
com a solidariedade (ROSSI, 2018, p.12).
20Série documental Amend: The Fight For América (Emenda: A Luta Pela América, em uma tradução livre). A produção
discute a 14a emenda, criada em 1868 no país, que promete liberdade e proteção igualitária para todos os cidadãos.
21 54º quinquagésimo quarto Dia Mundial da Paz.
O Mito da Caverna22, ainda há muito chão a se percorrer, neste mundo de gente que às vezes
nem parece ser gente.
Há, no entanto, dispositivos criados por organizações internacionais que objetivam
tutelar o direito à cultura e à diversidade. Um deles é Princípio da Autodeterminação dos Povos,
que visa assegurar a independência, a liberdade e o direito de organização própria dos povos e
que preza pela livre deliberação dos povos a respeito de sua organização.
Quanto à sociedade brasileira, a diversidade religiosa foi perseguida e inviabilizada em
razão de um processo colonizador enraizado na supremacia da cultura europeia e da
universalidade do cristianismo, em razão de alianças firmadas entre a Igreja e o poder político.
De modo que as culturas e crenças indígenas e africanas foram arrancadas à força, para que
servissem como escravos nos territórios conquistados. As diferentes minorias étnicas (judeus e
ciganos foram combatidos, convertidos e negados) foram discriminadas em nome de ideais
civilizatórios exclusivistas.
6 Considerações finais
Considerando o atual cenário, é bem verdade que o ser humano está rodeado de
incertezas, sacudido pelas tempestades da crise da pandemia da Covid 19, mas continua firme
na esperança de que um amanhã mais justo e igualitário há de surgir, com o romper de um
“novo normal”, em que as diferenças sejam mitigadas e que a diversidade sirva para aproximar
e não para afastar.
Ainda há muito a ser feito, mas alguns avanços foram percebidos nos últimos tempos,
sob a tutela jurídica e devido à mobilização de organizações internacionais que prezam pelo
princípio da dignidade humana, essencial para ampliar direitos e promover a diversidade de
todos os tipos. Novos horizontes e sentidos poderão se abrir a partir do ensino e do esforço de
todos para remover o véu da ignorância, que desde a época dos primórdios insiste em
permanecer, parecendo ter sido confeccionado em tecido de natureza perpétua. Alguns não se
rasgarão nunca, mas de sorte, ainda podem ser levantados para que haja pelo menos uma
percepção do que realmente é a diversidade. Linda e apaixonante, sem cavernas sombrias, sem
cheiro de podridão, cheira a flores do campo, de todas as cores, vistas de uma varanda, em um
lindo dia de sol e céu azul.
22 Mito da caverna é uma metáfora criada pelo filósofo grego Platão, que consiste na tentativa de explicar a condição de
ignorância em que vivem os seres humanos e o que seria necessário para atingir o verdadeiro “mundo real”, baseado na razão
acima dos sentidos.
Referências
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