Ac. TC 338 - 2018
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Ac. TC 338 - 2018
13/09/23, 12:37
ACÓRDÃO Nº 338/2018
I - Relatório
Tais deveres de comunicação e de registo, quando não cumpridos, sempre levarão a que
a realidade dos factos seja diferente da realidade constante do livrete e/ou do registo
automóvel, o que coloca a questão de saber se o que vale juridicamente é a informação que
consta do registo, sem mais.
Ora, como vimos já, o registo constitui mera presunção de que o direito existe e
pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que se encontra registado, sendo tal
presunção registral ilidível mediante prova em contrário, configurando-se assim como uma
presunção juris tantum e não como uma presunção juris et de jure (cfr. art.º 350.º do Código
Civil).
In casu, é certo que a propriedade do veículo em causa estava, ao tempo das infrações,
registada em nome da ora Recorrente (cfr. facto provado sob o ponto 7.). Não obstante,
comprovou-se que a Recorrente havia vendido o mesmo em momento anterior aos factos
cuja responsabilidade lhe foi imputada (cfr. facto provado sob o ponto 6.). Pelo que, pese
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embora seja ela quem consta no registo automóvel como proprietária do veículo em causa ao
tempo dos factos, sempre é de considerar que ilidiu a presunção decorrente das normas do
registo automóvel.
Não obstante, esta conclusão sempre esbarraria com uma presunção legal inilidível
prevista no artigo 10.º, n.º 6, da Lei n.º 25/2006, que, a nosso ver, é manifestamente
inconstitucional e, por essa mesma razão, se desaplicará no caso em apreço,
Prevê-se nesse artigo que é sempre responsável pelo pagamento das coimas a aplicar “o
proprietário, o adquirente com reserva de propriedade, o usufrutuário, o locatário em regime
de locação financeira ou o detentor do veículo”, consoante seja o titular do documento de
identificação do veículo, se o mesmo não identificar o condutor do veículo no prazo de 15
dias úteis após ter sido notificado para o efeito, ou não provar, no mesmo prazo, a utilização
abusiva do veículo por terceiros: “[o] direito de ilidir a presunção de responsabilidade
prevista no n.º 3, considera-se definitivamente precludido caso não seja exercido no prazo
referido no n.º 1”.
Ora, uma norma legal que impõe a responsabilidade do agente no pagamento da coima e
das custas (normalmente o proprietário registado do veículo que transpôs a portagem),
independentemente da sua real participação nos factos e da prova que sobre isso for feita
mesmo em processo judicial, sempre implicaria que o Tribunal nunca pudesse relevar
qualquer prova sobre a autoria dos factos ou nunca pudesse sequer fazer atuar o princípio in
dubio pro reo quando não conseguisse firmar convicção sobre a efetiva autoria dos factos
pelo arguido.
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Pelo que se entende que a norma prevista no artigo 10.º, n.º 6, da Lei n.º 25/2006, ao
determinar a existência de uma responsabilidade objetiva, inilidível, em matéria de direito
sancionatório (que a Constituição implicitamente equipara à matéria penal), viola o princípio
da culpa, implícito na subordinação da Lei à dignidade humana, bem como o princípio do
direito de defesa em processo de contra ordenação consagrado na Lei Fundamental (artigos
1.º e 32.º, n.º 10 da Constituição da República Portuguesa) e poderá ainda violar o princípio
in dubio pro reo decorrente do princípio de presunção de inocência do arguido consagrado no
artigo 32.º, n.º 2 da Constituição.
1. A Mma Juíza desaplicou a norma prevista no art.º 10.º, n.º 6 da Lei n.º 25/2006, de
30 de junho, na redação introduzida pela Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro,
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de portagem.
5ª. Por outro lado, a jurisprudência «também tem sublinhado que a reconhecida
inexigibilidade de estrita equiparação entre processo contraordenacional e processo criminal
é conciliável com “a necessidade de serem observados determinados princípios comuns que
o legislador contraordenacional será chamado a concretizar dentro de um poder de
conformação mais aberto do que aquele que lhe caberá em matéria de processo penal” (Acs.
n.º 469/97, 278/99 e 373/15).
7ª. A norma constante do n.º 6 do art. 10.º da Lei 25/2006, «ao determinar a existência
de uma responsabilidade objetiva, inilidível», radicalmente e nos precisos termos em que é
na sentença interpretada, viola, à luz da jurisprudência considerada, o princípio da culpa, que
o legislador está obrigado a respeitar, na conformação do ilícito contraordenacional em
causa.
8ª. Violação tanto mais impressiva e desrazoável, quando posta em confronto, como se
procede na sentença, com normas paralelas de responsabilidade contraordenacional em
matéria de infrações rodoviárias, algumas passíveis de maior censura social, ou quando,
inscrevendo-se o regime sancionatório estabelecido na Lei 25/2006 no quadro do RGIT (art.
18.º da mesma lei), neste sempre a verificação de um facto culposo é exigido (arts. 2.º e 24.º,
n.º 1 do RGIT).
9ª. Quanto à violação da garantia do direito de defesa (art. 30.º, n.º 10 da Constituição),
em causa, verdadeiramente, os descritos amputados termos em que o recurso judicial da
decisão de aplicação da coima é admitido: o exame da questão adequar-se-á em sede das
garantias de tutela jurisdicional efetiva (art. 20.º, n.ºs. 1 e 4, da Constituição) e de
impugnação dos atos administrativos sancionatórios perante os tribunais (art. 268.º, n.º 4 da
Constituição).
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11ª. No retomar da mesma linha, com diferença de grau – «sempre implicaria que o
Tribunal nunca pudesse relevar qualquer prova sobre a autoria dos factos ou nunca pudesse
sequer fazer atuar o princípio in dubio pro reo quando não conseguisse firmar convicção
sobre a efetiva autoria dos factos pelo arguido» –, igualmente se abrirá a possibilidade de
verificação de violação do princípio in dubio pro reo, decorrente do princípio de presunção
de inocência do arguido (art. 32.º, n.º 2 da Constituição).
13ª. Assim como o legislador, à luz do art. 32.º, n.º 2 da Constituição, «não deve
construir as normas penais de tal modo que, através das suas formulações, possa o
cometimento do crime presumir-se» (Acs. 270/87, 426/91, 135/92, 252/92, 246/96, 604/97,
609/99 e 377/15), também a aplicação desse núcleo essencial o deverá limitar em matéria
contraordenacional.
15ª. «Entre uma interpretação que é conforme à Constituição e outra que com ela é
incompatível, o intérprete (juiz incluído) deve preferir sempre o sentido que o texto
constitucional suporta. Se o não fizer e desaplicar a norma legal com fundamento em
inconstitucionalidade, no recurso que subir ao Tribunal Constitucional, deve este fixar o
sentido da norma que é compatível com a Constituição, e mandar aplicar esta no processo
com tal interpretação» (Acs. 163/95, 198/95, 609/95 e 276/04).
18ª. O art. 10.º da Lei 25/2006 situa-se na fase administrativa do processo de aplicação
da coima – o seu n.º 6 tão só consagra o princípio de preclusão procedimental em matéria de
ilisão da presunção estabelecida no mesmo artigo, em vista ao ordenado prosseguimento da
instrução.
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19ª. Disposição que não alcança o regime aplicável à fase judicial – nem a Lei 25/2006
editou qualquer norma a esta concernente: regem, quanto ao recurso judicial da aplicação
administrativa da coima, os arts. 80.º e ss. do RGIT (ex vi, art. 18.º da Lei 25/2006) e,
também subsidiariamente, os arts. 59.º e ss. do RGIMOS (art. 3.º, alínea b) do RGIT).
21ª. A concluir o Tribunal no sentido apontado, tendo a norma por não aplicável à fase
judicial (tal como a decisão recorrida a desaplicou, embora por a ter julgado
inconstitucional), daí não se deverá seguir a «falta de interesse jurídico na decisão da questão
de constitucionalidade que os autos propõem. Relevante é o facto de a aplicação de tais
preceitos se ter fundamentado num juízo de inconstitucionalidade. A desaplicação, com
fundamento em inconstitucionalidade, […] constitui, na verdade, pressuposto do recurso (cf.
alínea a) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional) e confere interesse jurídico
relevante ao conhecimento de tal questão de constitucionalidade, sendo que o seu julgamento
pode, justamente, concluir-se pela imposição de uma interpretação […] (cf. artigo 80º, nº 3,
da Lei do Tribunal Constitucional)».
II – Fundamentação
5. A norma que constitui o objeto do presente recurso integra o n.º 6 do artigo 10.º
da Lei n.º 25/2006, de 30 de junho, que aprova o regime sancionatório aplicável às
contraordenações ocorridas em matéria de infraestruturas rodoviárias onde seja devido o
pagamento de taxas de portagem, cuja redação é a seguinte:
Artigo 10.º
1 - Sempre que não for possível identificar o condutor do veículo no momento da prática
da contraordenação, as concessionárias, as subconcessionárias, as entidades de cobrança das
taxas de portagem ou as entidades gestoras de sistemas eletrónicos de cobrança de portagens,
consoante os casos, notificam o titular do documento de identificação do veículo para que
este, no prazo de 30 dias úteis, proceda a essa identificação ou pague voluntariamente o valor
da taxa de portagem e os custos administrativos associados.
2 - A identificação referida no número anterior deve, sob pena de não produzir efeitos,
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indicar, cumulativamente:
a) Nome completo;
b) Residência completa;
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Mérito do recurso
6. No entender do Tribunal a quo, a norma do n.º 6 do artigo 10.º da Lei n.º 25/2006,
de 30 de junho, introduzida pela Lei n.º 64-B/2011, de 30 de dezembro, viola três
parâmetros constitucionais: (i) o princípio da culpa, implícito na subordinação da lei à
dignidade humana, na medida em que impõe uma responsabilidade objetiva, inilidível,
em matéria sancionatória; (ii) o princípio do direito de defesa em processo
contraordenacional, na medida em que não permite ao arguido provar a autoria efetiva
dos factos; (iii) e o princípio de presunção de inocência, porque não permite ao Tribunal
atuar o princípio in dubio pro reo.
Estando em causa garantias constitucionais em matéria de contraordenações,
importa começar por analisar os traços gerais da jurisprudência constitucional sobre o
assunto.
Tem sido entendimento do Tribunal Constitucional que as garantias constitucionais
previstas no artigo 32.º da CRP se aplicam no domínio das contraordenações com
algumas adaptações. Neste sentido, tem-se considerado que o legislador dispõe de uma
margem de apreciação mais ampla no âmbito das contraordenações.
No preâmbulo do Decreto-Lei n.º 231/79, de 24 de julho, que introduziu o ilícito de
mera ordenação social na ordem jurídica portuguesa, começou por se afirmar que «hoje
é pacífica a ideia de que entre os dois ramos de direito medeia uma autêntica diferença:
não se trata apenas de uma diferença de quantidade ou puramente formal, mas de uma
diferença de natureza. A contraordenação “é um aliud que se diferencia qualitativamente
do crime na medida em que o respetivo ilícito e as reações que lhe cabem não são
diretamente fundamentáveis num plano ético-jurídico, não estando, portanto, sujeitas
aos princípios e corolários do direito criminal” [...]. Está em causa um ordenamento
sancionatório distinto do direito criminal. Não é, por isso, admissível qualquer forma de
prisão preventiva ou sancionatória, nem sequer a pena de multa ou qualquer outra que
pressuponha a expiação da censura ético pessoal que aqui não intervém. A sanção
normal do direito de ordenação social é a coima, sanção de natureza administrativa,
aplicada por autoridade administrativa, com o sentido dissuasor de uma advertência
social, pode, consequentemente, admitir-se a sua aplicação às pessoas coletivas e adotar-
se um processo extremamente simplificado e aberto aos corolários do princípio da
oportunidade».
Para efeitos de distinção entre ambos os ilícitos, a jurisprudência do Tribunal
Constitucional tem seguido fundamentalmente os critérios da ressonância ética e dos
diferentes bens jurídicos em causa (Acórdãos n.ºs 158/92, 344/93, 469/97, 461/2011,
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Por seu turno, o Acórdão n.º 201/14 não deixou de sublinhar que “retira-se da
jurisprudência do Tribunal Constitucional que o princípio da culpa se impõe também
como limite à liberdade de conformação do legislador do ilícito contraordenacional,
ainda que a margem dessa liberdade seja maior relativamente àquela de que este dispõe
na configuração do ilícito penal, designadamente no que se refere à definição do que o
legislador pode assumir e o que deve ser deixado ao juiz na determinação concreta da
sanção”.
Ou seja, apesar de todas as diferenças de conteúdo e significado que o princípio da
culpa assume no domínio contraordenacional, sempre se dirá que, ainda assim, o mesmo
atua como limite da responsabilidade contraordenacional, assumindo aí, contudo, um
diferente sentido e conteúdo. Neste particular, o Acórdão n.º 180/14 afirmou que a
culpa, nesse contexto, se traduz na ideia de “imputação do facto à responsabilidade
social do seu autor, que serve como especial advertência ou reprimenda relacionada
com a observância de certas proibições ou imposições legislativas”.
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No que respeita ao primeiro aspeto, verifica-se que a norma sub judicio não sacrifica
totalmente o princípio da proibição de transmissão da responsabilidade. Com efeito, os
sujeitos ficam apenas responsáveis pelo pagamento da coima, não lhes sendo transmitida a
autoria do ilícito contraordenacional em si mesma considerada (v. supra, ponto 6).
A isso acresce que a transmissão da responsabilidade não opera entre indivíduos mas
sim entre uma pessoa coletiva, entidade responsável pela contraordenação laboral, e titulares
de órgãos executivos dessa mesma pessoa coletiva. Dada a conexão objetivamente existente
entre o sujeito passivo responsável pela contraordenação e os sujeitos que, nos termos da
norma sub judicio, ficam responsáveis pelo pagamento da coima, não se afigura que a
compressão do princípio da proibição de transmissão da responsabilidade se aproxime sequer
do seu núcleo.
Por sua vez, no que se refere à vantagem que através dela se obtém para efeitos da
proteção dos deveres estaduais que se extraem do artigo 59.º, n.º 1, alínea c), é admissível o
entendimento segundo o qual o envolvimento, através da assunção coerciva da
responsabilidade pelo pagamento da coima, dos administradores, gerentes ou diretores da
pessoa coletiva responsável pela contraordenação-laboral, garante, diretamente, uma maior
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eficácia na cobrança efetiva da coima, e, através disso, indiretamente, uma mais elevada
probabilidade de que a infração não chegará sequer a ser cometida, assim se protegendo
melhor bens jusfundamentais.
Por seu turno, o Acórdão n.º 691/16 não julgou inconstitucional a norma decorrente
do n.º 1 do artigo 551.º do Código do Trabalho, que estabelece que «o empregador é o
responsável pelas contraordenações laborais, ainda que praticadas pelos seus
trabalhadores no exercício das respetivas funções, sem prejuízo da responsabilidade
cometida por lei a outros sujeitos». O Tribunal Constitucional considerou que, por
impender sobre a entidade patronal o dever legal de garantir as condições de segurança
no trabalho, a mesma era contraordenacionalmente responsável, não apenas nas
hipóteses em que, por ação sua, tivesse diretamente originado o resultado antijurídico,
mas ainda no contexto de uma contribuição omissiva, causal ou cocausalmente
promotora do resultado típico presumido, quando a infração fosse cometida por
trabalhadores que se encontrassem ao seu serviço. Nesse sentido, considerou-se que a
solução contida no n.º 1 do artigo 551.º do CT, de admitir a responsabilidade autónoma
do empregador, sempre que um dever legal seja violado pelos seus trabalhadores, no
exercício das suas funções e por causa delas, não poderia ser considerada violadora do
princípio penal da culpa. A responsabilidade geral referente às condições de segurança
no trabalho legalmente atribuída ao empregador foi considerada suficiente para que a
transmissibilidade dessa autoria não violasse princípios constitucionais.
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É nesta lógica que, em casos como este, a regra de imputação colocada pelo conceito
extensivo de autor conduzirá à responsabilização da entidade dirigente titular do dever de
garante sempre que se tenha verificado o resultado (a inobservância do dever) que ela se
encontrava legalmente incumbida de evitar. Impendendo sobre a entidade patronal, o dever
legal de garantir o cumprimento das regras respeitantes aos tempos de condução, pausas e
tempos de repouso e ao controlo da utilização de tacógrafos, na atividade de transporte
rodoviário, ela é contraordenacionalmente responsabilizável, nos termos previstos no
diploma em análise, não apenas nas hipóteses em que, por ação sua, tiver originado
diretamente o resultado antijurídico, mas ainda no contexto de uma contribuição omissiva,
causal ou cocausalmente promotora do resultado típico presumida, quando a infração é
cometida pelo condutor que se encontra ao seu serviço
10. No que toca ao uso de presunções, as presunções legais - como releva para o
caso sub judice - são normas criadas pelo legislador que estabelecem uma relação entre
um facto conhecido (provado) e um facto desconhecido ou incerto, inferindo este último
a partir daquele (isto, tendo presente a noção legal de presunção contida no artigo 349.º
do Código Civil: presunções são as ilações que a lei (…) tira de um facto conhecido
para firmar um facto desconhecido). Ou seja, a presunção assenta numa relação lógica
estabelecida pelo legislador entre o facto-base ou facto indiciário e o facto presumido.
A presunção legal opera uma inversão do ónus da prova, desonerando desta, aqueles
que têm a presunção a seu favor (Acórdão n.º 211/2017). Por regra, as presunções legais
estabelecem uma verdade presumida (não provada) que poderá vir a ser infirmada
mediante prova em contrário – presunções ilidíveis ou presunções iuris tantum; já as
presunções iuris et de iure não admitem prova em contrário, sendo assim também
chamadas de presunções inilidíveis ou absolutas, e tidas como a exceção àquela regra
(artigo 350.º, n.ºs 1 e 2 do CCv).
Ora, no que tange às presunções em matéria sancionatória, o Tribunal
Constitucional, no Acórdão n.º 276/2004, procedeu a uma interpretação conforme à
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Constituição do disposto no artigo 152.º, n.º 1 do Código da Estrada (que determina que
caso o agente da autoridade não consiga identificar o autor da contra-ordenação, a
responsabilidade recai sobre quem for proprietário, adquirente com reserva de
propriedade, usufrutuário, locatário em regime de locação financeira, locatário por prazo
superior a um ano ou sobre quem, em virtude de facto sujeito a registo, for possuidor do
veículo, sendo instaurado contra ele o correspondente processo), firmando que tal
normativo apenas estabelece uma presunção ilidível. Ali se escreveu, além do mais, que:
“De facto, como acontece no presente caso, não é aceitável concluir que uma norma
como a do n.º 1 do artigo 152º do Código da Estrada, que estabelece a possibilidade de a
responsabilidade contra-ordenacional, em determinadas circunstâncias, ser atribuída ao
proprietário ou possuidor de um veículo, possa ser interpretada no sentido de abranger
situações em que está provado nos autos não só que o arguido, à data da infração, já não era
proprietário ou possuidor do veículo - embora o seu nome constasse ainda do registo, mas
também que foi um terceiro, devidamente identificado, o infrator. Interpretar o mencionado
artigo 152º, n.º 1, em termos de considerar responsável quem não é proprietário ou
possuidor, apenas porque como tal consta do registo, quando está provado, ainda, que não foi
esse o infrator, mas sim outro, devidamente identificado, é imputar a tal normativo um
sentido desrazoável - um sentido que o intérprete só extrai, se desrespeitar, na interpretação,
o dever de presumir que “o legislador consagrou as soluções mais acertadas” (cfr. artigo 9º,
n.º 3, do Código Civil).
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12. Resta, pois, verificar se tal conteúdo mínimo do princípio da culpa, atuante no
contexto da responsabilidade contraordenacional, é lesado com a norma delimitada
como constituindo o objeto do presente recurso.
O Tribunal interpretou a norma objeto do presente recurso no sentido de que,
sempre que não for possível identificar o condutor do veículo no momento da prática da
contraordenação, é sempre responsável pelo pagamento das coimas a aplicar, das taxas
de portagem e dos custos administrativos em dívida, o proprietário do veículo,
identificado no registo, tornando-se essa presunção inilidível em sede do próprio
processo judicial de impugnação da decisão administrativa.
Ora, ainda que se considere que o princípio da culpa não reveste o mesmo
significado em matéria contra-ordenacional, tal interpretação afronta, de facto, o
conteúdo mínimo de tal princípio. A interpretação em causa impõe a responsabilidade
do proprietário registado do veículo que faltou ao pagamento da coima e das custas,
independentemente da sua real participação nos factos e mesmo na ausência de
qualquer ligação com o autor da infração à data dos mesmos. Ou seja, a mencionada
interpretação impõe a responsabilização de quem pode não ter tido qualquer
participação, conexão ou ainda aproveitamento pessoal dos factos praticados.
Perante tal resultado, e recuperando a específica configuração dos princípios da
culpa e da proibição de transferência de responsabilidade sancionatória no domínio
contraordenacional, bem como o maior poder de conformação do legislador nesta
matéria, a análise da solução legal far-se-á, então, tendo em consideração os interesses
públicos que a mesma visa acautelar, de forma a determinar se o legislador ultrapassou a
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13. Aqui chegados, como bem se referiu na sentença recorrida, ao contrário do que
sucede com as normas de responsabilidade contraordenacional em infrações rodoviárias
– que prevêem uma responsabilidade meramente subsidiária do titular do documento de
identificação do veículo (ou do locatário) pelo pagamento das coimas e das custas que
forem devidas pelo autor da contra-ordenação, e ainda a possibilidade do exercício do
direito de regresso contra o autor da contra-ordenação, caso tenha havido detenção
abusiva do veículo (artigo 135.º, n.º 8 do Código da Estrada) - a norma ora sindicada,
relativa à falta de pagamento de taxa de portagem, não estabelece qualquer
responsabilidade subsidiária do titular do documento de identificação do veículo pelo
pagamento das coimas e das custas que forem devidas pelo autor da contra-ordenação.
Mais: na interpretação sub judice, caso aquele titular não identifique outra pessoa num
prazo de 30 dias, não lhe é mais permitido ilidir a presunção da sua responsabilidade,
mesmo em sede de impugnação judicial.
Interpretada da forma como o foi pelo tribunal recorrido, a presente norma pode
impor a responsabilidade pelo pagamento dos valores devidos pela portagem e
contraordenação a quem não tenha qualquer ligação com o autor da prática da infração.
De facto, ainda de acordo com a referida interpretação, decorrido o referido prazo de
quinze dias, o ex-proprietário do veículo - ainda que comprovada a venda do mesmo,
mas não se encontrando a mesma registada -, responderá sempre pela prática das
contraordenações em causa, decorrido o aludido prazo.
Ora, tal responsabilização faz perigar o núcleo essencial do princípio da culpa que,
ainda que em matéria de contraordenações, se impõe ser reconhecido, sob pena de
postergar um mínimo de previsibilidade sobre as consequências dos comportamentos
individuais, o que é insustentável num Estado de Direito.
De resto, tal solução legal não se afigura minimamente proporcional às pretensões
do legislador: obter o pagamento de taxas de portagem e a responsabilização contra-
ordenacional pela falta desse pagamento. Como acima se verificou, por infrações mais
graves (v.g., infrações estradais), a lei não estabelece qualquer presunção juris et de iure
de responsabilização contra-ordenacional.
Face ao exposto resta concluir, pois, que a presunção inilidível, em sede de processo
judicial, de responsabilidade do titular do documento de identificação do veículo ou do
locatário que resulta do decurso do prazo previsto na lei para a indicação do condutor,
viola o conteúdo mínimo do princípio da culpa.
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própria existência da infração. Pode ler-se em tal aresto que o direito de impugnação
perante os tribunais das decisões sancionatórias em causa se funda, em geral, no artigo
20.º, n.º 1, e, especificamente para as decisões administrativas, no artigo 268.º, n.º 4, da
CRP. Mais acrescenta que “não se ignorando que serão menos intensas as
preocupações garantísticas em processos contra-ordenacionais em comparação com o
processo criminal (cf. Acórdãos n.ºs 269/87 e 313/2007), aquelas não podem, contudo,
ser de tal modo desvalorizadas que ponham em cheque a própria efetividade da tutela
jurisdicional e as exigências de um processo equitativo”.
Volvendo ao caso presente, importa saber se viola tais garantias a norma objeto do
presente recurso, tal como foi interpretada pelo tribunal recorrido, no sentido de não
permitir ao arguido em recurso de impugnação judicial da decisão administrativa
sancionatória ilidir a presunção de responsabilidade.
Afirmou, neste contexto, o Acórdão n.º 612/2014, que, em processos
contraordenacionais, o direito de acesso aos tribunais, satisfaz-se com a possibilidade,
exercida pelo recorrente nos autos, de impugnar judicialmente a decisão administrativa
que lhe aplicou a coima, tal como especialmente garantido à generalidade dos
administrados em face de atos administrativos que os lesem (artigo 268.º, n.º 4, da
Constituição).
Poderia dizer-se que a garantia assim referida não é posta em causa pela norma
objeto do presente recurso, já que ela não veda, em si, a possibilidade de se impugnar
judicialmente a decisão administrativa – a qual, aliás, foi exercida no caso em presença.
Mas, quer o direito de acesso a uma impugnação judicial de decisões
administrativas que se queira efetiva, quer o próprio direito de acesso aos tribunais em
geral – o qual reclama expressamente uma tutela jurisdicional efetiva – não se bastam
com a simples garantia formal de acesso aos tribunais por parte dos administrados. De
facto, da consagração do direito à tutela jurisdicional efetiva derivam vários corolários
que se repercutem em exigências materiais que devem enformar a específica modelação
dos processos e os direitos das partes.
Um deles é o direito de defesa e do contraditório. Este direito pressupõe que cada
uma das partes possa expor as suas razões perante o tribunal em condições que a não
desfavoreçam em relação à parte contrária (Acórdão n.º 1193/96), e que, antes de o juiz
decidir, cada uma delas possa expor as suas razões e apresentar provas que sustentem a
sua pretensão, não podendo haver decisão sem que as mesmas tenham tido oportunidade
de serem ouvidas sobre a matéria (Acórdão n.º 582/2000).
Ora, também no que toca ao respeito pelo princípio do contraditório – que em
processo jurisdicional de impugnação de medida sancionatória assume a relevância de
um verdadeiro direito de defesa – ele não se basta com a simples garantia de audição ou
de apresentação de provas. O direito do contraditório e da defesa exigem que as partes
não só tenham direito a apresentar razões, oferecer provas e tomar posição sobre as
provas do adversário, mas ainda que, através desses meios, possam exercer uma
influência efetiva na decisão. Um princípio do contraditório que se baste com um
momento processual formal de audição, sem que o mesmo possa ter qualquer relevância
para a decisão, não garante materialmente que as posições das partes sejam efetivamente
consideradas pelo decisor.
Neste sentido, importa referir novamente o Acórdão n.º 135/2009, em que o
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através de prova que a invalide, nem permite ao tribunal conhecer desta última. Não se
permite, em suma, exercício material de um direito de impugnação judicial que a
Constituição confere ao administrado (acoimado) por ela visado (artigo 268.º, n.º 4),
nem a garantia da tutela jurisdicional efetiva plasmada no art. 20.º da Constituição.
Razão que impõe um juízo de inconstitucionalidade, por violação do direito a uma
tutela jurisdicional efetiva, da norma contida no n.º 6 do artigo 10.º da Lei n.º 25/2006,
de 30 de junho, quando interpretada no sentido de estabelecer uma presunção inilidível
em relação ao autor da contraordenação, independentemente da prova que sobre a
autoria for feita mesmo em processo judicial.
16. Finalmente, a decisão recorrida alega ainda que o entendimento normativo sub
iudicio comporta uma violação do princípio da presunção da inocência.
A primeira questão que, neste contexto, importa analisar, é a de saber se o direito do
arguido a que seja presumido inocente até ao trânsito em julgado de sentença de
condenação, consagrado no artigo 32.º, n.º 2, da Constituição, se estende, por força do
disposto no n.º 10 do mesmo artigo, aos processos jurisdicionais de impugnação de
contraordenações.
A essa questão não pode deixar de se dar uma resposta afirmativa. No Acórdão n.º
397/2017 e no Acórdão n.º 675/2016 afirmou-se que o princípio da presunção de
inocência pertence àquela classe de princípios materiais do processo penal que,
enquanto constitutivos do Estado de direito democrático, são extensíveis ao direito
sancionatório público, pelo que este princípio encontra, pois, aplicação também no
processo contraordenacional, como decorre dos n.ºs 2 e 10 do artigo 32.º da
Constituição. Mais se afirmou que o estatuto processual do arguido no processo
contraordenacional, enformado pela garantia da presunção de inocência, permite, por
exemplo – e para o que agora releva –, que o tratamento do arguido ao longo de todo o
processo seja configurado sem perder de vista a possibilidade de verificação da sua
inocência, não sendo de admitir, designadamente, que o arguido seja tido como culpado
antes de o tribunal formalizar o juízo sancionatório de forma necessariamente
fundamentada.
Ora, o entendimento da norma ora questionada como estabelecendo uma presunção
inilidível da autoria do ilícito de não pagamento de taxas de portagem, não pode deixar
de se ter como violadora do princípio da presunção da inocência. De facto, ao entender-
se que a norma estabelece uma presunção inilidível da prática do ilícito, o arguido é tido
como autor do mesmo independentemente da prova que possa vir a fazer em juízo
destinada a demonstrar a sua inocência. Tal entendimento normativo afronta diretamente
e de forma intolerável o princípio da presunção da inocência, já que o que tal norma
determina é precisamente uma presunção inabalável de culpabilidade.
Note-se que não é a simples previsão de uma presunção legal que comporta a
violação do princípio agora em análise. Como se afirmou também no já citado Acórdão
n.º 135/2009, não se questiona a possibilidade de o legislador, mesmo em matéria
sancionatória estabelecer presunções. O que é intolerável é a existência de presunções
inilidíveis em contexto sancionatório, quando reportadas à autoria da prática de
infrações.
De facto, tais presunções inilidíveis traduzem-se em conclusões inabaláveis de
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III - Decisão
Sem custas.
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DECLARAÇÃO DE VOTO
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