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Ac. TC 338 - 2018

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TC > Jurisprudência > Acordãos > Acórdão 338/2018 .

13/09/23, 12:37

ACÓRDÃO Nº 338/2018

Processo n.º 80/16


3ª Secção
Relator: Conselheiro Lino Rodrigues Ribeiro

Acordam na 3.ª secção do Tribunal Constitucional

I - Relatório

1. A. impugnou, no Tribunal Administrativo e Fiscal de Coimbra, as decisões do


Chefe do Serviço de Finanças de Coimbra – 1, proferidas em processo de
contraordenação, que lhe aplicaram quatro coimas, cada uma no valor de €26,30, por
falta de pagamento de taxas de portagem.
Por sentença de 15 de dezembro de 2015, foi o recurso julgado procedente, tendo o
Tribunal desaplicado, por inconstitucionalidade, a norma decorrente do n.º 6 do artigo
10.º da Lei n.º 25/2006, de 30 de junho e, em consequência, absolvido a recorrente da
prática das infrações em causa.
A fundamentação sentença, na parte relevante, tem o seguinte teor:
“(...) desde o ano de 2001 que a pessoa que transfira para outrem a posse efetiva do
veículo, a qualquer título jurídico, deve comunicar tal facto à autoridade competente para a
matrícula, no prazo de 30 dias a contar da aquisição ou constituição do direito, identificando
o adquirente ou a pessoa a favor de quem seja constituído o direito (cfr. artigo 118.º, n.ºs 3 e
4 do Código da Estrada, alterado então pelo Dec.-Lei n.º 162/2001, de 22.05).

Tais deveres de comunicação e de registo, quando não cumpridos, sempre levarão a que
a realidade dos factos seja diferente da realidade constante do livrete e/ou do registo
automóvel, o que coloca a questão de saber se o que vale juridicamente é a informação que
consta do registo, sem mais.

Ora, como vimos já, o registo constitui mera presunção de que o direito existe e
pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que se encontra registado, sendo tal
presunção registral ilidível mediante prova em contrário, configurando-se assim como uma
presunção juris tantum e não como uma presunção juris et de jure (cfr. art.º 350.º do Código
Civil).

In casu, é certo que a propriedade do veículo em causa estava, ao tempo das infrações,
registada em nome da ora Recorrente (cfr. facto provado sob o ponto 7.). Não obstante,
comprovou-se que a Recorrente havia vendido o mesmo em momento anterior aos factos
cuja responsabilidade lhe foi imputada (cfr. facto provado sob o ponto 6.). Pelo que, pese

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embora seja ela quem consta no registo automóvel como proprietária do veículo em causa ao
tempo dos factos, sempre é de considerar que ilidiu a presunção decorrente das normas do
registo automóvel.

E assim sendo, presume-se que tenha deixado de possuir ou simplesmente deter o


visado veículo desde o momento da sua venda. Presunção judicial, porque admitida pelo ora
julgador enquanto presunção de facto baseada nas regras da experiência e da vida (cfr. art.º
351.º do Código Civil). Ora, não sendo a Recorrente proprietária do veículo ao tempo dos
factos, presumindo-se que não o possuía ou detinha então, e não tendo ficado provado que
era ela que o conduzia naquele momento (cfr. facto não provado), não se lhe pode imputar
qualquer responsabilidade contra-ordenacional pelas infrações em apreço.

Não obstante, esta conclusão sempre esbarraria com uma presunção legal inilidível
prevista no artigo 10.º, n.º 6, da Lei n.º 25/2006, que, a nosso ver, é manifestamente
inconstitucional e, por essa mesma razão, se desaplicará no caso em apreço,

Prevê-se nesse artigo que é sempre responsável pelo pagamento das coimas a aplicar “o
proprietário, o adquirente com reserva de propriedade, o usufrutuário, o locatário em regime
de locação financeira ou o detentor do veículo”, consoante seja o titular do documento de
identificação do veículo, se o mesmo não identificar o condutor do veículo no prazo de 15
dias úteis após ter sido notificado para o efeito, ou não provar, no mesmo prazo, a utilização
abusiva do veículo por terceiros: “[o] direito de ilidir a presunção de responsabilidade
prevista no n.º 3, considera-se definitivamente precludido caso não seja exercido no prazo
referido no n.º 1”.

Ora, a preclusão de ilisão da presunção de responsabilidade contra-ordenacional em


momento prévio ao próprio levantamento do auto de notícia não só viola o princípio de
defesa do arguido em processo de contra ordenação (cfr. art.º 32.º, n.º 10 da CRP), como
inclusivamente o princípio da dignidade da pessoa humana (cfr. art.º 1.º da CRP), que
sempre impõe a estruturação do direito sancionatório a partir do facto e não das qualidades
do agente.

É que, ao contrário do que sucede com as normas de responsabilidade contra-


ordenacional em infrações rodoviárias (em que o artigo 10.º da Lei n.º 25/2006 claramente se
inspirou), nas quais é prevista uma mera responsabilidade subsidiária do titular do
documento de identificação do veículo (ou do locatário) pelo pagamento das coimas e das
custas que forem devidas pelo autor da contra-ordenação, e ainda a possibilidade de
exercício do direito de regresso contra o autor da contra-ordenação quando haja utilização
abusiva do veículo (cfr. art.º 135.º, n.º 8 do Código da Estrada); nas normas de
responsabilidade contra-ordenacional por falta de pagamento de taxa de portagem não só não
é prevista qualquer responsabilidade subsidiária do titular do documento de identificação do
veículo pelo pagamento das coimas e das custas que forem devidas pelo autor da contra-
ordenação, como inclusivamente se estabelece uma preclusão de ilisão da presunção da sua
responsabilidade quando não identifique outra pessoa num prazo de 15 dias.

Ora, uma norma legal que impõe a responsabilidade do agente no pagamento da coima e
das custas (normalmente o proprietário registado do veículo que transpôs a portagem),
independentemente da sua real participação nos factos e da prova que sobre isso for feita
mesmo em processo judicial, sempre implicaria que o Tribunal nunca pudesse relevar
qualquer prova sobre a autoria dos factos ou nunca pudesse sequer fazer atuar o princípio in
dubio pro reo quando não conseguisse firmar convicção sobre a efetiva autoria dos factos
pelo arguido.

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Pelo que se entende que a norma prevista no artigo 10.º, n.º 6, da Lei n.º 25/2006, ao
determinar a existência de uma responsabilidade objetiva, inilidível, em matéria de direito
sancionatório (que a Constituição implicitamente equipara à matéria penal), viola o princípio
da culpa, implícito na subordinação da Lei à dignidade humana, bem como o princípio do
direito de defesa em processo de contra ordenação consagrado na Lei Fundamental (artigos
1.º e 32.º, n.º 10 da Constituição da República Portuguesa) e poderá ainda violar o princípio
in dubio pro reo decorrente do princípio de presunção de inocência do arguido consagrado no
artigo 32.º, n.º 2 da Constituição.

E por estas mesmas razões desaplica-se a visada norma no caso em apreço,


considerando-se que a ora Recorrente ilidiu a presunção da sua responsabilidade pela prática
das contra-ordenações pelas quais foi condenada”.

2. Desta decisão interpôs o Ministério Público recurso obrigatório para o Tribunal


Constitucional, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, em requerimento
do seguinte teor:
“ (...)

1. A Mma Juíza desaplicou a norma prevista no art.º 10.º, n.º 6 da Lei n.º 25/2006, de
30 de junho, na redação introduzida pela Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro,

2. Por entender que “ao determinar a existência de uma responsabilidade objetiva,


inlidível, em matéria de direito sancionatório (que a Constituição implicitamente equipara à
matéria penal,), viola o princípio da culpa, implícito na subordinação da Lei à dignidade
humanam bem como o princípio do direito de defesa em processo de contraordenação
consagrado na Lei Fundamental (artigos 1.º e 32.º, n.º10 da Constituição da República
Portuguesa) e poderá ainda violar o princípio in dubio pro reo decorrente do princípio de
presunção de inocência do arguido consagrado no art.º 32.º, n.º 2 da Constituição”.

3. Notificado para o efeito, o Ministério alegou, concluindo da seguinte forma:

1ª. Recurso obrigatório do Ministério Público interposto da sentença proferida em 15 de


Dezembro de 2015, no Proc. 246/15.7BECBR, pela Exma. Juíza da Unidade Orgânica 2 do
Tribunal Administrativo e Fiscal de Coimbra, em que vem decidido «que a norma prevista
no artigo 10.º, n.º 6, da Lei n.º 25/2006, ao determinar a existência de uma responsabilidade
objetiva, inilidível, em matéria de direito sancionatório (que a Constituição implicitamente
equipara à matéria penal), viola o princípio da culpa, implícito na subordinação da Lei à
dignidade humana, bem como o princípio do direito de defesa em processo de contra
ordenação consagrado na Lei Fundamental (artigos 1.º e 32º, n.º 10 da Constituição da
República Portuguesa) e poderá ainda violar o princípio in dubio pro reo decorrente do
princípio de presunção de inocência do arguido consagrado no artigo 32.º, n.º 2 da
Constituição», tendo-a, com os enunciados fundamentos, desaplicado.

2ª. A Lei 25/2006, de 30 de junho, aprova o regime sancionatório aplicável às


contraordenações (anteriormente previstas e punidas como contravenções e transgressões)
ocorridas em matéria de infraestruturas rodoviárias, onde seja devido o pagamento de taxas

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de portagem.

3ª. A sentença recorrida declara a inconstitucionalidade da norma contida no n.º 6 do art.


10.º da Lei 25/2006, à luz de três fundamentos distintos, o último deles hipoteticamente
enunciado: (i) violação do princípio da culpa, fundado na dignidade da pessoa humana – art.
1.º da Constituição, podendo, ainda, oficiosamente, convocar-se o seu art. 25.º, n.º 1; (ii)
violação da garantia do direito de defesa, em processo de contra ordenação – art. 32.º, n.º 10
da Constituição e (iii) violação do princípio in dubio pro reo, decorrente do princípio de
presunção de inocência do arguido – art. 32.º, n.º 2 da Constituição.

4ª. «Constitui afirmação recorrente na jurisprudência do Tribunal Constitucional a da


não aplicabilidade direta e global aos processos contra-ordenacionais dos princípios
constitucionais próprios do processo criminal […]. A diferença de “princípios jurídico
constitucionais, materiais e orgânicos, a que se submetem entre nós a legislação penal e a
legislação das contra ordenações” reflete-se “no regime processual próprio de cada um
desses ilícitos”, não exigindo “um automático paralelismo com os institutos e regimes
próprios do processo penal, inscrevendo se assim no âmbito da liberdade de conformação
legislativa própria do legislador”» (Acs. 659/06 e 373/15).

5ª. Por outro lado, a jurisprudência «também tem sublinhado que a reconhecida
inexigibilidade de estrita equiparação entre processo contraordenacional e processo criminal
é conciliável com “a necessidade de serem observados determinados princípios comuns que
o legislador contraordenacional será chamado a concretizar dentro de um poder de
conformação mais aberto do que aquele que lhe caberá em matéria de processo penal” (Acs.
n.º 469/97, 278/99 e 373/15).

6ª. «[…] retira-se da jurisprudência do Tribunal Constitucional que o princípio da culpa


se impõe também como limite à liberdade de conformação do legislador do ilícito
contraordenacional, ainda que a margem dessa liberdade seja maior relativamente àquela de
que este dispõe na configuração do ilícito penal, designadamente no que se refere à definição
do que o legislador pode assumir e o que deve ser deixado ao juiz na determinação concreta
da sanção» (Ac. 201/14).

7ª. A norma constante do n.º 6 do art. 10.º da Lei 25/2006, «ao determinar a existência
de uma responsabilidade objetiva, inilidível», radicalmente e nos precisos termos em que é
na sentença interpretada, viola, à luz da jurisprudência considerada, o princípio da culpa, que
o legislador está obrigado a respeitar, na conformação do ilícito contraordenacional em
causa.

8ª. Violação tanto mais impressiva e desrazoável, quando posta em confronto, como se
procede na sentença, com normas paralelas de responsabilidade contraordenacional em
matéria de infrações rodoviárias, algumas passíveis de maior censura social, ou quando,
inscrevendo-se o regime sancionatório estabelecido na Lei 25/2006 no quadro do RGIT (art.
18.º da mesma lei), neste sempre a verificação de um facto culposo é exigido (arts. 2.º e 24.º,
n.º 1 do RGIT).

9ª. Quanto à violação da garantia do direito de defesa (art. 30.º, n.º 10 da Constituição),
em causa, verdadeiramente, os descritos amputados termos em que o recurso judicial da
decisão de aplicação da coima é admitido: o exame da questão adequar-se-á em sede das
garantias de tutela jurisdicional efetiva (art. 20.º, n.ºs. 1 e 4, da Constituição) e de
impugnação dos atos administrativos sancionatórios perante os tribunais (art. 268.º, n.º 4 da
Constituição).

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10ª. Presente a insofrível limitação de que padece a impugnação judicial, na dimensão


interpretativa, expressa na sentença, da norma em causa – «a responsabilidade do agente no
pagamento da coima», presumida juris et de jure, «independentemente da sua real
participação nos factos e da prova que sobre isso for feita mesmo em processo judicial,
sempre implicaria que o Tribunal nunca pudesse relevar qualquer prova sobre a autoria dos
factos» –, que nega ao arguido o cerne da sua defesa, a possibilidade de discutir a
responsabilidade que lhe é administrativamente imputada, mostrar-se-á ela claramente
violadora das apontadas garantias constitucionais.

11ª. No retomar da mesma linha, com diferença de grau – «sempre implicaria que o
Tribunal nunca pudesse relevar qualquer prova sobre a autoria dos factos ou nunca pudesse
sequer fazer atuar o princípio in dubio pro reo quando não conseguisse firmar convicção
sobre a efetiva autoria dos factos pelo arguido» –, igualmente se abrirá a possibilidade de
verificação de violação do princípio in dubio pro reo, decorrente do princípio de presunção
de inocência do arguido (art. 32.º, n.º 2 da Constituição).

12ª. No sentido da aplicação do princípio da presunção de inocência do arguido a


demais procedimentos sancionatórios, designadamente no domínio contraordenacional,
Acórdãos 103/87 e 301/97.

13ª. Assim como o legislador, à luz do art. 32.º, n.º 2 da Constituição, «não deve
construir as normas penais de tal modo que, através das suas formulações, possa o
cometimento do crime presumir-se» (Acs. 270/87, 426/91, 135/92, 252/92, 246/96, 604/97,
609/99 e 377/15), também a aplicação desse núcleo essencial o deverá limitar em matéria
contraordenacional.

14ª. Corroborados os parâmetros de avaliação de (in)constitucionalidade da norma


contida no n.º 6 do art. 10.º da Lei 25/2006, na interpretação autoenunciada na decisão
recorrida, interessa, no caso, examinar se tal interpretação se deverá, porventura, ter como
mais adequada, sub specie constitutionis.

15ª. «Entre uma interpretação que é conforme à Constituição e outra que com ela é
incompatível, o intérprete (juiz incluído) deve preferir sempre o sentido que o texto
constitucional suporta. Se o não fizer e desaplicar a norma legal com fundamento em
inconstitucionalidade, no recurso que subir ao Tribunal Constitucional, deve este fixar o
sentido da norma que é compatível com a Constituição, e mandar aplicar esta no processo
com tal interpretação» (Acs. 163/95, 198/95, 609/95 e 276/04).

16ª. O regime sancionatório estabelecido na Lei 25/2006 inscreve-se no quadro do


RGIT (art. 18º da mesma lei), neste sempre a verificação de um facto culposo sendo exigido
(arts. 2.º e 24.º, nº 1 do RGIT).

17ª. Estruturalmente, «o processo contraordenacional tem uma fase administrativa e, no


caso de impugnação da decisão aplicada nesta fase, segue-se uma fase jurisdicional em que o
arguido dispõe não apenas da possibilidade de sindicar a legalidade da decisão, mas também
de um conjunto de amplas faculdades de exercício do seu direito de defesa e de
contraditório. A impugnação dá lugar, não a um recurso propriamente dito, mas a um novo
processo de natureza jurisdicional».

18ª. O art. 10.º da Lei 25/2006 situa-se na fase administrativa do processo de aplicação
da coima – o seu n.º 6 tão só consagra o princípio de preclusão procedimental em matéria de
ilisão da presunção estabelecida no mesmo artigo, em vista ao ordenado prosseguimento da
instrução.

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19ª. Disposição que não alcança o regime aplicável à fase judicial – nem a Lei 25/2006
editou qualquer norma a esta concernente: regem, quanto ao recurso judicial da aplicação
administrativa da coima, os arts. 80.º e ss. do RGIT (ex vi, art. 18.º da Lei 25/2006) e,
também subsidiariamente, os arts. 59.º e ss. do RGIMOS (art. 3.º, alínea b) do RGIT).

20ª. Interpretada deste modo – aplicável à instrução na fase administrativa do processo


de aplicação da coima – a norma contida no n.º 6 do art. 10.º da Lei 25/2006 mostrar-se
compatível com a Constituição.

21ª. A concluir o Tribunal no sentido apontado, tendo a norma por não aplicável à fase
judicial (tal como a decisão recorrida a desaplicou, embora por a ter julgado
inconstitucional), daí não se deverá seguir a «falta de interesse jurídico na decisão da questão
de constitucionalidade que os autos propõem. Relevante é o facto de a aplicação de tais
preceitos se ter fundamentado num juízo de inconstitucionalidade. A desaplicação, com
fundamento em inconstitucionalidade, […] constitui, na verdade, pressuposto do recurso (cf.
alínea a) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional) e confere interesse jurídico
relevante ao conhecimento de tal questão de constitucionalidade, sendo que o seu julgamento
pode, justamente, concluir-se pela imposição de uma interpretação […] (cf. artigo 80º, nº 3,
da Lei do Tribunal Constitucional)».

4. Decorrido o prazo, a recorrida não contra-alegou.

II – Fundamentação

Delimitação do objeto do recurso

5. A norma que constitui o objeto do presente recurso integra o n.º 6 do artigo 10.º
da Lei n.º 25/2006, de 30 de junho, que aprova o regime sancionatório aplicável às
contraordenações ocorridas em matéria de infraestruturas rodoviárias onde seja devido o
pagamento de taxas de portagem, cuja redação é a seguinte:

Artigo 10.º

Responsabilidade pelo pagamento

1 - Sempre que não for possível identificar o condutor do veículo no momento da prática
da contraordenação, as concessionárias, as subconcessionárias, as entidades de cobrança das
taxas de portagem ou as entidades gestoras de sistemas eletrónicos de cobrança de portagens,
consoante os casos, notificam o titular do documento de identificação do veículo para que
este, no prazo de 30 dias úteis, proceda a essa identificação ou pague voluntariamente o valor
da taxa de portagem e os custos administrativos associados.

2 - A identificação referida no número anterior deve, sob pena de não produzir efeitos,

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indicar, cumulativamente:

a) Nome completo;

b) Residência completa;

c) Número de identificação fiscal, salvo se se tratar de cidadão estrangeiro que o não


tenha, caso em que deverá ser indicado o número da carta de condução.

3 - Na falta de cumprimento do disposto nos números anteriores, é responsável pelo


pagamento das coimas a aplicar, das taxas de portagem e dos custos administrativos em
dívida, consoante os casos, o proprietário, o adquirente com reserva de propriedade, o
usufrutuário, o locatário em regime de locação financeira ou o detentor do veículo.

4 - Quando, nos termos do n.º 1, seja identificado o agente da contraordenação, é este


notificado para, no prazo de 30 dias úteis, proceder ao pagamento da taxa de portagem e dos
custos administrativos associados.

5 - Caso o agente da contraordenação não proceda ao pagamento referido no número


anterior, é lavrado auto de notícia, aplicando-se o disposto no artigo 9.º da presente lei e
extraída, pelas entidades referidas no n.º 1 do artigo 11.º, a certidão de dívida composta pelas
taxas de portagem e custos administrativos associados correspondentes a cada mês, que são
remetidos à entidade competente.

6 - O direito de ilidir a presunção de responsabilidade prevista no n.º 3, considera-se


definitivamente precludido caso não seja exercido no prazo referido no n.º 1.

Não obstante o objeto do recurso de constitucionalidade vir definido como


constituindo a norma integrada no n.º 6 deste artigo, na sua totalidade, importa delimitar
o mesmo ao específico sentido normativo com que ela foi desaplicada na sentença
recorrida.
Assim, apesar de tecer algumas considerações sobre a norma em geral - no que toca,
por exemplo, à presunção da prática da contraordenação antes do próprio levantamento
do auto de notícia -, em boa verdade, a verdadeira desaplicação da norma extraída do n.º
6 do referido artigo 10.º foi operada na sentença recorrida com o sentido que a seguir se
transcreve: “uma norma legal que impõe a responsabilidade do agente no pagamento da
coima e das custas (normalmente o proprietário registado do veículo que transpôs a
portagem), independentemente da sua real participação nos factos e da prova que sobre
isso for feita mesmo em processo judicial, sempre implicaria que o Tribunal nunca
pudesse relevar qualquer prova sobre a autoria dos factos ou nunca pudesse sequer fazer
atuar o princípio in dubio pro reo quando não conseguisse firmar convicção sobre a
efetiva autoria dos factos pelo arguido”.
Ou seja, na sentença recorrida não se julgou inconstitucional a referida norma no
sentido de estabelecer uma presunção inilidível anterior ou concomitante ao
levantamento de auto de notícia, cuja validade nem sequer é questionada, mas apenas no
que toca à atuação da presunção legal em sede de impugnação judicial da decisão
administrativa de condenação pela prática da contraordenação. O tribunal a quo
considera que a norma impugnada o impede de relevar qualquer prova sobre a autoria
dos factos ou, em caso de dúvida, fazer atuar o princípio in dubio pro reo. É, pois, no

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contexto de um processo judicial que o tribunal recorrido desaplica a norma por


inconstitucionalidade, considerando que nesse processo a arguida deve ser admitida a
ilidir a presunção.
Posto isto, cumpre delimitar o objeto do recurso à norma constante do n.º 6 do
artigo 10.º da Lei n.º 25/2006, quando interpretada no sentido de estabelecer uma
presunção inilidível em relação ao autor da contraordenação, independentemente da
prova que sobre a autoria for feita em processo judicial.

Mérito do recurso

6. No entender do Tribunal a quo, a norma do n.º 6 do artigo 10.º da Lei n.º 25/2006,
de 30 de junho, introduzida pela Lei n.º 64-B/2011, de 30 de dezembro, viola três
parâmetros constitucionais: (i) o princípio da culpa, implícito na subordinação da lei à
dignidade humana, na medida em que impõe uma responsabilidade objetiva, inilidível,
em matéria sancionatória; (ii) o princípio do direito de defesa em processo
contraordenacional, na medida em que não permite ao arguido provar a autoria efetiva
dos factos; (iii) e o princípio de presunção de inocência, porque não permite ao Tribunal
atuar o princípio in dubio pro reo.
Estando em causa garantias constitucionais em matéria de contraordenações,
importa começar por analisar os traços gerais da jurisprudência constitucional sobre o
assunto.
Tem sido entendimento do Tribunal Constitucional que as garantias constitucionais
previstas no artigo 32.º da CRP se aplicam no domínio das contraordenações com
algumas adaptações. Neste sentido, tem-se considerado que o legislador dispõe de uma
margem de apreciação mais ampla no âmbito das contraordenações.
No preâmbulo do Decreto-Lei n.º 231/79, de 24 de julho, que introduziu o ilícito de
mera ordenação social na ordem jurídica portuguesa, começou por se afirmar que «hoje
é pacífica a ideia de que entre os dois ramos de direito medeia uma autêntica diferença:
não se trata apenas de uma diferença de quantidade ou puramente formal, mas de uma
diferença de natureza. A contraordenação “é um aliud que se diferencia qualitativamente
do crime na medida em que o respetivo ilícito e as reações que lhe cabem não são
diretamente fundamentáveis num plano ético-jurídico, não estando, portanto, sujeitas
aos princípios e corolários do direito criminal” [...]. Está em causa um ordenamento
sancionatório distinto do direito criminal. Não é, por isso, admissível qualquer forma de
prisão preventiva ou sancionatória, nem sequer a pena de multa ou qualquer outra que
pressuponha a expiação da censura ético pessoal que aqui não intervém. A sanção
normal do direito de ordenação social é a coima, sanção de natureza administrativa,
aplicada por autoridade administrativa, com o sentido dissuasor de uma advertência
social, pode, consequentemente, admitir-se a sua aplicação às pessoas coletivas e adotar-
se um processo extremamente simplificado e aberto aos corolários do princípio da
oportunidade».
Para efeitos de distinção entre ambos os ilícitos, a jurisprudência do Tribunal
Constitucional tem seguido fundamentalmente os critérios da ressonância ética e dos
diferentes bens jurídicos em causa (Acórdãos n.ºs 158/92, 344/93, 469/97, 461/2011,

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537/2011, 45/2014, 180/2014). E com fundamento na diferente natureza do ilícito, da


censura e das sanções, tem considerado que os princípios constitucionais com relevo em
matéria penal não valem com a mesma extensão e intensidade no domínio contra-
ordenacional. Não obstante estar consolidado na jurisprudência constitucional que o
direito sancionatório público, enquanto restrição de direitos fundamentais, participa do
essencial das garantias consagradas explicitamente para o direito penal, tem-se decidido
reiteradamente que os princípios que orientam o direito penal não são automaticamente
aplicáveis ao direito de mera ordenação social (Acórdãos n.ºs 344/93, 278/99, 160/04,
537/2011, 85/2012).
Atenta a diferente natureza dos ilícitos, o Tribunal Constitucional tem vindo a
aceitar uma variação do grau de vinculação do regime das contraordenações aos
princípios do direito criminal em matérias como as do âmbito da responsabilização das
pessoas coletivas, da culpa, do erro, da autoria e do concurso. Assim, afirma-se de forma
ilustrativa, no Acórdão 336/2008: “…existem, desde sempre, razões de ordem
substancial que impõem a distinção entre crimes e contraordenações, entre as quais
avulta a natureza do ilícito e da sanção (…). A diferente natureza do ilícito condiciona,
desde logo, a eventual incidência dos princípios da culpa, da proporcionalidade e da
sociabilidade." Essa mesma orientação jurisprudencial foi reiterada no Acórdão n.º
110/2012, em que se escreveu que “as diferenças existentes entre a ilicitude de natureza
criminal e o ilícito de mera ordenação social obstam a que se proceda a uma simples
transposição, sem mais, dos princípios constitucionais aplicáveis em matéria de
definição de penas criminais para o espaço sancionatório do ilícito de mera ordenação
social”.
E é precisamente em razão dessa diferença, que assume um alcance «jurídico-
pragmático» (Acórdão n.º 344/93) e se projeta em diversos aspetos de regime adjetivo e
substantivo, que o Tribunal Constitucional tem considerado, de forma algo pacífica, que
o legislador dispõe, no âmbito do domínio contraordenacional, de uma margem de
apreciação mais ampla.

7. Sobre o alcance do princípio da culpa no domínio contraordenacional, o Acórdão


n.º 344/07 formulou a síntese que importa transcrever:

«(...) não pondo em dúvida que os princípios da proporcionalidade e da igualdade e


mesmo o princípio da culpa também vinculem o legislador na configuração dos ilícitos
contravencionais (como nos de contraordenação) e respetivas sanções (cfr. acórdão n.º
547/2001, publicado no Diário da República, II Série, de 15 de julho) é diferente o limite que
deles decorre para a discricionariedade legislativa na definição do que o legislador pode
assumir e o que deve ser deixado ao juiz na determinação concreta da sanção.
Designadamente, não ocorre aqui colisão com nenhum dos preceitos constitucionais em que
se funda a afirmação de violação do princípio da culpa, que é o nuclear na fundamentação da
referida jurisprudência do Tribunal a propósito da ilegitimidade constitucional de penas
criminais fixas. Na verdade, não está em causa minimamente o direito à liberdade (artigo
27.º, n.º 1) porque a multa contravencional, diversamente da multa criminal, não tem prisão
sucedânea. E só de modo muito remoto – e nunca por causa da sua invariabilidade – uma
sanção estritamente pecuniária, num ilícito sem qualquer efeito jurídico estigmatizante, pode
contender com o princípio da dignidade da pessoa humana (artigo 1.º), que é de onde o

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Tribunal tem deduzido o princípio da culpa na "Constituição criminal". Como diz


FIGUEIREDO DIAS, O Movimento da Descriminalização…, pág. 29, a propósito da culpa
na imputação das contraordenações, também perante uma categoria de infrações, punidas
“independentemente de toda a intenção maléfica”, não se trata de uma culpa, como a
jurídico-penal baseada numa censura ética dirigida à pessoa do agente, à sua abstrata
intenção, mas apenas de uma imputação do ato à responsabilidade social do seu autor”.

Por seu turno, o Acórdão n.º 201/14 não deixou de sublinhar que “retira-se da
jurisprudência do Tribunal Constitucional que o princípio da culpa se impõe também
como limite à liberdade de conformação do legislador do ilícito contraordenacional,
ainda que a margem dessa liberdade seja maior relativamente àquela de que este dispõe
na configuração do ilícito penal, designadamente no que se refere à definição do que o
legislador pode assumir e o que deve ser deixado ao juiz na determinação concreta da
sanção”.
Ou seja, apesar de todas as diferenças de conteúdo e significado que o princípio da
culpa assume no domínio contraordenacional, sempre se dirá que, ainda assim, o mesmo
atua como limite da responsabilidade contraordenacional, assumindo aí, contudo, um
diferente sentido e conteúdo. Neste particular, o Acórdão n.º 180/14 afirmou que a
culpa, nesse contexto, se traduz na ideia de “imputação do facto à responsabilidade
social do seu autor, que serve como especial advertência ou reprimenda relacionada
com a observância de certas proibições ou imposições legislativas”.

8. Assumindo o princípio da culpa diferente alcance no domínio das


contraordenações, o legislador dispõe, na configuração dos concretos ilícitos, de uma
maior margem de conformação. Tal margem de conformação projeta-se, nomeadamente,
no contexto dos pressupostos da imputação.
Neste contexto, o Tribunal Constitucional já teve oportunidade de analisar várias
normas que imputavam a responsabilidade contraordenacional a quem não tinha sido
autor direto do facto. Assim, foi já analisada a constitucionalidade de várias normas que
procediam à transferência da responsabilidade pela prática de contraordenações.
O Acórdão n.º 201/2014 pronunciou-se sobre a constitucionalidade da norma ínsita
no n.º 3 do artigo 551.º, nos termos da qual, no âmbito de contraordenações laborais, se
o infrator for pessoa coletiva ou equiparada, respondem pelo pagamento da coima,
solidariamente com aquela, os respetivos administradores, gerentes ou diretores. O
referido aresto não rejeitou que o princípio da intransmissibilidade da responsabilidade
penal possa assumir valência no domínio contraordenacional, embora “não ‘com o
mesmo rigor’ ou ‘com o mesmo grau de exigência’ com que vale para o domínio
criminal, mas apenas na sua ‘ideia essencial’”. Este aresto assentou, sobretudo, num
juízo de ponderação, que levou à conclusão de que a responsabilização solidária dos
gerentes, administradores ou diretores de pessoa coletiva, ou equiparada, pelo
pagamento de coima laboral, encontra justificação como medida necessária para conferir
adequada efetividade aos direitos dos trabalhadores consagrados na alínea c), do n.º 1,
do artigo 59.º, da Constituição.
Referiu-se aí:

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«(...) prima facie, também no domínio contraordenacional valerá o princípio da


proibição de transmissão da responsabilidade, devendo tal princípio ser tido em conta na
ponderação efetuada, desde logo, pelo legislador na configuração do ilícito
contraordenacional.

Por sua vez, deve o Tribunal Constitucional, ao apreciar a conformidade constitucional


de uma norma em matéria contraordenacional, verificar se, na ponderação efetuada em sede
legislativa, o princípio da proibição de transmissão da responsabilidade foi devidamente
integrado.

No que respeita ao critério de densidade de controlo, retira-se da jurisprudência do


Tribunal Constitucional já referida, que, no domínio contraordenacional, é de reconhecer um
maior poder de conformação do legislador, o que vale por dizer que deve o Tribunal limitar-
se a um controlo de evidência.

Ora, a norma sub judicio, ao comprimir, é certo, o princípio da proibição de transmissão


da responsabilidade, fá-lo em observância de deveres estaduais de proteção ou de prestação
de normas, impendentes sobre o legislador ordinário, destinados a proteger bens
jusfundamentais face a potenciais agressões provindas de terceiros, que se extraem do artigo
59.º, n.º 1, alínea c) da Constituição.

Com efeito, através da responsabilização dos respetivos administradores, dirigentes ou


diretores pelo pagamento de coima aplicada à pessoa coletiva responsável pela
contraordenação laboral, o legislador terá pretendido tornar mais eficaz a efetivação do
sistema sancionatório num domínio em que a Constituição lhe comete expressamente
deveres de proteção, ainda que sacrificando o princípio da proibição de transmissão da
responsabilidade.

Qualquer juízo sobre a razoabilidade da ponderação, efetuada pelo legislador ordinário,


passa por pesar a intensidade do sacrifício imposto pela norma sub judicio ao princípio da
proibição de transmissão da responsabilidade e a vantagem que através dela se obtém para
efeitos da proteção dos deveres estaduais que se extraem do artigo 59.º, n.º 1, alínea c).

No que respeita ao primeiro aspeto, verifica-se que a norma sub judicio não sacrifica
totalmente o princípio da proibição de transmissão da responsabilidade. Com efeito, os
sujeitos ficam apenas responsáveis pelo pagamento da coima, não lhes sendo transmitida a
autoria do ilícito contraordenacional em si mesma considerada (v. supra, ponto 6).

A isso acresce que a transmissão da responsabilidade não opera entre indivíduos mas
sim entre uma pessoa coletiva, entidade responsável pela contraordenação laboral, e titulares
de órgãos executivos dessa mesma pessoa coletiva. Dada a conexão objetivamente existente
entre o sujeito passivo responsável pela contraordenação e os sujeitos que, nos termos da
norma sub judicio, ficam responsáveis pelo pagamento da coima, não se afigura que a
compressão do princípio da proibição de transmissão da responsabilidade se aproxime sequer
do seu núcleo.

Por sua vez, no que se refere à vantagem que através dela se obtém para efeitos da
proteção dos deveres estaduais que se extraem do artigo 59.º, n.º 1, alínea c), é admissível o
entendimento segundo o qual o envolvimento, através da assunção coerciva da
responsabilidade pelo pagamento da coima, dos administradores, gerentes ou diretores da
pessoa coletiva responsável pela contraordenação-laboral, garante, diretamente, uma maior

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TC > Jurisprudência > Acordãos > Acórdão 338/2018 . 13/09/23, 12:37

eficácia na cobrança efetiva da coima, e, através disso, indiretamente, uma mais elevada
probabilidade de que a infração não chegará sequer a ser cometida, assim se protegendo
melhor bens jusfundamentais.

Assim, porque não é possível, segundo um critério de evidência, asseverar que é


desnecessário para efeitos de cumprimento dos referidos deveres de proteção o mecanismo
de corresponsabilização pelo pagamento estabelecido no n.º 3 do artigo 551.º do Código do
Trabalho (2009), o Tribunal Constitucional não pode senão deferir perante o juízo formulado
pelo legislador sobre a adequação e necessidade do regime legal».

Por seu turno, o Acórdão n.º 691/16 não julgou inconstitucional a norma decorrente
do n.º 1 do artigo 551.º do Código do Trabalho, que estabelece que «o empregador é o
responsável pelas contraordenações laborais, ainda que praticadas pelos seus
trabalhadores no exercício das respetivas funções, sem prejuízo da responsabilidade
cometida por lei a outros sujeitos». O Tribunal Constitucional considerou que, por
impender sobre a entidade patronal o dever legal de garantir as condições de segurança
no trabalho, a mesma era contraordenacionalmente responsável, não apenas nas
hipóteses em que, por ação sua, tivesse diretamente originado o resultado antijurídico,
mas ainda no contexto de uma contribuição omissiva, causal ou cocausalmente
promotora do resultado típico presumido, quando a infração fosse cometida por
trabalhadores que se encontrassem ao seu serviço. Nesse sentido, considerou-se que a
solução contida no n.º 1 do artigo 551.º do CT, de admitir a responsabilidade autónoma
do empregador, sempre que um dever legal seja violado pelos seus trabalhadores, no
exercício das suas funções e por causa delas, não poderia ser considerada violadora do
princípio penal da culpa. A responsabilidade geral referente às condições de segurança
no trabalho legalmente atribuída ao empregador foi considerada suficiente para que a
transmissibilidade dessa autoria não violasse princípios constitucionais.

9. Por outro lado, o Tribunal Constitucional tem já entendido que, no contexto


contraordenacional, a imputação de um facto a um agente tem por referente legal e
dogmático um conceito extensivo de autoria de matriz causal, conceito este segundo o
qual é considerado autor de uma contraordenação todo o agente que tiver contribuído
causal ou cocausalmente para a realização do tipo, ou seja, que haja dado origem a uma
causa para a sua realização ou que haja promovido, com a sua ação ou omissão, o facto
ilícito, podendo isso ocorrer de qualquer forma (cfr. Frederico Lacerda da Costa Pinto,
em “O ilícito de mera ordenação social”, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano
7, Fasc. 1, pág. 25-26).
Em adoção desse conceito, foram vários os acórdãos que não julgaram
inconstitucionais normas que imputavam a responsabilidade contraordenacional a quem
não era autor direto dos factos. Assim, no acórdão n.º 45/2014, o Tribunal não julgou
inconstitucional a norma constante do artigo 13.º, n.º 1 e 2, da Lei n.º 27/2010, de 30 de
agosto, aí tendo referido que:

“o relevo da opção legal por um conceito extensivo de autor no âmbito da


responsabilidade contraordenacional, por oposição ao conceito restritivo de autoria que
vigora, em regra, no domínio do direito penal, é especialmente percetível nos casos em que

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TC > Jurisprudência > Acordãos > Acórdão 338/2018 . 13/09/23, 12:37

os factos cometidos envolvem a estrutura orgânica e funcional de uma empresa. Esta


construção é uma decorrência lógica da existência no direito de mera ordenação social de
normas de dever, cujo incumprimento é sancionado com coimas. Se o sistema impõe deveres
a um leque alargado de destinatários é porque lhes reconhece capacidade para os cumprir e
também para os violar. Daí que, apurando-se a violação do dever legalmente estabelecido os
destinatários do mesmo serão responsáveis por essa violação.

É nesta lógica que, em casos como este, a regra de imputação colocada pelo conceito
extensivo de autor conduzirá à responsabilização da entidade dirigente titular do dever de
garante sempre que se tenha verificado o resultado (a inobservância do dever) que ela se
encontrava legalmente incumbida de evitar. Impendendo sobre a entidade patronal, o dever
legal de garantir o cumprimento das regras respeitantes aos tempos de condução, pausas e
tempos de repouso e ao controlo da utilização de tacógrafos, na atividade de transporte
rodoviário, ela é contraordenacionalmente responsabilizável, nos termos previstos no
diploma em análise, não apenas nas hipóteses em que, por ação sua, tiver originado
diretamente o resultado antijurídico, mas ainda no contexto de uma contribuição omissiva,
causal ou cocausalmente promotora do resultado típico presumida, quando a infração é
cometida pelo condutor que se encontra ao seu serviço

Competindo-lhe enquanto entidade patronal organizar o transporte rodoviário de modo a


que o condutor ao seu serviço cumpra as normas que regulamentam essa atividade,
designadamente as regras laborais, não se revela arbitrária, nem injustificada, a presunção de
que a inobservância dessas regras por parte do condutor tem a sua causa na deficiente
organização daquela atividade, estando nós perante o funcionamento de uma mera presunção
relativa a factos. Se uma construção deste tipo pode ser problemática no domínio do direito
penal, já em sede de direito de mera ordenação social em que apenas está em jogo a
aplicação de coimas, não suscita qualquer reserva, tanto mais que, neste caso, se permite que
a entidade patronal afaste a sua responsabilidade contraordenacional, demonstrando que
organizou o serviço de transporte rodoviário de modo a que o seu condutor pudesse ter
cumprido a norma que inobservou, ilidindo assim aquela presunção.” (Frederico Lacerda da
Costa Pinto na ob. cit., pág.48)”.

10. No que toca ao uso de presunções, as presunções legais - como releva para o
caso sub judice - são normas criadas pelo legislador que estabelecem uma relação entre
um facto conhecido (provado) e um facto desconhecido ou incerto, inferindo este último
a partir daquele (isto, tendo presente a noção legal de presunção contida no artigo 349.º
do Código Civil: presunções são as ilações que a lei (…) tira de um facto conhecido
para firmar um facto desconhecido). Ou seja, a presunção assenta numa relação lógica
estabelecida pelo legislador entre o facto-base ou facto indiciário e o facto presumido.
A presunção legal opera uma inversão do ónus da prova, desonerando desta, aqueles
que têm a presunção a seu favor (Acórdão n.º 211/2017). Por regra, as presunções legais
estabelecem uma verdade presumida (não provada) que poderá vir a ser infirmada
mediante prova em contrário – presunções ilidíveis ou presunções iuris tantum; já as
presunções iuris et de iure não admitem prova em contrário, sendo assim também
chamadas de presunções inilidíveis ou absolutas, e tidas como a exceção àquela regra
(artigo 350.º, n.ºs 1 e 2 do CCv).
Ora, no que tange às presunções em matéria sancionatória, o Tribunal
Constitucional, no Acórdão n.º 276/2004, procedeu a uma interpretação conforme à

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TC > Jurisprudência > Acordãos > Acórdão 338/2018 . 13/09/23, 12:37

Constituição do disposto no artigo 152.º, n.º 1 do Código da Estrada (que determina que
caso o agente da autoridade não consiga identificar o autor da contra-ordenação, a
responsabilidade recai sobre quem for proprietário, adquirente com reserva de
propriedade, usufrutuário, locatário em regime de locação financeira, locatário por prazo
superior a um ano ou sobre quem, em virtude de facto sujeito a registo, for possuidor do
veículo, sendo instaurado contra ele o correspondente processo), firmando que tal
normativo apenas estabelece uma presunção ilidível. Ali se escreveu, além do mais, que:

“De facto, como acontece no presente caso, não é aceitável concluir que uma norma
como a do n.º 1 do artigo 152º do Código da Estrada, que estabelece a possibilidade de a
responsabilidade contra-ordenacional, em determinadas circunstâncias, ser atribuída ao
proprietário ou possuidor de um veículo, possa ser interpretada no sentido de abranger
situações em que está provado nos autos não só que o arguido, à data da infração, já não era
proprietário ou possuidor do veículo - embora o seu nome constasse ainda do registo, mas
também que foi um terceiro, devidamente identificado, o infrator. Interpretar o mencionado
artigo 152º, n.º 1, em termos de considerar responsável quem não é proprietário ou
possuidor, apenas porque como tal consta do registo, quando está provado, ainda, que não foi
esse o infrator, mas sim outro, devidamente identificado, é imputar a tal normativo um
sentido desrazoável - um sentido que o intérprete só extrai, se desrespeitar, na interpretação,
o dever de presumir que “o legislador consagrou as soluções mais acertadas” (cfr. artigo 9º,
n.º 3, do Código Civil).

Com efeito, como o Tribunal Constitucional tem decidido, nomeadamente na numerosa


jurisprudência sobre a responsabilidade criminal de diretor de periódico (cfr., Acórdãos n.ºs
63/85, 447/87 e 135/92, publicados, respetivamente, em Acórdãos do Tribunal
Constitucional, 5º vol., pág. 503, 10º vol., pág. 547 e 21º vol. pág. 541, e Acórdão 922/96,
disponível na página Internet do Tribunal em
http://www.tribunalconstitucional.pt/jurisprudencia.htm) e no Acórdão n° 252/92, (publicado
em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 22° vol., pág. 723), a existência de presunções,
mesmo em direito penal, não é constitucionalmente inadmissível, desde que ilidíveis».

Ora, no caso presente, a sobredita interpretação conforme à Constituição não se


afigura possível, pois a norma contida no artigo 10.º, n.º 6, da Lei n.º 25/2006 – por
reporte ao prazo previsto no n.º 1, cujo teor é, aliás, claramente inspirado no sobredito
artigo 152.º, n.º 1 do Código da Estrada - é expressa ao fazer precludir “definitivamente”
a possibilidade de ilidir a presunção decorrido aquele prazo.
É certo, como já se afirmou, que em matéria das contraordenações o legislador se
socorre muitas vezes de presunções, justificadas por razões de praticabilidade e
efetividade da sanção. No entanto, ao ser afastada a possibilidade de prova em contrário,
como se verifica no presente caso, as presunções inilidíveis aproximam-se da figura das
ficções legais, através das quais o facto ficcionado é definitivamente fixado sem que se
considere sequer a possibilidade de demonstração de uma realidade diversa.
Estabelece-se, assim, uma presunção inilidível da prática da contraordenação. Resta
saber se tal presunção entra em confronto com o princípio da culpa, com a dimensão que
o mesmo reveste na jurisprudência constitucional em matéria de contraordenações.

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11. Já referimos que o conceito de culpa em matéria de contraordenações reveste um


significado específico, podendo ser compatível quer com situações excecionais de
transmissibilidade da responsabilidade, quer com um conceito amplo de autoria.
Porém, nos casos de transmissão da responsabilidade já anteriormente analisados
pela jurisprudência do Tribunal Constitucional, pré-existia uma conexão objetiva entre o
sujeito passivo responsável pela contraordenação e os sujeitos responsáveis pelo
pagamento da coima, fosse ela uma conexão orgânica ou contratual, tendo sido, no
âmbito da atividade desenvolvida pelo organismo em causa ou à qual se destinava o
contrato, que foi praticada a contraordenção. Referiu-se, para o efeito, no acima citado
Acórdão n.º 201/2014: “Dada a conexão objetivamente existente entre o sujeito passivo
responsável pela contraordenação e os sujeitos que, nos termos da norma sub judicio,
ficam responsáveis pelo pagamento da coima, não se afigura que a compressão do
princípio da proibição de transmissão da responsabilidade se aproxime sequer do seu
núcleo”.
Por outro lado, no que ao conceito amplo de autoria respeita, tal conceito assenta
ainda numa exigência causal, apenas podendo ser considerado autor de uma
contraordenação quem tiver contribuído para a realização do tipo, tendo dado origem a
uma causa para a sua realização ou que haja promovido, com a sua ação ou omissão, o
facto ilícito.
Daqui podemos retirar um conteúdo mínimo do princípio da culpa, assente na
exigência de um nexo causal mínimo entre o autor e a prática da contraordenação em
causa.

12. Resta, pois, verificar se tal conteúdo mínimo do princípio da culpa, atuante no
contexto da responsabilidade contraordenacional, é lesado com a norma delimitada
como constituindo o objeto do presente recurso.
O Tribunal interpretou a norma objeto do presente recurso no sentido de que,
sempre que não for possível identificar o condutor do veículo no momento da prática da
contraordenação, é sempre responsável pelo pagamento das coimas a aplicar, das taxas
de portagem e dos custos administrativos em dívida, o proprietário do veículo,
identificado no registo, tornando-se essa presunção inilidível em sede do próprio
processo judicial de impugnação da decisão administrativa.
Ora, ainda que se considere que o princípio da culpa não reveste o mesmo
significado em matéria contra-ordenacional, tal interpretação afronta, de facto, o
conteúdo mínimo de tal princípio. A interpretação em causa impõe a responsabilidade
do proprietário registado do veículo que faltou ao pagamento da coima e das custas,
independentemente da sua real participação nos factos e mesmo na ausência de
qualquer ligação com o autor da infração à data dos mesmos. Ou seja, a mencionada
interpretação impõe a responsabilização de quem pode não ter tido qualquer
participação, conexão ou ainda aproveitamento pessoal dos factos praticados.
Perante tal resultado, e recuperando a específica configuração dos princípios da
culpa e da proibição de transferência de responsabilidade sancionatória no domínio
contraordenacional, bem como o maior poder de conformação do legislador nesta
matéria, a análise da solução legal far-se-á, então, tendo em consideração os interesses
públicos que a mesma visa acautelar, de forma a determinar se o legislador ultrapassou a
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sua margem de conformação com a norma em causa.

13. Aqui chegados, como bem se referiu na sentença recorrida, ao contrário do que
sucede com as normas de responsabilidade contraordenacional em infrações rodoviárias
– que prevêem uma responsabilidade meramente subsidiária do titular do documento de
identificação do veículo (ou do locatário) pelo pagamento das coimas e das custas que
forem devidas pelo autor da contra-ordenação, e ainda a possibilidade do exercício do
direito de regresso contra o autor da contra-ordenação, caso tenha havido detenção
abusiva do veículo (artigo 135.º, n.º 8 do Código da Estrada) - a norma ora sindicada,
relativa à falta de pagamento de taxa de portagem, não estabelece qualquer
responsabilidade subsidiária do titular do documento de identificação do veículo pelo
pagamento das coimas e das custas que forem devidas pelo autor da contra-ordenação.
Mais: na interpretação sub judice, caso aquele titular não identifique outra pessoa num
prazo de 30 dias, não lhe é mais permitido ilidir a presunção da sua responsabilidade,
mesmo em sede de impugnação judicial.
Interpretada da forma como o foi pelo tribunal recorrido, a presente norma pode
impor a responsabilidade pelo pagamento dos valores devidos pela portagem e
contraordenação a quem não tenha qualquer ligação com o autor da prática da infração.
De facto, ainda de acordo com a referida interpretação, decorrido o referido prazo de
quinze dias, o ex-proprietário do veículo - ainda que comprovada a venda do mesmo,
mas não se encontrando a mesma registada -, responderá sempre pela prática das
contraordenações em causa, decorrido o aludido prazo.
Ora, tal responsabilização faz perigar o núcleo essencial do princípio da culpa que,
ainda que em matéria de contraordenações, se impõe ser reconhecido, sob pena de
postergar um mínimo de previsibilidade sobre as consequências dos comportamentos
individuais, o que é insustentável num Estado de Direito.
De resto, tal solução legal não se afigura minimamente proporcional às pretensões
do legislador: obter o pagamento de taxas de portagem e a responsabilização contra-
ordenacional pela falta desse pagamento. Como acima se verificou, por infrações mais
graves (v.g., infrações estradais), a lei não estabelece qualquer presunção juris et de iure
de responsabilização contra-ordenacional.
Face ao exposto resta concluir, pois, que a presunção inilidível, em sede de processo
judicial, de responsabilidade do titular do documento de identificação do veículo ou do
locatário que resulta do decurso do prazo previsto na lei para a indicação do condutor,
viola o conteúdo mínimo do princípio da culpa.

14. E se o princípio da culpa sai afrontado com a dimensão normativa ora em


discussão, a norma desaplicada pela decisão recorrida poderá afrontar ainda a garantia
do direito de defesa em processo jurisdicional de impugnação de contraordenações. A
decisão recorrida invocou a violação do artigo 32.º, n.º 10 da Constituição e das
garantias de acesso à tutela jurisdicional efetiva, previstas no artigo 20.º, n.ºs 1 e 4 da
mesma Lei Fundamental.
No que diz respeito ao n.º 10 do artigo 32.º, referiu-se no Acórdão n.º 180/2014 que
o mesmo releva “no plano adjetivo e significa ser inconstitucional a aplicação de

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qualquer tipo de sanção contraordenacional ou administrativa sem que o arguido seja


previamente ouvido e possa defender-se das imputações que lhe são feitas (Jorge
Miranda/Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, Coimbra, 2005, pág.
363, e acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs 160/2004 e 161/2004)”.
Por outro lado, tem-se referido que “com a introdução dessa norma constitucional
(efetuada, pela revisão constitucional de 1989, quanto aos processos de
contraordenação, e alargada, pela revisão de 1997, a quaisquer processos
sancionatórios) o que se pretendeu foi assegurar, nesses tipos de processos, os direitos
de audiência e de defesa do arguido, direitos estes que, na versão originária da
Constituição, apenas estavam expressamente assegurados aos arguidos em processos
disciplinares no âmbito da função pública (…). Tal norma implica tão-só ser
inconstitucional a aplicação de qualquer tipo de sanção, contraordenacional,
administrativa, fiscal, laboral, disciplinar ou qualquer outra, sem que o arguido seja
previamente ouvido (direito de audição) e possa defender-se das imputações que lhe são
feitas (direito de defesa), apresentando meios de prova e requerendo a realização de
diligências tendentes a apurar a verdade (…)” - Acórdão n.º 659/2006.
No Acórdão n.º 469/97, o Tribunal Constitucional afirmou que as exigências
decorrentes do n.º 10 do artigo 32.º valem não apenas para a fase administrativa, mas
também para a fase jurisdicional do processo, sublinhando-se que “não fará sentido
aceitar que os mesmos não tenham projeção na fase recursória posterior, que
corresponde à jurisdicionalização daquele processo. Na verdade, esta segunda fase
significa um reforço das garantias do particular a quem é imputada determinada
infração e seria incongruente introduzir nela alguma modulação que não fosse no
sentido do acréscimo daquelas mesmas particulares garantias que a Constituição
expressamente consagrou neste domínio”. O acórdão referido referiu, inclusivamente,
que esta “matéria é precisamente daquelas em que mais proximidade entre os dois
ordenamentos processuais deverá existir”, reportando-se às garantias do processo
criminal e contraordenacional. No entanto, em acórdãos posteriores, o Tribunal
Constitucional já veio considerar que a sede adequada da análise da eventual violação de
direitos de defesa em processo jurisdicional se situava no contexto do respeito pelas
garantias consagradas nos artigos 20.º e 268.º, n.º 4 da CRP. Assim se afirmou no
Acórdão n.º 135/2009, que considerou ser “descabida a invocação, para esta fase, do
disposto no n.º 10 do artigo 32.º da CRP”.

15. Seguindo a jurisprudência mais recente importa, pois, confrontar a norma em


presença com o direito de impugnação de decisões sancionatórias perante os tribunais -
direito que se funda, em geral, no artigo 20.º, n.º 1, e, especificamente para as decisões
administrativas, no artigo 268.º, n.º 4, da Constituição.
De facto, na sequência da impugnação perante os tribunais de decisões
administrativas, os processos contraordenacionais entram na “fase jurisdicional”,
gozando os arguidos, aí impugnantes, das genéricas garantias constitucionais dos
processos judiciais, quer diretamente referidas no artigo 20.º (garantia de processo
equitativo), quer ainda, mais especificamente, no artigo 268.º, n.º4 (garantia aos
administrados da tutela jurisdicional efetiva dos seus direitos ou interesses legalmente
protegidos). Foi neste quadro que o Acórdão n.º 135/2009 do Tribunal Constitucional
julgou inconstitucional o critério normativo segundo o qual o pagamento voluntário da
coima por contraordenação rodoviária impossibilita o arguido de discutir em tribunal a

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própria existência da infração. Pode ler-se em tal aresto que o direito de impugnação
perante os tribunais das decisões sancionatórias em causa se funda, em geral, no artigo
20.º, n.º 1, e, especificamente para as decisões administrativas, no artigo 268.º, n.º 4, da
CRP. Mais acrescenta que “não se ignorando que serão menos intensas as
preocupações garantísticas em processos contra-ordenacionais em comparação com o
processo criminal (cf. Acórdãos n.ºs 269/87 e 313/2007), aquelas não podem, contudo,
ser de tal modo desvalorizadas que ponham em cheque a própria efetividade da tutela
jurisdicional e as exigências de um processo equitativo”.
Volvendo ao caso presente, importa saber se viola tais garantias a norma objeto do
presente recurso, tal como foi interpretada pelo tribunal recorrido, no sentido de não
permitir ao arguido em recurso de impugnação judicial da decisão administrativa
sancionatória ilidir a presunção de responsabilidade.
Afirmou, neste contexto, o Acórdão n.º 612/2014, que, em processos
contraordenacionais, o direito de acesso aos tribunais, satisfaz-se com a possibilidade,
exercida pelo recorrente nos autos, de impugnar judicialmente a decisão administrativa
que lhe aplicou a coima, tal como especialmente garantido à generalidade dos
administrados em face de atos administrativos que os lesem (artigo 268.º, n.º 4, da
Constituição).
Poderia dizer-se que a garantia assim referida não é posta em causa pela norma
objeto do presente recurso, já que ela não veda, em si, a possibilidade de se impugnar
judicialmente a decisão administrativa – a qual, aliás, foi exercida no caso em presença.
Mas, quer o direito de acesso a uma impugnação judicial de decisões
administrativas que se queira efetiva, quer o próprio direito de acesso aos tribunais em
geral – o qual reclama expressamente uma tutela jurisdicional efetiva – não se bastam
com a simples garantia formal de acesso aos tribunais por parte dos administrados. De
facto, da consagração do direito à tutela jurisdicional efetiva derivam vários corolários
que se repercutem em exigências materiais que devem enformar a específica modelação
dos processos e os direitos das partes.
Um deles é o direito de defesa e do contraditório. Este direito pressupõe que cada
uma das partes possa expor as suas razões perante o tribunal em condições que a não
desfavoreçam em relação à parte contrária (Acórdão n.º 1193/96), e que, antes de o juiz
decidir, cada uma delas possa expor as suas razões e apresentar provas que sustentem a
sua pretensão, não podendo haver decisão sem que as mesmas tenham tido oportunidade
de serem ouvidas sobre a matéria (Acórdão n.º 582/2000).
Ora, também no que toca ao respeito pelo princípio do contraditório – que em
processo jurisdicional de impugnação de medida sancionatória assume a relevância de
um verdadeiro direito de defesa – ele não se basta com a simples garantia de audição ou
de apresentação de provas. O direito do contraditório e da defesa exigem que as partes
não só tenham direito a apresentar razões, oferecer provas e tomar posição sobre as
provas do adversário, mas ainda que, através desses meios, possam exercer uma
influência efetiva na decisão. Um princípio do contraditório que se baste com um
momento processual formal de audição, sem que o mesmo possa ter qualquer relevância
para a decisão, não garante materialmente que as posições das partes sejam efetivamente
consideradas pelo decisor.
Neste sentido, importa referir novamente o Acórdão n.º 135/2009, em que o

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Tribunal Constitucional considerou que o critério normativo segundo o qual o


pagamento voluntário da coima por contraordenação rodoviária impossibilitava ao
arguido a possibilidade de discutir em tribunal a própria existência da infração não
respeitava os requisitos constitucionais do acesso aos tribunais para tutela efetiva de
direitos e interesses legalmente reconhecidos, através de um processo equitativo.
Considerou-se, aí, precisamente, que a norma contraordenacional em causa previa uma
presunção inilidível que punha em cheque a própria efetividade da tutela jurisdicional e
as exigências de um processo equitativo. O Tribunal concluiu, em suma, que o critério
normativo questionado não poderia deixar de ser encarado como representando uma
verdadeira impossibilidade de impugnação do ato administrativo.
Neste contexto, também o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem afirmou já que
o princípio do contraditório, decorrente do artigo 6.º da Convenção Europeia dos
Direitos do Homem, implica a faculdade de as partes discutirem quaisquer elementos ou
observações apresentados ao juiz, ainda que por outra autoridade pública, tendo em vista
influenciar a sua decisão (Acórdão de 20/02/1996, Lobo Machado c. Portugal, queixa
n.º 15764/89, § 31).
De outra perspetiva, o Tribunal Constitucional já afirmou que a tutela jurisdicional
efetiva pressupõe um contencioso de âmbito pleno, em que não só as partes devem ser
admitidas a invocar factos relevantes e trazer meios de prova para sustentar as suas
pretensões, como ainda deve ser garantido ao Tribunal o poder efetivo de conhecer e
ponderar esses factos e meios de prova. Trata-se da contrapartida do referido direito ao
contraditório com o sentido material de “poder influenciar a decisão”.
Nesse sentido, atente-se ao que têm afirmado diversos arestos (cf., entre outros, os
Acórdãos n.ºs 429/89 e 8/99) e a mais relevante doutrina: “o artigo 269.º, n.º 2 (atual
artigo 268.º, n.º 4), da Constituição, pode e deve ser interpretado como estabelecendo
uma garantia completa de recurso, quer dizer, uma garantia que assegura aos
particulares a possibilidade de impugnarem judicialmente todos os atos singulares e
concretos da Administração Pública que produzam efeitos jurídicos externos e sejam
suscetíveis, portanto, de lesar os seus direitos”, pelo que “quaisquer normas legais que
excluam esta possibilidade de impugnação relativamente a certos atos ou a certas
categorias de atos administrativos ou que restrinjam os possíveis fundamentos de tal
impugnação apenas a alguns dos vícios suscetíveis de gerar a antijuridicidade desses
atos, têm de ser havidas como inconstitucionais, e, por via de consequência, como
inteiramente irrelevantes” (José Manuel Cardoso da Costa, “A tutela dos direitos
fundamentais”, Boletim do Ministério da Justiça – Documentação e Direito
Comparado, n.º 5, 1981, p. 209). Ou, na formulação de J.J.Gomes Canotilho e Vital
Moreira: “A garantia constitucional do recurso impede a isenção contenciosa de certos
atos, ou partes de atos, ou a exclusão do conhecimento de certos vícios, de modo a
conferir direito à impugnação contenciosa de todos os atos em todos os aspetos
juridicamente vinculados” (Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª edição,
Coimbra, p. 938).
Ora o entendimento amplo do direito à tutela jurisdicional efetiva acabado de expor
não é minimamente satisfeita na norma objeto do presente recurso. Entender a norma
contida no n.º 6 do artigo 10.º da Lei n.º 25/2006, de 30 de junho, no sentido de
estabelecer uma presunção inilidível, independentemente da prova que sobre a autoria
for feita mesmo em processo judicial, não permite ao arguido poder, através do recurso
jurisdicional, alterar a decisão administrativa que foi tomada sobre a autoria do ilícito,

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através de prova que a invalide, nem permite ao tribunal conhecer desta última. Não se
permite, em suma, exercício material de um direito de impugnação judicial que a
Constituição confere ao administrado (acoimado) por ela visado (artigo 268.º, n.º 4),
nem a garantia da tutela jurisdicional efetiva plasmada no art. 20.º da Constituição.
Razão que impõe um juízo de inconstitucionalidade, por violação do direito a uma
tutela jurisdicional efetiva, da norma contida no n.º 6 do artigo 10.º da Lei n.º 25/2006,
de 30 de junho, quando interpretada no sentido de estabelecer uma presunção inilidível
em relação ao autor da contraordenação, independentemente da prova que sobre a
autoria for feita mesmo em processo judicial.

16. Finalmente, a decisão recorrida alega ainda que o entendimento normativo sub
iudicio comporta uma violação do princípio da presunção da inocência.
A primeira questão que, neste contexto, importa analisar, é a de saber se o direito do
arguido a que seja presumido inocente até ao trânsito em julgado de sentença de
condenação, consagrado no artigo 32.º, n.º 2, da Constituição, se estende, por força do
disposto no n.º 10 do mesmo artigo, aos processos jurisdicionais de impugnação de
contraordenações.
A essa questão não pode deixar de se dar uma resposta afirmativa. No Acórdão n.º
397/2017 e no Acórdão n.º 675/2016 afirmou-se que o princípio da presunção de
inocência pertence àquela classe de princípios materiais do processo penal que,
enquanto constitutivos do Estado de direito democrático, são extensíveis ao direito
sancionatório público, pelo que este princípio encontra, pois, aplicação também no
processo contraordenacional, como decorre dos n.ºs 2 e 10 do artigo 32.º da
Constituição. Mais se afirmou que o estatuto processual do arguido no processo
contraordenacional, enformado pela garantia da presunção de inocência, permite, por
exemplo – e para o que agora releva –, que o tratamento do arguido ao longo de todo o
processo seja configurado sem perder de vista a possibilidade de verificação da sua
inocência, não sendo de admitir, designadamente, que o arguido seja tido como culpado
antes de o tribunal formalizar o juízo sancionatório de forma necessariamente
fundamentada.
Ora, o entendimento da norma ora questionada como estabelecendo uma presunção
inilidível da autoria do ilícito de não pagamento de taxas de portagem, não pode deixar
de se ter como violadora do princípio da presunção da inocência. De facto, ao entender-
se que a norma estabelece uma presunção inilidível da prática do ilícito, o arguido é tido
como autor do mesmo independentemente da prova que possa vir a fazer em juízo
destinada a demonstrar a sua inocência. Tal entendimento normativo afronta diretamente
e de forma intolerável o princípio da presunção da inocência, já que o que tal norma
determina é precisamente uma presunção inabalável de culpabilidade.
Note-se que não é a simples previsão de uma presunção legal que comporta a
violação do princípio agora em análise. Como se afirmou também no já citado Acórdão
n.º 135/2009, não se questiona a possibilidade de o legislador, mesmo em matéria
sancionatória estabelecer presunções. O que é intolerável é a existência de presunções
inilidíveis em contexto sancionatório, quando reportadas à autoria da prática de
infrações.
De facto, tais presunções inilidíveis traduzem-se em conclusões inabaláveis de
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autoria ou culpabilidade, que, por isso, sempre valerão independentemente de toda a


prova que o arguido possa fazer e da convicção que o juiz possa firmar. Neste último
ponto, importa sublinhar que o sentido do princípio da presunção da inocência influi
diretamente sobre a apreciação da prova e sobre o princípio da livre convicção do
julgador (assim, Germano Marques da Silva e Henrique Salinas, “Anotação ao Artigo
32.º”, in Jorge Miranda, Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, vol. I,
Universidade Católica Editora, 2017, p. 526). Ora, uma presunção inilidível sobre a
prática de um ilícito não permite ao tribunal procurar a verdade ou relevar qualquer
prova sobre a autoria dos factos, nunca podendo, como afirma a decisão recorrida, fazer
sequer atuar o princípio in dubio pro reo quando não se consiga firmar convicção sobre
a efetiva autoria dos factos.
Assim, quer por impedirem ao arguido afastar uma presunção de autoria de um
ilícito, quer ainda por impedirem ao tribunal de formar livremente a sua convicção sobre
a mesma, tal norma não pode deixar de violar o princípio da presunção da inocência.
Termos em que se conclui que a norma constante do artigo 10.º, n.º 6 da Lei n.º
25/2006, quando interpretada no sentido de que estabelece uma presunção inilidível em
relação ao autor da contraordenação, independentemente da prova que sobre a autoria
for feita mesmo em processo judicial, viola o princípio da presunção da inocência,
consagrado no artigo 32.º, n.º 2 da Constituição.

III - Decisão

Pelo exposto, decide-se:

a) Julgar inconstitucional, por violação do princípio da culpa, do direito de defesa


em processo contraordenacional, e do direito à tutela jurisdicional efetiva, constantes
dos artigos 1.º, 32.º, n.º 10 e 20.º, n.ºs 1 e 4 da Constituição, a norma contida no n.º 6 do
artigo 10.º da Lei n.º 25/2006, de 30 de junho, quando interpretada no sentido de
estabelecer uma presunção inilidível em relação ao autor da contraordenação,
independentemente da prova que sobre a autoria for feita em processo judicial;
b) Consequentemente, negar provimento ao recurso.

Sem custas.

Lisboa, 28 de junho de 2018 - Lino Rodrigues Ribeiro - Gonçalo Almeida Ribeiro -


Maria José Rangel de Mesquita (com declaração) - João Pedro Caupers
Tem voto de conformidade da Conselheira Joana Fernandes Costa, que não assina por
não estar presente.

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DECLARAÇÃO DE VOTO

Acompanha-se o juízo de inconstitucionalidade da norma sindicada constante


da alínea a) da Decisão com fundamento na violação no direito de acesso ao direito e à
tutela jurisdicional efetiva, na dimensão da proibição da indefesa, consagrados no
artigo 20.º, n.ºs 1 e 4, da Constituição, e do direito de defesa em processo
contraordenacional, consagrado no artigo 32.º, n.º 10, da Constituição (cfr. II –
Fundamentação, 14. e 15.), por se admitir ser diferente o alcance dos princípio da
culpa e da presunção de inocência em processo contraordenacional.
contraordenacional.
Maria José Rangel de Mesquita

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