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DOI: 10.12957/palimpsesto.2024.

79671

Autobiografia e autoficção: instrumentos teórico-


metodológicos para o estudo das narrativas do eu

Autobiography and autofiction: theoretical and methodological


tools for the study of self-narratives

Juliana Gama de Brito Assumpção


Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)
assumpcao.jg@gmail.com
https://orcid.org/0000-0002-5133-5375

RESUMO
Tendo em vista o heterogêneo quadro teórico-metodológico que atualmente circunda as
chamadas narrativas do eu no campo dos estudos literários, este artigo1 tem como
objetivo rastrear os pontos centrais dos conceitos de autobiografia e autoficção, com
foco nas teorizações pioneiras de Philippe Lejeune e de Serge Doubrovsky, e com o
aporte de pesquisas recentes sobre o assunto, sobretudo as elaboradas pela pesquisadora
Anna Faedrich. Dessa forma, sem pretender atingir conclusões definitivas, o estudo abre
caminhos fecundos a novas discussões sobre a potência do embate teórico entre os
conceitos estudados, na literatura e na crítica literária contemporâneas.

Palavras-chave: narrativas do eu; escritas de si; autobiografia; autoficção.

ABSTRACT
Considering the diverse theoretical and methodological framework that currently
surrounds the so-called self-narratives in the field of literary studies, this paper aims to
investigate the concepts of autobiography and autofiction, with a focus on the
pioneering theories of Philippe Lejeune and Serge Doubrovsky, supplemented by recent
research on the subject, particularly those elaborated by Anna Faedrich. Thus, without
claiming to reach definitive conclusions, this study paves the way for new discussions
on the critical potential of the theoretical dialogue between the studied concepts, in
contemporary literature and literary criticism.

Keywords: self-narratives; self-writing; autobiography; autofiction.

1
O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001.

Palimpsesto, Rio de Janeiro, v. 23, n. 44, p. 389 – 404, jan. – abr. 2024 389
Juliana Gama de Brito Assumpção

INTRODUÇÃO

No ensaio introdutório do livro Narrativas do eu: memórias através da escrita,


publicado em 2009, Ana Maria Carlos e Antonio Esteves associam o interesse crescente
pelas múltiplas formas de literatura íntima nas ciências e nas artes contemporâneas à
intensificação do processo de “desestabilização da ideia de sujeito vivenciada desde a
modernidade” (Carlos; Esteves, 2009, p. 10). Nesse sentido, a partir do pensamento de
Nora Catelli, os autores constatam que vivemos sob o signo contraditório da “era da
intimidade”, em que o valor de “veracidade” do discurso vincula-se estreitamente à
evidenciação de um sujeito que o enuncia, ao passo que não dispomos de nenhum
instrumento definitivo para apreendermos esse sujeito em sua totalidade. Assim,
segundo os pesquisadores, as chamadas “narrativas do eu”, ou “escritas de si”,
revitalizam-se na atualidade, sobretudo, por atuarem como “um modo de resistência à
perda da identidade e das certezas que cercavam um eu estável e separado do mundo de
épocas anteriores” (Carlos; Esteves, 2009, p. 10).
Nesse contexto, as diversas manifestações das narrativas do eu, como as
produções autobiográficas, os testemunhos, os relatos memorialísticos e os diários
editados em livros ou publicados em redes sociais virtuais, dentre outras, têm sido cada
vez mais exploradas no cenário cultural contemporâneo, tanto como linguagem artística
quanto como objeto de pesquisa na área de ciências humanas, em geral, e no campo da
literatura, em particular. Ao mesmo tempo, neste campo de estudos, os múltiplos
instrumentos teórico-metodológicos pelos quais abordamos os textos literários
marcados por uma incontornável presença autoral não se encontram fixados num quadro
conceitual homogêneo.
Diante disso, o presente artigo constitui-se de um exercício de estudo atento de
dois desses instrumentos: os conceitos de “autobiografia” e “autoficção”. Sem a
pretensão de atingir conclusões definitivas, o principal objetivo do estudo é rastrear
alguns dos pontos centrais para a compreensão dos referidos conceitos no campo dos
estudos literários, com ênfase nas teorizações pioneiras de Philippe Lejeune (2008;
2013; 2014) e de Serge Doubrovsky (1977; 2014), e com o aporte de pesquisas recentes
sobre as narrativas do eu na atualidade, sobretudo as desenvolvidas pela pesquisadora
Anna Faedrich (2015; 2016). Dessa forma, espera-se produzir reflexões pertinentes

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Autobiografia e autoficção: instrumentos teórico-metodológicos para o estudo das narrativas do eu

sobre a potência crítica do embate instaurado entre o autobiográfico e o autoficcional na


literatura e na teoria literária contemporâneas.

AUTOBIOGRAFIA POR PHILIPPE LEJEUNE: UM GÊNERO


CONTRATUAL

Embora a autobiografia já fosse investigada por outros autores, pelo viés


histórico e filosófico-existencialista, o crítico francês Philippe Lejeune é considerado
precursor das pesquisas sobre o tema no campo dos estudos literários, sobretudo a partir
do livro L’autobiographie en France, de 1971; e do ensaio “O pacto autobiográfico”,
publicado no ano de 1975 e, posteriormente, retomado pelo autor em “O pacto
autobiográfico (bis)” e “O pacto autobiográfico, 25 anos depois”, divulgados,
respectivamente, em 1986 e 2001 (cf. Lejeune, 2008). Com esses trabalhos, sem negar a
relevância das análises voltadas à observação dos aspectos filosóficos, políticos e
psicanalíticos inerentes aos textos autobiográficos, Lejeune se destaca, desde a década
de 1970, por abordar pioneiramente a autobiografia como “uma narrativa como outra
qualquer e que, por isso, deve ser analisada dentro do sistema dos gêneros literários”
(Carlos; Esteves, 2009, p. 11).
Além disso, vale anotar que o autor começa a desenvolver suas pesquisas sobre a
autobiografia em um contexto acadêmico conservador, no qual esse tipo de narrativa era
considerado um discurso “menor” pela crítica literária hegemônica. Desse modo, em
suas reflexões iniciais sobre o assunto – inovador, mas incômodo à academia francesa
da época –, é notável o esforço crítico empreendido por Lejeune para desenvolver uma
sistematização rigorosa, através de instrumentos da crítica tradicional e de um corpus de
análise restrito a escritos autobiográficos de autores consagrados na literatura ocidental,
como via de acesso e de legitimação acadêmica a um objeto de pesquisa que, por si só,
era bastante polêmico (Noronha, 2008, p. 9-10; Lejeune, 2013, p. 539).
Nessa linha, logo no início do ensaio de 1975, “O pacto autobiográfico”, o autor
propõe a seguinte definição sistemática de autobiografia: “DEFINIÇÃO: narrativa
retrospectiva em prosa que uma pessoa real faz de sua própria existência, quando
focaliza sua história individual, em particular a história de sua personalidade” (Lejeune,
2008, p. 14).

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Juliana Gama de Brito Assumpção

Após a proposição dessa definição inicial, o autor relativiza alguns dos fatores
em que ela se embasa, como a perspectiva temporal retrospectiva e a forma narrativa em
prosa; e afirma que, em certa medida, seria possível que um texto classificado como
autobiografia apresentasse algumas nuances de outros gêneros da “literatura íntima”,
desde que isso ocorra moderadamente:

[...] certas condições podem não ser preenchidas totalmente. O texto deve ser
principalmente uma narrativa, mas sabe-se a importância do discurso na
narração autobiográfica; a perspectiva, principalmente retrospectiva [...]; o
assunto deve ser principalmente a vida individual, a gênese da personalidade:
mas a crônica e a história social ou política podem também ocupar um certo
espaço. Trata-se de uma questão de proporção ou, antes, de hierarquia:
estabelecem-se naturalmente transições com os outros gêneros da literatura
íntima (memórias, diário, ensaio) e uma certa latitude é dada ao classificador
no exame de casos particulares (Lejeune, 2008, p. 15).

Apesar dessa breve relativização, Lejeune é categórico ao postular a relação de


identidade entre o narrador, o personagem principal e o autor empírico da narrativa
como um critério inegociável para que um texto seja lido como autobiografia:

[...] duas dessas condições não comportam graus – é tudo ou nada –, e são
elas, é claro, que opõem a autobiografia (mas também as outras formas de
literatura íntima) à biografia e ao romance pessoal: as condições (3)
[identidade do autor (cujo nome remete a uma pessoa real) e do narrador] e (4
a) [identidade do narrador e do personagem principal]. Nesse caso, não há
transição nem latitude. Uma identidade existe ou não existe. Não há gradação
possível e toda e qualquer dúvida leva a uma conclusão negativa.
Para que haja autobiografia (e, numa perspectiva mais geral, literatura
íntima), é preciso que haja relação de identidade entre o autor, o narrador e o
personagem (Lejeune, 2008, p. 15).

Assim, o autor alicerça sua sistematização teórica da autobiografia no conceito


de “pacto autobiográfico”, cunhado para designar “a afirmação, no texto, dessa
identidade [entre autor, narrador e personagem], remetendo, em última instância, ao
nome do autor, escrito na capa do livro” (Lejeune, 2008, p. 26).
Em linhas largas, o pacto autobiográfico conceituado por Lejeune consiste em
uma espécie de “contrato de leitura” que, em qualquer autobiografia, deve ser firmado
entre o autor e o leitor por meio da correspondência entre o nome de quem assina a obra
e o nome do narrador e personagem principal, anunciado explícita ou implicitamente
desde a abertura do livro, de modo que não reste a menor dúvida ao leitor sobre a
identidade uníssona dessas três entidades que participam da obra. Ou seja: por “pacto

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Autobiografia e autoficção: instrumentos teórico-metodológicos para o estudo das narrativas do eu

autobiográfico”, o crítico francês se refere, em suma, a um “acordo de sinceridade”


estabelecido na composição e na recepção de uma autobiografia, pelo qual, no ato da
escrita, o autor se comprometeria a relatar episódios, emoções e eventos que de fato lhe
aconteceram na “vida real”; e, no ato da leitura, o receptor concordaria em acreditar no
primeiro.
A fim de tornar esse conceito mais nítido, Lejeune define, em oposição, o que
chama de “pacto romanesco”, caracterizado por apresentar um “atestado de
ficcionalidade” (por exemplo, com a inscrição da palavra “romance” na capa do livro,
como subtítulo ou na folha de rosto da publicação); e uma “prática patente da não-
identidade”, pela qual os nomes do autor empírico e do protagonista seriam diferentes
(Lejeune, 2008, p. 27). Nesse sentido, o principal critério de distinção entre a
autobiografia e o romance se concentraria nas expectativas de leitura codificadas na
obra a partir da relação entre o nome próprio do autor e o nome do narrador-
personagem.
Com essas definições iniciais, ainda em “O pacto autobiográfico”, o teórico
delineia um quadro esquemático que se pretende capaz de classificar toda e qualquer
obra narrada em primeira pessoa como “romance” ou “autobiografia”, duas categorias
que, a princípio, mostravam-se rígidas e mutuamente excludentes:

Quadro 1 – Esquema classificatório proposto por Lejeune no ensaio de 1975

Nome do
personagem
→ ≠ nome do autor =0 = nome do autor

Pacto ↓

Romanesco (1a) romance (2a) romance

=0 (1b) romance (2b) indeterminado (3b) autobiografia

Autobiográfico (2c) autobiografia (3c) autobiografia


Legenda: Reprodução do quadro esquemático elaborado por Philippe Lejeune no ensaio “O
pacto autobiográfico”, de 1975, pelo qual o autor buscava classificar toda e qualquer
narrativa autodiegética como “romance” ou “autobiografia”.
Fonte: Lejeune, 2008, p. 28.

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Juliana Gama de Brito Assumpção

Como se nota no Quadro 1, o esquema classificatório inicial de Lejeune exclui,


por definição, autobiografias nas quais os nomes do autor e do personagem principal
divergissem; e romances cujo protagonista tivesse um nome idêntico ao do autor. Ao
mesmo tempo, nos casos “indeterminados”, assinalados no Quadro 1 como “2b” – em
que o protagonista não é nomeado no texto, tampouco há indicações que confirmem ou
refutem alguma equivalência, ainda que implícita, entre as figuras do autor-empírico e
do narrador-personagem –, o teórico francês postula que a classificação, nesses casos,
fica a cargo de cada leitor que, na interpretação da narrativa, deverá decidir se apreciará
a obra como “romance” ou como “autobiografia” (Lejeune, 2008, p. 28-29).
Portanto, em última instância, ambos os “pactos” (o romanesco e o
autobiográfico) teorizados por Lejeune parecem concernir, mais especificamente, aos
efeitos de leitura que um escritor codifica, ou pré-elabora na composição de
determinada narrativa – como o “leitor implícito” conceituado por Iser (1996) – e,
consequentemente, à recepção da obra, do que a uma pretensa natureza de “veracidade”
ou de “ficção” inerente ao texto literário em si mesmo.
Embora não seja um objetivo do presente trabalho aprofundar este assunto, vale
anotar que, no âmbito da Estética da Recepção alemã, o conceito de “leitor implícito” ao
qual me refiro, em suma, designa o “leitor virtual” que a obra literária pressupõe por
meio de construções textuais que direcionam o efeito estético a ser produzido sobre os
leitores empíricos, no ato da leitura (cf. Iser, 1996).
Nesse prisma, ainda que Lejeune complexifique sua teoria dos “pactos” com, no
mínimo, outras duas subcategorias de “contratos de leitura” – denominadas,
respectivamente, “pacto referencial”, que restringiria a noção de “verdade total” pela de
“verdade possível de ser verificada”, na autobiografia; e “pacto fantasmático”, pelo qual
se poderia buscar, fora da narrativa, correspondências entre a obra e a vida do indivíduo
que a escreveu (Lejeune, 2008, p. 37-42) –, a centralidade da noção de “leitor” (o
implícito e o empírico) no pensamento do crítico francês torna-se especialmente
evidente a partir da seção que finaliza o primeiro ensaio em que trata d’“O pacto
autobiográfico”.
Na finalização desse texto de 1975, Lejeune constata que as diversas categorias
exaustivamente esquematizadas no decorrer do ensaio lhe parecem mais produtivas na
medida em que “remetem à ideia de que o gênero autobiográfico é um gênero

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Autobiografia e autoficção: instrumentos teórico-metodológicos para o estudo das narrativas do eu

contratual” (Lejeune, 2008, p. 45). A partir dessa constatação, o autor assinala o


seguinte:

A problemática da autobiografia aqui proposta não está, pois, fundamentada


na relação, estabelecida de fora, entre a referência extratextual e o texto –
pois tal relação só poderia ser de semelhança e nada provaria. Ela tampouco
está fundamentada na análise interna do funcionamento do texto, da estrutura
ou dos aspectos do texto publicado, mas sim em uma análise, empreendida a
partir de um enfoque global da publicação, do contrato implícito ou explícito
proposto pelo autor ao leitor, contrato que determina o modo de leitura do
texto e engendra os efeitos que, atribuídos ao texto, nos parecem defini-lo
como autobiografia (Lejeune, 2008, p. 45).

Com isso, Lejeune pontua que qualquer tentativa de elaborar uma teoria
totalizante do gênero autobiográfico tenderia ao fracasso; e conclui o ensaio com o
seguinte parágrafo:

A história da autobiografia seria então, antes de tudo, a história de seu modo


de leitura: história comparativa na qual poderíamos fazer dialogar os
contratos de leitura propostos pelos diferentes tipos de texto [...], e os
diferentes tipos de leitura a que esses textos são realmente submetidos. Se
podemos dizer que a autobiografia se define por algo que é exterior ao texto,
não se trata de buscar, aquém, uma inverificável semelhança com uma pessoa
real, mas sim de ir além, para verificar, no texto crítico, o tipo de leitura que
ela engendra, a crença que produz (Lejeune, 2008, p. 46-47).

Essa conclusão imbui o primeiro “O pacto autobiográfico”, divulgado por


Lejeune em 1975, do reconhecimento do papel crucial do “leitor” para o entendimento
da autobiografia, tanto o leitor implícito (codificado não apenas no texto, mas na
publicação como um todo) quanto o de carne e osso, que lê e interpreta a obra
publicada. Isso talvez justifique a permanência da noção basilar de “pacto”, ou “contrato
de leitura” como princípio do gênero autobiográfico nos trabalhos posteriores de
Lejeune, inclusive nos ensaios de 1986 e 2001, em que o autor reformula e amplia “O
pacto...” de 1975.
No entanto, as ideias de Lejeune sobre a autobiografia foram contestadas por
diversos caminhos da crítica e da teoria literária ao longo dos anos, sobretudo em
função da rigidez excessiva das categorias e dos quadros esquemáticos que conferem
um tom dogmático aos seus primeiros estudos. Em um desses caminhos, a noção de
“autoficção” germinou como outra via de acesso às narrativas do eu.

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Juliana Gama de Brito Assumpção

AUTOFICÇÃO: DO NEOLOGISMO DE SERGE DOUBROVSKY


AO DEBATE VERTIGINOSO DO SÉCULO XXI

O conceito de autoficção começa a delinear-se no campo literário francês em


1977, quando o romancista e professor de literatura Serge Doubrovsky cria o
neologismo “autofiction” ao apresentar sua obra Fils: roman, na quarta capa do livro:

Autobiografia? Não, isso é um privilégio reservado aos importantes deste


mundo, no crepúsculo de suas vidas, e em belo estilo. Ficção, de
acontecimentos e fatos estritamente reais; se se quiser, autoficção, por ter
confiado a linguagem de uma aventura à aventura da linguagem, fora da
sabedoria e fora da sintaxe do romance, tradicional ou novo. Encontro, fils
[fios/filiações] de palavras, aliterações, assonâncias, dissonâncias, escrita de
antes ou de depois da literatura, concreta, como se diz em música. Ou ainda,
autofricção, pacientemente onanista, que espera agora partilhar seu prazer
(Doubrovsky, 1977, capa, tradução minha2).

Junto a essa primeira definição de autoficção (cujo tom, aliás, assemelha-se ao


de um manifesto poético), o próprio livro de Doubrovsky (1977) serve de exemplo do
tipo de escrita ao qual o autor se referia com o neologismo. Tendo como subtítulo a
palavra “romance”, Fils constitui-se de uma narrativa híbrida, de acentuado teor
psicológico, na qual o autor ficcionaliza a si próprio por meio de um personagem cujo
nome revela-se o mesmo que o seu, mas não se compromete a relatar uma pretensa
“verdade” sobre a sua história de vida, nem adere completamente à invenção
romanesca.
Ainda sobre o contexto do surgimento do termo, outro ponto a se destacar é que
o neologismo “autoficção” foi criado pelo autor de Fils como uma resposta provocativa
à inflexibilidade do esquema elaborado por Philippe Lejeune para distinguir
autobiografias de romances, já discutido na seção anterior. Em uma carta enviada a este
teórico no mês de novembro de 1977, mesmo ano do lançamento de Fils, Doubrovsky
escreve o seguinte:

2
No original: “Autobiographie? Non, c’est un privilège réservé aux importants de ce monde, au soir de
leur vie, et dans un beau style. Fiction d’événements et de faits strictement réels; si l’on veut,
autofictiond’avoir confié le langage d’une aventure à l’aventure du langage, hors sagesse et hors syntaxe
du roman traditionnel ou nouveau. Rencontre, fils de mots, allitérations, assonances, dissonances, écriture
d’avant ou d’après littérature, concrète, comme on dit en musique. Ou encore, autofriction patiemment
onaniste, que espère faire maintenant partager son plaisir” (Doubrovsky, 1977, capa).

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Autobiografia e autoficção: instrumentos teórico-metodológicos para o estudo das narrativas do eu

Lembro-me que, ao ler seu estudo na revista Poétique, marquei aquele


trecho... Estava então em plena redação e aquilo me dizia respeito, me atingiu
em cheio. Mesmo agora, ainda não estou certo do estatuto teórico de meu
empreendimento, não me cabe decidir, mas fiquei com muita vontade de
preencher aquela “casa” que sua análise deixara vazia, e foi um verdadeiro
desejo que subitamente ligou seu texto crítico e o que eu estava escrevendo
senão às cegas, pelo menos na penumbra [Carta a Philippe Lejeune,
novembro de 1977] (Lejeune, 2014, p. 22-23, grifos meus).

Na passagem acima, o “trecho” e a “casa vazia” a que se refere Doubrovsky


dizem respeito ao quadro delineado por Lejeune no ensaio “O pacto autobiográfico”, de
1975, reproduzido na seção anterior (cf. Quadro 1). Conforme o quadro em questão,
seria inconcebível, por definição, um “romance” cujo protagonista tivesse o mesmo
nome que o autor empírico. É, justamente, nessa lacuna que o autor de Fils finca a
provocativa bandeira da autoficção, como o próprio Lejeune reconheceria mais tarde,
em afirmações como esta: “Foi à frente de um dos meus quadros que Serge Doubrovsky
teve a ideia, para encher uma casa que eu dizia (imprudentemente) que estava vazia, de
inventar a mistura que ele nomeou ‘autoficção’” (Lejeune, 2013, p. 539).
O gesto de Doubrovsky impactou tão significativamente o pensamento de
Lejeune que, cerca de dez anos depois, em “O pacto autobiográfico (bis)” – ensaio de
1986 em que este autor elabora uma autocrítica de seu primeiro “O pacto...”, de 1975 –,
o teórico dedica uma seção inteira à fatídica “casa vazia”; e comenta que a provocação
de Doubrovsky o teria estimulado a novas reflexões:

Resolvi também retomar sob novas bases o problema que tentei levantar
construindo um quadro de dupla entrada, na página 28 de “O pacto
autobiográfico” [cf. Quadro 1 deste trabalho]. [...]
Esse quadro teve a sorte de cair nas mãos e inspirar um romancista (que
também é professor universitário), Serge Doubrovsky, que decidiu preencher
uma das casas vazias, combinando o pacto romanesco e o emprego do
próprio nome. Seu romance Fils (1977) se apresenta como uma “autoficção”
que, por sua vez, me inspirou. [...] Desse modo, pude observar um fenômeno
mais amplo: nos últimos 10 anos, da “mentira verdadeira” à “autoficção”, o
romance autobiográfico literário aproximou-se da autobiografia a ponto de
tornar mais indecisa do que nunca a fronteira entre esses dois campos. Essa
indecisão é estimulante para a reflexão teórica: em que condições o nome
próprio do autor pode ser percebido por um leitor como “fictício” ou
ambíguo? Como se articulam, nesses textos, o uso referencial da linguagem,
no qual as categorias de verdade (que se opõe a mentira) e realidade (que se
opõe a ficção) permanecem pertinentes, e a prática da escrita literária, na
qual essas categorias se esvanecem? (Lejeune, 2008, p. 58-59, grifo meu).

Na passagem citada, apesar de Lejeune afirmar que o neologismo-conceito de


Doubrovsky o teria estimulado a refletir sobre a tendência de diluição das fronteiras

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Juliana Gama de Brito Assumpção

entre o campo romanesco e o autobiográfico na literatura recente (escrevia nos anos


1980), nota-se que o autor de “O pacto...” continua a focar no “leitor” implícito e
empírico ao abordar o problema dos gêneros “autobiografia” e “romance”. Ou seja,
mesmo para o Lejeune “autocrítico” de “O pacto...(bis)”, o fator decisivo para
classificação de uma obra como autobiografia ou romance, no pensamento do autor,
ainda advém do “contrato de leitura” codificado em um texto a partir da relação entre
categorias antagônicas, como “verdade/mentira” e “realidade/ficção”, cuja “mistura”
resultaria no pacto ambíguo que Doubrovsky batizara de “autoficção”.
Como demonstra Anna Faedrich (2015; 2016), em dois estudos recentes sobre a
autoficção na literatura contemporânea, de fato, a ambiguidade do contrato de leitura,
assim como os próprios conceitos de “pacto autobiográfico” e de “pacto romanesco”, de
Philippe Lejeune, são alguns dos alicerces da autoficção desde o surgimento do termo,
na quarta capa de Fils. Afinal, é justamente a partir da desestabilização dos limites entre
esses dois “pactos” que a autoficção se constrói como “um jogo de ambiguidade
referencial (é ou não é o autor?) e de fatos (é verdade ou não? Aconteceu mesmo ou foi
inventado?) estabelecido intencionalmente pelo autor” (Faedrich, 2015, p. 49).
Nesse “jogo”, a homonímia entre autor, narrador e protagonista também costuma
se posicionar como um recurso potencializador da autoficção, embora a
correspondência dos “nomes” não seja uma exigência do gênero, desde que haja uma
identidade entre autor e personagem inscrita em uma zona de ambiguidade referencial.
Contudo, a pesquisadora adverte que, para o entendimento do conceito, “afirmar que
autoficção é o exercício literário em que o autor se transforma em personagem do seu
romance, misturando realidade e ficção, é apenas um passo; condição necessária, mas
não suficiente” (Faedrich, 2015, p. 49).
Ao mesmo tempo, elencar as especificidades da autoficção como um gênero
literário autônomo em relação às outras modalidades de “escritas do eu” não é uma
tarefa simples no meio acadêmico e na cena literária atual. Do fim dos anos 1970 para
cá, como a própria Anna Faedrich pontua,

O conceito de autoficção tem sido marcado por indefinições, confusões e


contradições que acabaram por cristalizar um argumento que sustenta a
impossibilidade de defini-lo de forma mais nítido. Um dos efeitos dessa
confusão conceitual tem sido um misto de vulgarização e uso inadequado do
termo, que passou a caracterizar toda sorte de obras pertencentes ao campo
das “escritas do eu” (Faedrich, 2015, p. 56).

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Autobiografia e autoficção: instrumentos teórico-metodológicos para o estudo das narrativas do eu

Na coletânea Ensaios sobre a autoficção, lançada em 2014 pela Editora UFMG,


a pesquisadora Jovita Maria Gerheim Noronha reúne uma série de textos da crítica
literária francesa que nos fornecem uma boa amostra da sinuosa trajetória teórica da
autoficção, desde o surgimento do termo até o começo do século XXI. Para citar apenas
algumas das curvas que marcam essa trajetória, conforme é retraçada por Jovita
Noronha na organização do volume, destacam-se na coletânea, junto a trabalhos mais
recentes dos próprios Serge Doubrovsky e Philippe Lejeune, as contribuições de
Vincent Colonna (2014) e sua “Tipologia da autoficção”, que sistematiza o conceito em
diversas subcategorias, denominadas “autoficção fantástica”, “biográfica”, “especular” e
“intrusiva”, a partir de um entendimento mais abrangente de autoficção como toda
composição literária na qual o autor projeta a própria existência em um texto que, de
algum modo, se aproxime do princípio da invenção ficcional; o ensaio de Lecarme
(2014, p. 68), que entende a autoficção como “uma narrativa cujo autor, narrador e
protagonista compartilham da mesma identidade nominal e cuja denominação genérica
indica que se trata de um romance”; e o artigo de Gasparini (2014), para quem

o termo autoficção deveria ser reservado aos textos que desenvolvem, em


pleno conhecimento de causa, a tendência natural a se ficcionalizar, própria à
narrativa em si. [...] De um ponto de vista pragmático, [as obras de
autoficção] são romances autobiográficos, baseados em um duplo contrato de
leitura. No entanto, a partir do momento em que são designados pelo
neologismo um pouco mágico de ‘autoficção’, eles se tornam outra coisa.
Não são mais textos isolados, esparsos, inclassificáveis, nos quais um escritor
dissimula com mais ou menos engenho suas confidências sob um verniz
romanesco, ou vice-versa. Inscrevem-se em um movimento literário e
cultural que reflete a sociedade de hoje e evolui com ela (Gasparini, 2014, p.
217).

Diante disso, nota-se que o atual panorama teórico da autoficção, de fato, não
forma um quadro homogêneo. Por essa razão, na apresentação da coletânea de
Ensaios..., a própria Jovita Noronha pontua que “tanto a fortuna crítica da autoficção
quanto sua apropriação pelos autores para designar suas obras deixam antes a impressão
de um debate vertiginoso, à maneira de Pirandello” (Noronha, 2014, p. 8). Assim, para
acessar esse “debate vertiginoso” de forma mais objetiva, retomo os já citados estudos
recentes em que a pesquisadora Anna Faedrich (2015; 2016) busca estabelecer diretrizes
mais nítidas para o entendimento da autoficção no campo da literatura contemporânea,
tendo em vista o desenvolvimento do conceito da década de 1970 até meados dos anos
2010.

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Juliana Gama de Brito Assumpção

ESPECIFICIDADES DA AUTOFICÇÃO SEGUNDO ANNA


FAEDRICH

Em “O conceito de autoficção: demarcações a partir da literatura brasileira


contemporânea”, Faedrich (2015) argumenta que, além do contrato de leitura ambíguo,
a autoficção se distingue de outras formas de “escritas do eu”, e da autobiografia em
particular, por constituir-se necessariamente de uma “linguagem literária”, que chama
atenção para si própria, por meio de recursos como, por exemplo, a polissemia, a
metalinguagem ou a intertextualidade, entre outros (Faedrich, 2015, p. 57). Desse modo,
a autoficção não poderia ser escrita com a finalidade de simplesmente contar uma
história baseada na “vida real” do autor, mas deveria resultar de um projeto estético de
ficcionalização dessa vida pelo “fazer literário”, bem como de recriação da
subjetividade autoral na (e através da) literatura (Faedrich, 2015, p. 54-55).
Nesse prisma, ainda com Faedrich (2015), o arranjo estético da linguagem deve
se sobressair à história da vida ou da personalidade do autor na obra autoficcional.
Assim, outro fator decisivo da especificidade da autoficção seria o processo de
construção e de divulgação da obra: na autoficção, esse processo deve partir do texto
para a vida do autor; e não do autor para o texto, como costuma ocorrer, por exemplo,
em autobiografias romanceadas de pessoas famosas, ou em “livros cujo enredo trata de
aspectos íntimos e/ou polêmicos da vida do autor ou de seu círculo de convivência”
(Faedrich, 2015, p. 51).
Para a pesquisadora, ainda que esses livros possam ser abordados como
“romances”, tais exemplos não pertencem ao campo da autoficção, mas sim da
autobiografia, pois, neles, o que desperta o interesse do público é a figura do autor, e
não o texto literário:

O movimento da autobiografia é da vida para o texto, e da autoficção, do


texto para a vida. Isso quer dizer que, na autobiografia, o narrador-
protagonista é, geralmente, alguém famoso, “digno de uma autobiografia”.
Justamente por ser uma celebridade desperta interesse e curiosidade do
público-leitor. Na autoficção, um autor pode chamar atenção para a sua
biografia por meio do texto ficcional, mas é sempre o texto literário que está
em primeiro plano. Os biografemas estão ali funcionando como estratégia
literária de ficcionalização de si (Faedrich, 2015, p. 47-48).

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Autobiografia e autoficção: instrumentos teórico-metodológicos para o estudo das narrativas do eu

Já em “Autoficção: um percurso teórico”, Faedrich (2016) retoma os argumentos


de seu estudo anterior e sublinha a necessidade de se considerar os múltiplos fatores que
incidem sobre a escrita autoficcional, como:

uma prática literária contemporânea de ficcionalização de si, em que o


autor estabelece um pacto ambíguo com o leitor, ao eliminar a linha
divisória entre fato/ficção, verdade/mentira, real/imaginário, vida/obra, etc.; o
tempo presente da narrativa e o modo composicional da autoficção, que é
caracterizado pela fragmentação, uma vez que o autor não pretende dar
conta da história linear e total de sua vida; o movimento da autoficção, que é
da obra de arte para a vida [...], potencializando o texto enquanto linguagem
criadora; identidade onomástica entre autor, narrador e protagonista, que
pode ser explícita ou implícita, desde que exista o jogo da contradição, criado
intencionalmente pelo autor no próprio livro. E, por fim, a palavra-chave que
marca a autoficção como um gênero híbrido: a indecidibilidade (Faedrich,
2016, p. 44-45).

Se somarmos os pontos que destaquei anteriormente, aos termos grifados pela


própria autora na passagem acima, podemos concluir que a delimitação do conceito de
autoficção proposta por Anna Faedrich (2015; 2016) se embasa, em síntese, em três
aspectos fundamentais. O primeiro diz respeito ao hibridismo e a “indecidibilidade”
gerados pelo pacto ambíguo que se estabelece na autoficção entre a obra e o leitor, por
meio da diluição das fronteiras entre “realidade” e “ficção”, “vida” e “obra”. O segundo
consiste no princípio da identidade, implícita ou explicita, entre autor, narrador e
protagonista, criada na arena da “contradição” autoficcional. Finalmente, o terceiro
aspecto concerne ao modo de escrita da narrativa, que, na autoficção, deve constituir
uma prática literária contemporânea, conduzida por um projeto estético de
ficcionalização da vida do autor nos interstícios de um texto deliberadamente literário,
cuja linguagem se sobressaia ao enredo durante a leitura.
Com isso, temos em mãos um desenho menos difuso do conceito de autoficção
nos estudos literários contemporâneos. No entanto, acredito que a “indecidibilidade”
inerente a esse “gênero híbrido” certamente manterá vivo por muito mais tempo o
dilema de sua teorização. Afinal, como o próprio Doubrovsky comenta em “O último
eu”, conferência proferida mais de trinta anos depois da criação da palavra e do livro
dos quais se desenvolveria o conceito aqui discutido,

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Juliana Gama de Brito Assumpção

A própria imprecisão da palavra é útil, pois possibilita que certos escritores,


como Catherine Cusset, Philippe Vilain ou Camille Laurens [...] entendam a
dita autoficção em sentidos bem diferentes daquele que lhe atribuo. A palheta
da autoficção é variada e é isso que constitui sua riqueza. (Doubrovsky, 2014,
p. 113)

À GUISA DE CONCLUSÃO

Ao longo deste artigo, explorei os conceitos de autobiografia e autoficção no


campo dos estudos literários contemporâneos, com foco nas teorizações pioneiras de
Philippe Lejeune e de Serge Doubrovsky a partir da década de 1970, bem como em
pesquisas recentes da pesquisadora Anna Faedrich sobre as especificidades da
autoficção entre as “escritas do eu” predominantes no século XXI. Sem a intenção de
reduzir a potência crítica e reflexiva dos conceitos investigados, busquei rastrear alguns
pontos centrais do pensamento de cada autor estudado.
No estudo das teorias de Philippe Lejeune sobre a autobiografia, salientei a
centralidade do leitor, ou da recepção literária, nos “pactos” de leitura sistematizados
por este autor, chegando a um entendimento da autobiografia como um gênero literário
fundamentalmente contratual. Na sequência, a breve contextualização do “debate
vertiginoso” que circunda o conceito de “autoficção”, desde o surgimento do termo,
demonstrou que o neologismo cunhado por Serge Doubrovsky – justamente, nas frestas
da sistematização de Lejeune – abriu estradas fecundas para a reflexão mais abrangente
acerca da progressiva diluição dos limites entre “vida” e “obra” nas “narrativas do eu”.
Nessa linha, a leitura dos artigos de Anna Faedrich forneceu uma perspectiva
fundamental para a compreensão mais objetiva da autoficção em relação às demais
modalidades de “escritas do eu” na literatura contemporânea, com o destaque de três
aspectos decisivos em obras autoficcionais: a ambiguidade do pacto, ou do contrado de
leitura que se estabelece entre a obra e o leitor, conferindo um caráter híbrido e
“indecidível” à narrativa, inscrita na zona de contradições entre as esferas da criação
ficcional e da recriação da vivência e da subjetividade de quem a escreveu; o princípio
da identidade implícita ou explícita entre autor, narrador e protagonista, situada num
“jogo de ambiguidades referenciais”; e um modo de escrita guiado por um projeto
estético de ficcionalização da vida do autor, com ênfase no tratamento literário da
linguagem.

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Autobiografia e autoficção: instrumentos teórico-metodológicos para o estudo das narrativas do eu

A meu ver, a identificação desses aspectos fornece uma via de acesso profícua
ao entendimento menos vertiginoso das obras literárias autoficcionais no vasto
panorama das “narrativas do eu” contemporâneas, mas não é suficiente para a fixação
de uma definição enrijecida à autoficção, termo que tende a desestabilizar fronteiras, na
teoria e na prática, desde o seu surgimento. Do mesmo modo, os caminhos teóricos
percorridos neste artigo não encerram as discussões sobre a permeabilidade crescente
entre os escritos autobiográficos e autoficcionais. Em vez disso, este estudo demonstra
que o embate teórico entre o autobiográfico e o autoficcional, longe de terminar,
constitui um terreno fértil para novas explorações na literatura e na crítica literária
atuais.

REFERÊNCIAS

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Jovita Maria Gerheim Noronha e Maria Inês Coimbra Guedes. Belo Horizonte: Ed.
UFMG, 2014.

Recebido em: 15/11/2023


Aceito em: 10/01/2024

Juliana Gama de Brito Assumpção: Mestra e doutoranda em Estudos de Literatura -


Literatura brasileira pelo Programa de Pós-graduação em Letras da UERJ. Foi bolsista
FAPERJ - Mestrado Nota 10 e, atualmente, é bolsista CAPES no doutorado. Possui
graduação em Letras - Português/Literaturas, também pela UERJ (2017), e formação
complementar em Artes Visuais pela EAV-Parque Lage (2014), instituição na qual foi
bolsista do Programa de Fundamentação em Artes Visuais.

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