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O Ataque Ao Corpo Na Body Art

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O Ataque ao Corpo na Body Art

Autora: Priscilla Ramos da Silva, Mestranda em Artes do Instituto de Artes da


UNICAMP. Bolsista da FAPESP, desenvolve a pesquisa “O corpo na arte
contemporânea brasileira: Panorama de 97 e Bienal de 98”, sob orientação da Profa.
Dra. Maria de Fátima Morethy Couto.

Resumo: O artigo discute o ataque ao corpo na body art por meio da análise de obras de
artistas como Chris Burden, Marina Abramovic, Gina Pane e o grupo Acionismo
Vienense. As origens da body art, bem como as possíveis razões de sua face mais
radical - a investida violenta contra o corpo - são debatidas a partir do exame de
comentários críticos de artistas e teóricos da arte do corpo. Em seu final, o artigo
procura discutir - através de uma análise da produção da artista francesa Orlan - o que
permanece da body art dos anos 1960-70 na arte corporal dos anos 1990.
Palavras-chave: body art; corpo; violência; crítica de arte.

Abstract: The article discusses the attack on the body in body art through the analysis
of works by artists such as Chris Burden, Marina Abramovic, Gina Pane and the
Viennese Actionists. The origins of body art, as well as the possible reasons for its most
radical facet - the violent onslaught on the body - are debated from the examination of
some critical commentaries of artists and theorists of the art of the body. In its end, the
article seeks to discuss - through an analysis of the production of the French artist Orlan
- what remains of body art of the1960s-70s in the corporal art of the1990s.
Keywords: body art, body; violence; art criticism.

Nas décadas de 1960 e 70, a arte alarga tanto suas fronteiras e muda tão completamente
suas regras que permite o desenvolvimento de uma relação totalmente nova entre o
artista e o corpo: surge a body art, decretando o corpo o suporte da obra de arte. Antes
apenas objeto de representação, o corpo, então convertido em material de trabalho, é
submetido a experimentações as mais diversas: alguns artistas se despem, outros se
lambuzam de tinta, outros se deixam manipular de maneira irrestrita pelo público.
Outros ainda, elevando ao máximo a radicalidade que para muitos é um sinônimo de
body art, comem vidro, se cortam, bebem sangue, e até levam tiros no museu.
Certamente, proposições extremas como estas não poderiam ter sido recebidas com
indiferença na época em que foram realizadas. Ainda hoje, a body art impressiona pela
intensidade de suas experiências, e a audácia - ou insanidade - de seus artistas.
Suscitando um misto de atração e repulsa, e operando na contramão do ideal clássico de
arte, a body art convida à reflexão. Estariam seus artistas ousando ao explorar novos
territórios ou simplesmente executando ações grotescas, desprovidas de valor artístico?
Em 1974, François Pluchart escreve:

O que ela é: o corpo é o terreno fundamental. Prazer, sofrimento, doença e morte se


inscrevem nela (...). O que ela não é: a Body Art não é o esgoto dos grandes abortos
pictóricos do século XX. Não é uma nova receita artística destinada a ser registrada
tranqüilamente em uma história da arte falida. Ela é exclusiva, arrogante e
intransigente. Não tem relação nenhuma com qualquer suposta forma artística a menos
que esta tenha primeiro se declarado sociológica e crítica. Ela perturba, rejeita e nega
os velhos valores estéticos e morais assumidamente pertencentes à prática artística.
i

A argumentação incisiva de Pluchart em favor da body art – de que ela não seria
nenhuma espécie de dejeto ou receita artística – revela a preocupação, compartilhada
por diversos teóricos da época, em fundamentar a arte do corpo para que ela não fosse
interpretada como mero repositório de experimentações esdrúxulas. A despeito do
esforço da crítica, no entanto, a body art – como revela o próprio Pluchart – era, não
com pouca freqüência, incompreendida, e suscitava sempre a questão de como
determinadas ações haviam sido elevadas ao status de arte. Em Art in the Dark, artigo
escrito em 1983, o crítico Thomas McEvilley comenta:

Quando Piero Manzoni, em 1959, enlatou sua merda e a colocou à venda, em uma
galeria de arte, por seu peso em ouro; quando Chris Burden fez com que ele mesmo
levasse um tiro no braço e fosse crucificado ao teto de um Volkswagen (em 1971 e 1974,
respectivamente); quando dois artistas de performance americanos, em ocasiões
diferentes, fizeram sexo com cadáveres femininos – como atividades desse tipo vieram a
ser chamadas de arte? ii

O autor coloca a questão primeira a ser esclarecida quando se trata da body art: que
circunstâncias fizeram com que eclodissem, especialmente na cena artística euro-
americana dos anos 60 e 70, tantas e tão diversas obras em que o corpo torna-se o
suporte da arte?
Procurando traçar as origens da body art na arte do século XX, diversos autores
localizam as obras de Marcel Duchamp e Jackson Pollock como duas significativas
fontes para o desenvolvimento da arte corporal.

Muito antes do surgimento da body art, como lembra Cindy Nemser,iii Duchamp já
havia explorado seu corpo como suporte da arte Em 1919, Man Ray fotografa uma
pequena intervenção a que o artista se submete: ele raspa seu cabelo de modo a formar,
na parte posterior de seu couro cabeludo, uma estrela cadente. Dois anos mais tarde,
também posando para Man Ray, Duchamp se traveste em Rrose Sélavy, seu alter-ego
feminino. Experimentando temporariamente o sexo oposto, o artista inventa uma
espécie de performance fotográfica que será retomada em diversas ocasiões por artistas
da body art. Porém, como muitos apontam, a importância maior do artista para o
desenvolvimento não apenas da body art quanto da arte conceitual reside
fundamentalmente na invenção da apropriação. O procedimento apropriativo (gesto que
atribui valor artístico a um objeto por seu simples deslocamento para o campo da arte)
decreta, irremediavelmente, a possibilidade de transformação de qualquer coisa em arte.

McEvilleyiv fala de como a apropriação (inaugurada na década de 1910 com os


readymades de Duchamp) é decisiva para o surgimento da body art: universalizada ao
longo do tempo, ela acaba por autorizar inclusive a conversão do corpo em obra de arte.
Entre o final dos anos 1950 e o início dos anos 1960, como lembra o autor, diversos
artistas embarcam numa espécie de “jogo da apropriação” do corpo humano: Piero
Manzoni assina pessoas ou emite certificados de autenticidade que garantem a seus
portadores status de obras de arte ambulantes; Ben Vautier e Gilbert & George se
apresentam como esculturas vivas; Yves Klein (que já se referia a suas modelos como
“pincéis vivos”) declara que a missão do artista é “realizar uma única obra-prima: ele
próprio, constantemente”.

Certamente, a crença de que a arte reside no artista em pessoa (e não necessariamente


em algum objeto produzido por ele) contribui para o aparecimento de uma arte corporal.
Para vários autores, a idéia do “artista enquanto obra” (e, portanto, do corpo ou da ação
do artista enquanto obra) – é algo que já se insinua na obra de Jackson Pollock, artista
tido como um antecedente importante para a arte do corpo. Porém, de que maneira
Pollock, um pintor, veio a influenciar a body art – uma manifestação a princípio tão
marcadamente diferente do expressionismo abstrato? Ao certo, sua contribuição
relaciona-se não à qualidade de suas telas, mas ao caráter essencialmente cênico de sua
pintura. A action painting. do artista – Pollock dispensava o pincel e fazia com que
respingos jorrassem sobre a superfície da tela – constituía, em si mesmo, uma espécie
de arte corporal. A técnica exigia que a tela fosse colocada sobre o chão, e que o pintor
se movimentasse vigorosamente sobre ela. O gesto pictórico, antes restrito à mão, agora
se estendia ao corpo inteiro. A tela então, converte-se em palco, e o artista, em ator.
Pollock trabalhava sobre grandes superfícies e, ao final do processo, retirava-se,
deixando impressos os resíduos de suas atividades. Demonstrando uma forte presença
do corpo físico, as imagens do artista no ato de pintar tornaram-se tão ou mais célebres
que suas pinturas. A performance – uma arte do gesto – já se esboçava aqui.

Em 1958, dois anos após a morte de Pollock, Allan Kaprow escreve um texto influente
em que avalia o legado do artistav. Nele, o criador do happening afirma que Pollock fora
responsável por nada menos que a destruição da pintura, tendo instaurado em seu lugar
uma arte gestual, ritual, cujo impacto só poderia ser avaliado se nela fossem levados em
conta “as mãos e o corpo que lançavam a tinta e entravam na tela”. Para Kaprow,
Pollock havia deixado os artistas em um ponto em que eles deveriam se preocupar, daí
em diante, com elementos como o espaço, o movimento, a vida cotidiana e o corpo.
Tratando dessa arte que, em sua opinião, deveria florescer nos anos 1960, Kaprow
termina seu texto com uma previsão: que “pessoas se deliciarão ou se horrorizarão,
críticos se confundirão ou se surpreenderão, mas estas, estou certo, serão as alquimias
dos anos 1960”.

De fato, Kaprow acerta ao prever que os anos vindouros estariam repletos de propostas
empenhadas em deliciar, horrorizar, surpreender e confundir tanto público quanto
crítica. Na body art, como já apontamos no início deste texto – uma arte em que “prazer,
sofrimento, doença e morte se inscrevem”, para retomar as palavras de François
Pluchart - a questão para alguns artistas era de fato horrorizar o espectador, objetivo
muitas vezes atingido através de trabalhos nada gentis em que o corpo era submetido a
provações físicas (e por vezes morais) as mais variadas.

Em 1974, numa galeria na Itália, Marina Abramovic realiza um trabalho chamado


Rhythm 0. Nele, ela se coloca ao lado de uma mesa com diversos “objetos de
provocação”: uma arma, uma bala, uma serra, um garfo, uma escova, um chicote, um
batom, um vidro de perfume, tinta, facas, fósforos, uma pena, uma rosa, uma vela, água,
correntes, pregos, agulhas, tesouras, mel, uvas, gesso, enxofre e azeite, entre outros
objetos e materiais. Um texto escrito na parede dizia: “Há 72 objetos na mesa que
podem ser usados em mim como desejados. Eu sou o objeto”. Respondendo ao convite
da artista, espectadores a movimentam, a pintam, a coroam com espinhos, a cortam e
arrancam suas roupas com lâminas de barbear. Seis horas após o início da performance,
uma arma carregada é apontada para a sua cabeça: neste ponto, espectadores
preocupados com a artista põem um fim no evento.

No ano seguinte, Abramovic realiza Thomas Lips, proposta que, dando continuidade a
sua linhagem de performances auto-sacrificiais, teria também um desfecho semelhante,
com o público interrompendo a ação. Assim a artista descreve o trabalho:

Eu lentamente como um quilo de mel com uma colher de prata. Eu lentamente bebo um
litro de vinho tinto de um copo de cristal. Eu quebro um copo com a minha mão
esquerda. Eu corto uma estrela de cinco pontas na minha barriga com uma lâmina de
barbear. Eu violentamente me chicoteio até não mais sentir dor. Eu me deito numa cruz
feita de blocos de gelo. O calor de um aquecedor suspenso apontado para a minha
barriga faz com que a estrela sangre. O resto do meu corpo começa a congelar. Eu
permaneço na cruz de gelo por 30 minutos até que o público interrompa a peça
removendo os blocos de gelo debaixo de mim. vi

O teste dos limites do corpo e a exposição pessoal ao risco – compreendendo atos de


auto-flagelação, exposição ao calor e ao frio excessivos, ingestão compulsiva de
alimentos, etc. – eram centrais a uma série de body artists, dentre os quais a artista
italiana Gina Pane. O objetivo de Pane era provocar, através de seus atos, um profundo
estado de desconforto no espectador. Para isto, a artista introduzia, em ações
aparentemente familiares, um elemento de terror. Pelo início dos anos 70, Pane havia
engolido carne moída estragada enquanto assistia à TV; se cortado com lâminas de
barbear; feito gargarejos com leite até que sua garganta sangrasse; andado sobre o fogo;
mastigado vidro; quebrado uma placa de vidro com seu corpo e subido uma escada
cravejada de pontas cortantes.

Um dos grupos mais polêmicos da body art, o Acionismo Vienense - formado por Otto
Mühl, Rudolf Schwarzkogler, Hermann Nitsch e Günter Brus - também explorou o
corpo de maneira extrema. As ações do grupo incluíam, além da auto-mutilação, a
realização de situações tabus em público tais como defecar, ingerir fezes e urina, ou
vomitar. Perseguidos e eventualmente detidos pela polícia, os integrantes do Wiener
Aktionismus causavam enorme escândalo em suas apresentações. A obra mais
controversa do grupo foi, certamente, a Aktion 3 – performance de Rudolf
Schwarzkogler cujo registro fotográfico foi exposto na Documenta de Kassel, em 1972.
A fotografia da ação, tida como documento incontestável da performance ocorrida em
1969, deu origem ao maior mito da body art: o da suposta castração do vienense,
realizada enquanto ato artístico. A lenda em torno do artista - que teria tanto se castrado
quanto cometido suicídio em nome da arte - é, no entanto, completamente falsa. Nem o
artista se suicidara por “razões artísticas”, nem a auto-mutilação existira, nem o modelo
da foto havia sido Schwarzkogler: o artista simplesmente montara uma cena (um jovem
seminu – o modelo Heinz Cibulka - com uma bandagem cobrindo um fictício ferimento
entre as pernas) e a fotografou. Observadores da foto exposta na Documenta de 1972,
crendo estar diante do registro “verdadeiro” de uma castração “realmente ocorrida”, se
encarregaram de propagar a históriavii.

Diferentemente de trabalhos como os de Abramovic, Gina Pane e Chris Burden (em que
o corpo era submetido a situações reais de perigo), a maioria das ações dos Acionistas
Vienenses tinha muito mais de mise-en-scène do que de violência física. Havia, ao certo,
performances em que a auto-agressão era utilizada; entretanto, “ferimentos” e
“derramamentos” de sangue simulados eram bem mais freqüentes. Exemplos da
preferência dos Acionistas pela encenação da violência e da dor são abundantes: além
do trabalho já citado de Rudolf Schwarzkogler, poderíamos lembrar de Self-painting,
Self-mutilation (1965) de Günter Brus, e First Action (1962), de Hermann Nitsch. No
trabalho de 1965 – a primeira ação pública de Brus – o artista sai às ruas de Viena,
vestido e pintado de branco dos pés à cabeça, tendo uma faixa de tinta preta
atravessando longitudinalmente o seu rosto. A listra escura - pintada de modo a simular
um grande corte – realmente dava a impressão de que o artista tinha se mutilado.
Durante a ação, Brus é detido quase imediatamente pela polícia, que considera sua
figura potencialmente perturbadora para o público. Já na primeira ação de Hermann
Nitsch, realizada no ateliê de Otto Mühl, o artista é amarrado à parede, como que
crucificado. Mühl então derrama e espalha sangue animal sobre Nitsch, que,
ensangüentado, lembra a figura de Cristo padecendo na cruz. Em todas as suas ações
subseqüentes, apresentadas diante de e com a participação de um público, Nitsch
procura reviver ou recriar antigos ritos dionisíacos e cristãos. Na série de performances
nomeadas de “Teatro de Orgias e Mistérios”, ele utiliza abundantemente carcaças de
animais e sangue. Para o artista, o contato do corpo com esses materiais atuaria como
um meio de liberação da energia reprimida e de purificação.

Ainda que por vezes Mühl, Brus, Schwarzkogler e Nitsch apenas encenassem atos de
violência contra o corpo, isso não impede de qualificarmos suas performances - ao lado
de algumas propostas de Marina Abramovic, Chris Burden e Gina Pane - como
exemplos do que houve de mais agressivo na body art. A agressividade na obra dos
Acionistas, veremos adiante, constituía muito mais um tipo radical de degradação
moral do que física. Isto, precisamente, faz de suas ações algumas das mais bem
sucedidas no objetivo de impor o horror ao espectador.

Voltando agora especificamente ao tema da auto-mutilação, há que se perguntar,


naturalmente, a que se poderia creditar tamanho ataque ao corpo nos anos 60-70. Por
que razão artistas como Abramovic, Burden, Brus e Pane (apenas para citar alguns
exemplos) se dispuseram a mortificar de modo tão impiedoso seus próprios corpos em
suas performances? Contrapondo-se àquela que é provavelmente a resposta mais fácil a
esta questão – “eles o fizeram por masoquismo”, o teórico e artista Peter Weibel
escreve:

Se um artista se golpeia, isso não significa que um público sádico está assistindo a um
artista masoquista. O problema deve ser visto em outro nível, um no qual ambos estão
expostos ao golpe. Porque o artista exposto pode ser um substituto para o público ou até
mesmo para toda a humanidade. A exposição pessoal ao perigo em um contexto artístico
possui uma qualidade semiótica/simbólica no fluxo do processo artístico, que vai além
do sado-masoquismo.(...) O artista se expõe ao perigo (...) para aumentar a provocação
da arte, para liberar a consciência das pessoas. viii

Ferir para libertar – eis, segundo alguns comentadores da body art, um dos intuitos
principais do ataque à pele e à carne na arte do período. Para François Pluchart, a arte
do corpo emergia como resposta à ânsia pela construção de um novo homem e uma
nova sociedade; uma sociedade, em suas palavras, “enfim livre e harmoniosa, livre de
falsa ética, ditadores de qualquer tipo, ideologias repressivas e censores” ix. Em sua
opinião, o corpo poderia e deveria ser utilizado como uma arma. Se os artistas
submetiam seus corpos à violência e ao risco, eles o faziam de modo a “denunciar
determinismos, tabus, obstáculos à liberdade e à expressão do indivíduo”x. Em um texto
de 1966, Dick Higgins também falava da necessidade de uma arte socialmente
engajada:

Tendo descoberto armas de impacto imediato, para que vamos usá-las? Se assumirmos
(...) que há forças perigosas em funcionamento em nosso mundo, não seria apropriado
aliarmo-nos contra elas, e utilizar aquilo com que nós realmente nos importamos,
amamos ou odiamos como o novo tema de nosso trabalho? (...) Simplesmente falar sobre
o Vietnã ou a crise em nossos movimentos trabalhistas não é nenhuma garantia contra a
esterilidade. (...) Há muito a ser feito por nós, talvez mais do que nunca. Mas precisamos
dar agora os primeiros passos.xi

Na arte dos anos 1960-70, a lista de “forças perigosas” a serem combatidas era ampla.
Protestava-se contra os mais diversos assuntos: guerras, tortura, violência, repressão,
censura, alienação, puritanismo, materialismo, capitalismo, machismo, e o que mais
fosse necessário denunciar e modificar.

Na utópica body art, a intervenção sobre o corpo colocava-se - ao menos na visão de


certos artistas e teóricos - como uma maneira eficaz de empreender a crítica aos “males”
da sociedade. A investida violenta contra o corpo, bem como a transgressão de normas
sociais e a quebra de tabus, visavam chocar o espectador, retirando-o de um estado de
indiferença e passividade. A questão era despertar a consciência do indivíduo, tanto
frente à arte, quanto à vida; neste processo, o artista assumia muitas vezes a posição de
guia ou messias, cuja atuação traria a salvação do homem. Um texto de Hermann
Nitsch, escrito em 1962, exemplifica literalmente este modo de pensar:

Através da minha produção artística (forma de uma devoção viva) eu tomo o


aparentemente negativo, o intragável, o perverso, o obsceno, a luxúria e a histeria (...)
para salvar VOCÊ o poluído (...). Eu sou expressão da criação total. Eu me dissolvi nela
e me identifiquei com ela. Toda a agonia e a luxúria, misturadas a um estado de
intoxicação único, irão penetrar em mim e conseqüentemente em VOCÊ. xii

A profissão de fé de Nitsch toca em uma idéia cara à body art: a idéia


romântica do artista enquanto redentor. O artista-mártir que se oferecia ao suplício
guardava, no entanto, pouco parentesco com o cristianismo: a salvação, conforme
advogada por Nitsch e outros, era obtida pela via da luxúria e não da castidade. É
interessante notar, na fala de Nitsch, como o artista atribuía quaisquer elementos
negativos ao espectador: se o artista empregava, em sua prática, o “intragável, o
perverso e o obsceno”, ele o fazia de modo a provocar uma mudança positiva no
participante da ação – este sim, o “poluído”, para quem uma espécie de conversão ou
iluminação religiosa era necessária.

Vale assinalar que, embora fossem por vezes extremamente hostis para com aqueles que
os assistiam, artistas como Nitsch não buscavam romper relações com o público. Antes,
estes performers necessitavam da receptividade de seus espectadores. Conforme aponta
Lea Vergine:

O público é necessário para completar o evento; ele deve estar envolvido numa
experiência coletiva que o leva a reconsiderar sua existência cotidiana e as regras de seu
comportamento habitual. (...) o relacionamento entre público e artista torna-se um
relacionamento de cumplicidade. O artista oferece sua mão ao espectador e o sucesso da
operação depende do quão o espectador está disposto a aceitá-la. (...) O artista precisa
sentir que os outros estão receptivos a ele, que eles estão dispostos a jogar o jogo de
aceitar suas provocações (...) É indispensável que o público coopere com o artista posto
que o que ele precisa é ser confirmado em sua identidade.xiii

A questão colocada por Vergine – de que o público deve estar disposto a aceitar as
provocações do artista para que elas tenham efeito – é muito apropriada. Se para os
defensores da “tática de choque” da body art o ataque ao corpo era considerado algo
essencialmente benéfico - pois capaz de levar o espectador a “reconsiderar sua
existência cotidiana e as regras de seu comportamento habitual” (Vergine); “liberar a
consciência das pessoas” (Weibel) e até “promover a salvação” (Nitsch), podemos nos
perguntar até que ponto o público estabelecia a cumplicidade necessária diante de
determinadas propostas.

A questão se coloca, principalmente, quando nos dispomos a analisar o que houve de


mais cruel e repulsivo na body art – e aqui, devemos nos remeter novamente aos
Acionistas Vienenses. Tomemos como exemplo Art and Revolution, possivelmente a
ação mais extrema de Günter Brus, realizada na Universidade de Viena, em 1968.
Convidado a participar de uma discussão política sobre a função da arte na sociedade
capitalista, Brus principiou sua performance despindo-se, em um auditório cheio de
estudantes. Em pé, sobre uma cadeira, o artista feriu seu peito e suas coxas com uma
lâmina. Em seguida, urinou num copo e bebeu dele. Logo depois, defecou e espalhou
fezes em seu corpo. Finalmente, Brus deitou-se no chão e pôs-se a masturbar-se, ao
mesmo tempo em que cantava o hino nacional austríaco. Preso imediatamente por
difamar um símbolo do Estado, Brus teve de se exilar em Berlim para escapar de uma
sentença de seis meses de detenção, sendo perdoado pelo governo de seu país apenas
dez anos após o ocorrido.

Certamente, uma obra extrema como esta – conjugando mutilação, onanismo,


escatologia e uma veemente crítica ao establishment – faz pensar em até que ponto a
“violência benéfica” defendida por certos body artists realmente libertava. Aqui, a
questão da recepção do público implora a ser respondida: seria possível afirmar que,
diante de uma ação indubitavelmente ofensiva como a de Brus, o espectador estaria
aberto a interpretá-la de forma positiva? Parece mais coerente supor que não. Admitindo
a dificuldade no estabelecimento de uma “relação de cumplicidade” entre artista e
espectador, McEvilley escreve:

Compreensivelmente, para espectadores habituados às fronteiras tradicionais da arte,


para espectadores para os quais a pintura era ainda a quintessência da atividade
artística, essas performances eram ofensivas e mesmo insultantes. Logicamente, a
questão de tais trabalhos quando eles apareceram pela primeira vez era em parte o fato
de eles parecerem ser radicalmente, até horripilantemente, fora de contextoxiv.

O autor afirma que, quando despontou na década de 1960, a body art chocou não apenas
por sua radicalidade, mas também por seu ineditismo. É interessante notar que, décadas
após as primeiras experiências violentas envolvendo o corpo – num tempo em que a
auto-mutilação ou a escatologia já não são mais elementos novos na arte – estes
trabalhos ainda não perderam sua capacidade de afetar o espectador. Não apenas as
ações de Marina Abramovic, Chris Burden, Gina Pane e os Acionistas Vienenses ainda
retêm seu poder de choque – permanecendo transgressivas, insultantes ou até mesmo
“horripilantes” para alguns - quanto o ataque ao corpo, quando recuperado na arte atual,
ainda mostra-se capaz de escandalizar.

Um exemplo de que a “arte do corpo mortificado”, tantas vezes exercitada nos anos
1960 e 70, permanece viva no presente – mantendo ainda intacta sua habilidade em
provocar o desconforto – encontra-se, sem dúvida, na produção da artista francesa
Orlan. A artista realiza, entre 1990 e 1995, um projeto chamado Reincarnação de Santa
Orlan: nele, ela seleciona alguns traços de figuras femininas retiradas de obras de arte
(o queixo da Vênus de Boticelli; a testa da Mona Lisa de Leonardo Da Vinci; a boca da
Europa de Gustave Moreau; o nariz de uma escultura de Diana da escola de
Fontainebleu e os olhos da Psiquê de François Pascal Simon Gérard) e tenta incorporá-
los a seu rosto, realizando uma série de cirurgias plásticas.

A artista se submete a oito operações no total, e transforma cada uma delas numa
performance. Omniprésence (1993), a sétima e mais conhecida destas performances
cirúrgicas, é transmitida em tempo real, de um centro cirúrgico em Nova York, para
galerias em diversos países ao redor do mundo. Tendo presenciado a transmissão da
operação na Galeria Sandra Gehring (NY), a jornalista e crítica de arte Carey Lovelace
escreve o seguinte relato:

Num domingo de manhã de novembro no outono passado, uma centena de artistas,


críticos e negociantes se reuniram no Soho na Galeria Sandra Gehring (...) para assistir
a uma pequena operação cirúrgica. (...) Orlan está se submetendo a uma série de
cirurgias plásticas apresentadas como performances: [trata-se d]a mudança completa de
rosto enquanto uma obra de arte. Estávamos prestes a ver a Operação Número Sete.

(...) Na Galeria Sandra Gehring, uma TV de 36 polegadas foi ligada para revelar a sala
de operação, localizada em algum outro lugar em Nova York. A imagem chegava até nos
ao vivo, via satélite.

Após algumas preparações, o momento cirúrgico havia chegado: Orlan, deitada, tem
uma longa agulha injetada por debaixo de seu couro cabeludo. (A câmera se aproxima).
Mas isto não é nenhum simulacro de operação, é a coisa real. Logo, a cirurgiã está
separando, metodicamente removendo carne da parte de baixo da linha do cabelo. A
galeria se esvazia de um terço de seu público. Após quarenta e cinco minutos, o monitor
é finalmente desligado – “isto é tudo por hora”, anuncia sorrindo Gehring, proprietária
da galeria, às poucas e bravas almas remanescentes.xv

O relato de Lovelace indica que, como as obras mais radicais da body art, a cirurgia de
Orlan fora algo bem difícil de tolerar. Vale assinalar que o público - reduzido a algumas
poucas pessoas no final da performance - não era aquele público conservador que, na
opinião de McEvilley, havia reagido negativamente à body art por desconhecê-la (ou
por considerar “a pintura ainda (...) a quintessência da atividade artística”): tratava-se de
um grupo de connaisseurs, os quais sabiam exatamente o que iriam encontrar. Isto
demonstra que o choque ou a aversão a determinadas obras – para além de relacionar-se
ao despreparo dos espectadores, como sugeriu McEvilley – deve-se também, ou
sobretudo, à natureza da própria obra: as imagens obscenas e cruentas do corpo
retalhado, que Orlan expõe, mostram-se capazes afetar tanto leigos quanto iniciados.
Há, de fato, como indicamos aqui, diversas aproximações entre Orlan e a arte corporal
dos anos 60 e 70. Como muitos body artists, Orlan faz de seu corpo um suporte para
intervenções extremas, tem a franca intenção de provocar o espectador, e também
procura conceituar seu trabalho como algo transgressivo. Por vezes, a artista parece
inclusive emular o discurso libertário característico dos anos 60 e 70: em um dos textos
que disponibiliza em seu site na internet, Orlan escreve xvi:

A arte que me interessa tem muito em comum com a resistência. Ela deve desafiar nossos
a prioris, desorganizar nossos pensamentos; ela está fora das nossas normas, fora da lei,
contra a ordem burguesa; não está lá para nos embalar, para reforçar nosso conforto
(...). Ela deve assumir riscos sob o risco de não ser imediatamente aceita ou aceitável.
Ela é transviada e em si mesma um projeto social.

A arte pode, a arte deve mudar o mundo, é sua única justificativa.

Certamente, o modo com que Orlan define sua arte – uma arte radical que, visando
transformar o mundo e a sociedade, expõe a carne dilacerada para desafiar e transgredir
– faz com que a artista pareça uma seguidora fiel das prescrições da arte do corpo dos
anos 1960 e 70. Porém, ela própria faz questão de afirmar que há muito mais distância
que aproximação entre sua arte carnal (assim é como Orlan a chama) e a body art:
“Contrária à “Body Art” que é uma questão completamente diferente, a Arte Carnal não
almeja à dor, não procura a dor enquanto uma fonte de purificação, não a concebe como
redenção. (...) A Arte Carnal não é nenhuma auto-mutilação”.

Em todas as operações a que se submete, Orlan atua sob o efeito de anestésicos.


Opondo-se a artistas como Gina Pane ou Marina Abramovic, para as quais o
enfrentamento heróico da dor era algo imprescindível, a artista brada a favor da
anestesia: “devemos ter epidurais, anestesias locais e múltiplos analgésicos! Viva a
morfina! Abaixo a dor!”. Para a artista, a dor não redime, transforma, nem purifica: há
que se recorrer ao arsenal medicamentoso disponível, portanto, para evitar qualquer
sofrimento desnecessário. Afirmando fazer do trabalho algo o “menos masoquista o
possível” para si, Orlan o torna, inversamente, o mais sádico o possível para com o
expectador. Admitindo a brutalidade das imagens de suas performances cirúrgicas, ela
ironicamente se desculpa: “Sinto ter que fazê-los sofrer, mas saibam que eu não sofro –
diferentemente de vocês – quando vejo essas imagens”.
Eis a diferença fundamental entre a conduta de Orlan e a de muitos body artists: a
artista não persegue a dor, muito menos se posiciona como mártir. Orlan não deseja
sofrer em benefício do espectador, ou ao lado dele. Ao se defrontar com as imagens
terríveis do corpo dilacerado, o espectador deve sofrer sozinho: a artista, que pouco ou
nada vê – e, sobretudo, nada sente no momento da operação - nada sofre.

A arte corporal dos anos 1960 e 70, podemos concluir, se sobrevive de algum modo no
presente por meio da produção de artistas como Orlan - mantendo questões como a
exposição do corpo mortificado e desejo de chocar o espectador - retorna com
características diferentes a partir dos anos 1990. Se, a partir desta década, um interesse
renovado pela questão do corpo desponta nas artes visuais, esta nova arte do corpo
surge para investigar novos problemas, diante de um contexto cultural completamente
diferente. Este, entretanto, seria o assunto de uma outra reflexão.
i
Notas

PLUCHART, François. Risk as the practice of thought (1978). In WARR, Tracey and JONES, Amelia, eds. The Artist’s
Body. London: Phaidon, 2000, p. 219 -221.
ii
McEVILLEY, Thomas. Art in the Dark (1983). In WARR and JONES, op.cit, p.222-227.
iii
NEMSER, Cindy. Subject-Object: Body Art (1971). In WARR and JONES, op.cit, p. 232-235.
iv
McEVILLEY, op.cit.
v
KAPROW, Allan. The legacy of Jackson Pollock (1958). In WARR and JONES, op.cit, p.194-195.
vi
ABRAMOVIC, Marina, apud TURIM, Maureen. Marina Abramovic’s Performance: Stresses on The Body and
Psyche in Installation Art. In Camera Obscura - 54 (Volume 18, Nº 3), 2003, p. 100-101.
vii
Ver BARNES, Philip Wincolmlee. The Mind Museum: Rudolf Schwarzkogler and the Vienna Actionists. Disponível
em: http://reconstruction.eserver.org/023/barnes.htm Acesso: 31 jan. 2007.
viii
WEIBEL, Peter. Artist’s statement (1978). In WARR and JONES, op.cit., p. 219.
ix
PLUCHART, op. cit.
x
Ibid.
xi
HIGGINS, Dick. Statement on intermedia (1966). In WARR and JONES, op.cit., p. 203.
xii
NITSCH, Hermann. The Blood Organ (1962). In WARR and JONES, op.cit.,p. 216-217.
xiii
VERGINE, Lea. Bodylanguage (1974). In WARR and JONES, op. cit., p 236-238.
xiv
McEVILLEY, op. cit.
xv
LOVELACE, Carey. Orlan: Offensive Acts. In Performing Arts Journal, Vol. 17, (Jan. 1995), p. 13-25.
xvi
Todas as citações de Orlan, que incluímos neste artigo, foram retiradas de textos não datados, disponíveis no site
oficial da artista. Disponível em: http://www.orlan.net. Acesso: 8 mar. 2007.

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