O Brasil corre o risco de desproteger 167 milhões de hectares de vegetação nativa. A área corresponde a 20% do território brasileiro ou três vezes o Estado da Bahia. A ameaça de se permitir um desmatamento dessa dimensão está contida em projeto de lei dos senadores Flávio Bolsonaro (PSL/RJ) e Márcio Bittar (MDB/AC). Com três artigos, o texto revoga a obrigatoriedade de se manter parte da vegetação nativa nas propriedades rurais, a chamada "reserva legal".
A análise numérica e os impactos do PL 2362/2019 foram feitos pelo engenheiro agrônomo Gerd Sparovek, professor titular da Universidade de São Paulo e coordenador do GeoLab, renomado laboratório de geoprocessamento da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq/USP). Sparovek usou em seu trabalho cerca de 25 referências de pesquisadores publicadas nas mais importantes revistas científicas do mundo.
A reserva legal é uma área de vegetação nativa que deve ser mantida por lei no imóvel rural. O conceito existe desde 1934, com o primeiro Código Florestal. Na edição atual do código, de 2012, ficou estabelecido que se deve manter, na Amazônia, 80% da área de florestas e, no cerrado, 35%. Nas demais regiões, o percentual é de 20%.
É isso que a proposta dos dois senadores quer eliminar e "garantir o direito constitucional de propriedade". A proposta se fundamenta na constatação de que o país "é um dos que mais preservam sua vegetação no mundo". Depois assume tom contundente: "Nenhuma outra nação pode dar receitas prontas de conservação".
O primeiro parágrafo do PL de Bolsonaro e Bittar termina com a mensagem que sugere uma conspiração internacional contra o Brasil: "Não há pertinência no clamor ecológico fabricado artificialmente por europeus, norte-americanos e canadenses e imposto ao país e a seus produtores rurais, chegando a determinar, segundo interesses políticos e comerciais estrangeiros, o rumo de nossa produção, desenvolvimento e legislação ambiental".
O Brasil tem 63% de suas terras cobertas por florestas. Há vários outros com mais cobertura vegetal em proporção ao território. O Brasil ocupa a 20ª posição segundo a IUCN e o MapBiomas, especializadas no tema. "A proteção de florestas no país é comparável a diversos países desenvolvidos e em desenvolvimento, e a ocupação de sua área agrícola segue a média mundial", diz Sparovek. "Em relação a estes dois aspectos, o Brasil não representa exceção."
A revisão do Código Florestal foi intensamente discutida em 2012. Na ocasião, segundo cálculos de pesquisadores citados por Sparovek, as exigências para a reserva legal foram reduzidas - seriam 203 milhões de hectares, mas se tornaram 167 milhões de hectares. "A redução de exigência de reserva legal visando assegurar a produção já foi feita", diz a análise.
O pesquisador lembra que o Código Florestal não restringe as reservas legais a áreas voltadas apenas à proteção. É possível recompor o que se perdeu de vegetação nativa com o plantio intercalado com exóticas e frutíferas. Ou seja, na recomposição das reservas legais permite-se a introdução de eucalipto ou pinus, a produção de borracha e frutas. Essas opções econômicas permitem a geração de renda em 50% das reservas legais a serem regularizadas.
A maior parte das áreas de vegetação que poderiam ser desmatadas com a proposta dos dois senadores é de baixa aptidão agrícola, segue ele. "São áreas onde o solo é ruim, o clima ou a topografia não são adequados e podem não interessar a quem produz com alta tecnologia", diz Sparovek.
O Código Florestal diz que a reserva legal deve ser mantida além das áreas de preservação permanente (APPs), que são as áreas verdes ao longo dos rios, no topo de morros e que protegem as nascentes. O PL dos dois senadores quer manter apenas as APPs.
A análise de Sparovek contrapõe a tese de que é preciso eliminar a obrigatoriedade da reserva legal para abrir espaço à produção agropecuária. "A forma tradicional como se expande a fronteira agropecuária no Brasil indica o oposto", diz. "Proprietários rurais, naturalmente, ocupam primeiro as melhores terras de uma região e também abrem nas fazendas as melhores áreas", diz. "Por que um produtor rural abriria sua fazenda nas piores terras e deixaria a vegetação natural nas áreas mais aptas para a agricultura?" questiona ele.
"O desmatamento nas reservas legais resultaria na perda do bem natural e dos serviços ecossistêmicos, sem possibilitar sua conversão para uso agrícola de alta tecnologia", conclui. As áreas correm o risco de serem desmatadas para dar lugar a pastos extensivos que degradariam em "menos de uma década", estima.
O senador Bittar apresentou seu projeto (PLS 1.551/19) em 19 de março, sem coautor. O texto foi encaminhado à Comissão de Constituição e Justiça (CCJ). O relator era o senador Fabiano Contarato (Rede-ES). Depois, contudo, quando Flávio Bolsonaro decidiu pela coautoria, o projeto ganhou nova numeração e novo relator, que passou a ser o senador Roberto Rocha (PSDB-MA).