O dinheiro do futuro será múltiplo, mais abstrato, com bases diversificadas, digitais e sem fronteiras. Papel moeda, cartões e suas representações não desaparecerão do dia para a noite, mas pagamentos poderão ser feitos por presença física ou virtual (via um avatar, por exemplo), com suporte de inteligência artificial para transferir valores mediante um contexto ou comportamento, como entrar em um ambiente ou abrir uma latinha de cerveja.
Mesmo pagamentos eletrônicos por cartões de crédito, débito ou Pix verão pela frente carteiras digitais com respaldo automático do saldo em conta-corrente, perfil de crédito e ativos como parcela de uma safra de grãos, pedacinhos de debêntures, moedas digitais ou aluguel recebido por contrato inteligente, entre outras possibilidades que o mundo digital já desenha para ancorar trocas.
“O dinheiro será mais acessível, barato e instantâneo”, diz Armando Castelar, do FGV-IBRE. Um exemplo é o Pix, fluido e sem burocracia. Sistemas deste tipo ainda são limitados por fronteiras, mas poderiam ultrapassá-las com políticas econômicas e acordos de governança monetária mundial. “Nossa vida digital já é global e instantânea, a financeira, não”, compara André Portilho, do BTG Pactual.
A base tecnológica já existe. Nasceu com a criptomoeda, com rede segura, inalterável e criptografada, como uma enorme planilha com as transações realizadas. Por ser descentralizada, ganhou o nome de tecnologia de registro distribuído (DLT, em inglês) ou cadeia de blocos (blockchain). A representação digital do ativo inscrito nestas redes, o token, é suportada por contratos inteligentes (smart contracts), regras para executar transações automaticamente sem intermediação, como pagamento e confirmação de recebimento de um valor para entrega de um bem. No mundo analógico, um exemplo são máquinas de refrigerantes, programadas para receber valores e dispensar produtos e troco.
O pacote de tecnologias digitais gerou moedas privadas, com valor baseado em oferta e procura e alta volatilidade, como o bitcoin, ou relacionadas a ativos do mundo real mais estáveis, como uma empresa (stablecoins). Também suporta moedas digitais de bancos centrais (CBDCs, em inglês) e poderia gerar outras, com fronteiras mais amplas ou dispersas, com validade entre nações parceiras - similar ao euro, mas com mais granularidade -, em comunidades de interesses comuns, como um videogame, ou um metaverso.
Como reserva de valor, o dinheiro também se transforma. A tradução de operações estruturadas em fragmentos digitais, a partir de um único contrato codificado, viabilizará a oferta de investimentos qualificados a qualquer mortal, com custos de gestão e compliance substituídos pela tecnologia. A fragmentação trará liquidez a ativos como imóveis, entre outros, com venda de pequenos direitos sobre eles.
Todo este cenário está ancorado na aceleração das transformações digitais e do mundo real. Uma delas é o estremecimento da globalização, cuja fragilidade foi exposta pela pandemia e pela guerra na Europa. A concentração, seja da produção de processadores, insumos de vacinas ou reservas do dinheiro, foi colocada em xeque com a quebra de cadeias de suprimentos e o uso em volume sem precedente de sanções econômicas como arma.
Se antes o uso da moeda como instrumento de conflito penalizou economias menores, como Iraque ou Venezuela, o congelamento de dois terços das reservas do BC russo sacudiu um gigante global, gerou pagamento de exportações em rublos dentro do país e acendeu um alerta na China. “O questionamento das cadeias globais passa pela tendência de trabalhar com países próximos ou com afinidades naturais”, disse durante a Febraban Tech, em São Paulo, o presidente do Bradesco, Octavio de Lazari.
Os rearranjos produtivos podem se refletir em acordos com novas referências monetárias. Como mais de 90% dos BCs no globo já estudam CBDCs (as moedas digitais), a interoperabilidade de redes com o mesmo DNA tecnológico facilitaria a movimentação do dinheiro entre fronteiras e reduziria o custo das operações. “As trocas globais são caras”, observa Boanerges Ramos Freire, presidente da Boanerges & Cia Consultoria.
Fragmentos deste futuro já existem. Tokens de ativos digitais, como obras de arte ou personagens de vídeo game (NFT, em inglês), já estão à venda. Criptomoedas e produtos financeiros digitais antes restritos a empresas desreguladas já chegam às instituições tradicionais. A Suécia eliminou o uso do papel moeda. “O processo é gradual”, observa Ricardo Josuá, da fintech Pismo.
Itaú, BTG Pactual e Visa estão entre as que dão passo rumo à economia tokenizada. O Itaú investiu na startup de tokenização Liqi, usou a especialista Hashdesk para emissão de um fundo atrelado a ETF de criptomoedas, fez parceria com a Vortx para emissão de debêntures tokenizadas e testou token para recebíveis. Em breve deve ter token para investimento no aplicativo Íon, diz o superintendente das arquiteturas enterprise e de soluções e tecnologias emergentes do Itaú, Eduardo Crivelli.
O BTG Pactual lançou a plataforma Mynt, para investimentos em criptomoedas. A Visa criou um cartão de crédito para produtores rurais pago com tokens de colheita de grãos, em parceria com a Agrotoken, na Argentina. Transações em contexto se traduzem na parceria entre Magazine Luiza e Deezer para compra do instrumento tocado em uma música. O supermercado St. Marché adotou pagamento no checkout por biometria facial com a Mastercard. Lojas Amazon Go foram além: basta entrar, pegar os produtos e sair, com reconhecimento corporal e vinculação ao aplicativo da marca.
A evolução dos contratos inteligentes refinará a promessa do open finance, o uso dos dados do cliente para oferecer serviços melhores e mais personalizados. Hoje, se o limite de crédito a ser fornecido a um cliente no momento de uma compra for R$ 15, os custos da formatação do produto podem impedir a oferta. A tecnologia elimina essa barreira.
A disseminação da inteligência artificial e do 5G ajudará a substituir aplicativos de pagamento por sites responsivos, para interação em redes sociais ou ecossistemas de marketplaces. O interessado poderá conectar onde quiser sua carteira digital com chave criptográfica, concreta ou virtual, para usar seu dinheiro programável, com saldo de várias fontes e maior eficiência. “A tecnologia substituirá senhas ou intermediários garantidores”, diz Thamilla Telarico, da EY.
Outros avanços exigem regulação. Rentabilizar imóveis com venda de pequenos direitos sobre eles depende de novos formatos de escrituração. Tecnologicamente, é possível usar uma fração de um automóvel, casa ou galpão de uma empresa para levantar financiamento.
Enquanto isso, o BC prepara o real digital, a CBDC brasileira. Segundo o presidente, Roberto Campos, o plano é criar uma camada de DLT (que funcionaria como um banco de dados digitais) para gerar tokens correspondentes à moeda depositada na casa. A ideia é inédita e deve estimular a tokenização da economia. “O modelo brasileiro é ambicioso”, diz Thiago Rolli, da KPMG.
“A infraestrutura traz eficiência para a indústria financeira”, diz Raul Moreira, do Banco Original. Para testar as inovações, o BC criou o Laboratório de Inovações Financeiras Tecnológicas (Lift), com diferentes projetos, e a ideia é usar as iniciativas para apoiar a construção do real digital, que deve surgir em 2024.