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ESCOSTEGUY, A. C; SIFUENTES, L; SILVEIRA, B; OLIVEIRA, J. C.; BRAUN, H. G. Mídia e identidade de mulheres destituídas: uma discussão metodológica. Galaxia (São Paulo, Online), n. 23, p. 153-164, jun. 2012. 153 Mídia e identidade de mulheres destituídas: uma discussão metodológica Ana Carolina Escosteguy Lírian Sifuentes Bruna Rocha Silveira Janaína Cruz de Oliveira Helen Garcez Braun Resumo: O objeto de estudo do projeto A visibilidade da vida ordinária de mulheres destituídas na mídia (CNPq) é configurado, por um lado, por um corpus de textos midiáticos, denominados de narrativas pessoais midiatizadas (ESCOSTEGUY, 2011) e, por outro, por uma pesquisa de campo. Esses dois vetores se articulam na principal questão de pesquisa: o que a visibilidade da vida ordinária de mulheres de posições sociais destituídas, na mídia, está produzindo em termos de identidade feminina na mesma classe social? Aqui, problematizamos somente os instrumentos metodológicos que serão aplicados na investigação empírica sobre os processos de conformação identitária feminina e sua vinculação com determinadas representações postas em circulação pelas mencionadas narrativas. Tomando como ponto de partida uma experiência de campo, utilizamos o relato de quatro informantes para discutir a estratégia metodológica experimentada. Palavras-chave: metodologia; pesquisa empírica; identidade; mídia Abstract: Media and identity of deprived women: a methodological discussion. The study object from the project The visibility of deprived women’s ordinary life within the mediascape (CNPq/2010) is set up - on the one hand – by a corpus composed by mediatic texts named mediatized personal narratives (ESCOSTEGUY, 2011) and - on the other hand - a field research with underprivileged women. These two paths are articulated within the main question of the research: what does the visibility of the deprived women’s ordinary life is producing in the media – in terms of feminine identity within the same social class? Here we discuss only the methodologic instruments that will be applied on the empirical investigation about the resignation processes of the feminine identity and its bond with 154 ESCOSTEGUY, A. C; SIFUENTES, L; SILVEIRA, B; OLIVEIRA, J. C.; BRAUN, H. G. Mídia e identidade de mulheres destituídas: uma discussão metodológica. Galaxia (São Paulo, Online), n. 23, p. 153-164, jun. 2012. certain representations placed in circulation by the mentioned narratives. The starting point of this article is focused on the first field research experience with the report of four interviewees to discuss the experimented methodological strategy. Keywords: methodology; empirical research; identity; media Considerações iniciais Primeiramente, julgamos pertinente apresentar as linhas gerais da investigação na qual a discussão presente neste artigo se insere, expondo seus objetivos e bases teóricas. Na sequência, abordamos sinteticamente as bases metodológicas da pesquisa empírica, tendo como ponto de partida reflexões relativas aos estudos culturais. Em seção específica, delineamos o referencial que nos guia no que diz respeito à noção de classe social e ao emprego do termo “mulheres destituídas”. Por fim, chegamos ao estudo empírico, focando uma experiência de campo. A partir de entrevistas exploratórias, pretendemos afinar tanto os procedimentos metodológicos da pesquisa empírica quanto os questionamentos da problemática. O projeto A visibilidade da vida ordinária das mulheres na mídia (CNPq) investiga a visibilidade que a vida ordinária das classes despossuídas, especificamente de mulheres, adquiriu na mídia, no contexto nacional. Interessa delimitar a exposição da vida ordinária em narrativas “personalizadas”, isto é, naqueles relatos que tratam de indivíduos como “pessoas privadas” (GRIPSRUD, 1992) e que aqui convencionamos denominar de narrativas pessoais midiatizadas (ESCOSTEGUY, 2011). No caso em tela, histórias de mulheres, disponibilizadas em distintos suportes tecnológicos. Por sua vez, a vida ordinária é composta pelo cotidiano de dificuldades e alegrias, de atividades rotineiras e de alguns momentos singulares, portanto, ela é entendida como aquela dimensão do vivido que abrange os dramas existenciais, familiares, profissionais e morais. Nossa proposta articula dois vieses: de um lado, o teórico, que pretende aprofundar a articulação dos seguintes termos-chave, a saber, cultura, mídia, classe, identidade e gênero, e, de outro, o empírico, desenvolvendo, fundamentalmente, análises de casos que examinarão as características desse fenômeno no Brasil e o que ele está produzindo em termos de constituição de identidades de classe e gênero. No âmbito de pesquisa, novamente o trabalho se bifurca: de um lado, a análise das representações postas em circulação pela mídia e, de outro, a pesquisa de campo junto a um determinado grupo social, circunscrito a mulheres de posições sociais desprivilegiadas. No âmbito das representações midiáticas, gostaríamos de destacar que, no jornalismo impresso, por exemplo, tem sido usual a publicação de histórias pessoais de sujeitos de classes sociais desfavorecidas. Na maioria das vezes, esses depoimentos são utilizados na cobertura de desastres naturais, nas notícias policiais ou ilustrando dados estatísticos sobre tais grupos sociais. Nesses testemunhos, a “realidade” é narrada por um jornalista ESCOSTEGUY, A. C; SIFUENTES, L; SILVEIRA, B; OLIVEIRA, J. C.; BRAUN, H. G. Mídia e identidade de mulheres destituídas: uma discussão metodológica. Galaxia (São Paulo, Online), n. 23, p. 153-164, jun. 2012. 155 que, obrigatoriamente, conta com o testemunho do sujeito da história que é posta em circulação. Esse é o procedimento usual da mídia impressa mainstream. Contudo, existe também a possibilidade de que essa “realidade” seja narrada diretamente pelos atores sociais envolvidos em sua própria história de vida, ou seja, essas últimas são narrativas escritas na primeira pessoa, dando voz própria ao sujeito narrador de sua história. Na maioria das vezes, tanto os primeiros quanto estes últimos são relatos de sujeitos batalhadores que, embora registrem um duro cotidiano, afirmam-se como sujeitos que enfrentaram – ou ainda enfrentam – desafios, sem esmorecer. Entendemos que essas representações midiáticas dos despossuídos não são homogêneas, ou seja, embora os modos de representar esse “outro” estejam predominantemente associados à violência e possam estar contribuindo para regular e naturalizar uma determinada forma de ver o “morador da favela”, a “periferia”, o “pobre”, os “desfavorecidos”, a “miséria”, esses mesmos sujeitos e lugares têm sido vistos também através de características positivas, embora esse seja um processo bem mais recente e incipiente. A presença de histórias pessoais de sujeitos comuns, muitas delas pertencentes às classes desfavorecidas, estão espalhadas em distintas mídias e são apresentadas mediante distintas estratégias narrativas – diários, autobiografias, memórias, histórias de vida, testemunhos –, compondo documentários, material jornalístico ou mesmo reality-shows. Do nosso ponto de vista, todo esse material precisa ser analisado tendo em vista uma conjugação de fatores socioeconômicos e culturais. Esses fatores estão relacionados com a ampliação do poder de consumo das camadas situadas nos estratos mais inferiores da estratificação social, bem como com sua constituição em alvos da televisão, mas também da imprensa; com mudanças no mercado de bens simbólicos, através da expansão de jornais populares; com alterações no mercado de TV aberta; com a diminuição de custos de produção de programas televisivos desse caráter e, também, com a popularização do uso de aparatos tecnológicos de gravação e reprodução. Com esse objetivo, assumimos localizar tal fenômeno – a visibilidade da vida ordinária de mulheres das classes destituídas na mídia – num determinado contexto histórico, econômico e cultural. De modo genérico, compreendemos que o presente estudo está inserido no espaço de vinculação entre comunicação e estudos culturais. Portanto, o programa de pesquisa que pretendemos implementar contempla as bases metodológicas dos estudos culturais, configurando uma análise particular dentro dos estudos de comunicação e cultura. Essa, por sua vez, está associada a uma matriz de pesquisa social crítica que assume determinados princípios de investigação que estão expostos, por exemplo, em Stuart Hall ([1973-1980] 2003), Richard Johnson ([1986-87]1999), Douglas Kellner ([1995] 2001), bem como em Couldry (2000). De modo muito sintético, pois não cabe aqui detalhar as proposições desse programa de pesquisa, ressaltamos que se trata de considerar o multidimensionalismo das práticas comunicacionais e, principalmente, atentar para o papel crucial da dimensão 156 ESCOSTEGUY, A. C; SIFUENTES, L; SILVEIRA, B; OLIVEIRA, J. C.; BRAUN, H. G. Mídia e identidade de mulheres destituídas: uma discussão metodológica. Galaxia (São Paulo, Online), n. 23, p. 153-164, jun. 2012. simbólica que está no centro da vida social. A partir disso, é assumida uma visão global e complexa do processo comunicativo, sustentada na ideia de integração do espaço da produção com o da recepção. Isso permite analisar as especificidades de cada momento e elemento envolvidos no circuito como um todo, sem predeterminar como essas relações são constituídas; compreender que as relações que se estabelecem entre as partes que configuram a comunicação não são acessíveis a abordagens estreitamente definidas; indicar que os sentidos são produzidos em diversos momentos do circuito e, finalmente, preservar a dinâmica do processo comunicativo, integrando um conjunto de dimensões. É desse modo que o programa de pesquisa dos estudos culturais reivindica um olhar integral sobre a Comunicação. Trata-se de uma tentativa de produzir novas formas de conhecimento, desvinculado dos limites de áreas especializadas e dominantes no campo da Comunicação. Tal (re)definição do objeto de estudo é uma das marcas dessa tradição, residindo aí um aspecto de sua práxis interdisciplinar. Também, compreendemos que a mídia hoje se embaralha de tal modo com a vida cotidiana que o estudo em separado da produção, do texto e da recepção, embora válido e pertinente, não dá conta dos profundos entrelaçamentos entre a mídia e a vida dos sujeitos. Daí a necessidade de constituir um horizonte mais amplo em que estejam incluídas as consequências de longo alcance de vivermos num cenário entranhado pela mídia. “Um mundo saturado pela mídia é um mundo onde as ações orientadas à mídia não estão exatamente circunscritas à produção, ao consumo direto e mais à circulação” (COULDRY, 2009, p. 40). Essas são soluções muito simples para encarar o problema de “viver com a mídia” ou de que a mídia está operando “através e entre lugares, de modos específicos” (COULDRY, 2010, p. 290). Por essa razão, no desenrolar da investigação, exploraremos a perspectiva de estudo de práticas orientadas pela mídia (COULDRY, 2009, 2010). Entendendo a prática em estudos culturais fundamentalmente como uma análise contextual e situada, privilegia-se o interesse, de um lado, numa determinada formação cultural, mediante a identificação de distintos produtos culturais que constituem uma rede de sentidos dominantes e, de outro, no que esses mesmos valores, sentidos e ideias em circulação estão produzindo em especial junto a mulheres de uma determinada classe social. É por este último aspecto que esta pesquisa se vincula à reflexão sobre os processos identitários, tanto no que diz respeito ao entendimento que especificamente as mulheres têm de si mesmas quanto aos elementos comuns que perpassam seu grupo social. Isto significa contemplar a conexão existente entre identidade cultural e individual (GIDDENS, 2002). No caso deste texto, detemo-nos no segundo recorte de nosso objeto de estudo, sendo que o objetivo central é realizar uma discussão metodológica de uma primeira experiência de campo com um grupo de quatro informantes. Nesta ocasião, mais do que os resultados obtidos com as entrevistas exploratórias que revelam, através dos processos ESCOSTEGUY, A. C; SIFUENTES, L; SILVEIRA, B; OLIVEIRA, J. C.; BRAUN, H. G. Mídia e identidade de mulheres destituídas: uma discussão metodológica. Galaxia (São Paulo, Online), n. 23, p. 153-164, jun. 2012. 157 narrativos, histórias de vida e, por sua vez, construções identitárias, interessa refletir sobre as estratégias de investigação, especialmente, sobre a condução das entrevistas. Mulheres destituídas: quem são? Por classes destituídas compreendemos aquelas compostas por indivíduos que não têm domínio algum sobre os recursos produtores de valor e que ocupam posições inferiores no mercado de trabalho, ou estão excluídos desse. A operacionalização dessa conceituação, em Figueiredo Santos (2009), está focalizada na divisão social do trabalho. Através dela, localizam-se as distintas posições destituídas dentro da estrutura social. Em síntese, as correspondentes categorias empíricas são: trabalhador braçal (trabalhador manual agrícola, trabalhador na manutenção de edifícios e logradouros, trabalhador na pecuária, ajudante de obras civis, trabalhador na agropecuária em geral, trabalhador de cargas e descargas, trabalhador de serviços diversos), empregado doméstico (usa habilidades básicas de cuidado do lar), trabalhador que não dispõe de local fixo para o trabalho (pedreiro, vendedor ambulante, mestre de construção civil, pintores, trabalhador em serviços de higiene e embelezamento, operador de máquina de costura), pequenos lavradores (pequenos produtores que têm muito pouca terra), incluindo os desempregados. Traduzem-se, assim, em ocupações que não necessitam de qualificação formal e, por consequência, não possuem reconhecimento social. Embora “ser destituído” tenha relação com questões de renda, uma vez que as ocupações citadas são geralmente mal remuneradas e, com frequência, a ausência de qualificação profissional se origina da falta de possibilidades financeiras para acessar uma educação mais especializada, o entendimento de classe social adotado não está restrito ao fator econômico. Na posição de classe interage tanto uma lógica do capital quanto uma lógica simbólica que se efetiva mediante símbolos e representações, repercutindo na vida afetiva e emocional. Assim, busca-se ultrapassar discussões mais tradicionais de classe que se restringem ao espaço da renda. No entanto, dado que está em pleno curso no Brasil um processo em que novos segmentos da sociedade brasileira vêm sendo incorporados ao mercado de consumo, o que tem acontecido, sobretudo, em razão do aumento do poder aquisitivo, dos programas governamentais de distribuição de renda, do incremento a serviços e mecanismos financeiros e do crescimento da oferta de crédito, o que se tem visto, em especial na mídia, é o destaque ao fator econômico. Segundo o IPEA, entre 2005 e 2008, um em cada dez brasileiros saltou para faixa de renda per capita superior, totalizando 18,5 milhões de pessoas. O inchaço do denominado segmento social médio revela uma mobilidade que está modificando o perfil das estatísticas socioeconômicas do Brasil nas últimas duas décadas. Dos 190 milhões de brasileiros, atualmente 12,8% estão na faixa AB; 49,7%, na faixa C; e 37,5%, na faixa DE. 158 ESCOSTEGUY, A. C; SIFUENTES, L; SILVEIRA, B; OLIVEIRA, J. C.; BRAUN, H. G. Mídia e identidade de mulheres destituídas: uma discussão metodológica. Galaxia (São Paulo, Online), n. 23, p. 153-164, jun. 2012. Apesar desses dados econômicos, que permitem classificar 94,4 milhões de brasileiros como pertencentes à classe média, sua história familiar e suas vivências na infância – pobreza, doação de crianças, trabalho infantil, gravidez e casamento precoces etc. – evidenciam claramente sua origem ou seu pertencimento às classes populares (MÜLLER, 2009). Desse modo, mesmo que muitos desses brasileiros tenham tido experiências de diferentes graus de sucesso econômico, continuam até hoje vivenciando uma realidade social que, em termos de hábitos de lazer e, principalmente, de ocupação profissional, pode ser definida como dentro do âmbito das posições sociais desfavorecidas ou destituídas. Interessa aqui destacar que a divisão social gera consequências na vida dos indivíduos e que, por essa razão, eles têm diferentes capacidades para a ação e, portanto, chances de vida distintas. Portanto, é fundamental combinar, na definição de classe social, tanto a esfera material, associada às instituições econômicas, quanto a esfera cultural, que diz respeito às práticas sociais e culturais – por exemplo, como os indivíduos e grupos sociais pensam ou procedem em relação ao casamento, ao trabalho, à religião etc. Os efeitos das relações de classe na vida dos indivíduos são sintetizados por proposições específicas que consideram que aquilo que a pessoa tem determina o que ela obtém e condiciona o que ela necessita fazer para conseguir o que obtém. (FIGUEIREDO SANTOS, 2009, p. 464) Em outros termos, trata-se de pensar os “capitais econômico e cultural”, sendo esse último uma combinação da herança dos valores familiares e do capital escolar, como “elementos estruturais” da “hierarquia social” de toda sociedade moderna (SOUZA, 2009). Por essa razão, pode-se observar casos diferenciados de ascensão econômica, sem que isso signifique uma ruptura com valores e modos de ser próprios da posição de classe de origem. Por fim, talvez seja necessário enfatizar, também, que o gênero não fica subsumido à classe, “ao contrário, a consciência da diferença dessas formas de solidariedade deve ajudar a percepção do peso relativo de cada qual” (MATTOS, 2006, p. 164). Se, por um lado, sabe-se que o marxismo não deu destaque às questões propriamente femininas, por outro, os estudos feministas, inicialmente realizados por mulheres majoritariamente brancas de classe média, deixaram de abordar aspectos relacionados às mulheres negras e de classes populares, por exemplo. Stolke (2004) fala de uma miopia de raça e classe entre as estudiosas feministas. Trabalhos sobre etnia e classe social ganharam destaque apenas nas últimas duas décadas, com o objetivo de dar voz às mulheres que não se encaixavam nos modelos que costumavam representar os estudos de gênero: mulheres brancas, ocidentais e de classe média. Esse interesse convergente em classe e gênero reflete um comprometimento com a reflexão sobre a história, repleta de diferentes formas de opressão (SCOTT, 1986). Assim, consideramos mais pertinente endossar o entendimento de que os vínculos de dominação são “relacionais”, sejam eles entre classes sociais, bem como entre homens e mulheres (MATTOS, 2006). ESCOSTEGUY, A. C; SIFUENTES, L; SILVEIRA, B; OLIVEIRA, J. C.; BRAUN, H. G. Mídia e identidade de mulheres destituídas: uma discussão metodológica. Galaxia (São Paulo, Online), n. 23, p. 153-164, jun. 2012. 159 Seguindo as orientações e propósitos já delineados, realizamos uma primeira entrada em campo, focada em mulheres destituídas. Com esse objetivo, foram realizadas quatro entrevistas com mulheres entre 43 e 50 anos, que trabalham como diarista, recepcionista e faxineira, sendo que uma delas está desempregada, e realiza faxinas esporadicamente. Esse primeiro conjunto de entrevistas foi realizado no primeiro semestre de 2011. Em campo Considerando a ideia de que hoje nossa vida está atravessada pela mídia e, ao mesmo tempo, a própria mídia produz e distribui relatos pessoais que contam histórias de vida, procuramos realizar um exercício de campo que pretende capturar as reverberações da mídia em determinados modos de ser. Diante da demanda de falar de “sua vida”, pressupomos que as informantes fornecem uma narrativa de si, mas esta, embora seja construída em termos individuais e pessoais, também é constituída por convenções e interações sociais. Sendo assim, realizamos entrevistas biográficas (BEAUD; WebER, 2007) em que o que se busca é o relato dos informantes sobre a vida que levaram. Após a condução das entrevistas, decidimos chamá-las de “mini-histórias de vida”. Adotamos tal denominação porque privilegiamos a entrevista foi parte de uma declaração ao informante de que buscávamos histórias de vida. Entretanto, como essa técnica e/ou método tem larga tradição constituída, não nos atrevemos a pensar que, de fato, foi realizada como “história de vida” (DEBERT, 1988,1984; QUEIROZ, 1991). Assim, assumimos que estamos utilizando o termo “mini-história de vida” de modo bastante impreciso. Para a escolha das mulheres entrevistadas, usamos como critério que essas fossem identificadas como trabalhadoras braçais ou que ocupassem postos que não exigem uma qualificação formal, independente da renda obtida. Isso porque tais atividades são pouco valorizadas na sociedade, da mesma forma que não exigem habilidades e conhecimentos formais que dependam de formação específica. Assim, por exemplo, nos interessam relatos pessoais de domésticas, manicures, depiladoras, costureiras, trabalhadoras em serviços de limpeza, vendedoras ambulantes, todas atividades inseridas dentro do quadro proposto por Figueiredo Santos (2009). A faixa etária de interesse da pesquisa compreende mulheres adultas, excluindo jovens (até 21 anos) e idosas (a partir de 60 anos). A idade das quatro entrevistadas se concentrou na faixa dos 43 aos 50 anos. A partir de tais parâmetros, foram realizadas quatro entrevistas-piloto, com vistas a “experimentar” diferentes aproximações e conduções da entrevista. Como padrão entre as entrevistas, ressaltamos que nenhuma fez uso de qualquer forma de roteiro ou questionário, buscando-se manter uma conversação livre com as mulheres. Embora nosso interesse esteja concentrado na observação da importância da mídia na vida e nos modos de ser dessas mulheres, não priorizamos o questionamento direto sobre esse tema. A seguir, apresentamos uma síntese dos dados de identificação das informantes, destacando idade, ocupação e constituição familiar. No geral, os dados objetivos foram 160 ESCOSTEGUY, A. C; SIFUENTES, L; SILVEIRA, B; OLIVEIRA, J. C.; BRAUN, H. G. Mídia e identidade de mulheres destituídas: uma discussão metodológica. Galaxia (São Paulo, Online), n. 23, p. 153-164, jun. 2012. obtidos ao longo da entrevista, sem um interrogatório sobre idade, origem social, estado matrimonial e trajetória profissional das entrevistadas, o que poderia comprometer uma apresentação mais espontânea das mesmas. Dete tem 43 anos, é diarista e babá, além de vender doces por encomenda quando solicitada por conhecidos. É casada há 23 anos, mãe de uma menina de 15 anos e de um garoto de 22. Cleci, 44 anos, é faxineira de um condomínio, tem três filhos, fruto de seu casamento de 18 anos, desfeito há mais de dez anos. Márcia, de 48 anos, está desempregada e, quando consegue serviço, trabalha como faxineira. Nunca se casou nem teve filhos, atualmente, passa alguns dias da semana vivendo em um albergue beneficente. Laura tem 50 anos, é recepcionista em uma rádio, tem quatro filhas, foi casada por 27 anos e, há sete, está separada. Apesar de as entrevistadoras não contarem com um roteiro para entrevista, como mencionado, todas sabiam dos objetivos da pesquisa, bem como do fato de que essa primeira entrevista serviria para discutir o procedimento a ser adotado no futuro da investigação. Além disso, era do conhecimento de todas que o maior interesse na aproximação com as informantes dizia respeito ao cotidiano, às vivências como mulher e “destituída”, bem como à relação delas com a mídia. Assim, embora “livres”, as entrevistadoras tinham tais ideias “em mente” durante a entrevista, o que apareceu de formas distintas no encaminhamento das conversas. Laura não fez nenhuma referência à mídia, e nem foi questionada sobre esse tema. Márcia mencionou a mídia ao longo da conversa, propiciando espaço para desenvolver o tema. Somente Cleci é que foi questionada diretamente sobre a mídia, já que Dete foi instigada indiretamente sobre o tema, mas a conversa não teve desdobramentos. No que tange aos questionamentos acerca da temática da mídia, em cada entrevista teve-se uma experiência distinta. Em uma das entrevistas não se questionou sobre o assunto, deixando que o tema aparecesse, ou não, espontaneamente. Nenhuma forma de menção aos meios de comunicação surgiu, tanto por parte da entrevistadora quanto da entrevistada, não sendo a mídia, portanto, objeto de conversação. Foi o caso de Laura que, embora tenha sido entrevistada no contexto do seu trabalho, uma emissora de rádio onde o som da mesma estava como fundo da conversa, não registrou nenhum comentário a respeito. A preocupação da entrevistadora foi não formular questões que abordassem as categorias centrais da pesquisa, o que permitiu que a entrevistada destacasse aquilo que era mais significante em sua vida. Por outro lado, a própria entrevistadora avalia que questões que não foram abordadas diretamente na entrevista podem estar presentes e influenciar no cotidiano da entrevistada e, até mesmo, corroborar para seu reconhecimento social, sem que essa assim o perceba. Em um segundo caso, uma fala da entrevistada trouxe o assunto mídia à conversa. Quando relatava uma cirurgia pela qual passou, ela contou que, no momento em que recebia anestesia, para entretê-la, a enfermeira ESCOSTEGUY, A. C; SIFUENTES, L; SILVEIRA, B; OLIVEIRA, J. C.; BRAUN, H. G. Mídia e identidade de mulheres destituídas: uma discussão metodológica. Galaxia (São Paulo, Online), n. 23, p. 153-164, jun. 2012. 161 começou a conversá, conversá comigo, não sei o quê: “a senhora viu a novela ontem?” Parece que a novela que tava dando era novela do Roque Santeiro naquela época. Tava dando. Aí ela comentou, “ah, que que tu achou do capítulo da novela ontem?” Daí eu comecei a contá né, pra enfermeira japonesa... anestesista. Daí eu comecei a contá pra ela que eu nem, nem vi... terminei de contá já tava dormindo. Não vi mais né. (Depoimento de Márcia) Aproveitando a referência à novela, a entrevistadora perguntou: “A senhora falou agora da novela, da televisão. A senhora tem costume de ver TV, rádio...”, seguindo-se respostas que destacaram o gosto pelo rádio e pela leitura de jornais e revistas. A avaliação da entrevistadora foi de que a estratégia propiciou que se destacasse aquilo que de fato constituía a “memória” da entrevistada, o que incluiu a temática da mídia, especialmente a telenovela. A entrevistadora, ainda, ponderou que a conexão realizada entre acontecimentos da vida da entrevistada e a mídia é importante, independente dos exemplos referidos ao longo do diálogo que revelaram uma incongruência temporal. Em outra entrevista, houve um questionamento sobre qual o meio usado pela entrevistada para manter-se informada, ao que respondeu que não era bem informada, pois não lia jornal. A seguir, foi questionada se também não assistia televisão para saber das notícias, respondendo afirmativamente, seguindo-se uma conversação sobre o que a entrevistada costumava apreciar na TV – filmes, telejornais e novelas. Houve, nesse caso, um estímulo indireto para que a informante falasse sobre mídia. A entrevistadora avaliou posteriormente que considera válido buscar suscitar, de alguma forma, que a entrevistada fale sobre mídia, pois julga que, mesmo sendo esse um aspecto importante do cotidiano da informante, o tema pode não aparecer na conversa, caso não “estimulada”. Além disso, não falar sobre a mídia foi um grande esforço para a entrevistadora, pois a conversa ocorreu em frente à TV, que, embora desligada, ocupava local de destaque na sala, tanto por sua disposição quanto por seu tamanho. No quarto caso, foram formuladas questões que abordavam diretamente o tema: “Eu queria saber da tua relação com os meios de comunicação, o que tu constuma ver, tu lê jornal, alguma revista, tu olha TV? O que tu gosta de ver?”, seguindo-se de desdobramentos, tais como: “Tu não acha que as novelas que tratam de assuntos como drogas, te ajudam com teus filhos ou tu não usou isso na educação deles?”; “E na TV, tem algum personagem que tá passando na TV agora que te incomoda?”. O esforço da entrevistadora foi o de conduzir a conversa numa direção mais ajustada à perspectiva da pesquisa, por isso, não deixou de questionar explicitamente sobre mídia. Avalia que várias das questões propostas na pesquisa apareceram na entrevista espontaneamente, porém acredita que algumas questões podem ser feitas diretamente, pois considera que as pessoas não mencionam alguns aspectos de suas vidas por não os julgarem importantes, mesmo compondo seu cotidiano, ou mesmo por determinadas ações serem tão automáticas a ponto de parecerem naturais, como é o caso do consumo dos meios de comunicação. Como exemplo, cita que a entrevistada afirma não gostar de olhar TV, mas relatou detalhes da programação. 162 ESCOSTEGUY, A. C; SIFUENTES, L; SILVEIRA, B; OLIVEIRA, J. C.; BRAUN, H. G. Mídia e identidade de mulheres destituídas: uma discussão metodológica. Galaxia (São Paulo, Online), n. 23, p. 153-164, jun. 2012. De toda forma, é imperativo declarar que nesse exercício estivemos envolvidas na tentativa de aproximação às informantes, refletindo, sobretudo, sobre sua relação com a mídia. No entanto, reconhecemos que é necessário retomar a conversação com cada uma das entrevistadas com o objetivo de tematizar suas história em relação aos “capitais econômico e cultural”, dado que a concepção de classe utilizada é constituída por esses dois vetores. Nesse sentido, consideramos que será mais produtivo preparar um roteiro de questões que dê conta das respectivas histórias familiares em relação à vida econômicofinanceira, bem como à vida escolar e educacional das informantes e de seus familiares. Este constituirá um questionário a ser aplicado em ocasião distinta da entrevista para não sobrecarregar o informante. Considerações finais Enfim, temos clareza de que o tipo de informação que buscamos não se consegue mediante instrumentos de pesquisa quantitativos, pois não estamos buscando diretamente dados sobre consumo midiático nem posições de decodificação/interpretação em relação a textos midiáticos específicos. Por isso mesmo, não assumimos que estamos interessadas num estudo de consumo e/ou de recepção. O que procuramos conseguir com as mini-histórias de vida são as próprias construções das informantes sobre suas biografias e se as fórmulas que elas utilizam para definir e ordenar o que lhes acontece está ou não atravessado pela mídia e em que medida. Reconhecemos a dificuldade em construir uma estratégia metodológica que ampare nosso objetivo. Nossa intenção, conforme já destacado, é capturar a presença fluida e penetrante da mídia na vida cotidiana, escapando dos espaços circunscritos da produção, texto e recepção. De um lado, consideramos que, nas narrativas pessoais que são construídas e postas em circulação pela mídia, é flagrante a presença e o papel da mídia na sua configuração. Nessas histórias de vida, contadas por seus próprios personagens, construídas dentro de uma dinâmica midiática, está evidente que 1) a mídia faz parte da relação entre atores sociais e suas narrativas; 2) as partes envolvidas – os atores sociais, as histórias de vida e a mídia – não podem ser compreendidas independentemente porque existe uma íntima negociação de sentido que modifica tanto os atores quanto seus relatos; e 3) dado que circulam e são produzidos em determinado ambiente tecnológico e institucional, revelam determinados padrões e lógicas comuns. Por essa razão, essas narrativas pessoais são entendidas como práticas orientadas pela mídia. Considerando que, especialmente neste momento, as narrativas pessoais midiatizadas são, por um lado, fundamentalmente histórias de sucesso e de autoafirmação e, por outro, histórias de violência e tragédia, perguntamos: estariam elas posicionando essas mulheres na mesma direção? Em outros termos, as mini-histórias de vida das mulheres também seriam práticas orientadas pela mídia? No momento em que preferimos uma conversa, um dialógo com essas mulheres, sinalizamos a importância de permitir às ESCOSTEGUY, A. C; SIFUENTES, L; SILVEIRA, B; OLIVEIRA, J. C.; BRAUN, H. G. Mídia e identidade de mulheres destituídas: uma discussão metodológica. Galaxia (São Paulo, Online), n. 23, p. 153-164, jun. 2012. 163 nossas informantes que elas nos indiquem em que dimensão a mídia faz parte do seu dia a dia, sem imposição do tema. A história de vida, entretanto, não é, enquanto tal, a garantia de que uma conversa ou um diálogo será estabelecido. Pelo contrário, o material obtido através delas compreende um conjunto de relatos fragmentados, incoerentes, ambíguos e contraditórios. Nossa tarefa enquanto pesquisadores é entender esses relatos e depois apresentá-los. Nessa tarefa nem sempre somos bem sucedidos. [...] na tentativa de entender e depois apresentar o material obtido, estamos sempre correndo o risco de impor aos nossos informantes uma organização que não lhes é própria. (DEBERT, 1984, s/p.) Além desse risco, estamos cientes, pelo exercício realizado, que sem a menção direta à mídia, estamos expostas à decepção, isto é, que, nossas hipóteses sobre o exercício de poder da mídia na regulação dos modos de ser se desarme/desarticule ou, ainda, que sem sequer trazermos o tema à pauta, não tenhamos oportunidade de sabê-lo. Ana Carolina Escosteguy é professora do PPGCOM da PUCRS e pesquisadora do CNPq. Esta investigação conta com financiamento do CNPq – Programa Especial de Inclusão Social, Igualdade e Cidadania. carolad@pucrs.br Lírian Sifuentes é doutoranda do PPGCOM da PUCRS; bolsista CAPES. lisifuentes@yahoo.com.br Bruna Rocha Silveira é mestre em Comunicação pelo PPGCOM da PUCRS, com bolsa CNPq. bruna.rochasilveira@gmail.com Janaína Cruz de Oliveira é mestranda do PPGCOM da PUCRS; bolsista CAPES. janaina.cruzdeoliveira@gmail.com Helen Garcez Braun é mestranda do PPGCOM da PUCRS. helenbraun@gmail.com Bibliografia AGGER, B. (1998) Critical Social Theories: an introduction. Oxford: Westview. 164 ESCOSTEGUY, A. C; SIFUENTES, L; SILVEIRA, B; OLIVEIRA, J. C.; BRAUN, H. G. Mídia e identidade de mulheres destituídas: uma discussão metodológica. Galaxia (São Paulo, Online), n. 23, p. 153-164, jun. 2012. BEAUD, S.; WebER, F. (2007) Guia para a pesquisa de campo – Produzir e analisar dados etnográficos. Petrópolis: Vozes. COULDRY, N. 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