O deráš eclesiológico no Evangelho segundo Marcos
The ecclesiological derash in the Gospel according to Mark
Rita Maria Gomes
Universidade Católica de Pernambuco - UNICAP, Brasil
Resumo
Palavras-chave
O presente artigo tem por objetivo mostrar como o evangelista
Marcos, utilizando os métodos exegéticos do judaísmo
apresenta sua eclesiologia. Ela difere das apresentadas pelos
outros evangelistas, sobretudo, por seu modo próprio de
narrar. Marcos nunca diz abertamente o que deseja afirmar,
mas dá condições para que seu leitor o compreenda e faça as
inferências que lhe apetecem. Em vista disso, a metodologia
seguida nestas páginas é a análise de alguns textos-chave para
a compreensão da eclesiologia de Marcos, bem como a análise
bibliográfica referente aos métodos exegéticos judaicos. O
percurso inicia-se com a discussão sobre a questão
terminológica, base da temática: a ekklēsía. Em seguida, trata
dos métodos exegéticos judaicos, para, finalmente,
demonstrar como Marcos utiliza a tradição recebida. O
resultado desse percurso é uma rica panorâmica da visão
eclesiológica do segundo evangelho que, por sua dinâmica,
pode iluminar as experiências e reflexões contemporâneas de
uma Igreja em saída.
Midraš.
Povo de Deus.
Aliança.
Discípulos.
Igreja.
Abstract
Keywords
This article aims to show how the evangelist Mark, using the
exegetical methods of Judaism, presents his ecclesiology. This
differs from those presented by the other evangelists and, above
all, by their own way of narrating. Mark never openly says what
he wishes to affirm, but he gives conditions for his reader to
understand him and make the inferences he wishes. In view of
this, the methodology followed in these pages is the analysis of
some key texts for the understanding of Mark's ecclesiology, as
well as the bibliographical analysis regarding Jewish exegetical
methods. The journey begins with the discussion on the
terminological question, the basis of the theme: the ekklēsía. He
then discusses Jewish exegetical methods, to finally demonstrate
how Mark uses the received tradition. The result of this journey
is a rich overview of the ecclesiological vision of the second
gospel which, by its dynamics, can illuminate the contemporary
experiences and reflections of an outgoing Church.
Midrash.
God’s people.
Covenant.
Disciples.
Church.
https://doi.org/10.25247/2595-3788.2019.v2n2.p152-174 | ISSN 2595-3788
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Introdução
Uma primeira palavra sobre o objeto deste artigo, quiçá a mais
importante, tenha a ver com o porquê voltar à Escritura para refletir sobre o
tema da eclesiologia, ou melhor, das eclesiologias. Em nosso tempo, como
outrora, convivemos com muitas eclesiologias, mas, no atual momento, parece
que os modelos eclesiológicos mais significativos são conflitantes. Assim, urge
voltar ao movimento cristão inicial perpetuado nos textos bíblicos para tentar
iluminar nossa vida eclesial um tanto turbulenta de agora.
Uma segunda, tem a ver com a noção básica de eclesiologia que nos
permitirá fazer um caminho. Buscamos o delineamento dessa noção a partir de
algumas expressões recorrentes no Antigo e no Novo Testamento, tais como
“povo de Deus”, “nação santa” etc, bem como de textos que aludam a essas
designações do povo de Israel, compreendido a partir de sua relação única com
o Deus que a ele se revela e o libertou e, a partir daí, fê-lo seu povo eleito. A
consideração etimológica do termo ekklēsía não será, portanto, a única via de
acesso, uma vez que esse termo é abundante no Antigo Testamento (AT), mas,
praticamente, ausente nos Evangelhos.
Uma terceira palavra versa sobre a metodologia que nos guiará, pois
buscamos apresentar a eclesiologia bíblica a partir do método exegético
rabínico do deráš aplicado ao Evangelho segundo Marcos. Mas, antes de ensaiar
uma aplicação do método ao texto evangélico faremos uma revisão bibliográfica
para apresentar o estado da questão metodológica da exegese rabínica em sua
relação com os escritos do Novo Testamento. Para tanto, nos ajudarão,
particularmente, a obra de Agustín del Agua Pérez, El método midrásico y la
exégesis del Nuevo Testamento e o artigo de Alejandro Díez Macho, “Deraš y
exégesis del Nuevo Testamento”.
Assim, temos quatro momentos: primeiro, uma abordagem etimológica
do termo que deverá nos conduzir à noção essencial do tema a ser tratado
nestas páginas; segundo, uma apresentação da terminologia e do modo próprio
de estudar e explicar a Sagrada Escritura pelos mestres judeus; terceiro, a
consideração
do
método
rabínico
derášico,
presente
no
texto
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neotestamentário; e, por fim, uma demonstração básica da releitura
eclesiológica derášica de Marcos. Esse último momento consta de três etapas:
o modelo inserção-substituição, os Doze e a Nova Aliança.
A etimologia do termo
neotestamentário
ekklēsía e
o
seu
uso vetero e
O termo grego ekklēsía traduz o hebraico qahal. Encontramos 217
ocorrências desse termo em 210 versículos da Sagrada Escritura, sendo 114
ocorrências no Novo Testamento em 111 versículos e 103 ocorrências no texto
grego da LXX em 99 versículos1. A versão grega do Antigo Testamento reduziu
bastante o uso do termo, pois traduziu o hebraico qahal ora por ekklēsía ora
por synagōgē. Uma comparação mais cuidadosa desses usos seria bastante
iluminadora, mas nos levaria muito longe do objetivo deste artigo, por isso, não
nos deteremos nesses detalhes técnicos aqui.
Pois bem, o termo hebraico qahal, que normalmente é traduzido por
“assembleia”, vem da primitiva raiz qhl, que pode significar “convocar” ou
“reunir”, tanto por razões religiosas quanto políticas; para celebrar ou para
preparar a guerra ou ainda para instaurar um julgamento (ALONSO SCHÖKEL,
1997, p. 573; STRONG, 2002, n. 6951). Os diversos textos veterotestamentários
nos quais o termo aparece corroboram essa apresentação sumária de seu
sentido. Então, como e quando esse vocábulo passa a ser um termo técnico para
falar do povo como uma unidade relacionada com Deus?
As ocorrências do termo ekklēsía, no Novo Testamento, não
demonstram uma regularidade ou distribuição equitativa entre os textos. Dos
quatro evangelhos apenas Mateus o utiliza três vezes em duas ocasiões (16,18;
18,17). Na obra lucana, ocorre algo curioso: não há ocorrências do termo no
evangelho, mas é abundante no livro de Atos dos Apóstolos, contando vinte e
três ocorrências. Nos outros escritos neotestamentários, o termo está presente,
1
No texto hebraico Massorético constam 162 ocorrências do termo qahal em 150 versículos.
Dados coletados a partir de consulta ao BibleWorks, 2009, versão 8.0.013z.1.
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à exceção das cartas de Pedro e Judas, sendo maior a presença no Corpus
Paulinum (ROLOFF, 2005, col. 1251).
Segundo Roloff, o substantivo grego ἐκκλησία é o resultado da junção
da preposição ek com o verbo kaleō e significaria “a coletividade dos
chamados”. O sentido original foi modificado com o tempo e, “na época grega
clássica e na do helenismo, ἐκκλησία é a expressão técnica para designar a
assembleia nacional integrada pelos varões livres com direito a voto” (ROLOFF,
2005a, col. 1252; 2005b, p. 90-91).
Esse tipo de definição supõe uma quase equivalência entre os termos
dēmos e ekklēsia, como uma referência à soberania do povo no governo
ateniense. No entanto, segundo Hansen (2010, p. 499), um estudo aprofundado
dos termos e da democracia ateniense clássica demonstra que há uma distinção
entre dēmos, ekklēsía e dikatērion. A soberania no governo ateniense não era
de todo o povo (dēmos) e sim dos dikastai (jurados). Ele afirma:
Os dikastai na dikasteria são descritos apenas como demos de
filósofos e historiadores que eram hostis à democracia e
preferiam usar demos no sentido de “pessoas comuns”, não no
sentido de todo o povo. Como o conselho de quinhentos, a corte
do povo era uma instituição separada e no século IV era a corte
do povo e não a assembleia que era considerada a instituição
política “soberana”. (HANSEN, 2010, p. 500)
A principal questão para Hansen é que ele, diferente da maioria dos
estudiosos da democracia ateniense, não toma os termos dēmos e ekklēsía
como sinônimos. Para Hansen, não é a ekklēsia que tem poder para aprovar ou
vetar um decreto, mas a demos (HANSEN, 2010, p. 507). Isso modifica um pouco
a compreensão que se tinha do uso do termo no período clássico. Por sua vez,
Korner (2015, p. 55) chama a atenção para o fato de que, na Grécia antiga,
esse termo referia-se a uma assembleia civil temporária dos homens, “demos”,
reunidos en ekklēsia. Diz ainda que esse termo não era usado para referir-se a
grupos permanentes nos círculos greco-romanos. Nesse sentido, parece
concordar com Hansen que a ekklēsia é distinta do dikastērion (corte).
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Esse sentido político encontrado na origem do termo pode explicar o
fato de os responsáveis pela versão dos LXX privilegiarem esse termo na hora
de traduzir o hebraico qahal. No entanto, o Novo Testamento usa ekklēsia para
referir-se a um grupo permanente. Desse modo, percebe-se que, nos textos
neotestamentários, o termo assume, de modo unificado, os dois sentidos
apresentados na LXX: a ekklēsia e a synagōgē, ou seja, esse grupo se entende
como uma realidade sociorreligiosa (KORNER, 2015, p. 56). Há, portanto, uma
concepção tipicamente cristã do termo.
Assim, entende-se que, para os autores neotestamentários, o termo
ekklēsia tem mais que um caráter político e é seu aspecto teológico o que
melhor caracteriza a compreensão do grupo indicado pelo termo. Nesse
sentido, a tradução mais indicada seria “comunidade” (ROLOFF, 2005a, col.
1252). Só com o passar do tempo, o termo passou a ser o preferido para designar
o grupo dos seguidores de Cristo (KORNER, 2015, p. 56).
Existe uma expressão que pode iluminar um pouco a questão do uso do
termo pelos primeiros seguidores de Jesus Cristo: ekklēsía toû Theoû. Essa
expressão é encontrada em alguns textos paulinos mais antigos 2. Segundo
Roloff, alguns comentadores consideram que a expressão traduzia o hebraico
qehal ēl atestado no judaísmo apocalíptico -1QM 4,10; 1QS 1,25 (2005a, col.
1253; 2005b, p. 90).
Ainda de acordo com Roloff, a expressão primitiva ekklēsía toû Theoû
(qehal ēl) “foi antes de tudo a denominação que se aplicou a si mesma a
comunidade primitiva de Jerusalém, formada depois da Páscoa. [...] Tinha
consciência de ser o grupo recrutado e escolhido por Deus, que estava destinado
por ele a ser o centro e o ponto de cristalização do Israel escatológico chamado
agora por Deus” (2005a, col., 1254; 2005b, p. 91). Esse uso indica já a
apropriação cristã dos usos de ekklēsia e synagōgē.
Mas o uso do recurso filológico leva à compreensão de que a ausência
do termo nos evangelho, e em algumas cartas aponta para uma reflexão
teológica que supõe um estágio anterior à constituição da “comunidade cristã”.
2
Cf. 1Cor 1,2; 10,32; 11,22; 15,9; 2Cor 1, 1; Gl 1, 13; no plural 1Cor 11, 16.22; 1Ts 2, 14; 2Ts
1,4.
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Nos evangelhos, a ekklēsia ainda não está formada, mas em via de formação
junto ao seu Mestre.
Por isso, percebe-se que a análise filológica não é a única forma de
compreender a eclesiologia neotestamentária. Aliás, mesmo onde o termo não
aparece, muitas vezes, está patente uma perspectiva eclesiológica que só pode
ser apreendida a partir de outros modos de aproximação e exame do texto
bíblico. É a isso que se propõem essas páginas e, por isso, buscamos apoio nas
técnicas exegéticas dos antigos rabinos. Passamos agora a considerar um pouco
o método exegético do deraš.
Compreendendo a terminologia rabínica: deraš ou midraš?
Começamos nossa reflexão sobre o método de interpretação aplicado
ao texto neotestamentário justificando a escolha do método derásico. Do
mesmo modo que Pérez, temos segurança que a herança judaica ultrapassa o
limite dos livros do Antigo Testamento e mesmo os do Intertestamento. A
tradição cristã herdou algo maior no qual se encaixam as tradições escritas e
orais: uma mentalidade, uma visão de mundo e também alguns costumes (DEL
AGUA PÉREZ, 1985, p. 33). É por compartilharmos uma cosmovisão que
expressamos, até certo ponto, nossas experiências de fé com o mesmo tipo de
estrutura linguística simbólica. Por isso, estamos autorizados a interpretar
nossos textos com os mesmos recursos interpretativos dos antigos, uma vez que
os textos foram consignados dentro desse padrão.
Ao processo de interpretação dos textos bíblicos, o judaísmo antigo deu
o nome de midraš. Esse termo é uma derivação da raiz hebraica drs de onde
vem daraš que significa “buscar”, investigar” (SANTALA, 2002, p. 15). Del Agua
Pérez (1985, p. 33) buscou o sentido do termo midraš partindo das duas
ocorrências da palavra na Bíblia Hebraica, a saber, em 2Cr 13,22 e 24,27 e
recorda que, em ambos, o sentido é o de “história resultante de investigação
dos fatos ocorridos no tempo”. Nesses textos, o sentido está muito próximo do
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encontrado no livro de Reis quando, ao final de cada referência à história de
um rei, remete-se aos Anais dos reis de Judá ou aos Anais dos reis de Israel.
Santala pensa que a melhor definição de midraš foi dada por Renée
Bloch no Dictionnaire de la Bible. Ali, Bloch define midraš como “reflexão
homilética ou meditação sobre a Bíblia que procura reinterpretar ou atualizar
um dado texto do passado para as circunstâncias presentes. Ele penetra o texto
e o faz relevante para a situação contemporânea” (SANTALA, 2002, p. 13). Mas,
Santala não vai além disso porque seu intuito é trabalhar a obra literária
midrásica de Rute e, por isso, apenas faz a distinção entre os termos daraš,
midraš e pešer para, em seguida, assumir o termo Midraš em referência a uma
obra específica na qual se utilizou a técnica do deráš.
Domingo Muñoz Léon (1987, p. 20) define deraš como “o uso atualizante
da Escritura”. Mas, antes diz que entende o deraš como “a forma de busca,
aproximação, recurso e tratamento a respeito do texto bíblico por parte do
judaísmo e do cristianismo nascente” (MUÑOZ LÉON, 1987, p. 19). Ele vai além
e afirma que “‘Derás’ implica fundamentalmente o emprego, interpretação e
atualização da Escritura [...] para todos os tempos e com plenitude de sentido,
especialmente o sentido messiânico” (MUÑOZ LÉON, 1987, p. 19). Para Léon, a
atualização é a tarefa principal do deráš e está alicerçada em dois princípios
fundamentais: a plenitude de sentido do texto bíblico e seu valor para todos os
tempos (MUÑOZ LÉON, 1987, p. 19). Com isso, aproximamo-nos da importância
desse método para a compreensão do Novo Testamento.
Podemos, então, resumir a questão assumindo, com Del Agua Pérez,
que o termo midraš refere-se à exegese e à hermenêutica judaica. “É exegese
enquanto busca de sentido da Bíblia, e hermenêutica, enquanto utiliza técnicas
e procedimentos determinados” (1985, p. 34). Diríamos que é exegese porque
busca o sentido da Escritura e é também hermenêutica porque, ao fazer isso,
atualiza o texto, criando novos sentidos. Contudo, alertamos que a distinção
entre exegese e hermenêutica é algo que não era claro ao judaísmo antigo
porque essa conceituação é nova.
Nesse sentido, midraš não é um gênero literário e sim um método de
interpretação e, portanto, faz-se presente em diversos gêneros literários do
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Antigo e do Novo Testamento (p. 35). Pela diversidade de sentido e de uso que
esse termo assumiu, Díez Macho (1975, p. 37) propõe que se use o termo deraš
para a exegese judaica antiga e o termo midraš para as obras judaicas nas quais
se usa a exegese derásica. Pérez, por sua vez, propõe um uso distinto do termo
midraš variando apenas a primeira letra. Sugere que se use o termo com M
maiúsculo para referir-se as obras judaicas (midrashim) e o minúsculo para o
método de interpretação.
Díez Macho ainda faz outra distinção em relação ao termo deraš que
tem a mesma ambiguidade do termo midraš. Ele diz: “Enquanto busca ou
investigação do sentido da Bíblia, derash é o mesmo que exegese; enquanto
utilização de alguns procedimentos determinados, derash é o mesmo que
hermenêutica: é a hermenêutica antiga dos judeus e dos cristãos primitivos
procedentes do judaísmo” (DÍEZ MACHO, 1977, p. 7). Aqui seguiremos, a partir
de agora, a designação de Díez Macho que, apesar de ser uma obra antiga,
mantém
sua
atualidade.
Assumimos
o
termo
deraš
para
a
exegese/hermenêutica judaica e midraš para as obras resultantes do deraš.
A exegese judaica tinha duas vertentes bem claras: o que Israel devia
“ser” foi chamado haggadah e o devia “fazer” foi denominado halakkah.
Simplificando as coisas, uma abordagem da Escritura buscava nas narrativas a
compreensão de quem Israel era e quem deveria ser, enquanto a outra
preocupava-se com o modo de ser do povo, como devia comportar-se. A
atualização desse modo de agir do povo exigia muitas vezes a criação de novas
normas e uma nova legislação que devia necessariamente ser inspirada nas
normas presentes na Escritura. (DEL AGUA PÉREZ, 1985, p. 45).
Para a consideração da Escritura nessas duas linhas maiores, haggadah
e halakkah, os antigos partem de alguns princípios básicos, a saber, a unidade
da Escritura, a unidade entre as partes da Escritura, a Escritura se explica por
si mesma e a pluralidade de sentidos da Bíblia. Para Del Agua Pérez a
observação da leitura sinagogal torna indiscutível a unidade da Escritura porque
na Sinagoga “se lê um trecho do Pentateuco, o seder ou parashá; a partir do
séc. II a.C. se lê também um trecho dos profetas, a haftará; e, em seguida, se
fazia a homilia (derashá)”. (DEL AGUA PÉREZ, 1985, p. 49) Dentro dessa
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compreensão da unidade da Torah foi criado o haruz, conhecido como “colar
de pérolas”, um procedimento para unir as três partes da Escritura (DEL AGUA
PÉREZ, 1985, p. 49).
Uma vez que se assegura a unidade de toda a Escritura, e inclusive de
suas partes, pelo recurso amplo das mais diversas analogias, chega-se
tranquilamente à afirmação de que a Escritura explica a Escritura. Isso é
afirmado pela “Mekilta a Ex 15,8 diz ‘A Torah se explica pela Torah’, de acordo
com uma regra de R. Ismael, já existente nos tempos de Hillel”. Segundo Del
Agua Pérez (1985, p. 52), de acordo com essa regra, já não existe nem antes
nem depois e que, por isso, o exegeta pode prescindir da cronologia. Esse tipo
de exegese, chamada serés (castração), choca-se com a nossa exegese moderna
porque permite que se estude o texto fora de seu contexto histórico, entre
outras questões que podem ser observadas.
Até agora tratamos das questões mais gerais que fundamentam a
investigação da Escritura pelos judeus, devemos passar a analisar os
procedimentos concretos dessa exegese. As regras da exegese judaica são
chamadas middot. Del Agua Pérez (1985, p. 55), citando Heinemann, diz que
“os métodos da exegese haggádica se agrupam em duas categorias:
historiografia criadora e filologia criadora”, sendo que a primeira tem por
finalidade esclarecer o texto bíblico de modo a torná-lo relevante para a vida
de ouvintes e leitores, e a segunda parece ter um caráter mais técnico e voltado
para a compreensão do texto por ele mesmo (DEL AGUA PÉREZ, 1985, p. 55).
O método derašico rabínico e o Novo Testamento
Para entendermos o uso do deraš pelos autores neotestamentários
precisamos recordar que o princípio fundamental no cristianismo para a leitura
ou interpretação da Escritura é o “evento Cristo” e não o texto bíblico como é
para os judeus. Uma vez assegurado o ponto de partida, podemos falar dos três
tipos ou modelos de recurso derásico ao Antigo Testamento: promessa-
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cumprimento,
também
chamado
“prefiguração-realização”;
oposição-
contraposição e inserção-substituição.
É corrente a afirmação do modelo promessa-cumprimento porque em
vários textos se afirma “para que se cumprisse a Escritura...” (cf. Jo 17,12;
19,23-24; Lc 4,18-21; At 1,16). E ainda quando não há uma afirmação clara,
como a citada acima, a apresentação de Jesus como o messias esperado pelo
uso de textos messiânicos revelam o esquema de promessa-cumprimento.
O segundo modelo, oposição-contraposição, aborda sobretudo questões
halakkicas e o melhor exemplo encontra-se na exortação mateana que segue os
macarismos do discurso da montanha. Ali, Jesus relê alguns pontos da Lei de
modo a radicalizar as exigências. Mateus retoma três importantes ensinamentos
do Decálogo nessa exposição.
O primeiro e mais importante é: “não matarás”. Jesus radicaliza esse
mandamento ao dizer que não só quem matar vai responder no tribunal, mas
também aquele que tratar mal o irmão (Mt 5,21,22, cf. Ex 20,13). O segundo é:
“não cometerás adultério”. A esse Jesus radicaliza afirmando que só olhar com
desejo de possuí-la já cometeu adultério” (Mt 5,27-28; cf. Ex 20,14) e o
terceiro, “não jurarás falso” que, na radicalização, torna-se “não jureis de
modo algum” (Mt 5,33-34; cf. Ex 20,16). Chamo atenção ainda para a
modificação de Lv 19,18 com uma interpretação corrente, “amarás o teu
próximo e odiarás o teu inimigo”, que é seguido do chamado a amar os inimigos
e orar pelos que os perseguem (Mt 5,43-44).
O terceiro modelo derásico é o da inserção-substituição que trabalha
com a ideia do distanciamento ou modificação de algumas importantes
instituições antigas. A principal ou mais fundamental delas é a Aliança e,
partindo dela, vai se afirmar outras. Há uma relação de continuidadedescontinuidade entre a aliança nova e a antiga, entre o povo de Deus da antiga
aliança e o novo povo de Deus. É com base nessa continuidade-descontinuidade
que analisamos agora a reflexão eclesiológica de Marcos a partir do modelo
inserção-substituição.
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O deraš inserção-substituição na “eclesiologia” de Marcos
A eclesiologia de Marcos está construída segundo o modelo derásico
inserção-substituição assentado na noção de “povo de Deus” indicada no texto
marcano pela expressão “os Doze”. Essa expressão refere-se diretamente aos
discípulos, mas só faz sentido porque estes foram vistos como a “substituição”
dos doze filhos de Jacó que constituem o povo de Deus da antiga Aliança.
Vários textos veterotestamentários trazem listas com os nomes dos
filhos Jacó. São eles: Rúbem, Simeão, Levi, Judá, Zabulon, Issacar, Dã, Gad,
Aser, Neftali, José e Benjamin (Gn 35,22b-26; Gn 46,8-27). Em Gn 35,22b se
atesta “os filhos de Jacó foram em número de doze”. Um caso especial é o
relato da bênção de Jacó (Gn 49,1-28), porque ali ele abençoa seus filhos e essa
benção é construída de modo a mostrar algo sobre o destino de cada um dos
filhos. Porém, no capítulo anterior, Jacó abençoa os filhos de José e diz que
eles serão seus filhos como o são Rúben e Simeão, e ainda que os filhos que ele
gerou depois de Efraim e Manassés serão de José (Gn 48,5-6).
José morre e Levi não tem parte na herança da terra, isso faria que os
filhos de Jacó contassem dez e não doze. Porém, os filhos de José, a partir da
declaração de Jacó, passam a ser seus filhos e tomam o lugar correspondente
a Levi e a José. O número “doze” está assegurado. Aqui está formado o povo
de Deus. Desse modo, a relação do número “doze” com os filhos de Jacó
aparece como algo importante. A partir daí, passam a ser sinônimas as
expressões “doze tribos” e “filhos de Jacó”.
Ao povo, formado da descendência de Jacó, é profetizado que ele seria
um “reino de sacerdotes e uma nação santa” (Ex 19,6). Sabemos que a profecia
foi dirigida aos filhos de Jacó porque em Ex 19,3 é dito: “assim dirás à casa de
Jacó e declararás aos filhos de Israel”. À nomeação “filhos de Jacó” e “doze
tribos” se une outra, a de “povo de Deus” pela profecia. Tudo isso é considerado
pelos autores neotestamentários na hora de explicar a nova configuração da
ação salvífica de Deus através de Jesus Cristo. Por isso, eles se utilizarão de
termos consagrados para falar do antigo Israel para apresentar a Igreja, novo
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163 | O deráš eclesiológico no Evangelho segundo Marcos
povo de Deus, tais como: povo, reino, aliança, Lei (DEL AGUA PÉREZ, 1985, p.
92)
Em 1Pd 2,9 é retomada a mesma expressão ethnos (nação santa) de Ex
19,6 para referir-se aos cristãos. Na carta de Pedro, agrega-se a essa expressão,
outra muito parecida “raça eleita”, além de “sacerdócio régio”, revelando que
o horizonte de fundo é o mesmo do texto antigo: a aliança. Curiosamente na
Carta de Pedro, onde se encontra claramente uma eclesiologia fundada na
promessa divina aos filhos de Israel, o termo não aparece. Enfim, a teologia da
aliança supõe a eleição, por parte de Deus, daquele povo. Isso é um uso derásico
dos componentes da antiga aliança para definir a nova aliança em Cristo,
indicando que a conexão identitária entre o novo Israel e o antigo é da ordem
da história da salvação (DEL AGUA PÉREZ, 1985, p. 91-92).
Os Doze: a base do novo povo de Deus
A base de todas essas leituras derásicas dos componentes da
eclesiologia veterotestamentária é a afirmação de que a Igreja é o “novo povo
de Deus”. Essa asseveração está fundamentada na definição dos discípulos
como “os Doze”. Por isso, recorremos ao Evangelho segundo Marcos para ver
como o evangelista vai processualmente apresentando aqueles que formarão o
“novo Israel”.
Como Marcos não é um autor que diz logo o que quer, e prefere mostrar,
necessitamos considerar mais que os textos nos quais a palavra “doze” aparece.
Isso significa que é necessário compreender o desenrolar da trama marcana que
não se dá de modo linear, mas em espiral.
Marcos não diz tudo de uma vez, mas vai compondo o “desenho” dos
personagens aos poucos. Seguindo sua lógica nos deparamos com três textos
incontornáveis: 1,16-20; 2,13-14 e 3,13-19. Porém, antes de analisarmos os
textos necessitamos compreender o lugar que eles ocupam na grande trama
marcana porque isso nos dará luzes para entende-los em profundidade. Essas
três passagens encontram-se em lugares estratégicos da primeira seção do
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evangelho de Marcos: a seção do mar, demonstrada na estrutura a seguir3.
Mc 1,16-20 caminhando à beira do mar da Galileia [v. 17 e vos farei pescadores de homens]
Mc 1,21 E entraram em Cafarnaum [...] entraram na sinagoga e ali ensinava.
Mc 1,34 E curou a muitos [...] e expulsou muitos demônios
Mc 2,1 E entrando novamente em Cafarnaum
Mc 2,13 E saindo novamente para a beira-mar [...] e lhes ensinava
Mc 2,18 – 3,6 E estavam os discípulos de João e dos fariseus jejuando [...] sábado
Mc 3,7-19 Jesus retirou-se com os discípulos [...] para o mar [...] e “fez” doze
Mar da Galileia
Mc 3,20-35 os escribas vindos de Jerusalém diziam [...] estás possuído por Beelzebul
Mc 4,1 E novamente começou a ensinar à beira-mar
Mc 4,35-36 Passemos para a outra margem [...] no barco
Mc 5,1 E foram para outra margem do mar
Mc 5,21 E novamente Jesus atravessou no barco para a outra margem
Mc 6,45 Subirem no barco e seguirem para outra margem
Mc 8,10.13 subiram no barco [...] novamente subiram e foram para a outra margem
Essa seção é chamada “seção do mar” porque todos os acontecimentos
ali narrados estão de algum modo relacionados com o “mar da Galileia”. Essa
seção está organizada em duas partes desiguais. A primeira está demarcada
pela referência ao “mar”, e a segunda, pelas referências ao barco e a outra
margem, entenda-se, do mar.
Podemos considerar também que a seção se organiza em três ciclos: um
ciclo de Cafarnaum, um ciclo da comunidade e um ciclo do pão. Nossos textos
encontram-se na primeira parte que se organiza em dístico. O primeiro e o
segundo texto estão nas extremidades iniciais do dístico, enquanto o terceiro
encontra-se no centro do segundo momento. Mas, o primeiro e terceiro texto
podem formar também uma espécie de inclusão, na qual o segundo texto ficaria
no centro. O indício dessa inclusão seria o uso do verbo poieō presente em 1,17
e em 3,14.16. A ligação com 2,13-14 se dá por meio do chamado ao seguimento
lançado por Jesus, presente nos três textos.
Mc 1,16-20 traz o chamado dos quatro primeiros discípulos junto ao mar
da Galileia. Eles são todos pescadores. É um chamado em duas etapas e a cada
vez Jesus chama dois pares de irmãos. O que Jesus fará deles está presente no
primeiro par de chamados. Em ambos, diz-se que “imediatamente o seguiram”.
Em Mc 2,13-14, novamente Jesus está junto ao mar, literalmente “à beira3
Esse esquema é parte da estrutura proposta para o Evangelho de Marcos em Marcos: o
evangelho do messias inaudito [no prelo].
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mar”. Como antes vira os pescadores, agora vê o coletor de impostos em sua
banca. Ele o chama e o mesmo acontece: ele o segue. Aqui temos uma
novidade, descontinuidade, em relação aos componentes desse “novo povo”
que se formará em estreita vinculação com Jesus. Esse povo não será formado
apenas de “judeus piedosos”, incluirá também os pecadores públicos.
Isso será confirmado pelo texto da “constituição dos Doze” (Mc 3,1319), que analisaremos em pormenores. Esse é o texto que dá nome ao ciclo.
Essa perícope tem alguns problemas de crítica textual, mas nada muito
significativo. A única que merece ser referenciada é a que informa que os
discípulos foram chamados apóstolos [kai apostolous ōnomasein]. Os
testemunhos a esse respeito não são muito importantes, por isso, não aparece
na maioria das traduções.
O texto começa dizendo que Jesus subiu a montanha e essa é primeira
vez que a montanha é citada em Marcos. Ela será referida mais quatro vezes
(Mc 6,46; 9,2; 9,9 e 11,23) e apenas em uma das menções não tem ligação
simbólica com Deus. A montanha tem papel simbólico como lugar de encontro
com Deus. É sobre a montanha que Jesus chama a si “os que ele quis”. Não
existe outro critério para fazer parte desse grupo que a vontade de Jesus. Ele
“fez” doze. O texto não dá nenhuma justificativa direta nem para a escolha de
doze nem para aqueles escolhidos.
Mc 3,13-19 constitui-se como a instauração da comunidade dos
seguidores de Jesus. O que muda a partir de agora em relação aos discípulos?
Até esse momento, os discípulos eram aqueles primeiros chamados: Simão e seu
irmão André, Tiago e João [filhos de Zebedeu] e Levi, o cobrador de impostos.
O grupo estabelecido por Jesus tem agora dupla finalidade: ficar com Jesus e
ser enviado.
Insistimos, primeiro, que esse grupo é algo que Jesus faz, pois, o verbo
ποιέω foi usado no chamado dos dois primeiros discípulos e novamente agora
para falar dos doze. Isso demonstra um quê de oficial, de formal. Em segundo,
esse grupo feito por Jesus deve estar com ele e ser enviado a pregar, embora
não se informe ainda o teor dessa pregação. Para realizar sua missão, terão o
poder [έξουσία] de expulsar os demônios. Isso significa que esse grupo agora
partilha da mesma autoridade de Jesus porque ele assim o quis.
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Ao final, o texto, nos dá a lista dos Doze eleitos: Simão, que a partir de
agora vai ser chamado Pedro, Tiago e João, filhos de Zebedeu, que como Simão,
recebem um outro nome, o de Boanerges [filhos do trovão], André, Filipe,
Bartolomeu, Mateus, Tomé, Tiago, filho de Alfeu, Tadeu, Simão, o cananeu, e
Judas Iscariotes. O texto traz em destaque os três primeiros: Pedro, Tiago e
João. Todos os outros, a partir de André, tem apenas os seus nomes citados.
Estranhamente no grupo “oficial”, que Jesus “faz”, o nome de André, o irmão
de Simão, vai parar no meio dos outros nomes sem nenhuma referência
especial. Na lista aparece um outro “filho de Alfeu, Tiago” e desaparece o
“Levi, filho de Alfeu”.
Algumas observações nos ajudam em nosso caminho. A primeira delas
tem a ver com a referência à montanha, pois ela é um motivo importante da
tradição judaica, presente nos textos veterotestamentários. É patente que
Marcos usa conscientemente este motivo literário porque nessa seção de seu
evangelho a centralidade é o mar e não a montanha que, aliás, utiliza tão
pouco. É na montanha que Moisés fala com Deus e é lá que recebe as tábuas da
Lei, base da Aliança de Deus com o povo de Israel.
Essa simples mudança de cenário no texto evangélico evoca a perícope
do Sinai, que corresponde aos textos que iniciam em Ex 19,1-2, quando os
israelitas chegam ao Sinai e acampam diante da montanha. Ali permanecem um
ano inteiro e só levantam acampamento em Nm 10,11-12. Com isso, temos um
grande espaço narrativo que abarca a segunda metade do livro do Êxodo, o livro
do Levítico inteiro e o primeiro terço do livro de Números. A perícope do Sinai
representa a formação do povo como povo de Deus. É lá que eles firmam a
aliança com Deus através de Moisés e se comprometem a viver segundo a
vontade de Deus seguindo suas leis e mandamentos.
Tudo isso é evocado com a simples referência à montanha e o chamado
desses doze, porque doze eram os filhos de Jacó a quem Deus prometeu que
seriam um “reino de sacerdotes e uma nação santa”. Marcos não utiliza os
termos característicos evocados antes, nem mesmo o mais simples, o de
“povo”, como é habitual nos outros autores do Novo Testamento, porque
prefere fazer a demonstração para que seu leitor conclua aquilo que deseja
manifestar. O seu leitor é perfeitamente capaz de fazer a associação e
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compreender que os doze são o novo povo que vem “substituir” as doze tribos
de Israel.
Mas isso ainda não é tudo. Marcos faz com que a constituição do novo
povo de Deus se dê em íntima relação com o mar. É de conhecimento geral que
o que Marcos chama “mar” é um lago, que Lucas indica como “lago de
Genesaré” (Lc 5,1) e João chama “mar de Tiberíades” (Jo 21,1). Não é por
ignorância que Marcos chama o lago de mar, mas por estratégia narrativa e com
função teológica. E, seguindo a segunda das sete regras de Hillel (PÉREZ
FÉRNANDEZ, 1996, p. 527; DEL AGUA PÉREZ, 1985, p.57-58), a da analogia,
chegamos ao tema da aliança intimamente relacionada com o mar.
A nova aliança: fundamento teológio do novo povo de Deus
O povo de Israel se constitui como povo a partir da experiência de
libertação da escravidão egípcia que tem como evento maior a travessia do
“mar dos Juncos” (Ex 14,15-31). Esse transfundo não escapa ao gênio de Marcos.
Como o povo foi “tirado do mar” e, em seguida, instituído povo de Deus, os
discípulos, base do novo povo de Deus, são tirados do mar (os pescadores). Mas,
diferente do povo da antiga Aliança, que fora instruído na Lei do Senhor por
Moisés e devia ser o transmissor para as gerações futuras, agora o novo povo é
instruído por Jesus, o Senhor, e partilha de sua autoridade para também instruir
a outros.
A aliança, base da noção de povo de Deus, só é citada em Marcos uma
vez, em 14,24, na perícope da ceia na qual Jesus ressignifica a refeição pascal
judaica. Novamente o deraš inserção-substituição se faz presente, mas, dessa
vez, o faz conforme o habitual nos autores neotestamentários citando
diretamente o motivo da aliança. Nesse texto, temos a alusão ao ritual mesmo
da celebração da ceia da Páscoa. Isso significa que Marcos faz um deraš da
aliança a partir do memorial da antiga aliança representada na ceia ritual da
Páscoa judaica e não da celebração do pacto. O caráter substitutivo do deraš
aqui é indicado pela presença do termo καινον (novo) referente ao vinho a ser
bebido no Reino de Deus. Para uma nova aliança, um novo memorial.
Santala (2002, p. 212) reflete sobre “a ceia do Senhor”, sobretudo a
partir de João em conexão com o Midrash Ruth, e acentua três elementos que
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considera essenciais e responsáveis pela aproximação desses textos: “o pão, o
vinho e a perspectiva eterna da refeição da Páscoa e da Sagrada Comunhão”.
Mas, em seguida, recorda que o texto de Ex 12 ordena apenas três coisas para
a mesa da Páscoa, a saber, o cordeiro, o pão sem fermento e as ervas amargas
(SANTALA, 2002, p. 213). Isso revela que a celebração da Páscoa demorou muito
para ser fixada num ritual e que ela foi celebrada de modo bastante livre em
diferentes épocas e locais.
O pão sem fermento é chamado “matzah”. Na celebração da Páscoa
são dispostos três matzoth um sobre o outro. O do meio recebeu o nome de
“afikoman” e uma parte dele é consumida durante a refeição e a outra parte,
geralmente, é escondida ou reservada (SANTALA, 2002, p. 214). Santala recorda
que o nome “afikoman” tem origem grega, pois deriva do verbo ἀφικνέομαι que
significa “chegar” (SANTALA, 2002, p. 215; BALZ; SCHNEIDER, 2005, col. 549).
Isso justificaria o simbolismo que esse pão recebeu em associação com a
chegada do Messias.
Coelho (1999, p. 60) diz que, depois que os comensais concluem a
refeição, “as crianças buscam a sobremesa: o afikoman”, a metade da matzah
que tinha sido escondida no começo da cerimônia. Normalmente, entende-se
que como o afikoman fica escondido indica algo do caráter do Messias que se
encontra “escondido”, ou seja, oculto, e que pode a qualquer momento se
revelar.
Segundo Tomaz e Pelegrini (p. 8), o afikoman era comido em memória
do cordeiro pascal. Esse costume, no entanto, só se desenvolveu depois da
destruição do templo. Santala, a esse respeito diz:
De acordo com os Sábios, o próprio cordeiro pascal tinha que
ser comido como a última porção de comida na noite do Seder.
Desde a destruição do Templo, no entanto, a “parte oculta” de
afikoman tornou-se um lembrete simbólico do sacrifício pascal
e, portanto, não foi comido até o final (SANTALA, 2002, p. 215).
Com isso, percebemos que esse é um caminho infrutífero para o que
nos ocupa aqui, porque no tempo de Jesus ainda se comia o cordeiro. Segundo
os relatos evangélicos, Jesus e seus discípulos celebraram a Páscoa, pois Mc
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14,17 diz que “ao anoitecer daquele dia”, entenda-se, o dia da celebração da
Páscoa, Jesus estava comendo com seus discípulos. Isso reforça a afirmação de
um longo período até uma fixação do ritual do Sêder de Páscoa.
Quanto ao vinho, eram servidos quatro cálices durante a refeição.
Coelho (1999, p. 60) fala ainda de um quinto cálice, o de Elias, que era servido
em memória do profeta que devia vir antes do da manifestação do messias.
Cada um dos cálices servidos tem um nome e um simbolismo próprio no Sêder
de Páscoa. O primeiro foi chamado qidush e significa “santificação”. O segundo,
foi nomeado maggid (narrador) e com ele inicia-se o relato da Páscoa e essa
narrativa tem o valor de “memorial”. O terceiro cálice chama-se “cálice da
bênção”. Santala recorda ainda que entre o terceiro e o quarto cálice existe a
proibição de tomar vinho para ressaltar a importância do quarto cálice. Esse é
chamado “o cálice do reino” (SANTALA, 2002, p. 219-221).
Pois bem, o texto de Marcos supõe do leitor o conhecimento dos
principais elementos e etapas da ceia pascal, pois caso contrário não alcançará
o tamanho da modificação que se estabelece ali. E o relato segue e, em Mc
14,22, novamente o texto informa “enquanto estavam comendo”. Tudo indica
a duração da celebração da ceia que contava com vários momentos e alimentos
significativos da história de libertação e redenção de Israel, seguindo
provavelmente a tradição de Ex 12.
Marcos só faz referência direta à comensalidade do pão e à bebida do
terceiro cálice, o “cálice da bênção” ou “cálice da redenção”. Ao fazer Jesus
dizer “isto é meu corpo” em relação à parte do afikoman que é distribuído
entre os discípulos, diz que ele próprio, na condição de messias, se dá, se
entrega por eles e pelo povo. Santala (2002, p. 214) recorda que “na linguagem
sacrificial o cordeiro é chamado de ‘ גוף הפסהguph ha-pesah’, ‘o corpo da
Páscoa’”, e que a palavra guph (corpo), no hebraico, significa a essência e a
substância de alguma coisa. Isso indica que Jesus não está celebrando apenas o
memorial antigo, mas de algum modo, está transformando aquele memorial em
outro memorial. O evangelista modifica tudo quando faz Jesus referir-se a si
mesmo em relação ao pão e ao vinho.
Também modifica profundamente o memorial ao transferir para o pão
a centralidade que antes estava no cordeiro. A transferência se dá pelo silêncio
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em relação à manducação do cordeiro e ao encerrar o relato de modo a levar o
leitor a entender que os alimentos consumidos na ceia foram o pão e o vinho.
Recordamos, o dito acima, que o cordeiro deveria ser o último alimento a ser
comido nessa refeição e, no texto marcano, o último é o pão.
Quanto ao vinho, quando Marcos diz que Jesus “pegou o cálice, deu
graças” (Mc 14,23) ele abre nova senda. O vinho do terceiro cálice representava
o sangue redentor do cordeiro da aliança e Jesus diz “este é o meu sangue da
Aliança que é derramado”, remetendo ao ritual de aspersão do sangue do
cordeiro sacrificado na celebração do pacto (Ex 24,8) e não somente ao sangue
que fora colocado nos umbrais das casas na noite que antecedeu a libertação
do Egito (Ex 12,7.13-14). Mas, isso ainda não é tudo!
É comum a afirmação de que os evangelhos não fazem referência ao
quarto cálice, contudo, isso é um engano. Marcos não é o único a fazer uma
referência implícita ao quarto cálice, mas vamos considerar aqui apenas o texto
marcano que é o objeto de nosso estudo. Em Mc 14,25, temos “Em verdade,
não beberei mais do fruto da videira até aquele dia em que beberei o vinho
novo no Reino de Deus”.
Chamo a atenção primeiramente para o fato de que o texto grego traz
tēs ēmeras ekeinēs, “naquele dia”, que é uma expressão muito parecida com
outra em ekeinais tais ēmerais, “naqueles dias”. A segunda expressão aparece
apenas quatro vezes em todo o Evangelho segundo Marcos (Mc 1,9; 8,1; 13,17
e 13,24). Dessas quatro, as duas últimas se encontram no capítulo amplamente
conhecido como “escatológico”. Em 1,9, a expressão abre a cristofania do
batismo. Em 8,1, abre o segundo relato da multiplicação dos pães e a posterior
cristofania da transfiguração. Isso indica que essa expressão aponta para algo
escatológico.4 De um modo levemente diferente, Marcos aponta para esse
caráter escatológico do Reino de Deus. Não só pelo uso de “aquele dia”, mas
pela referência ao quarto cálice, chamado “cálice do reino”.
Não se relata que Jesus tenha bebido esse cálice, aliás, ele coloca
claramente um tempo adequado para o “tomar esse cálice”, porque como
realidade escatológica o Reino de Deus já se faz presente por sua presença no
4
Essa ideia também foi desenvolvida, num outro contexto, em Marcos, o evangelho do messias
inaudito [no prelo]
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meio do povo, mas o Reino não se estabeleceu em plenitude. O Reino de Deus
é também devir, é projeto. Os seguidores de Jesus têm por tarefa atualizar
continuamente o Reino de Deus por sua atuação cotidiana, ao ajustar suas vidas
ao projeto divino de salvação.
Considerações finais
Ao concluir essa incursão pelas tradições véterotestamentárias,
rabínicas e neotestamentárias, podemos afirmar que o evangelista Marcos
constrói uma eclesiologia fundada na esteira da compreensão judaica do povo
de Israel como “povo de Deus” e “nação santa”. Sua eclesiologia implícita exige
dos leitores um olhar atento para percebê-la.
Uma vez que se percebe essa eclesiologia é possível também notar a
marca da mentalidade judaica de reflexão, interpretação e atualização da
Escritura, que impregnava a mente do autor evangélico, e mostrar como seu
modo semita de refletir lhe permite trabalhar com os métodos de sua tradição,
embora em outra língua, para poder chegar ao seu ouvinte/leitor.
Podemos concluir ainda que, em sua eclesiologia, Marcos trabalha com
o modelo inserção-substituição, seguindo mais de perto a segunda regra
(middot) de Hillel: a lei da analogia. Marcos, como Lucas e João, não veem a
necessidade de nomear, ainda, esse grupo dos seguidores de Jesus com o nome
de ekklēsía, pois ele está em formação junto ao Mestre. A rigor, os seguidores
de Jesus ainda não são a ekklēsía toû teoû.
Dentro do projeto narrativo dos evangelhos, eles estão numa etapa
anterior que se consumará após os eventos da Páscoa, agora ressignificada como
memorial. Só após a celebração do pacto na morte e ressurreição do messiascordeiro, esse grupo será plenamente a ekklēesía toû teoû, o novo povo da nova
aliança!
Os primeiros cristãos têm muito a nos ensinar a respeito de eclesiologia.
O primeiro ensinamento é o da abertura de mente e de espírito para
compreender o tempo presente e suas necessidades e, a partir de nossa
tradição, sermos capazes de acolher as necessidades dos novos membros da
ekklēesía toû teoû.
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O segundo tem caráter mais prático pois indica a principal categoria da
eclesiologia neotestamentária: a de povo de Deus. Corrobora essa afirmação o
fato de que só a Primeira Carta de Pedro desenvolve uma reflexão eclesiológica
retomando a categoria de “nação santa”, compreendida principalmente pela
noção de separação, distinção em relação aos outros grupos.
Por outro lado, a expressão “povo de Deus” evoca a experiência
primária, ou seja, a dos chamados incondicionalmente a seguir Jesus, pobre e
itinerante, sedento por resgatar aqueles que estavam à margem. Não havia prérequisitos para fazer parte desse novo povo. Era a pertença a esse povo que
tornava suas vidas e comportamentos distintos.
As reflexões eclesiológicas do evangelista são um convite contínuo a
que nós, também hoje, façamos a reflexão teológica que o nosso tempo exige,
sem medos exagerados nem apegos estéreis, e que, com o dinamismo do
Espírito, sejamos verdadeiramente “povo de Deus”, conquistado pelo amor e
entrega do Cristo Jesus.
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Acesso em 12 de maio de 2019.
Fronteiras, Recife, v. 2, n. 2, p. 152-174, jul./dez., 2019
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Trabalho submetido em 28/06/2019.
Aceito em 24/09/2019.
Rita Maria Gomes
Doutora em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia - FAJE, com estágio
doutoral “sanduíche” na Université Catholique de Louvain (Bélgica). Atualmente é
professora e pesquisadora permanente do Programa de Pós-graduação em Teologia e da
graduação na Universidade Católica de Pernambuco - UNICAP. Email:
ritamarianj@gmail.com
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