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O deráš eclesiológico no Evangelho segundo Marcos

2019, Fronteiras - Revista de Teologia da Unicap

O presente artigo tem por objetivo mostrar como o evangelista Marcos, utilizando os métodos exegéticos do judaísmo apresenta sua eclesiologia. Essa difere das apresentadas pelos outros evangelistas, sobretudo, por seu modo próprio de narrar. Marcos nunca diz abertamente o que deseja afirmar, mas dá condições para que seu leitor o compreenda e faça as inferências que ele deseja. Em vista disso, a metodologia seguida nestas páginas é da análise de alguns textos-chave para a compreensão da eclesiologia de Marcos, bem como a análise bibliográfica referente aos métodos exegéticos judaicos. O percurso inicia-se com a discussão sobre a questão terminológica, base da temática: a ekklēsía. Em seguida, trata dos métodos exegéticos judaicos, para finalmente, demonstrar como Marcos utiliza a tradição recebida. O resultado desse percurso é uma rica panorâmica da visão eclesiológica do segundo evangelho que, por sua dinâmica, pode iluminar as experiências e reflexões contemporâneas de uma Igreja ...

O deráš eclesiológico no Evangelho segundo Marcos The ecclesiological derash in the Gospel according to Mark Rita Maria Gomes Universidade Católica de Pernambuco - UNICAP, Brasil Resumo Palavras-chave O presente artigo tem por objetivo mostrar como o evangelista Marcos, utilizando os métodos exegéticos do judaísmo apresenta sua eclesiologia. Ela difere das apresentadas pelos outros evangelistas, sobretudo, por seu modo próprio de narrar. Marcos nunca diz abertamente o que deseja afirmar, mas dá condições para que seu leitor o compreenda e faça as inferências que lhe apetecem. Em vista disso, a metodologia seguida nestas páginas é a análise de alguns textos-chave para a compreensão da eclesiologia de Marcos, bem como a análise bibliográfica referente aos métodos exegéticos judaicos. O percurso inicia-se com a discussão sobre a questão terminológica, base da temática: a ekklēsía. Em seguida, trata dos métodos exegéticos judaicos, para, finalmente, demonstrar como Marcos utiliza a tradição recebida. O resultado desse percurso é uma rica panorâmica da visão eclesiológica do segundo evangelho que, por sua dinâmica, pode iluminar as experiências e reflexões contemporâneas de uma Igreja em saída. Midraš. Povo de Deus. Aliança. Discípulos. Igreja. Abstract Keywords This article aims to show how the evangelist Mark, using the exegetical methods of Judaism, presents his ecclesiology. This differs from those presented by the other evangelists and, above all, by their own way of narrating. Mark never openly says what he wishes to affirm, but he gives conditions for his reader to understand him and make the inferences he wishes. In view of this, the methodology followed in these pages is the analysis of some key texts for the understanding of Mark's ecclesiology, as well as the bibliographical analysis regarding Jewish exegetical methods. The journey begins with the discussion on the terminological question, the basis of the theme: the ekklēsía. He then discusses Jewish exegetical methods, to finally demonstrate how Mark uses the received tradition. The result of this journey is a rich overview of the ecclesiological vision of the second gospel which, by its dynamics, can illuminate the contemporary experiences and reflections of an outgoing Church. Midrash. God’s people. Covenant. Disciples. Church. https://doi.org/10.25247/2595-3788.2019.v2n2.p152-174 | ISSN 2595-3788 Esta obra está licenciada sob uma licença Creative Commons Atribuição 4.0 Internacional. 153 | O deráš eclesiológico no Evangelho segundo Marcos Introdução Uma primeira palavra sobre o objeto deste artigo, quiçá a mais importante, tenha a ver com o porquê voltar à Escritura para refletir sobre o tema da eclesiologia, ou melhor, das eclesiologias. Em nosso tempo, como outrora, convivemos com muitas eclesiologias, mas, no atual momento, parece que os modelos eclesiológicos mais significativos são conflitantes. Assim, urge voltar ao movimento cristão inicial perpetuado nos textos bíblicos para tentar iluminar nossa vida eclesial um tanto turbulenta de agora. Uma segunda, tem a ver com a noção básica de eclesiologia que nos permitirá fazer um caminho. Buscamos o delineamento dessa noção a partir de algumas expressões recorrentes no Antigo e no Novo Testamento, tais como “povo de Deus”, “nação santa” etc, bem como de textos que aludam a essas designações do povo de Israel, compreendido a partir de sua relação única com o Deus que a ele se revela e o libertou e, a partir daí, fê-lo seu povo eleito. A consideração etimológica do termo ekklēsía não será, portanto, a única via de acesso, uma vez que esse termo é abundante no Antigo Testamento (AT), mas, praticamente, ausente nos Evangelhos. Uma terceira palavra versa sobre a metodologia que nos guiará, pois buscamos apresentar a eclesiologia bíblica a partir do método exegético rabínico do deráš aplicado ao Evangelho segundo Marcos. Mas, antes de ensaiar uma aplicação do método ao texto evangélico faremos uma revisão bibliográfica para apresentar o estado da questão metodológica da exegese rabínica em sua relação com os escritos do Novo Testamento. Para tanto, nos ajudarão, particularmente, a obra de Agustín del Agua Pérez, El método midrásico y la exégesis del Nuevo Testamento e o artigo de Alejandro Díez Macho, “Deraš y exégesis del Nuevo Testamento”. Assim, temos quatro momentos: primeiro, uma abordagem etimológica do termo que deverá nos conduzir à noção essencial do tema a ser tratado nestas páginas; segundo, uma apresentação da terminologia e do modo próprio de estudar e explicar a Sagrada Escritura pelos mestres judeus; terceiro, a consideração do método rabínico derášico, presente no texto Fronteiras, Recife, v. 2, n. 2, p. 152-174, jul./dez., 2019 Rita Maria Gomes | 154 neotestamentário; e, por fim, uma demonstração básica da releitura eclesiológica derášica de Marcos. Esse último momento consta de três etapas: o modelo inserção-substituição, os Doze e a Nova Aliança. A etimologia do termo neotestamentário ekklēsía e o seu uso vetero e O termo grego ekklēsía traduz o hebraico qahal. Encontramos 217 ocorrências desse termo em 210 versículos da Sagrada Escritura, sendo 114 ocorrências no Novo Testamento em 111 versículos e 103 ocorrências no texto grego da LXX em 99 versículos1. A versão grega do Antigo Testamento reduziu bastante o uso do termo, pois traduziu o hebraico qahal ora por ekklēsía ora por synagōgē. Uma comparação mais cuidadosa desses usos seria bastante iluminadora, mas nos levaria muito longe do objetivo deste artigo, por isso, não nos deteremos nesses detalhes técnicos aqui. Pois bem, o termo hebraico qahal, que normalmente é traduzido por “assembleia”, vem da primitiva raiz qhl, que pode significar “convocar” ou “reunir”, tanto por razões religiosas quanto políticas; para celebrar ou para preparar a guerra ou ainda para instaurar um julgamento (ALONSO SCHÖKEL, 1997, p. 573; STRONG, 2002, n. 6951). Os diversos textos veterotestamentários nos quais o termo aparece corroboram essa apresentação sumária de seu sentido. Então, como e quando esse vocábulo passa a ser um termo técnico para falar do povo como uma unidade relacionada com Deus? As ocorrências do termo ekklēsía, no Novo Testamento, não demonstram uma regularidade ou distribuição equitativa entre os textos. Dos quatro evangelhos apenas Mateus o utiliza três vezes em duas ocasiões (16,18; 18,17). Na obra lucana, ocorre algo curioso: não há ocorrências do termo no evangelho, mas é abundante no livro de Atos dos Apóstolos, contando vinte e três ocorrências. Nos outros escritos neotestamentários, o termo está presente, 1 No texto hebraico Massorético constam 162 ocorrências do termo qahal em 150 versículos. Dados coletados a partir de consulta ao BibleWorks, 2009, versão 8.0.013z.1. Fronteiras, Recife, v. 2, n. 2, p. 152-174, jul./dez., 2019 155 | O deráš eclesiológico no Evangelho segundo Marcos à exceção das cartas de Pedro e Judas, sendo maior a presença no Corpus Paulinum (ROLOFF, 2005, col. 1251). Segundo Roloff, o substantivo grego ἐκκλησία é o resultado da junção da preposição ek com o verbo kaleō e significaria “a coletividade dos chamados”. O sentido original foi modificado com o tempo e, “na época grega clássica e na do helenismo, ἐκκλησία é a expressão técnica para designar a assembleia nacional integrada pelos varões livres com direito a voto” (ROLOFF, 2005a, col. 1252; 2005b, p. 90-91). Esse tipo de definição supõe uma quase equivalência entre os termos dēmos e ekklēsia, como uma referência à soberania do povo no governo ateniense. No entanto, segundo Hansen (2010, p. 499), um estudo aprofundado dos termos e da democracia ateniense clássica demonstra que há uma distinção entre dēmos, ekklēsía e dikatērion. A soberania no governo ateniense não era de todo o povo (dēmos) e sim dos dikastai (jurados). Ele afirma: Os dikastai na dikasteria são descritos apenas como demos de filósofos e historiadores que eram hostis à democracia e preferiam usar demos no sentido de “pessoas comuns”, não no sentido de todo o povo. Como o conselho de quinhentos, a corte do povo era uma instituição separada e no século IV era a corte do povo e não a assembleia que era considerada a instituição política “soberana”. (HANSEN, 2010, p. 500) A principal questão para Hansen é que ele, diferente da maioria dos estudiosos da democracia ateniense, não toma os termos dēmos e ekklēsía como sinônimos. Para Hansen, não é a ekklēsia que tem poder para aprovar ou vetar um decreto, mas a demos (HANSEN, 2010, p. 507). Isso modifica um pouco a compreensão que se tinha do uso do termo no período clássico. Por sua vez, Korner (2015, p. 55) chama a atenção para o fato de que, na Grécia antiga, esse termo referia-se a uma assembleia civil temporária dos homens, “demos”, reunidos en ekklēsia. Diz ainda que esse termo não era usado para referir-se a grupos permanentes nos círculos greco-romanos. Nesse sentido, parece concordar com Hansen que a ekklēsia é distinta do dikastērion (corte). Fronteiras, Recife, v. 2, n. 2, p. 152-174, jul./dez., 2019 Rita Maria Gomes | 156 Esse sentido político encontrado na origem do termo pode explicar o fato de os responsáveis pela versão dos LXX privilegiarem esse termo na hora de traduzir o hebraico qahal. No entanto, o Novo Testamento usa ekklēsia para referir-se a um grupo permanente. Desse modo, percebe-se que, nos textos neotestamentários, o termo assume, de modo unificado, os dois sentidos apresentados na LXX: a ekklēsia e a synagōgē, ou seja, esse grupo se entende como uma realidade sociorreligiosa (KORNER, 2015, p. 56). Há, portanto, uma concepção tipicamente cristã do termo. Assim, entende-se que, para os autores neotestamentários, o termo ekklēsia tem mais que um caráter político e é seu aspecto teológico o que melhor caracteriza a compreensão do grupo indicado pelo termo. Nesse sentido, a tradução mais indicada seria “comunidade” (ROLOFF, 2005a, col. 1252). Só com o passar do tempo, o termo passou a ser o preferido para designar o grupo dos seguidores de Cristo (KORNER, 2015, p. 56). Existe uma expressão que pode iluminar um pouco a questão do uso do termo pelos primeiros seguidores de Jesus Cristo: ekklēsía toû Theoû. Essa expressão é encontrada em alguns textos paulinos mais antigos 2. Segundo Roloff, alguns comentadores consideram que a expressão traduzia o hebraico qehal ēl atestado no judaísmo apocalíptico -1QM 4,10; 1QS 1,25 (2005a, col. 1253; 2005b, p. 90). Ainda de acordo com Roloff, a expressão primitiva ekklēsía toû Theoû (qehal ēl) “foi antes de tudo a denominação que se aplicou a si mesma a comunidade primitiva de Jerusalém, formada depois da Páscoa. [...] Tinha consciência de ser o grupo recrutado e escolhido por Deus, que estava destinado por ele a ser o centro e o ponto de cristalização do Israel escatológico chamado agora por Deus” (2005a, col., 1254; 2005b, p. 91). Esse uso indica já a apropriação cristã dos usos de ekklēsia e synagōgē. Mas o uso do recurso filológico leva à compreensão de que a ausência do termo nos evangelho, e em algumas cartas aponta para uma reflexão teológica que supõe um estágio anterior à constituição da “comunidade cristã”. 2 Cf. 1Cor 1,2; 10,32; 11,22; 15,9; 2Cor 1, 1; Gl 1, 13; no plural 1Cor 11, 16.22; 1Ts 2, 14; 2Ts 1,4. Fronteiras, Recife, v. 2, n. 2, p. 152-174, jul./dez., 2019 157 | O deráš eclesiológico no Evangelho segundo Marcos Nos evangelhos, a ekklēsia ainda não está formada, mas em via de formação junto ao seu Mestre. Por isso, percebe-se que a análise filológica não é a única forma de compreender a eclesiologia neotestamentária. Aliás, mesmo onde o termo não aparece, muitas vezes, está patente uma perspectiva eclesiológica que só pode ser apreendida a partir de outros modos de aproximação e exame do texto bíblico. É a isso que se propõem essas páginas e, por isso, buscamos apoio nas técnicas exegéticas dos antigos rabinos. Passamos agora a considerar um pouco o método exegético do deraš. Compreendendo a terminologia rabínica: deraš ou midraš? Começamos nossa reflexão sobre o método de interpretação aplicado ao texto neotestamentário justificando a escolha do método derásico. Do mesmo modo que Pérez, temos segurança que a herança judaica ultrapassa o limite dos livros do Antigo Testamento e mesmo os do Intertestamento. A tradição cristã herdou algo maior no qual se encaixam as tradições escritas e orais: uma mentalidade, uma visão de mundo e também alguns costumes (DEL AGUA PÉREZ, 1985, p. 33). É por compartilharmos uma cosmovisão que expressamos, até certo ponto, nossas experiências de fé com o mesmo tipo de estrutura linguística simbólica. Por isso, estamos autorizados a interpretar nossos textos com os mesmos recursos interpretativos dos antigos, uma vez que os textos foram consignados dentro desse padrão. Ao processo de interpretação dos textos bíblicos, o judaísmo antigo deu o nome de midraš. Esse termo é uma derivação da raiz hebraica drs de onde vem daraš que significa “buscar”, investigar” (SANTALA, 2002, p. 15). Del Agua Pérez (1985, p. 33) buscou o sentido do termo midraš partindo das duas ocorrências da palavra na Bíblia Hebraica, a saber, em 2Cr 13,22 e 24,27 e recorda que, em ambos, o sentido é o de “história resultante de investigação dos fatos ocorridos no tempo”. Nesses textos, o sentido está muito próximo do Fronteiras, Recife, v. 2, n. 2, p. 152-174, jul./dez., 2019 Rita Maria Gomes | 158 encontrado no livro de Reis quando, ao final de cada referência à história de um rei, remete-se aos Anais dos reis de Judá ou aos Anais dos reis de Israel. Santala pensa que a melhor definição de midraš foi dada por Renée Bloch no Dictionnaire de la Bible. Ali, Bloch define midraš como “reflexão homilética ou meditação sobre a Bíblia que procura reinterpretar ou atualizar um dado texto do passado para as circunstâncias presentes. Ele penetra o texto e o faz relevante para a situação contemporânea” (SANTALA, 2002, p. 13). Mas, Santala não vai além disso porque seu intuito é trabalhar a obra literária midrásica de Rute e, por isso, apenas faz a distinção entre os termos daraš, midraš e pešer para, em seguida, assumir o termo Midraš em referência a uma obra específica na qual se utilizou a técnica do deráš. Domingo Muñoz Léon (1987, p. 20) define deraš como “o uso atualizante da Escritura”. Mas, antes diz que entende o deraš como “a forma de busca, aproximação, recurso e tratamento a respeito do texto bíblico por parte do judaísmo e do cristianismo nascente” (MUÑOZ LÉON, 1987, p. 19). Ele vai além e afirma que “‘Derás’ implica fundamentalmente o emprego, interpretação e atualização da Escritura [...] para todos os tempos e com plenitude de sentido, especialmente o sentido messiânico” (MUÑOZ LÉON, 1987, p. 19). Para Léon, a atualização é a tarefa principal do deráš e está alicerçada em dois princípios fundamentais: a plenitude de sentido do texto bíblico e seu valor para todos os tempos (MUÑOZ LÉON, 1987, p. 19). Com isso, aproximamo-nos da importância desse método para a compreensão do Novo Testamento. Podemos, então, resumir a questão assumindo, com Del Agua Pérez, que o termo midraš refere-se à exegese e à hermenêutica judaica. “É exegese enquanto busca de sentido da Bíblia, e hermenêutica, enquanto utiliza técnicas e procedimentos determinados” (1985, p. 34). Diríamos que é exegese porque busca o sentido da Escritura e é também hermenêutica porque, ao fazer isso, atualiza o texto, criando novos sentidos. Contudo, alertamos que a distinção entre exegese e hermenêutica é algo que não era claro ao judaísmo antigo porque essa conceituação é nova. Nesse sentido, midraš não é um gênero literário e sim um método de interpretação e, portanto, faz-se presente em diversos gêneros literários do Fronteiras, Recife, v. 2, n. 2, p. 152-174, jul./dez., 2019 159 | O deráš eclesiológico no Evangelho segundo Marcos Antigo e do Novo Testamento (p. 35). Pela diversidade de sentido e de uso que esse termo assumiu, Díez Macho (1975, p. 37) propõe que se use o termo deraš para a exegese judaica antiga e o termo midraš para as obras judaicas nas quais se usa a exegese derásica. Pérez, por sua vez, propõe um uso distinto do termo midraš variando apenas a primeira letra. Sugere que se use o termo com M maiúsculo para referir-se as obras judaicas (midrashim) e o minúsculo para o método de interpretação. Díez Macho ainda faz outra distinção em relação ao termo deraš que tem a mesma ambiguidade do termo midraš. Ele diz: “Enquanto busca ou investigação do sentido da Bíblia, derash é o mesmo que exegese; enquanto utilização de alguns procedimentos determinados, derash é o mesmo que hermenêutica: é a hermenêutica antiga dos judeus e dos cristãos primitivos procedentes do judaísmo” (DÍEZ MACHO, 1977, p. 7). Aqui seguiremos, a partir de agora, a designação de Díez Macho que, apesar de ser uma obra antiga, mantém sua atualidade. Assumimos o termo deraš para a exegese/hermenêutica judaica e midraš para as obras resultantes do deraš. A exegese judaica tinha duas vertentes bem claras: o que Israel devia “ser” foi chamado haggadah e o devia “fazer” foi denominado halakkah. Simplificando as coisas, uma abordagem da Escritura buscava nas narrativas a compreensão de quem Israel era e quem deveria ser, enquanto a outra preocupava-se com o modo de ser do povo, como devia comportar-se. A atualização desse modo de agir do povo exigia muitas vezes a criação de novas normas e uma nova legislação que devia necessariamente ser inspirada nas normas presentes na Escritura. (DEL AGUA PÉREZ, 1985, p. 45). Para a consideração da Escritura nessas duas linhas maiores, haggadah e halakkah, os antigos partem de alguns princípios básicos, a saber, a unidade da Escritura, a unidade entre as partes da Escritura, a Escritura se explica por si mesma e a pluralidade de sentidos da Bíblia. Para Del Agua Pérez a observação da leitura sinagogal torna indiscutível a unidade da Escritura porque na Sinagoga “se lê um trecho do Pentateuco, o seder ou parashá; a partir do séc. II a.C. se lê também um trecho dos profetas, a haftará; e, em seguida, se fazia a homilia (derashá)”. (DEL AGUA PÉREZ, 1985, p. 49) Dentro dessa Fronteiras, Recife, v. 2, n. 2, p. 152-174, jul./dez., 2019 Rita Maria Gomes | 160 compreensão da unidade da Torah foi criado o haruz, conhecido como “colar de pérolas”, um procedimento para unir as três partes da Escritura (DEL AGUA PÉREZ, 1985, p. 49). Uma vez que se assegura a unidade de toda a Escritura, e inclusive de suas partes, pelo recurso amplo das mais diversas analogias, chega-se tranquilamente à afirmação de que a Escritura explica a Escritura. Isso é afirmado pela “Mekilta a Ex 15,8 diz ‘A Torah se explica pela Torah’, de acordo com uma regra de R. Ismael, já existente nos tempos de Hillel”. Segundo Del Agua Pérez (1985, p. 52), de acordo com essa regra, já não existe nem antes nem depois e que, por isso, o exegeta pode prescindir da cronologia. Esse tipo de exegese, chamada serés (castração), choca-se com a nossa exegese moderna porque permite que se estude o texto fora de seu contexto histórico, entre outras questões que podem ser observadas. Até agora tratamos das questões mais gerais que fundamentam a investigação da Escritura pelos judeus, devemos passar a analisar os procedimentos concretos dessa exegese. As regras da exegese judaica são chamadas middot. Del Agua Pérez (1985, p. 55), citando Heinemann, diz que “os métodos da exegese haggádica se agrupam em duas categorias: historiografia criadora e filologia criadora”, sendo que a primeira tem por finalidade esclarecer o texto bíblico de modo a torná-lo relevante para a vida de ouvintes e leitores, e a segunda parece ter um caráter mais técnico e voltado para a compreensão do texto por ele mesmo (DEL AGUA PÉREZ, 1985, p. 55). O método derašico rabínico e o Novo Testamento Para entendermos o uso do deraš pelos autores neotestamentários precisamos recordar que o princípio fundamental no cristianismo para a leitura ou interpretação da Escritura é o “evento Cristo” e não o texto bíblico como é para os judeus. Uma vez assegurado o ponto de partida, podemos falar dos três tipos ou modelos de recurso derásico ao Antigo Testamento: promessa- Fronteiras, Recife, v. 2, n. 2, p. 152-174, jul./dez., 2019 161 | O deráš eclesiológico no Evangelho segundo Marcos cumprimento, também chamado “prefiguração-realização”; oposição- contraposição e inserção-substituição. É corrente a afirmação do modelo promessa-cumprimento porque em vários textos se afirma “para que se cumprisse a Escritura...” (cf. Jo 17,12; 19,23-24; Lc 4,18-21; At 1,16). E ainda quando não há uma afirmação clara, como a citada acima, a apresentação de Jesus como o messias esperado pelo uso de textos messiânicos revelam o esquema de promessa-cumprimento. O segundo modelo, oposição-contraposição, aborda sobretudo questões halakkicas e o melhor exemplo encontra-se na exortação mateana que segue os macarismos do discurso da montanha. Ali, Jesus relê alguns pontos da Lei de modo a radicalizar as exigências. Mateus retoma três importantes ensinamentos do Decálogo nessa exposição. O primeiro e mais importante é: “não matarás”. Jesus radicaliza esse mandamento ao dizer que não só quem matar vai responder no tribunal, mas também aquele que tratar mal o irmão (Mt 5,21,22, cf. Ex 20,13). O segundo é: “não cometerás adultério”. A esse Jesus radicaliza afirmando que só olhar com desejo de possuí-la já cometeu adultério” (Mt 5,27-28; cf. Ex 20,14) e o terceiro, “não jurarás falso” que, na radicalização, torna-se “não jureis de modo algum” (Mt 5,33-34; cf. Ex 20,16). Chamo atenção ainda para a modificação de Lv 19,18 com uma interpretação corrente, “amarás o teu próximo e odiarás o teu inimigo”, que é seguido do chamado a amar os inimigos e orar pelos que os perseguem (Mt 5,43-44). O terceiro modelo derásico é o da inserção-substituição que trabalha com a ideia do distanciamento ou modificação de algumas importantes instituições antigas. A principal ou mais fundamental delas é a Aliança e, partindo dela, vai se afirmar outras. Há uma relação de continuidadedescontinuidade entre a aliança nova e a antiga, entre o povo de Deus da antiga aliança e o novo povo de Deus. É com base nessa continuidade-descontinuidade que analisamos agora a reflexão eclesiológica de Marcos a partir do modelo inserção-substituição. Fronteiras, Recife, v. 2, n. 2, p. 152-174, jul./dez., 2019 Rita Maria Gomes | 162 O deraš inserção-substituição na “eclesiologia” de Marcos A eclesiologia de Marcos está construída segundo o modelo derásico inserção-substituição assentado na noção de “povo de Deus” indicada no texto marcano pela expressão “os Doze”. Essa expressão refere-se diretamente aos discípulos, mas só faz sentido porque estes foram vistos como a “substituição” dos doze filhos de Jacó que constituem o povo de Deus da antiga Aliança. Vários textos veterotestamentários trazem listas com os nomes dos filhos Jacó. São eles: Rúbem, Simeão, Levi, Judá, Zabulon, Issacar, Dã, Gad, Aser, Neftali, José e Benjamin (Gn 35,22b-26; Gn 46,8-27). Em Gn 35,22b se atesta “os filhos de Jacó foram em número de doze”. Um caso especial é o relato da bênção de Jacó (Gn 49,1-28), porque ali ele abençoa seus filhos e essa benção é construída de modo a mostrar algo sobre o destino de cada um dos filhos. Porém, no capítulo anterior, Jacó abençoa os filhos de José e diz que eles serão seus filhos como o são Rúben e Simeão, e ainda que os filhos que ele gerou depois de Efraim e Manassés serão de José (Gn 48,5-6). José morre e Levi não tem parte na herança da terra, isso faria que os filhos de Jacó contassem dez e não doze. Porém, os filhos de José, a partir da declaração de Jacó, passam a ser seus filhos e tomam o lugar correspondente a Levi e a José. O número “doze” está assegurado. Aqui está formado o povo de Deus. Desse modo, a relação do número “doze” com os filhos de Jacó aparece como algo importante. A partir daí, passam a ser sinônimas as expressões “doze tribos” e “filhos de Jacó”. Ao povo, formado da descendência de Jacó, é profetizado que ele seria um “reino de sacerdotes e uma nação santa” (Ex 19,6). Sabemos que a profecia foi dirigida aos filhos de Jacó porque em Ex 19,3 é dito: “assim dirás à casa de Jacó e declararás aos filhos de Israel”. À nomeação “filhos de Jacó” e “doze tribos” se une outra, a de “povo de Deus” pela profecia. Tudo isso é considerado pelos autores neotestamentários na hora de explicar a nova configuração da ação salvífica de Deus através de Jesus Cristo. Por isso, eles se utilizarão de termos consagrados para falar do antigo Israel para apresentar a Igreja, novo Fronteiras, Recife, v. 2, n. 2, p. 152-174, jul./dez., 2019 163 | O deráš eclesiológico no Evangelho segundo Marcos povo de Deus, tais como: povo, reino, aliança, Lei (DEL AGUA PÉREZ, 1985, p. 92) Em 1Pd 2,9 é retomada a mesma expressão ethnos (nação santa) de Ex 19,6 para referir-se aos cristãos. Na carta de Pedro, agrega-se a essa expressão, outra muito parecida “raça eleita”, além de “sacerdócio régio”, revelando que o horizonte de fundo é o mesmo do texto antigo: a aliança. Curiosamente na Carta de Pedro, onde se encontra claramente uma eclesiologia fundada na promessa divina aos filhos de Israel, o termo não aparece. Enfim, a teologia da aliança supõe a eleição, por parte de Deus, daquele povo. Isso é um uso derásico dos componentes da antiga aliança para definir a nova aliança em Cristo, indicando que a conexão identitária entre o novo Israel e o antigo é da ordem da história da salvação (DEL AGUA PÉREZ, 1985, p. 91-92). Os Doze: a base do novo povo de Deus A base de todas essas leituras derásicas dos componentes da eclesiologia veterotestamentária é a afirmação de que a Igreja é o “novo povo de Deus”. Essa asseveração está fundamentada na definição dos discípulos como “os Doze”. Por isso, recorremos ao Evangelho segundo Marcos para ver como o evangelista vai processualmente apresentando aqueles que formarão o “novo Israel”. Como Marcos não é um autor que diz logo o que quer, e prefere mostrar, necessitamos considerar mais que os textos nos quais a palavra “doze” aparece. Isso significa que é necessário compreender o desenrolar da trama marcana que não se dá de modo linear, mas em espiral. Marcos não diz tudo de uma vez, mas vai compondo o “desenho” dos personagens aos poucos. Seguindo sua lógica nos deparamos com três textos incontornáveis: 1,16-20; 2,13-14 e 3,13-19. Porém, antes de analisarmos os textos necessitamos compreender o lugar que eles ocupam na grande trama marcana porque isso nos dará luzes para entende-los em profundidade. Essas três passagens encontram-se em lugares estratégicos da primeira seção do Fronteiras, Recife, v. 2, n. 2, p. 152-174, jul./dez., 2019 Rita Maria Gomes | 164 evangelho de Marcos: a seção do mar, demonstrada na estrutura a seguir3. Mc 1,16-20 caminhando à beira do mar da Galileia [v. 17 e vos farei pescadores de homens] Mc 1,21 E entraram em Cafarnaum [...] entraram na sinagoga e ali ensinava. Mc 1,34 E curou a muitos [...] e expulsou muitos demônios Mc 2,1 E entrando novamente em Cafarnaum Mc 2,13 E saindo novamente para a beira-mar [...] e lhes ensinava Mc 2,18 – 3,6 E estavam os discípulos de João e dos fariseus jejuando [...] sábado Mc 3,7-19 Jesus retirou-se com os discípulos [...] para o mar [...] e “fez” doze Mar da Galileia Mc 3,20-35 os escribas vindos de Jerusalém diziam [...] estás possuído por Beelzebul Mc 4,1 E novamente começou a ensinar à beira-mar Mc 4,35-36 Passemos para a outra margem [...] no barco Mc 5,1 E foram para outra margem do mar Mc 5,21 E novamente Jesus atravessou no barco para a outra margem Mc 6,45 Subirem no barco e seguirem para outra margem Mc 8,10.13 subiram no barco [...] novamente subiram e foram para a outra margem Essa seção é chamada “seção do mar” porque todos os acontecimentos ali narrados estão de algum modo relacionados com o “mar da Galileia”. Essa seção está organizada em duas partes desiguais. A primeira está demarcada pela referência ao “mar”, e a segunda, pelas referências ao barco e a outra margem, entenda-se, do mar. Podemos considerar também que a seção se organiza em três ciclos: um ciclo de Cafarnaum, um ciclo da comunidade e um ciclo do pão. Nossos textos encontram-se na primeira parte que se organiza em dístico. O primeiro e o segundo texto estão nas extremidades iniciais do dístico, enquanto o terceiro encontra-se no centro do segundo momento. Mas, o primeiro e terceiro texto podem formar também uma espécie de inclusão, na qual o segundo texto ficaria no centro. O indício dessa inclusão seria o uso do verbo poieō presente em 1,17 e em 3,14.16. A ligação com 2,13-14 se dá por meio do chamado ao seguimento lançado por Jesus, presente nos três textos. Mc 1,16-20 traz o chamado dos quatro primeiros discípulos junto ao mar da Galileia. Eles são todos pescadores. É um chamado em duas etapas e a cada vez Jesus chama dois pares de irmãos. O que Jesus fará deles está presente no primeiro par de chamados. Em ambos, diz-se que “imediatamente o seguiram”. Em Mc 2,13-14, novamente Jesus está junto ao mar, literalmente “à beira3 Esse esquema é parte da estrutura proposta para o Evangelho de Marcos em Marcos: o evangelho do messias inaudito [no prelo]. Fronteiras, Recife, v. 2, n. 2, p. 152-174, jul./dez., 2019 165 | O deráš eclesiológico no Evangelho segundo Marcos mar”. Como antes vira os pescadores, agora vê o coletor de impostos em sua banca. Ele o chama e o mesmo acontece: ele o segue. Aqui temos uma novidade, descontinuidade, em relação aos componentes desse “novo povo” que se formará em estreita vinculação com Jesus. Esse povo não será formado apenas de “judeus piedosos”, incluirá também os pecadores públicos. Isso será confirmado pelo texto da “constituição dos Doze” (Mc 3,1319), que analisaremos em pormenores. Esse é o texto que dá nome ao ciclo. Essa perícope tem alguns problemas de crítica textual, mas nada muito significativo. A única que merece ser referenciada é a que informa que os discípulos foram chamados apóstolos [kai apostolous ōnomasein]. Os testemunhos a esse respeito não são muito importantes, por isso, não aparece na maioria das traduções. O texto começa dizendo que Jesus subiu a montanha e essa é primeira vez que a montanha é citada em Marcos. Ela será referida mais quatro vezes (Mc 6,46; 9,2; 9,9 e 11,23) e apenas em uma das menções não tem ligação simbólica com Deus. A montanha tem papel simbólico como lugar de encontro com Deus. É sobre a montanha que Jesus chama a si “os que ele quis”. Não existe outro critério para fazer parte desse grupo que a vontade de Jesus. Ele “fez” doze. O texto não dá nenhuma justificativa direta nem para a escolha de doze nem para aqueles escolhidos. Mc 3,13-19 constitui-se como a instauração da comunidade dos seguidores de Jesus. O que muda a partir de agora em relação aos discípulos? Até esse momento, os discípulos eram aqueles primeiros chamados: Simão e seu irmão André, Tiago e João [filhos de Zebedeu] e Levi, o cobrador de impostos. O grupo estabelecido por Jesus tem agora dupla finalidade: ficar com Jesus e ser enviado. Insistimos, primeiro, que esse grupo é algo que Jesus faz, pois, o verbo ποιέω foi usado no chamado dos dois primeiros discípulos e novamente agora para falar dos doze. Isso demonstra um quê de oficial, de formal. Em segundo, esse grupo feito por Jesus deve estar com ele e ser enviado a pregar, embora não se informe ainda o teor dessa pregação. Para realizar sua missão, terão o poder [έξουσία] de expulsar os demônios. Isso significa que esse grupo agora partilha da mesma autoridade de Jesus porque ele assim o quis. Fronteiras, Recife, v. 2, n. 2, p. 152-174, jul./dez., 2019 Rita Maria Gomes | 166 Ao final, o texto, nos dá a lista dos Doze eleitos: Simão, que a partir de agora vai ser chamado Pedro, Tiago e João, filhos de Zebedeu, que como Simão, recebem um outro nome, o de Boanerges [filhos do trovão], André, Filipe, Bartolomeu, Mateus, Tomé, Tiago, filho de Alfeu, Tadeu, Simão, o cananeu, e Judas Iscariotes. O texto traz em destaque os três primeiros: Pedro, Tiago e João. Todos os outros, a partir de André, tem apenas os seus nomes citados. Estranhamente no grupo “oficial”, que Jesus “faz”, o nome de André, o irmão de Simão, vai parar no meio dos outros nomes sem nenhuma referência especial. Na lista aparece um outro “filho de Alfeu, Tiago” e desaparece o “Levi, filho de Alfeu”. Algumas observações nos ajudam em nosso caminho. A primeira delas tem a ver com a referência à montanha, pois ela é um motivo importante da tradição judaica, presente nos textos veterotestamentários. É patente que Marcos usa conscientemente este motivo literário porque nessa seção de seu evangelho a centralidade é o mar e não a montanha que, aliás, utiliza tão pouco. É na montanha que Moisés fala com Deus e é lá que recebe as tábuas da Lei, base da Aliança de Deus com o povo de Israel. Essa simples mudança de cenário no texto evangélico evoca a perícope do Sinai, que corresponde aos textos que iniciam em Ex 19,1-2, quando os israelitas chegam ao Sinai e acampam diante da montanha. Ali permanecem um ano inteiro e só levantam acampamento em Nm 10,11-12. Com isso, temos um grande espaço narrativo que abarca a segunda metade do livro do Êxodo, o livro do Levítico inteiro e o primeiro terço do livro de Números. A perícope do Sinai representa a formação do povo como povo de Deus. É lá que eles firmam a aliança com Deus através de Moisés e se comprometem a viver segundo a vontade de Deus seguindo suas leis e mandamentos. Tudo isso é evocado com a simples referência à montanha e o chamado desses doze, porque doze eram os filhos de Jacó a quem Deus prometeu que seriam um “reino de sacerdotes e uma nação santa”. Marcos não utiliza os termos característicos evocados antes, nem mesmo o mais simples, o de “povo”, como é habitual nos outros autores do Novo Testamento, porque prefere fazer a demonstração para que seu leitor conclua aquilo que deseja manifestar. O seu leitor é perfeitamente capaz de fazer a associação e Fronteiras, Recife, v. 2, n. 2, p. 152-174, jul./dez., 2019 167 | O deráš eclesiológico no Evangelho segundo Marcos compreender que os doze são o novo povo que vem “substituir” as doze tribos de Israel. Mas isso ainda não é tudo. Marcos faz com que a constituição do novo povo de Deus se dê em íntima relação com o mar. É de conhecimento geral que o que Marcos chama “mar” é um lago, que Lucas indica como “lago de Genesaré” (Lc 5,1) e João chama “mar de Tiberíades” (Jo 21,1). Não é por ignorância que Marcos chama o lago de mar, mas por estratégia narrativa e com função teológica. E, seguindo a segunda das sete regras de Hillel (PÉREZ FÉRNANDEZ, 1996, p. 527; DEL AGUA PÉREZ, 1985, p.57-58), a da analogia, chegamos ao tema da aliança intimamente relacionada com o mar. A nova aliança: fundamento teológio do novo povo de Deus O povo de Israel se constitui como povo a partir da experiência de libertação da escravidão egípcia que tem como evento maior a travessia do “mar dos Juncos” (Ex 14,15-31). Esse transfundo não escapa ao gênio de Marcos. Como o povo foi “tirado do mar” e, em seguida, instituído povo de Deus, os discípulos, base do novo povo de Deus, são tirados do mar (os pescadores). Mas, diferente do povo da antiga Aliança, que fora instruído na Lei do Senhor por Moisés e devia ser o transmissor para as gerações futuras, agora o novo povo é instruído por Jesus, o Senhor, e partilha de sua autoridade para também instruir a outros. A aliança, base da noção de povo de Deus, só é citada em Marcos uma vez, em 14,24, na perícope da ceia na qual Jesus ressignifica a refeição pascal judaica. Novamente o deraš inserção-substituição se faz presente, mas, dessa vez, o faz conforme o habitual nos autores neotestamentários citando diretamente o motivo da aliança. Nesse texto, temos a alusão ao ritual mesmo da celebração da ceia da Páscoa. Isso significa que Marcos faz um deraš da aliança a partir do memorial da antiga aliança representada na ceia ritual da Páscoa judaica e não da celebração do pacto. O caráter substitutivo do deraš aqui é indicado pela presença do termo καινον (novo) referente ao vinho a ser bebido no Reino de Deus. Para uma nova aliança, um novo memorial. Santala (2002, p. 212) reflete sobre “a ceia do Senhor”, sobretudo a partir de João em conexão com o Midrash Ruth, e acentua três elementos que Fronteiras, Recife, v. 2, n. 2, p. 152-174, jul./dez., 2019 Rita Maria Gomes | 168 considera essenciais e responsáveis pela aproximação desses textos: “o pão, o vinho e a perspectiva eterna da refeição da Páscoa e da Sagrada Comunhão”. Mas, em seguida, recorda que o texto de Ex 12 ordena apenas três coisas para a mesa da Páscoa, a saber, o cordeiro, o pão sem fermento e as ervas amargas (SANTALA, 2002, p. 213). Isso revela que a celebração da Páscoa demorou muito para ser fixada num ritual e que ela foi celebrada de modo bastante livre em diferentes épocas e locais. O pão sem fermento é chamado “matzah”. Na celebração da Páscoa são dispostos três matzoth um sobre o outro. O do meio recebeu o nome de “afikoman” e uma parte dele é consumida durante a refeição e a outra parte, geralmente, é escondida ou reservada (SANTALA, 2002, p. 214). Santala recorda que o nome “afikoman” tem origem grega, pois deriva do verbo ἀφικνέομαι que significa “chegar” (SANTALA, 2002, p. 215; BALZ; SCHNEIDER, 2005, col. 549). Isso justificaria o simbolismo que esse pão recebeu em associação com a chegada do Messias. Coelho (1999, p. 60) diz que, depois que os comensais concluem a refeição, “as crianças buscam a sobremesa: o afikoman”, a metade da matzah que tinha sido escondida no começo da cerimônia. Normalmente, entende-se que como o afikoman fica escondido indica algo do caráter do Messias que se encontra “escondido”, ou seja, oculto, e que pode a qualquer momento se revelar. Segundo Tomaz e Pelegrini (p. 8), o afikoman era comido em memória do cordeiro pascal. Esse costume, no entanto, só se desenvolveu depois da destruição do templo. Santala, a esse respeito diz: De acordo com os Sábios, o próprio cordeiro pascal tinha que ser comido como a última porção de comida na noite do Seder. Desde a destruição do Templo, no entanto, a “parte oculta” de afikoman tornou-se um lembrete simbólico do sacrifício pascal e, portanto, não foi comido até o final (SANTALA, 2002, p. 215). Com isso, percebemos que esse é um caminho infrutífero para o que nos ocupa aqui, porque no tempo de Jesus ainda se comia o cordeiro. Segundo os relatos evangélicos, Jesus e seus discípulos celebraram a Páscoa, pois Mc Fronteiras, Recife, v. 2, n. 2, p. 152-174, jul./dez., 2019 169 | O deráš eclesiológico no Evangelho segundo Marcos 14,17 diz que “ao anoitecer daquele dia”, entenda-se, o dia da celebração da Páscoa, Jesus estava comendo com seus discípulos. Isso reforça a afirmação de um longo período até uma fixação do ritual do Sêder de Páscoa. Quanto ao vinho, eram servidos quatro cálices durante a refeição. Coelho (1999, p. 60) fala ainda de um quinto cálice, o de Elias, que era servido em memória do profeta que devia vir antes do da manifestação do messias. Cada um dos cálices servidos tem um nome e um simbolismo próprio no Sêder de Páscoa. O primeiro foi chamado qidush e significa “santificação”. O segundo, foi nomeado maggid (narrador) e com ele inicia-se o relato da Páscoa e essa narrativa tem o valor de “memorial”. O terceiro cálice chama-se “cálice da bênção”. Santala recorda ainda que entre o terceiro e o quarto cálice existe a proibição de tomar vinho para ressaltar a importância do quarto cálice. Esse é chamado “o cálice do reino” (SANTALA, 2002, p. 219-221). Pois bem, o texto de Marcos supõe do leitor o conhecimento dos principais elementos e etapas da ceia pascal, pois caso contrário não alcançará o tamanho da modificação que se estabelece ali. E o relato segue e, em Mc 14,22, novamente o texto informa “enquanto estavam comendo”. Tudo indica a duração da celebração da ceia que contava com vários momentos e alimentos significativos da história de libertação e redenção de Israel, seguindo provavelmente a tradição de Ex 12. Marcos só faz referência direta à comensalidade do pão e à bebida do terceiro cálice, o “cálice da bênção” ou “cálice da redenção”. Ao fazer Jesus dizer “isto é meu corpo” em relação à parte do afikoman que é distribuído entre os discípulos, diz que ele próprio, na condição de messias, se dá, se entrega por eles e pelo povo. Santala (2002, p. 214) recorda que “na linguagem sacrificial o cordeiro é chamado de ‫‘ גוף הפסה‬guph ha-pesah’, ‘o corpo da Páscoa’”, e que a palavra guph (corpo), no hebraico, significa a essência e a substância de alguma coisa. Isso indica que Jesus não está celebrando apenas o memorial antigo, mas de algum modo, está transformando aquele memorial em outro memorial. O evangelista modifica tudo quando faz Jesus referir-se a si mesmo em relação ao pão e ao vinho. Também modifica profundamente o memorial ao transferir para o pão a centralidade que antes estava no cordeiro. A transferência se dá pelo silêncio Fronteiras, Recife, v. 2, n. 2, p. 152-174, jul./dez., 2019 Rita Maria Gomes | 170 em relação à manducação do cordeiro e ao encerrar o relato de modo a levar o leitor a entender que os alimentos consumidos na ceia foram o pão e o vinho. Recordamos, o dito acima, que o cordeiro deveria ser o último alimento a ser comido nessa refeição e, no texto marcano, o último é o pão. Quanto ao vinho, quando Marcos diz que Jesus “pegou o cálice, deu graças” (Mc 14,23) ele abre nova senda. O vinho do terceiro cálice representava o sangue redentor do cordeiro da aliança e Jesus diz “este é o meu sangue da Aliança que é derramado”, remetendo ao ritual de aspersão do sangue do cordeiro sacrificado na celebração do pacto (Ex 24,8) e não somente ao sangue que fora colocado nos umbrais das casas na noite que antecedeu a libertação do Egito (Ex 12,7.13-14). Mas, isso ainda não é tudo! É comum a afirmação de que os evangelhos não fazem referência ao quarto cálice, contudo, isso é um engano. Marcos não é o único a fazer uma referência implícita ao quarto cálice, mas vamos considerar aqui apenas o texto marcano que é o objeto de nosso estudo. Em Mc 14,25, temos “Em verdade, não beberei mais do fruto da videira até aquele dia em que beberei o vinho novo no Reino de Deus”. Chamo a atenção primeiramente para o fato de que o texto grego traz tēs ēmeras ekeinēs, “naquele dia”, que é uma expressão muito parecida com outra em ekeinais tais ēmerais, “naqueles dias”. A segunda expressão aparece apenas quatro vezes em todo o Evangelho segundo Marcos (Mc 1,9; 8,1; 13,17 e 13,24). Dessas quatro, as duas últimas se encontram no capítulo amplamente conhecido como “escatológico”. Em 1,9, a expressão abre a cristofania do batismo. Em 8,1, abre o segundo relato da multiplicação dos pães e a posterior cristofania da transfiguração. Isso indica que essa expressão aponta para algo escatológico.4 De um modo levemente diferente, Marcos aponta para esse caráter escatológico do Reino de Deus. Não só pelo uso de “aquele dia”, mas pela referência ao quarto cálice, chamado “cálice do reino”. Não se relata que Jesus tenha bebido esse cálice, aliás, ele coloca claramente um tempo adequado para o “tomar esse cálice”, porque como realidade escatológica o Reino de Deus já se faz presente por sua presença no 4 Essa ideia também foi desenvolvida, num outro contexto, em Marcos, o evangelho do messias inaudito [no prelo] Fronteiras, Recife, v. 2, n. 2, p. 152-174, jul./dez., 2019 171 | O deráš eclesiológico no Evangelho segundo Marcos meio do povo, mas o Reino não se estabeleceu em plenitude. O Reino de Deus é também devir, é projeto. Os seguidores de Jesus têm por tarefa atualizar continuamente o Reino de Deus por sua atuação cotidiana, ao ajustar suas vidas ao projeto divino de salvação. Considerações finais Ao concluir essa incursão pelas tradições véterotestamentárias, rabínicas e neotestamentárias, podemos afirmar que o evangelista Marcos constrói uma eclesiologia fundada na esteira da compreensão judaica do povo de Israel como “povo de Deus” e “nação santa”. Sua eclesiologia implícita exige dos leitores um olhar atento para percebê-la. Uma vez que se percebe essa eclesiologia é possível também notar a marca da mentalidade judaica de reflexão, interpretação e atualização da Escritura, que impregnava a mente do autor evangélico, e mostrar como seu modo semita de refletir lhe permite trabalhar com os métodos de sua tradição, embora em outra língua, para poder chegar ao seu ouvinte/leitor. Podemos concluir ainda que, em sua eclesiologia, Marcos trabalha com o modelo inserção-substituição, seguindo mais de perto a segunda regra (middot) de Hillel: a lei da analogia. Marcos, como Lucas e João, não veem a necessidade de nomear, ainda, esse grupo dos seguidores de Jesus com o nome de ekklēsía, pois ele está em formação junto ao Mestre. A rigor, os seguidores de Jesus ainda não são a ekklēsía toû teoû. Dentro do projeto narrativo dos evangelhos, eles estão numa etapa anterior que se consumará após os eventos da Páscoa, agora ressignificada como memorial. Só após a celebração do pacto na morte e ressurreição do messiascordeiro, esse grupo será plenamente a ekklēesía toû teoû, o novo povo da nova aliança! Os primeiros cristãos têm muito a nos ensinar a respeito de eclesiologia. O primeiro ensinamento é o da abertura de mente e de espírito para compreender o tempo presente e suas necessidades e, a partir de nossa tradição, sermos capazes de acolher as necessidades dos novos membros da ekklēesía toû teoû. Fronteiras, Recife, v. 2, n. 2, p. 152-174, jul./dez., 2019 Rita Maria Gomes | 172 O segundo tem caráter mais prático pois indica a principal categoria da eclesiologia neotestamentária: a de povo de Deus. Corrobora essa afirmação o fato de que só a Primeira Carta de Pedro desenvolve uma reflexão eclesiológica retomando a categoria de “nação santa”, compreendida principalmente pela noção de separação, distinção em relação aos outros grupos. Por outro lado, a expressão “povo de Deus” evoca a experiência primária, ou seja, a dos chamados incondicionalmente a seguir Jesus, pobre e itinerante, sedento por resgatar aqueles que estavam à margem. Não havia prérequisitos para fazer parte desse novo povo. Era a pertença a esse povo que tornava suas vidas e comportamentos distintos. As reflexões eclesiológicas do evangelista são um convite contínuo a que nós, também hoje, façamos a reflexão teológica que o nosso tempo exige, sem medos exagerados nem apegos estéreis, e que, com o dinamismo do Espírito, sejamos verdadeiramente “povo de Deus”, conquistado pelo amor e entrega do Cristo Jesus. Referências Alonso SCHÖKEL, Luis. Dicionário bíblico hebraico-português. São Paulo: Paulus, 1997. BIBLEWORKS 8. BGT/LXX-BNT; WTT. BLOCH, Renée. Dictionnaire de la Bible, Supplément 6, 1957, p. 1263-1281. COELHO, Antônio Carlos. Encontros marcados com Deus. Expressão da unidade: as festas judaicas e o cristianismo. São Paulo: Paulinas, 1999. del Agua PÉREZ, Agustín. El método midrásico y la exégesis del Nuevo Testamento. Valencia, 1985. Díez MACHO, Alejandro. Deraš y exégesis del Nuevo Testamento. Serfard 35, 1975, p. 37-89. Fronteiras, Recife, v. 2, n. 2, p. 152-174, jul./dez., 2019 173 | O deráš eclesiológico no Evangelho segundo Marcos Díez MACHO, Alejandro. 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Aceito em 24/09/2019. Rita Maria Gomes Doutora em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia - FAJE, com estágio doutoral “sanduíche” na Université Catholique de Louvain (Bélgica). Atualmente é professora e pesquisadora permanente do Programa de Pós-graduação em Teologia e da graduação na Universidade Católica de Pernambuco - UNICAP. Email: ritamarianj@gmail.com Fronteiras, Recife, v. 2, n. 2, p. 152-174, jul./dez., 2019