Rev Bras Psiquiatr 2001;23(4):195-9
Hospital-dia: para quem e para quê?*
Day hospital: for whom and for what?
Maria Cristina P Limaa e Neury José Botegab
a
Faculdade de Medicina de Botucatu da Unesp. Botucatu, SP, Brasil. bFaculdade de Ciências Médicas da Unicamp. Campinas, SP, Brasil
Resumo
Descritores
Abstract
Objetivo: Estudar prospectivamente a população internada em um hospital-dia (HD) em relação a fatores que
poderiam influenciar na melhora e na duração da internação.
Métodos: Foram entrevistados, para obtenção de dados sociodemográficos e avaliação da evolução, 34 pacientes
internados no Hospital-Dia da Faculdade de Medicina de Botucatu, Unesp, durante um ano. O diagnóstico
psiquiátrico foi avaliado pela CIDI (Composite International Diagnostic Interview), a sintomatologia psiquiátrica
pela BPRS (Brief Psychiatric Rating Scale) e a incapacitação psicossocial pela DAS (Psychiatric Disability
Assessment Schedule). Todos os pacientes foram acompanhados, e seus familiares, entrevistados.
Resultados: Predominaram mulheres (76%), jovens (61,8%), sem vínculo conjugal (71%), sem trabalho (82,4%),
com diagnóstico de transtornos afetivos (44,1%) e com internações psiquiátricas prévias (44%). Apenas quatro
(12%) pacientes apresentavam uma “síndrome maior” segundo BPRS. Houve considerável incapacitação
psicossocial dos pacientes em alguns papéis sociais. Maior renda per capita foi um fator associado à melhor
evolução. As internações duraram em média 74 dias. Pacientes com internações prévias tenderam a permanecer
menos tempo no HD.
Conclusões: Portadores de transtornos afetivos e quadros “não-psicóticos” geralmente não necessitam de
internação por período integral em hospital psiquiátrico. Contudo, os pacientes deste estudo tiveram um elevado
número de internações psiquiátricas prévias, provavelmente por necessitarem de um nível de atendimento além
das possibilidades dos ambulatórios. Entretanto, pacientes com maior número de internações – em tese mais
graves – tenderam a permanecer menos tempo no HD, o que suscita dúvidas quanto à sua adesão a serviços
abertos, bem como aos possíveis fatores facilitadores dessa adesão. Em um momento de crescimento expressivo
no número de serviços de internação parcial no Brasil, como nos últimos anos, mais estudos são necessários a fim
de esclarecer para quem e para quê são destinados esses serviços.
Hospital-dia. Transtornos mentais. Saúde mental. Política de saúde.
Objective: To investigate prospectively factors that might have an impact on the outcome of psychiatric patients
treated at a day-hospital.
Methods: Thirty-four patients admitted to the day-hospital of Botucatu Medical School – UNESP during a period
of one year were interviewed and their sociodemographic data and their clinical course were assessed. Psychiatric
diagnoses were reviewed using the Composite International Diagnostic Interview, the psychiatric symptomatology
was assessed using the Brief Psychiatric Rating Scale (BPRS) and the psychosocial incapacitation was evaluated
using the Psychiatric Disability Assessment Schedule (DAS). All patients were followed up during the study
period and their relatives were also interviewed.
Results: Most patients were women (76%), young (61,8%), not married (71%), unemployed (82.4%), diagnosed
as having an affective disorder (44.1%), and with previous psychiatric hospitalizations (44%). Only 4 patients
(12%) presented a “major syndrome” according to BPRS. However, patients showed substantial incapacitation
regarding social functioning. Higher income was associated with better treatment outcome. Hospitalizations
*Trabalho realizado no Hospital-Dia da Faculdade de Medicina de Botucatu, Departamento de Neurologia e Psiquiatria. Baseado na dissertação de mestrado: “Hospital-Dia da Faculdade
de Medicina de Botucatu: Estudo descritivo da população atendida”, apresentado ao Curso de Pós-Graduação em Ciências Médicas da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp, área
Saúde Mental.
Recebido em 19/3/2001. Revisado em 4/6/2001. Aceito em 15/6/2001.
Fonte de financiamento e conflito de interesses inexistentes.
195
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Hospital-dia
Lima MCP & Botega NJ
lasted 74 days on average. Patients who had been previously hospitalized had a shorter stay in the day-hospital.
Conclusions: Patients with affective disorders and non-psychotic symptoms generally do not need in-patient
care in a psychiatric hospital. However, the studied patients had had many previous psychiatric admissions,
probably because they needed a more intensive treatment than outpatient services can offer. On the other hand,
those patients who had had many previous hospitalizations (probably the most severe cases) remained for
shorter periods of time in the day-hospital, which requires an examination of these patients’ compliance with
outpatient treatment as well as the factors influencing treatment compliance. Since there has been an expressive
growth in the number of day-care services in Brazil in the last years, there is a need of further studies to determine
these services’ benefits and who can benefit from them.
Keywords
Day hospital. Mental disorders. Mental health. Health policy.
Introdução
Serviços de internação parcial oferecem uma gama tão variada
de possibilidades que se chegou a sugerir que o único ponto
em comum seria o período de internação: sempre parcial.1 Desde
que surgiram, os hospitais-dia (HD) têm despertado polêmicas
quanto à possibilidade de vir a substituir os hospitais psiquiátricos quanto à eficiência para reabilitar pacientes crônicos, suas indicações, contra-indicações etc. Considerando as
diversas possibilidades de atuação, os HD têm sido classificados em diferentes tipos.2,3 Schene et al classificaram-nos em
quatro modalidades: (1) alternativos à hospitalização psiquiátrica; (2) continuidade à internação fechada; (3) extensão ao
tratamento ambulatorial; e (4) reabilitação e apoio a crônicos.
Os autores observaram certa sobreposição entre esses tipos,
com presença de características comuns, como orientação
preponderantemente médica e disponibilidade de leitos
noturnos nos dois primeiros e tratamento mais prolongado nos
dois últimos.3
Embora os HD existam no Brasil desde a década de 60,4,5
foi apenas desde 1992 que passaram a figurar oficialmente
entre as possibilidades de atendimento em saúde mental,
sendo então estabelecidas diretrizes para o credenciamento
dos serviços e o ressarcimento das internações por meio de
portaria do Ministério da Saúde.6 O estímulo proporcionado por tal fato pode ser verificado no expressivo aumento
no número de leitos em HD: de 330 leitos, em 1995, para
2.013, em 1999, segundo dados do Ministério da Saúde.
Não há, contudo, informações sobre a população atendida
nesses “leitos-dia” ou mesmo sobre suas condições de funcionamento. Os poucos dados disponíveis são o resultado
de levantamentos retrospectivos em prontuários, com todas
as limitações que decorrem desse procedimento.4,5,7,8
A necessidade de conhecer a população atendida em HD,
com dados que subsidiem tecnicamente decisões políticoadministrativas, é inegável. O objetivo desta pesquisa foi
descrever a população atendida no HD ligado à Faculdade de
Medicina de Botucatu, bem como estudar a associação entre
as variáveis investigadas e a melhora e o tempo de internação
dos pacientes. As características desse serviço já foram previamente descritas.7
196
Material e Métodos
Delineamento
Esta pesquisa avaliou prospectivamente todos os pacientes
admitidos ao longo de um ano, da internação à alta, no HD da
Faculdade de Medicina de Botucatu – Unesp (HD-Unesp).
Sujeitos
Foram elegíveis para o estudo todos os 34 pacientes
internados no HD-Unesp, de 1/8/97 a 31/7/98, e que receberam
alta nesse período.
Instrumentos
Questionário para Obtenção de Dados Gerais
Foi elaborado um questionário para obtenção de dados
sociodemográficos e clínicos. A alta foi classificada em alta
“médica” quando representou o final do tratamento no HD,
segundo avaliação da equipe, e “outras” quando houve abandono de tratamento, transferência para outro serviço hospitalar ou alta a pedido dos familiares.
Escala de Avaliação da Incapacitação Psiquiátrica
(Psychiatric Disability Assessment Schedule – DAS)
A DAS é uma escala que avalia níveis de incapacitação
apresentados por pacientes com transtornos psiquiátricos.9 O
nível de incapacitação é dado pelo comprometimento do
comportamento do paciente e pelo seu desempenho nas relações sociais. A DAS apresenta quatro seções das quais duas
foram utilizadas: “comportamento global” e “desempenho de
papéis sociais”.9 A primeira seção possui os itens cuidado pessoal, diminuição das atividades, lentificação e isolamento social; a segunda avalia a participação em atividades domésticas, o relacionamento afetivo e sexual com parceiro(a), o interesse e cuidado com os filhos, o relacionamento sexual com
outros parceiros, os contatos sociais, o desempenho e o interesse no trabalho e nos estudos, outros interesses e comportamentos do paciente em situações de emergência. Em ambas as
seções, cada item recebe uma pontuação de 0 a 5; quanto maior
a pontuação, maior o grau de disfunção. Utiliza-se como pon-
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to de corte a pontuação “2”, que representa “disfunção óbvia”.
Para o presente estudo, foi utilizada a versão para o português,10
que apresentou coeficientes de correlação intraclasse de 0,88
a 1,00 em estudo de confiabilidade entre avaliadores.11
Escala de Avaliação Psiquiátrica Breve (Brief Psychiatric
Rating Scale – BPRS)
A BPRS foi desenvolvida na década de 60 com o objetivo de
avaliar alterações na expressão de alguns sintomas em pacientes
submetidos a intervenções medicamentosas.12 São avaliados
diversos sinais/sintomas psiquiátricos, atribuindo-se uma
pontuação para sua presença e gravidade. Quanto maior a
pontuação, maior a gravidade. Bech et al13,14 propuseram alguns
pontos de corte para a pontuação total: de 0 a 9 pontos haveria
uma ausência de síndrome, de 10 a 19 ter-se-ia uma “síndrome
menor”, e com 20 ou mais pontos ter-se-ia uma “síndrome maior”.
Neste estudo, foi utilizada a versão de Bech et al13 traduzida por
Zuardi et al,15 na qual as pontuações estão distribuídas do
seguinte modo: 0 = sintoma ausente; 1 = muito leve ou presença
duvidosa; 2 = presente em grau leve; 3 = presente em grau
moderado; e 4 = presente em grau severo ou extremo.
Composite International Diagnostic Interview (CIDI)
A CIDI é uma entrevista estruturada que cobre a gama de
diagnósticos da CID-10.16 Foi desenvolvida a partir de um trabalho conjunto entre a OMS e o Alcohol Drug Abuse and Mental Health Administration’s (ADAMHA), estando disponível
em vários idiomas,17 inclusive em português.18
Procedimentos
As avaliações foram feitas sempre por uma pesquisadora
(MCPL) e realizadas em três momentos distintos: (1) até três
dias após a internação, eram aplicados o questionário geral, a
BPRS e a DAS. Esta era aplicada ao responsável pelo paciente
ou somente a este nos casos em que morava sozinho; (2) até
duas semanas após a internação, a CIDI era aplicada; (3) ao
término da internação, foi reaplicada a BPRS, e colhidas
informações sobre a alta.
Análise estatística
Foram feitas a distribuição de freqüência e as associações
entre variáveis pelo programa Epi Info,19 utilizando-se o teste
do qui-quadrado e de Fisher para verificação da significância
estatística (p£0,10). Para a análise das associações entre
variáveis, foram estabelecidas como variáveis dependentes a
melhora ao final do tratamento e a duração da internação.
RESULTADOS
Dados sociodemográficos
Todos os 34 pacientes internados no período de estudo
concordaram em participar da pesquisa. Houve predomínio de
indivíduos jovens com 37 anos em média (DP=14), de mulheres
(76%), de pessoas sem vínculo conjugal (71%) e com
escolaridade entre quatro e oito anos (47%), como pode ser
visto na Tabela 1. A maior parte dos pacientes não estava
Hospital-dia
Lima MCP & Botega NJ
trabalhando (82,4%); contudo, 20,6% eram os responsáveis
pela principal fonte de renda familiar, principalmente pelo recebimento de aposentadorias e licenças médicas. Os responsáveis pelos cuidados aos pacientes eram predominantemente
mulheres (68%), sendo que seis deles moravam sozinhos à
época da avaliação. A renda per capita média foi de 1,6 salários-mínimos (DP=2,4). Metade dos pacientes necessitou de algum tipo de subsídio financeiro para o transporte de suas residências até o HD. O tempo médio gasto nesse percurso foi de
40 minutos (DP=36,3) em função de 11 pacientes (32%) residirem em outras cidades da região.
Tabela 1 - Características sociodemográficas dos pacientes internados no
HD-Unesp*
Masculino
n=8
Feminino
n=26
n=34
2
3
3
-
1
6
6
6
5
2
3
9
9
6
5
2
(8,8)
(26,5)
(26,5)
(17,6)
(14,7)
(5,9)
6
1
1
9
9
8
15
10
9
(44,1)
(29,4)
(26,5)
3
5
6
13
7
6
16
12
(17,6)
(47,1)
(35,3)
Faixa etária (anos)
<20
20-39
30-39
40-49
50-59
60 ou mais
Estado civil
Solteiro
Casado
Separado
Escolaridade (anos)
<4
4a8
9 ou mais
Total
(%)
*Hospital-Dia da Faculdade de Medicina de Botucatu, Unesp.
Dados da internação
A maioria dos pacientes (62%) foi encaminhada de serviços
ambulatoriais. Predominaram os diagnósticos de transtornos
afetivos (44,1%), seguidos dos esquizofrênicos (23,5%) (Tabela 2). Para 1/3 dos pacientes, foram feitos diagnósticos clínicos adicionais, sendo os problemas endocrinológicos os mais
freqüentes (diabetes mellitus e alterações de função tiroidiana).
Os pacientes possuíam, em geral, longas histórias de doença,
com 71% apresentando alguma havia quatro anos ou mais.
Quase metade dos casos já havia estado internada em hospital
psiquiátrico (44%), com uma média de 5,5 internações e duração
por internação em torno de 35,7 dias (DP=17,8). Do total, 35% já
tinham internação pregressa no HD-Unesp.
Tomando como parâmetros os pontos de corte estabelecidos
para a BPRS,13,14 observa-se que cinco pacientes (15%) apresentaram pontuação inferior a 10, 25 (73%) entre 10 e 19, e
Tabela 2 - Diagnósticos dos pacientes internados no HD-Unesp*, segundo sexo.
Diagnóstico**
F00-F09
F10-F19
F20-F29
F30-F39
F40-F49
Masculino
n=8
Feminino
n=26
1
0
3
4
0
3
1
5
11
6
Total
n=34
4
1
8
15
6
(%)
(11,8)
(2,9)
(23,5)
(44,1)
(17,6)
* Hospital-Dia da Faculdade de Medicina de Botucatu, Unesp.
**Os diagnósticos estão agrupados segundo a CID-10: F00-F09 - Transtornos (T) Mentais
Orgânicos; F10-F19 - T. Mentais decorrentes do uso de substâncias psicoativas; F20-F29 Esquizofrenia, T. Esquizotípico e delirantes; F30-F39 - T. do Humor; F40-F49 - T. neuróticos,
relacionados ao estresse e somatoformes.
197
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Tabela 3 - Distribuição das pontuações DAS*/WHO em percentagens obtidas pelos pacientes internados no HD-Unesp (n=34).
Disfunção
ausente ou
mínima**
variáveis
(%)
Comportamento global
Cuidado pessoal
Diminuição das atividades
Lentificação
Isolamento
Papéis sociais
Atividades domésticas
Casamento (relacionamento afetivo)
Casamento (relacionamento sexual)
Papel materno/paterno
Relacionamento sexual com outros
Contatos sociais
Desempenho no trabalho
Interesse em obter trabalho
Interesse em informações gerais
Emergências***
Disfunção
presente em
graus
Não se
aplica
(%)
(%)
48
32
41
27
52
68
59
73
0
0
0
0
32
12
3
18
0
44
0
21
35
35
68
18
27
29
21
53
18
62
65
20
0
70
70
53
79
3
82
17
0
45
*DAS = Disability Assessment Schedule;
**As pontuações atribuídas na aplicação da DAS equivalem a: 0 e 1= disfunção ausente ou
mínima e de 2 a 5 = disfunção presente em graus variáveis.
***Comportamento do paciente em situações de emergência envolvendo outras pessoas, nos
últimos seis meses.
quatro (12%) pacientes pontuação maior ou igual a 20. Prevaleceram, assim, pacientes com “síndrome menor” segundo os
critérios adotados. Com relação aos itens da BPRS, ansiedade,
tensão e humor deprimido foram os mais freqüentes (50%, 47,1%
e 42% dos pacientes, respectivamente).
Incapacitação psicossocial
O “isolamento social” e a “diminuição de atividades gerais” e
“domésticas” foram os aspectos avaliados pela DAS que se
mostraram alterados com maior freqüência (Tabela 3).
Evolução e alta
Evoluíram com melhora, constatada clinicamente e também
na redução da pontuação total da BPRS (em média de 8,3 pontos
nesse grupo), 27 pacientes (79,4%). O restante manteve-se
inalterado (11,8%) ou apresentou piora (8,8%). A melhora
associou-se positivamente à renda per capita (p=0,05) e à
inexistência de internação psiquiátrica prévia (p=0,07). Com
relação à freqüência ao tratamento, 32,4% dos pacientes nunca
faltaram, e, em 55,9% dos casos, houve no máximo 10% de faltas.
As internações duraram em média 74 dias (DP=43,7), sendo que
pacientes com internações psiquiátricas prévias tenderam a
permanecer um tempo menor no HD (p=0,06). Observou-se,
também, que as internações mais longas associaram-se, mais
freqüentemente, à alta médica (p=0,03), sendo esta o principal
tipo de alta recebida (73,5%).
Discussão
Tanto quanto pôde-se apurar, este é primeiro estudo brasileiro
a avaliar prospectivamente, e com instrumentos padronizados,
pacientes internados em um hospital-dia. Devido à carência de
profissionais na equipe do HD durante o período de estudo,
esse serviço passou a funcionar com um número menor de vagas,
o que diminuiu o tamanho da amostra e limitou o poder das
análises estatísticas. Ainda assim, os achados permitem algu198
mas reflexões que podem levar a pesquisas aprofundadas e
com um foco mais restrito no campo das internações psiquiátricas parciais no Brasil.
O predomínio de mulheres e de indivíduos jovens foi observado também em outros HD no país.4,5,7,20 Contudo, a freqüência elevada de pacientes com transtorno de humor e/ou com
uma “síndrome menor” (não-psicótica) é um achado que merece mais atenção. No levantamento realizado por Schene et al3
e em outros HD no país,4,20 também observou-se predomínio
de pacientes com transtornos “não-psicóticos”, mostrando que
esse fato não é exclusivo do HD do presente trabalho. Pode-se
questionar se esses pacientes integram o grupo “alvo” da assim
chamada Reforma Psiquiátrica.
Para alguns autores, atender em HD pacientes com quadros
anteriormente diagnosticados como “neuróticos” seria uma
distorção: isto não provocaria a desejada transferência dos
internos em hospitais psiquiátricos para serviços comunitários.21 Entretanto, sabendo que parte desses transtornos “neuróticos” são atualmente diagnosticados como transtornos do
humor, pode-se questionar se seria mesmo uma distorção o
atendimento desses pacientes em regime de HD.
No presente estudo, embora os resultados da aplicação da
BPRS tenham mostrado predominantemente sintomas de linha
depressiva e ansiosa, quase metade da amostra já havia tido ao
menos quatro internações psiquiátricas prévias. Além disso,
os níveis de incapacitação psiquiátrica encontrados fazem supor
que há uma parcela da população com perdas e necessidades
maiores do que aquelas que os ambulatórios podem atender,
dado o seu grau de disfunção. Se os HD visam evitar internações,
deve-se pensar na possibilidade de esses serviços estarem
atendendo pacientes com risco de vir a ser internados ou reinternados independentemente do diagnóstico psiquiátrico.
A associação entre renda per capita e maior probabilidade de evoluir com melhora suscita o questionamento do
que estaria subjacente a essa renda: maior disponibilidade
para uso de fármacos, maior facilidade de acesso ao serviço
de saúde, melhores condições de vida etc. Renda per capita
e outras medidas indicativas de melhor condição econômica têm sido associadas, freqüentemente, à menor probabilidade de apresentar um transtorno psiquiátrico em inquéritos populacionais. 23,24
Para implementar mudanças na atenção psiquiátrica, é
necessário conhecer melhor quais pacientes freqüentam os
hospitais-dia e quais os fatores que interferem em sua adesão
ao tratamento. Sabe-se que, quando não estão internados,
muitos pacientes permanecem em suas casas por meses ou anos,
com dificuldades de estabelecer contato com outras pessoas e
de aderir aos tratamentos ambulatoriais convencionais.22 Para
essa população mais cronificada, é possível que haja
necessidade de visitas domiciliares, de acompanhantes
terapêuticos e mesmo de leitos para a permanência noturna,
como existem em outros HD e mesmo em núcleos de atenção
psicossocial (NAPS).3,6 Essas estratégias talvez diminuíssem o
encaminhamento para internação hospitalar.
Outra possibilidade seria estabelecer subprogramas dentro de
um mesmo equipamento, aumentando suas estratégias de atua-
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ção. Assim, haveria a função de remissão de sintomas – característica do serviço que pretende ser uma alternativa à internação fechada – e também as funções de intensificação do atendimento
ambulatorial e de reabilitação de crônicos, para as quais se teriam
internações seguramente mais longas do que os 45 dias permitidos pela portaria 224/92. Neste estudo, como em outros,2,25 a duração média foi maior que esse número. Em ambas as situações,
seria recomendável que, além dos parâmetros clínicos usualmente observados (basicamente sinais e sintomas), fossem também
avaliados os níveis de incapacitação psicossocial, buscando desenvolver uma maior autonomia para os pacientes. Se a portaria
224 do Ministério da Saúde cumpriu o papel de estabelecer normas e estimular a criação de serviços de internação parcial, o
momento atual pede um aprimoramento dos critérios para o credenciamento e o funcionamento desses equipamentos.
Outros estudos que descrevam e ajudem a refletir sobre a prática dos HD, NAPS e CAPS, bem como sobre a trajetória dos pacientes que freqüentam esses serviços – públicos e privados –, são
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necessários. Ensaios clínicos com grupos aleatorizados, por exemplo, são raros mesmo em países desenvolvidos. No Brasil, colocam-se como um desafio para os pesquisadores, já que a comparação entre serviços hospitalares e extra-hospitalares deve equacionar inúmeras variáveis, entre elas a qualidade do serviço prestado, nem sempre próximo ao desejado. De qualquer modo, essas
investigações poderiam auxiliar o Ministério da Saúde a estabelecer critérios mais objetivos para o funcionamento, o credenciamento e a fiscalização dos HD. A necessidade de avaliações técnicas e criteriosas para as políticas públicas em saúde mental no
país, não apenas no que concerne à economia de recursos mas
também à qualidade da assistência prestada, é um tema atual e
absolutamente relevante para a psiquiatria brasileira.26,27 Avançar
nessa direção, subsidiando tecnicamente a Reforma Psiquiátrica,
diminuiria as possibilidades de que os HD, em futuro próximo,
fossem acusados de ser, apenas e tão somente, uma forma de investimento rentável – ironicamente, uma das principais crítica dirigidas aos hospitais psiquiátricos.
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Correspondência
Maria Cristina Pereira Lima
Departamento de Neurologia e Psiquiatria
Faculdade de Medicina de Botucatu (Unesp)
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