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Daniele Cristina Ficanha
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Tiago Brandão Costa
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Linguística, Letras e Artes
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Estudos Científicos em Ciências Humanas
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Os Autores
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Avanços em ciências humanas e sociais
[livro eletrônico] / organização Guilherme
William Udo Santos. -- 1. ed. -- São Paulo :
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PDF.
ISBN 978-65-89929-41-3
1. Ciências humanas 2. Comunicação 3. Direito
4. Inovação 5. Pesquisa científica I. Santos,
Guilherme William Udo.
22-121249
CDD-001.3072
Índices para catálogo sistemático:
1. Ciências humanas : Pesquisa
001.3072
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DOI 10.53268/BKF22080200
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DECLARAÇÃO DOS AUTORES
Os autores declaram não haver qualquer interesse comercial ou
irregularidade que comprometa a integridade desta obra; declaram que
participaram da elaboração e revisão da obra, atestando a confiabilidade dos
dados e resultados; declaram que a obra está livre de plágio acadêmico;
declaram que a publicação desta obra não fere qualquer outro contrato por
eles firmados; declaram ter atendido eventuais exigências de outras partes,
como instituições financiadoras, para a publicação desta obra.
APRESENTAÇÃO
Diversos estudos na interface entre a linguística e a ciência da
informação revelam contribuições para as áreas, tais como a terminologia
e a análise documentária, e problemas, mais relacionados à construção de
conceitos e representação da informação. Contudo, há notadamente uma
escassez na literatura acerca das relações entre linguística computacional
e a ciência da informação. Por meio do primeiro capítulo foi verificado
o conhecimento produzido nesse ponto de intersecção, oferecendo um
panorama do que já foi realizado no contexto nacional. Quantitativamente, os
resultados confirmam a pouca produção acerca do tema, porém, revelam uma
concentração maior de algumas subáreas em relação a outras, apontando
para possíveis pesquisas futuras.
A linguagem radiofônica alemã é abordada pelo segundo capítulo,
o qual considera que a riqueza da linguagem radiofônica, com as palavras,
trilhas, efeitos e silêncios, é pouco aproveitada na produção de radiofonia
e na produção sonora contemporânea brasileira em diferentes gêneros e
formatos. Por este capítulo são apresentadas formas de valorizar o imaginário
do ouvinte no que tange à criação, produção e recepção de produtos
simbólicos radiofônicos, com a perspectiva de resgate da cultura da oralidade
apoiados por conceitos como a Paisagem Sonora, de Murray Schafer e a
peça radiofônica alemã.
Pelo terceiro capítulo são abordadas a informalidade urbana e a
regularização fundiária. A recorrente existência de assentamentos informais
nas cidades latinas, dificulta o acesso da população ao processo de
regularização, afastando a infraestrutura disponível para outros setores das
cidades. Pelo presente capítulo são apresentados estudos recentes acerca
da questão social da informalidade e possibilidades para sua resolução,
passando pela configuração de um cadastro territorial e de políticas públicas
específicas.
Por meio do quarto capítulo é mostrada a vida de Maria Eva Duarte,
desde a infância no interior da Argentina, até sua adolescência e vida adulta
quando se mudou para a capital Buenos Aires, para atuar como modelo e
depois como atriz de radionovelas, onde ganhou destaque, trabalhando
na principal companhia teatral do país. A partir de seu casamento com
Juan Perón, coronel do exército argentino, passou a se dedicar à política
e tornando-se primeira-dama, criou a fundação Eva Perón, onde dialogava
com os mais pobres, mulheres e sindicatos, sendo crucial para manter o
peronismo no poder.
Pelo quinto capítulo são aprtesentadas as relações entre o trabalho
prescrito e o realizado à luz do conceito de real da atividade do trabalho.
São investigadas quais são as ações prescritas e quais são realizadas
antes e durante uma atividade de trabalho. Os resultados mostram que o
trabalhador ao realizar o trabalho prescrito, realizado e o “real da atividade”,
se autoregula, se transformando e mudando seu próprio coletivo de trabalho.
E os recursos utilizados por ele estão intimamente ligados ao seu trabalho
prescrito, realizado e ao real da atividade.
Os capítulos seis e sete se complementam, e tratam de ciência
política, no contexto das contribuições das perspectivas críticas feministas
diante das discussões teóricas sobre o conhecimento político. Pelo capítulo
seis são tratados os aspectos introdutórios, a discussão sobre o campo do
conhecimento político e alguns aspectos das contribuições críticas feministas.
Na última parte são abordadas as correntes e perspectivas relacionadas aos
vários feminismos, as dimensões da ciência política, relações internacionais
e teoria política e as considerações finais, ressaltando o que compreendemos
como “teoria política feminista”.
Pelo oitavo capítulo se propõe a problematizar os debates de gênero
no campo das relações internacionais (RIs) e ciência política (CP), a partir
da perspectiva pós-estruturalista como um instrumental teórico e conceitual
propício para análises feministas e críticas. O estudo apresenta uma breve
contribuição da problematização do paradigma neoliberal e como este se
reflete e se comporta no atual cenário político e socioeconômico de casos
referentes ao neoconservadorismo político e religioso.
Os capítulos nove e dez se complementam. Pelos capítulos é
analisada a pobreza nas famílias brasileiras e suas relações causais com
as características da própria família, aspectos pessoais do chefe da família
e com a infraestrutura do domicílio. Para tanto, a pobreza é avaliada pela
Modelagem de Equações Estruturais (MEE). Entre os resultados, verificouse que os domicílios chefiados por homem, com a presença de cônjuge,
localizados na área urbana, com saneamento básico e conforto lar estão
associados com o maior rendimento domiciliar per capita, fazendo com que
estejam, proporcionalmente, em menor condição de pobreza, tanto em 2004
quanto em 2012. Por meio do capítulo nove são apresentados os aspectos
introdutórios e metodológicos. Pelo capítulo dez é realizado o desenvolvimento
e as conclusões do estudo.
Desejo uma excelente leitura!
SUMÁRIO
CAPÍTULO 1
RELAÇÕES ENTRE A LINGUÍSTICA COMPUTACIONAL E A CIÊNCIA
DA INFORMAÇÃO: UM PANORAMA .................................................... 13
Thiago Blanch Pires
DOI: 10.53268/BKF22080201
CAPÍTULO 2
A IMERSÃO DO OUVINTE ATRAVÉS DA PAISAGEM SONORA E A
PEÇA RADIOFÔNICA ALEMÃ ............................................................ 23
Guilherme William Udo Santos
DOI: 10.53268/BKF22080202
CAPÍTULO 3
CONSIDERAÇÕES SOBRE O CADASTRO TERRITORIAL E A
INFORMALIDADE URBANA .................................................................. 38
Josiane Nascimento Andrade
DOI: 10.53268/BKF22080203
CAPÍTULO 4
EVA, A MÃE DOS DESCAMISADOS ..................................................... 49
Renata Alves Melki De Souza
DOI: 10.53268/BKF22080204
CAPÍTULO 5
O TRABALHO PRESCRITO E O REALIZADO À LUZ DO REAL DA
ATIVIDADE ............................................................................................. 62
Márcia Donizete Leite Oliveira
DOI: 10.53268/BKF22080205
CAPÍTULO 6
O CAMPO TEÓRICO DO CONHECIMENTO POLÍTICO E AS
CONTRIBUIÇÕES CRÍTICAS FEMINISTAS: PARTE I.......................... 77
Breno Henrique Ferreira Cypriano
Lorena Ávila Soares Fonseca
DOI: 10.53268/BKF22080206
CAPÍTULO 7
O CAMPO TEÓRICO DO CONHECIMENTO POLÍTICO E AS
CONTRIBUIÇÕES CRÍTICAS FEMINISTAS: PARTE II......................... 88
Breno Henrique Ferreira Cypriano
Lorena Ávila Soares Fonseca
DOI: 10.53268/BKF22080207
CAPÍTULO 8
AS INTERSEÇÕES DAS DIMENSÕES DE GÊNERO,
NEOLIBERALISMO E CONSERVADORISMO NAS RELAÇÕES
INTERNACIONAIS ............................................................................... 101
Lorena Ávila Soares Fonseca
Breno Henrique Ferreira Cypriano
DOI: 10.53268/BKF22080208
CAPÍTULO 9
EVIDÊNCIAS SOBRE A POBREZA NO BRASIL: UMA APLICAÇÃO DA
MODELAGEM DE EQUAÇÕES ESTRUTURAIS: PARTE I ................ 112
Leandro Nunes Soares da Silva
Marina Silva da Cunha
DOI: 10.53268/BKF22080209
CAPÍTULO 10
EVIDÊNCIAS SOBRE A POBREZA NO BRASIL: UMA APLICAÇÃO DA
MODELAGEM DE EQUAÇÕES ESTRUTURAIS: PARTE II ............... 125
Leandro Nunes Soares da Silva
Marina Silva da Cunha
DOI: 10.53268/BKF22080210
ÍNDICE REMISSIVO .................................................................................. 136
SOBRE O ORGANIZADOR ....................................................................... 139
CAPÍTULO 1
RELAÇÕES ENTRE A LINGUÍSTICA
COMPUTACIONAL E A CIÊNCIA DA
INFORMAÇÃO: UM PANORAMA
Thiago Blanch Pires
lattes.cnpq.br/9911777987987166
Universidade de Brasília
RESUMO – Diversos estudos na
interface entre a linguística e a
ciência da informação revelam
contribuições para as áreas, tais
como a terminologia e a análise
documentária,
e
problemas,
mais relacionados à construção
de conceitos e representação
da
informação.
Contudo,
há
notadamente uma escassez na
literatura acerca das relações entre
linguística computacional e a ciência
da informação. Assim, este estudo
verificou o conhecimento produzido
nesse
ponto
de
intersecção,
oferecendo um panorama do que já
foi realizado no contexto nacional.
Quantitativamente, os resultados
confirmam a pouca produção acerca
do tema, porém, revelam uma
concentração maior de algumas
subáreas em relação a outras,
apontando para possíveis pesquisas
futuras.
PALAVRAS-CHAVE:
Linguística;
Linguística computacional; Ciência
da informação; Tradução automática.
1. INTRODUÇÃO
Uma das áreas que tem
se desenvolvido na Ciência da
Informação é a Organização do
Conhecimento.
Hjørland
(2007)
argumenta que a Organização
do
Conhecimento
(OC)
deve
ser considerada dentro de uma
perspectiva mais ampla – isto é,
como o conhecimento é organizado
socialmente e como a realidade
também é organizada; e a partir de
uma perspectiva mais específica, o
autor argumenta que a OC na Ciência
da Informação envolve atividades
tais como descrição, indexação
e classificação de documento
(MacLaine e Mitchell, 2008, p. 80).
Ambas
as
perspectivas
podem funcionar juntas quando se
pensa em sistemas de organização
do conhecimento (KOS, Hjørland,
2007), definidas como um termo
mais geral para “as ferramentas
que apresentam a interpretação
de estruturas do conhecimento”.
De acordo com o autor, o mesmo
termo corresponde às ferramentas
semânticas tais como os thesauri,
ontologias, dicionários que produzem
“informações semânticas”, isto é,
informações sobre o significado
das palavras e outros símbolos tais
como as relações entre símbolos e
RELAÇÕES ENTRE A LINGUÍSTICA COMPUTACIONAL E A CIÊNCIA DA INFORMAÇÃO: UM PANORAMA
13
Capítulo 1
conceitos (Hjørland, 2007).
Outro exemplo de ferramenta semântica é o processo automatizado
da tradução. Desde o começo da globalização da revolução digital nos
anos cinquenta, ambas as discussões sobre o estabelecimento da Ciência
da Informação enquanto disciplina acadêmica e a pesquisa em tradução
automática (enquanto um sistema de aplicação, não uma disciplina
acadêmica) começaram a se tornar uma realidade.
De acordo com a Série Branca da METANET (Aliança Tecnológica
Europeia Multilíngue) sobre a língua portuguesa na era digital (Branco et al,
2012) há um fraco apoio/recursos para a aplicação de tradução automática
(TA) envolvendo a língua portuguesa (p. 72). E um dos desafios principais
nessa área de aplicação é a “adaptação de recursos linguísticos para um
domínio ou área específica de uso” (p.25).
A revista, que neste tópico trata do processamento da língua
portuguesa, aponta que os estudos sobre a tradução automática no Brasil tem
sido mais desenvolvidos em alguns núcleos de pesquisa mais concentrados
em São Paulo, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul, com uma abordagem
mais processual, isto é, do processamento da língua natural, sendo
assim iluminados pelas áreas mais próximas a aplicações matemáticas e
computacionais, tais como, Ciências da Computação e Estatística, e pouco
pela representação e formalização da língua para o processamento, ou
seja, da Linguística Computacional, de uma perspectiva mais próxima da
Linguística e da Ciência da Informação.
Diversos estudos na interface entre a Linguística e a Ciência
da Informação já foram realizados e divulgados na literatura da Ciência
da Informação, revelando os pontos de contribuição para a CI como a
Terminologia e a Análise Documentária, e problemas mais relacionados à
construção de conceitos e representação da informação (vide Mendonça,
2000; Almeida, 2011; Mollica, 2012).
Assim, o presente estudo busca identificar as relações da Linguística
Computacional e Ciência da Informação dentro da literatura nacional da
última (CI). Dessa forma, será possível verificar o conhecimento produzido
nessa interface, oferecendo um panorama no contexto nacional do que
já foi pesquisado e publicado. Sobretudo, este trabalho busca a análise
de possibilidades futuras, em especial com o olhar da CI para a tradução
automática enquanto ferramenta semântica, além de outras aplicações da
linguística computacional.
Para tanto, o presente estudo estrutura-se primeiramente com a
descrição da metodologia (baseada na metodologia de Mendonça, 2000),
seguida da análise quantitativa, e considerações finais.
RELAÇÕES ENTRE A LINGUÍSTICA COMPUTACIONAL E A CIÊNCIA DA INFORMAÇÃO: UM PANORAMA
14
Capítulo 1
2. METODOLOGIA
Para identificar as relações entre a linguística computacional e
a CI considerou-se apenas as publicações mais expressivas da área que
pudessem discutir a interface das duas áreas. A grande parte das publicações
são artigos de Qualis A1, A2, e B1 da área das Ciências Sociais Aplicadas no
contexto nacional (De acordo com o Qualis/CAPES 2013). O levantamento
dos dados foi realizado a partir dos seguintes periódicos:
1. Brazilian Journal of Information Science – Unesp/Marília
2. Transinformação – PUC-Campinas
3. Ciência da Informação - IBICT
4. Perspectivas em Ciência da Informação - UFMG
5. Incid: Ciência da informação, Informação, Documentação –
USP-Ribeirão Preto
6. Informação & Sociedade - UFPB
7. Datagramazero – Rio de Janeiro
Para o presente estudo, reconhece-se que há outros periódicos
relevantes para o levantamento de produção nacional no contexto da LC e
CI. Contudo os periódicos acima citados são suficientes para se obter uma
amostra representativa da produção de conhecimento pela temática da LC e
CI.
O critério utilizado para selecionar quais artigos se configuravam na
interface da LC e CI foi a análise de título e do resumo, a partir da pesquisa
da palavra-chave “linguística computacional” no site do periódico.
Este mesmo critério de seleção de palavra-chave de busca foi
realizado com base nos resultados encontrados, considerados satisfatórios
para uma amostra representativa. De fato, outros artigos relevantes do ponto
de vista da temática aqui trabalhada, ficaram de fora por não apresentarem
as palavras linguística computacional no título ou resumo do texto (mais
detalhes na próxima seção).
Depois, realizar as buscas nos periódicos selecionados, observou-se
que de forma geral houve um número relativamente baixo de resultados a partir
da busca contendo a palavra-chave “linguística computacional”. Seguindo o
padrão dos resultados encontrados para a palavra “linguística” no estudo de
Mendonça (2000), o maior número de resultados contendo a palavra-chave
“linguística computacional” foi da revista Ciência da Informação do IBICT,
e as revistas Brazilian Journal of Information Science, Transinformação, e
Datagramazero não retornaram resultados.
Assim, o que se fez foi reunir os resultados de todas as revistas e
tabulá-los para análise quantitativa. Posteriormente cruzou-se a análise
RELAÇÕES ENTRE A LINGUÍSTICA COMPUTACIONAL E A CIÊNCIA DA INFORMAÇÃO: UM PANORAMA
15
Capítulo 1
quantitativa com uma análise mais qualitativa, no sentido de refletir acerca
dos números e conteúdos para obter uma identificação do contexto de
relações entre a LC e a CI no Brasil.
2.1. Análise Quantitativa
Uma vez realizada a busca pela palavra-chave nos periódicos
supracitados, chegou-se aos seguintes resultados:
i.
Brazilian Journal of Information Science – 0 resultado
ii.
Transinformação – 0 resultado
iii.
Ciência da Informação – 8 resultados
iv.
Perspectivas em Ciência da Informação – 1 resultado
v.
Incid: Ciência da informação, Informação, Documentação – 4
resultados
vi.
Informação & Sociedade – 1 resultado
vii.
Datagramazero – 0 resultado
A partir da listagem acima, percebe-se um maior número de artigos
contendo a palavra-chave “linguística computacional” no periódico do IBICT,
Ciência da Informação, seguido pela revista Incid, com metade dos resultados
da anterior, finalizando a contagem bastante escassa das revistas Perspectivas
em Ciência da Informação e Informação & Sociedade, com 1 (hum) resultado
apenas cada. Os demais periódicos não apresentaram resultados a partir
da busca pela palavra-chave “linguística computacional”. Assim, totalizouse 14 artigos de maior relevância para a ciência da informação, contendo
“linguística computacional” no título ou resumo a partir de busca na base de
dados do periódico.
Todavia, esses números não são absolutos. Eles devem ser
interpretados com uma orientação para seus contextos de produção. Assim
por exemplo, observamos um maior número na revista Ciência da Informação,
pois além, da temática linguística presente em grande parte dos trabalhos
(cf. Mendonça, 2000), a base de dados é vasta (desde 1972 até 2014), e a
publicação é quadrimestral (ou seja, três vezes ao ano).
Outro aspecto importante é da representação da palavra-chave
“linguística computacional” com conceitos sinônimos. Diversos textos,
além desse quantitativo discutem ou citam a linguística computacional
com outras palavras, como por exemplo, o artigo de Diana Santos, uma
sumidade na área da linguística computacional da língua portuguesa, para
o periódico Datagramazero, “Um centro de recursos para o processamento
computacional do português” (2002). Assim, embora não haja a expressão
“linguística computacional” no título, trata-se do mesmo tema.
RELAÇÕES ENTRE A LINGUÍSTICA COMPUTACIONAL E A CIÊNCIA DA INFORMAÇÃO: UM PANORAMA
16
Capítulo 1
Contudo, por uma questão de exequibilidade, não fosse possível a
coleta de uma amostra a partir da palavra-chave “linguística computacional”,
a presente investigação ampliaria o filtro de seleção da pesquisa para
“linguística”, “computacional”, “processamento”, “língua natural”, e assim por
diante. Mas isso não foi necessário.
A amostra é suficiente para demonstrar que a menção à área é de
fato ainda pouco expressiva na literatura da ciência da informação no Brasil.
Porém, apresenta uma certa trajetória e tendência ao longo do tempo. Por
exemplo a revista Ciência da Informação, editada pelo IBICT, em produção
desde 1972 até o último número deste ano, foi possível encontrar artigos
desde 1983 até 2009 mencionando a área da LC.
Os quadros a seguir demonstram os periódicos, datas, títulos, autores
e instituições para uma melhor visualização dos dados.
Quadros 1: Linguística computacional na revista Ciência da Informação
Periódico
Data
Título
Autor
Instituição
1.
Ciência da
Informação
2009
A pragmática no contexto da
identificação de autoria de textos
Rodrigues,
J.; Caricatti,
A.
UnB; UnB
2.
Ciência da
Informação
2009
O poder cognitivo das redes
neurais artificiais modelo na
recuperação da informação
Capuano, E. UnB
3.
Ciência da
Informação
2007
A diversidade lingüística da
Internet como reação contrahegemônica das tendências de
centralização do império
Guesser, A.
Universidade
de Coimbra
4.
Ciência da
Informação
2006
Aplicación de transductores de
estado-finito a los procesos de
unificación de términos
Galvez, C.
Universidade
de Granada
5.
Ciência da
Informação
2004
Novas fronteiras tecnológicas das
ações de informação: questões e
abordagens
González
de Gomez,
M.
Ibict-MCT
6.
Ciência da
Informação
1995
O léxico na economia da língua
Correia, M.
Universidade
de Lisboa
7.
Ciência da
Informação
1991
Indexação automática de textos:
uma abordagem otimizada e
simples
Robredo, J.
UnB
8.
Ciência da
Informação
1983
Perspectivas na contribuição
da linguística e de áreas afins à
ciência da informação
Baranow, U.
UnB
RELAÇÕES ENTRE A LINGUÍSTICA COMPUTACIONAL E A CIÊNCIA DA INFORMAÇÃO: UM PANORAMA
17
Capítulo 1
Quadro 2: Linguística computacional na revista Perspectivas em Ciência da
Informação
Periódico
Data
Perspectivas
em Ciência da 2005
Informação
Título
Autor
SiRILiCO uma proposta para
um sistema de recuperação de
Informação baseado em teorias Duque, C. D.
da linguística computacional e
ontologia
Instituição
UFMG
Quadro 3: Linguística computacional na revista Incid: Ciência da
Informação, Informação, Documentação
Periódico
Autor
Instituição
1.
Incid: Ciência
Luciano Floridi e os problemas
da informação,
2013 filosóficos da informação: da
Informação,
representação à modelização
Documentação
Data Título
González
de Gomez,
M.
UFF
2.
Parâmetros teóricos para
elaboração de instrumentos
Incid: Ciência
pragmáticos de representação
da informação,
2010 e organização da informação na
Informação,
Web: considerações preliminares
Documentação
sobre uma possível proposta
metodológica
Gracioso, L.
UFSCar
3.
Incid: Ciência
Deleuze e Guattari e a Psicologia
da informação,
2010 Cognitiva, IA e IHC: investigando
Informação,
possíveis conexões e diferenças
Documentação
Day, R.
Indiana
University
4.
Incid: Ciência
A análise do discurso e o campo
da informação,
informacional: usos atuais e
2010
alcance epistemológico: uma
Informação,
atualização
Documentação
Freitas, L.
UFF
Quadro 4: Linguística computacional na revista Informação e Sociedade
Periódico
Data
Informação
&
Sociedade
2008
Título
INDEXAÇÃO AUTOMÁTICA E
SEMÂNTICA: estudo da análise do
conteúdo de teses e dissertações
Autor
Borges,G.;
Maculan, B.;
Lima, G.
Instituição
UFMG;
UFMG;
UFMG.
Em relação a trajetória e tendência, podemos perceber que a menção
à LC na CI ganhou mais destaque na última década: a grande maioria dos
artigos das revistas analisadas foram publicados a partir de 2004. A pequena
parcela de artigos datados do século passado já aponta para essa interface
desde 1983, passando por um longo intervalo até emergir novamente o tema
na década de noventa.
Sobre os títulos dos artigos dos periódicos, pode-se observar
a configuração de determinadas categorias ligadas à linguística e mais
RELAÇÕES ENTRE A LINGUÍSTICA COMPUTACIONAL E A CIÊNCIA DA INFORMAÇÃO: UM PANORAMA
18
Capítulo 1
especificamente à linguística computacional. E em um recorte mais diacrônico,
nota-se uma tendência de aprofundamento da interação entre áreas mais
específicas da linguística e da CI a partir do artigo de Baranow (1983) para
a temática mais próxima à linguística computacional ou o processamento de
língua natural e a CI (tais como a indexação automática, recuperação da
informação, pragmática, e análise de conteúdo).
Em relação aos autores, verificamos que há uma variedade de
autores de diversas áreas e instituições que contribuem para a pesquisa em
ciência da informação. Portanto, fica claro a natureza interdisciplinar da área.
Grande parte dos autores são da área da ciência da informação,
porém, há alguns autores da área de letras/ Linguística, e alguns poucos da
ciência da computação, e sociologia. Quanto às instituições podemos ver
núcleos que trabalham nessa interface concentrados na UnB em sua maioria,
depois na UFF, e UFMG, e, fora do Brasil, na península ibérica, especialmente
Portugal, as faculdades de Coimbra e Lisboa.
Assim, esta seção traçou um esboço quantitativo-panorâmico de
uma amostra representativa do conhecimento produzido no Brasil acerca
das relações entre a linguística computacional e a ciência da informação. A
próxima seção tratará de cruzar esses dados com os conteúdos dos artigos,
buscando obter uma configuração das principais temáticas que emergem no
contexto brasileiro.
2.2. Análise qualitativa
Os artigos foram analisados e foi observado que há diferentes tipos de
abordagem acerca das relações entre a linguística computacional e a ciência
da informação. Alguns, inclusive, se distanciando mais da noção “intrínseca”
de processamento ou formalização da língua natural no computador.
O item 3 do Quadro 1 apresenta tem uma visão mais sociológica
(também por conta de sua formação na sociologia) da diversidade linguística
presente na Internet, e não apresenta o termo linguística computacional
no texto. O item 1 do quadro 1, embora traga a palavra-chave “linguística
computacional” no resumo, não há qualquer relação direta no texto nesse
sentido, mas sim uma ênfase de duas categorias linguísticas para a
identificação de estilo de autoria.
Já o item 8 dá mais ênfase ao aspecto linguístico em sua interface
com a ciência da informação. Contudo, neste artigo, Baranow (1983)
apresenta a linguística computacional como uma subárea especializada para
a formação do cientista da informação. O autor (ibid.) propõe uma subseção
inteiramente dedicada à contribuição da CI para a formação do cientista da
informação. Baranow (1983, p. 31-31) identifica três áreas de atuação nesse
sentido: a) processamento automático de texto; b) recuperação automática
da informação; c) sistemas automáticos de pergunta-resposta (inteligência
artificial).
RELAÇÕES ENTRE A LINGUÍSTICA COMPUTACIONAL E A CIÊNCIA DA INFORMAÇÃO: UM PANORAMA
19
Capítulo 1
Muito embora o desenvolvimento tecnológico tenha avançado
substancialmente nos últimos tempos, observa-se também o desenvolvimento
dessas áreas nos artigos mais recentes. Assim, no quadro 1, item 2,
percebemos a combinação de duas áreas observadas por Baranow
(1983), quais sejam da recuperação da informação e inteligência artificial.
Já no item 4, Galvez (2006) aprofunda o que seria a área a) de Baranow
(1983), processamento automático de texto, em seu trabalho de avaliação
de lematizadores (programas de recuperação de informação que reduzem
variações de termos semanticamente equivalentes) na unificação de termos.
O item 6 do quadro 1 trabalha em um sentido mais aplicado da
linguística computacional como o item 4, porém prioriza a gestão e geração
de significado lexical, por meio da formalização e representação linguística
(em oposição a modelos matemáticos ou estatísticos). O item 5 discute a
linguística computacional de forma parecida a Baranow (1983), em uma
perspectiva mais teórica, porém de forma mais ampla (agregando uma
perspectiva mais filosófica e social nessa interface) ampliando a relação de
linguagem, informação e comunicação em duas grandes linhas, nas quais,
em uma das linhas a linguística computacional e processamento de língua
natural são alocadas, enquanto concepção da “linguagem como dimensão
dos dispositivos de tratamento da informação” (GONZALEZ DE GOMEZ,
2004, p. 57). Por fim, o item 7 trabalha com a abordagem da LC para resolver
problema de palavras vazias na indexação automática de um sistema de
recuperação de informação.
Podemos perceber essa mesma configuração nos outros artigos. No
quadro 3, por exemplo, no item 1 há uma repetição de autora (GONZALEZ DE
GOMEZ, 2004, 2013) reforçando a linha filosófica no tratamento automático
da informação. O item 2 do quadro 3 cruza diversas características de
pesquisa na interface, na utilização de vocabulário controlado e folksonomias
(indexação colaborativa na web) para recuperação da informação. Mas com
o viés da utilização da interface para propor uma metodologia, de forma
similar ao item do quadro 2 que utiliza a área da linguística computacional
juntamente com a ontologia como abordagens teórico-metodológicas para
criar um sistema de recuperação de informação, chamado de SIRILICO
(DUQUE, 2005) (expansão das três áreas citadas por Baranow em 1983).
O item 3 do quadro 3 relaciona a perspectiva cognitiva da inteligência
artificial e interação homem-máquina como o item 2 do quadro 1. E o
item 4 do quadro 3 fica mais longe do núcleo computacional da interface
analisada, permanecendo mais próximo do item 1 do quadro 1 por tratar com
profundidade uma área da linguística, qual seja da análise do discurso, e
seus pontos de intersecção com a linguagem, informação e comunicação
proposta por Gonzalez de Gomez (2004). Por fim, o quadro 4 aponta para a
indexação automática em diálogo com problemáticas semânticas, conforme,
por exemplo, os itens 7 e 8 do quadro 1.
RELAÇÕES ENTRE A LINGUÍSTICA COMPUTACIONAL E A CIÊNCIA DA INFORMAÇÃO: UM PANORAMA
20
Capítulo 1
3. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente estudo identificou as relações da linguística computacional
e ciência da informação dentro da literatura nacional da última (CI). O
levantamento bibliográfico de sete periódicos de relevância para a área
resulta em quatorze artigos a partir da pesquisa da palavra-chave “linguística
computacional”. Observou-se que desses catorze artigos, uma pequena
parte não tratava de fato da linguística computacional.
O artigo que obteve mais resultados abordando a interface da LC e
CI foi a Ciência da Informação. Verificou-se uma tendência sobre o assunto a
partir da década passada, e boa parte dos estudos tem sido produzidos em
Brasília, na UFMG, e UFF.
Por último, na análise qualitativa foi possível notar temas em
comum, mesmo em diferentes revistas, ressaltando áreas de intersecção
como a recuperação da informação, o processamento automático de texto,
e inteligência artificial. Também foi possível enxergar linhas mais teóricas,
utilizando uma perspectiva mais filosófica e sociológica para se debruçar
sobre o tratamento automático da língua em sua interação com a informação,
e outras mais aplicadas, por exemplo propondo a linguística computacional
como base teórico-metodológica para o desenvolvimento de um sistema de
recuperação da informação (Duque, 2005). Por fim, observou-se um grande
interesse pelas áreas de aplicação de busca, e raras menções sobre a
aplicação de tradução automática.
Assim, este trabalho contribui para essa interface no intuito de
apresentar um panorama de relações possíveis de expansão em nível teórico
e metodológico, visando abrir novas avenidas para se olhar e desenvolver
pesquisa no contexto brasileiro.
REFERÊNCIAS
ALMEIDA, Carlos Cândido de. Elementos de linguística e semiologia na
organização da informação. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2011.
BARANOW, Ulf Gregor. Perspectivas na contribuição da lingüística e de áreas
afins a ciência da informação. Ciência da Informação, Brasília, v. 12, n. 1, p. 23–35,
1983.
BRANCO et al. The Portuguese Language in the Digital Age. Meta net White
paper series. Springer. Disponível em http://www.meta-net.eu/whitepapers/e-book/
portuguese.pdf 2012.
DUQUE, C. G.. SiRILiCO uma proposta para um sistema de recuperação de
Informação baseado em teorias da lingüística computacional e ontologia.
In: Perspectivas em Ciência da Informação, 2005. Perspectivas em Ciência da
Informação. Belo Horizonte. v. 10. p. 253-258.
RELAÇÕES ENTRE A LINGUÍSTICA COMPUTACIONAL E A CIÊNCIA DA INFORMAÇÃO: UM PANORAMA
21
Capítulo 1
HJØRLAND,B.Knowledgeorganizationsystems(KOS). 2007. Disponível em: http://
www.iva.dk/bh/lifeboat_ko/concepts/knowledge_organization.htm
MCILWAINE, C.; MITCHELL, J. S. Preface to Special Issue. What is Knowledge
Organization. Knowledge Organization, 35(3/2), 79-81. Disponível em http://nkos.slis.
kent.edu/KO_35_2-3_ToC_Preface.pdf . 2008
MENDONÇA, E. S. A Lingüística e a Ciência da Informação: estudos de uma
interseção. Ciência da Informação, Brasília, v.29, n.3, p.50-70, 2000.
MOLLICA, M. C.; GONÇALEZ, M. Linguística e Ciência da Informação: diálogos
possíveis. Curitiba: APPRIS, 2012.
SANTOS, D. Um Centro de Recursos para o Processamento Computacional do
português. DataGramaZero. v.3 n.1 fev/2002.
RELATIONS BETWEEN COMPUTATIONAL LINGUISTICS AND INFORMATION
SCIENCE: AN OVERVIEW
ABSTRACT – Several studies on the interface between linguistics and information
science reveal contribution to the areas involved, such as terminology and documentary
analysis, and problems related to the construction of concepts and representation of
information. However, there is notably few works in the literature regarding the relation
between computational linguistics and information science. Thus, this study assessed
the knowledge produced in this interface, offering an overview of what has been
accomplished in the Brazilian context. Quantitatively, the results confirm the lack of
production on the subject; however, reveal a concentration of sub-areas studied in
relation to others, pointing to possible further research.
KEYWORDS: Linguistics; Computational linguistics; Information science; Machine
translation.
RELAÇÕES ENTRE A LINGUÍSTICA COMPUTACIONAL E A CIÊNCIA DA INFORMAÇÃO: UM PANORAMA
22
CAPÍTULO 2
A IMERSÃO DO OUVINTE ATRAVÉS
DA PAISAGEM SONORA E A PEÇA
RADIOFÔNICA ALEMÃ
Guilherme William Udo Santos
lattes.cnpq.br/5651116990628162
RESUMO - A riqueza da linguagem
radiofônica, com as palavras,
trilhas, efeitos e silêncios, é pouco
aproveitada
na
produção
de
radiofonia e na produção sonora
contemporânea
brasileira
em
diferentes gêneros e formatos.
Buscamos, então, apresentar formas
de valorizar o imaginário do ouvinte
no que tange à criação, produção
e recepção de produtos simbólicos
radiofônicos, com a perspectiva
de resgate da cultura da oralidade
apoiados por conceitos como a
Paisagem Sonora, de Murray Schafer
e a peça radiofônica alemã.
PALAVRAS-CHAVE: Comunicação;
Linguagem Radiofônica; Narrativa;
Paisagem Sonora; Rádio
1. A PAISAGEM SONORA
SEGUNDO MURRAY SCHAFER
No final da década de 1960,
surge um movimento com o intuito
de analisar o ambiente acústico
como um todo, era o início do
The World Soundscape Project. O
projeto foi estabelecido na Simon
Frayser University pelo pesquisador
R. Murray Schafer, que mais tarde
postularia a definição de “paisagem
sonora” (em inglês soundscape,
um neologismo que faz referência
a landscape, “paisagem”). Para
Schafer (2011), a paisagem sonora é
o ambiente sonoro, ou seja, qualquer
parte do ambiente e seus sons que
possam ser um campo de estudos.
Podemos então associar a paisagem
sonora ao universo constituinte da
sonoplastia do mundo, portanto, o
termo engloba som, silêncio, ruído e
todas as variantes desses elementos.
Um simples olhar para o
universo sonoro no qual fomos
imersos no século XX aponta para dois
aspectos: a presença do ruído, fruto
da revolução industrial; e a poluição
sonora, que ocorre justamente com
a presença exacerbada do primeiro
elemento. Não queremos aqui dizer
que o silêncio desapareceu neste
momento, isso já havia ocorrido
há tempos, pois conforme novas
tecnologias que facilitavam a vida
do homem surgiam, mais barulhento
ficava o mundo, assim “o número de
decibéis evolui na mesma medida
em que surgem novas engenhocas
facilitador as da vida cotidiana. A
carroça traz consigo muito mais ruído
do que o cavaleiro medieval” (JOSÉ,
2006, p.2).
A IMERSÃO DO OUVINTE ATRAVÉS DA PAISAGEM SONORA E A PEÇA RADIOFÔNICA ALEMÃ
23
Capítulo 2
Schafer aponta que ao longo dos anos muitos ruídos aportaram nas
paisagens sonoras e, por isso, ela se torna cada vez mais barulhenta. O
aumento desses ruídos influencia totalmente o modo de ouvir, fato que aponta
a urgente necessidade de um novo senso de audição, já que a transformação
da paisagem sonora da qualidade de hi-fi para lo-fi — nos termos de Schafer
— tira o foco de escuta do homem. Explicamos, em um ambiente hi-fi temos
uma alta fidelidade sonora, ou seja:
É aquela em que os sons separados podem ser claramente
ouvidos em razão do baixo nível de ruído ambiental. Em
geral, o campo é mais hi-fi que a cidade, a noite mais
que o dia, os tempos antigos mais que os modernos.
Na paisagem sonora hi-fi, os sons se sobrepõem menos
frequentemente. (SCHAFER, 2011, p.71)
Já uma paisagem sonora lo-fi o som acaba sendo mascarado
por outros ruídos, perde-se a compreensão individual e pode-se perceber
somente o todo. Nossos ouvidos estão acostumados com essa percepção
generalizada e, por esse motivo, Schafer propõe uma limpeza dos ouvidos,
nos fazendo voltar a escutar, o famoso “ouvido pensante”, defendido pelo
pesquisador. Essa limpeza tem um pressuposto simples: o de que cabe a
cada um de nós identificar os sons que compõem as paisagens sonoras do
mundo contemporâneo.
Tudo isso faz com que o homem acabe perdendo sua escuta focada,
tornando o seu discurso algo totalmente chapado, com simples palavras
soltas que até comunicam, mas não sensibilizam o ouvinte. Schafer, em seus
escritos, propõe que façamos uma limpeza dos ouvidos, passando a “escutar”
através de um “ouvindo pensante”.
Ouvir é um ato passivo, automático, enquanto escutar
implica uma atenção desperta, ativa, que fórmula
perguntas e sugere respostas, que se antecipa à ação
futura que talvez vá incrementar a audição. Ouvir não
põe em jogo mais do que os canais do ouvido. Escutar
engloba todo o circuito do pensamento. (BELAU apud
FERRARETTO, 2001, p.28)
escutar:
Assim, Moles considera que existem quatro formas distintas de
Escuta ambiental: Tudo o que o ouvinte busca no meio de
comunicação rádio É um fundo musical ou de palavras.
Escuta em si: O ouvinte presta atenção marginal
interrompida pelo desenvolvimento de uma atividade
A IMERSÃO DO OUVINTE ATRAVÉS DA PAISAGEM SONORA E A PEÇA RADIOFÔNICA ALEMÃ
24
Capítulo 2
paralela.
Atenção Concentrada: Supõe um aumento no volume
de som do receptor, superando os sons do ambiente
e permitindo a concentração do ouvinte na mensagem
radiofônica.
Escuta por Seleção: O ouvinte sintoniza intencionalmente
um determinado programa e a ele dedica sua atenção.
(MOLES apud FERRARETTO, 2001, p.28)
E Ferraretto complementa:
As formas de recepção definidas por Moles não são
permanentes ao longo da sintonia em uma determinada
programação. Em proporção variável, chegam a se
interpenetrar. Por exemplo, uma pessoa liga o rádio
em uma emissora determinada julgando ser aquela
programação o melhor pano de fundo para a realização
das suas atividades. Misturam-se aí, de certo modo, duas
formas de recepção distintas por ambiente e por seleção.
Imagine-se, de outra parte, uma situação em que o
ouvinte busca um fundo sonoro para acompanhar suas
atividades (ambiente). As canções vão se sucedendo
e, em dado instante, uma lhe desperta uma atenção
marginal (escuta em si). Na sequência, uma notícia muito
importante faz com que esta pessoa focalize seu interesse
na transmissão que, momentaneamente, interrompe
a programação musical (atenção concentrada).
(FERRARETTO, 2001, p.29)
Enquanto Schafer pontua a vulnerabilidade do nosso ouvido, que
se encontra sempre aberto e suscetível a qualquer som que esteja dentro
da frequência sonora audível pelos humanos. Não selecionamos que som
ouvimos, apesar de podermos realizar uma escuta seletiva e pensada.
Ao contrário de outros órgãos dos sentidos, os ouvidos
são expostos e vulneráveis. Os olhos podem ser
fechados, se quisermos; os ouvidos não, estão sempre
abertos. Os olhos podem focalizar e apontar nossa
vontade, enquanto os ouvidos captam todos os sons do
horizonte acústico, em todas as direções. (SCHAFER,
2011, p.67)
2. A PAISAGEM SONORA NO RÁDIO
De forma breve e resumida, podemos apontar que Balsebre nos
demonstra que a Radiofonia é resultante de vibrações que são processadas
A IMERSÃO DO OUVINTE ATRAVÉS DA PAISAGEM SONORA E A PEÇA RADIOFÔNICA ALEMÃ
25
Capítulo 2
pelo corpo humano, portanto, a linguagem radiofônica pode se apoiar em três
elementos: oralidade, sonoridade e silêncio. O primeiro deles é representado
pela palavra falada, como som fonético; enquanto o segundo é todo e
qualquer som musical ou efeito sonoro. O silêncio, portanto, é a ausência
destes fatores.
Sendo assim, a paisagem sonora em uma peça radiofônica é tudo
aquilo que diz respeito à sonoridade e ao silêncio, espaço no qual será
inserida a oralidade, posteriormente ou concomitantemente. Sendo assim,
ao conjunto sonoridade e silêncio iremos chamar de “sonoplastia”, que pode
envolver os seguintes elementos: música, trilha e efeito sonoro.
A música é definida por Maria de Lurdes Sekeff (1998, p.36) como “um
sistema de signos, promovendo comunicação e expressão. Sistema sintático
de semântica autônoma é linguagem portadora de qualidades, linguagem
icônica que só fala dela mesma e, por isso, com um alto poder de sugestão”.
Esse elemento é apresentado em sua íntegra na programação radiofônica,
portanto, como uma peça específica e isolada.
Na programação atual de nossas rádios, é comum encontrarmos
programas que são meras listas de reprodução, ou seja, um agrupamento de
músicas de estimulação rítmica parecida ou contrastante que são veiculadas
uma na sequência de outra, com pouca ou nenhuma intervenção de locutores.
Já a trilha é um trecho de uma música, um corte na sua integridade,
reconhecível ou não, que serve como suporte para a oralidade. A edição
desses trechos, seleção dos cortes e forma de junção são escolhas artísticas
que atendam à demanda solicitada pela peça radiofônica. Segundo Kaplún,
ela pode ter diversas funções:
Função gramatical: como signo de pontuação. [...] Pode
ser utilizada para separar séries, blocos ou mesmo
separar um assunto do outro.
Função expressiva: quando [...] é usada para contribuir
para um clima emocional, uma atmosfera sonora. [...]
Função descritiva: [...] muitas vezes descreve paisagens,
nos dá a referência de um lugar.
Função reflexiva: [...] é usada como tempo de repouso
para o ouvinte. Enquanto ouve um trecho de música o
ouvinte pode pensar na informação recebida há pouco,
e dessa forma se prepara para absorver as informações
seguintes.
Função ambiental: [...] usada como ambientação sonora,
apenas como reprodução do som do ambiente. (KAPLÚN,
1978, p.163)
O efeito sonoro entra para quebrar a ordem, nos termos de Schafer,
A IMERSÃO DO OUVINTE ATRAVÉS DA PAISAGEM SONORA E A PEÇA RADIOFÔNICA ALEMÃ
26
Capítulo 2
ele seria um elemento que quebra o silêncio, que vem alterar o que estava
ocorrendo. Assim, seu uso, normalmente, tem como foco chamar a atenção
do ouvinte para algo. Deseja-se criar um impacto no que está sendo ouvido.
Em um estudo apresentado ao NP Mídia Sonora em Rádio, do VI
Encontro dos Núcleos de Pesquisa da Intercom, Carmen Lucia José e Marcos
Julio Sergl apresentam a relação desses elementos com a paisagem sonora:
A paisagem sonora retida na memória do cidadão é
recriada nas mídias, por meio de ambiências sonoras
presentes no inconsciente do receptor. A proposta de
Schafer de uma escuta mais focada encontra ressonância
na referencialização da paisagem sonora nas mídias.
(...)As definições de Schafer a respeito dos elementos
formadores de cada evento sonoro: ruído (interferência
sonora, sons que interferem); silêncio (recipiente
dentro do qual o evento musical é colocado, caixa
de possibilidades); timbre (cor do som); amplitude
(perspectiva na música — vai do som mais frágil ao mais
robusto; do mais fraco ao mais forte possível); melodia
(combinação de sons); textura (diferentes interlocutores
com pontos de vista opostos, diálogo de linhas); e ritmo
(articulação de um percurso, como degraus, dividindo o
todo em partes) apontam para a sistematização de um
referencial para a sonoplastia. A paisagem sonora é a
interação de todos esses elementos.
A subdivisão feita por Schafer sobre os eventos ouvidos
em: som fundamental (aquele que domina na paisagem
sonora: o som dos motores na metrópole e do tráfego
aéreo: grandes blocos sonoros); sinais (quaisquer sons
para os quais a atenção é direcionada, sons destacados
— ouvidos conscientemente: aparelhos de rádio e
televisão, sons de trânsito nas ruas, ar-condicionado);
marca sonora (som que identifica uma coisa, um lugar,
um produto — quando ouvido, remete quem ouve
imediatamente àquele objeto ou produto — que possui
qualidades que o tornam específico de determinada
comunidade, que induz a uma determinada sensação, a
um local, a um cheiro, ou seja, cria um referencial sonoro
para uma locação temporal, emocional ou geográfica);
evento sonoro e objeto sonoro (menores partículas
independentes da paisagem sonora), indica a subdivisão
adotada na sonoplastia.
O som fundamental é o texto, o som verbal-oral. A
música também pode ser considerada som fundamental,
na medida em que a escolha do elenco de músicas
de determinada emissora identifica a direção artística
adotada. Os sinais são nomeados como trilha na
sonoplastia. Eles atuam como ambiência sonora (como
A IMERSÃO DO OUVINTE ATRAVÉS DA PAISAGEM SONORA E A PEÇA RADIOFÔNICA ALEMÃ
27
Capítulo 2
pano de fundo) determinada pelo texto verbal-oral. A
marca, o evento e o objeto sonoro se tornam os efeitos
sonoros na sonoplastia. (JOSÉ, 2006, p.14)
Os dois pesquisadores vão além e propõem uma definição para
paisagem sonora dentro do contexto da linguagem radiofônica:
Em áudio, a paisagem sonora é uma composição
sonoplastica em que os elementos constituintes da
sonoridade são selecionados e associados para
compor um ambiente acústico para a palavra falada, do
mesmo modo que, na escrita, muitas vezes a descrição
confecciona um ambiente para o personagem desenvolver
uma ação. Os recursos da sonoridade, trilhas e/ou efeitos
sonoros, são escolhidos para construir um fundo sonoro
em que o texto verbal-oral será locado. Ainda: é uma
seleção/associação sonora que expande os sons numa
linha horizontal em altitude constante ou, através dos
ritmos, em diferentes altitudes, construindo um tempo/
espaço virtual para um determinado texto verbal.
(...)resulta da interface sintática entre trilhas e efeitos
sonoros para confeccionar o nível semântico da peça
radiofônica, composto já de algumas indicações usuais
de produção que constituem referência na radiofonia.
Aqui, algumas dessas indicações:
1 — a paisagem sonora de vinhetas da rádio é
confeccionada para indiciar a direção artística ou o
público-alvo da emissora, a mudança de estimulação
entre as músicas do bloco, passagem de tempo, mudança
de lugar, de qualidades etc.;
2 — a paisagem sonora da vinheta de abertura/
encerramento é confeccionada para apresentar a
editoria do programa ou do programete, como prefixo dos
mesmos, isto é, para criar uma marca de reconhecimento;
3 — a paisagem sonora de chamadas e spots é
confeccionada para contextualizar produtos e serviços,
eventos, instituições etc.;
4 — a paisagem sonora de abertura para documentário ou
reportagem é confeccionada como sumário do programa,
como contraponto sonoro à programação musical do
programa, como panorama histórico-geográfico do
tema, como retrato sonoro de grande audiência de uma
personalidade ou de uma época;
5 — a paisagem sonora de vinhetas variadas é
confeccionada para, pela redundância, indicar algumas
peças fixas da grade, como por exemplo: Hora Certa,
Tempo e Temperatura, Trânsito, Utilidade Pública. (JOSÉ,
A IMERSÃO DO OUVINTE ATRAVÉS DA PAISAGEM SONORA E A PEÇA RADIOFÔNICA ALEMÃ
28
Capítulo 2
2006, p.14)
Essa divisão somente apresenta o uso das paisagens sonoras nos
produtos existentes na rádio brasileira, mas não aponta caminhos que faltam
ser explorados. Vemos citações aos gêneros que nos propomos analisar,
mas não apreendemos como esgotadas nestas definições as possibilidades
para eles. O potencial criativo do veículo é muito grande para se limitar às
definições antes apresentadas.
Paisagens sonoras podem ser utilizadas como recurso de
ambientação: um exercício simples é tentar retratar através de sons o dia a
dia de um indivíduo. A exploração através de efeitos, ruídos e silêncios unidos
com trilhas sonoras podem representar as ações realizadas neste cotidiano.
A paisagem serviria como um retrato sonoro.
Sendo assim, elementos deste retrato não poderiam estar presentes
em uma peça radiofônica? Mais adiante discutiremos gêneros e formatos
e abordaremos de forma mais profunda algumas peças, mas de antemão
podemos falar sobre a reportagem. Esse formato poderia abrigar elementos
sonoros que registrassem a “paisagem” em que os indivíduos retratados
estão imersos.
Dar esses elementos ao ouvinte é fornecer ferramentas para que ele
apure sua audição, interprete o que está além do verbal e possa depreender
outras interpretações do assunto abordado. Em resumo, transferimos parte
do poder de entendimento para o público que passa a ter como “dever” uma
escuta mais apurada, mais minuciosa, mais atenta, como diria Schafer, e,
com isso, não só enriquecemos nosso produto, como fomentamos uma
sociedade com poder de interpretação.
A interpretação se torna lúdica quando fomentada por informações
sensoriais contidas na paisagem sonora e, portanto, a assimilação da
informação se torna atraente e mais fácil de ser executada. Por isso, a
apropriação de elementos que em tese se relacionam ao ficcional (mas que
na verdade são elementos da narrativa), por informações jornalísticas pode
auxiliar na apreensão da informação.
O lúdico provém do mito que é baseado no ritual. Todos temos ritos,
independente de crenças e religiões, pois um rito nada mais é, segundo
o dicionário Houaiss, do que “qualquer processo de cunho sagrado ou
simbólico, susceptível de estabelecer e desenvolver costumes”. Deste modo,
o ato de entrar no carro e ligar o rádio, ou acordar com a voz de um locutor
sendo emanada, é um ritual que muitos têm.
Por isso, dentro da construção de uma paisagem sonora, as rádios
ainda respeitam alguns preceitos, mesmo que de forma não consciente.
Atendemos a algumas leis da natureza:
Ainda que seja tácito que a programação radiofônica,
A IMERSÃO DO OUVINTE ATRAVÉS DA PAISAGEM SONORA E A PEÇA RADIOFÔNICA ALEMÃ
29
Capítulo 2
assim como a de todas as mídias, esteja submetida às leis
de mercado, vigentes no sistema capitalista, salientamos
que os ritmos da cultura e os da natureza subjazem,
inconscientemente, à indústria do entretenimento. A partir
da análise das “desimportâncias”, menos comprometidas
com as aparências factuais, apontamos que a elaboração
das pautas e dos roteiros dos programas de rádio,
organizados simbolicamente, aproxima-se à ciclicidade
da natureza. Reiteram a oposição claro-escuro.
Sujeitam-se ao aparecimento e desaparecimento da lua,
como a programação musical da maioria das emissoras,
organizada em dois turnos: das 6h às 19h e das 20h às
6h.[...]O rádio, como ser da cultura, reproduz em suas
pautas mecanismos simbólicos cuja intenção é superar as
perdas que desestabilizam o homem. Cruzamento entre
os processos da natureza e os da segunda realidade.
Bachelard [...], em seu artigo “Devaneio e Rádio”,
descreve-nos uma transmissão radiofônica apta a
transportar o ser falante à sua mais profunda intimidade.
A voz do locutor empurra-nos para mais longe, ao centro,
ao umbigo do sonho, a um ponto obscuro e ininterpretável.
(NUNES, 1993, p.38)
A paisagem sonora, portanto, auxilia na construção do mito, na
realização do ritual e transporta o ouvinte para aquele “espaço” na qual ele
(imerso em suas interpretações) realiza o rito de passagem com o rádio,
tornando-se elemento crucial para a existência do meio; existência esta
condicionada ao término do processo, que é a interpretação do que se
transmite pelo receptor.
3. A PEÇA RADIOFÔNICA ALEMÃ: O HÖRSPIEL
Para os fins desta pesquisa, escolhemos a abordagem alemã
para o entendimento de peça radiofônica, pois o conceito corrobora nosso
pensamento sobre o tratamento estético da informação no rádio e o uso
expressivo da linguagem radiofônica, já que a Alemanha é o berço de um
fenômeno: a convivência pacífica entre o rádio e experimentos estéticos.
Esse processo, que teve seu apogeu entre 1929 e 1935, teve como principais
atores os artistas de vanguarda ao refletirem sobre a rádio arte ou arte
acústica. Logo com as primeiras transmissões em 1923, surge o Hörspiel,
que em tradução literal significa “jogo para o ouvido”, mas o termo ficou
conhecido como peça radiofônica. As peças eram fruto da mistura entre arte
e técnica e tão apreciadas no país que eram elaboradas de forma sistemática
por dramaturgos, diretores de teatro, literatos e profissionais das primeiras
rádios alemãs. Naquela época, três formas de produção artística podiam ser
identificadas no rádio:
A IMERSÃO DO OUVINTE ATRAVÉS DA PAISAGEM SONORA E A PEÇA RADIOFÔNICA ALEMÃ
30
Capítulo 2
•
O Hörspiel como extensão do palco: no qual a peça
radiofônica era baseada em formas artísticas ditas puras, como a
literatura e o teatro. Era a difusão de textos chamados clássicos por
meio de adaptações de dramas e romances.
•
A peça radiofônica escrita para a linguagem do novo
meio: os artistas começavam a explorar o potencial expressivo do
veículo, criando uma prática mais complexa. A peça radiofônica
inglesa A comedy of danger (1924), de Richard Hughes, é um exemplo
clássico ao narrar a entrada de pessoas em uma mina onde as luzes
se apagam. Hughes suprimiu a visão dos personagens e através
deste artifício colocou-as nas mesmas condições de percepção do
ouvinte. Em 1928, o alemão Friedrich Wolf introduz um recurso ao
Hörspiel com SOS Rao-Rao-Foyn / Krassin rettet Italia, uma peça
que tinha por tema uma reportagem radiofônica ao vivo (o exemplo
mais clássico desse recurso foi criado dez anos depois por Orson
Welles, A Guerra dos Mundos). Freiedrich criou uma narrativa que
abordava o acidente de uma aeronave que sobrevoava o Polo Norte.
Porém, outros recursos dramatúrgicos também surgiram como o
uso de som por meio do seu poder sugestivo de maneira que os
sons introduzissem os ouvintes nas dimensões dos pensamentos e
emoções internas dos personagens, ferramenta utilizada por Eduard
Reinacher na peça radiofônica Der Narr mit der Hacke (O tolo e a
picareta), de 1930, cuja trama gira em torno de um monge japonês
que cava um túnel em uma montanha que isola um vilarejo de todo
o resto do mundo. Os habitantes têm como sinal do monge o som de
sua picareta, ouvido durante toda a peça. Quando o monge termina
a passagem que servirá a todo o povo do vilarejo, o ouvinte descobre
que, na sua juventude, o monge matou um homem com a picareta e
seu trabalho é uma forma de redenção pelo seu pecado.
•
O Hörspiel como experimentação sonora: essa prática
partia de um ponto diferente ao propor a expansão do meio rádio.
Hans Flesch, diretor da Rádio Hora Berlim afirmou que “precisamos
moldar não somente o novo meio, mas um novo conteúdo: nosso
programa não pode ser criado numa escrivaninha” (FLESCH apud
CORY, 1992, p.339). Em outubro de 1924, a peça Zauberei auf dem
Sender (Microfone mágico), de Flesch, era transmitida em Frankfurt,
e com ela, ele já desafiou convenções radiofônicas da época, ao
utilizar interrupções, efeitos sonoros e distorção dos tempos musicais.
3.1. O Filme Acústico
Em 1926, surge a peça radiofônica Der tönende Stein (A pedra
sonora), de Alfred Braun, diretor da Rádio Berlim. Essa obra foi denominada
pelo próprio autor como “filme acústico”. Porém é o cineasta Walther Ruttmann
(1887-1941) que apresenta a obra mais elaborada do gênero. Ele, em 1928,
A IMERSÃO DO OUVINTE ATRAVÉS DA PAISAGEM SONORA E A PEÇA RADIOFÔNICA ALEMÃ
31
Capítulo 2
cria o primeiro filme acústico com Wochenende (Fim de semana), uma
gravação paga por Hans Flesch. Na peça, o autor se vale da banda sonora
de uma película cinematográfica para registrar sons que eram produzidos
em estúdio e manipulá-los por meio de uma montagem. Posteriormente, este
material seria apresentado através de radiodifusão.
A dramaturgia desta peça acabava por estimular a imaginação do
ouvinte, que criava espaços onde a ação do filme sonoro transcorre. Pela
narrativa, o ouvinte é conduzido a perceber a transição de um extenuante dia
de trabalho para a suavidade de um dia de descanso. Ao terminar o repouso,
volta-se à realidade do trabalho em uma metrópole moderna. Através de
cortes, fusões e justaposições, Ruttmann criou um discurso sonoro com a
lógica da montagem cinematográfica, já que a fita magnética só surgiria nos
anos 1940. Diria Alfred Braun:
Filmes acústicos — chamávamos assim a peça para
rádio naqueles dias em Berlim, em que um diretor
de rádio tinha de criar tanto seu próprio material
original quanto seus scripts de trabalho — eram
obras nas quais se transferiam conscientemente
as técnicas do cinema para o rádio, a fim de que
as imagens fluíssem oniricamente e mudassem
em rápida sucessão, imagens reduzidas, imagens
superpostas, close-ups se misturando ou se
alternando, e tomadas longas. Cada uma dessas
pequenas imagens era posicionada em um plano
acústico particular, circundadas por um set acústico
particular:
1 minuto de rua com música alta de uma quadra de
Leipzig;
1 minuto de uma marcha de protesto;
1 minuto da bolsa de valores num dia de quebra;
1 minuto de fábrica com sua sinfonia de máquinas;
1 minuto de estádio de futebol;
1 minuto de estação de trem etc. (BRAUN apud
CORY, 1992, p.339-340)
A montagem cinematográfica tem uma importância nas composições
radiofônicas de modo geral e foi motivo de reflexão ao longo de todo o século
XX. Klippert (1980) menciona em Elementos da peça radiofônica, que escreveu
em 1977, as reflexões da teórica soviética Tatiana Martschenko. Ela entendia
a montagem como um como elemento indissociável da peça radiofônica, já
que o próprio pensamento humano é um processo de montagem:
A IMERSÃO DO OUVINTE ATRAVÉS DA PAISAGEM SONORA E A PEÇA RADIOFÔNICA ALEMÃ
32
Capítulo 2
O nosso próprio modo de pensar é semelhante à
montagem na sua velocidade, é muito mais semelhante
à montagem do que qualquer ação visível. Se um autor
quisesse subordinar o aspecto imagético de uma peça
teatral ou de um filme cinematográfico à lógica da
montagem do nosso pensamento imediato, o espectador
defrontar-se-ia com um caos, que não seria passível
de percepção ou compreensão. A peça radiofônica,
contudo, tem a possibilidade de acompanhar o fluxo do
nosso pensamento subjetivo. (MARTSCHENKO apud
KLIPPERT, 1980, p.31)
Partindo da teoria de Eisenstein e Pudovkin, segundo a qual a
montagem “é a justaposição racional, sensível e funcional de trechos,
detalhes, fragmentos, e da qual resulta não apenas uma soma, mas uma nova
qualidade” (Martschenko apud Klippert, 1980, p.30), a pesquisadora chega a
concluir que não são idênticos os processos de montagem cinematográfica
e da montagem radiofônica, já que a montagem no rádio pode ser realizada:
Mediante a pausa pura (fusão no filme); mediante a
mixagem por fusão (fusão sobreposta no cinema);
mediante o texto do locutor ou narrador (de forma análoga
aos títulos ou comentários em subtítulos no cinema);
mediante o cenário acústico e a pausa (a paisagem
etc., no filme); mediante a música (idem para o filme);
mediante a mudança da perspectiva acústica ou do ponto
de partida da fonte sonora (enquadramento e perspectiva
no filme), etc. (MARTSCHENKO apud KLIPPERT, 1980,
p.30-31)
Martschenko ainda aponta as possibilidades do corte e da mixagem,
cujos resultados podem gerar alterações no tempo narrativo, aumentando-o
ou diminuindo-o, fazendo-o dar saltos seja para frente ou para trás e, desta
forma, criando uma simultaneidade entre acontecimentos passados e
presentes.
Porém, por mais interessantes que os trabalhos de “filme sonoro”
fossem, sua repercussão na época não foi expressiva por três motivos: o
alto custo de produção, já que sua gravação era feita em película; pouca
audiência e precariedade dos receptores de rádio da época; e por ser um tipo
de intervenção vanguardista com conotação de oposição à política da época,
sendo que criadores como Friedrich Bischoff, Hans Flesch, Alfred Braun,
Ernest Hardt e Eduard Reinacher sofreram perseguições.
Durante a Segunda Guerra Mundial, o rádio alemão passa a
desempenhar um papel político de motivação das massas e o Hörspiel, a
peça radiofônica em sua modalidade literária tradicional, se desenvolve com
A IMERSÃO DO OUVINTE ATRAVÉS DA PAISAGEM SONORA E A PEÇA RADIOFÔNICA ALEMÃ
33
Capítulo 2
aumento da audiência e estimulado pelo programa de venda de receptores
de rádio a preços populares promovido por Joseph Goebbels.
3.2. O Hörspiel no Pós-Guerra e a Nova Peça Radiofônica
Em 1947, com Draussen vor der Tür (Do lado de fora da porta)
— drama sobre um soldado alemão que retorna a sua casa, de Wolfgang
Borchert, ocorre o renascimento da peça radiofônica literária após a Segunda
Guerra. Borchert empregava um recurso dramatúrgico muito semelhante
ao utilizada por Eduard Reinacher em Der Narr mit der Hacke (1930). Os
sons simbólicos utilizados por Borchert eram o barulho de dedos batendo em
portas e portas se abrindo e fechando.
Com a produção de Träume (Sonhos), de Günter Eich, em 1951, o
Hörspiel é impulsionado novamente. Como aponta Mark E. Cory, a história da
radioarte na Alemanha aponta o período dos anos 1950 e começo dos 1960
como a era clássica da peça radiofônica, já que surgem textos de Günter
Eich, Ingeborg Bachmann, Max Frisch, Friedrich Dürrenmatt, Ilse Aichinger,
Heinrich Böll, Peter Hirche, Fred von Hoerschelmann, Wolfgang Hildesheimer,
Leopold Ahlsen e Wolfgang Weyrauch, entre muitos outros, cujos trabalhos
foram discutidos enquanto obra literária.
A partir dos anos 1960, a peça radiofônica passa a ser repensada
em seus fundamentos, abrigando diferentes correntes de pesquisa, surgindo
a Neue Hörspiel (nova peça radiofônica), como denominou o dramaturgo
alemão e diretor do Studio Akustische Kunst da WDR, Klaus Schöning. Vários
acontecimentos contribuíram para a retomada do debate sobre o Hörspiel.
O primeiro deles ocorreu em 1961 com a publicação de Das Hörspiel:
Mittel und Möglichkeiten eines totalen Schallspiels (A peça radiofônica: meios
e possibilidades de uma peça sonora total), livro do autor austríaco Friedrich
Knilli. Esta obra abalou o Hörspiel clássico, já que o autor afirmou que tal
modelo estava exaurido por tratar-se de um discurso eminentemente literário,
e não genuinamente sonoro. Knilli diria:
Hoje, o autor de peças radiofônicas [Hörspiel] pode
somente livrar-se da estreiteza da peça radiofônica
verbal [Worthörspiel] expandindo a dimensão acústica
da peça radiofônica tradicional, experimentando meios e
possibilidades tanto da música eletrônica (Meyer-Eppler,
Eimert) quanto da musique concrète (Pierre Schaeffer).
(KNILLI apud CORY, 1992, p.352)
As experimentações seminais de Paul Pörtner também contribuíram
para a retomada das discussões sobre o Hörspiel. Entre 1964 e 1969, Pörtner
realizaria os seus Schallspielstudiei (Estudos de jogos sonoros), que eram
obras nas quais ele se valia dos processos de compressão, extensão e
A IMERSÃO DO OUVINTE ATRAVÉS DA PAISAGEM SONORA E A PEÇA RADIOFÔNICA ALEMÃ
34
Capítulo 2
abstração de sons não-verbais a partir de material verbal (palavras). Assim,
ele abria uma gama de possibilidades criativas, rompendo com a tradição
literária ao desconstruir a semântica e o discurso verbal organizado.
Nada como o trabalho de Pörtner havia sido transmitido
como peça radiofônica [Hörspiel] desde a guerra.
E embora Paul Pörtner tenha significativamente se
apoiado na música eletrônica em seus estudos de Jogos
Sonoros (estudos 2 e 3), a peça radiofônica [Hörspiel]
tornou-se acessível e interessante novamente para a
vanguarda através dessa constelação de Knilli, Pörtner e
Schitthenner. (CORY, 1992, p.354-355)
A Rádio Sudoeste Stuttgart transmitia Fünf Mann Menschen, de
Ernest Jandl e Friederick Mayröcker, em 1968. A obra era composta por
peças radiofônicas de cinco minutos em forma de vinhetas, que viriam a
receber o Prêmio dos Cegos de Guerra para Peça Radiofônica. As vinhetas
apresentavam nascimento, vida e morte na moderna sociedade ocidental por
meio de uma visão crítica.
O Seminário de Música Nova de Colônia, promovido em conjunto com
o departamento de Hörspiel da WDR em 1970, trouxe o compositor Mauricio
Kagel para abordar o tema “Música como peça radiofônica”, defendendo o
apagamento das fronteiras entre as duas formas artísticas para benefício de
ambas e, a partir dos anos 80, a peça radiofônica começa a ganhar relevância
na vida e na consciência sociocultural das pessoas.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao pensarmos o rádio como meio da expressão artística e cultural
de um povo, veremos a eminente necessidade de retratar nele as ideias,
pensamentos e opiniões de todas as classes que compõem essa sociedade,
além de comportamentos, valores, hábitos e até costumes e crenças, tornando
possível a manifestação das sensações e sentimentos humanos através do
som. Em resumo, a palavra, a música, o silêncio e os efeitos especiais deixam
de ser uma unidade quando combinados e se modificam, potencializando
a expressividade do rádio. As combinações que criam melhores condições
para que os ouvintes possam formar imagens auditivas, indispensáveis
ao entendimento da mensagem, pois, só através delas é que o veículo
vai conseguir estimular, envolver e atrair. Assim, tudo depende da arte da
composição sonora para reforçar a expressividade da linguagem radiofônica,
a força da mensagem está contida na forma em que ela é transmitida. Se
elaborarmos esteticamente um conteúdo, seu apelo, sua penetração e,
consequentemente, sua importância ganham valor frente a conteúdos mal
trabalhados, meramente informativos, que acabam, por sua vez, não tendo
espaço na audição do ouvinte.
A IMERSÃO DO OUVINTE ATRAVÉS DA PAISAGEM SONORA E A PEÇA RADIOFÔNICA ALEMÃ
35
Capítulo 2
Acreditamos no potencial expressivo do meio, valorizando a emoção
do acontecimento, ou seja, achar drama na própria mensagem, utilizando o
rádio com mais criatividade diante de tudo o que pode proporcionar enquanto
meio informativo e expressivo através de todas as suas ferramentas. Assim,
explorar as potencialidades de expressão do rádio, alternando palavras,
vozes, sons, efeitos, ruídos e silêncios, é trazer para o veículo a verdadeira
peça radiofônica.
REFERÊNCIAS
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contextos. Organização: Eduardo Meditsch. Florianópolis: Insular, 2005.
______. El lenguaje radiofónico. Madrid: Cátedra, 2007.
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FERRARETO, Luiz Artur. Rádio: história e técnica. Rio Grande do Sul: Sagra-Luzzatto,
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KAPLÚN, Mario. Producción de programas de radio: el guión — la realización.
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KLIPPERT, Werner. “Elementos da peça radiofônica”. In: SPERBER, George Bernard
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NUNES, Mônica Rebecca Ferrari. O mito no rádio: a voz e os signos de renovação
periódica. São Paulo: Annablume, 1993.
SCHAFER, R. Murray. A afinação do mundo. Tradução: Marisa Trincha Fonterrada.
São Paulo: Editora Unesp, 2011.
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(1979). In: SPERBER, George Bernard (org.). Introdução à peça radiofônica. São
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______. On the archaeology of acoustic art in radio (1997). In: Sound Klangreise
Journey. Studio Akustische Kunst (155 Werke, 1968-1997). Köln: Westdeutscher
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SILVA, Júlia Lúcia de Oliveira Albano da. Rádio: oralidade mediatizada: o spot e os
A IMERSÃO DO OUVINTE ATRAVÉS DA PAISAGEM SONORA E A PEÇA RADIOFÔNICA ALEMÃ
36
Capítulo 2
elementos da linguagem radiofônica. São Paulo: Annablume, 1999.
SPERBER, George Bernard (org.). Introdução à peça radiofônica. São Paulo: EPU,
1980.
LISTENER’S IMMERSIVE EXPERIENCE THROUGH SOUNDSCAPE AND
GERMAN RADIOPHONIC PLAY
ABSTRACT - The richness of radio language, with words, tracks, effects and silences,
is not used much in the production of radiophony and in contemporary Brazilian sound
production in different genres and formats. This text seeks, then, to propose ways in
which one could enhance the listener’s imagination regarding the creation, production
and reception of radio symbolic products, with the perspective of rescuing the culture
of orality supported by concepts such as the Soundscape, by Murray Schafer and the
German radiophonic play.
KEYWORDS: Communication; Radiophonic Language; Narrative; Soundscape;
Radio.
A IMERSÃO DO OUVINTE ATRAVÉS DA PAISAGEM SONORA E A PEÇA RADIOFÔNICA ALEMÃ
37
Capítulo 3
CAPÍTULO 3
CONSIDERAÇÕES SOBRE O
CADASTRO TERRITORIAL E A
INFORMALIDADE URBANA
Josiane Nascimento Andrade
lattes.cnpq.br/8508224715046228
Universidade Federal de
Pernambuco
RESUMO - A recorrente existência
de assentamentos informais nas
cidades latinas reflete os diversos
problemas de gestão e planejamento
enfrentados.
Devido
à
sua
complexidade e configuração, muitos
destes espaços não são fáceis de
identificar e, assim, não constam nos
registros territoriais. Isto dificulta o
acesso da população ao processo
de regularização, mantendo sua
condição de ilegalidade e seu
afastamento
da
infraestrutura
disponível para outros setores das
cidades. O uso de tecnologias na
identificação e registro destas áreas
é um tema de estudos recentes,
configurando um estado da arte
interessante para esta o tema. Desta
forma, neste trabalho apresentamse estudos recentes acerca da
questão social da informalidade e
possibilidades para sua resolução,
passando pela configuração de um
cadastro territorial e de políticas
públicas específicas.
PALAVRAS-CHAVE: Informalidade
urbana; Regularização fundiária;
cadastro.
1. INTRODUÇÃO
A dinamicidade do processo
de urbanização, o crescimento
desordenado e as constantes
mudanças nos padrões de ocupação
do solo exigem dos municípios
novos instrumentos de gestão e
planejamento. Os assentamentos
informais
são
uma
realidade
em diversas cidades, refletindo
problemas de ordem tanto econômica
quanto social.
A gestão das cidades e de
seu desenvolvimento urbano exige
que se conheça detalhadamente
seu espaço e suas especificidades.
O emprego de geotecnologias
torna-se importante na elaboração
de levantamentos confiáveis, que
possam se comparar aos registros
anteriores e que apontem com
precisão as eventuais mudanças
realizadas.
Por
compreender
desde as medições até a avaliação
socioeconômica
da
população
de uma cidade, considera-se o
mapeamento
e
caracterização
das situações de irregularidade
importantes na construção de um
panorama atualizado e preciso
acerca do espaço urbano.
CONSIDERAÇÕES SOBRE O CADASTRO TERRITORIAL E A INFORMALIDADE URBANA
38
Capítulo 3
Embora as situações de irregularidade sejam observadas nas mais
distintas classes sociais e regiões, nas áreas ocupadas por pessoas de baixa
renda que estas são mais marcantes, com características que se assemelham
em diversas cidades da América Latina, como a construção de moradias em
morros e áreas precárias, com pouca ou nenhuma infraestrutura disponível.
Embora existam bases legais e diretrizes específicas para o uso e
ocupação do solo urbano, a complexidade das irregularidades observadas
não compõe uma base de dados atualizada, com a descrição fiel do espaço
e de suas características. Uma forma efetiva para tal é o Cadastro Territorial,
que identifica e registra características pré-definidas, ligando pessoas a terra e
as integra ao sistema de gestão municipal, proporcionando análises precisas
e visualização da distribuição espacial com o auxílio de mapas temáticos.
Considerando estas observações, uma questão norteia este estudo:
“Qual a aplicabilidade do cadastro como instrumento de regularização
urbana nas cidades da América Latina?”. Embora seja este o problema a ser
respondido outros surgem e têm importância na discussão principal: “O que
levou estas áreas a apresentar tamanha complexidade de uso do solo? Qual
o papel dos agentes produtores do espaço nesta configuração e quais as
suas influências nas irregularidades urbanas observadas? Quais as políticas
públicas e soluções adotadas recentemente para a questão da informalidade
urbana?”. Desta forma, este trabalho objetiva analisar o estado da arte acerca
da informalidade urbana na América Latina, caracterizando semelhanças e
possíveis ferramentas para a resolução deste problema.
Para que compreenda a temática e seus desdobramentos, será
desenvolvido aqui um breve estado da arte, baseado em pesquisas
consideradas de grande importância para esta discussão. Serão abordadas
as contribuições de pesquisadores dedicados ao estudo do cadastro
multifinalitário, das irregularidades em áreas urbanas e dos seus impactos
na configuração das cidades latinas. Acredita-se que, através desta análise,
será possível obter algumas direções sobre a metodologia a ser adotada e os
conceitos importantes para desenvolvimento de estudos futuros.
2. INFORMALIDADE URBANA E SEUS ASPECTOS SOCIAIS
Os assentamentos informais são uma realidade em toda a América
Latina. Sua consolidação se dá, em grande parte, devido às dificuldades que
a população de baixa renda tem em acessar terrenos mais próximos aos
centros devido aos altos valores, inserindo-se em áreas mais distantes, com
menos recursos e, consequentemente, com menos fiscalização (ERBA E
PIUMETTO, 2016).
Muitos destes assentamentos começaram com a ocupação de um
terreno, seja público ou privado, e posterior parcelamento das terras. As
construções são precárias e a infraestrutura, geralmente, também. E embora
esta população esteja alheia às legislações, ela possui seus direitos, inclusive
CONSIDERAÇÕES SOBRE O CADASTRO TERRITORIAL E A INFORMALIDADE URBANA
39
Capítulo 3
os de acesso à moradia digna e serviços públicos.
Fatores como especulação nos mercados de terra, valorização de
padrões de ocupação segregadores e elitistas também contribuem para que
a informalidade se consolide cada vez mais nas cidades. Sua existência,
inclusive, é aparentemente aceita nas cidades devido à distância das áreas
ocupadas, que ficam em locais geralmente periféricos e pouco visíveis,
excluindo ainda mais uma parcela da população que já vive em situação de
vulnerabilidade social.
Embora neste estudo sejam abordados os assentamentos informais
de baixa renda, outro processo de irregularidade pode ser observado com
bastante frequência nas grandes cidades por uma população de renda
superior. A ocupação de áreas consideradas de maior valor pelos condomínios
fechados também pode configurar situações de informalidade e, nestes
casos, muitas são naturalizadas por seu aspecto visual menos agressivo que
o de uma favela ou cortiço.
O significado de informalidade pode representar diferentes situações
no contexto espacial urbano. Assim, é importante definir qual a perspectiva
abordada por esta pesquisa, bem como qual a tradução deste conceito para
esta discussão. Para tanto, recorre-se a Fernandes (2011), que associa o
direito à gestão das cidades através de algumas provocações. Uma delas
é a dimensão da lei e quais os parâmetros que regem sua elaboração e
aplicação. Outra, que é particularmente mais cara a esta discussão, trata da
efetividade das leis e do porquê de algumas serem cumpridas por apenas
uma parcela da sociedade.
Desta forma, o conceito de informalidade urbana nesta pesquisa
se relaciona com o não cumprimento dos parâmetros estabelecidos pela
legislação vigente nas cidades latinas. Segundo Erba e Piumetto (2016),
o termo informalidade remete não só às inconformidades com a lei, mas,
também, ao não uso registros nas transações imobiliárias, invasões de terra e
situações de pobreza e falta de saneamento. Já o conceito de áreas irregulares
será tratado para se referir às ocupações passíveis de regularização, através
de meios técnicos e jurídicos.
Embora a realidade das favelas seja muito próxima para os
brasileiros, outros países da América Latina também têm grande parte dos
seus assentamentos informais em áreas de encosta, morros e com acesso
complicado. As dinâmicas imobiliárias nestas regiões são dinâmicas e,
geralmente, informais. Desta forma parcelamentos, remembramentos e
transferências de posse ocorrem sem registro, sem conhecimento dos órgãos
legisladores e, portanto, não são mapeadas.
Erba e Piumetto (2016) pontuam que os países latinos tendem a não
considerar a identificação de áreas informais importante. Para os autores,
ao focar apenas no tamanho dos edifícios e não sua conformidade com os
códigos urbanos, os cadastros latinos podem transformar áreas irregulares
CONSIDERAÇÕES SOBRE O CADASTRO TERRITORIAL E A INFORMALIDADE URBANA
40
Capítulo 3
em regulares, prejudicando o desenvolvimento de políticas urbanas eficientes.
O entendimento sobre as dinâmicas das cidades latino-americanas
deve considerar que todas estão inseridas no modelo de produção capitalista,
onde sua diversidade de usos materializa as práticas sociais deste sistema.
Portanto ao estudar a formação e organização do espaço sob a égide do
capital, deve-se compreender que tal panorama é indissociável da leitura da
sociedade produtora deste espaço (CARLOS, 1994). Assim, uma cidade que
ofereça as mesmas condições geográficas, sociais e econômicas para todos
os seus habitantes, no contexto latino, ainda é utopia.
Esta realidade é importante para definir alguns caminhos de ação para
a resolução dos casos de irregularidade urbana. Reconhecer estes espaços
e suas especificidades é primordial para que se articule quaisquer soluções.
Faz-se necessária à utilização de instrumentos que facilitem este processo,
através dos quais se possa proporcionar à população maior usabilidade do
espaço urbano e ao poder público uma maior compreensão do que acontece
dentro das cidades.
Os critérios para a regularização de espaços de informalidade devem
considerar sua diversidade, haja vista as diferentes situações jurídicas destes
locais. Assim, cada situação deve ser analisada individualmente para que se
obtenha êxito. Entretanto, algumas diretrizes técnicas podem balizar estes
processos e suscitar algumas possibilidades comuns, como o mapeamento
das áreas e sua incorporação à cartografia das cidades.
3. REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA
Existe uma diferença entre o significado de regularização fundiária
e seu entendimento por parte da sociedade. Como grande parte dos
assentamentos irregulares sofre com ameaças de expulsão devido à
ausência do título de posse, esta deve ser a maior preocupação para inserir
estas áreas na legalidade. Entretanto, quando não há situação de ameaça,
as solicitações são por programas de urbanização e prestação de serviços
públicos.
O Estatuto das Cidades (art. 2°) traz a regularização como princípio
fundamental na promoção do ordenamento territorial e diminuição do
déficit habitacional. Assim não apenas a posse individual dos ocupantes é
importante, mas também a inclusão dos assentamentos no tecido urbano
formal.
Para Alfonsin (2007), há três tipos de regularização fundiária.
Enquanto o primeiro objetiva a regularização jurídica dos lotes, o segundo
tipo dá ênfase à recuperação urbana dos assentamentos. O terceiro tipo se
dá através da regularização urbanística destes assentamentos por meio das
Zonas Especiais de Interesse Social – ZEIS. Este instrumento permite que
populações se estabeleçam em áreas determinadas das cidades através
da flexibilização de parâmetros de uso, ocupação e parcelamento do solo
CONSIDERAÇÕES SOBRE O CADASTRO TERRITORIAL E A INFORMALIDADE URBANA
41
Capítulo 3
(ROSENFELDT e LOCH, 2015).
Deve-se observar que a regularização dos assentamentos informais
traz consigo um aspecto político. Isso se dá através do provimento de
urbanização e alguma infraestrutura, mas sem eliminação completa da
precariedade e das diferenças com relação às áreas regulares desde o
princípio. Nesse contexto, as políticas de regularização fundiária devem ser
construídas em conjunto com as políticas públicas, de modo que o ciclo da
informalidade seja interrompido (PÓLIS, 2012)
Um programa de regularização deve começar com a identificação
e dimensionamento das irregularidades existentes na cidade, para que seja
então desenvolvida a estratégia para cada caso. Nos loteamentos irregulares,
por exemplo, pode se comparar o que está construído com o que consta no
cadastro de aprovação da prefeitura. Em cidades em que este cadastro não
existe, os dados confrontados devem vir do cartório de registro de imóveis.
O cruzamento de dados das concessionárias públicas com as informações
do Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE pode
confirmar a existência de assentamentos irregulares. Entretanto, em áreas de
informalidade e com alta dinâmica construtiva, deve-se dispor de alternativas
para a detecção da irregularidade. Nestes casos, o uso das geotecnologias
se faz imprescindível.
4. A IMPORTÂNCIA DO CADASTRO DE ÁREAS INFORMAIS
A regularização requer a confecção de plantas cadastrais e estas podem
ser feitas de diversas maneiras, como por levantamentos planialtimétricos
ou geoprocessamento, a depender das condições de cada assentamento.
De acordo com o Instituto Pólis (2012), além de permitir cadastrar as áreas
e seus moradores, os mapeamentos auxiliam na construção de parâmetros
para os diferentes programas de regularização, permitindo o cruzamento de
informações como hidrografia e geotecnia, importantes para a classificação
de área de risco.
Entre os países latinos, o Chile se destaca pelo trabalho de
mapeamento das áreas de assentamento informal. De acordo com Erba e
Piumetto (2016), existe no país uma secretaria executiva no Ministério da
Habitação e Desenvolvimento Urbano que se encarrega de identificar e
mapear todas as regiões com situação de informalidade. Desta forma, a
destinação de recursos, equipamentos urbanos e até mesmo a cobrança de
impostos é facilitada.
Em outros países, este esforço pode partir de Organizações Não
Governamentais – ONGS, que se encarregam do desenvolvimento de material
cartográfico e de registro das áreas informais para auxiliar nas carências de
infraestrutura, titulação e mobilidade urbana (ERBA E PIUMETTO, 2016).
Quando nem o poder público e nem instituições se interessam em
mapear estes assentamentos, seus moradores podem tem se mobilizado.
CONSIDERAÇÕES SOBRE O CADASTRO TERRITORIAL E A INFORMALIDADE URBANA
42
Capítulo 3
Um exemplo é o Distrito 14, em Cochabamba, Bolívia. De acordo com
Erba e Piumetto (2016), com o investimento de 12 dólares de cada família
elaborou-se um sistema georreferenciado, com levantamento topográfico da
área. Além disto, foram levantados dados como vegetação, equipamentos
urbanos e perfil de cada morador. Estes dados foram registrados e criou-se
um mapa cadastral, que afirma a posse dos ocupantes daquela localidade.
A configuração deste cadastro fez com que o valor de uma moradia nesta
região aumentasse de 1.500 para 18.000 dólares em um período de 20 anos
(ERBA E PIUMETTO, 2016).
No Brasil, a empresa Terra Nova trabalha com a mediação de
conflitos para o processo de regularização fundiária de áreas ocupadas
irregularmente. O procedimento adotado tem como etapas principais o
mapeamento das ocupações, coleta de informações, registros fotográficos e
integração aos mapas existentes. A equipe integra todas as informações de
mapas existentes, mapas topográficos e levantamentos geológicos, além das
fotografias aéreas e perfis socioeconômicos das famílias. São considerados
ainda informações como valor das terras e a capacidade de pagamento das
famílias envolvidas no processo (ERBA E PIUMETTO, 2016). Na Figura 1, a
seguir, pode-se observar uma das áreas cadastradas e regularizadas através
deste programa.
Figura 1: Ocupação irregular e plano de urbanização proposto
Fonte: ERBA e PIUMETTO (2016)
A valorização área e a segurança dos moradores já podem justificar
a importância de um cadastro para áreas informais. O reconhecimento dos
elementos que compõem os assentamentos, bem como as informações
sobre as pessoas que os habitam podem ser úteis, inclusive, para diversos
fins. Uma vez elaborado um banco de dados com estas características, este
cadastro pode assumir sua multifinalidade, permitindo a sistematização de
vários elementos e atendendo a diversos propósitos.
O Cadastro Territorial Multifinalitário – CTM aplicado ao processo
de regularização de assentamentos informais tem como características
CONSIDERAÇÕES SOBRE O CADASTRO TERRITORIAL E A INFORMALIDADE URBANA
43
Capítulo 3
a coleta e armazenamento das informações descritivas especializadas,
desenvolvimento e manutenção de um sistema cartográfico, fornecimento de
dados físicos para o planejamento urbano e atualização das características
das cidades (ROSENFELDT e LOCH, 2014).
Rosenfeldt e Loch (2014) pontuam que a utilização do cadastro em
áreas com situação de informalidade pode contribuir para a identificação da
localização, tipo de uso, ocupação e delimitação de cada unidade imobiliária,
além de servir de base para a disponibilização de infraestrutura. Os autores
classificam como essencial o reconhecimento dos limites de cada parcela, de
modo a evitar sobreposições de títulos e dificuldades de amarração na malha
urbana.
No caso do Brasil, a aplicação de instrumentos do Estatuto das
Cidades pode ser facilitada através da utilização de um cadastro que
identifiquem quais são as áreas apropriadas para cada um, inclusive os que
se referem especificamente à regularização fundiária.
4.1. Utilização de imagens multitemporais
Os produtos de sensoriamento podem ser uma ferramenta importante
na identificação de áreas informais. Através deles pode-se analisar a origem,
a evolução e as características de uma ocupação irregular. A cobertura de
determinada superfície com fotografias aéreas formando um mosaico é um
importante método de interpretação da evolução das paisagens urbanas
(ROSENFELDT e LOCH, 2015).
Com o suporte dos SIG, compõem-se uma base de dados
cartográficos (descrevendo as características geográficas do local) e
alfanuméricos (atributos). De acordo com Rosenfeldt e Loch, (2015), a escala
é um fator importante, pois é a partir dela que os objetos serão identificados
e reconhecidos. Outro fator de destaque é a homogeneidade das áreas
estudadas.
Espaços com características semelhantes apresentam texturas
parecidas quando visualizados de cima. Assim acontece com os assentamentos
informais, visto que devido à sua dinâmica de uso e ocupação do solo têm
limites e outras características físicas ocultadas em uma análise simples.
Sendo assim, classificam-se como zona homogênea os “agrupamentos
humanos com características socioculturais e econômicas semelhantes
quanto aos seus padrões de distribuição, disposição, organização e
adensamento habitacional no sítio” (ROSENFELDT e LOCH, 2015, p.06).
Para que se identifique estas zonas, Rosenfeldt e Loch (2015)
sugerem que o sistema cadastral contenha entre suas camadas de informação
o sistema viário, os lotes, a hidrografia, edificações e fotos aéreas. Este
procedimento permite que a população participe do processo, contribuindo
com informações sobre a evolução da paisagem local e o processo histórico
da ocupação. A pesquisa participativa em conjunto com a utilização de
CONSIDERAÇÕES SOBRE O CADASTRO TERRITORIAL E A INFORMALIDADE URBANA
44
Capítulo 3
tecnologias de sensoriamento remoto e Sistemas de Informações Geográficas
– SIG possibilita a criação de mapas temáticos para análise dos objetos de
estudo.
Como principal benefício desta metodologia, pode-se apontar a
possibilidade da identificação de microzonas dentro das zonas homogêneas.
Estas áreas passam a servir como balizadoras dos planos de regularização,
visto que suas características e especificidades são detalhadas a partir
do mosaico gerado com as fotografias aéreas. Estes produtos permitem,
inclusive, a identificação das parcelas cadastrais (ROSENFELDT e LOCH,
2015).
A identificação da parcela é primordial para o cadastro. Seu
conhecimento implica em diferentes aspectos, sejam eles econômicos,
legais ou físicos (ERBA, 2014). No âmbito legal, a parcela pode fornecer
informações sobre situação de propriedade e restrições construtivas.
Segundo Erba (2014), o aspecto econômico contempla o valor da terra e o
físico traz o tamanho da propriedade e seu uso. Pode-se ainda considerar
como aspecto importante o ambiental, que dirá se existe algum risco para os
ocupantes daquela parcela.
Em se tratando de áreas de assentamentos irregulares, muitos
cadastros não têm informações suficientes sobre as parcelas. Em muitos
mapas cadastrais estas áreas aparecem como manchas brancas, dificultando
sobremaneira quaisquer procedimentos para sua regularização.
4.2. Cadastro participativo: autodeclaração e observatórios
A existência de um cadastro em uma cidade proporciona uma série
de benefícios para todos os envolvidos no seu processo, especialmente para
os moradores de áreas regularizadas. Entretanto, para que este processo
seja democrático, deve-se envolver a população em todas as suas etapas,
sejam elas as iniciais, como o procedimento de autodeclaração dos lotes
ou posteriores, através da criação de observatórios de terras (ERBA E
PIUMETTO, 2016).
Em Salvador, por exemplo, foi implementado em 2013 um programa
de atualização de sua malha urbana, registrando a evolução e as diferenças
entre o que era considerado legal e a realidade. Desta forma, a prefeitura
iniciou uma campanha em diversas mídias convocando proprietários e
posseiros a registrar as parcelas municipais (ERBA E PIUMETTO, 2016).
Vislumbrando o planejamento para saúde, saneamento e transporte
público, a prefeitura reconheceu o cadastro como etapa imprescindível,
iniciando assim uma atualização que abasteceria diversos órgãos públicos
com informações sobre o solo da cidade. Segundo Erba e Piumetto (2016)
foram registradas mais de 400.000 novas parcelas ao longo de um mês.
Considerando as constantes mudanças de uso e ocupação do solo,
especialmente em áreas oriundas da informalidade, uma outa possibilidade
CONSIDERAÇÕES SOBRE O CADASTRO TERRITORIAL E A INFORMALIDADE URBANA
45
Capítulo 3
apontada Erba e Piumetto (2016) para a elaboração (ou atualização) de
um cadastro é a criação de observatórios de valor de terras. Através deles,
ocorreria o monitoramento não só dos valores, mas também, de todas as
mudanças ocorridas nas áreas observadas, como as construções irregulares.
A criação destes observatórios pode ocorrer por iniciativa pública,
acadêmica ou mesmo através de parcerias. Em Bogotá, por exemplo, existe
um observatório para analisar particularmente as variações na evolução dos
preços da terra. Como sua atividade monitoria as atividades construtivas,
através do observatório obtêm-se um panorama sempre atualizado das
dinâmicas construtivas. Desta forma, suas informações são úteis para a
identificação de ocupações irregulares e definição de estratégias para lidar
com esta prática (ERBA E PIUMETTO, 2016).
4.3. Cadastro 3D aplicado à regularização
Embora o cadastro convencional ainda não seja uma realidade para a
maioria das cidades, Erba e Pimetto (2016) apontam a utilização do cadastro
3D como possibilidade de melhorar os processos de regularização.
Em Medellín, Colômbia, ferramentas de representação em 3
dimensões já são utilizadas para fins urbanos através da extrusão das
edificações e de suas divisões internas. A locação destes blocos no espaço
urbano permite melhor visualização da cidade, favorecendo a tomada de
decisões e permitindo mais facilmente a comparação entre os dados do
registro oficial e o que realmente existe in loco.
Enquanto isso, dado que os assentamentos informais estão
presentes em toda a América Latina, os cadastres não poderão ignorar
esta realidade, visto que é muito mais visível a ausência de volumes que a
ausência de planificações em duas dimensões (ERBA E PIUMETTO, 2016).
Com a popularização das impressoras 3D, é possível que as cidades sejam
“recriadas”, permitindo a materialização de grandes áreas, ainda que sejam
acidentadas ou muito fragmentadas, como as de assentamento irregular.
Esta prática pode, em longo prazo, ser útil para o planejamento urbano.
Erba e Piumetto (2016) apontam que esta não é uma realidade
distante. Os autores afirmam que o Google Earth contribuiu de forma efetiva
para a criação de modelos de cidades em 3D, permitindo que os usuários
da ferramenta visualizem um determinado local com grande nível de
detalhamento. Esta plataforma também permite o movimento a partir de uma
vista Cidade como uma superfície plana para uma vista oblíqua mostrando
o relevo e a altura de edifícios, árvores, redes de serviços aéreos e outros
objetos no espaço (ERBA E PIUMETTO, 2016). Entre as cidades da América
Latina, Santiago é uma das mais detalhadas na plataforma.
CONSIDERAÇÕES SOBRE O CADASTRO TERRITORIAL E A INFORMALIDADE URBANA
46
Capítulo 3
5. CONCLUSÃO
Entende-se que os programas de regularização devem objetivar a
integração dos assentamentos informais ao conjunto da cidade, e não apenas
o reconhecimento da segurança individual da posse para os ocupantes.
Sendo assim, a importância de ferramentas que proporcionem um maior
conhecimento do espaço da cidade e de suas especificidades é fundamental
neste processo.
A utilização do CTM demonstrou-se eficiente para a regularização
fundiária, especialmente se aliado ao uso de imagens multitemporais.
Entretanto, a realidade dos assentamentos informais é muito distinta
da observada em áreas regulares das cidades. Suas diferenças físicas,
econômicas e sociais os distanciam do restante da cidade e os exclui da
lógica de legalidade.
Para que seja possível a implantação de programas de regularização
nestes locais deve-se, primeiramente, conhecer estes espaços. Eles devem
existir nos cadastros e os procedimentos para tal podem ser auxiliados pela
tecnologia ou partir de maneiras mais ortodoxas, através da autodeclaração e
do estabelecimento de observatórios que monitores suas dinâmicas.
Para garantir o atendimento das demandas das cidades, a
regularização fundiária deve sempre buscar o desenvolvimento social e
econômico dos envolvidos, garantindo a participação e a transparência no
compartilhamento dos dados. A implantação satisfatória em determinada
localidade não significa sucesso em todas. Isto porque cada cidade tem
características próprias, tanto de ocupação quanto de gestão, principalmente
em se tratando de áreas informais.
Sendo assim, conclui-se que as atuais pesquisas acadêmicas acerca
do cadastro aplicado à regularização têm contemplado sobremaneira o
aspecto técnico e negligenciando o aspecto social. Iniciativas que passem
pelo reconhecimento efetivo de áreas menos acessíveis, representações em
3 dimensões e participação popular podem evidenciar necessidades que são
específicas destas áreas, favorecendo a tomada de decisões e efetivando
políticas públicas adequadas.
REFERÊNCIAS
ALFONSIN, B. de M. O Significado do Estatuto da Cidade para os processos de
regularização fundiária no Brasil. Ministério das Cidades. Brasília, 2007.
CARLOS, Ana Fani A. A (re)produção do espaço urbano. Editora da Universidade
de São Paulo. São Paulo, 1994.
ERBA, Diego Alfonso Catastro-multifinalitario aplicado a las politicas de suelo
urbano. Capítulo 14: El Catastro y la Informalidad Urbana. Lincoln Institute of Land
Policy. Cambrige, 2014.
CONSIDERAÇÕES SOBRE O CADASTRO TERRITORIAL E A INFORMALIDADE URBANA
47
Capítulo 3
ERBA, Diego Alfonso; PIUMETTO, Mario Andrés. Making Land Legible: Cadastres
for Urban Planning and Development in Latin America. Lincoln Institute of Land
Policy. Cambrige, 2016.
FERNANDES, Edésio. Regularización de asentamientos informales em América
Latina. Lincoln Institute of Land Policy. Cambrige, 2011.
INSTITUTO PÓLIS. Regularização da terra e da moradia: o que é e como
implementar. São Paulo, 2012.
ROSENFELDT, Yuzi Anai Zanardo; LOCH, Carlos. A cartografia como suporte
para a inclusão urbana e social e viabilização procedimentos de regularização
fundiária. Anais XXVI Congresso Brasileiro de Cartografia. Gramado, 2014.
ROSENFELDT, Yuzi Anai Zanardo; LOCH, Carlos. O uso de imagens multitemporais
para o planejamento urbano e caracterização de áreas irregulares. Anais XVII
Simpósio Brasileiro de Sensoriamento Remoto – SBSR. João Pessoa, 2015.
CONSIDERATIONS ABOUT TERRITORIAL REGISTER AND URBAN
INFORMALITY
ABSTRACT - The recurrent existence of informal settlements in Latin cities reflects the
various management and planning problems they face. Because of their complexity
and configuration, many of these spaces are not easy to identify and thus are not
in the territorial records. This hinders the population’s access to the regularization
process, maintaining its illegality and its distance from the infrastructure available to
other sectors of the cities. The use of technologies in the identification and registration
of these areas is a subject of recent studies, configuring an interesting state of the art
for this theme. In this way, this paper presents some studies about the social question
of informality and possibilities for its resolution, passing through the configuration of a
territorial register and specific public policies.
KEYWORDS: Urban informality; Land regularization; Register.
CONSIDERAÇÕES SOBRE O CADASTRO TERRITORIAL E A INFORMALIDADE URBANA
48
CAPÍTULO 4
EVA, A MÃE DOS DESCAMISADOS
Renata Alves Melki De Souza
lattes.cnpq.br/2873277512380872
Pontifícia Universidade CatólicaPUC-SP São Paulo –SP
RESUMO - Este capítulo busca
mostrar a vida de Maria Eva Duarte,
desde a infância no interior da
Argentina, até sua adolescência
e vida adulta quando se mudou
para a capital Buenos Aires, para
atuar como modelo e depois como
atriz de radionovelas, onde ganhou
destaque, trabalhando na principal
companhia teatral do país. A partir
de seu casamento com Juan Perón,
coronel do exército argentino, passou
a se dedicar à política e tornando-se
primeira-dama, criou a fundação Eva
Perón, onde dialogava com os mais
pobres, mulheres e sindicatos, sendo
crucial para manter o peronismo no
poder.
PALAVRAS-CHAVE: Evita; Peronismo; Descamisados.
1. INTRODUÇÃO
O presente trabalho, tem
como objetivo estudar a vida de Eva
Perón, seu contato com a pobreza
desde a infância, seu trabalho
como atriz em Buenos Aires, o
que possibilitou sua influência
principalmente entre o exército. A
partir de seu casamento com Juan
Perón, articulou sua chegada à
presidência e como primeira-dama,
criou a fundação que leva seu nome,
ampliando seu carisma e diálogo
com os trabalhadores, mulheres e
mais pobres, através de sindicatos,
obras sociais e educação, permitindo
a continuidade do peronismo. Outro
ponto importante da pesquisa é
mostrar a formação da cgt, como
através de sua fundação, da doutrina
peronista e educação, evita garantiu
o direito de voto às mulheres
argentinas, com sua liderança
carismática, promoveu a justiça
social através de seus discursos em
defesa dos “descamisados” o que
possibilitou a manutenção do poder
e de sua memória.
1.1 Trajetória de vida familiar
Eva Duarte nasceu em Los
Toldos, em Buenos Aires, no ano
de 1919, filha de Juana Ibarguren e
Juan Duarte. Eva tinha cinco irmãos,
mas vivia com a imagem de ser
filha ilegítima, pois seus pais não
eram casados legalmente, já que
Juan Duarte possuía outra família
em Chivilcoy. A família de Eva era
EVA, A MÃE DOS DESCAMISADOS
49
Capítulo 4
modesta e ela viveu uma infância sem luxo.
Juan Duarte abandonou Juana para viver com sua família legítima
e, posteriormente, em 1926, a mãe de Eva recebeu a notícia de que Juan
Duarte tinha falecido em um acidente de automóvel e foi com os filhos para
acompanhar o velório. Porém, a família legítima de Juan Duarte a expulsou e
aos seus filhos, impedindo que Eva visse o pai na hora da morte.
Posteriormente, a família de Eva começou a sentir os efeitos da
crise econômica que se iniciou em 1930. D. Juana, para sustentar os filhos,
costurava em sua velha máquina e o que recebia contemplava apenas as
despesas com alimentação da família.
Na adolescência, morando em Junín, Eva tinha o desejo de se tornar
atriz e logo se desligou da família, entrando em conflito com a mãe. Aos
15 anos foi para Buenos Aires, onde iniciou sua carreira de modelo e atriz,
fazendo papéis em pequenas companhias de teatro e radionovelas. Segundo
SARLO (2005), a atuação, a partir de seus papéis nas companhias maiores,
moldou a trajetória e a figura política de Eva.
Em A Razão de Minha Vida, Eva se declara uma ressentida social,
pois desde criança, vivenciou a desigualdade em seu país e, principalmente,
quando teve contato com o meio urbano, percebeu que a injustiça sempre a
incomodou. Segundo SEMBRELLI (1971), Eva nunca se conformou com a
pobreza da Argentina e se ressentia por não poder fazer nada em relação ao
sistema injusto e excludente. Quando Eva chegou a Buenos Aires, em 1935,
teve que se adaptar à cidade, por isso, se identificou com os trabalhadores
pobres, pois não era a única que estava desamparada. Em A Razão de minha
Vida, Eva diz:
Assim, pulsando no meu coração, deparei-me com um
sentimento fundamental que domina o panorama do
meu viver: este sentimento é a minha decidida revolta
contra a injustiça. Ao completar onze anos, comparei
os pobres à grama dos campos e, os ricos, às árvores
das florestas. Entretanto, ouvi de um trabalhador que a
existência dos pobres era devida aos demasiadamente
ricos. Compreendi, como num clarão, que ele tinha
razão. Mais convencida pela razão, senti que dissera a
verdade. Além do mais, já naquela época, os pobres,
mais sinceros e bondosos, mereciam mais a minha fé do
que os ricos. Logo percebi que a terceira dimensão era a
injustiça social (PERÓN, 1951, p.11-2).
A partir do círculo de trabalho no teatro e na rádio, que eram custeados
pelos militares argentinos, Eva conheceu Juan Perón que, no exército, tinha
a patente de coronel. Com esse encontro começou a sua transformação de
atriz e modelo para a figura política, para a mulher engajada que discursa
EVA, A MÃE DOS DESCAMISADOS
50
Capítulo 4
para multidões e, segundo Beatriz Sarlo, a aparência física de Evita, seus
gestos, roupas, discursos e falas mudam quando ela entra na política.
1.2. O despontar de uma nova vida
Evita chegou em Buenos Aires em 1935, a partir desse mesmo ano
passou a integrar a companhia argentina de comédias e iniciou-se no ramo
em que atuou com seus primeiros papéis. Continuou na mesma companhia,
interpretando personagens secundários, que não geraram muitos comentários
favoráveis a respeito de sua atuação ou de sua carreira.
A companhia Argentina de comédias fez muitas apresentações pelo
interior do país, passando por Rosário, Mendoza e Córdoba. Eva participou
praticamente de todas as peças durante as viagens do grupo de teatro.
Posteriormente Encerradas essas atuações, Evita volta a Buenos Aires e se
junta à companhia de teatro de Pablo Suero, estrelando uma peça no teatro
de Corrientes, em 1936. Logo depois, em 1937, ela se uniu à companhia
dirigida por Armando Discépolo.
Na década de trinta, quando Evita iniciou sua experiência como atriz,
o teatro argentino passava por uma crise e estava em busca de público. Foi
neste momento que Eva começou fazendo pequenas atuações em comédias
curtas, mas os artistas eram mal remunerados e as condições de trabalho
eram muito árduas. Em 1937, depois de alguns meses sem trabalho, Evita
então integra a companhia de radioteatro, atuando em uma novela curta
dirigida por Chas de Cruz e Alberto Echebehere. Posteriormente, integrou a
companhia da Rádio Belgrano e a Companhia de Comédias e Sainetes de
Leonor Rinaldi.
Em 1939, passou a fazer parte da companhia de radioteatro da
famosa atriz Camila Queiroga, da Rádio Prieto e da companhia de rádio
teatro Del Aire, encabeçada pela própria Eva Duarte e Pascual Pellicciotto,
com a qual fariam um programa na Rádio Mitre.
Entre 1940 e 1942, Evita se dedicou ao rádio teatro. Em 1941,
conseguiu um contrato de patrocínio da rádio por cinco anos e, no ano
seguinte, já com a companhia juvenil de teatro, começou a fazer um número
maior de peças.
Em 1943, o governo argentino tomou o controle das rádios, ao
mesmo tempo que Evita estava se firmando como atriz na Rádio Belgrano.
A partir dessa fase, as revistas publicaram suas fotos e Eva ficou conhecida,
chegando ao auge de sua carreira de atriz. VASSALLO (2009), em seu
trabalho sobre as capas de revistas em que Evita apareceu, a mostra, em
1939, nas revistas Sintonía e Damas y Damitas, em 1940, na revista Guión,
em 1944, nas revistas Antena e Radiolandia e, em 1951, já como primeiradama argentina, na revista Ahora. Também são apresentados nos anúncios
da Rádio Belgrano, onde Eva Duarte se consagrou como atriz.
EVA, A MÃE DOS DESCAMISADOS
51
Capítulo 4
1.3. O encontro e o casamento com Juan Perón
Eva Duarte teve o primeiro contato com Juan Perón, em 1944, quando
a província de San Juan, na Argentina, foi abalada por um terremoto. Perón,
que na ocasião era militar, com a patente de coronel e secretário do Trabalho
e Previdência, convocou industriais, artistas e argentinos importantes para
ajudar nessa situação de tragédia, que fez dez mil mortos e doze mil feridos.
Em todo o país foram organizadas comissões de solidariedade à população
atingida. A Associação Radiofônica Argentina, que tinha como presidente Eva
Duarte, promoveu um grande ato em benefício às vítimas do terremoto, ato
esse, comandado pelo governo e assistido pelo general Perón.
A partir desse momento, Eva como era radio atriz já conhecida,
passou a participar das propagandas do governo pelo rádio, já que Perón
fazia parte do serviço de imprensa estatal que investia muito pesado nesse
setor.
Eva se mobilizou na campanha de Juan Perón, quando este perdeu
seu cargo em 17 de outubro. Assim que Perón se recupera das perdas e ganha
as eleições para a presidência, se casa com Eva. Segundo SANTAYANA
(1976), o casamento foi uma cerimônia civil, para poucas pessoas, celebrada
pelo juiz de paz de Junín. A cerimônia religiosa foi realizada na cidade de La
Plata, quarenta dias depois. A relação de Perón e Evita se consolidou logo
após o terremoto em San Juan, quando em 1944, em meio a um cenário
político conturbado pelas divergências entre os grupos militares, o casal fez
sua primeira aparição pública. Em A Razão de minha Vida, Evita descreve o
dia em que conheceu Perón como um “dia maravilhoso”. Em sua biografia,
ela se refere a esse momento dizendo:
Finalmente, chegou o dia maravilhoso, quando minha
vida coincidiu com a de Perón. Aquele primeiro encontro
deixou no meu coração uma impressão indelével. Não
posso furtar-me ao prazer de descrevê-lo, porque ele
assinalava o início da minha verdadeira existência
(PERÓN, 1951, p.19).
Evita percebeu, que daquele momento em diante, o seu caminho a
seguir seria ao lado de Perón e da causa que ele representava:
Naquele momento, senti que os seus gritos e caminho
eram os meus próprios gritos e caminho. Coloquei-me a
seu lado. Surpreendeu-me. E, quando, afinal, me ouviu,
só atinava em dizer-lhe com as melhores palavras: — Se
a causa do povo é como afianças, tão longe quanto se
deva ir pelo caminho do sacrifício, estarei ao teu lado até
desfalecer. Ele aceitou minha oferta e aquele foi o meu
dia maravilhoso (PERÓN, 1951, p.19).
EVA, A MÃE DOS DESCAMISADOS
52
Capítulo 4
1.4. A política e o carisma na Argentina peronista
Evita tinha atividades de ajuda social, inaugurou escolas, hospitais,
abrigos e trabalhava em favor dos pobres e miseráveis na Argentina peronista.
Era uma primeira-dama incomum, pois não queria somente ir a eventos para
cumprir os protocolos da presidência, mas sim trabalhar em prol da causa
de Perón. Por isso, se aproximou dos trabalhadores com seus discursos na
rádio, visitas aos sindicatos, atividades no Ministério do Trabalho e Secretaria
de Trabalho e Previdência. Essa proximidade foi responsável pelo êxito dos
primeiros anos de governo peronista. Em sua biografia, Juan Perón relata que
Evita se dedicou ao trabalho político e social, trabalhava incansavelmente na
fundação que levava seu nome:
Eva no tenía horas, trabaja permanentemente. No sé de
dónde sacaba tan fantástica resistencia. Acaso le daba
fuerzas. La mística de su fanatismo1 (PERÓN, 1976).
Segundo Perón, Evita gostava de tratar com as pessoas, tinha
contato com o povo, de onde vinha sua força, tinha domínio sobre o coração
dos argentinos. Eva era figura central no regime peronista. Em 1950, recebeu
uma carta do papa Pio XII agradecendo as obras de caridade feitas pela
Fundação Eva Perón. A primeira-dama foi muito importante, pois foi a
principal divulgadora das ideias do peronismo, exercia funções essenciais
na Secretaria de Trabalho e Previdência, atendendo as pessoas humildes,
trabalhadores, recebendo suas cartas com os problemas que os afetavam.
O grande papel de Evita foi o de chefe espiritual da nação, que via
em Perón o grande líder. Os argentinos pobres, humildes e trabalhadores,
enxergavam a Evita como a esperança de uma Nova Argentina: justa, livre,
com igualdade e trabalho. À primeira-dama, cabia o contato com os seguidores
do peronismo, pois suas funções iam muito mais além dos oficiais. Ela era
uma figura necessária na relação entre os sindicatos e o governo, entre o
poder e os humildes, a porta-voz de Perón diante do povo argentino, além de
sua representação no Estado de bem-estar social.
Segundo SEMBRELLI (1971), Evita foi uma primeira-dama incomum,
pois estava mais próxima da população mais pobre. Segundo o autor,
existiam duas Evitas, a primeira-dama que cumpria os protocolos que o seu
cargo exigia e a Evita mais próxima ao povo, que priorizava o amor à pátria
e a Perón. O autor expõe que Evita começa a se destacar a partir de 1943 e
que desde o início do controle dos meios de comunicação pelos militares na
Argentina, os discursos da primeira-dama começaram a ser transmitidos e
dirigidos aos operários do país.
A partir de 1945 a aparência de Eva mudou, seus gestos e roupas
também, o que teve um peso decisivo para sua atuação política e contribuiu
também para a ideia da realização do peronismo. Evita representava a
EVA, A MÃE DOS DESCAMISADOS
53
Capítulo 4
realização do regime. Segundo NAVARRO (1994), se esperava dela um
comportamento conforme o estabelecido pela tradição, pois não era comum
que a esposa do presidente acompanhasse ou falasse em seu nome. A
senhora Perón tinha a função de atender a todos que buscavam contato
com seu marido e a presença da primeira-dama no Ministério do Trabalho
teve um sentido simbólico e buscou diminuir a distância entre o governo
e os trabalhadores, objetivando também adaptar as estruturas de poder à
realidade argentina, a partir de 1945. Em A Razão de minha Vida, Evita fala
em relação às suas funções dentro do peronismo e na Secretaria de Trabalho
e Previdência:
Enquanto existir, não me esquecerei de que Perón me
recomendou seus trabalhadores descamisados na hora
mais difícil da sua vida, não me esquecerei da sua prova
de amor, confiando-me o cuidado de seus operários.
(PERÓN, 1951, p.27).
Tinha lutado intensamente na Secretaria de Trabalho e
Previdência. O povo me compreendia. Os trabalhadores
do país sabiam agora o que era justiça social e trilhavam
meu rastro, como no encalço de uma bandeira (PERÓN,
1951, p.32).
Bem, a verdade é que Perón é a alma de tudo o que tenho
feito, de tudo o que faço e de tudo o que farei de bom pelo
resto da minha vida. O que faço nessas audiências com
os mais humildes descamisados do meu povo, os pobres,
é assaz simples. Normalmente os recebo na Secretaria
(PERÓN, 1951, p.107).
Em seus discursos, Evita deixava claro ser a ponte entre Perón e seu
povo, por terem sido falas com uma grande carga emocional, sua experiência
teatral e de propaganda política lhe deram segurança para dialogar com
os sindicatos. As transformações políticas na Argentina, a partir de 1943,
ajudaram a atuação de Evita como primeira-dama, na propagação do regime
peronista e, principalmente, na liderança de Perón. As performances de Eva
como primeira-dama argentina formalizaram sua relação com as massas,
transformando os momentos de convívio público em grandes espetáculos de
gestual e retórica. Ela atuava não só respondendo às necessidades do povo,
mas como conselheira, chefe espiritual, orientando os menos privilegiados.
Segundo Juan Perón, Evita tinha um domínio extraordinário sobre as pessoas
desde o início de seu trabalho com os líderes sindicais.
EVA, A MÃE DOS DESCAMISADOS
54
Capítulo 4
1.5. Evita e a CGT
A CGT, Confederação Geral do Trabalho, era uma instituição que
reunia todos os sindicatos e organizações dos trabalhadores. A partir da
presidência de Perón e da liderança de Evita, maior quantidade de grupos
de trabalhadores passou a aderir à instituição. Anteriormente, na Secretaria
de Trabalho e Previdência, em 1946, o seu principal objetivo foi atender aos
necessitados, sendo indispensável na relação entre sindicatos, grêmios e o
governo peronista, ela era responsável por promover a ajuda social dentro
do regime.
Em relação à CGT, as principais atividades da primeira-dama
eram: manter a união sindical, ser a ponte entre Perón e os trabalhadores
e distribuir roupas e alimentos. Além de atender às cartas com pedidos da
população necessitada e a conversa com os sindicatos, a importância do
trabalho de Eva na CGT era a de manter os benefícios conquistados pelos
trabalhadores e escutar e transmitir as reivindicações a Perón. Também era
função da primeira-dama o controle dos sindicatos e impedir enfrentamentos
entre seus diferentes grupos. Porém, sua principal missão era convencer os
trabalhadores de que a solução de seus problemas se encontrava no Estado,
ou seja, em Perón e não nos grupos que buscavam autonomia para lutar por
suas causas.
La esposa del primer mandatario señora Maria Eva
Duarte de Perón, acudió en horas de la Mañana de hoy
a su despacho la Secretaria de Trabajo y Previsión,
abocándose al estudio de nomerosos problemas
gremiales que le fueron planteados por destintos grêmios.
Se hallaban presentes, entre otras, las seguintes
delegaciones: Unión obrera maderera, Unión obrera de
la construción, F.O.E.V., Agrupacion peronista telefônica
de la capital2 (Secretaria de Trabalho e Previdência 1948)
1.6. A fundação Eva Perón o fortalecimento de seu carisma
A obra social de Evita fez parte de um plano de reestruturação do
país iniciado em 1943 pelo governo argentino. Anteriormente à presidência
de Perón, as senhoras da elite argentina, “damas da beneficência” tinham a
ideia de que Eva Perón, mesmo tornando-se a primeira-dama do país, não
era digna de administrar as instituições as quais comandava. Diante disso,
Eva criou a Fundação Eva Perón, em 1948. A instituição tinha recursos de
doações dos próprios trabalhadores, subsídios do governo e arrecadações
em eventos sociais. A atividade social se iniciou em 1948, com a construção
Em tradução livre: “A esposa do primeiro mandatário, senhora Maria Eva Duarte Perón, dirigiuse pela manhã a seu gabinete na Secretaria de Trabalho e Previsão dedicando-se ao estudo
de numerosos problemas de associações, que foram propostos por diferentes agremiações. Se
encontravam presentes, entre outras, as seguintes delegações: União Operária dos Madeireiros,
União Operária da Construção, F.O.E.V., Grupamento peronista da telefônica da capital.”
2
EVA, A MÃE DOS DESCAMISADOS
55
Capítulo 4
dos primeiros abrigos e com o que Evita chamou de Cruzada Social, na qual
foram distribuídas roupas e comida para os que necessitavam.
A FEP se preocupava com a educação e a saúde de crianças, pois
construiu escolas, abrigos e clínicas médicas para cuidar das que estavam
em situação de abandono, doentes ou que não tinham apoio familiar.
Também foram construídos abrigos para idosos e moradores de rua.
Um dos feitos principais da instituição em relação à saúde foi o Plano de
Saúde Pública e o trem sanitário, em 1951, que percorreu o país fornecendo
assistência médica. O principal objetivo da fundação era o cuidado moral,
material e espiritual das crianças, mulheres e idosos, dando outro sentido ao
que se considerava justiça social.
A Fundação Eva Perón, segundo PLOTKIN (1993 a), gerou mitos ao
redor da primeira-dama argentina e foi importante na construção do imaginário
político peronista. Segundo o autor, a fundação foi um braço do regime
peronista para conseguir apoio de outros setores além dos trabalhadores e
sindicatos, incorporava os estratos mais vulneráveis da população, formados
por crianças e mulheres pobres e se encaixava na política peronista de bemestar social.
A obra social de Maria Eva Duarte estava muito bem organizada, era
uma ponte entre o governo e os humildes, entre o poder e o povo. A fundação
era uma instituição politizada e os serviços sociais oferecidos foram utilizados
para a construção do imaginário do peronismo. Ao proporcionar serviços úteis
associados à propaganda, a instituição contribuiu para a politização da vida
cotidiana.
A imagem de Evita trabalhando além de sua resistência, a favor dos
humildes foi um componente muito importante para a máquina de propaganda
oficial. Portanto, a fundação não serviu somente para dar assistência aos
pobres, mas atuou também como fonte para a construção de seu carisma e
para modelar sua imagem. Segundo NAVARRO (1994), a fundação fez parte
de uma tentativa do governo de se diferenciar da sociedade de beneficência,
como era entendida na década de 1930, modificar o aparelho do Estado e ter
um controle maior sobre algumas instituições e que, com o tempo, o trabalho
de ajuda social foi ganhando traços da personalidade de Evita. Não havia
dúvidas do sentido social da fundação e nem do sentido político em cada
hospital, abrigo ou escola que foi construído:
Con asiento en esta capital ha sido creada la Fundación de
Ayuda Social María Eva Duarte de Perón, con el carácter
de persona jurídica y conforme el artículo 33 del Código
Civil [...] Tendrá por fines prestar ayuda pecuniaria o em
especie, facilitar elementos de Trabajo, otorgar becas
para estudios universitarios y especializados3(Fundación
Eva Perón 1949).
EVA, A MÃE DOS DESCAMISADOS
56
Capítulo 4
1.7. A justiça social para Perón e Evita
Os lares e abrigos construídos pela Fundação Eva Perón tinham uma
aparência luxuosa, para demonstrar que os setores mais pobres da população
argentina também tinham o direito de se sentir acolhidos e considerados pelo
Estado, principalmente graças à atuação de irmandades e ordens religiosas
nos abrigos e hospitais da fundação.
Além do trabalho, havia a obrigação e o comprometimento com a
justiça social e o Justicialismo. O sentido que Evita dava à justiça social era
na resolução dos problemas dos trabalhadores e no próprio trabalho social,
principalmente com mulheres e crianças em situação de marginalidade.
A justiça social, não só para a primeira-dama, mas para o governo
peronista, estava ligada à satisfação das necessidades humanas,
principalmente dos trabalhadores, com roupas, alimentos e remédios e
com um programa de aumento de salários, mesmo que com essa medida o
governo não tenha conseguido deter a má distribuição de renda e a inflação.
Houve também um aumento de programas de habitação para
trabalhadores pobres e cidades do interior do país. Por sua vez, o Ministério
da Saúde criou uma estratégia para prevenir doenças e epidemias, redistribuiu
os médicos para atender aos cidadãos argentinos, além das iniciativas
para trazer saneamento à população. Segundo ROSS (1993), para Evita,
existia justiça, mas uma justiça incompleta, que não chegava à maioria da
população. A primeira-dama redefine a noção de ajuda social ligando-a a
um ato de justiça, em oposição à simples beneficência. Devemos entender
justiça social como um objetivo do governo e a ajuda social como um novo
modo de intervenção política, mas para Eva Perón, era entendido como ato
de amor e sacrifício pelos humildes e trabalhadores.
1.8. Evita e os “Descamisados”
A relação de Evita com os trabalhadores e a população humilde da
Argentina tinha um sentido de comunidade, a ideia de sacrifício da própria
primeira-dama para o povo e para Perón era uma relação familiar, do povo
com o líder político. A pátria carregava a noção de filhos e de um Estado
que era o protetor desses filhos. No caso, eram os trabalhadores e Perón os
dois principais componentes dessa relação familiar, pois todas as queixas e
problemas Eva levava até o coronel, como uma intermediária entre o Estado,
o poder e o povo.
EVA, A MÃE DOS DESCAMISADOS
57
Capítulo 4
1.9. Eva Perón e as mulheres
A lei do voto feminino, em 1947, assinada por Evita e a criação do
Partido Peronista Feminino tiveram uma grande importância na inclusão
das mulheres no corpo político, fizeram parte da expansão e ampliação do
peronismo como regime e, segundo BARRY (2009), foram decisivos para o
segundo mandato de Juan Perón.
As mulheres que faziam parte do partido feminino eram escolhidas
por Evita devido à sua lealdade. A primeira-dama, a partir de sua força política,
foi o espelho para essas mulheres e o principal instrumento de inclusão na
sociedade. A criação do partido feminino ajudou a construir a liderança de Eva
Perón, porém não buscava somente esse propósito, mas também o controle
social e eleitoral para aumentar a base de sustentação do regime peronista.
As mulheres escolhidas por Evita trabalhavam nas Unidades Básicas
Femininas, que tinham uma política voltada para mulheres e crianças e para
a proteção da família. Elas trabalhavam principalmente em ligação com a
Fundação Eva Perón, pois a ajuda social era um dos objetivos do partido.
Com a liderança de Eva, as mulheres conseguiram mais presença política,
sendo candidatas a cargos importantes e participando do rol eleitoral. Após a
morte da primeira-dama, o partido feminino se enfraqueceu, mas continuou
suas funções com Juan Perón escolhendo as dirigentes e permaneceu a
imagem da líder, o seu exemplo e missão de lutar pela causa e pela pátria
com lealdade, heranças que deixou para as peronistas.
O Partido Peronista Feminino iniciou suas atividades em 1949, sua
função era permitir a participação política das mulheres e o exercício de sua
cidadania através do trabalho nas unidades básicas, espaço de atuação
feminino e extensão do lar. Por isso, baseando-se no sacrifício e na fé
peronista, tiveram Evita como líder e condutora do partido e responsável pela
mudança da realidade anterior de pouca atuação feminina.
El sábado a mediodía fue bendecido y inaugurado el
segundo hogar de tránsito María Eva Duarte Perón
ubicado en la calle Lafinur 2866, donde la mujeres
desvalidas recibirán en adelante la protección que les
ofrecerá la obre de ayuda social que dirige la esposa del
jefe de Estado4 (Fundación Eva Perón 1949)
2. A Morte e os órfãos da nação
O falecimento da primeira-dama argentina contribuiu para o
reconhecimento da imagem que Evita tinha de chefe espiritual da nação e mãe
dos humildes, pois a população acompanhou de perto o estado de saúde de
Em tradução livre: “No sábado ao meio-dia, foi benzido e inaugurado o segundo lar de trânsito
Maria Eva Duarte Perón, localizado à rua Lafinur 2866, onde as mulheres desamparadas
receberão, doravante, a proteção que lhes oferecerá a obra de assistência social dirigida pela
esposa do chefe de Estado.”
4
EVA, A MÃE DOS DESCAMISADOS
58
Capítulo 4
Eva. Todos os meios de comunicação argentinos noticiaram, as instituições
lhe renderam homenagens, além das milhares de pessoas presentes nas
ruas e na Plaza de Mayo, com tochas e depositando flores debaixo de um
enorme quadro com o retrato de Evita.
Perón também recebeu condolências da Secretaria de Trabalho e
Previdência. A morte de Evita, deixou um grande vazio para o peronismo e a
atitude do líder diante da situação foi retomar ele mesmo as atividades sociais
e políticas, mesmo assim não teve êxito como Evita, pois não conseguia se
comunicar com a população como fazia a primeira-dama. A partir da morte,
sua figura teve uma projeção maior do que no momento em que estava viva,
pois o seu corpo foi sacralizado e sua imagem ligada com a de uma santa.
A CGT organizou o funeral de Evita e reclamou o traslado do corpo,
além da organização de celebrações em homenagem à primeira-dama.
Segundo Loris Zanatta, O jornal Diário de Notícias fala sobre o dia em que
Perón assumiu as atividades da fundação Evita:
Assumirá a direção da fundação: A partir da próxima
segunda feira o presidente Perón assumirá a direção da
fundação Eva Perón. A rádio do estado argentino num
comunicado difundido hoje, 4 da tarde, anuncia, por outro
lado, que o presidente Perón três vezes por semana
utilizará o gabinete que sua esposa ocupava para atender
os necessitados (ZANATTA, 2011).
De acordo com SEMBRELLI (1971), tornou-se impossível camuflar
a doença da primeira-dama e quando ela chegou ao estado terminal,
articularam-se manifestações das massas e a ideia mística se concretizou,
pois, a fé sentida e praticada deu mais importância para a figura de Evita. No
jornal Diário de Notícias falou-se das homenagens à primeira-dama:
Como expressão de homenagem à esposa do chefe de
Estado, a chefatura de polícia federal resolveu que: a
partir de hoje e diariamente, em todas as dependências
da repartição, às 20 horas e 25 minutos, quando ocorreu
o passamento da Sr. Eva Perón, “chefe espiritual da
nação”, seja guardado um minuto de silêncio em sua
memória (DIÁRIO DE NOTÍCIAS, 1952).
Gente de todas as partes percorreu quilômetros para velar o corpo
de Eva Perón. A Fundação Eva Perón dividia a água e a comida, a polícia
mantinha a ordem. O corpo da primeira-dama foi velado por quinze dias,
primeiro no ministério do trabalho, depois no Congresso e, finalmente, na
CGT, onde permaneceu e fez-se o traslado em presença de chefes militares.
As cadeias de rádio todo os dias anunciavam:
EVA, A MÃE DOS DESCAMISADOS
59
Capítulo 4
El último punto de la señal escuchada indicó las veinte y
veinticinco, hora en que Eva perón, Jefa espiritual de la
nación entró en la inmortalidad5 (RIAL-VÁSQUEZ, 2005,
p.494)
REFERÊNCIAS
BARRY, Carolina. Eva Perón y la organización politica de las mujeres, in: Vargas y
Perón aproximaciones y perspectivas. Editora Memorial da América Latina,São Paulo,
2009.
NAVARRO,
MARYSA.
Evita.
Buenos
Aires:
Planeta,
1994
ROSS, PETER. Justicia social, una evaluación de los logros del peronismo
clássico, anuário IEHS, 1993, p. 1-20.
PERÓN, EVA. La Razón de mi Vida. Buenos Aires: Ediciones Peuser, 1951.
PERÓN, JUAN D. Yo, Juan Domingo Perón: relato autobiográfico. Barcelona:
Editorial Planeta, 1976.
______. Doutrina Peronista, filosofia política social. Buenos Aires: 1947.
PLOTKIN, MARIANO BEN. Mañana es San Perón: A Cultural History of Perón ‘s
Argentina. Wilmington: SR Books, 1993.
SANTAYANA, MAURO. A tragédia argentina: poder e violência de Rosas ao
Peronismo. Buenos Aires: F. Alves Editora, 1976.
SEMBRELI, JUAN JOSÈ. Eva Perón ¿aventureira o militante? 4ª ed. Buenos Aires:
La Pléyade, 1971.
VÁZQUEZ, HORACIO RIAL. Perón, tal vez la história. Buenos Aires: El Ateneo,
2005.
VASSALLO, MARÌA SOFIA. Figuraciones de Evita en las tapas de revista.
Disponível
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<http://www.revistafiguraciones.com.ar/numeroactual/articulo.
php?ida=103&idn=5&arch=1>. Acesso em 02 dez. 2012
ZANATTA, LORIS. Eva Perón, Uma biografia política. Buenos Aires: Sudamericana,
2011.
Sites
http://bndigital.bn.br/hemeroteca-digital acesso em 02 Dez de 2013.
http://www.santafe.gov.ar/hemerotecadigital acesso em 02 de Dez de 2013.
EVA, A MÃE DOS DESCAMISADOS
60
Capítulo 4
EVA, THE MOTHER OF THE SHIRTLESS
ABSTRACT - This article seeks to show the life of maria eva duarte, from her childhood
in the interior of argentina, to her adolescence and adult life when she moved to the
capital buenos aires, to work as a model and then as an actress in radio soap operas,
where she gained prominence, working in the main theater company in the country.
From her marriage to juan perón, colonel of the argentine army, she began dedicating
herself to politics and becoming first lady, created the eva perón foundation, where she
dialogued with the poorest, women and unions, being crucial to maintain peronism in
the power.
KEYWORDS: Evita; Peronism; Shirtless.
EVA, A MÃE DOS DESCAMISADOS
61
Capítulo 5
CAPÍTULO 5
O TRABALHO PRESCRITO E O
REALIZADO À LUZ DO REAL DA
ATIVIDADE
Márcia Donizete Leite Oliveira
lattes.cnpq.br/2528181622389737
Faculdade Campos Elíseos –
Barueri - SP.
RESUMO - Este artigo objetiva
apresentar as relações entre o
trabalho prescrito e o realizado à luz
do que chamamos real da atividade
do trabalho (CLOT, 2006). E, como
objetivos específicos, investigar
que ações são prescritas e quais
são realizadas antes e durante uma
atividade de trabalho. Para tanto,
investigamos possíveis modificações,
reformulações ou (re) concepções
do agir profissional, bem como,
alguns procedimentos realizados
pelo trabalhador em sua prática
diária. Isto pode nos revelar fatores
que interferem direto e indiretamente
no agir profissional, que contribui
para uma maior compreensão do
trabalho prescrito, realizado e do real
da atividade, levando uma melhor
interação do trabalho coletivo. Além
disso, analisar esses fatores constitui
para auxiliar o esse profissional
a
encontrar
meios,
métodos,
procedimentos e formas de agir
capazes de tornar seu trabalho mais
satisfatório e, consequentemente,
encontrar formas de agir que
possam ajudá-lo a superar eventuais
dificuldades em seu métier. Este
estudo com base na pesquisa
bibliográfica está fundamenta nos
trabalhos de Clot (1999/ 2006; 2010)
para tratar de questões voltadas
ao trabalho prescrito, realizado e
real da atividade; e com aportes
teóricos de Bronckart (2008); da
Ergonomia da Atividade e da Clínica
da Atividade. Os resultados mostram
que o trabalhador ao realizar o
trabalho prescrito, realizado e o
“real da atividade”, se autoregula,
se transformando e mudando seu
próprio coletivo de trabalho. E os
recursos utilizados por ele estão
intimamente ligados ao seu trabalho
prescrito, realizado e ao real da
atividade.
PALAVRAS-CHAVE:
Trabalho
prescrito; Real da Atividade; Trabalho
realizado; Agir profissional.
1. INTRODUÇÃO
Este artigo tem como
objetivo principal apresentar as
relações entre o trabalho prescrito e
o realizado à luz do que chamamos
real da atividade do trabalho, ou
seja, daquilo que é realizado e de
tudo aquilo que deixamos de realizar
quando somos amputados do nosso
O TRABALHO PRESCRITO E O REALIZADO À LUZ DO REAL DA ATIVIDADE
62
Capítulo 5
poder de agir (CLOT, 1999/2006). E, como objetivos específicos mostrar
como as ações dos trabalhadores são prescritas e como são realizadas antes
e durante a efetivação de seu trabalho. Para tanto, investigamos possíveis
modificações, reformulações ou (re) concepções do agir desses profissionais
que ocorrem no “real da atividade” em seu métier de trabalho.
Este estudo com base na pesquisa bibliográfica com abordagem
qualitativa e descritiva tem como base teórica os trabalhos de Clot (1999/2006;
2010) e os aportes teóricos da Ergonomia da Atividade para as questões
voltadas ao trabalho prescrito, realizado e real da atividade. E, a partir de
alguns aspectos investigados e analisados por Bronckart (2008), pela Clínica
da Atividade e pela Ergonomia da Atividade, este trabalho pode nos levar a
uma compreensão diferenciada do que é efetivamente é o trabalho em uma
concepção mais ampla e complexa.
É importante ressaltar que este artigo apresenta os conceitos de
trabalho em uma visão ergonômica, discutindo alguns conceitos teóricos,
como: trabalho, tarefa e atividade, para diferenciá-los e relacioná-los aos
conceitos de trabalho prescrito, realizado e real da atividade, que serão
apresentados nas próximas seções. Apresenta, ainda, uma abordagem da
Clínica da Atividade e sua relação com o trabalho. A apresentação e discussão
desses conceitos têm o objetivo de contribuir para a compreensão do conceito
de trabalho em uma visão panorâmica, socio internacional e ergonômica na
visão da Clínica da Atividade Francesa.
Ressaltamos ainda que, algumas pesquisas buscam revelar parte da
complexidade do trabalho realizado e algumas delas apresentam intervenções
que podem auxiliar o trabalhador em sua prática profissional. Porém, nossa
pesquisa difere dessas abordagens por propor uma análise e compreensão
do que ocorre entre o trabalho prescrito e o realizado do trabalhador durante
a realização de sua atividade diária. Além disso, mostra que este trabalho é
constituído por procedimentos utilizados pelo trabalhador com o auxílio de
artefatos (materiais e/ou simbólicos), utilizados em sua prática profissional,
bem como possíveis modificações, reformulações ou (re) concepções que
podem revelar fatores que interferem de modo significativo em seu agir.
Além disso, reiteramos que com essa maior compreensão do trabalho e
com uma melhor interação do trabalho com seu coletivo, este profissional
pode encontrar meios, métodos, procedimentos e formas de agir capazes
de tornar seu trabalho mais satisfatório e, consequentemente, formas de agir
que possam ajudá-lo a superar as dificuldades encontradas em seu métier.
2. O TRABALHO EM UMA PERSPECTIVA ERGONÔMICA
Nesta seção, apresentamos os conceitos norteadores do trabalho,
pautados em estudos que julgamos compatíveis com a nossa corrente teórica.
Para que possamos refletir sobre o trabalho docente, realizamos uma breve
retomada dos conceitos de trabalho discutidos pela Ergonomia e pela Clínica
O TRABALHO PRESCRITO E O REALIZADO À LUZ DO REAL DA ATIVIDADE
63
Capítulo 5
da Atividade desenvolvida por Yves Clot, visto que esses aportes teóricos
levam-nos a uma maior compreensão do trabalho docente, conceito esse que
contemplamos nesta pesquisa.
Nossa pretensão, aqui, não é expor um histórico minucioso das
origens e dos desenvolvimentos da Ergonomia e da Clínica da Atividade.
Nosso propósito é enfatizar a relevância dessas áreas e a relação entre
essas correntes, que abordam os conceitos relacionados ao trabalho, para
chegarmos ao que se denomina real da atividade1 docente. Assim, delimitamos
de que forma essas correntes se originaram e evoluíram na França, desde
as primeiras décadas do século XX até os dias atuais, e como conceituaram
o termo trabalho. Para melhor estabelecer essa relação, apresentamos, a
seguir, a trajetória dessas correntes intimamente relacionadas à Psicologia
do Trabalho.
3. A ERGONOMIA E OS CONCEITOS DE TRABALHO
A Ergonomia é considerada por muitos autores uma ciência jovem,
de caráter interdisciplinar, por isso suas bases teórico-metodológicas
encontram-se em consolidação. Essa ciência ou corrente, como chamamos,
fundada oficialmente por Murrel em 1949, tem como objeto teórico e de ação
o trabalho. A partir de seu surgimento, o principal objetivo da Ergonomia era a
análise dos problemas de funcionamento dos operadores humanos. Por estar
centrada na saúde ou na segurança dos trabalhadores, buscava também
amenizar os malefícios causados pelo processo de industrialização da época.
Entretanto, foram nos países francófonos que essa corrente passou
por mudanças mais significativas em seu paradigma. Surge, assim, a
Ergonomia Francesa, que se opôs ao paradigma taylorista, substituindo “a
adaptação do homem ao trabalho pela adaptação do trabalho e de suas
condições gerais aos trabalhadores” (BRONCKART, 2008, p.97).
Segundo o autor (2008), essa abordagem geral volta-se para a
análise da atividade efetiva do trabalho, tendo como preocupações os
problemas concretos em situação e tempo reais de trabalho. No entanto, para
que possamos compreender melhor essa explicitação, é preciso entender o
que os ergonomistas definem como trabalho real2.
Conforme Daniellou, Laville, Teiger (1983, p.84), não podemos definir
trabalho real sem levar em consideração o “conjunto de aspectos das relações
entre o operador e as tarefas que ele deve realizar, como ainda, apreender o
trabalho do ponto de vista dos operadores”. Ao considerarmos esse conjunto
de aspectos, compreendemos que há um distanciamento entre o trabalho
prescrito ou pré-definido e o trabalho tal como é vivenciado pelos operadores.
É esse distanciamento justamente denominado pelos autores como trabalho
A expressão “real da atividade” será explicitada na seção referente à Clínica
da Atividade.
1
2
Trabalho real – conceito teórico segundo a Ergonomia.
O TRABALHO PRESCRITO E O REALIZADO À LUZ DO REAL DA ATIVIDADE
64
Capítulo 5
real. Nas palavras de Teiger,
O trabalho prescrito ou esperado dá-se no nível local de
organização do trabalho, que fixa regras ou objetivos que
levam em conta as especificidades locais; [O trabalho real
dá-se] no nível da atividade de uma pessoa [...] em um
determinado tempo [...] em que se revelam o saber-fazer
e os conhecimentos dos operadores, em que se opera
a ação do corpo inteiro para construir compromissos
operatórios, em que se constrói a relação subjetiva com
o trabalho (TEIGER, 1993, p.84 [grifo nosso]).
Assim, nessa abordagem ergonômica, a autora centra-se na atividade
do operador no trabalho. É importante ressaltar que o termo atividade, para a
Ergonomia, está relacionado à atividade dos operadores, isto é, “ao que ele
faz e também ao que ele vivencia para realizar essa atividade” (TEIGER apud
BRONCKART, 2008, p. 97). A atividade pode ser apreendida por meio de
determinados procedimentos de observação em relação aos comportamentos
dos trabalhadores e por outros procedimentos que visam à verbalização deles
em relação às suas próprias representações das situações de trabalho e dos
vários aspectos vivenciados por eles (BRONCKART, 2008, p.98). O autor,
com base em Teiger (1977), ressalta que:
Essa atividade é concebida como um objeto em princípio
enigmático, que as teorias buscam (re-) construir ou
(co-) construir com os trabalhadores, como também
provenientes de um compromisso entre as exigências das
tarefas predefinidas e os recursos efetivos que podem
ser mobilizados pelos trabalhadores (BRONCKART,
2008, p. 98).
Na conceitualização de Teiger (1992, p.113), o trabalho é visto como
“uma atividade finalística, realizada de modo individual ou coletivo numa
temporalidade dada, por um homem ou por uma mulher singular, situada
num contexto particular que estabelece as exigências imediatas da situação”.
Segundo a autora, o trabalho não é uma atividade neutra, pois engaja e
transforma aquele que o executa. Para Teiger (1992, p.114), o trabalho é
uma atividade mediadora que envolve o sujeito e um contexto singular, isto
é, envolve a manifestação da interação entre o sujeito trabalhando e o seu
ambiente lato sensu. Representa cada um desses elementos a realidade,
a materialidade do trabalho. Nessa perspectiva, destacamos dois aspectos:
1. A interação pode ser compreendida fora de um sentido
linear, ou seja, em uma relação direta entre “sujeito e
O TRABALHO PRESCRITO E O REALIZADO À LUZ DO REAL DA ATIVIDADE
65
Capítulo 5
contexto”, em que o sujeito ao agir sobre o meio, de forma
direta ou indireta com uso de artefatos, pela atividade de
trabalho, é transformado por esta, decorrente dos efeitos
e dos resultados de sua ação.
2. Esta interação não se dá por uma estimativa, pois
é guiada por objetivos estabelecidos pelo sujeito com
seu objeto de ação, “cuja estruturação [...] dá sentido à
interação e é resultado de um processo de apropriação do
que foi prescrito pela organização de trabalho” (TEIGER,
1992, p.114).
Como evidente, trabalho, para a Ergonomia, segundo Teiger (1992),
não é um conceito abstrato, pois toma forma. Nas palavras da autora, é um
conceito “encarnado em um corpo”, marcado pela “temporalidade e em um
determinado contexto” (TEIGER, 1992, p.114). Por “se encarnar em um sujeito
singular”, o trabalho torna-se uma atividade interativa e transformadora, que
envolve e engaja o sujeito em toda sua totalidade (corpos biológicos, cognitivo,
subjetivo). Isso marca a inserção da história singular desse sujeito na sua
relação social com o meio. A autora ressalta, ainda, que, em seu sentido mais
amplo, o trabalho é compreendido em seu ambiente, em suas condições,
organizações e relações sociais e no contexto socioeconômico no qual está
inserido. Portanto, segundo essa concepção, o trabalho é compreendido
como uma atividade situada.
Dejours e Molinier (1994, p.61) complementam essa perspectiva,
afirmando que “o trabalho é uma atividade coordenada de homens e mulheres
para responder ao que não está posto, desde o início, pela organização
prescrita do trabalho”. Terssac (1995, p.8) apresenta a relação entre o
trabalho prescrito e o realizado:
O trabalho é uma ação coletiva finalística. É uma
ação “organizada”, porque ela se situa num contexto
estruturado por regras, convenções, culturas. É também
uma ação organizadora, porque ela visa, não somente
preencher as lacunas provenientes das imprecisões
da prescrição, mas produzir um acordo, um espaço de
ações pertinentes. É pela ação que se define, de forma
interativa, o problema e a solução. É na ação que se
operam as trocas de informações e que se constroem as
formas de agir (TERSSAC, 1995, p. 8).
Segundo Dejours (1992), isso reforça o caráter do trabalho como
um objeto de múltiplas dimensões e vários significados, o que permite
identificar um elo, ou seja, uma preocupação com o trabalhador quando se
demonstra como é ou como seria realmente a atividade desse trabalhador.
Para o autor, é relevante o fato de a Ergonomia Francesa ter dado destaque
O TRABALHO PRESCRITO E O REALIZADO À LUZ DO REAL DA ATIVIDADE
66
Capítulo 5
ao distanciamento entre o trabalho prescrito e o real. Além disso, segundo
Terssac (1995), os enfoques que evidenciam esse distanciamento mostram
a esperteza ou a coragem dos trabalhadores diante de certas lacunas nos
seus trabalhos.
4. TRABALHO, TAREFA E ATIVIDADE, COMO DIFERENCIÁ-LOS?
Pelo fato de os termos trabalho, tarefa e atividade serem conceitos
teóricos discutidos e definidos por algumas disciplinas, como a Ergonomia,
consideramos que é relevante apresentar a diferença entre essas definições,
visto que utilizamos esses conceitos com base na Ergonomia e na Clínica da
Atividade.
Segundo Guérin et al. (2001), a Ergonomia define as regras do
trabalho e, consequentemente, se interessa pelas condições dele. Para
os autores, é preciso reconhecer que a palavra trabalho abrange várias
realidades, como mostra o uso corrente apresentado em várias pesquisas: as
condições de trabalho (penoso, social); o resultado do trabalho (bem feito ou
não); ou a própria atividade de trabalho (meticuloso, denso). Por esse motivo,
os autores afirmam que a “atividade, as condições e o resultado da atividade”
(GUÉRIN et al., 2001, p. 14) não existem isoladamente. O trabalho é, assim,
a unidade dessas três realidades, conforme representado na figura a seguir:
Figura 1: O trabalho
Fonte: GUÉRIN et al., (2001).
A tarefa, por sua vez, é definida como “resultado antecipado fixado,
dentro das condições de trabalho determinadas” (GUÉRIN et al., 2001, p.
15), isto é, ela mantém uma estreita relação com o trabalho por meio das
condições e dos resultados deste. A tarefa não é o trabalho, mas o que
O TRABALHO PRESCRITO E O REALIZADO À LUZ DO REAL DA ATIVIDADE
67
Capítulo 5
é prescrito pela empresa (instituição) ao operador (trabalhador). Essa
prescrição, imposta a ele, é, portanto, externa, determina e constrange3 sua
atividade, mas, ao mesmo tempo, é indispensável para que esse trabalhador
possa operar: ao determinar sua atividade, ela o autoriza” (GUÉRIN et al.,
2001, p.15). Entretanto, segundo Guérin et al. (2001, p.14), “essa relação é
o do objetivo à realidade: as condições determinadas não são as condições
reais, e o resultado antecipado não é o resultado efetivo”. Essa é a primeira
razão pela qual a tarefa não deve ser confundida com o trabalho, segundo os
autores, como representada a figura a seguir:
Figura 2: A tarefa
Fonte: GUÉRIN et al. (2001).
Há, ainda, outra razão mais fundamental para isso: a “atividade de
trabalho”, ou seja, “a maneira como os resultados são obtidos e os meios
utilizados” (GUÉRIN et al., 2001, p.14-15). Uma das maneiras encontradas
pelos ergonomistas para analisar essa atividade de trabalho é a partir de
entrevistas realizadas com trabalhadores em suas empresas. Assim, os
autores distinguem as três realidades da seguinte forma: “A tarefa como
resultado antecipado fixado em condições determinadas; A atividade de
trabalho como realização da tarefa; O trabalho como unidade da atividade
de trabalho, das condições reais e dos resultados efetivos dessa atividade”
(GUÉRIN et al., 2001, p. 114-115).
De acordo com Guérin et al. (2001, p.15) os operadores desenvolvem
sua atividade em tempo real em função deste quadro: “a atividade de
trabalho é uma estratégia de adaptação à situação real de trabalho, objeto
da prescrição”. Para os pesquisadores, a distância entre o prescrito e real4 é
a manifestação concreta da contradição sempre presente no ato de trabalho,
entre o que é pedido e o que a atividade pede. Assim, a análise ergonômica
da atividade é a análise das “estratégias (regulação e antecipação) usadas
O TRABALHO PRESCRITO E O REALIZADO À LUZ DO REAL DA ATIVIDADE
68
Capítulo 5
pelo operador para administrar essa distância, ou seja, a análise do sistema
homem/tarefa”, conforme podemos visualizar na figura (3):
Figura 3: Trabalho prescrito ao real
Fonte: GUÉRIN et al. (2001).
Os autores definem essas realidades e concluem que analisar o
trabalho significa realizar rigorosamente a análise do conjunto desse sistema,
desses elementos expressos na figura (3). Assim, a análise ergonômica
do trabalho, segundo seus conceptores, é uma análise da atividade que
se confronta com a análise de outros elementos que compõem o trabalho
(GUÉRIN et al., 2001, p.15). Afinados com os trabalhos que abordam a
temática da atividade de trabalho como combinação do trabalho prescrito e do
realizado5, vinculados ao real da atividade6, estão as pesquisas desenvolvidas
pela Clínica da Atividade iniciada por Clot (1995, 1998, 1999/2006). Para
maior compreensão dessa disciplina, apresentamos, agora, aspectos do seu
surgimento e de sua significativa contribuição para os estudos que têm como
enfoque o trabalho.
4.1. Clínica da atividade e a sua relação com o trabalho
A Clínica da Atividade Francesa foi inspirada nos estudos sobre o
trabalho baseados na teoria histórico-cultural de Vygotsky e é uma vertente
situada na intersecção da Ergonomia Francesa e da Psicologia do Trabalho.
A Clínica enfatiza as relações entre atividade e subjetividade, que se
encontram no cerne de suas análises. Conforme mencionado, iniciada pelo
psicólogo Clot (1999/2001) do Conservatoire des Art et Métiers – CNAM, em
Trabalho realizado (conceito baseado pela Ergonomia como resultado do trabalho prescrito,
executado e finalizado.
5
6
Real da atividade (conceito discutido por Clot (1999/2006; 2010), que será explicitado na
próxima seção).
O TRABALHO PRESCRITO E O REALIZADO À LUZ DO REAL DA ATIVIDADE
69
Capítulo 5
Paris, a Clínica da Atividade mais especificamente intervém em contextos de
trabalho com o objetivo de compreender a relação entre as prescrições e o
estresse dos trabalhadores em geral. A Clínica privilegia a função psicológica
do coletivo de trabalho com a finalidade de possibilitar a ampliação do poder
de agir desses profissionais e uma transformação do próprio métier (CLOT,
1999).
A Clínica da Atividade surgiu de forma efetiva na década de 1990,
disciplina que Clot situa no campo da Clínica do Trabalho. Foi a partir do
desenvolvimento das obras mais expressivas de Yves Clot A função
psicológica do trabalho e O trabalho e o poder de agir (1999 e 2008), que a
Clínica passou a expor seus fundamentos, suas divergências em relação as
outras Clínicas do Trabalho.
A especificidade da Clínica da Atividade em relação as demais
clínicas é a forma pela qual ela concebe a atividade em sua relação com a
subjetividade. Para expor melhor essa relação, Clot (2008b), inspirado em
Vygotsky e Leontiev, mostra que estamos sempre diante de possibilidades
não realizadas. Ele demonstra, ainda, a diferença entre o real da atividade
com o trabalho realizado, uma vez que agir é, sobretudo, selecionar uma das
várias atividades possíveis. Além disso, para Clot, as emoções do sujeito não
têm um estatuto independente da atividade, o que contribui para a realização
dela. Portanto, o sentido da atividade é que a regula, afetando os fatores
emocional e cognitivo. Esse sentido deve ser transformado se quisermos
modificar a relação entre esses fatores.
A esse respeito, o autor também esclarece que a atividade não é
somente cognitiva ou emotiva, ela vai além da realização da tarefa e envolve
a apropriação de artefatos pelo sujeito ou até mesmo a amputação do seu
poder de agir. Assim, a atividade pode ser definida também como “A produção
de um meio de objetos materiais ou simbólicos e de relação humana ou mais
exatamente de (re) criação de um meio de vida” (CLOT, 2008b, p.7). Nessa
concepção, outra das especificidades da atividade consiste em fazer de algo
não apenas um objeto social, mas um objeto psicológico.
Além de mostrar essas especificidades, a Clínica da Atividade tem
a proposta de criar condições que permitam ao sujeito restaurar seu poder
de agir nos contextos profissionais. Em vez de simplesmente analisar as
reclamações dos trabalhadores, a Clínica propõe sugestões e mudanças
a eles, visando à melhoria das condições de trabalho. Diferente das outras
Clínicas do trabalho as quais propõem que os especialistas previnam-se para
agir, a Clínica da Atividade propõe que esses especialistas ajam primeiro,
para, assim, de fato descobrirem o que acontece no métier do trabalhador.
Trata-se de uma perspectiva voltada à ação com a finalidade de aproximar
a subjetividade do trabalho de forma que o sujeito, ao agir, transforme-se e,
consequentemente, seu trabalho seja transformado. No entanto, a Clínica
da Atividade não pode ser apenas considerada um método de ação e de
transformação, segundo Clot e Leplat (2005, p.34), mas também um método
O TRABALHO PRESCRITO E O REALIZADO À LUZ DO REAL DA ATIVIDADE
70
Capítulo 5
de “produção de conhecimento”, ao deslocar o plano da observação menos
para a estrutura da atividade e mais para a do seu desenvolvimento possível.
4.2 A definição do real para a clínica da atividade
Segundo Clot (2010), a Ergonomia e a Psicologia do Trabalho têm
insistido na distinção entre tarefa prescrita (trabalho prescrito) e atividade
real (trabalho real). Para essas disciplinas, “a tarefa é aquilo que deve ser
feito, enquanto a atividade é o que se faz” (LEPLAT; HOC, 1983 apud CLOT,
2010, p.103). Conforme Clot (2010), pelo fato de não haver convergência
entre a atividade realizada e a atividade real, a Clínica da Atividade dá um
passo além ao partir do pressuposto de que o “homem está pleno, em cada
minuto, de possibilidades não realizadas” (CLOT, 2010, p. 103). Desse modo,
“o comportamento é sempre o sistema de reações vencedoras” (VYGOTSKY,
2003, p.74). As possibilidades recalcadas formam resíduos incontrolados
que acabam adquirindo ainda mais energia para exercer, na atividade do
indivíduo, uma influência diante da qual ele pode ficar indefeso. Nesse
sentido, há um distanciamento entre atividade realizada e atividade real, o
que Clot denomina real da atividade:
A atividade não se limitaria ao que é realizado pelo
sujeito, mas compreenderia também o que ele não
chega a fazer, o que queria ter feito e não se faz [...] o
que se tenta fazer sem ser bem-sucedido – o drama dos
fracassos – o que se desejaria ou poderia ter feito e o que
se pensa ser capaz de fazer noutro lugar, seria também
o que é pensado, impedido e possível de ser feito (CLOT,
1999/2006, 2010, p. 104).
Dessa forma, a Clínica da Atividade percebe a realidade do trabalho
além do que é visível, ou seja, percebe o real da atividade. Inclusas nessa
análise, segundo Clot, estão as estratégias para evitar fazer o que deve ser
feito, as atividades suspensas, contrariadas ou impedidas. Por isso, o autor
questiona o porquê de não incluir na atividade real a atividade não realizada
(CLOT, 2010, p.104).
Percebemos que pelos conflitos que a atividade dispõe ao sujeito ele
não permanece passivo. Segundo Clot (2010, p.105), é possível sustentar
que o ofício do sujeito se revela na tentativa de escapar ao que o confina, ou,
ainda, na tentativa de anular os obstáculos que opõem a atividade a si mesma.
O trabalhador pode duplicar o meio exterior de trabalho por um meio interior
que responda aos dilemas dele. Até mesmo a função dos instrumentos pode
ser afetada por uma atividade de reconcepção ou recriação das técnicas
(CLOT, 2010, p.106). Na Psicologia do Trabalho, essa atribuição de novas
funções às ferramentas, esse uso deslocado e inventivo de um dispositivo é
denominado catacrese (CLOT, 1997; 2010).
O TRABALHO PRESCRITO E O REALIZADO À LUZ DO REAL DA ATIVIDADE
71
Capítulo 5
Quanto ao trabalho prescrito ou previsto, as ideias defendidas
pela Clínica da atividade perpassam as noções de Bakhtin de “gêneros e
estilo de discurso” (CLOT; FAÏTA, 2000), propondo a existência de gêneros
profissionais definidos “como tipos relativamente estáveis de atividade
socialmente organizadas por um meio profissional” (CLOT, 2010, p. 124).
Para Clot (1999, p.4), esses gêneros constituem-se, ao mesmo tempo, como
restrições e recursos para o agente e seriam incessantemente transformados
e reestruturados sob o efeito das contribuições estilísticas dos indivíduos ao
trabalho.
Além disso, Clot (1999, p.4), em A função psicológica do trabalho,
trata fundamentalmente das dimensões psicológicas que envolvem “o homem
e sua relação com o trabalho” e, segundo vários pesquisadores brasileiros,
essa obra representa a consolidação da Clínica da Atividade no Brasil. Já
na obra O trabalho e o poder de agir (CLOT, 2010, p.4), o autor apresenta
“elementos para refletir sobre os rumos que a psicologia do trabalho deve
tomar no sentido de transformar em um meio poderoso de fazer a psicologia
geral”. Nesse sentido, o autor pretende, ainda, compartilhar suas aquisições
teóricas recentes e contribuir para a ampliação do poder de agir dos
trabalhadores, oferecendo-lhes um campo de conhecimento que propicie
melhores ferramentas para a atuação profissional.
4.3 Os gêneros profissionais ou gêneros de atividades
Os gêneros profissionais são designados por Clot (2010, p.89)
como orientadores da ação dos trabalhadores. Esses gêneros, geralmente,
permanecem implícitos e oferecem a cada um a possibilidade de apoio,
em todos os sentidos do termo. O autor afirma que esse conceito de
gênero procura extrair algumas consequências da experiência dos grupos
homogêneos, ou seja, cada coletivo de trabalho tem suas maneiras de “fazer,
dizer ou sentir” (CLOT, 2010, p.89) estabilizadas, durante algum tempo, em
seu meio profissional; elas dizem respeito às tarefas, ao coletivo de trabalho,
às relações de hierarquia.
Por esse motivo, Clot (1999) defende a existência de gêneros
sociais de atividades, os quais contêm não somente os gêneros de discursos
(BAKHTINE, 1984 apud CLOT, 1999), mas, ainda, gêneros de técnicas,
que estabelecem a ligação entre a operacionalidade formal e prescrita dos
equipamentos materiais e as maneiras de agir e de pensar de um grupo.
Para Clot (2010, p.89), além da presença de enunciados deslocados ou
convencionais em um meio profissional, constata-se a presença de gestos,
de atos materiais e corporais aceitos ou não.
Dessa forma, encontra-se uma “gama de atividades obrigatórias,
possíveis ou, ainda, proibidas” (CLOT, 2010, p.89). De acordo com ele, os
previsíveis sociais de um gênero, na maioria das vezes subentendidos,
referem-se tanto às atividades técnicas e corporais quanto às atividades
O TRABALHO PRESCRITO E O REALIZADO À LUZ DO REAL DA ATIVIDADE
72
Capítulo 5
de linguagem. Os gêneros de atividade vinculados a uma situação e a um
meio estabilizam e fixam (nunca de modo definitivo) as maneiras comuns de
considerar “as coisas e os homens” (CLOT, 2010, p.89-90).
Segundo Clot (2010, p.90), uma das características dos gêneros de
atividade merece atenção. Eles, de certa forma, “conservam uma função
psicológica para cada trabalhador à medida que servem para agir”. Para o
autor,
Os gêneros são, portanto, coerções e, ao mesmo
tempo, meios de agir; recursos de que se pode dispor,
assim como obrigações a cumprir para serem válidas
nossas intenções na interação com os outros e no uso
dos objetos; como ainda, um instrumento, um sistema
transpessoal de métodos que garantem ao sujeito o
controle e a avaliação das finalidades de sua ação
singular, os quais exercem influência no poder de agir
dos trabalhadores (CLOT, 2010, p. 89-91).
Clot (2010, p.119) esclarece que entre a organização do trabalho e o
próprio sujeito existe um trabalho de reorganização da tarefa pelos coletivos
profissionais. O objeto teórico e prático que a Clínica da Atividade se esforça
para circunscrever é precisamente o trabalho de organização do coletivo
em seu meio, mais especificamente seus entraves, seus equívocos, seus
sucessos e insucessos, ou seja, sua história possível e impossível.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir do exposto deste trabalho, podemos concluir que entre o
prescrito e o real, há um terceiro termo que o autor designa como gêneros
sociais do ofício ou gêneros profissionais Clot (2010, p.119). Nesses gêneros,
incluem-se, ainda, as obrigações compartilhadas pelos trabalhadores para
realizarem suas tarefas frequentemente, os obstáculos, a organização
prescrita do trabalho (já incorporada pelo coletivo em si) e as prescrições
impostas. Clot (2010, p.119) ressalta que sem o recurso dessas formas comuns
da vida profissional assiste-se a um desregramento da ação individual, a uma
“queda do poder de ação”, a uma tensão vital do coletivo, a uma perda de
eficácia do trabalho e da própria organização. O autor afirma, ainda, que a
noção de gêneros profissionais provém da noção de gêneros proposta por
Bakhtin, em outro contexto, para refletir sobre a atividade linguageira. Para
esse autor, as relações entre o sujeito, a língua e o mundo não são diretas e
manifestam-se através dos gêneros discursivos de que o sujeito dispõe para
entrar em intercâmbio (BAKHTINE, 1984, p.285 apud CLOT, 2010, p.120).
Para Clot (2010, p.121), esses gêneros são falares sociais em uso
em determinada situação. Podemos pensar na mesma relação quando o
foco é o trabalho, porque as formas prescritas são, para os trabalhadores,
O TRABALHO PRESCRITO E O REALIZADO À LUZ DO REAL DA ATIVIDADE
73
Capítulo 5
em relação à sua forma de agir, ao mesmo tempo, restrições e recursos.
Segundo o autor, os gêneros profissionais, de algum modo, são partes
implícitas da atividade, isto é, são considerados como um intermediário social,
um conjunto de avaliações compartilhadas que, de maneira tácita, organizam
a atividade profissional. Os sujeitos: Sabem o que devem fazer graças a
uma comunidade de avaliações pressupostas, sem que seja necessário (re-)
especificar a tarefa a cada vez que ela se apresenta e são conhecidas pelo
coletivo, por isso não há necessidade de verbalizá-las (CLOT, 2010, p. 121122).
Quanto à restrição e ao recurso dos gêneros profissionais, dentre
outros aspectos, Clot (2010, p.125) salienta que em um meio profissional não
se abandona a ideia de compartilhar formas de vida em comum, reguladas
e reforçadas pelas circunstâncias. Segundo o autor (2010), as tensões
enfrentadas pelos trabalhadores são, muitas vezes, um bom sinal para se
buscar a estabilidade do gênero profissional, e a renúncia ao gênero pode
significar uma desordem na ação individual do trabalhador. Portanto, os
gêneros profissionais desempenham uma função psicológica insubstituível.
Clot (2010, p.125) defende a tese de que, em seu aspecto essencialmente
transpessoal, os gêneros profissionais exercem a função psicológica na
atividade de cada um. Eles organizam as atribuições e as obrigações ao
definir essas atividades independentes das características subjetivas dos
indivíduos que as executam em um dado contexto.
Enfim, os gêneros ajustam não as relações intersubjetivas, mas as
relações interprofissionais ao fixar “o espírito dos lugares como instrumento
de ação” (CLOT, 2010, p.125). É por meio de seu intermédio que os
trabalhadores se avaliam e julgam-se mutuamente (cada um deles avalia sua
própria ação).
Assim, por esta concepção, podemos compreender que os gêneros
profissionais constituem-se, ao mesmo tempo, de restrições e recursos. Os
gêneros seriam constantemente transformados e reestruturados “sob o efeito
das contribuições estilísticas dos indivíduos ao trabalho”. Segundo Bronckart
(2008, p.101), trabalhos como os de Clot (1999/2006) demonstram que o
estilo, a forma de fazer do trabalhador, permite um “retrabalhar contínuo dos
gêneros em situação”.
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74
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Capítulo 5
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Paris: La Dispute. 2003.
THE WORK PRESCRIBED AND PERFORMED IN THE LIGHT OF THE ACTUAL
ACTIVITY
ABSTRACT - This article aims to present the relationships between prescribed and
performed work in the light of what we call real work activity (CLOT, 2006). And, as
specific objectives, investigate which actions are prescribed and which are performed
before and during a work activity. Therefore, we investigate possible modifications,
reformulations or (re)conceptions of professional action, as well as some procedures
performed by workers in their daily practice. This can reveal factors that interfere directly
and indirectly in the professional act, which contributes to a greater understanding of
the prescribed work, performed and the actual activity, leading to a better interaction
of collective work. In addition, analyzing these factors helps these professionals to find
means, methods, procedures and ways of acting capable of making their work more
satisfactory and, consequently, finding ways of acting that can help them overcome
any difficulties in their métier . This study, based on bibliographical research, is based
on the works of Clot (1999/2006; 2010) to address issues related to the prescribed,
performed and actual work of the activity; and with theoretical contributions from
Bronckart (2008); of the Activity Ergonomics and of the Activity Clinic. The results show
that when the worker performs the prescribed, performed and “actual activity” work,
he self-regulates, transforming and changing his own work group. And the resources
used by him are closely linked to his prescribed work, performed and the actual activity.
KEYWORDS: Prescribed work; Real Activity; Work performed; Act professionally.
O TRABALHO PRESCRITO E O REALIZADO À LUZ DO REAL DA ATIVIDADE
76
CAPÍTULO 6
O CAMPO TEÓRICO DO
CONHECIMENTO POLÍTICO E
AS CONTRIBUIÇÕES CRÍTICAS
FEMINISTAS: PARTE I
Breno Henrique Ferreira Cypriano
lattes.cnpq.br/8398867970980446
Universidade Federal de Minas
Gerais, Belo Horizonte, Minas
Gerais
Lorena Ávila Soares Fonseca
lattes.cnpq.br/6627245741315256
Universidade Federal de Minas
Gerais, Belo Horizonte, Minas
Gerais
RESUMO
Diante
da
problematização sobre os avanços
no campo da ciência política e das
relações internacionais, o presente
capítulo apresenta as contribuições
das perspectivas críticas feministas
diante das discussões teóricas sobre
o conhecimento político. Como o
capítulo visa ser uma introdução a
estudantes e profissionais na área,
abordamos rapidamente a noção
de campo do conhecimento político,
as principais dimensões no campo
teórico que o feminismo procura
ser crítico, sobretudo a dimensão
epistemológica,
a
distinção
conceitual sobre “o” político e “a”
política e, também, uma crítica dos
tantos feminismos à perspectiva
hegemônica liberal dentro deste
campo. O estudo foi dividido em
duas partes, sendo que os aspectos
introdutórios, a discussão sobre o
campo do conhecimento político e
alguns aspectos das contribuições
críticas feministas são tratados
na primeira parte. Na última parte
são abordadas as correntes e
perspectivas
relacionadas
aos
vários feminismos, as dimensões
da
ciência
política,
relações
internacionais e teoria política e as
considerações finais, ressaltando o
que compreendemos como “teoria
política feminista”.
PALAVRAS-CHAVE: Teoria Política;
Feminismo; Ciência Política.
1. INTRODUÇÃO
A
construção
de
um
pensamento político moderno se
esforçou por silenciar as vozes
das mulheres, o lugar delas na
definição e constituição do poder, e
da política, e as representou de uma
forma distorcida. Diante disto, houve
a necessidade de se repensar o
próprio ponto de vista do/a sujeito/a
que produz o conhecimento. Em
Cypriano (2019) problematiza-se as
várias contribuições sobre o ponto de
vista, o lugar de fala, a experiência,
como
estratégias
epistêmicas
O CAMPO TEÓRICO DO CONHECIMENTO POLÍTICO E AS CONTRIBUIÇÕES CRÍTICAS FEMINISTAS: PARTE I
77
Capítulo 6
dissidentes, sobretudo por um olhar específico do Sul global. Em um trabalho
mais recente, o número de vozes e de minorias silenciadas se somaram ao
entendimento deste instrumental pós-colonial, sobretudo na América Latina
(CYPRIANO, 2021). Algumas questões que envolviam estas disputas eram
relativamente tranquilas para a construção do saber se este estivesse sob
o viés masculino, por isso, o olhar feminino incluído nessa empreitada
de também fazer conhecimento (e, consequentemente, nas formas de
pensamento, filosofia, teoria ou ciência), conforme salienta Silvana Mariano
(2008, p 368, itálicos da autora), correrá “[...] o risco de ficar sob suspeita de
praticar um olhar generificado e não objetivo.”. A criação desse abismo sobre a
prática do interlocutor, da busca por legitimidade acadêmica, da aceitação às
regras do campo, fez com que as/os pensadoras/es feministas deslizassem
por e através eixos de disputas internas nos campos do conhecimento e
nas disputas por poder interno, buscando estratégias epistêmicas para que
pudessem alcançar inclusão efetiva na construção do saber e do conhecimento
e promover, talvez, novas transformações paradigmáticas.
Ao retomarmos a análise para aos objetivos inicias intrínsecos e
comuns à toda a comunidade epistêmica ao redor da produção da teoria crítica
feminista durante o terceiro grande debate da disciplina das ciências sociais e
relações internacionais nos anos 1980, o contexto no qual o movimento se deu,
caracterizado primordialmente pelas críticas positivistas e pós-positivistas às
teorias tradicionais e a construção de conhecimento da disciplina, abrindo
espaço para novas análises e possibilitando uma nova roupagem para o
campo, mais interdisciplinar e inclusiva. Assim, “[...] o esforço inicial da teoria
feminista foi o de entender e reinterpretar as categorias de diversos discursos
teóricos de modo a tornar visíveis as atividades e as relações sociais das
mulheres analiticamente no âmbito das diferentes tradições intelectuais.”
(HARDING, 2019, p. 95).
As estratégias epistêmicas feministas de inserção nos espaços
acadêmicos, neste caso principalmente nos espaços de pesquisa e ensino
sobre a política, como ciência política e relações internacionais, foram
focadas na busca pela construção de um diferente enquadramento teórico
(theoretical framing), díspar daquele que é apresentado pela corrente
hegemônica do campo do conhecimento político (entendendo hegemonia
aqui no sentido normativo, relativo à dominância e à proeminência de uma
corrente nos principais debates teóricos). Assim, é importante ressaltar
que a incorporação da discussão feminista não poderia ser feita a partir
de quaisquer outras perspectivas teóricas, tal como a teoria clássica da
dominação formulada por Weber, as teorias sobre os movimentos sociais,
ou mesmo a teoria democrática, por exemplo, isto porque não haveria, de
forma geral, em nenhuma destas teorias a abertura analítica à incorporação
de conceitos historicamente politizados pelo feminismo, bem como que os
preceitos e dimensões teóricas não confluiriam com o projeto aspirado, que é:
“[...] a teoria feminista tem três características intimamente relacionadas: um
O CAMPO TEÓRICO DO CONHECIMENTO POLÍTICO E AS CONTRIBUIÇÕES CRÍTICAS FEMINISTAS: PARTE I
78
Capítulo 6
compromisso normativo com a emancipação das mulheres, um compromisso
científico com a explicação da opressão das mulheres e um compromisso
prático com a transformação social.” (McCLURE, 1992, p. 348, tradução
nossa). Acrescenta-se ainda que seja de suma importância para a agenda
feminista a convergência entre um compromisso normativo e científico com
um novo projeto societário onde gênero não esteja a serviço da dominação
e hierarquização. Como há uma diversidade interna ao feminismo, tal
compromisso nem sempre se dá de forma harmônica, e a emancipação não
se torna igual para todas as mulheres.
Este capítulo surge como uma proposta de apresentar às leitoras e
leitores as diversas frentes de contribuição desta empreitada crítica ao campo
teórico do conhecimento político, primeiro o delimitando, explicando algumas
questões referentes às discussões feministas dentro da ciência política e das
relações internacionais, apresentando algumas linhas e problematizações,
sobretudo lembrando que a construção da ciência política é fortemente
marcada pelo viés liberal, acrescenta-se às críticas ao malestream, também
críticas ao liberalismo (RAVECCA, 2019). De acordo com Mary O’Brien
(1981), em composição à ideia de mainstream procurando se referir à “boa”
ciência, o malestream se refere a um conceito referente aos cientistas sociais
do sexo masculino que realizam pesquisas que se concentram em uma
perspectiva masculina e, em seguida, assume-se que as descobertas podem
ser aplicadas a mulheres também. A nossa intenção aqui neste capítulo
não é a de esgotar as discussões, mas em alguns pontos somente elencálas para que seja uma introdução a este tema para diferentes estudantes,
pesquisadoras/es e acadêmicas/os.
2. O CAMPO DO CONHECIMENTO POLÍTICO
Delimitando, então, o espaço de interlocução, neste caso o discurso
sobre um conhecimento peculiar político, deve-se aqui acrescentar a ideia de
campo. Pode-se dizer que a noção de “campo” fornece uma compreensão
específica sobre a dinâmica estabelecida pelo pesquisador e teórico,
enquanto, numa relação com o mundo, e nas suas relações com o real
que está imbricado nas práticas institucionais. Nesse sentido, é importante
ressaltar que o objeto central desta análise seria, segundo Marlise Matos
(2008), o campo do conhecimento, ou “[...] campo científico [que] é entendido
como o espaço de jogo de uma luta concorrencial pela busca do monopólio
da autoridade científica, sendo esta, o resultado da soma da capacidade
técnica e do poder social.” (MATOS, 2008, p. 340-341, itálicos da autora).
Para desenvolver uma abordagem do campo do conhecimento
político, deve-se primeiramente levar em consideração que as dissensões
e o esquecimento marcaram, por muito tempo, a abordagem e o diálogo da
ciência política com a teoria política, como também com a filosofia política.
Logo, é indispensável desde já ressaltar a emergência das cinzas e dos
escombros intelectuais, mesmo após as declaradas “mortes” da filosofia e
O CAMPO TEÓRICO DO CONHECIMENTO POLÍTICO E AS CONTRIBUIÇÕES CRÍTICAS FEMINISTAS: PARTE I
79
Capítulo 6
teoria políticas – tão frequentemente colocada por metafísicos, pós-modernos
e neopragmáticos (WITTGENSTEIN, 1999; HEIDEGGER, 2007; RORTY,
1995). Ressaltam-se as extremidades e desarticulações de uma época,
em que há a convivência simultânea e local de heróis e de uma ortodoxia
do pensamento, enquanto, ao mesmo tempo, há angústias que não mais
podem ser explicadas pelo conhecimento produzido: hoje, onde há a crise
epistemológica, sem dúvida, tem-se um discurso que se flexiona para a
práxis e para o ativismo social e político, pelo qual se questiona e reflete-se a
realidade social e política desigual, injusta e discriminatória.
O campo do conhecimento é dinâmico e transdisciplinar e que várias
noções e conceitos até então vigentes nele, bem como as categorias de análise
centrais – até mesmo em decorrência da divisão entre as (sub)disciplinas (a
saber, filosofia, teoria e ciência políticas, somados à ideologia e pensamento
político) –, hoje são vistas como insuficientes. As práticas políticas e sociais
têm-se complexificado e exigido cada vez mais rediscussões sobre conceitos
até então cristalizados, bem como uma recorrente necessidade de se repor
alguns modelos teóricos engessados.
A imersão e a reflexão do próprio campo foram o que possibilitou a
emergência de novas questões e temáticas para a discussão teórica acerca
do que é “a” política e “o” político, e é nesse cenário que o movimento feminista
é um dos protagonistas. Deve-se ao engessamento teórico e à rigidez
disciplinar a possibilidade de uma abertura insurgente para os devaneios que
se lançam além da posição incômoda e intransigente que a ortodoxa corrente
dominante impõe aos aprendizes e mestres do “seu” campo de conhecimento
Ainda que o campo do conhecimento político tenha sido marcado por
um dissenso latente entre suas áreas, atualmente, se pensar na estabilidade
e na formatação desse campo favorece o entendimento da ciência política
como uma área maior que se definiria como uma prática discursiva mais
ampliada, na qual é dada a devida importância às contribuições de politólogos
(ou teóricos políticos), filósofos e outros cientistas na sua formatação. Este
avanço disciplinar pode ser notado através da história interna dessa própria
disciplina (CANSINO, 2008).
3. ALGUNS ASPECTOS DAS CONTRIBUIÇÕES CRÍTICAS FEMINISTAS
Partindo para a compreensão da influência feminista na teoria,
filosofia e ciência política, de extrema centralidade neste capítulo, soma-se
à ideia de campo científico e do conhecimento, um campo propriamente de
gênero e feminista, onde se articulam e se relacionam as teorias de gênero e
feministas. Segundo Matos (2008, p. 339, itálicos da autora),
[...] o novo campo de gênero na medida em que bem
acionado e articulado, [pode] colocar em xeque a
univocidade de sentido dos binarismos de toda ordem
O CAMPO TEÓRICO DO CONHECIMENTO POLÍTICO E AS CONTRIBUIÇÕES CRÍTICAS FEMINISTAS: PARTE I
80
Capítulo 6
– e não apenas aquele entre masculino e feminino –
e dessa forma expandir imensamente seu potencial
analítico, tornando possível sua incorporação em áreas
que durante séculos foram impermeáveis a críticas nesse
sentido.
Acredita-se, portanto, ser necessária uma abordagem sobre estes
campos, tanto o do conhecimento político, como o de gênero, que parte
das seguintes premissas: (i) a objetividade do conhecimento ao invés da
neutralidade (TAYLOR, 1994); (ii) a problematização do conhecimento inter e
transdisciplinar, o que comporia a noção de campo; e, (iii) a problematização
das subjetividades no campo do conhecimento político, pois ela perpassa
igualmente pelo “reenquadramento” e o “deslocamento” dos modelos
analíticos e conceituais: se iniciando a partir de uma noção limitada de
sujeito moral de hábitos (no início do século XIX), para um sujeito “normal”
individualizado das constituições (na última parte do século XIX), e daí a um
objeto social coletivamente compreendido através da solidariedade ou da
alienação e anomia (na virada do século XX), direcionando-se para o cidadão
de direitos e obrigações nos regimes de proteção social e de seguro social
para, finalmente, se dirigir a um sujeito “profundamente” autônomo com
escolhas e identidade própria (ROSE, 1999). Muitas vezes o mainstream das
ciências sociais – devido, principalmente, à sua tradição empiricista – negou
espaço e centralidade a algumas categorias subjetivas, concentrando sua
atenção e dando predominância à concepção individualista da modernidade
e do behaviorismo. Retomando a centralidade do elemento hermenêutico
e da interpretação no campo das ciências sociais, Charles Taylor (1994)
propõe uma visão que consiga lidar com a confusa rede inter-relacionada de
conceitos relativos às ciências do homem. Deste modo, para o autor:
O que a falta à ontologia da ciência social mainstream é a noção
de significado delimitada não simplesmente por um sujeito individual; de
um sujeito que pode ser um “nós”, bem como um “eu”’. A exclusão desta
possibilidade, do comunal, vem mais uma vez da nefasta influência da
tradição epistemológica para a qual todo o conhecimento tem de ser
reconstruído a partir das impressões estampadas no sujeito individual.
Mas se nós nos libertarmos desses preconceitos, isso parece uma visão
amplamente implausível sobre o desenvolvimento da consciência humana;
estamos cientes do mundo através de um “nós” antes de sermos um “eu”.
Daí, precisamos de uma distinção entre o que é pouco comum, no sentido
do que cada um de nós tem em nossos mundos individuais, e o que está no
mundo comum. Mas a própria ideia de algo que existe no mundo comum
em oposição ao que existe em todos os mundos individuais é totalmente
opaca à epistemologia empirista, e assim não encontra lugar na ciência social
dominante. (TAYLOR, 1994, p. 198, tradução nossa).
O CAMPO TEÓRICO DO CONHECIMENTO POLÍTICO E AS CONTRIBUIÇÕES CRÍTICAS FEMINISTAS: PARTE I
81
Capítulo 6
A demanda de que se tenha numa teoria sobre e da política um
“sujeito” é importante para que a teorização se fundamente a partir dele,
detendo-se sobre a linguagem que ele emana, do que ele proporcionaria em
suas análises e nas descrições institucionais, ao passo que, a infalibilidade da
política dependeria destas fundamentações e premissas básicas (BUTLER,
1998, p. 13). Judith Butler (1998) proporciona uma abordagem que entrelaça
a noção de sujeito ao resgate do domínio do político com os questionamentos
críticos à própria realização do sujeito. Enquanto uma questão inerentemente
política, a crítica dos sujeitos, por sua vez, não poderia ser politicamente
informada, já que é, antes de tudo, um próprio questionamento da política
enquanto tal. De acordo com a autora, não se poderia dizer que o sujeito
esteja engajado num campo propriamente político, visto que ele ou ela
próprios já são um advento previamente regulado e produzido. A partir daí,
percebendo que as versões dos sujeitos seriam politicamente insidiosas,
poder-se-ia destacar que o sujeito “[...] talvez [seja] mais político no ponto em
que se alega ser anterior à própria política.” (BUTLER, 1998, p. 22, negritos
da autora).
O que se quer aprofundar aqui é que a busca feminista por uma
concepção de sujeito (mesmo que seja equivocada, ao se basear numa
posição que, supostamente, seria fundamentalista) pressupõe que a
categoria “mulheres” referir-se-ia a um campo perpassado por diferenças
“indesignáveis” e que, desta forma, não poderia se reduzir ou mesmo se
totalizar em uma única identidade descritiva. As críticas de feministas póscolonialistas e feministas negras contribuíram para a permanência dessa
noção aberta, “um lugar de permanente abertura e ressignificação”. Butler
acredita que este tipo de contenda entre as feministas sobre o conteúdo do
termo/categoria deveria ser mantido, pois esta seria a base do “fundamento
infundado da teoria feminista”, pois o ato de desconstrução do sujeito do
feminismo permitiria, “[...] num futuro de múltiplas significações, emancipá-lo
das ontologias maternais ou racistas às quais esteve restrito e fazer dele um
lugar onde significado não antecipados podem [possam] emergir.” (BUTLER,
1998, p. 25). Assim sendo, o sujeito político do feminismo seria concebido da
seguinte forma:
No feminismo, parece haver uma necessidade política
de falar enquanto mulher e pelas mulheres, e não vou
contestar essa necessidade. Esse é certamente o modo
como a política representativa funciona e, neste país
[Estados Unidos], os esforços de lobby são virtualmente
impossíveis sem recorrer à política de identidade.
(BUTLER, 1998, p. 24).
No campo do conhecimento político, ressaltamos que é justamente a
sensibilidade e a percepção feministas sobre “o” político que também fizeram
O CAMPO TEÓRICO DO CONHECIMENTO POLÍTICO E AS CONTRIBUIÇÕES CRÍTICAS FEMINISTAS: PARTE I
82
Capítulo 6
convergir elementos de transição, já que uma nova noção de “público”, desta
vez ampliada e renovada, assim como a percepção do privado e do pessoal
já interpelados como conceitos inerentemente politizados (como a família, a
reprodução, o cuidado, o corpo), contribuem para se superar, ultrapassar as
relações desiguais de poder generificadas. A disputa entre os movimentos
feministas latino-americanos sobre a noção do político, ou pensado como
antagonismo, ou pensado como agonismo também traduzem esta mudança
paradigmática (CYPRIANO, 2014). Esse momento é, sem dúvida aquele
que Marta Lamas (2000, p. 5, tradução nossa) chama a atenção: “[m]uitas
feministas já funcionam mais a partir de realidades políticas do que de
posturas ideologizadas: assumem a dimensão pragmática da intervenção
política e começam a manifestar paixão por negociar conflitos.”
Poder-se-ia dizer que sem o desejo pelo conhecimento sobre “a”
política e “o” político, ao feminismo restaria, ou aceitar que as mulheres
não lutariam e depreciariam o poder, ou, então, lutar especificamente por
direitos (KIRKWOOD, 1985). Para Kirkwood (1985, p. 67, tradução nossa),
não haveria um “[...] modelo alternativo válido para desafiar o paradigma
patriarcal, o conhecimento que temos vestido e adornado.”, porém, a partir
do papel político do ativismo feminista e entendendo que a teoria antecederia
e procederia a ação, para Breny Mendoza (2009, s/n):
Como toda construção teórica inserida dentro da
lógica da colonialidade do poder, o eurocentrismo e o
masculinismo, a construção de uma nova teoria feminista
latino-americana passa primeiro por uma desconstrução
da teoria feminista ocidental, que até agora tem assentado
as pautas do pensamento feminista latino-americano, e,
logo se reconstruir como uma teoria feminista descolonial
e pós-ocidental pautada desta vez por seu próprio
contexto geopolítico-cultural.
Por fim, ainda que preliminarmente, sob a égide do feminismo,
ou melhor, dos diversos feminismos, como diz Maffia (2006, p. 191), “[n]
ós, mulheres, convidamos a repensar a linguagem, a investir com novas
energias termos como rebelião, resistência, insubmissão, utopia, liberdade,
independência, soberania, emancipação.”. E acrescenta, “[...] temos algo
mais para motivar estas mudanças plurais, uma intransigência semântica:
chamaremos somente de ‘democracia’ a um sistema capaz de desnaturalizar
todas as formas de hegemonia e subordinação.”
Desta forma a contribuição feminista é para se pensar não na política
simplesmente no Estado, ou então na esfera política, mas a política como
inclusão nas mais variadas esferas da vida, nos espaços mais ampliados
possíveis. Boaventura Santos (2007) coloca que o trabalho de tradução incide
tanto sobre os saberes como nas práticas dos sujeitos políticos, o que por
O CAMPO TEÓRICO DO CONHECIMENTO POLÍTICO E AS CONTRIBUIÇÕES CRÍTICAS FEMINISTAS: PARTE I
83
Capítulo 6
sua vez possibilitaria uma possível inteligibilidade recíproca entre os entes.
Sonia Alvarez (2009) pontua que sendo a tradução um processo de abertura
à/ao outra/o ela seria “[...] política e teoricamente indispensável para forjar
epistemologias e alianças políticas feministas, antirracistas e pós-coloniais/
pós-ocidentais [...]” (ALVAREZ, 2009, p. 743). Para esta noção de “política
como tradução”, confluindo com a experimentação atual dos movimentos e
ativismo feministas, deve-se atentar para duas possíveis direções do processo
de tradução: do movimento à academia e do movimento/academia ao Estado,
possibilitando uma agenda pública em interesses mínimos compartilhados.
Desta forma, acredita-se que esta seria uma norma invocada para aqueles
e aquelas que procuram aprofundar e ampliar as práticas democráticas,
admitindo que as experiências de exclusão, de opressão e marginalização
levam às demandas por inclusão (YOUNG, 2000). Poder-se-ia dizer que
o redimensionamento da noção de justiça, incluindo agora uma dimensão
propriamente política (FRASER, 2005), faz com que se reivindiquem tanto
reinvenções das parcerias de gênero na esfera doméstica (a divisão do
trabalho doméstico, isto é, a inclusão dos homens nestas atividades), como
nas outras relações de trabalho na esfera privada e na esfera pública estatal e
não-estatal. Sob a noção de representação, simbólica e na política ordinária,
as práticas políticas convencionais devem agora se responsabilizar pelas
práticas excludentes internas a elas próprias.
Ainda que, possivelmente, a necessidade de um conceito sobre
“a” política seja uma necessidade hegemônica, o papel teórico feminista
recorrido para este caso seria estritamente o de desestabilização. A busca
por politização de vários conceitos, inflexionando o que seria “o” político,
foi e é uma estratégia contra hegemônica, além de que a multiplicidade
de sentidos para “a” política seria o que caracterizaria a radicalidade do
feminismo. Porém, a movimentação política na academia e na militância
política, ao adentrar os espaços estatais e ao exigir que “o pessoal é
político”, tem demonstrado a necessidade de se pensar em um parâmetro
comum sobre o que seria “a política” através da estabilização teórica que
seja crítica, emancipatória e pragmática. Se por um lado a teoria feminista se
deteve quase exclusivamente nas discussões sobre a justiça social, pôde-se
notar a retomada da discussão sobre a democracia, já que, para superar a
opressão e a dominação generificadas há a necessidade de instrumentos
democráticos que deem conta da inclusão. “A” política como inclusão não
nega completamente a noção arendtiana de “política como liberdade”, mas
pretende-se ir além dela (cf. CYPRIANO, 2014; 2021).
A desestabilização paradigmática no nível ôntico – principalmente o
impacto do conceito de política arendtiano – na questão sobre “o” político
provocou tanta instabilidade teórica, que a abordagem feminista se viu
solicitada a incrementar os paradigmas ontológicos. Diferente da noção de
Laclau e Mouffe (2004), a teoria feminista caminhou contra a corrente: ao
propor novos paradigmas ontológicos agora há a da redefinição do conceito
O CAMPO TEÓRICO DO CONHECIMENTO POLÍTICO E AS CONTRIBUIÇÕES CRÍTICAS FEMINISTAS: PARTE I
84
Capítulo 6
de política – que incluiria uma visão que contempla os micropoderes,
a pulverização institucional, o loccus anti-patriarcal, anti-masculinista,
considerações anti-dicotômicas e anti-binárias, bem como ainda considera a
dinâmica da transnacionalização e do agonismo.
Em Cypriano (2021) entende-se que a busca pela compreensão do
que é “a” política para o feminismo resgata a compreensão da multiplicidade
de posicionamentos nos campos discursivos, possibilitando resgatar lugares
vazios e, destes, por meio da própria história, da construção do conhecimento
e da ação e práxis, refletir sobre as representações (com a marcação efetiva
de presenças e vozes) e a configuração do poder sobre as instituições,
sobretudo a partir da contribuição praxiológica e dos feminismos descoloniais
da América Latina.
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O CAMPO TEÓRICO DO CONHECIMENTO POLÍTICO E AS CONTRIBUIÇÕES CRÍTICAS FEMINISTAS: PARTE I
86
Capítulo 6
THE THEORETICAL FIELD OF POLITICAL KNOWLEDGE AND CRITICAL
FEMINIST CONTRIBUTIONS
ABSTRACT - Given the problematization of advances in the field of political science
and international relations, this chapter presents the contributions of feminist critical
perspectives in the face of theoretical discussions on political knowledge. As the
chapter is intended to be an introduction to students and professionals in the field, we
quickly approach the notion of the field of political knowledge, the main dimensions in
the theoretical field that feminism seeks to be critical, especially the epistemological
dimension, the conceptual distinction between “the political” and “politics” and, also, a
critique of so many feminisms to the hegemonic liberal perspective within this field. The
study was divided into two parts, the introductory aspects, the discussion on the field
of political knowledge and some aspects of feminist critical contributions are treated
in the first part. In the last part, the currents and perspectives related to the various
feminisms, the dimensions of political science, international relations and political
theory and the final considerations are addressed, emphasizing what we understand
as “feminist political theory”.
KEYWORDS: Political Theory; Feminism; Political Science.
O CAMPO TEÓRICO DO CONHECIMENTO POLÍTICO E AS CONTRIBUIÇÕES CRÍTICAS FEMINISTAS: PARTE I
87
Capítulo 7
CAPÍTULO 7
O CAMPO TEÓRICO DO
CONHECIMENTO POLÍTICO E
AS CONTRIBUIÇÕES CRÍTICAS
FEMINISTAS: PARTE II
Breno Henrique Ferreira Cypriano
lattes.cnpq.br/8398867970980446
Universidade Federal de Minas
Gerais, Belo Horizonte, Minas
Gerais
Lorena Ávila Soares Fonseca
lattes.cnpq.br/6627245741315256
Universidade Federal de Minas
Gerais, Belo Horizonte, Minas
Gerais
RESUMO
Diante
da
problematização sobre os avanços
no campo da ciência política e das
relações internacionais, o presente
capítulo apresenta as contribuições
das perspectivas críticas feministas
diante das discussões teóricas sobre
o conhecimento político. Como o
capítulo visa ser uma introdução a
estudantes e profissionais na área,
abordamos rapidamente a noção
de campo do conhecimento político,
as principais dimensões no campo
teórico que o feminismo procura
ser crítico, sobretudo a dimensão
epistemológica,
a
distinção
conceitual sobre “o” político e “a”
política e, também, uma crítica dos
tantos feminismos à perspectiva
hegemônica liberal dentro deste
campo. O estudo foi dividido em
duas partes, sendo que os aspectos
introdutórios, a discussão sobre o
campo do conhecimento político e
alguns aspectos das contribuições
críticas feministas são tratados
na primeira parte. Na última parte
são abordadas as correntes e
perspectivas
relacionadas
aos
vários feminismos, as dimensões
da
ciência
política,
relações
internacionais e teoria política e as
considerações finais, ressaltando o
que compreendemos como “teoria
política feminista”.
PALAVRAS-CHAVE: Teoria Política;
Feminismo; Ciência Política.
1. FEMINISMOS NA CIÊNCIA POLÍTICA, RELAÇÕES INTERNACIONAIS E TEORIA POLÍTICA FEMINISTA
Segundo Janet Flammang
(1992, p. 4), a ciência política
surge nos Estados Unidos em 1880
na Universidade de Columbia e
começou a se consolidar como um
campo científico na mesma década,
tendo destaque a publicação do
periódico Political Science Quartely
a partir de 1886. Já em 1903, cabe
destacar a fundação da associação
profissional
American
Political
O CAMPO TEÓRICO DO CONHECIMENTO POLÍTICO E AS CONTRIBUIÇÕES CRÍTICAS FEMINISTAS: PARTE II
88
Capítulo 7
Science Association (APSA) e, três anos após, há a publicação do periódico
da associação, American Political Science Review. Em ambos os periódicos
foi notável a ausência de trabalhos que abordassem a questão da mulher na
política. Foi só em 1968, com a obra de Martin Gruberg, “Women in American
Politics”, que, de forma inédita, o autor acentuou a participação política das
mulheres, a organização dos movimentos de mulheres e deu voz a elas
através de passagens no texto. Em 1969 a Women´s Caucus in Political
Science foi fundada, e no mesmo ano, nos encontros da APSA criou-se a
seção organizada Women and Politics Research.
Na década de 70, em 1974, Wilma Krauss publica o artigo “Political
implications of gender roles: a review of the literature” e revoluciona quando
defende os papéis de gênero como variáveis úteis para a explicação acerca
da complexidade das relações na cultura cívica (FLAMMANG, 1992, p. 7).
No mesmo ano, dois outros artigos acerca da temática das mulheres e a
política também são publicados. No primeiro artigo, publicado originalmente
em 1974, Bourque e Grossholtz (1998) analisam em quatro categorias – (i)
elucidando nas notas de rodapé; (ii) evocando a dominação masculina; (iii) a
masculinidade como um ideal de comportamento político; e (iv) compromisso
ao feminino eterno – as distorções a respeito da diferenciação sexual e a
perpetuação dessas concepções equivocadas na Ciência Política.
O outro artigo das autoras Shanley e Schuck (1974) procurava
apontar a razão para que a Ciência Política ignorasse a mulher, através
de três pistas: (i) a definição de político; (ii) os tipos de perguntas feitas;
e (iii) as metodologias utilizadas pelas suas abordagens dominantes: o
institucionalismo legal e o behaviorismo. Em 1976, na Internacional Political
Science Association, originou-se o grupo de estudos Sex Roles and Politics,
que em 1979 consegue o status de Comitê nessa Associação. Um ano após,
em 1980, publica-se a primeira edição do periódico Women and Politics,
conquistado graças ao aumento do número de trabalhos dedicado ao tema
(Cf. SAPIRO, 1998).
De maneira geral, cabe destacar que a partir do momento as
contribuições feministas começam a emergir no campo dos saberes passam
a colocar em questão três dimensões relevantes para o entendimento de
sua caracterização crítica e transformadora: a dimensão epistemológica, a
dimensão metodológica e a dimensão do campo do saber na qual se insere.
Arruda (2002) aponta que:
a) Sobre a dimensão epistemológica, a teoria
feminista adere a perspectivas que divergem da posição
paradigmática dominante, a ver:
(i) crítica aos binarismos e essencialismos;
(ii) importância da dimensão subjetiva; e,
(iii) proposição de teorias relacionais (como o próprio
conceito de gênero).
O CAMPO TEÓRICO DO CONHECIMENTO POLÍTICO E AS CONTRIBUIÇÕES CRÍTICAS FEMINISTAS: PARTE II
89
Capítulo 7
b) Na dimensão metodológica a teoria feminista
supostamente adota como instrumentos:
(i) a mulher como objeto, que até então era subvalorizado
nas ciências;
(ii) uma abordagem mais dinâmica, já que, o objeto é
tratado simultaneamente como processo e como produto;
e
(iii) métodos mais dinâmicos e ousados, que por vezes
eram considerados cientificamente “ilegítimos”.
c) Por último, mas não menos importante, a dimensão
do campo do saber em que o feminismo se insere, a
teoria feminista:
(i) surge vinculada a uma realidade concreta, atrelada ao
movimento feminista;
(ii) nas áreas em que são incluídas estabelecem conflitos
e dissensos;
(iii) através da transição paradigmática, ousa nas
inovações metodológicas, mas que nem sempre eram
aceitas no campo científico em que se encontrava; e
(iv) depara-se com uma latência entre o surgimento das
ideias inaugurais e o desenvolvimento da sua aplicação,
e o advento da consequente visibilidade (ARRUDA,
2002: 127-147).
Ao estabelecer-se na ciência política há diferenças instrumentais
explícitas entre o modelo científico da ciência política convencional, quase
sempre tomada pelo modelo ou perspectiva liberal, como já ressaltado
anteriormente e referenciando através do trabalho de Paulo Ravecca (2019),
e o referente à Ciência Política feminista, como Flammang (1992) aborda em
sua obra, que foram esquematizadas na Quadro 1.
Quadro 1: Diferenças instrumentais na ciência política: convencional vs.
feminista
Objeto
observado
Ciência Política
Convencional
Estudo atomístico
Indivíduos autônomos
Categorias
Categorias neutras
Teorias
Teorias Universais
Instrumentos
Ciência Política Feminista
Indivíduos socialmente
interdependentes
Categorias socialmente
construídas
Teorias socialmente
contingentes
O CAMPO TEÓRICO DO CONHECIMENTO POLÍTICO E AS CONTRIBUIÇÕES CRÍTICAS FEMINISTAS: PARTE II
90
Masculino como normativo
Metodologia
Preferência pelos métodos
quantitativos e survey
research
Capítulo 7
Posição
implícita
Revelar a posição implícita
na Ciência Política
convencional
Preferência pelos métodos
qualitativos, como
observação-participante
e entrevistas semiestruturadas
Fonte: FLAMMANG (1992)
De acordo com Cypriano, Dias e Barbabela (2017), o estudo da
Política Externa e das Relações Internacionais tardiamente incluiu a discussão
feminista em sua agenda, tendo como exemplo os trabalhos seminais a
obra “Women and War” de Jean Bethke Elshtain (1987) e o livro “Bananas,
Beaches, and Bases” de Cynthia Enloe (1989), e ainda, no começo da década
de noventa, o livro “Gender in International Relations” de Ann Tickner (1992).
Tais autoras travaram importantes debates com os autores centrais para o
campo, como Keohane (1989) e Fukuyama (1998), sobre a situação das
mulheres na disciplina, já que foi somente na década 90, quando o “terror”
gerado pelas guerras étnicas escancarou aos olhos do mundo e da mídia os
inúmeros estupros, as inúmeras violências sexuais e mortes causadas por
essas consequências que não só ocorriam nesses conflitos e necessitavam
atenção, mas já era sistematicamente uma prática dos opressores e
“conquistadores” de Nações potencialmente e hegemonicamente superiores.
Foi só diante disto que a disciplina e os teóricos das Relações Internacionais
começaram a se mobilizar para as questões de gênero (NOGUEIRA,
MESSARI, 2005). Cabe ressaltar que tanto em Enloe (1989), como em
Tickner (1992), o uso do conceito gênero pelas teóricas feministas das
Relações Internacionais reporta-se muitas vezes à relação entre o campo
feminista e as questões relacionais e sociológicas do poder local, mas desta
vez num nível internacional. Tais autoras referem-se também ao conceito de
masculinidade hegemônica relacionando-o às questões belicistas e à cultura
fálica/tradicional de gênero (cf. CONNEL, 1995).
A teoria feminista criticamente tornou-se alvo de intensos debates e
de importantes publicações na área das relações internacionais, o que gerou
e ainda gera a movimentação para se repensar nas tradições teóricas, nos
conceitos, modelos e nos silêncios. Como diria Christine Sylvester (1996),
os autores das Relações Internacionais trataram as questões de gênero na
disciplina de três formas: (i) há aqueles que ignoram; (ii) há aqueles autores
que reconhecem as autoras feministas em nota de rodapé e (iii) há os que não
são feministas, mas usam e citam os seus trabalhos. No próprio trabalho de
Nogueira e Messari (2005, p. 230), apesar de dedicar um capítulo à questão
feminista e pós-colonial, os autores colocam que possivelmente uma das
O CAMPO TEÓRICO DO CONHECIMENTO POLÍTICO E AS CONTRIBUIÇÕES CRÍTICAS FEMINISTAS: PARTE II
91
Capítulo 7
possibilidades é que a marginalização dessas discussões dar-se-ia porque
tais teorias/perspectivas “[...] levantam assuntos que são irrelevantes.”.
Além destas diferenças instrumentais, Judith Squires (1999)
apresenta-nos uma tipologia sobre a abordagem de gênero na teoria política,
a ver: (i) a problematização da exclusão das mulheres, feita geralmente pelas
feministas liberais; (ii) a problematização da questão masculina na política,
sustentando a política da diferença, utilizada em geral pelas feministas
radicais, maternalistas ou culturalistas; e (iii) a abordagem que coloca o
mundo dividido em gênero como um problema, logo, tende a enfatizar a
posição dos sujeitos e o engendramento como uma ação, não como um
nome, sustentando a política da diversidade, comumente empregada pelas
feministas pós-modernas ou pós-estruturalistas. Além disto, a autora salienta
os três arquétipos de compreensão da teoria política, entre os quais essas
abordagens podem estar dispersas: (i) o objetivo, que propõe valores
universais abstratos; (ii) o interpretativo, que propõe expor e interpretar os
valores já existentes em comunidades e sociedades estabilizadas; e (iii) o
genealógico, que procura substituir os valores já existentes, através do
questionamento de suas demandas por uma condição evidente. A autora
enfatiza que poderemos encontrar teorias que utilizem mais de um arquétipo,
até mesmo os três, por meio de uma negociação complexa ou por uma fusão
pragmática da combinação entre essas estruturas.
2. OS FEMINISMOS: CORRENTES E PERSPECTIVAS
A crítica feminista traz como contribuição para as discussões do atual
debate político novas perspectivas de análise capazes de suprir demandas de
conhecimento antes estagnadas - e até mesmo reprimidas -, especialmente
por explorarem novas abordagens de temas historicamente estudados por
grupos hegemônicos – seletos, homogêneos e masculinos. O início da
contribuição feminista para o campo da ciência política, em sua estrutura
vigente, aflorou-se durante a década de 1980, período no qual a disciplina
passava pelo seu terceiro grande debate. Conforme citado anteriormente,
o debate no campo foi caracterizado pelo movimento de críticas positivistas
vs pós-positivistas à forma de construção do conhecimento histórico e
acadêmico e às teorias tradicionais, o terceiro grande debate abriu espaço
para que as/os pensadoras/es feministas desenvolvessem novas roupagens
para o campo, mais interdisciplinares e inclusivas.
Andrea Nye (1995) ressalta que, para a militância feminista, haveria
um dilema a ser enfrentado no seu encontro com o feminismo acadêmico:
aquele referente à pluralidade de perspectivas, como o feminismo marxista, o
radical, o lésbico e o francês (vinculado à psicanálise e ao desconstrucionismo),
como também, hoje, acrescenta-se o feminismo pós-estruturalista e o pósmoderno. Tal dilema coloca frente a frente diversos pontos como a revolução
socialista, a luta por direitos sexuais, a revolução sexual e os escritos de
mulheres (écriture feminine). São diversas opiniões que buscam superar um
O CAMPO TEÓRICO DO CONHECIMENTO POLÍTICO E AS CONTRIBUIÇÕES CRÍTICAS FEMINISTAS: PARTE II
92
Capítulo 7
passado (e presente) sexista, mas cada uma das perspectivas em questão
produziu teorias distintas, que por sua vez, particularmente, têm uma
história “[...] na qual seu significado foi elaborado por uma prática feminista
e não-feminista.” (NYE, 1995, p. 14). Com isto, Nye concluiu que, devido às
adversidades dentro da ciência e da teoria, onde há a subvalorizarão das
mulheres e de suas expressões e valores, não há sequer a possibilidade de
se pensar em uma teoria feminista “pura”.
Karen Bombón Pozo (2021), ao discorrer sobre as perspectivas
feministas aplicadas no contexto da política exterior, elucida como estas
perspectivas se ramificaram dentro da reforma do debate fundamentadas
nas críticas positivistas e pós-positivistas. Através de um enfoque ortodoxo,
tem-se a crítica feminista positivista realista que, a partir do entendimento
de Carver (2003) do positivismo como um método de estudo “neutro”, sem
influência de valores e capaz de, a partir da perspectiva realista e feminista,
incluir o debate de gênero dentro do campo teórico político de maneira
intrínseca. Assim, busca-se obter uma compreensão de mundo muito mais
fidedigna a realidade a partir da conscientização dos grupos mainstream, ou
hegemônicos, sobre a relevante influência do tema em análises de objetos de
poder, ou como já citado, se entenderia como malestream (O`BRIEN, 1981).
Já o feminismo positivista liberal, argumenta em torno do debate da
opressão estatal sobre os direitos das mulheres e a inclusão/exclusão dessas
nos debates epistemológicos, como apresentado na discussão proposta
por Sandra Whitworth (1997), que argumenta que as mulheres foram
historicamente excluídas de esferas públicas importantes, como a da vida
política e econômica (WHITWORTH, 1997, p.12). Sendo assim, tem-se como
pauta não apenas a sub-representatividade das mulheres dentro das esferas
pública e política e das instituições que as representam, como também traz
à tona a forma como a participação delas e suas contribuições podem ser
observadas dentro destes espaços - direta e indiretamente. Todavia, ainda
que barreiras sociais e sistêmicas à participação efetiva das mulheres no
debate sejam factuais, não basta apenas rompê-las para promover uma
real igualdade política de gênero dentro da academia e das instituições,
como pressupõe o feminismo liberal. Por isso, ainda que o feminismo liberal
seja uma crítica, ele está diretamente relacionado à corrente hegemônica
na ciência política e nas relações internacionais e ainda é muito limitado
(RAVECCCA, 2019).
Por sua vez, considerando a partir de então o enfoque heterodoxo,
Karen Bombón Pozo (2021), discorre sobre a potência emancipatória da
inclusão do debate de gênero no campo político via crítica feminista póspositivista, que emergiu durante a década de 1980. Esta crítica serviu de
âncora teórica precedente ao desencadeamento de múltiplas abordagens e
vertentes feministas singulares em seu campo de estudo, conforme apresenta
o Quadro 2.
O CAMPO TEÓRICO DO CONHECIMENTO POLÍTICO E AS CONTRIBUIÇÕES CRÍTICAS FEMINISTAS: PARTE II
93
Capítulo 7
Quadro 2: Vertentes feministas pós-positivistas segundo Bombón Pozo
(2021)
Abordagem
Definição
Vertentes
Feminismo
marxista
Feminismo
de ponto de
vista
Debate o enfoque
de gênero como
o lugar ocupado
pelas mulheres
em espaços
considerados
próprios da
disciplinas de
CP e RIs e
sua histórica
marginalização
neles.
Feminismo
construtivista
Feminismo
radical
Feminismo
global
Feminismo
crítico
Debate as
desigualdades
entre homens e
mulheres a partir
Feminismo
da análise das
socialista
desigualdades
materiais no
sistema capitalista.
Descrição
Aborda a desigualdade de classe
e a opressão dos proletários como
precedente à desigualdade de
gênero, sendo o capitalismo e não o
patriarcado como o sistema opressor.
Considera a masculinidade
hegemônica como ferramenta
de modelação das estruturas de
poder e, consequentemente, do
comportamento do Estado, sendo o
conceito tratado como um discurso
definidor (e excludente) das
diferenças entre homens e mulheres.
O feminismo radical analisa a
opressão da mulher a partir do
patriarcado sendo considerado
como um meio pelo qual o mundo
é construído a partir da visão
masculina e, dessa forma a
masculinidade significaria um conjunto
de significados elaborados para a
manutenção dos homens no poder.
Aborda a globalização e seus
impactos em diferentes âmbitos
sociais como possível mecanismo de
libertação e autonomia feminina, a
fim de promover uma emancipação
socioeconômica das mulheres.
Entende que a emancipação feminina
se dará apenas quando houver
o fim das opressões contra as
mulheres provenientes de estruturas
econômicas e sociais.
O CAMPO TEÓRICO DO CONHECIMENTO POLÍTICO E AS CONTRIBUIÇÕES CRÍTICAS FEMINISTAS: PARTE II
94
Feminismo
materialista
Feminismo
crítico
Debate as
desigualdades
entre homens e
mulheres a partir
da análise das
desigualdades
materiais no
sistema capitalista. Feminismo
neomarxista
Feminismo
negro
Analisa as
relações de poder
Feminismo
pós-moderno político através da
noção de gênero.
Feminismo
pós-colonial e
decolonial
Capítulo 7
Aborda o capitalismo e o patriarcado
como as estruturas de poder
responsáveis por oprimir as
mulheres, uma vez que as condições
materiais feministas são fonte de
pressão feminina em sociedade
hierarquicamente dominadas por
homens.
Entende a mulher como um agente
que sofre opressão sociocultural
responsável por propagar
estruturas de desigualdade
social e discriminação, sendo a
masculinidade e o capitalismo os
principais componentes do sistema de
opressões aos quais se deva lutar e
transformar.
Entende raça, sexo e classe
como fatures determinantes nas
desigualdades sociais, trazendo para
o debate a importância da distinção
de raça nas análises e construções
teóricas a fim de mitigar as limitações
apenas à experiência e demandas
feministas de um grupo de mulheres
brancas. Uma importante contribuição
desta corrente é a introdução e
problematização do conceito de
interseccionalidade.
Entende que a criação de conceitos é
uma construção social utilizada como
ferramenta para justificar a dominação
de um grupo sobre outro, legitimando
opressões e desigualdades com
base em diferenças de gênero, raça,
classe, etnia, etc. Se aproxima e dá
voz aos debates dos feminismos
comunitários e indígenas do Sul
global.
O CAMPO TEÓRICO DO CONHECIMENTO POLÍTICO E AS CONTRIBUIÇÕES CRÍTICAS FEMINISTAS: PARTE II
95
Analisa as
Feminismo
relações de poder
pós-moderno político através da
noção de gênero.
Feminismo
pósestruturalista
Capítulo 7
Feminismo
transnacional
Analisa movimentos ativistas
em todo o mundo como estes
movimentos, quando promovidos por
e para mulheres, têm um impacto
significativo de cooperação, luta e
emancipação.
Entende que o poder é exercido por
meio do discurso e do conhecimento,
e questiona pressupostos ortodoxos
da disciplina de RIs assim como as
disparidades entre o discurso e a
prática exercida pelos Estados.
Fonte: Elaboração própria a partir de Bombón Pozo (2021).
A partir da breve descrição sobre os moldes da contribuição teórica
feminista durante o mais recente período de reestruturação do debate
político acadêmico no campo da ciência política, que ainda ecoa seus
desdobramentos três décadas após sua consolidação, verifica-se como
a inclusão das mulheres e da perspectiva de gênero sobre “a” política,
“o” político e, consequentemente, o poder, promove uma movimentação
pragmática e essencial da academia e da militância política. Todavia, ainda
que a contribuição crítica feminista ao campo do conhecimento teórico político
seja de extrema importância para maior interdisciplinaridade e inclusão
heterogênea e integra dos agentes influenciadores e influenciados nas
agendas e na construção teórica, é importante ponderar qual o perfil das/dos
pensadoras/es feministas responsáveis por essa onda disruptiva. Ademais,
“o sucesso relativo do movimento na transformação da cultura contrasta
nitidamente com seu relativo fracasso na transformação das instituições.”
(FRASER, 2020, p.26), explicitando como a característica metamórfica dos
paradigmas políticos, ainda que exploradas, encontram-se intrinsecamente
condicionadas à manutenção das hierarquias tradicionais de poder.
Toda a proposta de reestruturação epistemológica que padece sobre
a crítica feminista ao campo teórico política também deve constantemente
ser revisitada, para que conjuntos de regras não sejam re-engessados em
formatos de controle do pensamento embasados na proposta teórica de
redefinição das relações entre saber e poder. (HARDING, 2019, p. 106).
Esse entendimento mostra-se como crucial para a subsistência da análise da
crítica feminista, uma vez que determina se há ou não uma maior e completa
representatividade das minorias marginalizadas no pensar e fazer político em
suas mais diversas esferas, ou se a contribuições das quebras de paradigmas
do terceiro grande debate são vinculadas especificamente à atribuição de
uma nova ótica de análise que, ainda que vanguardeira, permanece não
O CAMPO TEÓRICO DO CONHECIMENTO POLÍTICO E AS CONTRIBUIÇÕES CRÍTICAS FEMINISTAS: PARTE II
96
Capítulo 7
representativa.
3. CONSIDERAÇÕES FINAIS: COMPREENSÕES DE UMA “TEORIA
POLÍTICA FEMINISTA”
A contribuição crítica do feminismo ao campo da ciência política e
das relações internacionais, sobretudo a vertente teórica, pode algumas estar
relacionado à autointitulada “teoria política feminista”. Este foi um campo de
autocitações centrado na produção quase exclusiva da academia anglosaxã, branca, que indiretamente Susan Okin (1992) acabou expondo, já que
este seria um campo disciplinar dentro da teoria política que necessitou em
certo momento da mobilização de um restrito grupo inicial de autoras que
se reuniam periodicamente e fizeram o campo crescer. Ainda que tivesse
uma variedade de posicionamentos críticos, destaca-se a predominância
de uma adesão às perspectivas liberais, principalmente se tomarmos como
consideração a própria Susan Okin (2001).
A partir disso perceberam-se a endogenia e a prática recorrente de
autocitações internas a esse campo. Ainda que esta fosse uma estratégia de
consolidação disciplinar dentro da teoria e da filosofia políticas, o centramento
da produção do conhecimento e do saber feministas em um lócus específico
aboliria a importância, relevância e, principalmente, a utilidade de uma
“teoria política feminista”. Esta acabaria se tornando, mais uma vez, uma
hegemonia dentro do campo disciplinar, fazendo-se, de novo, o uso ardiloso
das ferramentas do opressor e dominador, ou seja, do male-stream da teoria
política.
Hoje, então, pelo trabalho desenvolvido neste trabalho, discutido em
Cypriano (2019) e aqui reproduzido, depois da exposição de uma miríade de
elementos que informam sobre esse campo do conhecimento, faria sentido
entender e definir a teoria política feminista como uma estratégia discursiva
e de produção de conhecimento, que informa e é informada pela práxis do
ativismo político e das múltiplas e diferentes experiências e relações entre
as/os atrizes/atores dentro desse campo, que busca, ainda que na sua
acomodação disciplinar dos campos que faz parte, a saber, a filosofia e a
teoria política, o reconhecimento definitivo destas áreas por poder informar
outra visão e entendimento sobre “a” política. Esse esforço deve ser ampliado,
inclusivo e informado, já que esse tipo específico de saber é consequência
de articulações locais e globais, envolvendo permanentes disputas de poder,
como também abrangendo uma multiplicidade política de atrizes/atores em
esferas variadas.
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Capítulo 7
Palgrave Macmillan, 1997.
THE THEORETICAL FIELD OF POLITICAL KNOWLEDGE AND CRITICAL
FEMINIST CONTRIBUTIONS
ABSTRACT - Given the problematization of advances in the field of political science
and international relations, this chapter presents the contributions of feminist critical
perspectives in the face of theoretical discussions on political knowledge. As the
chapter is intended to be an introduction to students and professionals in the field, we
quickly approach the notion of the field of political knowledge, the main dimensions in
the theoretical field that feminism seeks to be critical, especially the epistemological
dimension, the conceptual distinction between “the political” and “politics” and, also, a
critique of so many feminisms to the hegemonic liberal perspective within this field. The
study was divided into two parts, the introductory aspects, the discussion on the field
of political knowledge and some aspects of feminist critical contributions are treated
in the first part. In the last part, the currents and perspectives related to the various
feminisms, the dimensions of political science, international relations and political
theory and the final considerations are addressed, emphasizing what we understand
as “feminist political theory”.
KEYWORDS: Political Theory; Feminism; Political Science.
O CAMPO TEÓRICO DO CONHECIMENTO POLÍTICO E AS CONTRIBUIÇÕES CRÍTICAS FEMINISTAS: PARTE II
100
CAPÍTULO 8
AS INTERSEÇÕES DAS DIMENSÕES
DE GÊNERO, NEOLIBERALISMO E
CONSERVADORISMO NAS RELAÇÕES
INTERNACIONAIS
Lorena Ávila Soares Fonseca
lattes.cnpq.br/6627245741315256
Universidade Federal de Minas
Gerais, Belo Horizonte, Minas
Gerais
Breno Henrique Ferreira Cypriano
lattes.cnpq.br/8398867970980446
Universidade Federal de Minas
Gerais, Belo Horizonte, Minas
Gerais
RESUMO - Este capítulo se propõe a
problematizar os debates de gênero
no campo das relações internacionais
(RIs) e ciência política (CP), a partir
da perspectiva pós-estruturalista
como um instrumental teórico e
conceitual propício para análises
feministas e críticas. O estudo
apresenta uma breve contribuição
da problematização do paradigma
neoliberal e como este se reflete e se
comporta no atual cenário político e
socioeconômico de casos referentes
ao neoconservadorismo político e
religioso. Para tal objetivo, apresentase uma combinação de conceitos
e teorias que se torna um potencial
instrumento analítico que é capaz
de articular os âmbitos de gênero,
religião e raça em um contexto
neoliberal. Como concluímos, este
enquadramento
teórico-analítico
consegue se adequar a todos os
estudos de casos de ascensão do
ultraconservadorismo no mundo,
adequando-se às especificidades de
cada sociedade.
PALAVRAS-CHAVE: Relações Internacionais; Gênero; Conservadorismo.
1. INTRODUÇÃO
A ascensão dos movimentos
da extrema direita no século
XXI ocorreu concomitantemente
à
retomada
de
discursos
conservadores,
tradicionais,
religiosos,
heteronormativos
e
elitistas, ancorados na deterioração e
deturpação das agendas de gênero.
Isso se deu em um cenário de início
de questionamentos do paradigma
neoliberal vigente e dos benefícios
advindos da globalização no mundo
pós-Guerra Fria, no qual o discurso
populista
nacionalista
ganhou
espaço.
Esse
conservadorismo,
delimitado por temáticas de gênero,
neoliberalismo econômico, religião
e raça, tem ganhado espaço
globalmente e se refletido em
diversas transformações político-
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Capítulo 8
partidárias nas economias ocidentais. Assim, partindo do pressuposto de que
a direita política e econômica se sentiria ameaçada com a expansão e ganho
de influência das agendas de gênero, em um cenário globalizado e neoliberal,
a principal questão que este trabalho se propõe é discutir conceitos e teorias
que apresentariam um enquadramento analítico para a compreensão de como
as agendas desses movimentos conservadores, que sustentam o discurso
da extrema direita, agiriam para criar narrativas de distorção, opressão e
produção de conteúdo de ódio frente às agendas de gênero.
O estudo e análise da problemática proposta se dividem, então,
em duas seções e uma conclusão: na primeira seção apresenta-se uma
discussão teórica acerca da entrada da agenda feminista nas RIs e seu
desencadeamento nos debates de gênero, sobretudo sobre a contribuição
pós-estruturalista; a segunda seção promove uma contextualização
socioeconômica e política referentes aos avanços graduais das agendas
conservadoras nas últimas quatro décadas no mundo, destrinchadas em
quatro âmbitos de análise: neoliberalismo, gênero, religião e raça. Como
poderá ser percebida, toda a análise teórica aqui presente pode dialogar
com casos de ascensão do ultraconservadorismo no mundo, adequando-se
às especificidades de cada sociedade. Assim, este trabalho possibilita que,
mais adiante, novas análises possam ser realizadas e comparadas em suas
múltiplas abordagens, a exemplo da ascensão ultraconservadora no Brasil
e sua ligação com o que chamamos hoje de “bolsonarismo”, nos Estados
Unidos o fenômeno do “trumpismo”, o populismo de direita e religioso na
Hungria e a atuação anti-gênero orquestrada pelo ataques aos direitos sexuais
e reprodutivos na União Europeia, ou como o caso polonês com a atuação
do partido de extrema direita Lei e Justiça (PiS, na sigla em polonês) do atual
presidente Andrzej Duda e da Igreja Católica no mesmo tipo de empreitada
(VIDA, 2019; BIROLI; VAGGIONI; MACAHDO, 2020; FONSECA, 2021).
2. O PÓS-ESTRUTURALISMO COM VIÉS FEMINISTA NAS RELAÇÕES
INTERNACIONAIS
Neste trabalho, embasaremos a análise na abordagem feminista
pós-positivista e sua vertente pós-moderna, uma vez que corrobora e ilustra
a hipótese da construção de um discurso anti-gênero em prol da sustentação
e legitimação de movimentos conservadores, possibilitando, assim, a
compreensão da relação entre as agendas de gênero e o discurso político de
poder da extrema direita. Desse modo, tem-se Patrícia Leavy (2007), que vê
o pós-modernismo não apenas como uma abordagem teórica, mas também
como uma posição epistemológica. Ela analisa a proposta pós-moderna de
entender a natureza da construção do conhecimento, e das consequentes
relações de poder advindas dele, por meio da construção social envolvida
na análise dos discursos, assim como pelo método de desconstrução do
discurso/palavras a partir do deslocamento de suposições das noções de
semelhança e diferença presentes em sua construção de significado.
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Capítulo 8
Para tal, Leavy (2007) traz para a discussão Michel Foucault (2006,
2008) e sua influência nos estudos feministas a partir da premissa de que
“[...] todo o conhecimento é contextualmente limitado e produzido dentro de
um campo se houver mudanças nas relações de poder.” (LEAVY, 2007, p. 89,
tradução nossa). Afunila-se, a partir daí, para o feminismo pós-estruturalista
da vertente pós-moderna, uma vez que este utiliza da desconstrução como
ferramenta de análise, a qual nos será útil para investigação da construção
do discurso dos movimentos populistas nacionalistas embasados na narrativa
anti-gênero e sua utilização como ferramenta de poder. Sendo assim, o pósmodernismo, afunilado no pós-estruturalismo feminista, contribuirá para
análise uma vez que estuda como “[...] os campos discursivos de gênero em
que as pessoas operam e como formas patriarcais e centradas no homem
de olhar para o mundo são comunicadas via discurso, incluindo linguagem,
símbolos, ideologia, e assim por diante” (LEAVY, 2007, p. 91, tradução nossa).
Assim, ao se envolver a dimensão política nos debates da disciplina,
questionando as relações de poder e os fundamentos ontológicos e
epistemológicos das RIs, tem-se as análises de Ann Tickner (1992) e Izadora
Monte (2013) que debatem a prática do poder embasada no discurso e na
detenção do conhecimento, questionando a discursiva do Estado e das
correntes acadêmicas tradicionais, o que condiz com a futura análise proposta
por esse trabalho da construção do discurso conservador disseminado pelos
grupos populistas nacionalistas1 de extrema direita. Nesse sentido, o pósestruturalismo feminista analisa o poder político da linguagem na academia,
nos discursos políticos e na prática, reinterpretando e desconstruindo
conhecimentos, conceitos convencionais, metáforas ou discursos de política
externa baseados na análise da linguagem (BOMBÓN POZO, 2021).
Segundo Monte (2013), ao atribuir gênero como “categoria de análise
às identidades estatais”, o pós-estruturalismo feminista “[...] concebe a
linguagem como uma força de construção e reconstrução de ordens simbólicas
falocêntricas” (MONTE, 2013). Dessa forma, torna-se viável a consideração
de distribuição heterogênea de recursos de poder entre os indivíduos a
partir de suas caracterizações de raça, classe, sexualidade, cultura, grupos
religiosos, entre outros (BOMBÓN POZO, 2021). Tickner (1992), por sua
vez, argumenta que esse poder também tem sua formação influenciada
pelo contexto temporal, social e regional e que os analistas internacionais
que optam pela abordagem feminista pós-estruturalista tentam, por si só,
desmembrar esse poder assumindo a o lugar de fala de
A nomenclatura do termo populismo, aplicado nas análises do cenário internacional desde a
década de 1980, possui variações de acordo com a abordagem adotada por cada autor(a). Nesse
sentido, tem-se a adoção de termos como populismo reacionário (FRASER, 2020); populismo
nacionalista (BROWN, 2019); populismo iliberal (GRAFF; KAPUR; WALTERS, 2019). Nessa
pesquisa, decidiu-se por adotar o termo populismo nacionalista, a partir da discussão feita por
Wendy Brown, uma vez que esse engloba as questões da construção do discurso conservador,
autoritário e excludente dentro dos países.
1
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Capítulo 8
“[...] impotentes indivíduos à margem do sistema
internacional. [Assim,] além de questionar a capacidade
do Estado ou capitalismo global para resolver
problemas contemporâneos, eles colocam questões
mais fundamentais sobre a construção do Estado como
espaço político e fonte de identidade.” (TICKNER, 1992,
p. 11, tradução nossa).
Todavia, a título de fomentar a discussão, nesse momento é importante
ter em mente que, ainda que a contribuição do feminismo pós-estruturalista
nas RIs seja de extrema importância para maior interdisciplinaridade e
inclusão dos agentes influenciadores e influenciados nas agendas e teorias
da disciplina, é preciso levar em consideração qual o perfil do público de
acadêmicos responsável por esse processo disruptivo. Esse entendimento
mostra-se como crucial para a análise uma vez que determina se há ou não
maior representatividade das minorias marginalizadas no cenário político
internacional (e doméstico) e nos debates acadêmicos envolvidos por esses,
ou se a contribuições das quebras de paradigmas do terceiro grande debate
são vinculadas especificamente à atribuição de uma nova ótica de análise
que, ainda que progressista, permanece não representativa.
3. O CONTEXTO SOCIOPOLÍTICO E ECONÔMICO DESDE A DÉCADA
DE 1980 ATÉ OS DIAS ATUAIS: O NEOLIBERALISMO E SUAS
RAMIFICAÇÕES
Dada a delimitação teórica a ser englobada neste trabalho à luz
da teoria pós-estruturalista feminista e partindo da premissa da influência
direta da construção do conhecimento e do discurso nas práticas de poder
(especialmente no poder político), prevê-se a relevância da contextualização
da teoria no cenário sociopolítico e econômico no qual as agendas de gênero
tem se difundido desde os anos 1980. A década de 1980 é um marco temporal
desta análise uma vez que, além de situar a discussão teórica do terceiro
grande debate das RIs, também delimita o início da vigência do paradigma
neoliberal nas economias ocidentais.
Ademais, para melhor entendimento e análise do cenário doméstico
social que acolheu e aderiu ao discurso anti-gênero conservador dos grupos
populistas nacionalistas, entende-se também a importância da discussão
feita por Giddens, Beck e Scott (1994) a respeito do tradicionalismo e
destradicionalização. Para os autores, a tradição, e consequentemente
o tradicionalismo, estão intimamente ligados ao poder e ao conceito de
autoridade, sendo essa relacionada à detenção do conhecimento assim como
a capacidade de formular normas de vinculação (GIDDENS; BECK; SCOTT,
1994). Logo, as transformações paradigmáticas que vêm se alocando nas
sociedades ocidentais ao longo das últimas décadas têm impacto direto nos
processos de tradicionalismo e destradicionalização e, consequentemente,
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104
Capítulo 8
nas estruturas de poder e seus mecanismos de manifestação e influência.
Nesse sentido, primeiramente, mostra-se crucial para a análise
o entendimento do paradigma vigente no ocidente desde a década de
1980: o neoliberalismo. A ascensão e decadência da hegemonia neoliberal
será abordada por meio da visão de Nancy Fraser (2020) e Wendy Brown
(2019), contribuindo para a contextualização do cenário no qual movimentos
conservadores têm ganhado espaço. Assim, Fraser (2020) parte do
pressuposto que o paradigma neoliberal se constitui de um neoliberalismo
progressista, no qual a igualdade é materializada como meritocracia e o
liberalismo econômico reina perante sociedades extremamente desiguais
e submissas ao mercado. Para Fraser, “o neoliberalismo progressista foi
capaz de articular uma política econômica regressiva, pró-negócios, com
uma política progressista de reconhecimento, valorizando a diversidade
e a representatividade, mas ressignificando igualdade como sinônimo de
meritocracia” (FRASER, 2020), fazendo com que o mercado e a moral se
tornassem a essência do desenvolvimento da nação e da liberdade, movidos
pela tradição e não pela política, e contendo o progressismo proposto por
meio destes.
Desse modo, a forma como a liberdade foi moldada no discurso
neoliberal, atrelada diretamente à meritocracia e à tradição, fez com que
essa “moralidade tradicional” ancorasse um patriotismo nacionalista. Esse
cenário foi amplamente favorável para a propagação do discurso de grupos
de extrema direita, que utilizam do axioma da liberdade para justificar suas
violações e seus extremismos e perpetuar tradições fundamentadas em
desigualdades socioeconômicas e mitigação de direitos às minorias. No
entanto, com a eclosão da crise de 2008, momento no qual se iniciam os
questionamentos sobre a serventia e eficácia do paradigma neoliberal e da
globalização que o acompanhou, o neoliberalismo progressista perde força
como paradigma vigente, mas deixa como legado um discurso opressor e
perpetuador de desigualdades mascarado de liberdade em meio a uma forte
crise.
Fraser (2020) argumenta, então, que a crise atual é uma crise
geral. Não só o neoliberalismo progressista se tem mostrado falho perante
às sociedades, como também tem gerado concomitantemente uma crise
ecológica, econômica e social às quais, juntas, formam tal crise geral
responsável por despertar nas sociedades um senso de necessidade de
mudança radical e imediatista. Essa crise geral seria ancorada, por sua vez,
no desmoronamento da hegemonia neoliberal progressista, que consiste em
um projeto socioeconômico de diversificação da hierarquia social através da
meritocracia concomitantemente com a manutenção dos ideais econômicos
neoliberais conservadores nos setores mais dinâmicos da economia.
Todavia, Fraser (2020) não questiona a manutenção das políticas
neoliberais e sim da hegemonia neoliberal, a qual desde a década de 1980
tem sido responsável pela “autoridade política, moral, cultural e intelectual
AS INTERSEÇÕES DAS DIMENSÕES DE GÊNERO, NEOLIBERALISMO E CONSERVADORISMO NAS RELAÇÕES
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105
Capítulo 8
de uma determinada visão de mundo - e com a capacidade dessa visão
de mundo de se incorporar em uma aliança durável e poderosa de forças
sociais e classes sociais” (FRASER, 2020, p. 76). Tendo como marco a crise
econômica de 2008, a perspectiva neoliberal progressista e a globalização
passaram a ser fortemente criticadas, deixando um espaço vazio entre a
insatisfação do que se tem hoje e a imprevisibilidade das possibilidades do
futuro, contexto que dá nome ao seu livro a partir de uma citação de Antonio
Gramsci: “o velho está morrendo e o novo não pode nascer”.
Wendy Brown (2019), por sua vez, sendo uma das principais
referências no atual debate sobre o paradigma neoliberal e seus impactos,
também argumenta em prol de sua decadência. Sua perspectiva será
importante para entendimento do contexto uma vez que, apontando o
neoliberalismo como o precursor do autoritarismo, Brown (2019) expõe
como a deterioração da democracia, liberdade e igualdade moldaram
uma sociedade regida por desconfianças e insatisfações. Segundo ela, “o
sonho neoliberal era uma ordem global de fluxo e acumulação de capital
livres, nações organizadas pela moralidade tradicional e pelo mercado e
de Estados orientados quase exclusivamente para esse projeto” (BROWN,
2019). Dessa maneira, o neoliberalismo criou uma forma genuína de ataque
ao político em prol do exímio de interferência externas no mercado, ataque
este que se estendeu para os demais âmbitos sociais, até chegar à “forma
democrática do político”, tendo como importante aliado a religião e a tradição
a ela pertencente. Assim, conseguiu se difundir tão veementemente a partir
dos anos 1980 pois estava inserido em um cenário de recessão econômica
global e crises sociais, com uma promessa de transformação de realidade
que beneficiaria a todas as camadas sociais, criando um.
“[...] entusiasmo pelo mercado [...] tipicamente animado
por sua promessa de inovação, liberdade, novidade e
riqueza, [e] uma política centrada na família, religião e
patriotismo [...] autorizada pela tradição, autoridade e
moderação. Aquele inova e perturba, esta assegura e
sustenta.” (BROWN, 2019, p. 110).
No que diz respeito, então, à ascensão política de partidos de extrema
direita no mundo e sua relação com o neoliberalismo, Brown (2019) tem seu
argumento enquadrado na análise dos resultados da vigência do paradigma
neoliberal nas últimas décadas. Essa influência se deu a partir do ataque à
vida política, da ressignificação de liberdade como algo sem controle e com
repulsa à justiça social - justificada pela retomada do tradicionalismo - assim
como pelo resgate e distorção da ideia de moralidade usada como mecanismo
de freio das lutas por igualdade. Da mesma forma, coloca-se em pauta o
questionamento a respeito dos movimentos de reação à essa ascensão da
extrema direita, questionando não só a proatividade com que se dão, como
AS INTERSEÇÕES DAS DIMENSÕES DE GÊNERO, NEOLIBERALISMO E CONSERVADORISMO NAS RELAÇÕES
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106
Capítulo 8
também sua eficiência, uma vez que “enquanto a esquerda luta para articular
os vários poderes que geram sujeitos sociais construídos e posicionados de
modos diferentes, a direita esmaga essa luta com um discurso que reduz a
liberdade a censura e coerção” (BROWN, 2019).
Assim, nota-se como o paradigma neoliberal criou um cenário de
aplicação efetiva utópica nas sociedades capitalistas, não se sustentando
por muito tempo, e tendo o início do seu fim marcado pela crise de 2008 - fim
esse marcado pela apropriação do discurso liberal por grupos extremistas
e de ódio. O panorama sociopolítico hoje é caracterizado primordialmente
pela polarização partidária, criando indignação, moralização, sátira e
esperanças vãs de que facções internas ou escândalos da direita produzirão
sua autodestruição, cenário este que infelizmente tem prevalecido sobre
estratégias sérias para desafiar essas forças por meio de alternativas
convincentes. Nós temos dificuldade até mesmo com a nomenclatura
do paradigma que tem aos poucos se instaurado em detrimento do
neoliberalismo: trata-se de autoritarismo, fascismo, populismo, democracia
não liberal, liberalismo antidemocrático, plutocracia de extrema direita? Ou
alguma outra coisa? (BROWN, 2019).
Esse cenário neoliberal desencadeou a (re)ascensão de agendas
também em outros âmbitos da sociedade. A religião, especialmente as
cristãs, nas quais a tradição se mostra intrínseca à essência da prática
religiosa, voltaram a ganhar um espaço político que havia por um tempo se
diluído dentro do Estado laico. Sendo assim, a disseminação do discurso
tradicional, ultraconservador, patriarcal e heteronormativo voltou a exercer
uma influência significativa não apenas sobre a vida das pessoas, como
também no direcionamento das instituições dos países nos quais a extrema
direita tem se fortalecido.
Dessa forma, a partir da análise de Neil Datta (2018) sobre a “lei
natural” como uma estratégia dos movimentos extremistas religiosos europeus
em combater os direitos humanos e direitos reprodutivos, Agnieszka Graff,
Ratna Kapur e Suzanna Danuta Walters (2019) argumentam que:
“[...] embora nem todos os da direita sejam religiosos,
certamente é verdade que a direita religiosa se globalizou
com um ímpeto impressionante, amadurecendo em
termos de estratégias, objetivos e financiamento. [...]
As ideias, objetivos e ambições da rede são os de
extremistas religiosos, mas a linguagem explicitamente
religiosa é estrategicamente substituída pela conversa
sobre direitos e o discurso aparentemente neutro da lei
natural.” (GRAFF; KAPUR; WALTERS, 2019, p. 543,
tradução nossa).
A partir da contribuição destas autoras, trazendo a discussão para o
AS INTERSEÇÕES DAS DIMENSÕES DE GÊNERO, NEOLIBERALISMO E CONSERVADORISMO NAS RELAÇÕES
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107
Capítulo 8
exemplo do caso polonês, a ascensão da extrema direita política se deu em
um cenário no qual os discursos nacionalista e católico se fundiram e foram
difundidos com base em uma suposta sexualização infantil e demonização
das agendas de gênero, tornando-se recorrentemente presente nas Igrejas,
na mídia, no governo e, consequentemente, na população. Diante disto,
criou-se um pânico moral, “contribuindo para a polarização política e uma
atmosfera generalizada de ansiedade e suspeita que, posteriormente, fez
com que o autoritarismo parecesse desejável.” (GRAFF; KAPUR; WALTERS,
2019, p. 551, tradução nossa).
Ademais, esse discurso também corrobora com movimentos racistas,
uma vez que o tradicionalismo se une ao nacionalismo dentro do discurso
político religioso. Assim, Graff, Kapur e Walter (2019) trazem para a discussão
o impacto do racismo e da xenofobia nos discursos conservadores, embasada
na proteção da nação e fomento a um nacionalismo xenofóbico e extremista,
a exemplo da extrema direita na Polônia que embate fortemente as agendas
progressistas dentro do país, especialmente as de gênero.
“Em 2014-15, as campanhas contra o gênero foram
parcialmente substituídas e parcialmente fundidas com
o pânico sobre a crise de refugiados na Europa. Foi a
habilidade de combinar os dois temas que abriu caminho
para que o Partido da Lei e da Justiça obtivesse a vitória
eleitoral em 2015. [...] uma vez que os refugiados foram
reinventados como bárbaros perigosos, o racismo
se tornou aceitável. Gênero junto com refugiados
(agora referidos como invasores e terroristas) foram
demonizados como inimigos da nação, uma conspiração
internacional que ameaça a cultura polonesa e a
segurança das famílias polonesas. Pânico moral em
torno do gênero combinado perfeitamente com a retórica
dos inimigos nas portas.” (GRAFF; KAPUR; WALTERS,
2019, p. 551, tradução nossa).
Assim, a análise dos movimentos conservadores mostra sua
importância uma vez que sua ascensão se dá em detrimento de direitos e
conquistas das agendas feministas, a fim de retomar políticas e impor um
estilo de vida patriarcal, tradicional, religioso e discriminatório às sociedades
neoliberais. Por meio da vertente neoliberal, que se ramifica nas esferas
religiosas, de gênero e racial, o estudo de caso da Polônia, então, mostra-se
como uma âncora para um debate que ultrapassa fronteiras. Sendo um dos
países no qual o conservadorismo e o discurso populista reacionário, como
classifica Nancy Fraser (2020), tem atualmente maior influência, as restrições
de direitos e cada vez maior fechamento do país ao externo mostra-se como
uma ameaça aos direitos humanos conquistados até hoje, em especial aos
que abrangem minorias como é o caso das mulheres.
AS INTERSEÇÕES DAS DIMENSÕES DE GÊNERO, NEOLIBERALISMO E CONSERVADORISMO NAS RELAÇÕES
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Capítulo 8
Carlos Henning (2015) explica a união de diferentes âmbitos
discriminatórios em prol da sustentação de sistemas de opressão e
discriminação através do conceito de interseccionalidade, o qual podemos
aplicar nesta análise. Entende-se, então, que as análises sociais devem ser
feitas levando em consideração as diferenças existentes dentro da sociedade
em questão, atentando-se “[...] às diferenças que fazem diferença em termos
específicos, históricos, localizados e, obviamente, políticos.” (HENNING,
2015, p. 111, itálicos do autor). Desse modo, as características dos diferentes
grupos sociais presentes em uma sociedade, podendo se identificarem
por raça, gênero e religião (no caso deste estudo), são responsáveis por,
ao mesmo tempo gerarem diversidade e completude, também criarem
discriminações e opressões responsáveis por promover desigualdades e a
sustentação de grupos elitistas no poder da nação, como é o caso dos atuais
Estados liderados por conservadores, que em sua maioria representam
homens heterossexuais, brancos, religiosos e conservadores.
Assim, percebe-se como a construção do discurso a ser analisado
neste trabalho se dá pela ótica do vencedor, ou seja, a partir da visão de
mundo, interesses e objetivos daqueles que se encontram em posições de
poder e influência. Antonio Silva (2011), referenciando o trabalho de Walter
Benjamin, expõe essa ótica de narração como a apresentação da “[...] história
habitual [sendo], de fato, a ‘comemoração’ das façanhas dos vencedores, ela
é a ‘apologia’ que tende a ‘recobrir os momentos revolucionários do curso da
história’” (GAGNEBIN, 1999, p. 99 apud SILVA, 2011, p. 147). Nesse sentido,
a história é construída a partir dos fatos considerados relevantes pelas e
para as elites e, no presente, essa característica histórica de direcionamento
narrativo transparece nos discursos de poder na medida em que estes
disseminam e enfatizam as crenças e os objetivos destas mesmas elites.
Desse modo, o neoliberalismo ultraconservador e de extrema
direita que tem emergido nos últimos anos se manifesta como um projeto
sociopolítico pós-democrático, embasado na restrição de liberdades - a
partir de um discurso deturpador das agendas progressistas - em prol da
manutenção de desigualdades.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste trabalho buscamos brevemente analisar a ascensão neoliberal
e conservadora, em contraposição à agenda de gênero, principalmente a
partir da década de 1980 e, por meio do embasamento na teoria clássica
pós-estruturalista com viés feminista apresentamos um modo e uma forma
analítica para se entender como o contexto social, político e econômico do
período influenciou na ascensão de partidos ultraconservadores e de extrema
direita no mundo têm atuado no cenário político. Assim, foi possível identificar
a relação entre o contexto e o desencadeamento dos discursos anti-gênero,
xenofóbicos, conservadores e heteronormativos e como estes se traduzem
em sociedade ultraconservadoras.
AS INTERSEÇÕES DAS DIMENSÕES DE GÊNERO, NEOLIBERALISMO E CONSERVADORISMO NAS RELAÇÕES
INTERNACIONAIS
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Capítulo 8
Por fim, ressaltamos que os movimentos e debates que o paradigma
neoliberal trouxe consigo, uma vez que a ascensão econômica de minorias e
seu maior engajamento e influência política como consequência, desenharam
uma sociedade na qual determinadas conquistas não conseguem mais serem
dissolvidas. Desse modo, o conservadorismo tradicional se adaptou a este
novo contexto e hoje busca, através do discurso instrumentalizado mascarado
de busca por liberdade e proteção da família tradicional e potencializado
pelos veículos midiáticos, condicionar e deturpar tais agendas progressistas
na tentativa de deslegitimá-las.
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Capítulo 8
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THE INTERSECTIONS OF GENDER, NEOLIBERALISM AND CONSERVATIVE
DIMENSIONS IN INTERNATIONAL RELATIONS
ABSTRACT - This chapter proposes to problematize gender debates in the field
of international relations (IRs) and political science (PS), from a poststructuralist
perspective as a theoretical and conceptual instrument suitable for feminist and
critical analyses. The study presents a brief contribution to the problematization of
the neoliberal paradigm and how it reflects and behaves in the current political and
socioeconomic scenario of cases referring to political and religious neo-conservatism.
For this purpose, a combination of concepts and theories is presented that becomes
a potential analytical instrument capable of articulating the spheres of gender, religion
and race in a neoliberal context. As we concluded, this theoretical-analytical framework
manages to fit all case studies of the rise of ultraconservatism in the world, adapting to
the specificities of each society.
KEYWORDS: International Relations; Gender; Conservatism.
AS INTERSEÇÕES DAS DIMENSÕES DE GÊNERO, NEOLIBERALISMO E CONSERVADORISMO NAS RELAÇÕES
INTERNACIONAIS
111
Capítulo 9
CAPÍTULO 9
EVIDÊNCIAS SOBRE A POBREZA
NO BRASIL: UMA APLICAÇÃO
DA MODELAGEM DE EQUAÇÕES
ESTRUTURAIS: PARTE I
Leandro Nunes Soares da Silva
lattes.cnpq.br/3416990604622129
Universidade Estadual de Maringá
Marina Silva da Cunha
lattes.cnpq.br/0933287370110532
Universidade Estadual de Maringá
RESUMO - Este trabalho tem como
objetivo analisar a pobreza nas
famílias brasileiras e suas relações
causais com as características da
própria família, aspectos pessoais do
chefe da família e com a infraestrutura
do domicílio. Para tanto, a pobreza
é avaliada pela Modelagem de
Equações Estruturais (MEE), ainda
pouco utilizada em estudos sobre o
tema, que permite testar a validade
de modelos teóricos que definem as
relações causais entre as variáveis,
além de permitir o uso de variáveis
não observáveis. Para tanto, foram
utilizados os microdados da Pesquisa
Nacional por Amostra de Domicílios
nos anos de 2004 e 2012. Entre
os resultados, verificou-se que os
domicílios chefiados por homem, com
a presença de cônjuge, localizados
na área urbana, com saneamento
básico e conforto lar estão
associados com o maior rendimento
domiciliar per capita, fazendo com
que estejam, proporcionalmente, em
menor condição de pobreza, tanto
em 2004 quanto em 2012. Dessa
forma, a metodologia foi adequada
para analisar as relações causais
do fenômeno da pobreza brasileira.
Esta comunicação foi dividida em
duas partes, sendo apresentados
os
aspectos
introdutórios
e
metodológicos na primeira parte e
o desenvolvimento e conclusões na
segunda parte.
PALAVRAS-CHAVE: Pobreza; Determinantes da pobreza; Modelagem
de Equações Estruturais.
1. INTRODUÇÃO
Os temas sociais, como a
pobreza, passaram a ter grande
destaque nos anos 1990, sobretudo
após o Plano Real, já que até então
o principal foco da política econômica
era a questão inflacionária.
A respeito da incidência
da pobreza no Brasil, os dados
divulgados sobre o tema indicam
que a partir dos anos 1980 houve, de
modo geral, dois períodos de queda
acentuada na incidência de pobreza,
sendo o primeiro após o Plano Real
e o segundo que se iniciou em
meados dos anos 2000 e seguem
EVIDÊNCIAS SOBRE A POBREZA NO BRASIL: UMA APLICAÇÃO DA MODELAGEM DE EQUAÇÕES ESTRUTURAIS:
PARTE I
112
Capítulo 9
até o momento. O primeiro momento de queda é explicado pela redução
do processo inflacionário que afeta, claramente, as camadas mais pobres
da sociedade. Enquanto os resultados do segundo período se devem, entre
outros fatores, ao aumento do emprego formal, aumento da renda média
(sobretudo nos estratos mais baixos da sociedade), elevação do saláriomínimo real e queda na desigualdade da distribuição de renda verificada
na última década, isso sem contar com os fatores demográficos. Segundo
Rocha (2006), entre o final dos anos 1980 e 1994 a proporção de pobres se
situou em torno de 30%. No entanto, com a implementação do Plano Real,
houve nova queda na pobreza que passou para 20%, proporção essa que se
manteve até o início dos anos 2000.
Barros et al. (2000a) explica que o problema da pobreza no Brasil
não está na escassez de recursos e sim na desigualdade da distribuição de
renda que é o principal determinante da pobreza. A ideia básica é que o “o
Brasil não é um país pobre, mas um país com muitos pobres”, tendo em vista
que 64% dos países, em 1999, tinham renda per capita inferior à brasileira.
No entanto, comparando o Brasil com países com renda per capita próxima,
a incidência de pobreza no Brasil é três vezes superior ao encontrado nesses
países, indicando que a distribuição dos recursos é a causa dessa elevada
pobreza. Outrossim, os autores criticam a grande ênfase dada ao crescimento
econômico como política de redução da pobreza e defendem a adoção de
políticas distributivas.
Por sua vez, em meados dos anos 2000 diversos estudos indicam
que, independentemente da linha de pobreza utilizada, houve sinais
evidentes de queda na pobreza, decorrentes tanto do aumento da renda,
como da diminuição da desigualdade social, fato até então inédito no Brasil
(HOFFMANN 2006, BARROS 2007, ROCHA 2013). Essa queda na pobreza
é vista em IETS (2012), tendo em vista que em 1992 a porcentagem de
pobres no Brasil era 45,9%, em 2011 passou para 18%, sendo significativa
a queda de 2003 em diante em que o número de pobres passou de 67,3
milhões de pessoas em 2003 para 33,1 milhões em 2011, uma queda de
50,8% em termos absolutos. Segundo o IPEA (2012) essa queda na pobreza
é explicada por mudanças na desigualdade de renda e o pelo crescimento
econômico.
Tais resultados foram obtidos através da mensuração da pobreza
pela via mais tradicional, ou seja, da forma unidimensional, além de
considerar como linha de extrema pobreza o valor de R$70,00 familiar per
capita. Essa metodologia leva em consideração para classificar uma família
como pobre unicamente a sua renda per capita. Porém, segundo Hoffmann
(1998), a renda do indivíduo se constitui em uma medida imperfeita de seu
bem-estar. Nessa perspectiva, surge o critério multidimensional, seguindo as
contribuições de Amartya Sen, que procura quantificar as diversas carências,
além da insuficiência de renda para definir a linha de pobreza.
Sen (2000) fez uma crítica à visão até então predominante que
EVIDÊNCIAS SOBRE A POBREZA NO BRASIL: UMA APLICAÇÃO DA MODELAGEM DE EQUAÇÕES ESTRUTURAIS:
PARTE I
113
Capítulo 9
atrelava a questão do desenvolvimento unicamente ao crescimento da renda,
tendo em vista que o desenvolvimento deve ser centrado no ser humano o
que implica expansão da liberdade dos indivíduos. São cinco as liberdades
elencadas: liberdades políticas, dispositivos econômicos, oportunidades
sociais (como educação e saúde), garantias de transparência (direito
à clareza, liberdade de lidar com os outros) e previdência social (rede de
proteção social). Desse modo, há diversas situações que privam os indivíduos
de viverem bem, em função das privações da liberdade. O desenvolvimento,
dessa forma, consiste na expansão das liberdades que as pessoas desfrutam
que não dependem exclusivamente de disposições econômicas, mas também
de disposições sociais e políticas.
Logo, o objetivo desse trabalho é analisar a pobreza em seus
múltiplos determinantes, de modo que as privações sejam incorporadas, tais
como as concernentes às questões educacionais e demográficas, para os
anos de 2004 e 2012. Para tanto, além da análise unidimensional, é utilizada
a Modelagem de Equações Estruturais (MEE) que é considerada adequada
para tratar um tema complexo, com inúmeras nuances e correlações entre
as variáveis, sendo capaz inclusive de utilizar variáveis não diretamente
observáveis.
O tema se justifica como importante porque a taxa de pobreza no
Brasil voltou a aumentar em meados dos anos 2010 e o enfrentamento
desse problema histórico é essencial para o desenvolvimento do país. Desse
modo, a análise da evolução da pobreza é relevante para a avaliação de
políticas públicas de combate à pobreza. Nesse aspecto, a utilização do
instrumental de equações estruturais pode elucidar certas características
não contempladas pelo método tradicional, uma vez que a carência de
certos bens, não necessariamente a renda, como a falta de energia elétrica,
pode ser um fator impeditivo para ultrapassar a linha da pobreza. Por fim,
há uma carência de estudos que utilizam a MME para o país, com toda a
complexidade envolvida e suas múltiplas inter-relações.
Sendo assim, esse trabalho está divido em três seções além dessa
introdução. A primeira parte analisa a metodologia empregada e o modelo
empírico proposto, além das relações causais. A segunda parte contempla a
mensuração da pobreza, a estimação do modelo proposto e a interpretação
dos resultados, enquanto a última compreende as considerações finais.
2. METODOLOGIA
Além dos métodos “tradicionais” de mensuração da pobreza, se
discute a seguir a Modelagem de Equações Estruturais. Conforme Hair et
al. (2009) e Marôco (2010), a Modelagem de Equações Estruturais – MEE
(Structural Equation Modeling - SEM) é uma técnica de modelação utilizada
para testar a validade de modelos teóricos que definem relações causais,
hipotéticas, entre variáveis. Estas relações são representadas por parâmetros
EVIDÊNCIAS SOBRE A POBREZA NO BRASIL: UMA APLICAÇÃO DA MODELAGEM DE EQUAÇÕES ESTRUTURAIS:
PARTE I
114
Capítulo 9
que indicam a magnitude do efeito que as variáveis independentes,
apresentam sobre outras variáveis, as dependentes.
A MEE é uma extensão dos modelos lineares generalizados que
considera, de forma explícita, os erros de medida associados às variáveis em
estudo. Essa técnica pode ser descrita como a junção das técnicas de Análise
Fatorial e de Regressão Linear. Contudo, a MEE é mais do que a soma das
duas técnicas. Em primeiro lugar há uma clara diferença entre a MEE e a
Estatística Clássica, tendo em vista que nesta última, a lógica é encontrar
um modelo teórico que descreva os dados, ou seja, o modelo que encaixa na
estrutura dos dados observada, numa estratégia exploratória. Em oposição,
a MEE se baseia em um quadro teórico estabelecido ex ante. Dessa forma, a
pesquisa começa com a formulação de um quadro teórico para, em seguida,
verificar se os dados confirmam ou não a hipótese teórica. (Marôco, 2010)
Outra característica da MEE é que permite trabalhar com variáveis
que não são diretamente observáveis, chamadas de variáveis latentes. Como
essas variáveis não são diretamente mensuráveis, elas são “medidas” por
intermédio de outras variáveis ou indicadores com a utilização do método
de Análise Fatorial. Dessa forma, diferente dos modelos econométricos
tradicionais, na MEE as variáveis podem ser classificadas em duas formas:
a) as variáveis manifestas; b) as variáveis latentes, ou fatores que são as
variáveis não diretamente observáveis ou mensuráveis, sendo que a sua
“existência” é dependente e formada com o uso das variáveis manifestas.
Um exemplo de variável manifesta é a quantidade de dormitórios que existe
em uma residência, já que sua mensuração ocorre de forma simples e direta.
Por outro lado, o grau de felicidade de um indivíduo é uma variável latente,
que apresenta características subjetivas e dependente de outras variáveis.
Segundo Hair et al. (2009), para avaliar a qualidade dos resultados
obtido na MEE são utilizadas as medidas de qualidade de ajuste. Nesse
trabalho serão utilizados dois índices de ajuste absoluto que comparam a
matriz de entrada com aquela predita pelo modelo proposto. As primeiras
medidas de qualidade são o Root Mean Squares Error of Approximation
(RMSEA) e o Standardized Root Mean Square Residual (SRMR) que são
inapropriados se as suas estimativas forem superiores a 0,10. Já entre os
índices empíricos que mensuram a qualidade do ajustamento em relação a
modelos de referência, serão utilizados o CFI (Compative Fit Index) e o TLI
(Índice de Tucker Lewis) e se apresentarem valores inferiores a 0,9 indicam
um mau ajustamento.
A etapa final da MEE consiste em verificar se os resultados
correspondem à teoria proposta e se possíveis alterações no modelo são
pertinentes. Com o objetivo de melhorar o ajuste, pode-se reespecificá-lo
acrescentando ou eliminando parâmetros do modelo original. Contudo, essas
alterações só são válidas caso tenham justificativa teórica. Os ajustes no
modelo ocorrem por meio dos Modification Indices - MI. Dessa forma, segundo
Marôco (2010), os parâmetros MI superiores a 11 podem ser alterados. Assim,
EVIDÊNCIAS SOBRE A POBREZA NO BRASIL: UMA APLICAÇÃO DA MODELAGEM DE EQUAÇÕES ESTRUTURAIS:
PARTE I
115
Capítulo 9
por exemplo, se duas variáveis manifestas apresentarem um MI elevado, é
possível concluir que elas possuem uma correlação significativa, podendo
ser criada uma seta de duas pontas entre elas.
2.1. Dados e modelo empírico
Para o cálculo da pobreza e a estimação dos modelos são utilizados
os microdados referentes a pessoas e famílias da Pesquisa Nacional por
Amostra de Domicílios (PNAD) dos anos de 2004 e 2012 com reponderação
efetuada no ano de 2013, disponíveis no site do Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE). Utilizou-se o ano de 2004 para iniciar a
análise por duas razões. A partir desse ano, a PNAD passou a pesquisar os
domicílios rurais de todas as regiões brasileiras, de modo que seja possível
uma comparação direta com a PNAD de 2012; representa um período em
que houve queda nos níveis de pobreza, sendo o segundo ano de vigência
do maior programa de transferência de renda realizado, o Programa Bolsa
Família. Assim, a utilização de 2004 e 2012 permite analisar a efetividade das
políticas de erradicação da pobreza, considerando todo o país.
Para este estudo, utilizou-se o critério adotado pelo Ministério do
Desenvolvimento Social -MDS e, por extensão, pelo Programa Bolsa Família
(PBF), em que é considerado pobre o domicílio com rendimento mensal per
capita igual ou inferior a R$140,00, em 2012. As informações referentes
ao rendimento foram deflacionadas pelo Índice Nacional de Preços ao
Consumidor de 1° de outubro de 2012, de acordo com a sugestão de Corseuil
e Foguel (2002). Dessa forma, os valores do rendimento domiciliar per capita
mensal encontrado na PNAD 2004 foram divididos por 0,663869.
Alguns filtros foram utilizados com o objetivo de deixar a amostra
mais homogênea. Dessa forma, foram eliminadas as pessoas de referência
ou chefes de família com idade igual ou inferior a 14 anos. Por fim, foram
utilizadas informações somente dos domicílios que possuíam respostas
para todas as variáveis utilizadas, ou seja, os domicílios com missings foram
excluídos. Dessa forma, foram mantidos pelo menos 95% dos domicílios da
amostra original.
2.2. Relações causais do modelo empírico: Fatores socioeconômicos
associados à pobreza
O modelo empírico proposto por Codes (2005) baseado nas relações
teóricas está representado na Figura 1, assim como o sinal esperado das
relações causais. De acordo com a literatura econômica, as fontes de
rendimento das famílias são os salários, lucros, juros, aluguéis e transferências
do governo. Como estão sendo analisadas as famílias em condição de
pobreza, a participação dos lucros, juros e aluguéis no rendimento dessas
famílias é praticamente nulo. Assim, restam os rendimentos provenientes
dos salários e transferências do governo, sendo o primeiro a principal fonte.
EVIDÊNCIAS SOBRE A POBREZA NO BRASIL: UMA APLICAÇÃO DA MODELAGEM DE EQUAÇÕES ESTRUTURAIS:
PARTE I
116
Capítulo 9
Sabendo que o salário ocorre por meio da oferta de trabalho ou por meio do
próprio negócio (pró-labore), fica claro a importância do trabalho na obtenção
de renda e, por consequência, seu impacto na condição de pobreza do
indivíduo e de sua família.
Quanto aos ofertantes de mão de obra, estar empregado faz parte de
um contexto maior que engloba como o indivíduo está inserido no mercado
de trabalho, considerando se ele está no mercado formal ou informal, a
instabilidade, a precariedade desse trabalho e a forma como se dá os reajustes
salariais. Assim, os chefes de famílias com melhor inserção no mercado de
trabalho apresentam condições de receber maior rendimento per capita.
Nessa perspectiva, Barros, Corseuil e Leite (2000b) esclarecem a
relação entre a pobreza e o mercado de trabalho em que a questão central
é como os recursos humanos são utilizados e remunerados, de forma que
quanto maior a remuneração recebida pelos trabalhadores, menor será
o nível da pobreza. Além disso, a eficiência do mecanismo de alocação e
remuneração dos recursos humanos depende do bom funcionamento do
mercado de trabalho.
Schwartzman (2004, p. 40) também defende essa linha de
pensamento, em que “a participação no mercado de trabalho é a principal
forma de inclusão das pessoas nas sociedades modernas, e o ponto de
partida de todas as análises sobre inclusão e exclusão social”. Dessa forma,
é preciso investigar quais são os determinantes que facilitam o acesso ao
mercado de trabalho, como a raça, o gênero, a idade e a educação. Quais
características individuais favorecem a melhor inserção no trabalho e o seu
o nível salarial?
A área da economia do trabalho estuda a discriminação de acordo
com o diferencial de rendimentos. Sempre que trabalhadores perfeitamente
substituíveis, ou seja, com as mesmas competências em um mesmo
segmento do mercado trabalho recebem salários diferentes, há discriminação
para aqueles que recebem menos que a média.
Segundo Barros, Corseuil e Leite (2000b), as mulheres ganham
menos que os homens, e os mulatos e negros ganham menos que os
brancos. Assim sendo, há discriminação de gênero e de raça. Por sua vez,
Soares (2000) pesquisou o diferencial de rendimentos entre os homens
brancos, homens negros, mulheres brancas e mulheres negras, utilizando
uma metodologia que é uma extensão da decomposição de Oaxaca. Para
o autor, tanto as mulheres negras como os homens negros têm diferenças
no salário em decorrência da inserção no mercado de trabalho, como devido
à qualificação, quando comparados aos homens brancos. Dessa forma, os
chefes de famílias mulheres e da etnia negra não somente recebem salários
menores, como também estão expostos a maiores taxas de desemprego
e trabalhos mais precários sendo, por consequência, mais propensos à
pobreza.
EVIDÊNCIAS SOBRE A POBREZA NO BRASIL: UMA APLICAÇÃO DA MODELAGEM DE EQUAÇÕES ESTRUTURAIS:
PARTE I
117
Capítulo 9
De acordo com Henriques (2001), a heterogeneidade na escolaridade
da população brasileira explica parte importante não somente da desigualdade
de renda, como também da desigualdade racial. De acordo com o autor, no
final do século XX, a escolaridade média de um jovem negro com 25 anos era
de 6,1 anos, enquanto um jovem branco possuía 8,4 anos de estudo. Além
disso, essa disparidade na intensidade da discriminação racial foi a mesma
vivida pelos pais desses jovens, de forma que “a escolaridade média de
ambas as raças cresce [...], mas o padrão de discriminação racial, expresso
pelo diferencial nos anos de escolaridade entre brancos e negros, mantém
absolutamente estável entre as gerações” (HENRIQUES, 2001, p. 27).
Figura 1: Modelo empírico proposto
Fonte: Elaboração própria, de acordo com Codes (2005)
Quanto aos impactos da idade e da escolaridade no mercado de
trabalho, os estudos da Teoria do Capital Humano afirmam que o investimento
nos recursos humanos via educação e a experiência no trabalho proporcionam
o desenvolvimento econômico. De acordo com Mincer (1974) que formalizou
a função minceriana de ganhos salariais, quanto maior a escolarização do
indivíduo, maior será o seu rendimento, ceteris paribus; assim como o maior
número de anos de experiência no mercado de trabalho. A ideia é que o
trabalhador com maior estudo terá uma produtividade maior, traduzindo-se
em maior remuneração.
Conforme Neri (2010), a educação (ou o estudo) é o mais relevante
determinante da pobreza e da desigualdade no país. A renda aumenta
monotonicamente com os anos de escolaridade. De acordo com o autor, a
EVIDÊNCIAS SOBRE A POBREZA NO BRASIL: UMA APLICAÇÃO DA MODELAGEM DE EQUAÇÕES ESTRUTURAIS:
PARTE I
118
Capítulo 9
distância entre os extremos diminuiu entre 2005 e 2006, já que a renda per
capita que era 8,1 vezes maior para os que terminaram o segundo grau em
relação aos sem escolaridade cai para 7,7. No último grupo, 35,10% das
pessoas estão abaixo da linha de miséria, enquanto a primeira categoria tem
2,8%. Ademais, o retorno do investimento em educação para os que têm
mais de 12 anos de estudo é bastante superior a base (183%).
No tocante à maior experiência no mercado de trabalho, apresentada
na equação minceriana, geralmente se utiliza a idade como proxy para
experiência, de forma que quanto maior a idade do chefe de famílias, maior
será sua experiência profissional. Em oposição, a pouca idade que se traduz
na pouca ou nenhuma experiência, o que dificulta a entrada dos jovens no
mercado de trabalho e explica a alta taxa de desemprego deles.
Ainda de acordo com Neri (2010), nota-se que a incidência da pobreza
declina quase que monotonicamente com a idade do indivíduo. O retorno no
mercado de trabalho de acordo com a experiência persiste, inclusive para os
indivíduos idosos que compreendem o grupo etário menos pobre, além de
apresentaram maior redução da taxa de pobreza entre 2005 e 2006.
Por sua vez, Henriques (2001) ao analisar a incidência da pobreza
por faixa etária, verificou a concentração da pobreza entre as crianças, tendo
em vista que 43% da pobreza se concentra na população de até 14 anos de
idade, sendo que essa faixa etária compreende 29% da população.
No que diz respeito aos idosos que poderiam compor um grupo
vulnerável, dada a baixa inserção no mercado de trabalho, nota-se que esse
grupo etário apresenta baixa incidência na taxa de pobreza no Brasil. De
acordo com Rocha (2003), isso se deve às políticas públicas de aposentadoria
e pensão que favorecem os idosos.
Por outro lado, Codes (2005) relativiza a relação direta entre a idade
e a inserção no mercado de trabalho (rendimento). De acordo com a autora,
essa relação nem sempre é direta, sobretudo quando se analisa a população
pobre. Nesse estrato social, os trabalhadores com maior idade podem ser
substituídos pelos mais jovens. Assim, nos trabalhos mais “braçais” em que
o vigor físico é necessário e que exigem pouca escolaridade, a experiência
(idade) não é tão importante como nos trabalhos “intelectuais”. É possível
entender que os trabalhadores mais jovens sejam preferidos aos mais velhos
em razão de estarem mais aptos para as tarefas em que a força física é
necessária.
Outra característica que impacta na pobreza é a composição familiar.
De acordo com Menezes Filho e Oliveira (2014), quanto maior o número de
adultos em uma família, maior também será a quantidade de pessoas aptas
ao trabalho, mantendo-se os demais fatores constantes, causa um aumento
do rendimento familiar em termos per capita. Historicamente, devido à maior
taxa de fecundidade entre os mais pobres, esses possuem uma proporção
menor de adultos nas famílias do que os mais ricos. Enquanto em 1992, as
EVIDÊNCIAS SOBRE A POBREZA NO BRASIL: UMA APLICAÇÃO DA MODELAGEM DE EQUAÇÕES ESTRUTURAIS:
PARTE I
119
Capítulo 9
famílias mais ricas eram constituídas por aproximadamente 80% de adultos;
as famílias 10% mais pobres possuíam apenas 48% de adultos. Em 2009, as
famílias mais ricas atingiram 89% e as mais pobres 55%. Assim, esse conceito
é exposto no modelo por meio da variável “dependente”, que representa
a quantidade de pessoas no domicílio com renda nula em relação ao total
de moradores. Assim, se nenhum dos moradores possui renda, a razão de
dependência será de 1, e o domicílio será pobre. Logo, quanto maior a razão
de dependência, menor a renda domiciliar per capita do domicílio, por isso a
relação é negativa, uma vez que poucos membros da família têm que custear
os gastos de todo o domicílio.
Prosseguindo com a análise da estrutura familiar, chefes de domicílios
do sexo masculino que vivem com a presença de cônjuge tendem a possuir
renda maior, enquanto as famílias chefiadas por mulheres que vivem sem a
presença de cônjuge têm menor renda per capita. Os chefes do sexo feminino
geralmente formam famílias monoparentais e, por isso, apresentam maior
razão de dependência no domicílio.
Sobre a relação causal entre “idade” e “dependente”, chefes de
domicílios com idade maior apresentam com maior frequência filhos maiores
de idade, ou seja, em idade produtiva para o trabalho. Dessa forma, esses
domicílios em que os chefes possuem uma idade maior, menor será a razão
de dependência entre os membros dessa família. Por outro lado, naqueles
domicílios em que os chefes apresentam menor idade, maior será a incidência
de filhos menores de idade que não podem trabalhar. Logo, a relação entre
idade e dependente é negativa. Por sua vez, a relação entre “inserção
no mercado de trabalho” e a “razão de dependente” é negativa, uma vez
que o domicílio em que o chefe que está inserido no mercado de trabalho,
apresenta pelo menos um membro da família sem rendimento nulo que é o
próprio chefe. Enquanto isso, o chefe que não está inserido no mercado de
trabalho, lembrando-se que o chefe geralmente apresenta a maior parcela do
rendimento domiciliar, apresenta maior quantidade de dependentes, já que
ele próprio possui renda nula.
No que diz respeito à infraestrutura dos domicílios que conferem um
maior conforto aos seus residentes, como o acesso aos bens duráveis e a
presença de banheiro, são vistas no modelo empírico como uma variável
latente chamada de “Conforto no Lar”, já que uma única variável observável
não é capaz de retratar de forma satisfatória o conforto no lar. Por sua vez,
“Saneamento básico” reflete-se na “origem da água” e no “acesso à água”,
conforme Figura 1. Assume-se que quanto maior o Conforto no Lar e quanto
maior o Saneamento Básico, maior será o rendimento domiciliar per capita.
O acesso à energia elétrica, por exemplo, permite que os moradores tenham
aparelhos elétricos, como a máquina de lavar que, por sua vez, contribui
para a redução das horas dedicadas aos serviços domésticos e o possível
aumento na carga horária dedicada ao trabalho remunerado. O inverso
também verdadeiro, já que quanto maior a renda, a compra de bens duráveis
EVIDÊNCIAS SOBRE A POBREZA NO BRASIL: UMA APLICAÇÃO DA MODELAGEM DE EQUAÇÕES ESTRUTURAIS:
PARTE I
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Capítulo 9
e a aquisição de serviços de saneamento básico são facilitadas.
Por sua vez, domicílios localizados na área urbana apresentam
maior acesso ao mercado de bens e serviços para a compra de produtos que
aumentem o conforto do lar, assim como são melhor assistidos em relação ao
saneamento básico quando comparados aos domicílios rurais. Como salienta
Haugnton e Shahidur (2009), a disponibilidade de infraestrutura - rodovias,
água e eletricidade - e serviços, como saúde e educação, assim como a
proximidade dos mercados são condições que favorecem a não pobreza.
No entanto, devido à baixa densidade populacional verificada na área rural
e por habitarem em regiões mais isoladas, esses domicílios possuem menor
acesso a esses bens, sendo mais suscetíveis à pobreza.
Todas essas variáveis fazem parte do modelo a ser testado que
inclui quatro conceitos amplos, que são tratados na literatura sobre o tema:
as condições de pobreza do indivíduo, as circunstâncias em que se dá a
sua inserção no mercado de trabalho, suas características demográficas e a
composição de sua família.
A pobreza nesse modelo é representada pela variável observável
“renda domiciliar per capita” e pelas variáveis latentes “Conforto no lar” e
“Acesso a saneamento básico”. Essas três “medidas” estão correlacionadas
positivamente uma com as outras e vão de encontro à abordagem
multidimensional de analisar a pobreza, uma vez que várias dimensões são
analisadas.
Além disso, na Figura 1 consta em cada seta – seja de relação causal
ou uma correlação – os sinais esperados segundo a revisão da literatura.
Como todas as variáveis, com exceção de “dependentes”, apresentam
valores maiores para características ou condições favoráveis para a situação
de não pobreza, quando apresentam coeficientes positivos, elas favorecem
o aumento da renda domiciliar per capita. Por exemplo, melhores condições
na inserção e qualidade no trabalho, variáveis que “medem” a variável latente
“inserção no mercado de trabalho” implicam maior renda ou, em outras
palavras, menor chance de estar na pobreza.Logo, espera-se que o modelo
a ser estimado pela MEE venha a apresentar os mesmos coeficientes de
cada uma das retas expostas no modelo hipotético, para assim confirmar que
o modelo teórico é válido.
Portanto, considerando o modelo teórico e a abordagem de equações
estruturais (MEE), há dois conjuntos de variáveis, as manifestas e as latentes.
Neste trabalho entre as manifestas estão três variáveis para caracterizar as
famílias, o rendimento domiciliar per capita em Reais, uma variável binária
igual a um na presença de cônjuge, com valor igual a zero caso contrário, e a
proporção de moradores dependentes ou com rendimento nulo. A localização
do domicílio é indicada por uma variável binária igual a um se estiver em área
urbana e zero em caso contrário. Ainda entre as variáveis manifestas, estão
cinco variáveis que caracterizam a pessoa de referência no domicílio, além
dos anos de estudos completos e a idade, o sexo é indicado por uma variável
EVIDÊNCIAS SOBRE A POBREZA NO BRASIL: UMA APLICAÇÃO DA MODELAGEM DE EQUAÇÕES ESTRUTURAIS:
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Capítulo 9
binária igual a um para homem, os aposentados e pensionistas são indicados
por duas variáveis binárias iguais a um na presença de cada categoria, por
fim, a cor ou raça é representada por uma variável igual a um se o indivíduo é
preto, dois se é pardo ou indígena e três se é branco ou amarelo.
Entre as variáveis latentes estão onze variáveis para caracterizar o
conforto do lar e o saneamento básico, além de duas para o mercado de
trabalho. Entre as primeiras estão a iluminação que é igual a um se é de
outra forma, igual a dois se é com querosene ou gás de botijão e igual a três
se é elétrica; a origem da água é igual a um se é não canalizada, dois se
de poço ou nascente e três se é canalizada; o acesso à agua é igual a um
se é não canalizada, igual a dois se é poço ou nascente e igual a três se é
canalizada; a variável banheiro é igual a um se não há banheiro, igual a dois
se é com escoadouro por vala, igual a três se é com escoadouro por fossa e
igual a quatro com rede coletora; a presença de televisão, geladeira, telefone
(fixo ou celular), fogão e máquina de lavar são indicadas por cinco variáveis
binárias iguais e zero em caso contrário; a variável computador é igual a um
na sua ausência, igual a dois na sua presença sem internet e igual a três na
sua presença com internet; a variável lixo é indicada por um se é jogado,
igual a dois se é queimado ou enterrado, igual a três se é coletado de forma
indireta e igual a quatro se é coletado de forma direta. Por fim, o mercado
de trabalho de trabalho é representado pela variável trabalho que é igual a
um se o indivíduo não está inserido, igual a dois se está inserido, mas não
remunerado, igual a três se é conta-própria, igual a quatro se é empregado
ou trabalhador doméstico e igual a cinco se é empregador. Adicionalmente,
a variável qualidade é igual a um se o indivíduo está desocupado, igual a
dois se está sem carteira de trabalho ou é conta-própria ou trabalha para
autoconsumo sem remuneração; e três se é empregado do setor privado com
carteira ou do setor público ou empregador.
REFERÊNCIAS
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EVIDÊNCIAS SOBRE A POBREZA NO BRASIL: UMA APLICAÇÃO DA MODELAGEM DE EQUAÇÕES ESTRUTURAIS:
PARTE I
122
Capítulo 9
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EVIDÊNCIAS SOBRE A POBREZA NO BRASIL: UMA APLICAÇÃO DA MODELAGEM DE EQUAÇÕES ESTRUTURAIS:
PARTE I
123
Capítulo 9
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EVIDENCE ON POVERTY IN BRAZIL: AN APPLICATION OF STRUCTURAL
EQUATION MODELING: PART I
ABSTRACT - This study aims to analyze poverty in Brazilian families and its possible
causal relationship with the family’s own characteristics, personal aspects of the
family head and the home infrastructure. Therefore, poverty is evaluated by Structural
Equation Modeling (SEM), also little used in studies on the subject, which allows you
to test the validity of theoretical models that define the causal relations between the
variables and allows the use of unobservable variables. Therefore, the data from the
National Survey of Households in 2004 and 2012. Among the results were used, it was
found that households headed by men, with the presence of spouse, located in urban
areas, with sanitation and comfort home are positively associated with household
income per capita, making these households are proportionally lower in condition of
poverty, both in 2004 as in 2012. Thus, the methodology was adequate to analyze the
causal relations of the Brazilian poverty phenomenon. This communication was divided
into two parts, with the introductory and methodological aspects being presented in the
first part and the development and conclusions in the second part.
KEYWORDS: Poverty; Determinants of Poverty; Structural Equation Modeling.
EVIDÊNCIAS SOBRE A POBREZA NO BRASIL: UMA APLICAÇÃO DA MODELAGEM DE EQUAÇÕES ESTRUTURAIS:
PARTE I
124
CAPÍTULO 10
EVIDÊNCIAS SOBRE A POBREZA
NO BRASIL: UMA APLICAÇÃO
DA MODELAGEM DE EQUAÇÕES
ESTRUTURAIS: PARTE II
Leandro Nunes Soares da Silva
lattes.cnpq.br/3416990604622129
Universidade Estadual de Maringá
Marina Silva da Cunha
lattes.cnpq.br/0933287370110532
Universidade Estadual de Maringá
RESUMO - Este trabalho tem como
objetivo analisar a pobreza nas
famílias brasileiras e suas relações
causais com as características da
própria família, aspectos pessoais do
chefe da família e com a infraestrutura
do domicílio. Para tanto, a pobreza
é avaliada pela Modelagem de
Equações Estruturais (MEE), ainda
pouco utilizada em estudos sobre o
tema, que permite testar a validade
de modelos teóricos que definem as
relações causais entre as variáveis,
além de permitir o uso de variáveis
não observáveis. Para tanto, foram
utilizados os microdados da Pesquisa
Nacional por Amostra de Domicílios
nos anos de 2004 e 2012. Entre
os resultados, verificou-se que os
domicílios chefiados por homem, com
a presença de cônjuge, localizados
na área urbana, com saneamento
básico e conforto lar estão
associados com o maior rendimento
domiciliar per capita, fazendo com
que estejam, proporcionalmente, em
menor condição de pobreza, tanto
em 2004 quanto em 2012. Dessa
forma, a metodologia foi adequada
para analisar as relações causais
do fenômeno da pobreza brasileira.
Esta comunicação foi dividida em
duas partes, sendo apresentados
os
aspectos
introdutórios
e
metodológicos na primeira parte e
o desenvolvimento e conclusões na
segunda parte.
PALAVRAS-CHAVE:
Pobreza;
Determinantes
da
pobreza;
Modelagem de Equações Estruturais.
3. A POBREZA NO BRASIL NOS
ANOS DE 2004 E 2012
Iniciando
pela
análise
unidimensional, nota-se que o
rendimento mensal domiciliar per
capita tanto no Brasil, quanto nos
domicílios não pobres apresentou
crescimento no período analisado.
No agregado, esse valor subiu, em
termos reais, de R$ 729,56 em 2004
para R$ 1.037,82, uma elevação de
42,25%.
Quanto à mensuração dos
pobres pelo método unidimensional,
nota-se na Tabela 1 que, a despeito
dos domicílios no país aumentarem
EVIDÊNCIAS SOBRE A POBREZA NO BRASIL: UMA APLICAÇÃO DA MODELAGEM DE EQUAÇÕES ESTRUTURAIS:
PARTE II
125
Capítulo 10
10,45 milhões entre 2004 e 2012, a quantidade de domicílios não pobres
apresentou um acréscimo de 14,19 milhões e os domicílios pobres declinaram
em 3,74 milhões. Em termos percentuais, a pobreza declinou de forma
significativa entre os dois anos, passando de 15,48% dos domicílios para
6,70% em 2012.
Tabela 1: Incidência da Pobreza nos domicílios, 2004 e 2012
Descrição
2004
2012
Domicílios
%
Domicílios
%
Total
50.622.343
100
61.074.952
100
Não pobres
Pobres
42.786.157
7.836.186
84,52
15,48
56.979.977
4.094.975
93,30
6,70
Fonte: elaboração dos autores.
Partindo para a análise multidimensional, são estimadas as
relações causais expostas na Figura 1 nos domicílios pobres por meio da
MEE. Para adequar as variáveis ao pressuposto do modelo de distribuição
normal das variáveis, “idade” e “dependente” passaram por transformações
matemáticas, sendo por isso chamadas de “idade2” a raiz quadrada de
“idade” e “dependente2”, a variável “dependente” ao quadrado. Com essas
transformações, os valores da assimetria e da curtose dessas variáveis
ficaram menores, deixando-as com uma distribuição mais próxima da normal.
Quanto ao pressuposto da ausência de outliers, foi realizado o teste de Bacon
na base de dados dos dois anos, que indicou a ausência deles.
O modelo proposto é estimado pelo método de máxima
verossimilhança, utilizando a matriz de correlação de Pearson. No entanto,
os primeiros resultados indicam que, ao contrário das relações teóricas, para
o ano de 2012, as trajetórias de causalidade entre “raça” e ‘educação’; “idade”
e “dependente”; “raça” e “inserção no mercado de trabalho”; e entre “sexo” e
“dependente” apresentaram coeficientes estatisticamente não significantes a
10%. Assim, essas relações causais (setas de uma direção) foram excluídas
do modelo.
Feitas essas alterações, foi calculado os “Modification Indices” após
a estimação do modelo, de modo que muitos erros nas variáveis manifestas
apresentaram, de acordo com o teste, alta covariância com os erros de outras
variáveis. Ainda assim, a inclusão da covariância entre os erros foi realizada
no modelo com índice de modificação apenas com valores acima de 200. Em
2004, foram adicionadas as covariâncias nos erros entre “origem” e “água”;
“origem” e “banheiro”; e “banheiro” e “lixo”. Enquanto, em 2012, além das
inclusões feitas no período anterior, foram acrescentadas as relações entre
“água” e “banheiro”; “trabalho” e “qualidade”; e “iluminação” e “televisão”,
conforme se verifica na Figura 2.
EVIDÊNCIAS SOBRE A POBREZA NO BRASIL: UMA APLICAÇÃO DA MODELAGEM DE EQUAÇÕES ESTRUTURAIS:
PARTE II
126
Capítulo 10
Figura 2: Modelagem de Equações Estruturais, Brasil, 2004 e 2012.
Fonte: Elaboração dos autores. Todos os coeficientes são estatisticamente
significantes a 1%.
Tendo em vista que a estimação ocorreu com os parâmetros
padronizados, os coeficientes são interpretados como variações no desviopadrão. Desse modo, por exemplo, quando a “inserção no mercado de
trabalho” aumenta um desvio-padrão, a renda domiciliar per capita diminui
0,27 desvios-padrão, ceteris paribus; se a variável “urbano” aumenta em um
desvio-padrão, o Saneamento Básico aumenta ceteris paribus, 0,78 desviospadrão em 2004.
EVIDÊNCIAS SOBRE A POBREZA NO BRASIL: UMA APLICAÇÃO DA MODELAGEM DE EQUAÇÕES ESTRUTURAIS:
PARTE II
127
Capítulo 10
Os resultados da MEE, de modo geral, apresentaram os coeficientes
com o sinal esperado. O coeficiente positivo entre “idade2” e “Imtr” e entre
“estudo” e “Imtr” revelam que quanto maior a idade e o estudo, maior será a
inserção no mercado de trabalho. Por sua vez, chefe do domicílio masculino
impacta positivamente na presença de cônjuge que, por sua vez, favorece o
maior rendimento domiciliar. Além disso, os domicílios urbanos apresentam
maior “conforto do lar” e melhor “saneamento básico”, ao passo que esses
atributos contribuem para o aumento da renda, como o esperado. No mais, a
maior razão de dependência reduz, ceteris paribus, o rendimento da família.
No que diz respeito à causalidade entre o mercado de trabalho e o
rendimento, era de se esperar uma relação positiva, ao contrário, porém, do
verificado.
A análise fatorial da variável do mercado de trabalho apresentou
coeficientes (cargas fatoriais) negativos em relação ao trabalho e à
qualidade, contrariando o modelo teórico proposto. Por sua vez, a variável
latente Conforto do Lar está condizente com o previsto, uma vez que se
reflete no acesso à iluminação e na posse de geladeira e televisão. A direção
conceitual dessas variáveis é positiva. O mesmo ocorre com a variável latente
do Saneamento Básico. Fazendo a análise do mesmo modelo, mas para
o ano de 2012 indica que os sinais dos coeficientes das relações causais
coincidem com os resultados de 2004. Ademais, quanto ao ajustamento do
modelo, os resultados indicam que dos quatro testes calculados, a MEE de
2004 apresentou bons valores somente nos dois índices (RMSEA=0,099 e
SRMR=0,082), enquanto a MEE de 2012, só o teste SRMR com valor de
0,094 revela que o modelo tem um bom ajuste.
Buscando contornar as limitações no ajustamento do modelo anterior,
o modelo foi estimado novamente considerando o mercado de trabalho
sendo representado pelas variáveis trabalho e qualidade, cujos resultados
encontram-se na Figura 3.
No ano de 2004, a variável manifesta “trabalho” foi incluída em
substituição a variável latente de “Inserção no mercado de trabalho” do
modelo empírico proposto. Dessa vez, os resultados são condizentes com
a teoria, uma vez que o aumento de 1 desvio-padrão na qualidade do
trabalho, causará um impacto positivo no aumento de 0,33 desvios-padrão
no rendimento domiciliar per capita e causará um impacto na redução de 0,14
desvios-padrão na razão de dependência.
A outra novidade desse resultado em relação aos anteriores é o
fato da captação da relação bidirecional da variável “rendimentopc” com as
variáveis latentes de Saneamento Básico e Conforto do Lar, conferindo ao
resultado o caráter multidimensional dessa modelagem. Assim, o rendimento
domiciliar per capita impacta no Saneamento Básico e vice-versa, ocorrendo
o mesmo entre o rendimento e o Conforto do Lar. De acordo com os
resultados, o aumento de 1 desvio-padrão no Saneamento Básico causa uma
redução de 0,02 desvios-padrão no rendimento (resultado não esperado) e
EVIDÊNCIAS SOBRE A POBREZA NO BRASIL: UMA APLICAÇÃO DA MODELAGEM DE EQUAÇÕES ESTRUTURAIS:
PARTE II
128
Capítulo 10
um aumento de 1 desvio-padrão no Conforto do Lar acarreta o aumento de
0,02 no rendimento. Por sua vez, o rendimento domiciliar per capita eleva o
Saneamento Básico em 0,06 desvios-padrão e o Conforto do Lar em 0,14
desvios-padrão. Tal fato revela que a posse de dinheiro facilita a compra de
bens que favorecem o conforto do lar e que o impacto no Saneamento Básico
é menor, pois depende mais da ação governamental, já que são bens públicos.
Quanto aos demais coeficientes, não apresentam nenhuma mudança de
sinal e nenhuma mudança significativa em relação aos resultados anteriores.
Figura 3: Modelagem de Equações Estruturais, versão alterada, Brasil,
2004 e 2012.
Fonte: Elaboração dos autores. Todos os coeficientes são estatisticamente
significantes a 1%.
EVIDÊNCIAS SOBRE A POBREZA NO BRASIL: UMA APLICAÇÃO DA MODELAGEM DE EQUAÇÕES ESTRUTURAIS:
PARTE II
129
Capítulo 10
No que diz respeito a nova estimação para o ano de 2012, houve a
inclusão da variável “qualidade” como uma variável “substituta” à inserção
no mercado de trabalho. Assim como na estimativa para o ano de 2004,
os resultados apresentaram relações corretas, ou seja, a maior qualidade
de trabalho favorece o aumento do rendimento e desfavorece a razão de
dependência no domicílio. Cabe notar que a relação negativa entre a variável
que representa o mercado de trabalho e a dependência tornou-se mais
intensa entre 2004 e 2012, passando de -0,14 para 0,40.
Quanto às relações bidirecionais entre a variável do rendimento
domiciliar com as variáveis latentes de “Clar” e “Saba” que, a princípio,
deveriam apresentar todos os coeficientes positivos, apresentou uma relação
negativa entre rendimento e “Saba” de 0,09 desvios-padrão, indicando que
quanto maior o rendimento, menor será o Saneamento Básico do domicílio.
Por sua vez, como em todas as estimativas anteriores, é evidente o
forte impacto positivo que os domicílios urbanos têm nas melhores condições
de conforto do lar e do saneamento, sendo ainda mais intensa essa última
relação.
Os testes pós-estimação, expostos no Apêndice indicaram um bom
ajuste nos dois anos, uma vez que nenhum teste apresentou resultados que
questionassem a qualidade do ajuste. A respeito das variâncias das variáveis
manifestas, nota-se valores com um aumento de aproximadamente 2 pontos
percentuais em relação ao modelo sem trabalho. Com a inclusão da nova
variável explicativa, as variáveis manifestas que têm em suas equações a
variável incluída, no caso o rendimento domiciliar per capita e a dependente,
obtiveram aumento em suas variâncias explicadas. O rendimento per capita
que tinha 31,22% de sua variância explicada anteriormente, nesse modelo
com uma variável a mais, passou para 37,45% em 2004. Enquanto no ano de
2012, passou de 48,59% para 54,94%.
Desse modo, a inclusão de uma variável relacionada a Imtr mostrouse pertinente pelo alto coeficiente dessa variável no rendimento domiciliar,
por apresentar maior variância explicada das variáveis, além de considerar
que esse último modelo estimado apresentou uma qualidade de ajuste tão
boa quanto o modelo sem nenhuma variável de trabalho.
Ainda assim, fica como sugestões para pesquisas futuras, uma maior
investigação do problema encontrada na variável latente da “Inserção no
mercado de trabalho”, uma vez que suas características são importantes na
explicação da pobreza; a inclusão da variável “estudo” que não foi possível
devido aos coeficientes inversos ao esperado; assim como a inclusão de
outras variáveis. Por último, fazer estimações com os futuros dados a serem
disponíveis que captem o efeito da pandemia na pobreza.
A respeito do último modelo estudado, os resultados sugerem relativa
estabilidade nas relações causais nos dois anos pesquisados. No entanto,
confirmam o impacto negativo das famílias com maior razão de dependência
EVIDÊNCIAS SOBRE A POBREZA NO BRASIL: UMA APLICAÇÃO DA MODELAGEM DE EQUAÇÕES ESTRUTURAIS:
PARTE II
130
Capítulo 10
que possuem menor rendimento domiciliar, além de apontar que os chefes
de família do sexo masculino com cônjuge possuem maior rendimento, assim
como aqueles inseridos ou com uma melhor qualidade de trabalho, sendo
por isso, menos pobres. Por fim, salienta-se a importância do “Conforto do
Lar” e do “Saneamento Básico” satisfatórios e da localização urbana como
relevantes na explicação da pobreza dessas famílias.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
As questões relacionadas à pobreza estão na ordem do dia, seja
nos organismos internacionais como a ONU, seja por meio de políticas
públicas dos governos ou nos estudos acadêmicos. Antes, porém, o tema
avançou em torno das definições do que vem a ser pobreza. Embora não
haja uma definição única, convergem para a parcela da sociedade que se
encontra em situação de privação. As definições vão desde as privações
básicas à sobrevivência de um indivíduo a fatores como a liberdade do poder
de expressão. Em outros termos, a pobreza que tradicionalmente tinha um
conceito associado apenas à renda, passa a ser compreendida de forma
mais complexa.
Inicialmente, partindo de uma análise unidimensional se verificou que
o rendimento domiciliar per capita, entre o ano de 2004 e 2012, propiciou a
saída de grande quantidade de famílias da pobreza. Ainda assim, apesar do
grande progresso verificado, restam mais de quatro milhões de domicílios
pobres unidimensionais.
Por sua vez, na abordagem multidimensional, realizado por
meio da MEE, foram estimadas as relações causais e correlacionais nos
domicílios abaixo da linha da pobreza, sendo essa variável correlacionada
com a “condição do lar” e com o “saneamento básico”. Além disso, foram
consideradas variáveis referentes ao chefe das famílias, demográficas e
localização do domicílio. Nessa abordagem multidimensional é possível
verificar as diversas relações causais e mecanismos de correlação entre
as variáveis que “explicam” como a pobreza de fato ocorre. Os resultados
permitem afirmar que os dados confirmam a teoria a priori nos dois anos
ao afirmar que os chefes de domicílios do sexo masculino têm a maior
possibilidade de viverem junto com cônjuge, que por sua vez, impactam
positivamente no aumento da renda dessa família; domicílios situados na
área urbana possuem maior conforto no lar e maior saneamento básico e,
esses estão correlacionados com domicílios com maior renda. Logo, as
características que impactam positivamente na renda domiciliar são o sexo
masculino, melhor conforto do lar, presença de cônjuge e localização na área
urbana. Por outro lado, domicílios com maior razão de dependência são mais
pobres. Assim, os fatores com maior impacto no aumento da renda domiciliar
são similares no período analisado.
Conclui-se que o rendimento é um componente importante para o
EVIDÊNCIAS SOBRE A POBREZA NO BRASIL: UMA APLICAÇÃO DA MODELAGEM DE EQUAÇÕES ESTRUTURAIS:
PARTE II
131
Capítulo 10
estudo da pobreza, mas é necessário incluir outras perspectivas para um
melhor diagnóstico no combate desse problema. Feito isso, nota-se que
o perfil da pobreza está nítido e sua erradicação dependente tanto de
características inerentes da própria família, como a quantidade filhos, o
número de desempregados (ainda que essa também se relacione ao contexto
macroeconômico e suas políticas públicas) e os anos de estudos; como
depende também de fatores “exógenos”, como as políticas de transferência
de renda e disponibilidade, pelo governo, de equipamentos de saneamento
básico e outros bens públicos. Além disso, políticas públicas de melhoria no
mercado de trabalho e no ensino público contribuiriam positivamente para a
redução da pobreza no país.
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132
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EVIDÊNCIAS SOBRE A POBREZA NO BRASIL: UMA APLICAÇÃO DA MODELAGEM DE EQUAÇÕES ESTRUTURAIS:
PARTE II
133
Capítulo 10
Apêndice: Ajustamento do modelo
2004
2012
rendimento per capita
37,45
54,94
acesso à geladeira
40,18
56,13
Televisão
50,24
34,70
Iluminação
45,45
27,42
Origem
52,75
50,36
acesso à água
32,92
30,32
Banheiro
41,38
36,88
Lixo
62,55
70,03
Cônjuge
60,81
34,14
Dependente
2,03
14,78
Conforto do Lar
26,24
9,57
Saneamento Básico
64,94
72,65
Total
88,15
86,15
RMSEA
0,071
0,071
SRMR
0,048
0,052
CFI
0,951
0,949
TLI
0,932
0,928
Descrição
R² da variância
Variáveis manifestas
Variáveis latentes
Testes
Fonte: elaboração dos autores.
EVIDENCE ON POVERTY IN BRAZIL: AN APPLICATION OF STRUCTURAL
EQUATION MODELING: PART II
ABSTRACT - This study aims to analyze poverty in Brazilian families and its possible
causal relationship with the family’s own characteristics, personal aspects of the
family head and the home infrastructure. Therefore, poverty is evaluated by Structural
Equation Modeling (SEM), also little used in studies on the subject, which allows you
to test the validity of theoretical models that define the causal relations between the
variables and allows the use of unobservable variables. Therefore, the data from the
National Survey of Households in 2004 and 2012. Among the results were used, it was
found that households headed by men, with the presence of spouse, located in urban
areas, with sanitation and comfort home are positively associated with household
income per capita, making these households are proportionally lower in condition of
EVIDÊNCIAS SOBRE A POBREZA NO BRASIL: UMA APLICAÇÃO DA MODELAGEM DE EQUAÇÕES ESTRUTURAIS:
PARTE II
134
Capítulo 10
poverty, both in 2004 as in 2012. Thus, the methodology was adequate to analyze the
causal relations of the Brazilian poverty phenomenon. This communication was divided
into two parts, with the introductory and methodological aspects being presented in the
first part and the development and conclusions in the second part.
KEYWORDS: Poverty; Determinants of Poverty; Structural Equation Modeling.
EVIDÊNCIAS SOBRE A POBREZA NO BRASIL: UMA APLICAÇÃO DA MODELAGEM DE EQUAÇÕES ESTRUTURAIS:
PARTE II
135
ÍNDICE REMISSIVO
Distribuição de renda 57, 113,
123, 132
Diversidade 17, 19, 41, 79, 92,
105, 109
Doutrina peronista 49
Dramaturgia 32
A
Alemanha 30, 34
Ambiente 23-26, 28, 65, 66
Análise multidimensional 126
Argentina 49-58, 60, 61, 98, 110
Assentamentos 38-47
Atividade de trabalho 67-69
E
Efeito sonoro 26
Efeitos 9, 28, 29, 31, 35, 36, 50,
66
Emancipação 79, 83, 86, 94, 96
Equações estruturais 10, 112,
114, 121, 125
Ergonomia 62-67, 69, 71, 75
Escolaridade 10, 118, 119
Escuta 24, 25, 27, 29, 55
Especulação 40
Expressão artística 35
B
Behaviorismo 81, 89
C
Cadastro 9, 11, 38-40, 42-47
Campo do conhecimento 10, 7782, 88, 96
Ciência da informação 9, 13-18,
21
Ciência Política 10, 77-80, 88-91,
93, 97, 101
Clínica da Atividade 63, 69-73
Comunicação 20, 23, 24, 26, 53,
59, 112, 125, 139
Conservadorismo 12, 101, 108,
110
CTM 43, 47
F
Feminismo 77-79, 82-86, 88, 90,
92-99, 103, 104
Ferramenta 13, 14, 29, 31, 36, 39,
44, 46, 47, 71, 72, 94, 95, 97, 103
Ferramentas semânticas 13
Filme acústico 32
Frequência sonora 25
D
Descamisados 11, 49, 54
Desenvolvimento urbano 38, 42
Desigualdade 50, 94, 95, 105,
109, 113, 118, 122, 123, 132, 133
Determinantes 10, 95, 112, 114,
117, 125
Diálogo 20, 22, 27, 49, 79
Discurso 18, 20, 24, 32, 34, 35,
49, 51, 53, 54, 72, 74, 78-80, 94,
96, 101-105, 107-110
Discurso sonoro 32
ÍNDICE REMISSIVO
G
Gêneros profissionais 72-74
Gestão 20, 38-40, 47
H
Hörspiel 30, 31, 33-35
I
Informação 9, 11, 13-22, 26, 29,
30, 44
Informalidade urbana 9, 11, 39,
136
40
Infraestrutura 9, 10, 38, 42, 44,
112, 120, 121, 125
Interdisciplinar 19, 64, 78, 92, 96,
104, 139
Interface 9, 13-15, 18-22, 28, 139
Interlocução 79
P
Patriotismo 105, 106
Peça radiofônica 9, 11, 23, 26, 30,
33-35
Peronismo 9, 49, 53, 54, 56, 5860
Planejamento 38, 44-46, 48
Plano Real 112
PNAD 116, 123, 133
Pobreza 10, 12, 40, 49, 50, 112133
Poluição sonora 23
Previdência social 114
Processamento 14, 16, 19-22
L
Letras 19, 74, 124, 133, 139
Levantamentos 38, 42, 43
Liberalismo 79, 86, 105, 107
Liberdade 83, 84, 105-107, 109,
110, 114, 124, 131, 133
Linguagem radiofônica 9, 26
Linguística computacional 9, 11,
13-21
Lúdico 29
R
Rádio 24, 25, 27-37, 51, 52, 59,
61, 139
Radioarte 34
Radiofonia 23, 25, 28
Radionovela 49, 50
Regularização 38-48
Relações Internacionais 10, 12,
77, 78, 88, 91, 93, 98, 101, 102
Representação 13, 14, 16, 18, 20,
46, 53, 84, 97
Ruído 23, 24, 27, 29, 36
M
Mainstream 79, 81, 93
Malestream 79, 93
MEE 114, 115, 121, 128
Militância 84, 92, 96
Mixagem 33
Modelagem 10, 12, 112, 114, 122,
125, 127-129, 132
Montagem 32, 33
Moradia 39, 40, 43, 48
Moralidade 106
Música 24-28, 30-35
N
Narrativa 23, 29, 31, 32, 102, 103
Neoconservadorismo 101, 110
Neoliberal 10, 12, 101, 102, 104111
O
Organização do Conhecimento 13
Ouvido 24, 25, 27, 30, 31
ÍNDICE REMISSIVO
S
Saneamento básico 10, 112, 121,
125, 127, 128-132, 134
SIG 45
Silêncio 23, 26, 27, 29, 35, 36, 59,
91
Sociologia 19, 86
Sonoplastia 23, 27, 28
Sonoridade 26, 28
Sujeito 66, 70, 71, 73, 74, 77, 8183, 92, 107
137
T
Tarefa 63-65, 67, 68, 70-74, 119
Teoria feminista 78, 83, 84, 86,
89-91, 93, 99
Teoria política 10, 77, 85, 86, 88,
97, 98
Trabalhador 49, 50, 53-57, 62-66,
68, 70-74, 117-119, 122
Trabalho 9-11, 14, 16, 20, 21, 3136, 38, 39, 42, 49-59, 62-75, 78,
83, 84, 89-91, 97, 102-104, 109,
112, 114, 115, 117-128, 130-133,
139
Tradicionalismo 104, 106, 108
Tradução 13, 21, 30, 36, 40, 55,
58, 75, 76, 79, 81, 83-86, 99, 103,
104, 107, 108, 124, 133,
Transparência 47, 114
U
Urbanização 38, 41-43
V
Vocabulário 20
ÍNDICE REMISSIVO
138
SOBRE O ORGANIZADOR
Guilherme Wiliam Udo Santos
Doutorando em Artes no Programa de Pós-Graduação Interunidades
em Estética e História da Arte da Universidade de São Paulo (PGEHAUSP). Professor nos cursos de graduação e pós-graduação do Centro
Universitário Belas Artes de São Paulo, professor no Unicentro Drummond
e Diretor Pedagógico da ANP - Educação e Cultura. Atuou como docente no
EAD Laureate (Universidade Salvador), na Escola Nacional de Teatro e no
Colégio Anglo-Brasileiro. Foi Analista Pedagógico Sênior na Faculdade das
Américas. Mestre em Comunicação pela Universidade Paulista, Especialista
em Design Instrucional pelo SENAC-SP, Especialista em Linguística e Ensino
de Línguas pelo Centro Universitário UniSEB, Especialista em História da
Arte pelo Centro Universitário Claretiano, Especialista em Língua Portuguesa
pela Faculdade AVM, Especialista em Educação, Comunicação e Tecnologias
em Interfaces Digitais pelo Centro Universitário UniSEB, Licenciado em
Pedagogia pela Universidade Nove de Julho, Licenciado em Teatro pelo
Centro Universitário Ítalo Brasileiro, Licenciado em Letras (Português, Inglês
e Espanhol) pela Universidade Cruzeiro do Sul, Bacharel em Comunicação
Social com habilitação em Rádio e TV pelo Centro Universitário Belas Artes
de São Paulo, Ator formado pela Escola Incenna e Diretor Teatral pela SP
Escola de Teatro. Ganhador do prêmio Expocom Nacional 2010 na categoria
Audiovisual - Modalidade Programa Avulso de Áudio/Rádio com o trabalho
de conclusão de curso de sua graduação “Zumpa Audiocast”, apresentado
no XXXIII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação promovido pela
Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação. Para
contato, acesse www.guilhermeudo.com
SOBRE O ORGANIZADOR
139