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Editora Chefe Marcia A. A. Marques Coordenadora Editorial Isabela Arantes Ferreira Bibliotecária Aline Graziele Benitez Diagramação Marcos Antonio Ribeiro Pereira Arte da Capa Matheus Lacerra Imagem da Capa Freepik Revisão Os Autores O conteúdo deste livro está licenciado sob uma licença de Atribuição Creative Commons. Atribuição-Não-Comercial Não Derivativos 4.0 Internacional (CC BY-NC-ND 4.0). 2022 by Bookerfield Editora Copyright © Bookerfield Editora Copyright do Texto © 2022 Os autores Copyright da Edição © 2022 Bookerfield Editora Os autores cedem à Bookerfield Editora os direitos para esta edição Esta obra é de natureza digital (e-book). Versões impressas são permitidas, não tendo a Bookerfield Editora qualquer responsabilidade pela confecção e distribuição de exemplares físicos deste conteúdo. Todos os manuscritos da obra passaram por rigorosa avaliação cega pelos pares, baseadas em critérios científicos e imparciais, recebendo a aprovação após atender os critérios técnicos estabelecidos pelo Conselho Editorial. Todo o conteúdo do livro e de artigos individuais é de responsabilidade exclusiva de seus respectivos autores, não sendo a Bookerfield Editora responsável por quaisquer eventuais irregularidades. Situações como plágio, má conduta ética/científica ou dados e resultados fraudulentos são de responsabilidade do autor, comprometendo-se a Bookerfield Editora em investigá-las rigorosamente e tomar as ações cabíveis. O download, compartilhamento e referenciação da obra são permitidos mediante atribuição de crédito aos autores e à Editora. A comercialização desta obra é expressamente proibida. CONSELHO EDITORIAL Ciências Agrárias Afrânio Silva Madeiro Alirya Magda Santos do Vale Gomes Ana Luiza Trovo Marques de Souza André Giarola Boscarato Carlos Eugenio Fortes Teixeira Daniela Kunkel Daniele Cristina Ficanha Elson Barbosa da Silva Junior Fabiana Schiochet Fernanda Beatriz Pereira Cavalcanti Fernanda Morcatti Coura Flávio José Rodrigues Cruz Guilherme Donadel Heiriane Martins Sousa Jairton Fraga Araujo João Francisco Severo Santos Joelma Leão Buchir Kleber Fernando Pereira Maria Cristina Bueno Coelho Monyck Jeane dos Santos Lopes Pablo Daniel Freitas Bueno Renato Jaqueto Goes Ciências Biológicas Afrânio Silva Madeiro Alirya Magda Santos do Vale Gomes Ana Luiza Trovo Marques de Souza André Giarola Boscarato Carlos Eugenio Fortes Teixeira Daniela Kunkel Daniele Cristina Ficanha Elson Barbosa da Silva Junior Fabiana Schiochet Fernanda Beatriz Pereira Cavalcanti Fernanda Morcatti Coura Flávio José Rodrigues Cruz Guilherme Donadel Heiriane Martins Sousa Jairton Fraga Araujo João Francisco Severo Santos Joelma Leão Buchir Kleber Fernando Pereira Maria Cristina Bueno Coelho Monyck Jeane dos Santos Lopes Pablo Daniel Freitas Bueno Renato Jaqueto Goes Ciências da Saúde Alexandre Visconti Brick Aline Correa de Carvalho Ana Luiza Trovo Marques de Souza André de Araújo Pinto Andressa Ribeiro Contreira Bárbara de Lima Lucas Bianca Barros da Costa Carlos Vinícius Pagani Vieira Machado Débora Cristina Damasceno Deborah Margatho Ramos Gonçalves Diogo de Sousa Martins Elisângela Rodrigues Carrijo Emanuel Tenório Paulino Estélio Henrique Martin Dantas Eveline Fernandes Vale Fabiana Leticia Sbaraini Fabio José Antonio da Silva Jaqueline Rocha Borges dos Santos João Francisco Severo Santos José Aderval Aragão José Robertto Zaffalon Júnior Jovino Gentilini Junior Juliane Campos Inácio Líncon Bordignon Somensi Luciane Cristina Arantes Marcela Melo dos santos Marcello Alberton Herdt Marcelo de Oliveira Pinto Marcos Guimarães de Souza Cunha Maria Patricia Costa Villela Nara Michelle Moura Soares Paulo Celso Budri Freire Pedro Paulo Gattai Gomes Raquel Ayres Renata Oliveira de Barcelos Renato Carlos Machado Roberson Geovani Casarin Rogério Wagner da Silva Sergio Ibañez Nunes Sheila Moura Amaral Taíza Fernanda Ramalhais Vivian Victoria Vivanco Valenzuela Ciências Exatas e da Terra Andrea Sartori Jabur Antônio Carlos Ribeiro Araújo Júnior Cláudia Hitomi Watanabe Rezende Dalvani Fernandes Evandro Preuss Gerson Cruz Araujo Gisane Aparecida Michelon Henrique Mariano Costa do Amaral Henrique Pereira Oliveira d`Eça Neves Isidro ihadua João César Abreu de Oliveira Filho Lívia Sancho Manolo Cleiton Costa de Freitas Marcos Vinicius de Oliveira Peres Paulo Celso Budri Freire Sonia Tomie Tanimoto Tânia do Carmo Vagner Marques de Moura Valdecir Alves dos Santos Júnior Ciências Humanas Ana Margarida Theodoro Caminhas Ana Maria Senac Figueroa Anderson Dantas da Silva Brito Breno Henrique Ferreira Cypriano Bruno Cezar Silva Camila Bueno Grejo Camila de Vasconcelos Tabares Cássia Maria Bonifácio Dalvani Fernandes Edonilce da Rocha Barros Elisângela Rodrigues Carrijo Eulalia Fabiano João César Abreu de Oliveira Filho João Francisco Severo Santos Josael Jario Santos Lima Luciano Sérgio Ventin Bomfim Marcos Pereira dos Santos Marcos Pereira Magalhães Miguel Rodrigues Netto Rebecca Bianca de Melo Magalhães Roberson Geovani Casarin Taíza Fernanda Ramalhais Tatiane dos Santos Duarte Ciências Sociais Aplicadas Ana Margarida Theodoro Caminhas Bruno Cezar Silva Camila Augusta Alves Pereira Camila Nathalia Padula de Godoy Dandara Scarlet Sousa Gomes Bacelar Daniel Nascimento e Silva Darline Maria Santos Bulhões Denise Tanaka dos Santos Elisângela Rodrigues Carrijo Eulalia Fabiano Fabio Adriano Stürmer Kinsel Fabricio Lemos de Siqueira Mendes Gelson Mario Filho Hector Rodrigo Ribeiro Paes Ferraz Helga Midori Iwamoto Horácio Monteschio João Francisco Severo Santos Josael Jario Santos Lima Leandro Nunes Soares da Silva Lucas Rosas de Freitas Sá Barreto Miguel Rodrigues Netto Nagib Abrahão Duailibe Neto Nelson Calsavara Garcia Junior Patrícia Loureiro Abreu Alves Barbosa Renato Obikawa Kyosen Sandy Rodrigues Faidherb Silvia Helena Ribeiro Cruz Solange Kileber Stella Villela Florêncio Thiago Nery Pandolfo Veyzon Campos Muniz Ygor de Siqueira Mendes Mendonça Engenharias Alejandro Victor Hidalgo Valdivia Alex Milton Albergaria Campos Ana Carla Fernandes Gasques Andrea Sartori Jabur Arlete Barbosa dos Reis Cristhiane Michiko Passos Okawa Daniele Cristina Ficanha Diego Matheus Sanches Elaine Patricia Arantes Fernando Oliveira de Andrade Henrique Mariano Costa do Amaral Jefferson Sousa Farias Laís Roberta Galdino de Oliveira Leila Cristina Nunes Ribeiro Letícia Reis Batista Rosas Marcelo Henrique da Silva Marcelo Marques Marcos Guimarães de Souza Cunha Mileni Cristina da Silva Renata Jardim Martini Thiago Averaldo Bimestre Tiago Brandão Costa Valdecir Alves dos Santos Júnior Linguística, Letras e Artes Adriana dos Reis Silva Anderson Dantas da Silva Brito Danuzia Marjorye Santos de Araújo Jane Catia Pereira Melo Luceni Lazara da Costa Ribeiro Márcia Donizete Leite-Oliveira Maria Christina da Silva Firmino Cervera Simone Oliveira Vieira Peres Thiago Blanch Pires Vera Regiane Brescovici Nunes Multidisciplinar Alejandro Victor Hidalgo Valdivia Ana Carla Fernandes Gasques Ana Margarida Theodoro Caminhas Andrea Sartori Jabur Arlete Barbosa dos Reis Cláudia Hitomi Watanabe Rezende Cristhiane Michiko Passos Okawa Érika Alves Tavares Marques Fabricio Lemos de Siqueira Mendes Fernando Oliveira de Andrade Isidro ihadua José Amorim Marcelo Marques Estudos Científicos em Ciências Humanas Editora Chefe Coordenadora Editorial Bibliotecária Diagramação Revisão Marcia A. A. Marques Isabela Arantes Ferreira Aline Graziele Benitez Marcos Antonio Ribeiro Pereira Os Autores Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Avanços em ciências humanas e sociais [livro eletrônico] / organização Guilherme William Udo Santos. -- 1. ed. -- São Paulo : Bookerfield, 2022. PDF. ISBN 978-65-89929-41-3 1. Ciências humanas 2. Comunicação 3. Direito 4. Inovação 5. Pesquisa científica I. Santos, Guilherme William Udo. 22-121249 CDD-001.3072 Índices para catálogo sistemático: 1. Ciências humanas : Pesquisa 001.3072 Aline Graziele Benitez - Bibliotecária - CRB-1/3129 DOI 10.53268/BKF22080200 Bookerfield Editora São Paulo – Brasil Telefone: +55 (11) 98441-4444 www.bookerfield.com contato@bookerfield.com DECLARAÇÃO DOS AUTORES Os autores declaram não haver qualquer interesse comercial ou irregularidade que comprometa a integridade desta obra; declaram que participaram da elaboração e revisão da obra, atestando a confiabilidade dos dados e resultados; declaram que a obra está livre de plágio acadêmico; declaram que a publicação desta obra não fere qualquer outro contrato por eles firmados; declaram ter atendido eventuais exigências de outras partes, como instituições financiadoras, para a publicação desta obra. APRESENTAÇÃO Diversos estudos na interface entre a linguística e a ciência da informação revelam contribuições para as áreas, tais como a terminologia e a análise documentária, e problemas, mais relacionados à construção de conceitos e representação da informação. Contudo, há notadamente uma escassez na literatura acerca das relações entre linguística computacional e a ciência da informação. Por meio do primeiro capítulo foi verificado o conhecimento produzido nesse ponto de intersecção, oferecendo um panorama do que já foi realizado no contexto nacional. Quantitativamente, os resultados confirmam a pouca produção acerca do tema, porém, revelam uma concentração maior de algumas subáreas em relação a outras, apontando para possíveis pesquisas futuras. A linguagem radiofônica alemã é abordada pelo segundo capítulo, o qual considera que a riqueza da linguagem radiofônica, com as palavras, trilhas, efeitos e silêncios, é pouco aproveitada na produção de radiofonia e na produção sonora contemporânea brasileira em diferentes gêneros e formatos. Por este capítulo são apresentadas formas de valorizar o imaginário do ouvinte no que tange à criação, produção e recepção de produtos simbólicos radiofônicos, com a perspectiva de resgate da cultura da oralidade apoiados por conceitos como a Paisagem Sonora, de Murray Schafer e a peça radiofônica alemã. Pelo terceiro capítulo são abordadas a informalidade urbana e a regularização fundiária. A recorrente existência de assentamentos informais nas cidades latinas, dificulta o acesso da população ao processo de regularização, afastando a infraestrutura disponível para outros setores das cidades. Pelo presente capítulo são apresentados estudos recentes acerca da questão social da informalidade e possibilidades para sua resolução, passando pela configuração de um cadastro territorial e de políticas públicas específicas. Por meio do quarto capítulo é mostrada a vida de Maria Eva Duarte, desde a infância no interior da Argentina, até sua adolescência e vida adulta quando se mudou para a capital Buenos Aires, para atuar como modelo e depois como atriz de radionovelas, onde ganhou destaque, trabalhando na principal companhia teatral do país. A partir de seu casamento com Juan Perón, coronel do exército argentino, passou a se dedicar à política e tornando-se primeira-dama, criou a fundação Eva Perón, onde dialogava com os mais pobres, mulheres e sindicatos, sendo crucial para manter o peronismo no poder. Pelo quinto capítulo são aprtesentadas as relações entre o trabalho prescrito e o realizado à luz do conceito de real da atividade do trabalho. São investigadas quais são as ações prescritas e quais são realizadas antes e durante uma atividade de trabalho. Os resultados mostram que o trabalhador ao realizar o trabalho prescrito, realizado e o “real da atividade”, se autoregula, se transformando e mudando seu próprio coletivo de trabalho. E os recursos utilizados por ele estão intimamente ligados ao seu trabalho prescrito, realizado e ao real da atividade. Os capítulos seis e sete se complementam, e tratam de ciência política, no contexto das contribuições das perspectivas críticas feministas diante das discussões teóricas sobre o conhecimento político. Pelo capítulo seis são tratados os aspectos introdutórios, a discussão sobre o campo do conhecimento político e alguns aspectos das contribuições críticas feministas. Na última parte são abordadas as correntes e perspectivas relacionadas aos vários feminismos, as dimensões da ciência política, relações internacionais e teoria política e as considerações finais, ressaltando o que compreendemos como “teoria política feminista”. Pelo oitavo capítulo se propõe a problematizar os debates de gênero no campo das relações internacionais (RIs) e ciência política (CP), a partir da perspectiva pós-estruturalista como um instrumental teórico e conceitual propício para análises feministas e críticas. O estudo apresenta uma breve contribuição da problematização do paradigma neoliberal e como este se reflete e se comporta no atual cenário político e socioeconômico de casos referentes ao neoconservadorismo político e religioso. Os capítulos nove e dez se complementam. Pelos capítulos é analisada a pobreza nas famílias brasileiras e suas relações causais com as características da própria família, aspectos pessoais do chefe da família e com a infraestrutura do domicílio. Para tanto, a pobreza é avaliada pela Modelagem de Equações Estruturais (MEE). Entre os resultados, verificouse que os domicílios chefiados por homem, com a presença de cônjuge, localizados na área urbana, com saneamento básico e conforto lar estão associados com o maior rendimento domiciliar per capita, fazendo com que estejam, proporcionalmente, em menor condição de pobreza, tanto em 2004 quanto em 2012. Por meio do capítulo nove são apresentados os aspectos introdutórios e metodológicos. Pelo capítulo dez é realizado o desenvolvimento e as conclusões do estudo. Desejo uma excelente leitura! SUMÁRIO CAPÍTULO 1 RELAÇÕES ENTRE A LINGUÍSTICA COMPUTACIONAL E A CIÊNCIA DA INFORMAÇÃO: UM PANORAMA .................................................... 13 Thiago Blanch Pires DOI: 10.53268/BKF22080201 CAPÍTULO 2 A IMERSÃO DO OUVINTE ATRAVÉS DA PAISAGEM SONORA E A PEÇA RADIOFÔNICA ALEMÃ ............................................................ 23 Guilherme William Udo Santos DOI: 10.53268/BKF22080202 CAPÍTULO 3 CONSIDERAÇÕES SOBRE O CADASTRO TERRITORIAL E A INFORMALIDADE URBANA .................................................................. 38 Josiane Nascimento Andrade DOI: 10.53268/BKF22080203 CAPÍTULO 4 EVA, A MÃE DOS DESCAMISADOS ..................................................... 49 Renata Alves Melki De Souza DOI: 10.53268/BKF22080204 CAPÍTULO 5 O TRABALHO PRESCRITO E O REALIZADO À LUZ DO REAL DA ATIVIDADE ............................................................................................. 62 Márcia Donizete Leite Oliveira DOI: 10.53268/BKF22080205 CAPÍTULO 6 O CAMPO TEÓRICO DO CONHECIMENTO POLÍTICO E AS CONTRIBUIÇÕES CRÍTICAS FEMINISTAS: PARTE I.......................... 77 Breno Henrique Ferreira Cypriano Lorena Ávila Soares Fonseca DOI: 10.53268/BKF22080206 CAPÍTULO 7 O CAMPO TEÓRICO DO CONHECIMENTO POLÍTICO E AS CONTRIBUIÇÕES CRÍTICAS FEMINISTAS: PARTE II......................... 88 Breno Henrique Ferreira Cypriano Lorena Ávila Soares Fonseca DOI: 10.53268/BKF22080207 CAPÍTULO 8 AS INTERSEÇÕES DAS DIMENSÕES DE GÊNERO, NEOLIBERALISMO E CONSERVADORISMO NAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS ............................................................................... 101 Lorena Ávila Soares Fonseca Breno Henrique Ferreira Cypriano DOI: 10.53268/BKF22080208 CAPÍTULO 9 EVIDÊNCIAS SOBRE A POBREZA NO BRASIL: UMA APLICAÇÃO DA MODELAGEM DE EQUAÇÕES ESTRUTURAIS: PARTE I ................ 112 Leandro Nunes Soares da Silva Marina Silva da Cunha DOI: 10.53268/BKF22080209 CAPÍTULO 10 EVIDÊNCIAS SOBRE A POBREZA NO BRASIL: UMA APLICAÇÃO DA MODELAGEM DE EQUAÇÕES ESTRUTURAIS: PARTE II ............... 125 Leandro Nunes Soares da Silva Marina Silva da Cunha DOI: 10.53268/BKF22080210 ÍNDICE REMISSIVO .................................................................................. 136 SOBRE O ORGANIZADOR ....................................................................... 139 CAPÍTULO 1 RELAÇÕES ENTRE A LINGUÍSTICA COMPUTACIONAL E A CIÊNCIA DA INFORMAÇÃO: UM PANORAMA Thiago Blanch Pires lattes.cnpq.br/9911777987987166 Universidade de Brasília RESUMO – Diversos estudos na interface entre a linguística e a ciência da informação revelam contribuições para as áreas, tais como a terminologia e a análise documentária, e problemas, mais relacionados à construção de conceitos e representação da informação. Contudo, há notadamente uma escassez na literatura acerca das relações entre linguística computacional e a ciência da informação. Assim, este estudo verificou o conhecimento produzido nesse ponto de intersecção, oferecendo um panorama do que já foi realizado no contexto nacional. Quantitativamente, os resultados confirmam a pouca produção acerca do tema, porém, revelam uma concentração maior de algumas subáreas em relação a outras, apontando para possíveis pesquisas futuras. PALAVRAS-CHAVE: Linguística; Linguística computacional; Ciência da informação; Tradução automática. 1. INTRODUÇÃO Uma das áreas que tem se desenvolvido na Ciência da Informação é a Organização do Conhecimento. Hjørland (2007) argumenta que a Organização do Conhecimento (OC) deve ser considerada dentro de uma perspectiva mais ampla – isto é, como o conhecimento é organizado socialmente e como a realidade também é organizada; e a partir de uma perspectiva mais específica, o autor argumenta que a OC na Ciência da Informação envolve atividades tais como descrição, indexação e classificação de documento (MacLaine e Mitchell, 2008, p. 80). Ambas as perspectivas podem funcionar juntas quando se pensa em sistemas de organização do conhecimento (KOS, Hjørland, 2007), definidas como um termo mais geral para “as ferramentas que apresentam a interpretação de estruturas do conhecimento”. De acordo com o autor, o mesmo termo corresponde às ferramentas semânticas tais como os thesauri, ontologias, dicionários que produzem “informações semânticas”, isto é, informações sobre o significado das palavras e outros símbolos tais como as relações entre símbolos e RELAÇÕES ENTRE A LINGUÍSTICA COMPUTACIONAL E A CIÊNCIA DA INFORMAÇÃO: UM PANORAMA 13 Capítulo 1 conceitos (Hjørland, 2007). Outro exemplo de ferramenta semântica é o processo automatizado da tradução. Desde o começo da globalização da revolução digital nos anos cinquenta, ambas as discussões sobre o estabelecimento da Ciência da Informação enquanto disciplina acadêmica e a pesquisa em tradução automática (enquanto um sistema de aplicação, não uma disciplina acadêmica) começaram a se tornar uma realidade. De acordo com a Série Branca da METANET (Aliança Tecnológica Europeia Multilíngue) sobre a língua portuguesa na era digital (Branco et al, 2012) há um fraco apoio/recursos para a aplicação de tradução automática (TA) envolvendo a língua portuguesa (p. 72). E um dos desafios principais nessa área de aplicação é a “adaptação de recursos linguísticos para um domínio ou área específica de uso” (p.25). A revista, que neste tópico trata do processamento da língua portuguesa, aponta que os estudos sobre a tradução automática no Brasil tem sido mais desenvolvidos em alguns núcleos de pesquisa mais concentrados em São Paulo, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul, com uma abordagem mais processual, isto é, do processamento da língua natural, sendo assim iluminados pelas áreas mais próximas a aplicações matemáticas e computacionais, tais como, Ciências da Computação e Estatística, e pouco pela representação e formalização da língua para o processamento, ou seja, da Linguística Computacional, de uma perspectiva mais próxima da Linguística e da Ciência da Informação. Diversos estudos na interface entre a Linguística e a Ciência da Informação já foram realizados e divulgados na literatura da Ciência da Informação, revelando os pontos de contribuição para a CI como a Terminologia e a Análise Documentária, e problemas mais relacionados à construção de conceitos e representação da informação (vide Mendonça, 2000; Almeida, 2011; Mollica, 2012). Assim, o presente estudo busca identificar as relações da Linguística Computacional e Ciência da Informação dentro da literatura nacional da última (CI). Dessa forma, será possível verificar o conhecimento produzido nessa interface, oferecendo um panorama no contexto nacional do que já foi pesquisado e publicado. Sobretudo, este trabalho busca a análise de possibilidades futuras, em especial com o olhar da CI para a tradução automática enquanto ferramenta semântica, além de outras aplicações da linguística computacional. Para tanto, o presente estudo estrutura-se primeiramente com a descrição da metodologia (baseada na metodologia de Mendonça, 2000), seguida da análise quantitativa, e considerações finais. RELAÇÕES ENTRE A LINGUÍSTICA COMPUTACIONAL E A CIÊNCIA DA INFORMAÇÃO: UM PANORAMA 14 Capítulo 1 2. METODOLOGIA Para identificar as relações entre a linguística computacional e a CI considerou-se apenas as publicações mais expressivas da área que pudessem discutir a interface das duas áreas. A grande parte das publicações são artigos de Qualis A1, A2, e B1 da área das Ciências Sociais Aplicadas no contexto nacional (De acordo com o Qualis/CAPES 2013). O levantamento dos dados foi realizado a partir dos seguintes periódicos: 1. Brazilian Journal of Information Science – Unesp/Marília 2. Transinformação – PUC-Campinas 3. Ciência da Informação - IBICT 4. Perspectivas em Ciência da Informação - UFMG 5. Incid: Ciência da informação, Informação, Documentação – USP-Ribeirão Preto 6. Informação & Sociedade - UFPB 7. Datagramazero – Rio de Janeiro Para o presente estudo, reconhece-se que há outros periódicos relevantes para o levantamento de produção nacional no contexto da LC e CI. Contudo os periódicos acima citados são suficientes para se obter uma amostra representativa da produção de conhecimento pela temática da LC e CI. O critério utilizado para selecionar quais artigos se configuravam na interface da LC e CI foi a análise de título e do resumo, a partir da pesquisa da palavra-chave “linguística computacional” no site do periódico. Este mesmo critério de seleção de palavra-chave de busca foi realizado com base nos resultados encontrados, considerados satisfatórios para uma amostra representativa. De fato, outros artigos relevantes do ponto de vista da temática aqui trabalhada, ficaram de fora por não apresentarem as palavras linguística computacional no título ou resumo do texto (mais detalhes na próxima seção). Depois, realizar as buscas nos periódicos selecionados, observou-se que de forma geral houve um número relativamente baixo de resultados a partir da busca contendo a palavra-chave “linguística computacional”. Seguindo o padrão dos resultados encontrados para a palavra “linguística” no estudo de Mendonça (2000), o maior número de resultados contendo a palavra-chave “linguística computacional” foi da revista Ciência da Informação do IBICT, e as revistas Brazilian Journal of Information Science, Transinformação, e Datagramazero não retornaram resultados. Assim, o que se fez foi reunir os resultados de todas as revistas e tabulá-los para análise quantitativa. Posteriormente cruzou-se a análise RELAÇÕES ENTRE A LINGUÍSTICA COMPUTACIONAL E A CIÊNCIA DA INFORMAÇÃO: UM PANORAMA 15 Capítulo 1 quantitativa com uma análise mais qualitativa, no sentido de refletir acerca dos números e conteúdos para obter uma identificação do contexto de relações entre a LC e a CI no Brasil. 2.1. Análise Quantitativa Uma vez realizada a busca pela palavra-chave nos periódicos supracitados, chegou-se aos seguintes resultados: i. Brazilian Journal of Information Science – 0 resultado ii. Transinformação – 0 resultado iii. Ciência da Informação – 8 resultados iv. Perspectivas em Ciência da Informação – 1 resultado v. Incid: Ciência da informação, Informação, Documentação – 4 resultados vi. Informação & Sociedade – 1 resultado vii. Datagramazero – 0 resultado A partir da listagem acima, percebe-se um maior número de artigos contendo a palavra-chave “linguística computacional” no periódico do IBICT, Ciência da Informação, seguido pela revista Incid, com metade dos resultados da anterior, finalizando a contagem bastante escassa das revistas Perspectivas em Ciência da Informação e Informação & Sociedade, com 1 (hum) resultado apenas cada. Os demais periódicos não apresentaram resultados a partir da busca pela palavra-chave “linguística computacional”. Assim, totalizouse 14 artigos de maior relevância para a ciência da informação, contendo “linguística computacional” no título ou resumo a partir de busca na base de dados do periódico. Todavia, esses números não são absolutos. Eles devem ser interpretados com uma orientação para seus contextos de produção. Assim por exemplo, observamos um maior número na revista Ciência da Informação, pois além, da temática linguística presente em grande parte dos trabalhos (cf. Mendonça, 2000), a base de dados é vasta (desde 1972 até 2014), e a publicação é quadrimestral (ou seja, três vezes ao ano). Outro aspecto importante é da representação da palavra-chave “linguística computacional” com conceitos sinônimos. Diversos textos, além desse quantitativo discutem ou citam a linguística computacional com outras palavras, como por exemplo, o artigo de Diana Santos, uma sumidade na área da linguística computacional da língua portuguesa, para o periódico Datagramazero, “Um centro de recursos para o processamento computacional do português” (2002). Assim, embora não haja a expressão “linguística computacional” no título, trata-se do mesmo tema. RELAÇÕES ENTRE A LINGUÍSTICA COMPUTACIONAL E A CIÊNCIA DA INFORMAÇÃO: UM PANORAMA 16 Capítulo 1 Contudo, por uma questão de exequibilidade, não fosse possível a coleta de uma amostra a partir da palavra-chave “linguística computacional”, a presente investigação ampliaria o filtro de seleção da pesquisa para “linguística”, “computacional”, “processamento”, “língua natural”, e assim por diante. Mas isso não foi necessário. A amostra é suficiente para demonstrar que a menção à área é de fato ainda pouco expressiva na literatura da ciência da informação no Brasil. Porém, apresenta uma certa trajetória e tendência ao longo do tempo. Por exemplo a revista Ciência da Informação, editada pelo IBICT, em produção desde 1972 até o último número deste ano, foi possível encontrar artigos desde 1983 até 2009 mencionando a área da LC. Os quadros a seguir demonstram os periódicos, datas, títulos, autores e instituições para uma melhor visualização dos dados. Quadros 1: Linguística computacional na revista Ciência da Informação Periódico Data Título Autor Instituição 1. Ciência da Informação 2009 A pragmática no contexto da identificação de autoria de textos Rodrigues, J.; Caricatti, A. UnB; UnB 2. Ciência da Informação 2009 O poder cognitivo das redes neurais artificiais modelo na recuperação da informação Capuano, E. UnB 3. Ciência da Informação 2007 A diversidade lingüística da Internet como reação contrahegemônica das tendências de centralização do império Guesser, A. Universidade de Coimbra 4. Ciência da Informação 2006 Aplicación de transductores de estado-finito a los procesos de unificación de términos Galvez, C. Universidade de Granada 5. Ciência da Informação 2004 Novas fronteiras tecnológicas das ações de informação: questões e abordagens González de Gomez, M. Ibict-MCT 6. Ciência da Informação 1995 O léxico na economia da língua Correia, M. Universidade de Lisboa 7. Ciência da Informação 1991 Indexação automática de textos: uma abordagem otimizada e simples Robredo, J. UnB 8. Ciência da Informação 1983 Perspectivas na contribuição da linguística e de áreas afins à ciência da informação Baranow, U. UnB RELAÇÕES ENTRE A LINGUÍSTICA COMPUTACIONAL E A CIÊNCIA DA INFORMAÇÃO: UM PANORAMA 17 Capítulo 1 Quadro 2: Linguística computacional na revista Perspectivas em Ciência da Informação Periódico Data Perspectivas em Ciência da 2005 Informação Título Autor SiRILiCO uma proposta para um sistema de recuperação de Informação baseado em teorias Duque, C. D. da linguística computacional e ontologia Instituição UFMG Quadro 3: Linguística computacional na revista Incid: Ciência da Informação, Informação, Documentação Periódico Autor Instituição 1. Incid: Ciência Luciano Floridi e os problemas da informação, 2013 filosóficos da informação: da Informação, representação à modelização Documentação Data Título González de Gomez, M. UFF 2. Parâmetros teóricos para elaboração de instrumentos Incid: Ciência pragmáticos de representação da informação, 2010 e organização da informação na Informação, Web: considerações preliminares Documentação sobre uma possível proposta metodológica Gracioso, L. UFSCar 3. Incid: Ciência Deleuze e Guattari e a Psicologia da informação, 2010 Cognitiva, IA e IHC: investigando Informação, possíveis conexões e diferenças Documentação Day, R. Indiana University 4. Incid: Ciência A análise do discurso e o campo da informação, informacional: usos atuais e 2010 alcance epistemológico: uma Informação, atualização Documentação Freitas, L. UFF Quadro 4: Linguística computacional na revista Informação e Sociedade Periódico Data Informação & Sociedade 2008 Título INDEXAÇÃO AUTOMÁTICA E SEMÂNTICA: estudo da análise do conteúdo de teses e dissertações Autor Borges,G.; Maculan, B.; Lima, G. Instituição UFMG; UFMG; UFMG. Em relação a trajetória e tendência, podemos perceber que a menção à LC na CI ganhou mais destaque na última década: a grande maioria dos artigos das revistas analisadas foram publicados a partir de 2004. A pequena parcela de artigos datados do século passado já aponta para essa interface desde 1983, passando por um longo intervalo até emergir novamente o tema na década de noventa. Sobre os títulos dos artigos dos periódicos, pode-se observar a configuração de determinadas categorias ligadas à linguística e mais RELAÇÕES ENTRE A LINGUÍSTICA COMPUTACIONAL E A CIÊNCIA DA INFORMAÇÃO: UM PANORAMA 18 Capítulo 1 especificamente à linguística computacional. E em um recorte mais diacrônico, nota-se uma tendência de aprofundamento da interação entre áreas mais específicas da linguística e da CI a partir do artigo de Baranow (1983) para a temática mais próxima à linguística computacional ou o processamento de língua natural e a CI (tais como a indexação automática, recuperação da informação, pragmática, e análise de conteúdo). Em relação aos autores, verificamos que há uma variedade de autores de diversas áreas e instituições que contribuem para a pesquisa em ciência da informação. Portanto, fica claro a natureza interdisciplinar da área. Grande parte dos autores são da área da ciência da informação, porém, há alguns autores da área de letras/ Linguística, e alguns poucos da ciência da computação, e sociologia. Quanto às instituições podemos ver núcleos que trabalham nessa interface concentrados na UnB em sua maioria, depois na UFF, e UFMG, e, fora do Brasil, na península ibérica, especialmente Portugal, as faculdades de Coimbra e Lisboa. Assim, esta seção traçou um esboço quantitativo-panorâmico de uma amostra representativa do conhecimento produzido no Brasil acerca das relações entre a linguística computacional e a ciência da informação. A próxima seção tratará de cruzar esses dados com os conteúdos dos artigos, buscando obter uma configuração das principais temáticas que emergem no contexto brasileiro. 2.2. Análise qualitativa Os artigos foram analisados e foi observado que há diferentes tipos de abordagem acerca das relações entre a linguística computacional e a ciência da informação. Alguns, inclusive, se distanciando mais da noção “intrínseca” de processamento ou formalização da língua natural no computador. O item 3 do Quadro 1 apresenta tem uma visão mais sociológica (também por conta de sua formação na sociologia) da diversidade linguística presente na Internet, e não apresenta o termo linguística computacional no texto. O item 1 do quadro 1, embora traga a palavra-chave “linguística computacional” no resumo, não há qualquer relação direta no texto nesse sentido, mas sim uma ênfase de duas categorias linguísticas para a identificação de estilo de autoria. Já o item 8 dá mais ênfase ao aspecto linguístico em sua interface com a ciência da informação. Contudo, neste artigo, Baranow (1983) apresenta a linguística computacional como uma subárea especializada para a formação do cientista da informação. O autor (ibid.) propõe uma subseção inteiramente dedicada à contribuição da CI para a formação do cientista da informação. Baranow (1983, p. 31-31) identifica três áreas de atuação nesse sentido: a) processamento automático de texto; b) recuperação automática da informação; c) sistemas automáticos de pergunta-resposta (inteligência artificial). RELAÇÕES ENTRE A LINGUÍSTICA COMPUTACIONAL E A CIÊNCIA DA INFORMAÇÃO: UM PANORAMA 19 Capítulo 1 Muito embora o desenvolvimento tecnológico tenha avançado substancialmente nos últimos tempos, observa-se também o desenvolvimento dessas áreas nos artigos mais recentes. Assim, no quadro 1, item 2, percebemos a combinação de duas áreas observadas por Baranow (1983), quais sejam da recuperação da informação e inteligência artificial. Já no item 4, Galvez (2006) aprofunda o que seria a área a) de Baranow (1983), processamento automático de texto, em seu trabalho de avaliação de lematizadores (programas de recuperação de informação que reduzem variações de termos semanticamente equivalentes) na unificação de termos. O item 6 do quadro 1 trabalha em um sentido mais aplicado da linguística computacional como o item 4, porém prioriza a gestão e geração de significado lexical, por meio da formalização e representação linguística (em oposição a modelos matemáticos ou estatísticos). O item 5 discute a linguística computacional de forma parecida a Baranow (1983), em uma perspectiva mais teórica, porém de forma mais ampla (agregando uma perspectiva mais filosófica e social nessa interface) ampliando a relação de linguagem, informação e comunicação em duas grandes linhas, nas quais, em uma das linhas a linguística computacional e processamento de língua natural são alocadas, enquanto concepção da “linguagem como dimensão dos dispositivos de tratamento da informação” (GONZALEZ DE GOMEZ, 2004, p. 57). Por fim, o item 7 trabalha com a abordagem da LC para resolver problema de palavras vazias na indexação automática de um sistema de recuperação de informação. Podemos perceber essa mesma configuração nos outros artigos. No quadro 3, por exemplo, no item 1 há uma repetição de autora (GONZALEZ DE GOMEZ, 2004, 2013) reforçando a linha filosófica no tratamento automático da informação. O item 2 do quadro 3 cruza diversas características de pesquisa na interface, na utilização de vocabulário controlado e folksonomias (indexação colaborativa na web) para recuperação da informação. Mas com o viés da utilização da interface para propor uma metodologia, de forma similar ao item do quadro 2 que utiliza a área da linguística computacional juntamente com a ontologia como abordagens teórico-metodológicas para criar um sistema de recuperação de informação, chamado de SIRILICO (DUQUE, 2005) (expansão das três áreas citadas por Baranow em 1983). O item 3 do quadro 3 relaciona a perspectiva cognitiva da inteligência artificial e interação homem-máquina como o item 2 do quadro 1. E o item 4 do quadro 3 fica mais longe do núcleo computacional da interface analisada, permanecendo mais próximo do item 1 do quadro 1 por tratar com profundidade uma área da linguística, qual seja da análise do discurso, e seus pontos de intersecção com a linguagem, informação e comunicação proposta por Gonzalez de Gomez (2004). Por fim, o quadro 4 aponta para a indexação automática em diálogo com problemáticas semânticas, conforme, por exemplo, os itens 7 e 8 do quadro 1. RELAÇÕES ENTRE A LINGUÍSTICA COMPUTACIONAL E A CIÊNCIA DA INFORMAÇÃO: UM PANORAMA 20 Capítulo 1 3. CONSIDERAÇÕES FINAIS O presente estudo identificou as relações da linguística computacional e ciência da informação dentro da literatura nacional da última (CI). O levantamento bibliográfico de sete periódicos de relevância para a área resulta em quatorze artigos a partir da pesquisa da palavra-chave “linguística computacional”. Observou-se que desses catorze artigos, uma pequena parte não tratava de fato da linguística computacional. O artigo que obteve mais resultados abordando a interface da LC e CI foi a Ciência da Informação. Verificou-se uma tendência sobre o assunto a partir da década passada, e boa parte dos estudos tem sido produzidos em Brasília, na UFMG, e UFF. Por último, na análise qualitativa foi possível notar temas em comum, mesmo em diferentes revistas, ressaltando áreas de intersecção como a recuperação da informação, o processamento automático de texto, e inteligência artificial. Também foi possível enxergar linhas mais teóricas, utilizando uma perspectiva mais filosófica e sociológica para se debruçar sobre o tratamento automático da língua em sua interação com a informação, e outras mais aplicadas, por exemplo propondo a linguística computacional como base teórico-metodológica para o desenvolvimento de um sistema de recuperação da informação (Duque, 2005). Por fim, observou-se um grande interesse pelas áreas de aplicação de busca, e raras menções sobre a aplicação de tradução automática. Assim, este trabalho contribui para essa interface no intuito de apresentar um panorama de relações possíveis de expansão em nível teórico e metodológico, visando abrir novas avenidas para se olhar e desenvolver pesquisa no contexto brasileiro. REFERÊNCIAS ALMEIDA, Carlos Cândido de. Elementos de linguística e semiologia na organização da informação. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2011. BARANOW, Ulf Gregor. Perspectivas na contribuição da lingüística e de áreas afins a ciência da informação. Ciência da Informação, Brasília, v. 12, n. 1, p. 23–35, 1983. BRANCO et al. The Portuguese Language in the Digital Age. Meta net White paper series. Springer. Disponível em http://www.meta-net.eu/whitepapers/e-book/ portuguese.pdf 2012. DUQUE, C. G.. SiRILiCO uma proposta para um sistema de recuperação de Informação baseado em teorias da lingüística computacional e ontologia. In: Perspectivas em Ciência da Informação, 2005. Perspectivas em Ciência da Informação. Belo Horizonte. v. 10. p. 253-258. RELAÇÕES ENTRE A LINGUÍSTICA COMPUTACIONAL E A CIÊNCIA DA INFORMAÇÃO: UM PANORAMA 21 Capítulo 1 HJØRLAND,B.Knowledgeorganizationsystems(KOS). 2007. Disponível em: http:// www.iva.dk/bh/lifeboat_ko/concepts/knowledge_organization.htm MCILWAINE, C.; MITCHELL, J. S. Preface to Special Issue. What is Knowledge Organization. Knowledge Organization, 35(3/2), 79-81. Disponível em http://nkos.slis. kent.edu/KO_35_2-3_ToC_Preface.pdf . 2008 MENDONÇA, E. S. A Lingüística e a Ciência da Informação: estudos de uma interseção. Ciência da Informação, Brasília, v.29, n.3, p.50-70, 2000. MOLLICA, M. C.; GONÇALEZ, M. Linguística e Ciência da Informação: diálogos possíveis. Curitiba: APPRIS, 2012. SANTOS, D. Um Centro de Recursos para o Processamento Computacional do português. DataGramaZero. v.3 n.1 fev/2002. RELATIONS BETWEEN COMPUTATIONAL LINGUISTICS AND INFORMATION SCIENCE: AN OVERVIEW ABSTRACT – Several studies on the interface between linguistics and information science reveal contribution to the areas involved, such as terminology and documentary analysis, and problems related to the construction of concepts and representation of information. However, there is notably few works in the literature regarding the relation between computational linguistics and information science. Thus, this study assessed the knowledge produced in this interface, offering an overview of what has been accomplished in the Brazilian context. Quantitatively, the results confirm the lack of production on the subject; however, reveal a concentration of sub-areas studied in relation to others, pointing to possible further research. KEYWORDS: Linguistics; Computational linguistics; Information science; Machine translation. RELAÇÕES ENTRE A LINGUÍSTICA COMPUTACIONAL E A CIÊNCIA DA INFORMAÇÃO: UM PANORAMA 22 CAPÍTULO 2 A IMERSÃO DO OUVINTE ATRAVÉS DA PAISAGEM SONORA E A PEÇA RADIOFÔNICA ALEMÃ Guilherme William Udo Santos lattes.cnpq.br/5651116990628162 RESUMO - A riqueza da linguagem radiofônica, com as palavras, trilhas, efeitos e silêncios, é pouco aproveitada na produção de radiofonia e na produção sonora contemporânea brasileira em diferentes gêneros e formatos. Buscamos, então, apresentar formas de valorizar o imaginário do ouvinte no que tange à criação, produção e recepção de produtos simbólicos radiofônicos, com a perspectiva de resgate da cultura da oralidade apoiados por conceitos como a Paisagem Sonora, de Murray Schafer e a peça radiofônica alemã. PALAVRAS-CHAVE: Comunicação; Linguagem Radiofônica; Narrativa; Paisagem Sonora; Rádio 1. A PAISAGEM SONORA SEGUNDO MURRAY SCHAFER No final da década de 1960, surge um movimento com o intuito de analisar o ambiente acústico como um todo, era o início do The World Soundscape Project. O projeto foi estabelecido na Simon Frayser University pelo pesquisador R. Murray Schafer, que mais tarde postularia a definição de “paisagem sonora” (em inglês soundscape, um neologismo que faz referência a landscape, “paisagem”). Para Schafer (2011), a paisagem sonora é o ambiente sonoro, ou seja, qualquer parte do ambiente e seus sons que possam ser um campo de estudos. Podemos então associar a paisagem sonora ao universo constituinte da sonoplastia do mundo, portanto, o termo engloba som, silêncio, ruído e todas as variantes desses elementos. Um simples olhar para o universo sonoro no qual fomos imersos no século XX aponta para dois aspectos: a presença do ruído, fruto da revolução industrial; e a poluição sonora, que ocorre justamente com a presença exacerbada do primeiro elemento. Não queremos aqui dizer que o silêncio desapareceu neste momento, isso já havia ocorrido há tempos, pois conforme novas tecnologias que facilitavam a vida do homem surgiam, mais barulhento ficava o mundo, assim “o número de decibéis evolui na mesma medida em que surgem novas engenhocas facilitador as da vida cotidiana. A carroça traz consigo muito mais ruído do que o cavaleiro medieval” (JOSÉ, 2006, p.2). A IMERSÃO DO OUVINTE ATRAVÉS DA PAISAGEM SONORA E A PEÇA RADIOFÔNICA ALEMÃ 23 Capítulo 2 Schafer aponta que ao longo dos anos muitos ruídos aportaram nas paisagens sonoras e, por isso, ela se torna cada vez mais barulhenta. O aumento desses ruídos influencia totalmente o modo de ouvir, fato que aponta a urgente necessidade de um novo senso de audição, já que a transformação da paisagem sonora da qualidade de hi-fi para lo-fi — nos termos de Schafer — tira o foco de escuta do homem. Explicamos, em um ambiente hi-fi temos uma alta fidelidade sonora, ou seja: É aquela em que os sons separados podem ser claramente ouvidos em razão do baixo nível de ruído ambiental. Em geral, o campo é mais hi-fi que a cidade, a noite mais que o dia, os tempos antigos mais que os modernos. Na paisagem sonora hi-fi, os sons se sobrepõem menos frequentemente. (SCHAFER, 2011, p.71) Já uma paisagem sonora lo-fi o som acaba sendo mascarado por outros ruídos, perde-se a compreensão individual e pode-se perceber somente o todo. Nossos ouvidos estão acostumados com essa percepção generalizada e, por esse motivo, Schafer propõe uma limpeza dos ouvidos, nos fazendo voltar a escutar, o famoso “ouvido pensante”, defendido pelo pesquisador. Essa limpeza tem um pressuposto simples: o de que cabe a cada um de nós identificar os sons que compõem as paisagens sonoras do mundo contemporâneo. Tudo isso faz com que o homem acabe perdendo sua escuta focada, tornando o seu discurso algo totalmente chapado, com simples palavras soltas que até comunicam, mas não sensibilizam o ouvinte. Schafer, em seus escritos, propõe que façamos uma limpeza dos ouvidos, passando a “escutar” através de um “ouvindo pensante”. Ouvir é um ato passivo, automático, enquanto escutar implica uma atenção desperta, ativa, que fórmula perguntas e sugere respostas, que se antecipa à ação futura que talvez vá incrementar a audição. Ouvir não põe em jogo mais do que os canais do ouvido. Escutar engloba todo o circuito do pensamento. (BELAU apud FERRARETTO, 2001, p.28) escutar: Assim, Moles considera que existem quatro formas distintas de Escuta ambiental: Tudo o que o ouvinte busca no meio de comunicação rádio É um fundo musical ou de palavras. Escuta em si: O ouvinte presta atenção marginal interrompida pelo desenvolvimento de uma atividade A IMERSÃO DO OUVINTE ATRAVÉS DA PAISAGEM SONORA E A PEÇA RADIOFÔNICA ALEMÃ 24 Capítulo 2 paralela. Atenção Concentrada: Supõe um aumento no volume de som do receptor, superando os sons do ambiente e permitindo a concentração do ouvinte na mensagem radiofônica. Escuta por Seleção: O ouvinte sintoniza intencionalmente um determinado programa e a ele dedica sua atenção. (MOLES apud FERRARETTO, 2001, p.28) E Ferraretto complementa: As formas de recepção definidas por Moles não são permanentes ao longo da sintonia em uma determinada programação. Em proporção variável, chegam a se interpenetrar. Por exemplo, uma pessoa liga o rádio em uma emissora determinada julgando ser aquela programação o melhor pano de fundo para a realização das suas atividades. Misturam-se aí, de certo modo, duas formas de recepção distintas por ambiente e por seleção. Imagine-se, de outra parte, uma situação em que o ouvinte busca um fundo sonoro para acompanhar suas atividades (ambiente). As canções vão se sucedendo e, em dado instante, uma lhe desperta uma atenção marginal (escuta em si). Na sequência, uma notícia muito importante faz com que esta pessoa focalize seu interesse na transmissão que, momentaneamente, interrompe a programação musical (atenção concentrada). (FERRARETTO, 2001, p.29) Enquanto Schafer pontua a vulnerabilidade do nosso ouvido, que se encontra sempre aberto e suscetível a qualquer som que esteja dentro da frequência sonora audível pelos humanos. Não selecionamos que som ouvimos, apesar de podermos realizar uma escuta seletiva e pensada. Ao contrário de outros órgãos dos sentidos, os ouvidos são expostos e vulneráveis. Os olhos podem ser fechados, se quisermos; os ouvidos não, estão sempre abertos. Os olhos podem focalizar e apontar nossa vontade, enquanto os ouvidos captam todos os sons do horizonte acústico, em todas as direções. (SCHAFER, 2011, p.67) 2. A PAISAGEM SONORA NO RÁDIO De forma breve e resumida, podemos apontar que Balsebre nos demonstra que a Radiofonia é resultante de vibrações que são processadas A IMERSÃO DO OUVINTE ATRAVÉS DA PAISAGEM SONORA E A PEÇA RADIOFÔNICA ALEMÃ 25 Capítulo 2 pelo corpo humano, portanto, a linguagem radiofônica pode se apoiar em três elementos: oralidade, sonoridade e silêncio. O primeiro deles é representado pela palavra falada, como som fonético; enquanto o segundo é todo e qualquer som musical ou efeito sonoro. O silêncio, portanto, é a ausência destes fatores. Sendo assim, a paisagem sonora em uma peça radiofônica é tudo aquilo que diz respeito à sonoridade e ao silêncio, espaço no qual será inserida a oralidade, posteriormente ou concomitantemente. Sendo assim, ao conjunto sonoridade e silêncio iremos chamar de “sonoplastia”, que pode envolver os seguintes elementos: música, trilha e efeito sonoro. A música é definida por Maria de Lurdes Sekeff (1998, p.36) como “um sistema de signos, promovendo comunicação e expressão. Sistema sintático de semântica autônoma é linguagem portadora de qualidades, linguagem icônica que só fala dela mesma e, por isso, com um alto poder de sugestão”. Esse elemento é apresentado em sua íntegra na programação radiofônica, portanto, como uma peça específica e isolada. Na programação atual de nossas rádios, é comum encontrarmos programas que são meras listas de reprodução, ou seja, um agrupamento de músicas de estimulação rítmica parecida ou contrastante que são veiculadas uma na sequência de outra, com pouca ou nenhuma intervenção de locutores. Já a trilha é um trecho de uma música, um corte na sua integridade, reconhecível ou não, que serve como suporte para a oralidade. A edição desses trechos, seleção dos cortes e forma de junção são escolhas artísticas que atendam à demanda solicitada pela peça radiofônica. Segundo Kaplún, ela pode ter diversas funções: Função gramatical: como signo de pontuação. [...] Pode ser utilizada para separar séries, blocos ou mesmo separar um assunto do outro. Função expressiva: quando [...] é usada para contribuir para um clima emocional, uma atmosfera sonora. [...] Função descritiva: [...] muitas vezes descreve paisagens, nos dá a referência de um lugar. Função reflexiva: [...] é usada como tempo de repouso para o ouvinte. Enquanto ouve um trecho de música o ouvinte pode pensar na informação recebida há pouco, e dessa forma se prepara para absorver as informações seguintes. Função ambiental: [...] usada como ambientação sonora, apenas como reprodução do som do ambiente. (KAPLÚN, 1978, p.163) O efeito sonoro entra para quebrar a ordem, nos termos de Schafer, A IMERSÃO DO OUVINTE ATRAVÉS DA PAISAGEM SONORA E A PEÇA RADIOFÔNICA ALEMÃ 26 Capítulo 2 ele seria um elemento que quebra o silêncio, que vem alterar o que estava ocorrendo. Assim, seu uso, normalmente, tem como foco chamar a atenção do ouvinte para algo. Deseja-se criar um impacto no que está sendo ouvido. Em um estudo apresentado ao NP Mídia Sonora em Rádio, do VI Encontro dos Núcleos de Pesquisa da Intercom, Carmen Lucia José e Marcos Julio Sergl apresentam a relação desses elementos com a paisagem sonora: A paisagem sonora retida na memória do cidadão é recriada nas mídias, por meio de ambiências sonoras presentes no inconsciente do receptor. A proposta de Schafer de uma escuta mais focada encontra ressonância na referencialização da paisagem sonora nas mídias. (...)As definições de Schafer a respeito dos elementos formadores de cada evento sonoro: ruído (interferência sonora, sons que interferem); silêncio (recipiente dentro do qual o evento musical é colocado, caixa de possibilidades); timbre (cor do som); amplitude (perspectiva na música — vai do som mais frágil ao mais robusto; do mais fraco ao mais forte possível); melodia (combinação de sons); textura (diferentes interlocutores com pontos de vista opostos, diálogo de linhas); e ritmo (articulação de um percurso, como degraus, dividindo o todo em partes) apontam para a sistematização de um referencial para a sonoplastia. A paisagem sonora é a interação de todos esses elementos. A subdivisão feita por Schafer sobre os eventos ouvidos em: som fundamental (aquele que domina na paisagem sonora: o som dos motores na metrópole e do tráfego aéreo: grandes blocos sonoros); sinais (quaisquer sons para os quais a atenção é direcionada, sons destacados — ouvidos conscientemente: aparelhos de rádio e televisão, sons de trânsito nas ruas, ar-condicionado); marca sonora (som que identifica uma coisa, um lugar, um produto — quando ouvido, remete quem ouve imediatamente àquele objeto ou produto — que possui qualidades que o tornam específico de determinada comunidade, que induz a uma determinada sensação, a um local, a um cheiro, ou seja, cria um referencial sonoro para uma locação temporal, emocional ou geográfica); evento sonoro e objeto sonoro (menores partículas independentes da paisagem sonora), indica a subdivisão adotada na sonoplastia. O som fundamental é o texto, o som verbal-oral. A música também pode ser considerada som fundamental, na medida em que a escolha do elenco de músicas de determinada emissora identifica a direção artística adotada. Os sinais são nomeados como trilha na sonoplastia. Eles atuam como ambiência sonora (como A IMERSÃO DO OUVINTE ATRAVÉS DA PAISAGEM SONORA E A PEÇA RADIOFÔNICA ALEMÃ 27 Capítulo 2 pano de fundo) determinada pelo texto verbal-oral. A marca, o evento e o objeto sonoro se tornam os efeitos sonoros na sonoplastia. (JOSÉ, 2006, p.14) Os dois pesquisadores vão além e propõem uma definição para paisagem sonora dentro do contexto da linguagem radiofônica: Em áudio, a paisagem sonora é uma composição sonoplastica em que os elementos constituintes da sonoridade são selecionados e associados para compor um ambiente acústico para a palavra falada, do mesmo modo que, na escrita, muitas vezes a descrição confecciona um ambiente para o personagem desenvolver uma ação. Os recursos da sonoridade, trilhas e/ou efeitos sonoros, são escolhidos para construir um fundo sonoro em que o texto verbal-oral será locado. Ainda: é uma seleção/associação sonora que expande os sons numa linha horizontal em altitude constante ou, através dos ritmos, em diferentes altitudes, construindo um tempo/ espaço virtual para um determinado texto verbal. (...)resulta da interface sintática entre trilhas e efeitos sonoros para confeccionar o nível semântico da peça radiofônica, composto já de algumas indicações usuais de produção que constituem referência na radiofonia. Aqui, algumas dessas indicações: 1 — a paisagem sonora de vinhetas da rádio é confeccionada para indiciar a direção artística ou o público-alvo da emissora, a mudança de estimulação entre as músicas do bloco, passagem de tempo, mudança de lugar, de qualidades etc.; 2 — a paisagem sonora da vinheta de abertura/ encerramento é confeccionada para apresentar a editoria do programa ou do programete, como prefixo dos mesmos, isto é, para criar uma marca de reconhecimento; 3 — a paisagem sonora de chamadas e spots é confeccionada para contextualizar produtos e serviços, eventos, instituições etc.; 4 — a paisagem sonora de abertura para documentário ou reportagem é confeccionada como sumário do programa, como contraponto sonoro à programação musical do programa, como panorama histórico-geográfico do tema, como retrato sonoro de grande audiência de uma personalidade ou de uma época; 5 — a paisagem sonora de vinhetas variadas é confeccionada para, pela redundância, indicar algumas peças fixas da grade, como por exemplo: Hora Certa, Tempo e Temperatura, Trânsito, Utilidade Pública. (JOSÉ, A IMERSÃO DO OUVINTE ATRAVÉS DA PAISAGEM SONORA E A PEÇA RADIOFÔNICA ALEMÃ 28 Capítulo 2 2006, p.14) Essa divisão somente apresenta o uso das paisagens sonoras nos produtos existentes na rádio brasileira, mas não aponta caminhos que faltam ser explorados. Vemos citações aos gêneros que nos propomos analisar, mas não apreendemos como esgotadas nestas definições as possibilidades para eles. O potencial criativo do veículo é muito grande para se limitar às definições antes apresentadas. Paisagens sonoras podem ser utilizadas como recurso de ambientação: um exercício simples é tentar retratar através de sons o dia a dia de um indivíduo. A exploração através de efeitos, ruídos e silêncios unidos com trilhas sonoras podem representar as ações realizadas neste cotidiano. A paisagem serviria como um retrato sonoro. Sendo assim, elementos deste retrato não poderiam estar presentes em uma peça radiofônica? Mais adiante discutiremos gêneros e formatos e abordaremos de forma mais profunda algumas peças, mas de antemão podemos falar sobre a reportagem. Esse formato poderia abrigar elementos sonoros que registrassem a “paisagem” em que os indivíduos retratados estão imersos. Dar esses elementos ao ouvinte é fornecer ferramentas para que ele apure sua audição, interprete o que está além do verbal e possa depreender outras interpretações do assunto abordado. Em resumo, transferimos parte do poder de entendimento para o público que passa a ter como “dever” uma escuta mais apurada, mais minuciosa, mais atenta, como diria Schafer, e, com isso, não só enriquecemos nosso produto, como fomentamos uma sociedade com poder de interpretação. A interpretação se torna lúdica quando fomentada por informações sensoriais contidas na paisagem sonora e, portanto, a assimilação da informação se torna atraente e mais fácil de ser executada. Por isso, a apropriação de elementos que em tese se relacionam ao ficcional (mas que na verdade são elementos da narrativa), por informações jornalísticas pode auxiliar na apreensão da informação. O lúdico provém do mito que é baseado no ritual. Todos temos ritos, independente de crenças e religiões, pois um rito nada mais é, segundo o dicionário Houaiss, do que “qualquer processo de cunho sagrado ou simbólico, susceptível de estabelecer e desenvolver costumes”. Deste modo, o ato de entrar no carro e ligar o rádio, ou acordar com a voz de um locutor sendo emanada, é um ritual que muitos têm. Por isso, dentro da construção de uma paisagem sonora, as rádios ainda respeitam alguns preceitos, mesmo que de forma não consciente. Atendemos a algumas leis da natureza: Ainda que seja tácito que a programação radiofônica, A IMERSÃO DO OUVINTE ATRAVÉS DA PAISAGEM SONORA E A PEÇA RADIOFÔNICA ALEMÃ 29 Capítulo 2 assim como a de todas as mídias, esteja submetida às leis de mercado, vigentes no sistema capitalista, salientamos que os ritmos da cultura e os da natureza subjazem, inconscientemente, à indústria do entretenimento. A partir da análise das “desimportâncias”, menos comprometidas com as aparências factuais, apontamos que a elaboração das pautas e dos roteiros dos programas de rádio, organizados simbolicamente, aproxima-se à ciclicidade da natureza. Reiteram a oposição claro-escuro. Sujeitam-se ao aparecimento e desaparecimento da lua, como a programação musical da maioria das emissoras, organizada em dois turnos: das 6h às 19h e das 20h às 6h.[...]O rádio, como ser da cultura, reproduz em suas pautas mecanismos simbólicos cuja intenção é superar as perdas que desestabilizam o homem. Cruzamento entre os processos da natureza e os da segunda realidade. Bachelard [...], em seu artigo “Devaneio e Rádio”, descreve-nos uma transmissão radiofônica apta a transportar o ser falante à sua mais profunda intimidade. A voz do locutor empurra-nos para mais longe, ao centro, ao umbigo do sonho, a um ponto obscuro e ininterpretável. (NUNES, 1993, p.38) A paisagem sonora, portanto, auxilia na construção do mito, na realização do ritual e transporta o ouvinte para aquele “espaço” na qual ele (imerso em suas interpretações) realiza o rito de passagem com o rádio, tornando-se elemento crucial para a existência do meio; existência esta condicionada ao término do processo, que é a interpretação do que se transmite pelo receptor. 3. A PEÇA RADIOFÔNICA ALEMÃ: O HÖRSPIEL Para os fins desta pesquisa, escolhemos a abordagem alemã para o entendimento de peça radiofônica, pois o conceito corrobora nosso pensamento sobre o tratamento estético da informação no rádio e o uso expressivo da linguagem radiofônica, já que a Alemanha é o berço de um fenômeno: a convivência pacífica entre o rádio e experimentos estéticos. Esse processo, que teve seu apogeu entre 1929 e 1935, teve como principais atores os artistas de vanguarda ao refletirem sobre a rádio arte ou arte acústica. Logo com as primeiras transmissões em 1923, surge o Hörspiel, que em tradução literal significa “jogo para o ouvido”, mas o termo ficou conhecido como peça radiofônica. As peças eram fruto da mistura entre arte e técnica e tão apreciadas no país que eram elaboradas de forma sistemática por dramaturgos, diretores de teatro, literatos e profissionais das primeiras rádios alemãs. Naquela época, três formas de produção artística podiam ser identificadas no rádio: A IMERSÃO DO OUVINTE ATRAVÉS DA PAISAGEM SONORA E A PEÇA RADIOFÔNICA ALEMÃ 30 Capítulo 2 • O Hörspiel como extensão do palco: no qual a peça radiofônica era baseada em formas artísticas ditas puras, como a literatura e o teatro. Era a difusão de textos chamados clássicos por meio de adaptações de dramas e romances. • A peça radiofônica escrita para a linguagem do novo meio: os artistas começavam a explorar o potencial expressivo do veículo, criando uma prática mais complexa. A peça radiofônica inglesa A comedy of danger (1924), de Richard Hughes, é um exemplo clássico ao narrar a entrada de pessoas em uma mina onde as luzes se apagam. Hughes suprimiu a visão dos personagens e através deste artifício colocou-as nas mesmas condições de percepção do ouvinte. Em 1928, o alemão Friedrich Wolf introduz um recurso ao Hörspiel com SOS Rao-Rao-Foyn / Krassin rettet Italia, uma peça que tinha por tema uma reportagem radiofônica ao vivo (o exemplo mais clássico desse recurso foi criado dez anos depois por Orson Welles, A Guerra dos Mundos). Freiedrich criou uma narrativa que abordava o acidente de uma aeronave que sobrevoava o Polo Norte. Porém, outros recursos dramatúrgicos também surgiram como o uso de som por meio do seu poder sugestivo de maneira que os sons introduzissem os ouvintes nas dimensões dos pensamentos e emoções internas dos personagens, ferramenta utilizada por Eduard Reinacher na peça radiofônica Der Narr mit der Hacke (O tolo e a picareta), de 1930, cuja trama gira em torno de um monge japonês que cava um túnel em uma montanha que isola um vilarejo de todo o resto do mundo. Os habitantes têm como sinal do monge o som de sua picareta, ouvido durante toda a peça. Quando o monge termina a passagem que servirá a todo o povo do vilarejo, o ouvinte descobre que, na sua juventude, o monge matou um homem com a picareta e seu trabalho é uma forma de redenção pelo seu pecado. • O Hörspiel como experimentação sonora: essa prática partia de um ponto diferente ao propor a expansão do meio rádio. Hans Flesch, diretor da Rádio Hora Berlim afirmou que “precisamos moldar não somente o novo meio, mas um novo conteúdo: nosso programa não pode ser criado numa escrivaninha” (FLESCH apud CORY, 1992, p.339). Em outubro de 1924, a peça Zauberei auf dem Sender (Microfone mágico), de Flesch, era transmitida em Frankfurt, e com ela, ele já desafiou convenções radiofônicas da época, ao utilizar interrupções, efeitos sonoros e distorção dos tempos musicais. 3.1. O Filme Acústico Em 1926, surge a peça radiofônica Der tönende Stein (A pedra sonora), de Alfred Braun, diretor da Rádio Berlim. Essa obra foi denominada pelo próprio autor como “filme acústico”. Porém é o cineasta Walther Ruttmann (1887-1941) que apresenta a obra mais elaborada do gênero. Ele, em 1928, A IMERSÃO DO OUVINTE ATRAVÉS DA PAISAGEM SONORA E A PEÇA RADIOFÔNICA ALEMÃ 31 Capítulo 2 cria o primeiro filme acústico com Wochenende (Fim de semana), uma gravação paga por Hans Flesch. Na peça, o autor se vale da banda sonora de uma película cinematográfica para registrar sons que eram produzidos em estúdio e manipulá-los por meio de uma montagem. Posteriormente, este material seria apresentado através de radiodifusão. A dramaturgia desta peça acabava por estimular a imaginação do ouvinte, que criava espaços onde a ação do filme sonoro transcorre. Pela narrativa, o ouvinte é conduzido a perceber a transição de um extenuante dia de trabalho para a suavidade de um dia de descanso. Ao terminar o repouso, volta-se à realidade do trabalho em uma metrópole moderna. Através de cortes, fusões e justaposições, Ruttmann criou um discurso sonoro com a lógica da montagem cinematográfica, já que a fita magnética só surgiria nos anos 1940. Diria Alfred Braun: Filmes acústicos — chamávamos assim a peça para rádio naqueles dias em Berlim, em que um diretor de rádio tinha de criar tanto seu próprio material original quanto seus scripts de trabalho — eram obras nas quais se transferiam conscientemente as técnicas do cinema para o rádio, a fim de que as imagens fluíssem oniricamente e mudassem em rápida sucessão, imagens reduzidas, imagens superpostas, close-ups se misturando ou se alternando, e tomadas longas. Cada uma dessas pequenas imagens era posicionada em um plano acústico particular, circundadas por um set acústico particular: 1 minuto de rua com música alta de uma quadra de Leipzig; 1 minuto de uma marcha de protesto; 1 minuto da bolsa de valores num dia de quebra; 1 minuto de fábrica com sua sinfonia de máquinas; 1 minuto de estádio de futebol; 1 minuto de estação de trem etc. (BRAUN apud CORY, 1992, p.339-340) A montagem cinematográfica tem uma importância nas composições radiofônicas de modo geral e foi motivo de reflexão ao longo de todo o século XX. Klippert (1980) menciona em Elementos da peça radiofônica, que escreveu em 1977, as reflexões da teórica soviética Tatiana Martschenko. Ela entendia a montagem como um como elemento indissociável da peça radiofônica, já que o próprio pensamento humano é um processo de montagem: A IMERSÃO DO OUVINTE ATRAVÉS DA PAISAGEM SONORA E A PEÇA RADIOFÔNICA ALEMÃ 32 Capítulo 2 O nosso próprio modo de pensar é semelhante à montagem na sua velocidade, é muito mais semelhante à montagem do que qualquer ação visível. Se um autor quisesse subordinar o aspecto imagético de uma peça teatral ou de um filme cinematográfico à lógica da montagem do nosso pensamento imediato, o espectador defrontar-se-ia com um caos, que não seria passível de percepção ou compreensão. A peça radiofônica, contudo, tem a possibilidade de acompanhar o fluxo do nosso pensamento subjetivo. (MARTSCHENKO apud KLIPPERT, 1980, p.31) Partindo da teoria de Eisenstein e Pudovkin, segundo a qual a montagem “é a justaposição racional, sensível e funcional de trechos, detalhes, fragmentos, e da qual resulta não apenas uma soma, mas uma nova qualidade” (Martschenko apud Klippert, 1980, p.30), a pesquisadora chega a concluir que não são idênticos os processos de montagem cinematográfica e da montagem radiofônica, já que a montagem no rádio pode ser realizada: Mediante a pausa pura (fusão no filme); mediante a mixagem por fusão (fusão sobreposta no cinema); mediante o texto do locutor ou narrador (de forma análoga aos títulos ou comentários em subtítulos no cinema); mediante o cenário acústico e a pausa (a paisagem etc., no filme); mediante a música (idem para o filme); mediante a mudança da perspectiva acústica ou do ponto de partida da fonte sonora (enquadramento e perspectiva no filme), etc. (MARTSCHENKO apud KLIPPERT, 1980, p.30-31) Martschenko ainda aponta as possibilidades do corte e da mixagem, cujos resultados podem gerar alterações no tempo narrativo, aumentando-o ou diminuindo-o, fazendo-o dar saltos seja para frente ou para trás e, desta forma, criando uma simultaneidade entre acontecimentos passados e presentes. Porém, por mais interessantes que os trabalhos de “filme sonoro” fossem, sua repercussão na época não foi expressiva por três motivos: o alto custo de produção, já que sua gravação era feita em película; pouca audiência e precariedade dos receptores de rádio da época; e por ser um tipo de intervenção vanguardista com conotação de oposição à política da época, sendo que criadores como Friedrich Bischoff, Hans Flesch, Alfred Braun, Ernest Hardt e Eduard Reinacher sofreram perseguições. Durante a Segunda Guerra Mundial, o rádio alemão passa a desempenhar um papel político de motivação das massas e o Hörspiel, a peça radiofônica em sua modalidade literária tradicional, se desenvolve com A IMERSÃO DO OUVINTE ATRAVÉS DA PAISAGEM SONORA E A PEÇA RADIOFÔNICA ALEMÃ 33 Capítulo 2 aumento da audiência e estimulado pelo programa de venda de receptores de rádio a preços populares promovido por Joseph Goebbels. 3.2. O Hörspiel no Pós-Guerra e a Nova Peça Radiofônica Em 1947, com Draussen vor der Tür (Do lado de fora da porta) — drama sobre um soldado alemão que retorna a sua casa, de Wolfgang Borchert, ocorre o renascimento da peça radiofônica literária após a Segunda Guerra. Borchert empregava um recurso dramatúrgico muito semelhante ao utilizada por Eduard Reinacher em Der Narr mit der Hacke (1930). Os sons simbólicos utilizados por Borchert eram o barulho de dedos batendo em portas e portas se abrindo e fechando. Com a produção de Träume (Sonhos), de Günter Eich, em 1951, o Hörspiel é impulsionado novamente. Como aponta Mark E. Cory, a história da radioarte na Alemanha aponta o período dos anos 1950 e começo dos 1960 como a era clássica da peça radiofônica, já que surgem textos de Günter Eich, Ingeborg Bachmann, Max Frisch, Friedrich Dürrenmatt, Ilse Aichinger, Heinrich Böll, Peter Hirche, Fred von Hoerschelmann, Wolfgang Hildesheimer, Leopold Ahlsen e Wolfgang Weyrauch, entre muitos outros, cujos trabalhos foram discutidos enquanto obra literária. A partir dos anos 1960, a peça radiofônica passa a ser repensada em seus fundamentos, abrigando diferentes correntes de pesquisa, surgindo a Neue Hörspiel (nova peça radiofônica), como denominou o dramaturgo alemão e diretor do Studio Akustische Kunst da WDR, Klaus Schöning. Vários acontecimentos contribuíram para a retomada do debate sobre o Hörspiel. O primeiro deles ocorreu em 1961 com a publicação de Das Hörspiel: Mittel und Möglichkeiten eines totalen Schallspiels (A peça radiofônica: meios e possibilidades de uma peça sonora total), livro do autor austríaco Friedrich Knilli. Esta obra abalou o Hörspiel clássico, já que o autor afirmou que tal modelo estava exaurido por tratar-se de um discurso eminentemente literário, e não genuinamente sonoro. Knilli diria: Hoje, o autor de peças radiofônicas [Hörspiel] pode somente livrar-se da estreiteza da peça radiofônica verbal [Worthörspiel] expandindo a dimensão acústica da peça radiofônica tradicional, experimentando meios e possibilidades tanto da música eletrônica (Meyer-Eppler, Eimert) quanto da musique concrète (Pierre Schaeffer). (KNILLI apud CORY, 1992, p.352) As experimentações seminais de Paul Pörtner também contribuíram para a retomada das discussões sobre o Hörspiel. Entre 1964 e 1969, Pörtner realizaria os seus Schallspielstudiei (Estudos de jogos sonoros), que eram obras nas quais ele se valia dos processos de compressão, extensão e A IMERSÃO DO OUVINTE ATRAVÉS DA PAISAGEM SONORA E A PEÇA RADIOFÔNICA ALEMÃ 34 Capítulo 2 abstração de sons não-verbais a partir de material verbal (palavras). Assim, ele abria uma gama de possibilidades criativas, rompendo com a tradição literária ao desconstruir a semântica e o discurso verbal organizado. Nada como o trabalho de Pörtner havia sido transmitido como peça radiofônica [Hörspiel] desde a guerra. E embora Paul Pörtner tenha significativamente se apoiado na música eletrônica em seus estudos de Jogos Sonoros (estudos 2 e 3), a peça radiofônica [Hörspiel] tornou-se acessível e interessante novamente para a vanguarda através dessa constelação de Knilli, Pörtner e Schitthenner. (CORY, 1992, p.354-355) A Rádio Sudoeste Stuttgart transmitia Fünf Mann Menschen, de Ernest Jandl e Friederick Mayröcker, em 1968. A obra era composta por peças radiofônicas de cinco minutos em forma de vinhetas, que viriam a receber o Prêmio dos Cegos de Guerra para Peça Radiofônica. As vinhetas apresentavam nascimento, vida e morte na moderna sociedade ocidental por meio de uma visão crítica. O Seminário de Música Nova de Colônia, promovido em conjunto com o departamento de Hörspiel da WDR em 1970, trouxe o compositor Mauricio Kagel para abordar o tema “Música como peça radiofônica”, defendendo o apagamento das fronteiras entre as duas formas artísticas para benefício de ambas e, a partir dos anos 80, a peça radiofônica começa a ganhar relevância na vida e na consciência sociocultural das pessoas. 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS Ao pensarmos o rádio como meio da expressão artística e cultural de um povo, veremos a eminente necessidade de retratar nele as ideias, pensamentos e opiniões de todas as classes que compõem essa sociedade, além de comportamentos, valores, hábitos e até costumes e crenças, tornando possível a manifestação das sensações e sentimentos humanos através do som. Em resumo, a palavra, a música, o silêncio e os efeitos especiais deixam de ser uma unidade quando combinados e se modificam, potencializando a expressividade do rádio. As combinações que criam melhores condições para que os ouvintes possam formar imagens auditivas, indispensáveis ao entendimento da mensagem, pois, só através delas é que o veículo vai conseguir estimular, envolver e atrair. Assim, tudo depende da arte da composição sonora para reforçar a expressividade da linguagem radiofônica, a força da mensagem está contida na forma em que ela é transmitida. Se elaborarmos esteticamente um conteúdo, seu apelo, sua penetração e, consequentemente, sua importância ganham valor frente a conteúdos mal trabalhados, meramente informativos, que acabam, por sua vez, não tendo espaço na audição do ouvinte. A IMERSÃO DO OUVINTE ATRAVÉS DA PAISAGEM SONORA E A PEÇA RADIOFÔNICA ALEMÃ 35 Capítulo 2 Acreditamos no potencial expressivo do meio, valorizando a emoção do acontecimento, ou seja, achar drama na própria mensagem, utilizando o rádio com mais criatividade diante de tudo o que pode proporcionar enquanto meio informativo e expressivo através de todas as suas ferramentas. Assim, explorar as potencialidades de expressão do rádio, alternando palavras, vozes, sons, efeitos, ruídos e silêncios, é trazer para o veículo a verdadeira peça radiofônica. REFERÊNCIAS BALSEBRE, Armand. A linguagem radiofônica. In: Teorias do rádio: textos e contextos. Organização: Eduardo Meditsch. Florianópolis: Insular, 2005. ______. El lenguaje radiofónico. Madrid: Cátedra, 2007. CORY, Mark E. Soundplay — The polyphonous tradition of German radio art. In: Kahn, Douglas; Whitehead, Gregory (eds.). Wireless imagination: sound, radio and the avant-garde. Cambridge, Massashusetts (USA): The MIT Press, 1992. p.331-371. FERRARETO, Luiz Artur. Rádio: história e técnica. Rio Grande do Sul: Sagra-Luzzatto, 2007. JOSÉ, Carmen Lucia; SERGL, Marcos Julio. Paisagem Sonora. Trabalho apresentado ao NP Mídia Sonora e Rádio, do VI Encontro dos Núcleos de Pesquisa da Intercom, Intercom, 2006. Disponível em: <’http://www.intercom.org.br/papers/nacionais/2006/ resumos/R0550-1.pdf>. Acesso em: 2 de novembro de 2013. KAPLÚN, Mario. Producción de programas de radio: el guión — la realización. México: Editorial Cromocolor, 1994. KLIPPERT, Werner. “Elementos da peça radiofônica”. In: SPERBER, George Bernard (org.). Introdução à peça radiofônica. São Paulo: EPU, 1980. p. 11-102. NUNES, Mônica Rebecca Ferrari. 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LISTENER’S IMMERSIVE EXPERIENCE THROUGH SOUNDSCAPE AND GERMAN RADIOPHONIC PLAY ABSTRACT - The richness of radio language, with words, tracks, effects and silences, is not used much in the production of radiophony and in contemporary Brazilian sound production in different genres and formats. This text seeks, then, to propose ways in which one could enhance the listener’s imagination regarding the creation, production and reception of radio symbolic products, with the perspective of rescuing the culture of orality supported by concepts such as the Soundscape, by Murray Schafer and the German radiophonic play. KEYWORDS: Communication; Radiophonic Language; Narrative; Soundscape; Radio. A IMERSÃO DO OUVINTE ATRAVÉS DA PAISAGEM SONORA E A PEÇA RADIOFÔNICA ALEMÃ 37 Capítulo 3 CAPÍTULO 3 CONSIDERAÇÕES SOBRE O CADASTRO TERRITORIAL E A INFORMALIDADE URBANA Josiane Nascimento Andrade lattes.cnpq.br/8508224715046228 Universidade Federal de Pernambuco RESUMO - A recorrente existência de assentamentos informais nas cidades latinas reflete os diversos problemas de gestão e planejamento enfrentados. Devido à sua complexidade e configuração, muitos destes espaços não são fáceis de identificar e, assim, não constam nos registros territoriais. Isto dificulta o acesso da população ao processo de regularização, mantendo sua condição de ilegalidade e seu afastamento da infraestrutura disponível para outros setores das cidades. O uso de tecnologias na identificação e registro destas áreas é um tema de estudos recentes, configurando um estado da arte interessante para esta o tema. Desta forma, neste trabalho apresentamse estudos recentes acerca da questão social da informalidade e possibilidades para sua resolução, passando pela configuração de um cadastro territorial e de políticas públicas específicas. PALAVRAS-CHAVE: Informalidade urbana; Regularização fundiária; cadastro. 1. INTRODUÇÃO A dinamicidade do processo de urbanização, o crescimento desordenado e as constantes mudanças nos padrões de ocupação do solo exigem dos municípios novos instrumentos de gestão e planejamento. Os assentamentos informais são uma realidade em diversas cidades, refletindo problemas de ordem tanto econômica quanto social. A gestão das cidades e de seu desenvolvimento urbano exige que se conheça detalhadamente seu espaço e suas especificidades. O emprego de geotecnologias torna-se importante na elaboração de levantamentos confiáveis, que possam se comparar aos registros anteriores e que apontem com precisão as eventuais mudanças realizadas. Por compreender desde as medições até a avaliação socioeconômica da população de uma cidade, considera-se o mapeamento e caracterização das situações de irregularidade importantes na construção de um panorama atualizado e preciso acerca do espaço urbano. CONSIDERAÇÕES SOBRE O CADASTRO TERRITORIAL E A INFORMALIDADE URBANA 38 Capítulo 3 Embora as situações de irregularidade sejam observadas nas mais distintas classes sociais e regiões, nas áreas ocupadas por pessoas de baixa renda que estas são mais marcantes, com características que se assemelham em diversas cidades da América Latina, como a construção de moradias em morros e áreas precárias, com pouca ou nenhuma infraestrutura disponível. Embora existam bases legais e diretrizes específicas para o uso e ocupação do solo urbano, a complexidade das irregularidades observadas não compõe uma base de dados atualizada, com a descrição fiel do espaço e de suas características. Uma forma efetiva para tal é o Cadastro Territorial, que identifica e registra características pré-definidas, ligando pessoas a terra e as integra ao sistema de gestão municipal, proporcionando análises precisas e visualização da distribuição espacial com o auxílio de mapas temáticos. Considerando estas observações, uma questão norteia este estudo: “Qual a aplicabilidade do cadastro como instrumento de regularização urbana nas cidades da América Latina?”. Embora seja este o problema a ser respondido outros surgem e têm importância na discussão principal: “O que levou estas áreas a apresentar tamanha complexidade de uso do solo? Qual o papel dos agentes produtores do espaço nesta configuração e quais as suas influências nas irregularidades urbanas observadas? Quais as políticas públicas e soluções adotadas recentemente para a questão da informalidade urbana?”. Desta forma, este trabalho objetiva analisar o estado da arte acerca da informalidade urbana na América Latina, caracterizando semelhanças e possíveis ferramentas para a resolução deste problema. Para que compreenda a temática e seus desdobramentos, será desenvolvido aqui um breve estado da arte, baseado em pesquisas consideradas de grande importância para esta discussão. Serão abordadas as contribuições de pesquisadores dedicados ao estudo do cadastro multifinalitário, das irregularidades em áreas urbanas e dos seus impactos na configuração das cidades latinas. Acredita-se que, através desta análise, será possível obter algumas direções sobre a metodologia a ser adotada e os conceitos importantes para desenvolvimento de estudos futuros. 2. INFORMALIDADE URBANA E SEUS ASPECTOS SOCIAIS Os assentamentos informais são uma realidade em toda a América Latina. Sua consolidação se dá, em grande parte, devido às dificuldades que a população de baixa renda tem em acessar terrenos mais próximos aos centros devido aos altos valores, inserindo-se em áreas mais distantes, com menos recursos e, consequentemente, com menos fiscalização (ERBA E PIUMETTO, 2016). Muitos destes assentamentos começaram com a ocupação de um terreno, seja público ou privado, e posterior parcelamento das terras. As construções são precárias e a infraestrutura, geralmente, também. E embora esta população esteja alheia às legislações, ela possui seus direitos, inclusive CONSIDERAÇÕES SOBRE O CADASTRO TERRITORIAL E A INFORMALIDADE URBANA 39 Capítulo 3 os de acesso à moradia digna e serviços públicos. Fatores como especulação nos mercados de terra, valorização de padrões de ocupação segregadores e elitistas também contribuem para que a informalidade se consolide cada vez mais nas cidades. Sua existência, inclusive, é aparentemente aceita nas cidades devido à distância das áreas ocupadas, que ficam em locais geralmente periféricos e pouco visíveis, excluindo ainda mais uma parcela da população que já vive em situação de vulnerabilidade social. Embora neste estudo sejam abordados os assentamentos informais de baixa renda, outro processo de irregularidade pode ser observado com bastante frequência nas grandes cidades por uma população de renda superior. A ocupação de áreas consideradas de maior valor pelos condomínios fechados também pode configurar situações de informalidade e, nestes casos, muitas são naturalizadas por seu aspecto visual menos agressivo que o de uma favela ou cortiço. O significado de informalidade pode representar diferentes situações no contexto espacial urbano. Assim, é importante definir qual a perspectiva abordada por esta pesquisa, bem como qual a tradução deste conceito para esta discussão. Para tanto, recorre-se a Fernandes (2011), que associa o direito à gestão das cidades através de algumas provocações. Uma delas é a dimensão da lei e quais os parâmetros que regem sua elaboração e aplicação. Outra, que é particularmente mais cara a esta discussão, trata da efetividade das leis e do porquê de algumas serem cumpridas por apenas uma parcela da sociedade. Desta forma, o conceito de informalidade urbana nesta pesquisa se relaciona com o não cumprimento dos parâmetros estabelecidos pela legislação vigente nas cidades latinas. Segundo Erba e Piumetto (2016), o termo informalidade remete não só às inconformidades com a lei, mas, também, ao não uso registros nas transações imobiliárias, invasões de terra e situações de pobreza e falta de saneamento. Já o conceito de áreas irregulares será tratado para se referir às ocupações passíveis de regularização, através de meios técnicos e jurídicos. Embora a realidade das favelas seja muito próxima para os brasileiros, outros países da América Latina também têm grande parte dos seus assentamentos informais em áreas de encosta, morros e com acesso complicado. As dinâmicas imobiliárias nestas regiões são dinâmicas e, geralmente, informais. Desta forma parcelamentos, remembramentos e transferências de posse ocorrem sem registro, sem conhecimento dos órgãos legisladores e, portanto, não são mapeadas. Erba e Piumetto (2016) pontuam que os países latinos tendem a não considerar a identificação de áreas informais importante. Para os autores, ao focar apenas no tamanho dos edifícios e não sua conformidade com os códigos urbanos, os cadastros latinos podem transformar áreas irregulares CONSIDERAÇÕES SOBRE O CADASTRO TERRITORIAL E A INFORMALIDADE URBANA 40 Capítulo 3 em regulares, prejudicando o desenvolvimento de políticas urbanas eficientes. O entendimento sobre as dinâmicas das cidades latino-americanas deve considerar que todas estão inseridas no modelo de produção capitalista, onde sua diversidade de usos materializa as práticas sociais deste sistema. Portanto ao estudar a formação e organização do espaço sob a égide do capital, deve-se compreender que tal panorama é indissociável da leitura da sociedade produtora deste espaço (CARLOS, 1994). Assim, uma cidade que ofereça as mesmas condições geográficas, sociais e econômicas para todos os seus habitantes, no contexto latino, ainda é utopia. Esta realidade é importante para definir alguns caminhos de ação para a resolução dos casos de irregularidade urbana. Reconhecer estes espaços e suas especificidades é primordial para que se articule quaisquer soluções. Faz-se necessária à utilização de instrumentos que facilitem este processo, através dos quais se possa proporcionar à população maior usabilidade do espaço urbano e ao poder público uma maior compreensão do que acontece dentro das cidades. Os critérios para a regularização de espaços de informalidade devem considerar sua diversidade, haja vista as diferentes situações jurídicas destes locais. Assim, cada situação deve ser analisada individualmente para que se obtenha êxito. Entretanto, algumas diretrizes técnicas podem balizar estes processos e suscitar algumas possibilidades comuns, como o mapeamento das áreas e sua incorporação à cartografia das cidades. 3. REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA Existe uma diferença entre o significado de regularização fundiária e seu entendimento por parte da sociedade. Como grande parte dos assentamentos irregulares sofre com ameaças de expulsão devido à ausência do título de posse, esta deve ser a maior preocupação para inserir estas áreas na legalidade. Entretanto, quando não há situação de ameaça, as solicitações são por programas de urbanização e prestação de serviços públicos. O Estatuto das Cidades (art. 2°) traz a regularização como princípio fundamental na promoção do ordenamento territorial e diminuição do déficit habitacional. Assim não apenas a posse individual dos ocupantes é importante, mas também a inclusão dos assentamentos no tecido urbano formal. Para Alfonsin (2007), há três tipos de regularização fundiária. Enquanto o primeiro objetiva a regularização jurídica dos lotes, o segundo tipo dá ênfase à recuperação urbana dos assentamentos. O terceiro tipo se dá através da regularização urbanística destes assentamentos por meio das Zonas Especiais de Interesse Social – ZEIS. Este instrumento permite que populações se estabeleçam em áreas determinadas das cidades através da flexibilização de parâmetros de uso, ocupação e parcelamento do solo CONSIDERAÇÕES SOBRE O CADASTRO TERRITORIAL E A INFORMALIDADE URBANA 41 Capítulo 3 (ROSENFELDT e LOCH, 2015). Deve-se observar que a regularização dos assentamentos informais traz consigo um aspecto político. Isso se dá através do provimento de urbanização e alguma infraestrutura, mas sem eliminação completa da precariedade e das diferenças com relação às áreas regulares desde o princípio. Nesse contexto, as políticas de regularização fundiária devem ser construídas em conjunto com as políticas públicas, de modo que o ciclo da informalidade seja interrompido (PÓLIS, 2012) Um programa de regularização deve começar com a identificação e dimensionamento das irregularidades existentes na cidade, para que seja então desenvolvida a estratégia para cada caso. Nos loteamentos irregulares, por exemplo, pode se comparar o que está construído com o que consta no cadastro de aprovação da prefeitura. Em cidades em que este cadastro não existe, os dados confrontados devem vir do cartório de registro de imóveis. O cruzamento de dados das concessionárias públicas com as informações do Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE pode confirmar a existência de assentamentos irregulares. Entretanto, em áreas de informalidade e com alta dinâmica construtiva, deve-se dispor de alternativas para a detecção da irregularidade. Nestes casos, o uso das geotecnologias se faz imprescindível. 4. A IMPORTÂNCIA DO CADASTRO DE ÁREAS INFORMAIS A regularização requer a confecção de plantas cadastrais e estas podem ser feitas de diversas maneiras, como por levantamentos planialtimétricos ou geoprocessamento, a depender das condições de cada assentamento. De acordo com o Instituto Pólis (2012), além de permitir cadastrar as áreas e seus moradores, os mapeamentos auxiliam na construção de parâmetros para os diferentes programas de regularização, permitindo o cruzamento de informações como hidrografia e geotecnia, importantes para a classificação de área de risco. Entre os países latinos, o Chile se destaca pelo trabalho de mapeamento das áreas de assentamento informal. De acordo com Erba e Piumetto (2016), existe no país uma secretaria executiva no Ministério da Habitação e Desenvolvimento Urbano que se encarrega de identificar e mapear todas as regiões com situação de informalidade. Desta forma, a destinação de recursos, equipamentos urbanos e até mesmo a cobrança de impostos é facilitada. Em outros países, este esforço pode partir de Organizações Não Governamentais – ONGS, que se encarregam do desenvolvimento de material cartográfico e de registro das áreas informais para auxiliar nas carências de infraestrutura, titulação e mobilidade urbana (ERBA E PIUMETTO, 2016). Quando nem o poder público e nem instituições se interessam em mapear estes assentamentos, seus moradores podem tem se mobilizado. CONSIDERAÇÕES SOBRE O CADASTRO TERRITORIAL E A INFORMALIDADE URBANA 42 Capítulo 3 Um exemplo é o Distrito 14, em Cochabamba, Bolívia. De acordo com Erba e Piumetto (2016), com o investimento de 12 dólares de cada família elaborou-se um sistema georreferenciado, com levantamento topográfico da área. Além disto, foram levantados dados como vegetação, equipamentos urbanos e perfil de cada morador. Estes dados foram registrados e criou-se um mapa cadastral, que afirma a posse dos ocupantes daquela localidade. A configuração deste cadastro fez com que o valor de uma moradia nesta região aumentasse de 1.500 para 18.000 dólares em um período de 20 anos (ERBA E PIUMETTO, 2016). No Brasil, a empresa Terra Nova trabalha com a mediação de conflitos para o processo de regularização fundiária de áreas ocupadas irregularmente. O procedimento adotado tem como etapas principais o mapeamento das ocupações, coleta de informações, registros fotográficos e integração aos mapas existentes. A equipe integra todas as informações de mapas existentes, mapas topográficos e levantamentos geológicos, além das fotografias aéreas e perfis socioeconômicos das famílias. São considerados ainda informações como valor das terras e a capacidade de pagamento das famílias envolvidas no processo (ERBA E PIUMETTO, 2016). Na Figura 1, a seguir, pode-se observar uma das áreas cadastradas e regularizadas através deste programa. Figura 1: Ocupação irregular e plano de urbanização proposto Fonte: ERBA e PIUMETTO (2016) A valorização área e a segurança dos moradores já podem justificar a importância de um cadastro para áreas informais. O reconhecimento dos elementos que compõem os assentamentos, bem como as informações sobre as pessoas que os habitam podem ser úteis, inclusive, para diversos fins. Uma vez elaborado um banco de dados com estas características, este cadastro pode assumir sua multifinalidade, permitindo a sistematização de vários elementos e atendendo a diversos propósitos. O Cadastro Territorial Multifinalitário – CTM aplicado ao processo de regularização de assentamentos informais tem como características CONSIDERAÇÕES SOBRE O CADASTRO TERRITORIAL E A INFORMALIDADE URBANA 43 Capítulo 3 a coleta e armazenamento das informações descritivas especializadas, desenvolvimento e manutenção de um sistema cartográfico, fornecimento de dados físicos para o planejamento urbano e atualização das características das cidades (ROSENFELDT e LOCH, 2014). Rosenfeldt e Loch (2014) pontuam que a utilização do cadastro em áreas com situação de informalidade pode contribuir para a identificação da localização, tipo de uso, ocupação e delimitação de cada unidade imobiliária, além de servir de base para a disponibilização de infraestrutura. Os autores classificam como essencial o reconhecimento dos limites de cada parcela, de modo a evitar sobreposições de títulos e dificuldades de amarração na malha urbana. No caso do Brasil, a aplicação de instrumentos do Estatuto das Cidades pode ser facilitada através da utilização de um cadastro que identifiquem quais são as áreas apropriadas para cada um, inclusive os que se referem especificamente à regularização fundiária. 4.1. Utilização de imagens multitemporais Os produtos de sensoriamento podem ser uma ferramenta importante na identificação de áreas informais. Através deles pode-se analisar a origem, a evolução e as características de uma ocupação irregular. A cobertura de determinada superfície com fotografias aéreas formando um mosaico é um importante método de interpretação da evolução das paisagens urbanas (ROSENFELDT e LOCH, 2015). Com o suporte dos SIG, compõem-se uma base de dados cartográficos (descrevendo as características geográficas do local) e alfanuméricos (atributos). De acordo com Rosenfeldt e Loch, (2015), a escala é um fator importante, pois é a partir dela que os objetos serão identificados e reconhecidos. Outro fator de destaque é a homogeneidade das áreas estudadas. Espaços com características semelhantes apresentam texturas parecidas quando visualizados de cima. Assim acontece com os assentamentos informais, visto que devido à sua dinâmica de uso e ocupação do solo têm limites e outras características físicas ocultadas em uma análise simples. Sendo assim, classificam-se como zona homogênea os “agrupamentos humanos com características socioculturais e econômicas semelhantes quanto aos seus padrões de distribuição, disposição, organização e adensamento habitacional no sítio” (ROSENFELDT e LOCH, 2015, p.06). Para que se identifique estas zonas, Rosenfeldt e Loch (2015) sugerem que o sistema cadastral contenha entre suas camadas de informação o sistema viário, os lotes, a hidrografia, edificações e fotos aéreas. Este procedimento permite que a população participe do processo, contribuindo com informações sobre a evolução da paisagem local e o processo histórico da ocupação. A pesquisa participativa em conjunto com a utilização de CONSIDERAÇÕES SOBRE O CADASTRO TERRITORIAL E A INFORMALIDADE URBANA 44 Capítulo 3 tecnologias de sensoriamento remoto e Sistemas de Informações Geográficas – SIG possibilita a criação de mapas temáticos para análise dos objetos de estudo. Como principal benefício desta metodologia, pode-se apontar a possibilidade da identificação de microzonas dentro das zonas homogêneas. Estas áreas passam a servir como balizadoras dos planos de regularização, visto que suas características e especificidades são detalhadas a partir do mosaico gerado com as fotografias aéreas. Estes produtos permitem, inclusive, a identificação das parcelas cadastrais (ROSENFELDT e LOCH, 2015). A identificação da parcela é primordial para o cadastro. Seu conhecimento implica em diferentes aspectos, sejam eles econômicos, legais ou físicos (ERBA, 2014). No âmbito legal, a parcela pode fornecer informações sobre situação de propriedade e restrições construtivas. Segundo Erba (2014), o aspecto econômico contempla o valor da terra e o físico traz o tamanho da propriedade e seu uso. Pode-se ainda considerar como aspecto importante o ambiental, que dirá se existe algum risco para os ocupantes daquela parcela. Em se tratando de áreas de assentamentos irregulares, muitos cadastros não têm informações suficientes sobre as parcelas. Em muitos mapas cadastrais estas áreas aparecem como manchas brancas, dificultando sobremaneira quaisquer procedimentos para sua regularização. 4.2. Cadastro participativo: autodeclaração e observatórios A existência de um cadastro em uma cidade proporciona uma série de benefícios para todos os envolvidos no seu processo, especialmente para os moradores de áreas regularizadas. Entretanto, para que este processo seja democrático, deve-se envolver a população em todas as suas etapas, sejam elas as iniciais, como o procedimento de autodeclaração dos lotes ou posteriores, através da criação de observatórios de terras (ERBA E PIUMETTO, 2016). Em Salvador, por exemplo, foi implementado em 2013 um programa de atualização de sua malha urbana, registrando a evolução e as diferenças entre o que era considerado legal e a realidade. Desta forma, a prefeitura iniciou uma campanha em diversas mídias convocando proprietários e posseiros a registrar as parcelas municipais (ERBA E PIUMETTO, 2016). Vislumbrando o planejamento para saúde, saneamento e transporte público, a prefeitura reconheceu o cadastro como etapa imprescindível, iniciando assim uma atualização que abasteceria diversos órgãos públicos com informações sobre o solo da cidade. Segundo Erba e Piumetto (2016) foram registradas mais de 400.000 novas parcelas ao longo de um mês. Considerando as constantes mudanças de uso e ocupação do solo, especialmente em áreas oriundas da informalidade, uma outa possibilidade CONSIDERAÇÕES SOBRE O CADASTRO TERRITORIAL E A INFORMALIDADE URBANA 45 Capítulo 3 apontada Erba e Piumetto (2016) para a elaboração (ou atualização) de um cadastro é a criação de observatórios de valor de terras. Através deles, ocorreria o monitoramento não só dos valores, mas também, de todas as mudanças ocorridas nas áreas observadas, como as construções irregulares. A criação destes observatórios pode ocorrer por iniciativa pública, acadêmica ou mesmo através de parcerias. Em Bogotá, por exemplo, existe um observatório para analisar particularmente as variações na evolução dos preços da terra. Como sua atividade monitoria as atividades construtivas, através do observatório obtêm-se um panorama sempre atualizado das dinâmicas construtivas. Desta forma, suas informações são úteis para a identificação de ocupações irregulares e definição de estratégias para lidar com esta prática (ERBA E PIUMETTO, 2016). 4.3. Cadastro 3D aplicado à regularização Embora o cadastro convencional ainda não seja uma realidade para a maioria das cidades, Erba e Pimetto (2016) apontam a utilização do cadastro 3D como possibilidade de melhorar os processos de regularização. Em Medellín, Colômbia, ferramentas de representação em 3 dimensões já são utilizadas para fins urbanos através da extrusão das edificações e de suas divisões internas. A locação destes blocos no espaço urbano permite melhor visualização da cidade, favorecendo a tomada de decisões e permitindo mais facilmente a comparação entre os dados do registro oficial e o que realmente existe in loco. Enquanto isso, dado que os assentamentos informais estão presentes em toda a América Latina, os cadastres não poderão ignorar esta realidade, visto que é muito mais visível a ausência de volumes que a ausência de planificações em duas dimensões (ERBA E PIUMETTO, 2016). Com a popularização das impressoras 3D, é possível que as cidades sejam “recriadas”, permitindo a materialização de grandes áreas, ainda que sejam acidentadas ou muito fragmentadas, como as de assentamento irregular. Esta prática pode, em longo prazo, ser útil para o planejamento urbano. Erba e Piumetto (2016) apontam que esta não é uma realidade distante. Os autores afirmam que o Google Earth contribuiu de forma efetiva para a criação de modelos de cidades em 3D, permitindo que os usuários da ferramenta visualizem um determinado local com grande nível de detalhamento. Esta plataforma também permite o movimento a partir de uma vista Cidade como uma superfície plana para uma vista oblíqua mostrando o relevo e a altura de edifícios, árvores, redes de serviços aéreos e outros objetos no espaço (ERBA E PIUMETTO, 2016). Entre as cidades da América Latina, Santiago é uma das mais detalhadas na plataforma. CONSIDERAÇÕES SOBRE O CADASTRO TERRITORIAL E A INFORMALIDADE URBANA 46 Capítulo 3 5. CONCLUSÃO Entende-se que os programas de regularização devem objetivar a integração dos assentamentos informais ao conjunto da cidade, e não apenas o reconhecimento da segurança individual da posse para os ocupantes. Sendo assim, a importância de ferramentas que proporcionem um maior conhecimento do espaço da cidade e de suas especificidades é fundamental neste processo. A utilização do CTM demonstrou-se eficiente para a regularização fundiária, especialmente se aliado ao uso de imagens multitemporais. Entretanto, a realidade dos assentamentos informais é muito distinta da observada em áreas regulares das cidades. Suas diferenças físicas, econômicas e sociais os distanciam do restante da cidade e os exclui da lógica de legalidade. Para que seja possível a implantação de programas de regularização nestes locais deve-se, primeiramente, conhecer estes espaços. Eles devem existir nos cadastros e os procedimentos para tal podem ser auxiliados pela tecnologia ou partir de maneiras mais ortodoxas, através da autodeclaração e do estabelecimento de observatórios que monitores suas dinâmicas. Para garantir o atendimento das demandas das cidades, a regularização fundiária deve sempre buscar o desenvolvimento social e econômico dos envolvidos, garantindo a participação e a transparência no compartilhamento dos dados. A implantação satisfatória em determinada localidade não significa sucesso em todas. Isto porque cada cidade tem características próprias, tanto de ocupação quanto de gestão, principalmente em se tratando de áreas informais. Sendo assim, conclui-se que as atuais pesquisas acadêmicas acerca do cadastro aplicado à regularização têm contemplado sobremaneira o aspecto técnico e negligenciando o aspecto social. Iniciativas que passem pelo reconhecimento efetivo de áreas menos acessíveis, representações em 3 dimensões e participação popular podem evidenciar necessidades que são específicas destas áreas, favorecendo a tomada de decisões e efetivando políticas públicas adequadas. REFERÊNCIAS ALFONSIN, B. de M. O Significado do Estatuto da Cidade para os processos de regularização fundiária no Brasil. Ministério das Cidades. Brasília, 2007. CARLOS, Ana Fani A. A (re)produção do espaço urbano. Editora da Universidade de São Paulo. São Paulo, 1994. ERBA, Diego Alfonso Catastro-multifinalitario aplicado a las politicas de suelo urbano. Capítulo 14: El Catastro y la Informalidad Urbana. Lincoln Institute of Land Policy. Cambrige, 2014. CONSIDERAÇÕES SOBRE O CADASTRO TERRITORIAL E A INFORMALIDADE URBANA 47 Capítulo 3 ERBA, Diego Alfonso; PIUMETTO, Mario Andrés. Making Land Legible: Cadastres for Urban Planning and Development in Latin America. Lincoln Institute of Land Policy. Cambrige, 2016. FERNANDES, Edésio. Regularización de asentamientos informales em América Latina. Lincoln Institute of Land Policy. Cambrige, 2011. INSTITUTO PÓLIS. Regularização da terra e da moradia: o que é e como implementar. São Paulo, 2012. ROSENFELDT, Yuzi Anai Zanardo; LOCH, Carlos. A cartografia como suporte para a inclusão urbana e social e viabilização procedimentos de regularização fundiária. Anais XXVI Congresso Brasileiro de Cartografia. Gramado, 2014. ROSENFELDT, Yuzi Anai Zanardo; LOCH, Carlos. O uso de imagens multitemporais para o planejamento urbano e caracterização de áreas irregulares. Anais XVII Simpósio Brasileiro de Sensoriamento Remoto – SBSR. João Pessoa, 2015. CONSIDERATIONS ABOUT TERRITORIAL REGISTER AND URBAN INFORMALITY ABSTRACT - The recurrent existence of informal settlements in Latin cities reflects the various management and planning problems they face. Because of their complexity and configuration, many of these spaces are not easy to identify and thus are not in the territorial records. This hinders the population’s access to the regularization process, maintaining its illegality and its distance from the infrastructure available to other sectors of the cities. The use of technologies in the identification and registration of these areas is a subject of recent studies, configuring an interesting state of the art for this theme. In this way, this paper presents some studies about the social question of informality and possibilities for its resolution, passing through the configuration of a territorial register and specific public policies. KEYWORDS: Urban informality; Land regularization; Register. CONSIDERAÇÕES SOBRE O CADASTRO TERRITORIAL E A INFORMALIDADE URBANA 48 CAPÍTULO 4 EVA, A MÃE DOS DESCAMISADOS Renata Alves Melki De Souza lattes.cnpq.br/2873277512380872 Pontifícia Universidade CatólicaPUC-SP São Paulo –SP RESUMO - Este capítulo busca mostrar a vida de Maria Eva Duarte, desde a infância no interior da Argentina, até sua adolescência e vida adulta quando se mudou para a capital Buenos Aires, para atuar como modelo e depois como atriz de radionovelas, onde ganhou destaque, trabalhando na principal companhia teatral do país. A partir de seu casamento com Juan Perón, coronel do exército argentino, passou a se dedicar à política e tornando-se primeira-dama, criou a fundação Eva Perón, onde dialogava com os mais pobres, mulheres e sindicatos, sendo crucial para manter o peronismo no poder. PALAVRAS-CHAVE: Evita; Peronismo; Descamisados. 1. INTRODUÇÃO O presente trabalho, tem como objetivo estudar a vida de Eva Perón, seu contato com a pobreza desde a infância, seu trabalho como atriz em Buenos Aires, o que possibilitou sua influência principalmente entre o exército. A partir de seu casamento com Juan Perón, articulou sua chegada à presidência e como primeira-dama, criou a fundação que leva seu nome, ampliando seu carisma e diálogo com os trabalhadores, mulheres e mais pobres, através de sindicatos, obras sociais e educação, permitindo a continuidade do peronismo. Outro ponto importante da pesquisa é mostrar a formação da cgt, como através de sua fundação, da doutrina peronista e educação, evita garantiu o direito de voto às mulheres argentinas, com sua liderança carismática, promoveu a justiça social através de seus discursos em defesa dos “descamisados” o que possibilitou a manutenção do poder e de sua memória. 1.1 Trajetória de vida familiar Eva Duarte nasceu em Los Toldos, em Buenos Aires, no ano de 1919, filha de Juana Ibarguren e Juan Duarte. Eva tinha cinco irmãos, mas vivia com a imagem de ser filha ilegítima, pois seus pais não eram casados legalmente, já que Juan Duarte possuía outra família em Chivilcoy. A família de Eva era EVA, A MÃE DOS DESCAMISADOS 49 Capítulo 4 modesta e ela viveu uma infância sem luxo. Juan Duarte abandonou Juana para viver com sua família legítima e, posteriormente, em 1926, a mãe de Eva recebeu a notícia de que Juan Duarte tinha falecido em um acidente de automóvel e foi com os filhos para acompanhar o velório. Porém, a família legítima de Juan Duarte a expulsou e aos seus filhos, impedindo que Eva visse o pai na hora da morte. Posteriormente, a família de Eva começou a sentir os efeitos da crise econômica que se iniciou em 1930. D. Juana, para sustentar os filhos, costurava em sua velha máquina e o que recebia contemplava apenas as despesas com alimentação da família. Na adolescência, morando em Junín, Eva tinha o desejo de se tornar atriz e logo se desligou da família, entrando em conflito com a mãe. Aos 15 anos foi para Buenos Aires, onde iniciou sua carreira de modelo e atriz, fazendo papéis em pequenas companhias de teatro e radionovelas. Segundo SARLO (2005), a atuação, a partir de seus papéis nas companhias maiores, moldou a trajetória e a figura política de Eva. Em A Razão de Minha Vida, Eva se declara uma ressentida social, pois desde criança, vivenciou a desigualdade em seu país e, principalmente, quando teve contato com o meio urbano, percebeu que a injustiça sempre a incomodou. Segundo SEMBRELLI (1971), Eva nunca se conformou com a pobreza da Argentina e se ressentia por não poder fazer nada em relação ao sistema injusto e excludente. Quando Eva chegou a Buenos Aires, em 1935, teve que se adaptar à cidade, por isso, se identificou com os trabalhadores pobres, pois não era a única que estava desamparada. Em A Razão de minha Vida, Eva diz: Assim, pulsando no meu coração, deparei-me com um sentimento fundamental que domina o panorama do meu viver: este sentimento é a minha decidida revolta contra a injustiça. Ao completar onze anos, comparei os pobres à grama dos campos e, os ricos, às árvores das florestas. Entretanto, ouvi de um trabalhador que a existência dos pobres era devida aos demasiadamente ricos. Compreendi, como num clarão, que ele tinha razão. Mais convencida pela razão, senti que dissera a verdade. Além do mais, já naquela época, os pobres, mais sinceros e bondosos, mereciam mais a minha fé do que os ricos. Logo percebi que a terceira dimensão era a injustiça social (PERÓN, 1951, p.11-2). A partir do círculo de trabalho no teatro e na rádio, que eram custeados pelos militares argentinos, Eva conheceu Juan Perón que, no exército, tinha a patente de coronel. Com esse encontro começou a sua transformação de atriz e modelo para a figura política, para a mulher engajada que discursa EVA, A MÃE DOS DESCAMISADOS 50 Capítulo 4 para multidões e, segundo Beatriz Sarlo, a aparência física de Evita, seus gestos, roupas, discursos e falas mudam quando ela entra na política. 1.2. O despontar de uma nova vida Evita chegou em Buenos Aires em 1935, a partir desse mesmo ano passou a integrar a companhia argentina de comédias e iniciou-se no ramo em que atuou com seus primeiros papéis. Continuou na mesma companhia, interpretando personagens secundários, que não geraram muitos comentários favoráveis a respeito de sua atuação ou de sua carreira. A companhia Argentina de comédias fez muitas apresentações pelo interior do país, passando por Rosário, Mendoza e Córdoba. Eva participou praticamente de todas as peças durante as viagens do grupo de teatro. Posteriormente Encerradas essas atuações, Evita volta a Buenos Aires e se junta à companhia de teatro de Pablo Suero, estrelando uma peça no teatro de Corrientes, em 1936. Logo depois, em 1937, ela se uniu à companhia dirigida por Armando Discépolo. Na década de trinta, quando Evita iniciou sua experiência como atriz, o teatro argentino passava por uma crise e estava em busca de público. Foi neste momento que Eva começou fazendo pequenas atuações em comédias curtas, mas os artistas eram mal remunerados e as condições de trabalho eram muito árduas. Em 1937, depois de alguns meses sem trabalho, Evita então integra a companhia de radioteatro, atuando em uma novela curta dirigida por Chas de Cruz e Alberto Echebehere. Posteriormente, integrou a companhia da Rádio Belgrano e a Companhia de Comédias e Sainetes de Leonor Rinaldi. Em 1939, passou a fazer parte da companhia de radioteatro da famosa atriz Camila Queiroga, da Rádio Prieto e da companhia de rádio teatro Del Aire, encabeçada pela própria Eva Duarte e Pascual Pellicciotto, com a qual fariam um programa na Rádio Mitre. Entre 1940 e 1942, Evita se dedicou ao rádio teatro. Em 1941, conseguiu um contrato de patrocínio da rádio por cinco anos e, no ano seguinte, já com a companhia juvenil de teatro, começou a fazer um número maior de peças. Em 1943, o governo argentino tomou o controle das rádios, ao mesmo tempo que Evita estava se firmando como atriz na Rádio Belgrano. A partir dessa fase, as revistas publicaram suas fotos e Eva ficou conhecida, chegando ao auge de sua carreira de atriz. VASSALLO (2009), em seu trabalho sobre as capas de revistas em que Evita apareceu, a mostra, em 1939, nas revistas Sintonía e Damas y Damitas, em 1940, na revista Guión, em 1944, nas revistas Antena e Radiolandia e, em 1951, já como primeiradama argentina, na revista Ahora. Também são apresentados nos anúncios da Rádio Belgrano, onde Eva Duarte se consagrou como atriz. EVA, A MÃE DOS DESCAMISADOS 51 Capítulo 4 1.3. O encontro e o casamento com Juan Perón Eva Duarte teve o primeiro contato com Juan Perón, em 1944, quando a província de San Juan, na Argentina, foi abalada por um terremoto. Perón, que na ocasião era militar, com a patente de coronel e secretário do Trabalho e Previdência, convocou industriais, artistas e argentinos importantes para ajudar nessa situação de tragédia, que fez dez mil mortos e doze mil feridos. Em todo o país foram organizadas comissões de solidariedade à população atingida. A Associação Radiofônica Argentina, que tinha como presidente Eva Duarte, promoveu um grande ato em benefício às vítimas do terremoto, ato esse, comandado pelo governo e assistido pelo general Perón. A partir desse momento, Eva como era radio atriz já conhecida, passou a participar das propagandas do governo pelo rádio, já que Perón fazia parte do serviço de imprensa estatal que investia muito pesado nesse setor. Eva se mobilizou na campanha de Juan Perón, quando este perdeu seu cargo em 17 de outubro. Assim que Perón se recupera das perdas e ganha as eleições para a presidência, se casa com Eva. Segundo SANTAYANA (1976), o casamento foi uma cerimônia civil, para poucas pessoas, celebrada pelo juiz de paz de Junín. A cerimônia religiosa foi realizada na cidade de La Plata, quarenta dias depois. A relação de Perón e Evita se consolidou logo após o terremoto em San Juan, quando em 1944, em meio a um cenário político conturbado pelas divergências entre os grupos militares, o casal fez sua primeira aparição pública. Em A Razão de minha Vida, Evita descreve o dia em que conheceu Perón como um “dia maravilhoso”. Em sua biografia, ela se refere a esse momento dizendo: Finalmente, chegou o dia maravilhoso, quando minha vida coincidiu com a de Perón. Aquele primeiro encontro deixou no meu coração uma impressão indelével. Não posso furtar-me ao prazer de descrevê-lo, porque ele assinalava o início da minha verdadeira existência (PERÓN, 1951, p.19). Evita percebeu, que daquele momento em diante, o seu caminho a seguir seria ao lado de Perón e da causa que ele representava: Naquele momento, senti que os seus gritos e caminho eram os meus próprios gritos e caminho. Coloquei-me a seu lado. Surpreendeu-me. E, quando, afinal, me ouviu, só atinava em dizer-lhe com as melhores palavras: — Se a causa do povo é como afianças, tão longe quanto se deva ir pelo caminho do sacrifício, estarei ao teu lado até desfalecer. Ele aceitou minha oferta e aquele foi o meu dia maravilhoso (PERÓN, 1951, p.19). EVA, A MÃE DOS DESCAMISADOS 52 Capítulo 4 1.4. A política e o carisma na Argentina peronista Evita tinha atividades de ajuda social, inaugurou escolas, hospitais, abrigos e trabalhava em favor dos pobres e miseráveis na Argentina peronista. Era uma primeira-dama incomum, pois não queria somente ir a eventos para cumprir os protocolos da presidência, mas sim trabalhar em prol da causa de Perón. Por isso, se aproximou dos trabalhadores com seus discursos na rádio, visitas aos sindicatos, atividades no Ministério do Trabalho e Secretaria de Trabalho e Previdência. Essa proximidade foi responsável pelo êxito dos primeiros anos de governo peronista. Em sua biografia, Juan Perón relata que Evita se dedicou ao trabalho político e social, trabalhava incansavelmente na fundação que levava seu nome: Eva no tenía horas, trabaja permanentemente. No sé de dónde sacaba tan fantástica resistencia. Acaso le daba fuerzas. La mística de su fanatismo1 (PERÓN, 1976). Segundo Perón, Evita gostava de tratar com as pessoas, tinha contato com o povo, de onde vinha sua força, tinha domínio sobre o coração dos argentinos. Eva era figura central no regime peronista. Em 1950, recebeu uma carta do papa Pio XII agradecendo as obras de caridade feitas pela Fundação Eva Perón. A primeira-dama foi muito importante, pois foi a principal divulgadora das ideias do peronismo, exercia funções essenciais na Secretaria de Trabalho e Previdência, atendendo as pessoas humildes, trabalhadores, recebendo suas cartas com os problemas que os afetavam. O grande papel de Evita foi o de chefe espiritual da nação, que via em Perón o grande líder. Os argentinos pobres, humildes e trabalhadores, enxergavam a Evita como a esperança de uma Nova Argentina: justa, livre, com igualdade e trabalho. À primeira-dama, cabia o contato com os seguidores do peronismo, pois suas funções iam muito mais além dos oficiais. Ela era uma figura necessária na relação entre os sindicatos e o governo, entre o poder e os humildes, a porta-voz de Perón diante do povo argentino, além de sua representação no Estado de bem-estar social. Segundo SEMBRELLI (1971), Evita foi uma primeira-dama incomum, pois estava mais próxima da população mais pobre. Segundo o autor, existiam duas Evitas, a primeira-dama que cumpria os protocolos que o seu cargo exigia e a Evita mais próxima ao povo, que priorizava o amor à pátria e a Perón. O autor expõe que Evita começa a se destacar a partir de 1943 e que desde o início do controle dos meios de comunicação pelos militares na Argentina, os discursos da primeira-dama começaram a ser transmitidos e dirigidos aos operários do país. A partir de 1945 a aparência de Eva mudou, seus gestos e roupas também, o que teve um peso decisivo para sua atuação política e contribuiu também para a ideia da realização do peronismo. Evita representava a EVA, A MÃE DOS DESCAMISADOS 53 Capítulo 4 realização do regime. Segundo NAVARRO (1994), se esperava dela um comportamento conforme o estabelecido pela tradição, pois não era comum que a esposa do presidente acompanhasse ou falasse em seu nome. A senhora Perón tinha a função de atender a todos que buscavam contato com seu marido e a presença da primeira-dama no Ministério do Trabalho teve um sentido simbólico e buscou diminuir a distância entre o governo e os trabalhadores, objetivando também adaptar as estruturas de poder à realidade argentina, a partir de 1945. Em A Razão de minha Vida, Evita fala em relação às suas funções dentro do peronismo e na Secretaria de Trabalho e Previdência: Enquanto existir, não me esquecerei de que Perón me recomendou seus trabalhadores descamisados na hora mais difícil da sua vida, não me esquecerei da sua prova de amor, confiando-me o cuidado de seus operários. (PERÓN, 1951, p.27). Tinha lutado intensamente na Secretaria de Trabalho e Previdência. O povo me compreendia. Os trabalhadores do país sabiam agora o que era justiça social e trilhavam meu rastro, como no encalço de uma bandeira (PERÓN, 1951, p.32). Bem, a verdade é que Perón é a alma de tudo o que tenho feito, de tudo o que faço e de tudo o que farei de bom pelo resto da minha vida. O que faço nessas audiências com os mais humildes descamisados do meu povo, os pobres, é assaz simples. Normalmente os recebo na Secretaria (PERÓN, 1951, p.107). Em seus discursos, Evita deixava claro ser a ponte entre Perón e seu povo, por terem sido falas com uma grande carga emocional, sua experiência teatral e de propaganda política lhe deram segurança para dialogar com os sindicatos. As transformações políticas na Argentina, a partir de 1943, ajudaram a atuação de Evita como primeira-dama, na propagação do regime peronista e, principalmente, na liderança de Perón. As performances de Eva como primeira-dama argentina formalizaram sua relação com as massas, transformando os momentos de convívio público em grandes espetáculos de gestual e retórica. Ela atuava não só respondendo às necessidades do povo, mas como conselheira, chefe espiritual, orientando os menos privilegiados. Segundo Juan Perón, Evita tinha um domínio extraordinário sobre as pessoas desde o início de seu trabalho com os líderes sindicais. EVA, A MÃE DOS DESCAMISADOS 54 Capítulo 4 1.5. Evita e a CGT A CGT, Confederação Geral do Trabalho, era uma instituição que reunia todos os sindicatos e organizações dos trabalhadores. A partir da presidência de Perón e da liderança de Evita, maior quantidade de grupos de trabalhadores passou a aderir à instituição. Anteriormente, na Secretaria de Trabalho e Previdência, em 1946, o seu principal objetivo foi atender aos necessitados, sendo indispensável na relação entre sindicatos, grêmios e o governo peronista, ela era responsável por promover a ajuda social dentro do regime. Em relação à CGT, as principais atividades da primeira-dama eram: manter a união sindical, ser a ponte entre Perón e os trabalhadores e distribuir roupas e alimentos. Além de atender às cartas com pedidos da população necessitada e a conversa com os sindicatos, a importância do trabalho de Eva na CGT era a de manter os benefícios conquistados pelos trabalhadores e escutar e transmitir as reivindicações a Perón. Também era função da primeira-dama o controle dos sindicatos e impedir enfrentamentos entre seus diferentes grupos. Porém, sua principal missão era convencer os trabalhadores de que a solução de seus problemas se encontrava no Estado, ou seja, em Perón e não nos grupos que buscavam autonomia para lutar por suas causas. La esposa del primer mandatario señora Maria Eva Duarte de Perón, acudió en horas de la Mañana de hoy a su despacho la Secretaria de Trabajo y Previsión, abocándose al estudio de nomerosos problemas gremiales que le fueron planteados por destintos grêmios. Se hallaban presentes, entre otras, las seguintes delegaciones: Unión obrera maderera, Unión obrera de la construción, F.O.E.V., Agrupacion peronista telefônica de la capital2 (Secretaria de Trabalho e Previdência 1948) 1.6. A fundação Eva Perón o fortalecimento de seu carisma A obra social de Evita fez parte de um plano de reestruturação do país iniciado em 1943 pelo governo argentino. Anteriormente à presidência de Perón, as senhoras da elite argentina, “damas da beneficência” tinham a ideia de que Eva Perón, mesmo tornando-se a primeira-dama do país, não era digna de administrar as instituições as quais comandava. Diante disso, Eva criou a Fundação Eva Perón, em 1948. A instituição tinha recursos de doações dos próprios trabalhadores, subsídios do governo e arrecadações em eventos sociais. A atividade social se iniciou em 1948, com a construção Em tradução livre: “A esposa do primeiro mandatário, senhora Maria Eva Duarte Perón, dirigiuse pela manhã a seu gabinete na Secretaria de Trabalho e Previsão dedicando-se ao estudo de numerosos problemas de associações, que foram propostos por diferentes agremiações. Se encontravam presentes, entre outras, as seguintes delegações: União Operária dos Madeireiros, União Operária da Construção, F.O.E.V., Grupamento peronista da telefônica da capital.” 2 EVA, A MÃE DOS DESCAMISADOS 55 Capítulo 4 dos primeiros abrigos e com o que Evita chamou de Cruzada Social, na qual foram distribuídas roupas e comida para os que necessitavam. A FEP se preocupava com a educação e a saúde de crianças, pois construiu escolas, abrigos e clínicas médicas para cuidar das que estavam em situação de abandono, doentes ou que não tinham apoio familiar. Também foram construídos abrigos para idosos e moradores de rua. Um dos feitos principais da instituição em relação à saúde foi o Plano de Saúde Pública e o trem sanitário, em 1951, que percorreu o país fornecendo assistência médica. O principal objetivo da fundação era o cuidado moral, material e espiritual das crianças, mulheres e idosos, dando outro sentido ao que se considerava justiça social. A Fundação Eva Perón, segundo PLOTKIN (1993 a), gerou mitos ao redor da primeira-dama argentina e foi importante na construção do imaginário político peronista. Segundo o autor, a fundação foi um braço do regime peronista para conseguir apoio de outros setores além dos trabalhadores e sindicatos, incorporava os estratos mais vulneráveis da população, formados por crianças e mulheres pobres e se encaixava na política peronista de bemestar social. A obra social de Maria Eva Duarte estava muito bem organizada, era uma ponte entre o governo e os humildes, entre o poder e o povo. A fundação era uma instituição politizada e os serviços sociais oferecidos foram utilizados para a construção do imaginário do peronismo. Ao proporcionar serviços úteis associados à propaganda, a instituição contribuiu para a politização da vida cotidiana. A imagem de Evita trabalhando além de sua resistência, a favor dos humildes foi um componente muito importante para a máquina de propaganda oficial. Portanto, a fundação não serviu somente para dar assistência aos pobres, mas atuou também como fonte para a construção de seu carisma e para modelar sua imagem. Segundo NAVARRO (1994), a fundação fez parte de uma tentativa do governo de se diferenciar da sociedade de beneficência, como era entendida na década de 1930, modificar o aparelho do Estado e ter um controle maior sobre algumas instituições e que, com o tempo, o trabalho de ajuda social foi ganhando traços da personalidade de Evita. Não havia dúvidas do sentido social da fundação e nem do sentido político em cada hospital, abrigo ou escola que foi construído: Con asiento en esta capital ha sido creada la Fundación de Ayuda Social María Eva Duarte de Perón, con el carácter de persona jurídica y conforme el artículo 33 del Código Civil [...] Tendrá por fines prestar ayuda pecuniaria o em especie, facilitar elementos de Trabajo, otorgar becas para estudios universitarios y especializados3(Fundación Eva Perón 1949). EVA, A MÃE DOS DESCAMISADOS 56 Capítulo 4 1.7. A justiça social para Perón e Evita Os lares e abrigos construídos pela Fundação Eva Perón tinham uma aparência luxuosa, para demonstrar que os setores mais pobres da população argentina também tinham o direito de se sentir acolhidos e considerados pelo Estado, principalmente graças à atuação de irmandades e ordens religiosas nos abrigos e hospitais da fundação. Além do trabalho, havia a obrigação e o comprometimento com a justiça social e o Justicialismo. O sentido que Evita dava à justiça social era na resolução dos problemas dos trabalhadores e no próprio trabalho social, principalmente com mulheres e crianças em situação de marginalidade. A justiça social, não só para a primeira-dama, mas para o governo peronista, estava ligada à satisfação das necessidades humanas, principalmente dos trabalhadores, com roupas, alimentos e remédios e com um programa de aumento de salários, mesmo que com essa medida o governo não tenha conseguido deter a má distribuição de renda e a inflação. Houve também um aumento de programas de habitação para trabalhadores pobres e cidades do interior do país. Por sua vez, o Ministério da Saúde criou uma estratégia para prevenir doenças e epidemias, redistribuiu os médicos para atender aos cidadãos argentinos, além das iniciativas para trazer saneamento à população. Segundo ROSS (1993), para Evita, existia justiça, mas uma justiça incompleta, que não chegava à maioria da população. A primeira-dama redefine a noção de ajuda social ligando-a a um ato de justiça, em oposição à simples beneficência. Devemos entender justiça social como um objetivo do governo e a ajuda social como um novo modo de intervenção política, mas para Eva Perón, era entendido como ato de amor e sacrifício pelos humildes e trabalhadores. 1.8. Evita e os “Descamisados” A relação de Evita com os trabalhadores e a população humilde da Argentina tinha um sentido de comunidade, a ideia de sacrifício da própria primeira-dama para o povo e para Perón era uma relação familiar, do povo com o líder político. A pátria carregava a noção de filhos e de um Estado que era o protetor desses filhos. No caso, eram os trabalhadores e Perón os dois principais componentes dessa relação familiar, pois todas as queixas e problemas Eva levava até o coronel, como uma intermediária entre o Estado, o poder e o povo. EVA, A MÃE DOS DESCAMISADOS 57 Capítulo 4 1.9. Eva Perón e as mulheres A lei do voto feminino, em 1947, assinada por Evita e a criação do Partido Peronista Feminino tiveram uma grande importância na inclusão das mulheres no corpo político, fizeram parte da expansão e ampliação do peronismo como regime e, segundo BARRY (2009), foram decisivos para o segundo mandato de Juan Perón. As mulheres que faziam parte do partido feminino eram escolhidas por Evita devido à sua lealdade. A primeira-dama, a partir de sua força política, foi o espelho para essas mulheres e o principal instrumento de inclusão na sociedade. A criação do partido feminino ajudou a construir a liderança de Eva Perón, porém não buscava somente esse propósito, mas também o controle social e eleitoral para aumentar a base de sustentação do regime peronista. As mulheres escolhidas por Evita trabalhavam nas Unidades Básicas Femininas, que tinham uma política voltada para mulheres e crianças e para a proteção da família. Elas trabalhavam principalmente em ligação com a Fundação Eva Perón, pois a ajuda social era um dos objetivos do partido. Com a liderança de Eva, as mulheres conseguiram mais presença política, sendo candidatas a cargos importantes e participando do rol eleitoral. Após a morte da primeira-dama, o partido feminino se enfraqueceu, mas continuou suas funções com Juan Perón escolhendo as dirigentes e permaneceu a imagem da líder, o seu exemplo e missão de lutar pela causa e pela pátria com lealdade, heranças que deixou para as peronistas. O Partido Peronista Feminino iniciou suas atividades em 1949, sua função era permitir a participação política das mulheres e o exercício de sua cidadania através do trabalho nas unidades básicas, espaço de atuação feminino e extensão do lar. Por isso, baseando-se no sacrifício e na fé peronista, tiveram Evita como líder e condutora do partido e responsável pela mudança da realidade anterior de pouca atuação feminina. El sábado a mediodía fue bendecido y inaugurado el segundo hogar de tránsito María Eva Duarte Perón ubicado en la calle Lafinur 2866, donde la mujeres desvalidas recibirán en adelante la protección que les ofrecerá la obre de ayuda social que dirige la esposa del jefe de Estado4 (Fundación Eva Perón 1949) 2. A Morte e os órfãos da nação O falecimento da primeira-dama argentina contribuiu para o reconhecimento da imagem que Evita tinha de chefe espiritual da nação e mãe dos humildes, pois a população acompanhou de perto o estado de saúde de Em tradução livre: “No sábado ao meio-dia, foi benzido e inaugurado o segundo lar de trânsito Maria Eva Duarte Perón, localizado à rua Lafinur 2866, onde as mulheres desamparadas receberão, doravante, a proteção que lhes oferecerá a obra de assistência social dirigida pela esposa do chefe de Estado.” 4 EVA, A MÃE DOS DESCAMISADOS 58 Capítulo 4 Eva. Todos os meios de comunicação argentinos noticiaram, as instituições lhe renderam homenagens, além das milhares de pessoas presentes nas ruas e na Plaza de Mayo, com tochas e depositando flores debaixo de um enorme quadro com o retrato de Evita. Perón também recebeu condolências da Secretaria de Trabalho e Previdência. A morte de Evita, deixou um grande vazio para o peronismo e a atitude do líder diante da situação foi retomar ele mesmo as atividades sociais e políticas, mesmo assim não teve êxito como Evita, pois não conseguia se comunicar com a população como fazia a primeira-dama. A partir da morte, sua figura teve uma projeção maior do que no momento em que estava viva, pois o seu corpo foi sacralizado e sua imagem ligada com a de uma santa. A CGT organizou o funeral de Evita e reclamou o traslado do corpo, além da organização de celebrações em homenagem à primeira-dama. Segundo Loris Zanatta, O jornal Diário de Notícias fala sobre o dia em que Perón assumiu as atividades da fundação Evita: Assumirá a direção da fundação: A partir da próxima segunda feira o presidente Perón assumirá a direção da fundação Eva Perón. A rádio do estado argentino num comunicado difundido hoje, 4 da tarde, anuncia, por outro lado, que o presidente Perón três vezes por semana utilizará o gabinete que sua esposa ocupava para atender os necessitados (ZANATTA, 2011). De acordo com SEMBRELLI (1971), tornou-se impossível camuflar a doença da primeira-dama e quando ela chegou ao estado terminal, articularam-se manifestações das massas e a ideia mística se concretizou, pois, a fé sentida e praticada deu mais importância para a figura de Evita. No jornal Diário de Notícias falou-se das homenagens à primeira-dama: Como expressão de homenagem à esposa do chefe de Estado, a chefatura de polícia federal resolveu que: a partir de hoje e diariamente, em todas as dependências da repartição, às 20 horas e 25 minutos, quando ocorreu o passamento da Sr. Eva Perón, “chefe espiritual da nação”, seja guardado um minuto de silêncio em sua memória (DIÁRIO DE NOTÍCIAS, 1952). Gente de todas as partes percorreu quilômetros para velar o corpo de Eva Perón. A Fundação Eva Perón dividia a água e a comida, a polícia mantinha a ordem. O corpo da primeira-dama foi velado por quinze dias, primeiro no ministério do trabalho, depois no Congresso e, finalmente, na CGT, onde permaneceu e fez-se o traslado em presença de chefes militares. As cadeias de rádio todo os dias anunciavam: EVA, A MÃE DOS DESCAMISADOS 59 Capítulo 4 El último punto de la señal escuchada indicó las veinte y veinticinco, hora en que Eva perón, Jefa espiritual de la nación entró en la inmortalidad5 (RIAL-VÁSQUEZ, 2005, p.494) REFERÊNCIAS BARRY, Carolina. Eva Perón y la organización politica de las mujeres, in: Vargas y Perón aproximaciones y perspectivas. Editora Memorial da América Latina,São Paulo, 2009. NAVARRO, MARYSA. Evita. Buenos Aires: Planeta, 1994 ROSS, PETER. Justicia social, una evaluación de los logros del peronismo clássico, anuário IEHS, 1993, p. 1-20. PERÓN, EVA. La Razón de mi Vida. Buenos Aires: Ediciones Peuser, 1951. PERÓN, JUAN D. Yo, Juan Domingo Perón: relato autobiográfico. Barcelona: Editorial Planeta, 1976. ______. Doutrina Peronista, filosofia política social. Buenos Aires: 1947. PLOTKIN, MARIANO BEN. Mañana es San Perón: A Cultural History of Perón ‘s Argentina. Wilmington: SR Books, 1993. SANTAYANA, MAURO. 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EVA, A MÃE DOS DESCAMISADOS 60 Capítulo 4 EVA, THE MOTHER OF THE SHIRTLESS ABSTRACT - This article seeks to show the life of maria eva duarte, from her childhood in the interior of argentina, to her adolescence and adult life when she moved to the capital buenos aires, to work as a model and then as an actress in radio soap operas, where she gained prominence, working in the main theater company in the country. From her marriage to juan perón, colonel of the argentine army, she began dedicating herself to politics and becoming first lady, created the eva perón foundation, where she dialogued with the poorest, women and unions, being crucial to maintain peronism in the power. KEYWORDS: Evita; Peronism; Shirtless. EVA, A MÃE DOS DESCAMISADOS 61 Capítulo 5 CAPÍTULO 5 O TRABALHO PRESCRITO E O REALIZADO À LUZ DO REAL DA ATIVIDADE Márcia Donizete Leite Oliveira lattes.cnpq.br/2528181622389737 Faculdade Campos Elíseos – Barueri - SP. RESUMO - Este artigo objetiva apresentar as relações entre o trabalho prescrito e o realizado à luz do que chamamos real da atividade do trabalho (CLOT, 2006). E, como objetivos específicos, investigar que ações são prescritas e quais são realizadas antes e durante uma atividade de trabalho. Para tanto, investigamos possíveis modificações, reformulações ou (re) concepções do agir profissional, bem como, alguns procedimentos realizados pelo trabalhador em sua prática diária. Isto pode nos revelar fatores que interferem direto e indiretamente no agir profissional, que contribui para uma maior compreensão do trabalho prescrito, realizado e do real da atividade, levando uma melhor interação do trabalho coletivo. Além disso, analisar esses fatores constitui para auxiliar o esse profissional a encontrar meios, métodos, procedimentos e formas de agir capazes de tornar seu trabalho mais satisfatório e, consequentemente, encontrar formas de agir que possam ajudá-lo a superar eventuais dificuldades em seu métier. Este estudo com base na pesquisa bibliográfica está fundamenta nos trabalhos de Clot (1999/ 2006; 2010) para tratar de questões voltadas ao trabalho prescrito, realizado e real da atividade; e com aportes teóricos de Bronckart (2008); da Ergonomia da Atividade e da Clínica da Atividade. Os resultados mostram que o trabalhador ao realizar o trabalho prescrito, realizado e o “real da atividade”, se autoregula, se transformando e mudando seu próprio coletivo de trabalho. E os recursos utilizados por ele estão intimamente ligados ao seu trabalho prescrito, realizado e ao real da atividade. PALAVRAS-CHAVE: Trabalho prescrito; Real da Atividade; Trabalho realizado; Agir profissional. 1. INTRODUÇÃO Este artigo tem como objetivo principal apresentar as relações entre o trabalho prescrito e o realizado à luz do que chamamos real da atividade do trabalho, ou seja, daquilo que é realizado e de tudo aquilo que deixamos de realizar quando somos amputados do nosso O TRABALHO PRESCRITO E O REALIZADO À LUZ DO REAL DA ATIVIDADE 62 Capítulo 5 poder de agir (CLOT, 1999/2006). E, como objetivos específicos mostrar como as ações dos trabalhadores são prescritas e como são realizadas antes e durante a efetivação de seu trabalho. Para tanto, investigamos possíveis modificações, reformulações ou (re) concepções do agir desses profissionais que ocorrem no “real da atividade” em seu métier de trabalho. Este estudo com base na pesquisa bibliográfica com abordagem qualitativa e descritiva tem como base teórica os trabalhos de Clot (1999/2006; 2010) e os aportes teóricos da Ergonomia da Atividade para as questões voltadas ao trabalho prescrito, realizado e real da atividade. E, a partir de alguns aspectos investigados e analisados por Bronckart (2008), pela Clínica da Atividade e pela Ergonomia da Atividade, este trabalho pode nos levar a uma compreensão diferenciada do que é efetivamente é o trabalho em uma concepção mais ampla e complexa. É importante ressaltar que este artigo apresenta os conceitos de trabalho em uma visão ergonômica, discutindo alguns conceitos teóricos, como: trabalho, tarefa e atividade, para diferenciá-los e relacioná-los aos conceitos de trabalho prescrito, realizado e real da atividade, que serão apresentados nas próximas seções. Apresenta, ainda, uma abordagem da Clínica da Atividade e sua relação com o trabalho. A apresentação e discussão desses conceitos têm o objetivo de contribuir para a compreensão do conceito de trabalho em uma visão panorâmica, socio internacional e ergonômica na visão da Clínica da Atividade Francesa. Ressaltamos ainda que, algumas pesquisas buscam revelar parte da complexidade do trabalho realizado e algumas delas apresentam intervenções que podem auxiliar o trabalhador em sua prática profissional. Porém, nossa pesquisa difere dessas abordagens por propor uma análise e compreensão do que ocorre entre o trabalho prescrito e o realizado do trabalhador durante a realização de sua atividade diária. Além disso, mostra que este trabalho é constituído por procedimentos utilizados pelo trabalhador com o auxílio de artefatos (materiais e/ou simbólicos), utilizados em sua prática profissional, bem como possíveis modificações, reformulações ou (re) concepções que podem revelar fatores que interferem de modo significativo em seu agir. Além disso, reiteramos que com essa maior compreensão do trabalho e com uma melhor interação do trabalho com seu coletivo, este profissional pode encontrar meios, métodos, procedimentos e formas de agir capazes de tornar seu trabalho mais satisfatório e, consequentemente, formas de agir que possam ajudá-lo a superar as dificuldades encontradas em seu métier. 2. O TRABALHO EM UMA PERSPECTIVA ERGONÔMICA Nesta seção, apresentamos os conceitos norteadores do trabalho, pautados em estudos que julgamos compatíveis com a nossa corrente teórica. Para que possamos refletir sobre o trabalho docente, realizamos uma breve retomada dos conceitos de trabalho discutidos pela Ergonomia e pela Clínica O TRABALHO PRESCRITO E O REALIZADO À LUZ DO REAL DA ATIVIDADE 63 Capítulo 5 da Atividade desenvolvida por Yves Clot, visto que esses aportes teóricos levam-nos a uma maior compreensão do trabalho docente, conceito esse que contemplamos nesta pesquisa. Nossa pretensão, aqui, não é expor um histórico minucioso das origens e dos desenvolvimentos da Ergonomia e da Clínica da Atividade. Nosso propósito é enfatizar a relevância dessas áreas e a relação entre essas correntes, que abordam os conceitos relacionados ao trabalho, para chegarmos ao que se denomina real da atividade1 docente. Assim, delimitamos de que forma essas correntes se originaram e evoluíram na França, desde as primeiras décadas do século XX até os dias atuais, e como conceituaram o termo trabalho. Para melhor estabelecer essa relação, apresentamos, a seguir, a trajetória dessas correntes intimamente relacionadas à Psicologia do Trabalho. 3. A ERGONOMIA E OS CONCEITOS DE TRABALHO A Ergonomia é considerada por muitos autores uma ciência jovem, de caráter interdisciplinar, por isso suas bases teórico-metodológicas encontram-se em consolidação. Essa ciência ou corrente, como chamamos, fundada oficialmente por Murrel em 1949, tem como objeto teórico e de ação o trabalho. A partir de seu surgimento, o principal objetivo da Ergonomia era a análise dos problemas de funcionamento dos operadores humanos. Por estar centrada na saúde ou na segurança dos trabalhadores, buscava também amenizar os malefícios causados pelo processo de industrialização da época. Entretanto, foram nos países francófonos que essa corrente passou por mudanças mais significativas em seu paradigma. Surge, assim, a Ergonomia Francesa, que se opôs ao paradigma taylorista, substituindo “a adaptação do homem ao trabalho pela adaptação do trabalho e de suas condições gerais aos trabalhadores” (BRONCKART, 2008, p.97). Segundo o autor (2008), essa abordagem geral volta-se para a análise da atividade efetiva do trabalho, tendo como preocupações os problemas concretos em situação e tempo reais de trabalho. No entanto, para que possamos compreender melhor essa explicitação, é preciso entender o que os ergonomistas definem como trabalho real2. Conforme Daniellou, Laville, Teiger (1983, p.84), não podemos definir trabalho real sem levar em consideração o “conjunto de aspectos das relações entre o operador e as tarefas que ele deve realizar, como ainda, apreender o trabalho do ponto de vista dos operadores”. Ao considerarmos esse conjunto de aspectos, compreendemos que há um distanciamento entre o trabalho prescrito ou pré-definido e o trabalho tal como é vivenciado pelos operadores. É esse distanciamento justamente denominado pelos autores como trabalho A expressão “real da atividade” será explicitada na seção referente à Clínica da Atividade. 1 2 Trabalho real – conceito teórico segundo a Ergonomia. O TRABALHO PRESCRITO E O REALIZADO À LUZ DO REAL DA ATIVIDADE 64 Capítulo 5 real. Nas palavras de Teiger, O trabalho prescrito ou esperado dá-se no nível local de organização do trabalho, que fixa regras ou objetivos que levam em conta as especificidades locais; [O trabalho real dá-se] no nível da atividade de uma pessoa [...] em um determinado tempo [...] em que se revelam o saber-fazer e os conhecimentos dos operadores, em que se opera a ação do corpo inteiro para construir compromissos operatórios, em que se constrói a relação subjetiva com o trabalho (TEIGER, 1993, p.84 [grifo nosso]). Assim, nessa abordagem ergonômica, a autora centra-se na atividade do operador no trabalho. É importante ressaltar que o termo atividade, para a Ergonomia, está relacionado à atividade dos operadores, isto é, “ao que ele faz e também ao que ele vivencia para realizar essa atividade” (TEIGER apud BRONCKART, 2008, p. 97). A atividade pode ser apreendida por meio de determinados procedimentos de observação em relação aos comportamentos dos trabalhadores e por outros procedimentos que visam à verbalização deles em relação às suas próprias representações das situações de trabalho e dos vários aspectos vivenciados por eles (BRONCKART, 2008, p.98). O autor, com base em Teiger (1977), ressalta que: Essa atividade é concebida como um objeto em princípio enigmático, que as teorias buscam (re-) construir ou (co-) construir com os trabalhadores, como também provenientes de um compromisso entre as exigências das tarefas predefinidas e os recursos efetivos que podem ser mobilizados pelos trabalhadores (BRONCKART, 2008, p. 98). Na conceitualização de Teiger (1992, p.113), o trabalho é visto como “uma atividade finalística, realizada de modo individual ou coletivo numa temporalidade dada, por um homem ou por uma mulher singular, situada num contexto particular que estabelece as exigências imediatas da situação”. Segundo a autora, o trabalho não é uma atividade neutra, pois engaja e transforma aquele que o executa. Para Teiger (1992, p.114), o trabalho é uma atividade mediadora que envolve o sujeito e um contexto singular, isto é, envolve a manifestação da interação entre o sujeito trabalhando e o seu ambiente lato sensu. Representa cada um desses elementos a realidade, a materialidade do trabalho. Nessa perspectiva, destacamos dois aspectos: 1. A interação pode ser compreendida fora de um sentido linear, ou seja, em uma relação direta entre “sujeito e O TRABALHO PRESCRITO E O REALIZADO À LUZ DO REAL DA ATIVIDADE 65 Capítulo 5 contexto”, em que o sujeito ao agir sobre o meio, de forma direta ou indireta com uso de artefatos, pela atividade de trabalho, é transformado por esta, decorrente dos efeitos e dos resultados de sua ação. 2. Esta interação não se dá por uma estimativa, pois é guiada por objetivos estabelecidos pelo sujeito com seu objeto de ação, “cuja estruturação [...] dá sentido à interação e é resultado de um processo de apropriação do que foi prescrito pela organização de trabalho” (TEIGER, 1992, p.114). Como evidente, trabalho, para a Ergonomia, segundo Teiger (1992), não é um conceito abstrato, pois toma forma. Nas palavras da autora, é um conceito “encarnado em um corpo”, marcado pela “temporalidade e em um determinado contexto” (TEIGER, 1992, p.114). Por “se encarnar em um sujeito singular”, o trabalho torna-se uma atividade interativa e transformadora, que envolve e engaja o sujeito em toda sua totalidade (corpos biológicos, cognitivo, subjetivo). Isso marca a inserção da história singular desse sujeito na sua relação social com o meio. A autora ressalta, ainda, que, em seu sentido mais amplo, o trabalho é compreendido em seu ambiente, em suas condições, organizações e relações sociais e no contexto socioeconômico no qual está inserido. Portanto, segundo essa concepção, o trabalho é compreendido como uma atividade situada. Dejours e Molinier (1994, p.61) complementam essa perspectiva, afirmando que “o trabalho é uma atividade coordenada de homens e mulheres para responder ao que não está posto, desde o início, pela organização prescrita do trabalho”. Terssac (1995, p.8) apresenta a relação entre o trabalho prescrito e o realizado: O trabalho é uma ação coletiva finalística. É uma ação “organizada”, porque ela se situa num contexto estruturado por regras, convenções, culturas. É também uma ação organizadora, porque ela visa, não somente preencher as lacunas provenientes das imprecisões da prescrição, mas produzir um acordo, um espaço de ações pertinentes. É pela ação que se define, de forma interativa, o problema e a solução. É na ação que se operam as trocas de informações e que se constroem as formas de agir (TERSSAC, 1995, p. 8). Segundo Dejours (1992), isso reforça o caráter do trabalho como um objeto de múltiplas dimensões e vários significados, o que permite identificar um elo, ou seja, uma preocupação com o trabalhador quando se demonstra como é ou como seria realmente a atividade desse trabalhador. Para o autor, é relevante o fato de a Ergonomia Francesa ter dado destaque O TRABALHO PRESCRITO E O REALIZADO À LUZ DO REAL DA ATIVIDADE 66 Capítulo 5 ao distanciamento entre o trabalho prescrito e o real. Além disso, segundo Terssac (1995), os enfoques que evidenciam esse distanciamento mostram a esperteza ou a coragem dos trabalhadores diante de certas lacunas nos seus trabalhos. 4. TRABALHO, TAREFA E ATIVIDADE, COMO DIFERENCIÁ-LOS? Pelo fato de os termos trabalho, tarefa e atividade serem conceitos teóricos discutidos e definidos por algumas disciplinas, como a Ergonomia, consideramos que é relevante apresentar a diferença entre essas definições, visto que utilizamos esses conceitos com base na Ergonomia e na Clínica da Atividade. Segundo Guérin et al. (2001), a Ergonomia define as regras do trabalho e, consequentemente, se interessa pelas condições dele. Para os autores, é preciso reconhecer que a palavra trabalho abrange várias realidades, como mostra o uso corrente apresentado em várias pesquisas: as condições de trabalho (penoso, social); o resultado do trabalho (bem feito ou não); ou a própria atividade de trabalho (meticuloso, denso). Por esse motivo, os autores afirmam que a “atividade, as condições e o resultado da atividade” (GUÉRIN et al., 2001, p. 14) não existem isoladamente. O trabalho é, assim, a unidade dessas três realidades, conforme representado na figura a seguir: Figura 1: O trabalho Fonte: GUÉRIN et al., (2001). A tarefa, por sua vez, é definida como “resultado antecipado fixado, dentro das condições de trabalho determinadas” (GUÉRIN et al., 2001, p. 15), isto é, ela mantém uma estreita relação com o trabalho por meio das condições e dos resultados deste. A tarefa não é o trabalho, mas o que O TRABALHO PRESCRITO E O REALIZADO À LUZ DO REAL DA ATIVIDADE 67 Capítulo 5 é prescrito pela empresa (instituição) ao operador (trabalhador). Essa prescrição, imposta a ele, é, portanto, externa, determina e constrange3 sua atividade, mas, ao mesmo tempo, é indispensável para que esse trabalhador possa operar: ao determinar sua atividade, ela o autoriza” (GUÉRIN et al., 2001, p.15). Entretanto, segundo Guérin et al. (2001, p.14), “essa relação é o do objetivo à realidade: as condições determinadas não são as condições reais, e o resultado antecipado não é o resultado efetivo”. Essa é a primeira razão pela qual a tarefa não deve ser confundida com o trabalho, segundo os autores, como representada a figura a seguir: Figura 2: A tarefa Fonte: GUÉRIN et al. (2001). Há, ainda, outra razão mais fundamental para isso: a “atividade de trabalho”, ou seja, “a maneira como os resultados são obtidos e os meios utilizados” (GUÉRIN et al., 2001, p.14-15). Uma das maneiras encontradas pelos ergonomistas para analisar essa atividade de trabalho é a partir de entrevistas realizadas com trabalhadores em suas empresas. Assim, os autores distinguem as três realidades da seguinte forma: “A tarefa como resultado antecipado fixado em condições determinadas; A atividade de trabalho como realização da tarefa; O trabalho como unidade da atividade de trabalho, das condições reais e dos resultados efetivos dessa atividade” (GUÉRIN et al., 2001, p. 114-115). De acordo com Guérin et al. (2001, p.15) os operadores desenvolvem sua atividade em tempo real em função deste quadro: “a atividade de trabalho é uma estratégia de adaptação à situação real de trabalho, objeto da prescrição”. Para os pesquisadores, a distância entre o prescrito e real4 é a manifestação concreta da contradição sempre presente no ato de trabalho, entre o que é pedido e o que a atividade pede. Assim, a análise ergonômica da atividade é a análise das “estratégias (regulação e antecipação) usadas O TRABALHO PRESCRITO E O REALIZADO À LUZ DO REAL DA ATIVIDADE 68 Capítulo 5 pelo operador para administrar essa distância, ou seja, a análise do sistema homem/tarefa”, conforme podemos visualizar na figura (3): Figura 3: Trabalho prescrito ao real Fonte: GUÉRIN et al. (2001). Os autores definem essas realidades e concluem que analisar o trabalho significa realizar rigorosamente a análise do conjunto desse sistema, desses elementos expressos na figura (3). Assim, a análise ergonômica do trabalho, segundo seus conceptores, é uma análise da atividade que se confronta com a análise de outros elementos que compõem o trabalho (GUÉRIN et al., 2001, p.15). Afinados com os trabalhos que abordam a temática da atividade de trabalho como combinação do trabalho prescrito e do realizado5, vinculados ao real da atividade6, estão as pesquisas desenvolvidas pela Clínica da Atividade iniciada por Clot (1995, 1998, 1999/2006). Para maior compreensão dessa disciplina, apresentamos, agora, aspectos do seu surgimento e de sua significativa contribuição para os estudos que têm como enfoque o trabalho. 4.1. Clínica da atividade e a sua relação com o trabalho A Clínica da Atividade Francesa foi inspirada nos estudos sobre o trabalho baseados na teoria histórico-cultural de Vygotsky e é uma vertente situada na intersecção da Ergonomia Francesa e da Psicologia do Trabalho. A Clínica enfatiza as relações entre atividade e subjetividade, que se encontram no cerne de suas análises. Conforme mencionado, iniciada pelo psicólogo Clot (1999/2001) do Conservatoire des Art et Métiers – CNAM, em Trabalho realizado (conceito baseado pela Ergonomia como resultado do trabalho prescrito, executado e finalizado. 5 6 Real da atividade (conceito discutido por Clot (1999/2006; 2010), que será explicitado na próxima seção). O TRABALHO PRESCRITO E O REALIZADO À LUZ DO REAL DA ATIVIDADE 69 Capítulo 5 Paris, a Clínica da Atividade mais especificamente intervém em contextos de trabalho com o objetivo de compreender a relação entre as prescrições e o estresse dos trabalhadores em geral. A Clínica privilegia a função psicológica do coletivo de trabalho com a finalidade de possibilitar a ampliação do poder de agir desses profissionais e uma transformação do próprio métier (CLOT, 1999). A Clínica da Atividade surgiu de forma efetiva na década de 1990, disciplina que Clot situa no campo da Clínica do Trabalho. Foi a partir do desenvolvimento das obras mais expressivas de Yves Clot A função psicológica do trabalho e O trabalho e o poder de agir (1999 e 2008), que a Clínica passou a expor seus fundamentos, suas divergências em relação as outras Clínicas do Trabalho. A especificidade da Clínica da Atividade em relação as demais clínicas é a forma pela qual ela concebe a atividade em sua relação com a subjetividade. Para expor melhor essa relação, Clot (2008b), inspirado em Vygotsky e Leontiev, mostra que estamos sempre diante de possibilidades não realizadas. Ele demonstra, ainda, a diferença entre o real da atividade com o trabalho realizado, uma vez que agir é, sobretudo, selecionar uma das várias atividades possíveis. Além disso, para Clot, as emoções do sujeito não têm um estatuto independente da atividade, o que contribui para a realização dela. Portanto, o sentido da atividade é que a regula, afetando os fatores emocional e cognitivo. Esse sentido deve ser transformado se quisermos modificar a relação entre esses fatores. A esse respeito, o autor também esclarece que a atividade não é somente cognitiva ou emotiva, ela vai além da realização da tarefa e envolve a apropriação de artefatos pelo sujeito ou até mesmo a amputação do seu poder de agir. Assim, a atividade pode ser definida também como “A produção de um meio de objetos materiais ou simbólicos e de relação humana ou mais exatamente de (re) criação de um meio de vida” (CLOT, 2008b, p.7). Nessa concepção, outra das especificidades da atividade consiste em fazer de algo não apenas um objeto social, mas um objeto psicológico. Além de mostrar essas especificidades, a Clínica da Atividade tem a proposta de criar condições que permitam ao sujeito restaurar seu poder de agir nos contextos profissionais. Em vez de simplesmente analisar as reclamações dos trabalhadores, a Clínica propõe sugestões e mudanças a eles, visando à melhoria das condições de trabalho. Diferente das outras Clínicas do trabalho as quais propõem que os especialistas previnam-se para agir, a Clínica da Atividade propõe que esses especialistas ajam primeiro, para, assim, de fato descobrirem o que acontece no métier do trabalhador. Trata-se de uma perspectiva voltada à ação com a finalidade de aproximar a subjetividade do trabalho de forma que o sujeito, ao agir, transforme-se e, consequentemente, seu trabalho seja transformado. No entanto, a Clínica da Atividade não pode ser apenas considerada um método de ação e de transformação, segundo Clot e Leplat (2005, p.34), mas também um método O TRABALHO PRESCRITO E O REALIZADO À LUZ DO REAL DA ATIVIDADE 70 Capítulo 5 de “produção de conhecimento”, ao deslocar o plano da observação menos para a estrutura da atividade e mais para a do seu desenvolvimento possível. 4.2 A definição do real para a clínica da atividade Segundo Clot (2010), a Ergonomia e a Psicologia do Trabalho têm insistido na distinção entre tarefa prescrita (trabalho prescrito) e atividade real (trabalho real). Para essas disciplinas, “a tarefa é aquilo que deve ser feito, enquanto a atividade é o que se faz” (LEPLAT; HOC, 1983 apud CLOT, 2010, p.103). Conforme Clot (2010), pelo fato de não haver convergência entre a atividade realizada e a atividade real, a Clínica da Atividade dá um passo além ao partir do pressuposto de que o “homem está pleno, em cada minuto, de possibilidades não realizadas” (CLOT, 2010, p. 103). Desse modo, “o comportamento é sempre o sistema de reações vencedoras” (VYGOTSKY, 2003, p.74). As possibilidades recalcadas formam resíduos incontrolados que acabam adquirindo ainda mais energia para exercer, na atividade do indivíduo, uma influência diante da qual ele pode ficar indefeso. Nesse sentido, há um distanciamento entre atividade realizada e atividade real, o que Clot denomina real da atividade: A atividade não se limitaria ao que é realizado pelo sujeito, mas compreenderia também o que ele não chega a fazer, o que queria ter feito e não se faz [...] o que se tenta fazer sem ser bem-sucedido – o drama dos fracassos – o que se desejaria ou poderia ter feito e o que se pensa ser capaz de fazer noutro lugar, seria também o que é pensado, impedido e possível de ser feito (CLOT, 1999/2006, 2010, p. 104). Dessa forma, a Clínica da Atividade percebe a realidade do trabalho além do que é visível, ou seja, percebe o real da atividade. Inclusas nessa análise, segundo Clot, estão as estratégias para evitar fazer o que deve ser feito, as atividades suspensas, contrariadas ou impedidas. Por isso, o autor questiona o porquê de não incluir na atividade real a atividade não realizada (CLOT, 2010, p.104). Percebemos que pelos conflitos que a atividade dispõe ao sujeito ele não permanece passivo. Segundo Clot (2010, p.105), é possível sustentar que o ofício do sujeito se revela na tentativa de escapar ao que o confina, ou, ainda, na tentativa de anular os obstáculos que opõem a atividade a si mesma. O trabalhador pode duplicar o meio exterior de trabalho por um meio interior que responda aos dilemas dele. Até mesmo a função dos instrumentos pode ser afetada por uma atividade de reconcepção ou recriação das técnicas (CLOT, 2010, p.106). Na Psicologia do Trabalho, essa atribuição de novas funções às ferramentas, esse uso deslocado e inventivo de um dispositivo é denominado catacrese (CLOT, 1997; 2010). O TRABALHO PRESCRITO E O REALIZADO À LUZ DO REAL DA ATIVIDADE 71 Capítulo 5 Quanto ao trabalho prescrito ou previsto, as ideias defendidas pela Clínica da atividade perpassam as noções de Bakhtin de “gêneros e estilo de discurso” (CLOT; FAÏTA, 2000), propondo a existência de gêneros profissionais definidos “como tipos relativamente estáveis de atividade socialmente organizadas por um meio profissional” (CLOT, 2010, p. 124). Para Clot (1999, p.4), esses gêneros constituem-se, ao mesmo tempo, como restrições e recursos para o agente e seriam incessantemente transformados e reestruturados sob o efeito das contribuições estilísticas dos indivíduos ao trabalho. Além disso, Clot (1999, p.4), em A função psicológica do trabalho, trata fundamentalmente das dimensões psicológicas que envolvem “o homem e sua relação com o trabalho” e, segundo vários pesquisadores brasileiros, essa obra representa a consolidação da Clínica da Atividade no Brasil. Já na obra O trabalho e o poder de agir (CLOT, 2010, p.4), o autor apresenta “elementos para refletir sobre os rumos que a psicologia do trabalho deve tomar no sentido de transformar em um meio poderoso de fazer a psicologia geral”. Nesse sentido, o autor pretende, ainda, compartilhar suas aquisições teóricas recentes e contribuir para a ampliação do poder de agir dos trabalhadores, oferecendo-lhes um campo de conhecimento que propicie melhores ferramentas para a atuação profissional. 4.3 Os gêneros profissionais ou gêneros de atividades Os gêneros profissionais são designados por Clot (2010, p.89) como orientadores da ação dos trabalhadores. Esses gêneros, geralmente, permanecem implícitos e oferecem a cada um a possibilidade de apoio, em todos os sentidos do termo. O autor afirma que esse conceito de gênero procura extrair algumas consequências da experiência dos grupos homogêneos, ou seja, cada coletivo de trabalho tem suas maneiras de “fazer, dizer ou sentir” (CLOT, 2010, p.89) estabilizadas, durante algum tempo, em seu meio profissional; elas dizem respeito às tarefas, ao coletivo de trabalho, às relações de hierarquia. Por esse motivo, Clot (1999) defende a existência de gêneros sociais de atividades, os quais contêm não somente os gêneros de discursos (BAKHTINE, 1984 apud CLOT, 1999), mas, ainda, gêneros de técnicas, que estabelecem a ligação entre a operacionalidade formal e prescrita dos equipamentos materiais e as maneiras de agir e de pensar de um grupo. Para Clot (2010, p.89), além da presença de enunciados deslocados ou convencionais em um meio profissional, constata-se a presença de gestos, de atos materiais e corporais aceitos ou não. Dessa forma, encontra-se uma “gama de atividades obrigatórias, possíveis ou, ainda, proibidas” (CLOT, 2010, p.89). De acordo com ele, os previsíveis sociais de um gênero, na maioria das vezes subentendidos, referem-se tanto às atividades técnicas e corporais quanto às atividades O TRABALHO PRESCRITO E O REALIZADO À LUZ DO REAL DA ATIVIDADE 72 Capítulo 5 de linguagem. Os gêneros de atividade vinculados a uma situação e a um meio estabilizam e fixam (nunca de modo definitivo) as maneiras comuns de considerar “as coisas e os homens” (CLOT, 2010, p.89-90). Segundo Clot (2010, p.90), uma das características dos gêneros de atividade merece atenção. Eles, de certa forma, “conservam uma função psicológica para cada trabalhador à medida que servem para agir”. Para o autor, Os gêneros são, portanto, coerções e, ao mesmo tempo, meios de agir; recursos de que se pode dispor, assim como obrigações a cumprir para serem válidas nossas intenções na interação com os outros e no uso dos objetos; como ainda, um instrumento, um sistema transpessoal de métodos que garantem ao sujeito o controle e a avaliação das finalidades de sua ação singular, os quais exercem influência no poder de agir dos trabalhadores (CLOT, 2010, p. 89-91). Clot (2010, p.119) esclarece que entre a organização do trabalho e o próprio sujeito existe um trabalho de reorganização da tarefa pelos coletivos profissionais. O objeto teórico e prático que a Clínica da Atividade se esforça para circunscrever é precisamente o trabalho de organização do coletivo em seu meio, mais especificamente seus entraves, seus equívocos, seus sucessos e insucessos, ou seja, sua história possível e impossível. 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS A partir do exposto deste trabalho, podemos concluir que entre o prescrito e o real, há um terceiro termo que o autor designa como gêneros sociais do ofício ou gêneros profissionais Clot (2010, p.119). Nesses gêneros, incluem-se, ainda, as obrigações compartilhadas pelos trabalhadores para realizarem suas tarefas frequentemente, os obstáculos, a organização prescrita do trabalho (já incorporada pelo coletivo em si) e as prescrições impostas. Clot (2010, p.119) ressalta que sem o recurso dessas formas comuns da vida profissional assiste-se a um desregramento da ação individual, a uma “queda do poder de ação”, a uma tensão vital do coletivo, a uma perda de eficácia do trabalho e da própria organização. O autor afirma, ainda, que a noção de gêneros profissionais provém da noção de gêneros proposta por Bakhtin, em outro contexto, para refletir sobre a atividade linguageira. Para esse autor, as relações entre o sujeito, a língua e o mundo não são diretas e manifestam-se através dos gêneros discursivos de que o sujeito dispõe para entrar em intercâmbio (BAKHTINE, 1984, p.285 apud CLOT, 2010, p.120). Para Clot (2010, p.121), esses gêneros são falares sociais em uso em determinada situação. Podemos pensar na mesma relação quando o foco é o trabalho, porque as formas prescritas são, para os trabalhadores, O TRABALHO PRESCRITO E O REALIZADO À LUZ DO REAL DA ATIVIDADE 73 Capítulo 5 em relação à sua forma de agir, ao mesmo tempo, restrições e recursos. Segundo o autor, os gêneros profissionais, de algum modo, são partes implícitas da atividade, isto é, são considerados como um intermediário social, um conjunto de avaliações compartilhadas que, de maneira tácita, organizam a atividade profissional. Os sujeitos: Sabem o que devem fazer graças a uma comunidade de avaliações pressupostas, sem que seja necessário (re-) especificar a tarefa a cada vez que ela se apresenta e são conhecidas pelo coletivo, por isso não há necessidade de verbalizá-las (CLOT, 2010, p. 121122). Quanto à restrição e ao recurso dos gêneros profissionais, dentre outros aspectos, Clot (2010, p.125) salienta que em um meio profissional não se abandona a ideia de compartilhar formas de vida em comum, reguladas e reforçadas pelas circunstâncias. Segundo o autor (2010), as tensões enfrentadas pelos trabalhadores são, muitas vezes, um bom sinal para se buscar a estabilidade do gênero profissional, e a renúncia ao gênero pode significar uma desordem na ação individual do trabalhador. Portanto, os gêneros profissionais desempenham uma função psicológica insubstituível. Clot (2010, p.125) defende a tese de que, em seu aspecto essencialmente transpessoal, os gêneros profissionais exercem a função psicológica na atividade de cada um. Eles organizam as atribuições e as obrigações ao definir essas atividades independentes das características subjetivas dos indivíduos que as executam em um dado contexto. Enfim, os gêneros ajustam não as relações intersubjetivas, mas as relações interprofissionais ao fixar “o espírito dos lugares como instrumento de ação” (CLOT, 2010, p.125). É por meio de seu intermédio que os trabalhadores se avaliam e julgam-se mutuamente (cada um deles avalia sua própria ação). Assim, por esta concepção, podemos compreender que os gêneros profissionais constituem-se, ao mesmo tempo, de restrições e recursos. Os gêneros seriam constantemente transformados e reestruturados “sob o efeito das contribuições estilísticas dos indivíduos ao trabalho”. Segundo Bronckart (2008, p.101), trabalhos como os de Clot (1999/2006) demonstram que o estilo, a forma de fazer do trabalhador, permite um “retrabalhar contínuo dos gêneros em situação”. REFERÊNCIAS BAKHTINE, M. Esthétique de la création verbale. Paris: Gallimard. 1984. BRONCKART, Jean Paul. O agir nos discursos. Campinas-SP: Mercado de Letras, 2008. CLOT, Y. Le travail sans l’homme? Pour une psychologie des milieu de travail ET de vie. Paris: La Découverte. 1995. O TRABALHO PRESCRITO E O REALIZADO À LUZ DO REAL DA ATIVIDADE 74 Capítulo 5 ______. Le problem des catachreses en psychologie du travail: un cadre d’analyse. Le Travail humain, n. 60, 1997, p. 37-48. ______. Le sujet au travail. In: KERGOAT. J. et al. Le monde du travail. Paris: La Découverte. 1998, p. 287-301. ______. A função psicológica do trabalho. Tradução Adail Sobral. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999/2006. ______. Clinique du travail, clinique du réel. Journal des psychologues, n.185, 2001, p. 48-51. ______. 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This can reveal factors that interfere directly and indirectly in the professional act, which contributes to a greater understanding of the prescribed work, performed and the actual activity, leading to a better interaction of collective work. In addition, analyzing these factors helps these professionals to find means, methods, procedures and ways of acting capable of making their work more satisfactory and, consequently, finding ways of acting that can help them overcome any difficulties in their métier . This study, based on bibliographical research, is based on the works of Clot (1999/2006; 2010) to address issues related to the prescribed, performed and actual work of the activity; and with theoretical contributions from Bronckart (2008); of the Activity Ergonomics and of the Activity Clinic. The results show that when the worker performs the prescribed, performed and “actual activity” work, he self-regulates, transforming and changing his own work group. And the resources used by him are closely linked to his prescribed work, performed and the actual activity. KEYWORDS: Prescribed work; Real Activity; Work performed; Act professionally. O TRABALHO PRESCRITO E O REALIZADO À LUZ DO REAL DA ATIVIDADE 76 CAPÍTULO 6 O CAMPO TEÓRICO DO CONHECIMENTO POLÍTICO E AS CONTRIBUIÇÕES CRÍTICAS FEMINISTAS: PARTE I Breno Henrique Ferreira Cypriano lattes.cnpq.br/8398867970980446 Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, Minas Gerais Lorena Ávila Soares Fonseca lattes.cnpq.br/6627245741315256 Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, Minas Gerais RESUMO Diante da problematização sobre os avanços no campo da ciência política e das relações internacionais, o presente capítulo apresenta as contribuições das perspectivas críticas feministas diante das discussões teóricas sobre o conhecimento político. Como o capítulo visa ser uma introdução a estudantes e profissionais na área, abordamos rapidamente a noção de campo do conhecimento político, as principais dimensões no campo teórico que o feminismo procura ser crítico, sobretudo a dimensão epistemológica, a distinção conceitual sobre “o” político e “a” política e, também, uma crítica dos tantos feminismos à perspectiva hegemônica liberal dentro deste campo. O estudo foi dividido em duas partes, sendo que os aspectos introdutórios, a discussão sobre o campo do conhecimento político e alguns aspectos das contribuições críticas feministas são tratados na primeira parte. Na última parte são abordadas as correntes e perspectivas relacionadas aos vários feminismos, as dimensões da ciência política, relações internacionais e teoria política e as considerações finais, ressaltando o que compreendemos como “teoria política feminista”. PALAVRAS-CHAVE: Teoria Política; Feminismo; Ciência Política. 1. INTRODUÇÃO A construção de um pensamento político moderno se esforçou por silenciar as vozes das mulheres, o lugar delas na definição e constituição do poder, e da política, e as representou de uma forma distorcida. Diante disto, houve a necessidade de se repensar o próprio ponto de vista do/a sujeito/a que produz o conhecimento. Em Cypriano (2019) problematiza-se as várias contribuições sobre o ponto de vista, o lugar de fala, a experiência, como estratégias epistêmicas O CAMPO TEÓRICO DO CONHECIMENTO POLÍTICO E AS CONTRIBUIÇÕES CRÍTICAS FEMINISTAS: PARTE I 77 Capítulo 6 dissidentes, sobretudo por um olhar específico do Sul global. Em um trabalho mais recente, o número de vozes e de minorias silenciadas se somaram ao entendimento deste instrumental pós-colonial, sobretudo na América Latina (CYPRIANO, 2021). Algumas questões que envolviam estas disputas eram relativamente tranquilas para a construção do saber se este estivesse sob o viés masculino, por isso, o olhar feminino incluído nessa empreitada de também fazer conhecimento (e, consequentemente, nas formas de pensamento, filosofia, teoria ou ciência), conforme salienta Silvana Mariano (2008, p 368, itálicos da autora), correrá “[...] o risco de ficar sob suspeita de praticar um olhar generificado e não objetivo.”. A criação desse abismo sobre a prática do interlocutor, da busca por legitimidade acadêmica, da aceitação às regras do campo, fez com que as/os pensadoras/es feministas deslizassem por e através eixos de disputas internas nos campos do conhecimento e nas disputas por poder interno, buscando estratégias epistêmicas para que pudessem alcançar inclusão efetiva na construção do saber e do conhecimento e promover, talvez, novas transformações paradigmáticas. Ao retomarmos a análise para aos objetivos inicias intrínsecos e comuns à toda a comunidade epistêmica ao redor da produção da teoria crítica feminista durante o terceiro grande debate da disciplina das ciências sociais e relações internacionais nos anos 1980, o contexto no qual o movimento se deu, caracterizado primordialmente pelas críticas positivistas e pós-positivistas às teorias tradicionais e a construção de conhecimento da disciplina, abrindo espaço para novas análises e possibilitando uma nova roupagem para o campo, mais interdisciplinar e inclusiva. Assim, “[...] o esforço inicial da teoria feminista foi o de entender e reinterpretar as categorias de diversos discursos teóricos de modo a tornar visíveis as atividades e as relações sociais das mulheres analiticamente no âmbito das diferentes tradições intelectuais.” (HARDING, 2019, p. 95). As estratégias epistêmicas feministas de inserção nos espaços acadêmicos, neste caso principalmente nos espaços de pesquisa e ensino sobre a política, como ciência política e relações internacionais, foram focadas na busca pela construção de um diferente enquadramento teórico (theoretical framing), díspar daquele que é apresentado pela corrente hegemônica do campo do conhecimento político (entendendo hegemonia aqui no sentido normativo, relativo à dominância e à proeminência de uma corrente nos principais debates teóricos). Assim, é importante ressaltar que a incorporação da discussão feminista não poderia ser feita a partir de quaisquer outras perspectivas teóricas, tal como a teoria clássica da dominação formulada por Weber, as teorias sobre os movimentos sociais, ou mesmo a teoria democrática, por exemplo, isto porque não haveria, de forma geral, em nenhuma destas teorias a abertura analítica à incorporação de conceitos historicamente politizados pelo feminismo, bem como que os preceitos e dimensões teóricas não confluiriam com o projeto aspirado, que é: “[...] a teoria feminista tem três características intimamente relacionadas: um O CAMPO TEÓRICO DO CONHECIMENTO POLÍTICO E AS CONTRIBUIÇÕES CRÍTICAS FEMINISTAS: PARTE I 78 Capítulo 6 compromisso normativo com a emancipação das mulheres, um compromisso científico com a explicação da opressão das mulheres e um compromisso prático com a transformação social.” (McCLURE, 1992, p. 348, tradução nossa). Acrescenta-se ainda que seja de suma importância para a agenda feminista a convergência entre um compromisso normativo e científico com um novo projeto societário onde gênero não esteja a serviço da dominação e hierarquização. Como há uma diversidade interna ao feminismo, tal compromisso nem sempre se dá de forma harmônica, e a emancipação não se torna igual para todas as mulheres. Este capítulo surge como uma proposta de apresentar às leitoras e leitores as diversas frentes de contribuição desta empreitada crítica ao campo teórico do conhecimento político, primeiro o delimitando, explicando algumas questões referentes às discussões feministas dentro da ciência política e das relações internacionais, apresentando algumas linhas e problematizações, sobretudo lembrando que a construção da ciência política é fortemente marcada pelo viés liberal, acrescenta-se às críticas ao malestream, também críticas ao liberalismo (RAVECCA, 2019). De acordo com Mary O’Brien (1981), em composição à ideia de mainstream procurando se referir à “boa” ciência, o malestream se refere a um conceito referente aos cientistas sociais do sexo masculino que realizam pesquisas que se concentram em uma perspectiva masculina e, em seguida, assume-se que as descobertas podem ser aplicadas a mulheres também. A nossa intenção aqui neste capítulo não é a de esgotar as discussões, mas em alguns pontos somente elencálas para que seja uma introdução a este tema para diferentes estudantes, pesquisadoras/es e acadêmicas/os. 2. O CAMPO DO CONHECIMENTO POLÍTICO Delimitando, então, o espaço de interlocução, neste caso o discurso sobre um conhecimento peculiar político, deve-se aqui acrescentar a ideia de campo. Pode-se dizer que a noção de “campo” fornece uma compreensão específica sobre a dinâmica estabelecida pelo pesquisador e teórico, enquanto, numa relação com o mundo, e nas suas relações com o real que está imbricado nas práticas institucionais. Nesse sentido, é importante ressaltar que o objeto central desta análise seria, segundo Marlise Matos (2008), o campo do conhecimento, ou “[...] campo científico [que] é entendido como o espaço de jogo de uma luta concorrencial pela busca do monopólio da autoridade científica, sendo esta, o resultado da soma da capacidade técnica e do poder social.” (MATOS, 2008, p. 340-341, itálicos da autora). Para desenvolver uma abordagem do campo do conhecimento político, deve-se primeiramente levar em consideração que as dissensões e o esquecimento marcaram, por muito tempo, a abordagem e o diálogo da ciência política com a teoria política, como também com a filosofia política. Logo, é indispensável desde já ressaltar a emergência das cinzas e dos escombros intelectuais, mesmo após as declaradas “mortes” da filosofia e O CAMPO TEÓRICO DO CONHECIMENTO POLÍTICO E AS CONTRIBUIÇÕES CRÍTICAS FEMINISTAS: PARTE I 79 Capítulo 6 teoria políticas – tão frequentemente colocada por metafísicos, pós-modernos e neopragmáticos (WITTGENSTEIN, 1999; HEIDEGGER, 2007; RORTY, 1995). Ressaltam-se as extremidades e desarticulações de uma época, em que há a convivência simultânea e local de heróis e de uma ortodoxia do pensamento, enquanto, ao mesmo tempo, há angústias que não mais podem ser explicadas pelo conhecimento produzido: hoje, onde há a crise epistemológica, sem dúvida, tem-se um discurso que se flexiona para a práxis e para o ativismo social e político, pelo qual se questiona e reflete-se a realidade social e política desigual, injusta e discriminatória. O campo do conhecimento é dinâmico e transdisciplinar e que várias noções e conceitos até então vigentes nele, bem como as categorias de análise centrais – até mesmo em decorrência da divisão entre as (sub)disciplinas (a saber, filosofia, teoria e ciência políticas, somados à ideologia e pensamento político) –, hoje são vistas como insuficientes. As práticas políticas e sociais têm-se complexificado e exigido cada vez mais rediscussões sobre conceitos até então cristalizados, bem como uma recorrente necessidade de se repor alguns modelos teóricos engessados. A imersão e a reflexão do próprio campo foram o que possibilitou a emergência de novas questões e temáticas para a discussão teórica acerca do que é “a” política e “o” político, e é nesse cenário que o movimento feminista é um dos protagonistas. Deve-se ao engessamento teórico e à rigidez disciplinar a possibilidade de uma abertura insurgente para os devaneios que se lançam além da posição incômoda e intransigente que a ortodoxa corrente dominante impõe aos aprendizes e mestres do “seu” campo de conhecimento Ainda que o campo do conhecimento político tenha sido marcado por um dissenso latente entre suas áreas, atualmente, se pensar na estabilidade e na formatação desse campo favorece o entendimento da ciência política como uma área maior que se definiria como uma prática discursiva mais ampliada, na qual é dada a devida importância às contribuições de politólogos (ou teóricos políticos), filósofos e outros cientistas na sua formatação. Este avanço disciplinar pode ser notado através da história interna dessa própria disciplina (CANSINO, 2008). 3. ALGUNS ASPECTOS DAS CONTRIBUIÇÕES CRÍTICAS FEMINISTAS Partindo para a compreensão da influência feminista na teoria, filosofia e ciência política, de extrema centralidade neste capítulo, soma-se à ideia de campo científico e do conhecimento, um campo propriamente de gênero e feminista, onde se articulam e se relacionam as teorias de gênero e feministas. Segundo Matos (2008, p. 339, itálicos da autora), [...] o novo campo de gênero na medida em que bem acionado e articulado, [pode] colocar em xeque a univocidade de sentido dos binarismos de toda ordem O CAMPO TEÓRICO DO CONHECIMENTO POLÍTICO E AS CONTRIBUIÇÕES CRÍTICAS FEMINISTAS: PARTE I 80 Capítulo 6 – e não apenas aquele entre masculino e feminino – e dessa forma expandir imensamente seu potencial analítico, tornando possível sua incorporação em áreas que durante séculos foram impermeáveis a críticas nesse sentido. Acredita-se, portanto, ser necessária uma abordagem sobre estes campos, tanto o do conhecimento político, como o de gênero, que parte das seguintes premissas: (i) a objetividade do conhecimento ao invés da neutralidade (TAYLOR, 1994); (ii) a problematização do conhecimento inter e transdisciplinar, o que comporia a noção de campo; e, (iii) a problematização das subjetividades no campo do conhecimento político, pois ela perpassa igualmente pelo “reenquadramento” e o “deslocamento” dos modelos analíticos e conceituais: se iniciando a partir de uma noção limitada de sujeito moral de hábitos (no início do século XIX), para um sujeito “normal” individualizado das constituições (na última parte do século XIX), e daí a um objeto social coletivamente compreendido através da solidariedade ou da alienação e anomia (na virada do século XX), direcionando-se para o cidadão de direitos e obrigações nos regimes de proteção social e de seguro social para, finalmente, se dirigir a um sujeito “profundamente” autônomo com escolhas e identidade própria (ROSE, 1999). Muitas vezes o mainstream das ciências sociais – devido, principalmente, à sua tradição empiricista – negou espaço e centralidade a algumas categorias subjetivas, concentrando sua atenção e dando predominância à concepção individualista da modernidade e do behaviorismo. Retomando a centralidade do elemento hermenêutico e da interpretação no campo das ciências sociais, Charles Taylor (1994) propõe uma visão que consiga lidar com a confusa rede inter-relacionada de conceitos relativos às ciências do homem. Deste modo, para o autor: O que a falta à ontologia da ciência social mainstream é a noção de significado delimitada não simplesmente por um sujeito individual; de um sujeito que pode ser um “nós”, bem como um “eu”’. A exclusão desta possibilidade, do comunal, vem mais uma vez da nefasta influência da tradição epistemológica para a qual todo o conhecimento tem de ser reconstruído a partir das impressões estampadas no sujeito individual. Mas se nós nos libertarmos desses preconceitos, isso parece uma visão amplamente implausível sobre o desenvolvimento da consciência humana; estamos cientes do mundo através de um “nós” antes de sermos um “eu”. Daí, precisamos de uma distinção entre o que é pouco comum, no sentido do que cada um de nós tem em nossos mundos individuais, e o que está no mundo comum. Mas a própria ideia de algo que existe no mundo comum em oposição ao que existe em todos os mundos individuais é totalmente opaca à epistemologia empirista, e assim não encontra lugar na ciência social dominante. (TAYLOR, 1994, p. 198, tradução nossa). O CAMPO TEÓRICO DO CONHECIMENTO POLÍTICO E AS CONTRIBUIÇÕES CRÍTICAS FEMINISTAS: PARTE I 81 Capítulo 6 A demanda de que se tenha numa teoria sobre e da política um “sujeito” é importante para que a teorização se fundamente a partir dele, detendo-se sobre a linguagem que ele emana, do que ele proporcionaria em suas análises e nas descrições institucionais, ao passo que, a infalibilidade da política dependeria destas fundamentações e premissas básicas (BUTLER, 1998, p. 13). Judith Butler (1998) proporciona uma abordagem que entrelaça a noção de sujeito ao resgate do domínio do político com os questionamentos críticos à própria realização do sujeito. Enquanto uma questão inerentemente política, a crítica dos sujeitos, por sua vez, não poderia ser politicamente informada, já que é, antes de tudo, um próprio questionamento da política enquanto tal. De acordo com a autora, não se poderia dizer que o sujeito esteja engajado num campo propriamente político, visto que ele ou ela próprios já são um advento previamente regulado e produzido. A partir daí, percebendo que as versões dos sujeitos seriam politicamente insidiosas, poder-se-ia destacar que o sujeito “[...] talvez [seja] mais político no ponto em que se alega ser anterior à própria política.” (BUTLER, 1998, p. 22, negritos da autora). O que se quer aprofundar aqui é que a busca feminista por uma concepção de sujeito (mesmo que seja equivocada, ao se basear numa posição que, supostamente, seria fundamentalista) pressupõe que a categoria “mulheres” referir-se-ia a um campo perpassado por diferenças “indesignáveis” e que, desta forma, não poderia se reduzir ou mesmo se totalizar em uma única identidade descritiva. As críticas de feministas póscolonialistas e feministas negras contribuíram para a permanência dessa noção aberta, “um lugar de permanente abertura e ressignificação”. Butler acredita que este tipo de contenda entre as feministas sobre o conteúdo do termo/categoria deveria ser mantido, pois esta seria a base do “fundamento infundado da teoria feminista”, pois o ato de desconstrução do sujeito do feminismo permitiria, “[...] num futuro de múltiplas significações, emancipá-lo das ontologias maternais ou racistas às quais esteve restrito e fazer dele um lugar onde significado não antecipados podem [possam] emergir.” (BUTLER, 1998, p. 25). Assim sendo, o sujeito político do feminismo seria concebido da seguinte forma: No feminismo, parece haver uma necessidade política de falar enquanto mulher e pelas mulheres, e não vou contestar essa necessidade. Esse é certamente o modo como a política representativa funciona e, neste país [Estados Unidos], os esforços de lobby são virtualmente impossíveis sem recorrer à política de identidade. (BUTLER, 1998, p. 24). No campo do conhecimento político, ressaltamos que é justamente a sensibilidade e a percepção feministas sobre “o” político que também fizeram O CAMPO TEÓRICO DO CONHECIMENTO POLÍTICO E AS CONTRIBUIÇÕES CRÍTICAS FEMINISTAS: PARTE I 82 Capítulo 6 convergir elementos de transição, já que uma nova noção de “público”, desta vez ampliada e renovada, assim como a percepção do privado e do pessoal já interpelados como conceitos inerentemente politizados (como a família, a reprodução, o cuidado, o corpo), contribuem para se superar, ultrapassar as relações desiguais de poder generificadas. A disputa entre os movimentos feministas latino-americanos sobre a noção do político, ou pensado como antagonismo, ou pensado como agonismo também traduzem esta mudança paradigmática (CYPRIANO, 2014). Esse momento é, sem dúvida aquele que Marta Lamas (2000, p. 5, tradução nossa) chama a atenção: “[m]uitas feministas já funcionam mais a partir de realidades políticas do que de posturas ideologizadas: assumem a dimensão pragmática da intervenção política e começam a manifestar paixão por negociar conflitos.” Poder-se-ia dizer que sem o desejo pelo conhecimento sobre “a” política e “o” político, ao feminismo restaria, ou aceitar que as mulheres não lutariam e depreciariam o poder, ou, então, lutar especificamente por direitos (KIRKWOOD, 1985). Para Kirkwood (1985, p. 67, tradução nossa), não haveria um “[...] modelo alternativo válido para desafiar o paradigma patriarcal, o conhecimento que temos vestido e adornado.”, porém, a partir do papel político do ativismo feminista e entendendo que a teoria antecederia e procederia a ação, para Breny Mendoza (2009, s/n): Como toda construção teórica inserida dentro da lógica da colonialidade do poder, o eurocentrismo e o masculinismo, a construção de uma nova teoria feminista latino-americana passa primeiro por uma desconstrução da teoria feminista ocidental, que até agora tem assentado as pautas do pensamento feminista latino-americano, e, logo se reconstruir como uma teoria feminista descolonial e pós-ocidental pautada desta vez por seu próprio contexto geopolítico-cultural. Por fim, ainda que preliminarmente, sob a égide do feminismo, ou melhor, dos diversos feminismos, como diz Maffia (2006, p. 191), “[n] ós, mulheres, convidamos a repensar a linguagem, a investir com novas energias termos como rebelião, resistência, insubmissão, utopia, liberdade, independência, soberania, emancipação.”. E acrescenta, “[...] temos algo mais para motivar estas mudanças plurais, uma intransigência semântica: chamaremos somente de ‘democracia’ a um sistema capaz de desnaturalizar todas as formas de hegemonia e subordinação.” Desta forma a contribuição feminista é para se pensar não na política simplesmente no Estado, ou então na esfera política, mas a política como inclusão nas mais variadas esferas da vida, nos espaços mais ampliados possíveis. Boaventura Santos (2007) coloca que o trabalho de tradução incide tanto sobre os saberes como nas práticas dos sujeitos políticos, o que por O CAMPO TEÓRICO DO CONHECIMENTO POLÍTICO E AS CONTRIBUIÇÕES CRÍTICAS FEMINISTAS: PARTE I 83 Capítulo 6 sua vez possibilitaria uma possível inteligibilidade recíproca entre os entes. Sonia Alvarez (2009) pontua que sendo a tradução um processo de abertura à/ao outra/o ela seria “[...] política e teoricamente indispensável para forjar epistemologias e alianças políticas feministas, antirracistas e pós-coloniais/ pós-ocidentais [...]” (ALVAREZ, 2009, p. 743). Para esta noção de “política como tradução”, confluindo com a experimentação atual dos movimentos e ativismo feministas, deve-se atentar para duas possíveis direções do processo de tradução: do movimento à academia e do movimento/academia ao Estado, possibilitando uma agenda pública em interesses mínimos compartilhados. Desta forma, acredita-se que esta seria uma norma invocada para aqueles e aquelas que procuram aprofundar e ampliar as práticas democráticas, admitindo que as experiências de exclusão, de opressão e marginalização levam às demandas por inclusão (YOUNG, 2000). Poder-se-ia dizer que o redimensionamento da noção de justiça, incluindo agora uma dimensão propriamente política (FRASER, 2005), faz com que se reivindiquem tanto reinvenções das parcerias de gênero na esfera doméstica (a divisão do trabalho doméstico, isto é, a inclusão dos homens nestas atividades), como nas outras relações de trabalho na esfera privada e na esfera pública estatal e não-estatal. Sob a noção de representação, simbólica e na política ordinária, as práticas políticas convencionais devem agora se responsabilizar pelas práticas excludentes internas a elas próprias. Ainda que, possivelmente, a necessidade de um conceito sobre “a” política seja uma necessidade hegemônica, o papel teórico feminista recorrido para este caso seria estritamente o de desestabilização. A busca por politização de vários conceitos, inflexionando o que seria “o” político, foi e é uma estratégia contra hegemônica, além de que a multiplicidade de sentidos para “a” política seria o que caracterizaria a radicalidade do feminismo. Porém, a movimentação política na academia e na militância política, ao adentrar os espaços estatais e ao exigir que “o pessoal é político”, tem demonstrado a necessidade de se pensar em um parâmetro comum sobre o que seria “a política” através da estabilização teórica que seja crítica, emancipatória e pragmática. Se por um lado a teoria feminista se deteve quase exclusivamente nas discussões sobre a justiça social, pôde-se notar a retomada da discussão sobre a democracia, já que, para superar a opressão e a dominação generificadas há a necessidade de instrumentos democráticos que deem conta da inclusão. “A” política como inclusão não nega completamente a noção arendtiana de “política como liberdade”, mas pretende-se ir além dela (cf. CYPRIANO, 2014; 2021). A desestabilização paradigmática no nível ôntico – principalmente o impacto do conceito de política arendtiano – na questão sobre “o” político provocou tanta instabilidade teórica, que a abordagem feminista se viu solicitada a incrementar os paradigmas ontológicos. Diferente da noção de Laclau e Mouffe (2004), a teoria feminista caminhou contra a corrente: ao propor novos paradigmas ontológicos agora há a da redefinição do conceito O CAMPO TEÓRICO DO CONHECIMENTO POLÍTICO E AS CONTRIBUIÇÕES CRÍTICAS FEMINISTAS: PARTE I 84 Capítulo 6 de política – que incluiria uma visão que contempla os micropoderes, a pulverização institucional, o loccus anti-patriarcal, anti-masculinista, considerações anti-dicotômicas e anti-binárias, bem como ainda considera a dinâmica da transnacionalização e do agonismo. Em Cypriano (2021) entende-se que a busca pela compreensão do que é “a” política para o feminismo resgata a compreensão da multiplicidade de posicionamentos nos campos discursivos, possibilitando resgatar lugares vazios e, destes, por meio da própria história, da construção do conhecimento e da ação e práxis, refletir sobre as representações (com a marcação efetiva de presenças e vozes) e a configuração do poder sobre as instituições, sobretudo a partir da contribuição praxiológica e dos feminismos descoloniais da América Latina. REFERÊNCIAS ALVAREZ, Sonia E. Construindo uma política feminista translocal da tradução. Revista Estudos Feministas, vol. 17, n.3, p. 743-753, 2009. BUTLER, Judith P. Fundamentos contingentes: o feminismo e a questão do “pósmodernismo”. Cadernos Pagu, v. 11, pp.11-42, 1998. CANSINO, César. La muerte de la ciencia política. Buenos Aires: Sudamericana, 2008. CYPRIANO, Breno. La idea feminista de la política desde el sur global. 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As the chapter is intended to be an introduction to students and professionals in the field, we quickly approach the notion of the field of political knowledge, the main dimensions in the theoretical field that feminism seeks to be critical, especially the epistemological dimension, the conceptual distinction between “the political” and “politics” and, also, a critique of so many feminisms to the hegemonic liberal perspective within this field. The study was divided into two parts, the introductory aspects, the discussion on the field of political knowledge and some aspects of feminist critical contributions are treated in the first part. In the last part, the currents and perspectives related to the various feminisms, the dimensions of political science, international relations and political theory and the final considerations are addressed, emphasizing what we understand as “feminist political theory”. KEYWORDS: Political Theory; Feminism; Political Science. O CAMPO TEÓRICO DO CONHECIMENTO POLÍTICO E AS CONTRIBUIÇÕES CRÍTICAS FEMINISTAS: PARTE I 87 Capítulo 7 CAPÍTULO 7 O CAMPO TEÓRICO DO CONHECIMENTO POLÍTICO E AS CONTRIBUIÇÕES CRÍTICAS FEMINISTAS: PARTE II Breno Henrique Ferreira Cypriano lattes.cnpq.br/8398867970980446 Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, Minas Gerais Lorena Ávila Soares Fonseca lattes.cnpq.br/6627245741315256 Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, Minas Gerais RESUMO Diante da problematização sobre os avanços no campo da ciência política e das relações internacionais, o presente capítulo apresenta as contribuições das perspectivas críticas feministas diante das discussões teóricas sobre o conhecimento político. Como o capítulo visa ser uma introdução a estudantes e profissionais na área, abordamos rapidamente a noção de campo do conhecimento político, as principais dimensões no campo teórico que o feminismo procura ser crítico, sobretudo a dimensão epistemológica, a distinção conceitual sobre “o” político e “a” política e, também, uma crítica dos tantos feminismos à perspectiva hegemônica liberal dentro deste campo. O estudo foi dividido em duas partes, sendo que os aspectos introdutórios, a discussão sobre o campo do conhecimento político e alguns aspectos das contribuições críticas feministas são tratados na primeira parte. Na última parte são abordadas as correntes e perspectivas relacionadas aos vários feminismos, as dimensões da ciência política, relações internacionais e teoria política e as considerações finais, ressaltando o que compreendemos como “teoria política feminista”. PALAVRAS-CHAVE: Teoria Política; Feminismo; Ciência Política. 1. FEMINISMOS NA CIÊNCIA POLÍTICA, RELAÇÕES INTERNACIONAIS E TEORIA POLÍTICA FEMINISTA Segundo Janet Flammang (1992, p. 4), a ciência política surge nos Estados Unidos em 1880 na Universidade de Columbia e começou a se consolidar como um campo científico na mesma década, tendo destaque a publicação do periódico Political Science Quartely a partir de 1886. Já em 1903, cabe destacar a fundação da associação profissional American Political O CAMPO TEÓRICO DO CONHECIMENTO POLÍTICO E AS CONTRIBUIÇÕES CRÍTICAS FEMINISTAS: PARTE II 88 Capítulo 7 Science Association (APSA) e, três anos após, há a publicação do periódico da associação, American Political Science Review. Em ambos os periódicos foi notável a ausência de trabalhos que abordassem a questão da mulher na política. Foi só em 1968, com a obra de Martin Gruberg, “Women in American Politics”, que, de forma inédita, o autor acentuou a participação política das mulheres, a organização dos movimentos de mulheres e deu voz a elas através de passagens no texto. Em 1969 a Women´s Caucus in Political Science foi fundada, e no mesmo ano, nos encontros da APSA criou-se a seção organizada Women and Politics Research. Na década de 70, em 1974, Wilma Krauss publica o artigo “Political implications of gender roles: a review of the literature” e revoluciona quando defende os papéis de gênero como variáveis úteis para a explicação acerca da complexidade das relações na cultura cívica (FLAMMANG, 1992, p. 7). No mesmo ano, dois outros artigos acerca da temática das mulheres e a política também são publicados. No primeiro artigo, publicado originalmente em 1974, Bourque e Grossholtz (1998) analisam em quatro categorias – (i) elucidando nas notas de rodapé; (ii) evocando a dominação masculina; (iii) a masculinidade como um ideal de comportamento político; e (iv) compromisso ao feminino eterno – as distorções a respeito da diferenciação sexual e a perpetuação dessas concepções equivocadas na Ciência Política. O outro artigo das autoras Shanley e Schuck (1974) procurava apontar a razão para que a Ciência Política ignorasse a mulher, através de três pistas: (i) a definição de político; (ii) os tipos de perguntas feitas; e (iii) as metodologias utilizadas pelas suas abordagens dominantes: o institucionalismo legal e o behaviorismo. Em 1976, na Internacional Political Science Association, originou-se o grupo de estudos Sex Roles and Politics, que em 1979 consegue o status de Comitê nessa Associação. Um ano após, em 1980, publica-se a primeira edição do periódico Women and Politics, conquistado graças ao aumento do número de trabalhos dedicado ao tema (Cf. SAPIRO, 1998). De maneira geral, cabe destacar que a partir do momento as contribuições feministas começam a emergir no campo dos saberes passam a colocar em questão três dimensões relevantes para o entendimento de sua caracterização crítica e transformadora: a dimensão epistemológica, a dimensão metodológica e a dimensão do campo do saber na qual se insere. Arruda (2002) aponta que: a) Sobre a dimensão epistemológica, a teoria feminista adere a perspectivas que divergem da posição paradigmática dominante, a ver: (i) crítica aos binarismos e essencialismos; (ii) importância da dimensão subjetiva; e, (iii) proposição de teorias relacionais (como o próprio conceito de gênero). O CAMPO TEÓRICO DO CONHECIMENTO POLÍTICO E AS CONTRIBUIÇÕES CRÍTICAS FEMINISTAS: PARTE II 89 Capítulo 7 b) Na dimensão metodológica a teoria feminista supostamente adota como instrumentos: (i) a mulher como objeto, que até então era subvalorizado nas ciências; (ii) uma abordagem mais dinâmica, já que, o objeto é tratado simultaneamente como processo e como produto; e (iii) métodos mais dinâmicos e ousados, que por vezes eram considerados cientificamente “ilegítimos”. c) Por último, mas não menos importante, a dimensão do campo do saber em que o feminismo se insere, a teoria feminista: (i) surge vinculada a uma realidade concreta, atrelada ao movimento feminista; (ii) nas áreas em que são incluídas estabelecem conflitos e dissensos; (iii) através da transição paradigmática, ousa nas inovações metodológicas, mas que nem sempre eram aceitas no campo científico em que se encontrava; e (iv) depara-se com uma latência entre o surgimento das ideias inaugurais e o desenvolvimento da sua aplicação, e o advento da consequente visibilidade (ARRUDA, 2002: 127-147). Ao estabelecer-se na ciência política há diferenças instrumentais explícitas entre o modelo científico da ciência política convencional, quase sempre tomada pelo modelo ou perspectiva liberal, como já ressaltado anteriormente e referenciando através do trabalho de Paulo Ravecca (2019), e o referente à Ciência Política feminista, como Flammang (1992) aborda em sua obra, que foram esquematizadas na Quadro 1. Quadro 1: Diferenças instrumentais na ciência política: convencional vs. feminista Objeto observado Ciência Política Convencional Estudo atomístico Indivíduos autônomos Categorias Categorias neutras Teorias Teorias Universais Instrumentos Ciência Política Feminista Indivíduos socialmente interdependentes Categorias socialmente construídas Teorias socialmente contingentes O CAMPO TEÓRICO DO CONHECIMENTO POLÍTICO E AS CONTRIBUIÇÕES CRÍTICAS FEMINISTAS: PARTE II 90 Masculino como normativo Metodologia Preferência pelos métodos quantitativos e survey research Capítulo 7 Posição implícita Revelar a posição implícita na Ciência Política convencional Preferência pelos métodos qualitativos, como observação-participante e entrevistas semiestruturadas Fonte: FLAMMANG (1992) De acordo com Cypriano, Dias e Barbabela (2017), o estudo da Política Externa e das Relações Internacionais tardiamente incluiu a discussão feminista em sua agenda, tendo como exemplo os trabalhos seminais a obra “Women and War” de Jean Bethke Elshtain (1987) e o livro “Bananas, Beaches, and Bases” de Cynthia Enloe (1989), e ainda, no começo da década de noventa, o livro “Gender in International Relations” de Ann Tickner (1992). Tais autoras travaram importantes debates com os autores centrais para o campo, como Keohane (1989) e Fukuyama (1998), sobre a situação das mulheres na disciplina, já que foi somente na década 90, quando o “terror” gerado pelas guerras étnicas escancarou aos olhos do mundo e da mídia os inúmeros estupros, as inúmeras violências sexuais e mortes causadas por essas consequências que não só ocorriam nesses conflitos e necessitavam atenção, mas já era sistematicamente uma prática dos opressores e “conquistadores” de Nações potencialmente e hegemonicamente superiores. Foi só diante disto que a disciplina e os teóricos das Relações Internacionais começaram a se mobilizar para as questões de gênero (NOGUEIRA, MESSARI, 2005). Cabe ressaltar que tanto em Enloe (1989), como em Tickner (1992), o uso do conceito gênero pelas teóricas feministas das Relações Internacionais reporta-se muitas vezes à relação entre o campo feminista e as questões relacionais e sociológicas do poder local, mas desta vez num nível internacional. Tais autoras referem-se também ao conceito de masculinidade hegemônica relacionando-o às questões belicistas e à cultura fálica/tradicional de gênero (cf. CONNEL, 1995). A teoria feminista criticamente tornou-se alvo de intensos debates e de importantes publicações na área das relações internacionais, o que gerou e ainda gera a movimentação para se repensar nas tradições teóricas, nos conceitos, modelos e nos silêncios. Como diria Christine Sylvester (1996), os autores das Relações Internacionais trataram as questões de gênero na disciplina de três formas: (i) há aqueles que ignoram; (ii) há aqueles autores que reconhecem as autoras feministas em nota de rodapé e (iii) há os que não são feministas, mas usam e citam os seus trabalhos. No próprio trabalho de Nogueira e Messari (2005, p. 230), apesar de dedicar um capítulo à questão feminista e pós-colonial, os autores colocam que possivelmente uma das O CAMPO TEÓRICO DO CONHECIMENTO POLÍTICO E AS CONTRIBUIÇÕES CRÍTICAS FEMINISTAS: PARTE II 91 Capítulo 7 possibilidades é que a marginalização dessas discussões dar-se-ia porque tais teorias/perspectivas “[...] levantam assuntos que são irrelevantes.”. Além destas diferenças instrumentais, Judith Squires (1999) apresenta-nos uma tipologia sobre a abordagem de gênero na teoria política, a ver: (i) a problematização da exclusão das mulheres, feita geralmente pelas feministas liberais; (ii) a problematização da questão masculina na política, sustentando a política da diferença, utilizada em geral pelas feministas radicais, maternalistas ou culturalistas; e (iii) a abordagem que coloca o mundo dividido em gênero como um problema, logo, tende a enfatizar a posição dos sujeitos e o engendramento como uma ação, não como um nome, sustentando a política da diversidade, comumente empregada pelas feministas pós-modernas ou pós-estruturalistas. Além disto, a autora salienta os três arquétipos de compreensão da teoria política, entre os quais essas abordagens podem estar dispersas: (i) o objetivo, que propõe valores universais abstratos; (ii) o interpretativo, que propõe expor e interpretar os valores já existentes em comunidades e sociedades estabilizadas; e (iii) o genealógico, que procura substituir os valores já existentes, através do questionamento de suas demandas por uma condição evidente. A autora enfatiza que poderemos encontrar teorias que utilizem mais de um arquétipo, até mesmo os três, por meio de uma negociação complexa ou por uma fusão pragmática da combinação entre essas estruturas. 2. OS FEMINISMOS: CORRENTES E PERSPECTIVAS A crítica feminista traz como contribuição para as discussões do atual debate político novas perspectivas de análise capazes de suprir demandas de conhecimento antes estagnadas - e até mesmo reprimidas -, especialmente por explorarem novas abordagens de temas historicamente estudados por grupos hegemônicos – seletos, homogêneos e masculinos. O início da contribuição feminista para o campo da ciência política, em sua estrutura vigente, aflorou-se durante a década de 1980, período no qual a disciplina passava pelo seu terceiro grande debate. Conforme citado anteriormente, o debate no campo foi caracterizado pelo movimento de críticas positivistas vs pós-positivistas à forma de construção do conhecimento histórico e acadêmico e às teorias tradicionais, o terceiro grande debate abriu espaço para que as/os pensadoras/es feministas desenvolvessem novas roupagens para o campo, mais interdisciplinares e inclusivas. Andrea Nye (1995) ressalta que, para a militância feminista, haveria um dilema a ser enfrentado no seu encontro com o feminismo acadêmico: aquele referente à pluralidade de perspectivas, como o feminismo marxista, o radical, o lésbico e o francês (vinculado à psicanálise e ao desconstrucionismo), como também, hoje, acrescenta-se o feminismo pós-estruturalista e o pósmoderno. Tal dilema coloca frente a frente diversos pontos como a revolução socialista, a luta por direitos sexuais, a revolução sexual e os escritos de mulheres (écriture feminine). São diversas opiniões que buscam superar um O CAMPO TEÓRICO DO CONHECIMENTO POLÍTICO E AS CONTRIBUIÇÕES CRÍTICAS FEMINISTAS: PARTE II 92 Capítulo 7 passado (e presente) sexista, mas cada uma das perspectivas em questão produziu teorias distintas, que por sua vez, particularmente, têm uma história “[...] na qual seu significado foi elaborado por uma prática feminista e não-feminista.” (NYE, 1995, p. 14). Com isto, Nye concluiu que, devido às adversidades dentro da ciência e da teoria, onde há a subvalorizarão das mulheres e de suas expressões e valores, não há sequer a possibilidade de se pensar em uma teoria feminista “pura”. Karen Bombón Pozo (2021), ao discorrer sobre as perspectivas feministas aplicadas no contexto da política exterior, elucida como estas perspectivas se ramificaram dentro da reforma do debate fundamentadas nas críticas positivistas e pós-positivistas. Através de um enfoque ortodoxo, tem-se a crítica feminista positivista realista que, a partir do entendimento de Carver (2003) do positivismo como um método de estudo “neutro”, sem influência de valores e capaz de, a partir da perspectiva realista e feminista, incluir o debate de gênero dentro do campo teórico político de maneira intrínseca. Assim, busca-se obter uma compreensão de mundo muito mais fidedigna a realidade a partir da conscientização dos grupos mainstream, ou hegemônicos, sobre a relevante influência do tema em análises de objetos de poder, ou como já citado, se entenderia como malestream (O`BRIEN, 1981). Já o feminismo positivista liberal, argumenta em torno do debate da opressão estatal sobre os direitos das mulheres e a inclusão/exclusão dessas nos debates epistemológicos, como apresentado na discussão proposta por Sandra Whitworth (1997), que argumenta que as mulheres foram historicamente excluídas de esferas públicas importantes, como a da vida política e econômica (WHITWORTH, 1997, p.12). Sendo assim, tem-se como pauta não apenas a sub-representatividade das mulheres dentro das esferas pública e política e das instituições que as representam, como também traz à tona a forma como a participação delas e suas contribuições podem ser observadas dentro destes espaços - direta e indiretamente. Todavia, ainda que barreiras sociais e sistêmicas à participação efetiva das mulheres no debate sejam factuais, não basta apenas rompê-las para promover uma real igualdade política de gênero dentro da academia e das instituições, como pressupõe o feminismo liberal. Por isso, ainda que o feminismo liberal seja uma crítica, ele está diretamente relacionado à corrente hegemônica na ciência política e nas relações internacionais e ainda é muito limitado (RAVECCCA, 2019). Por sua vez, considerando a partir de então o enfoque heterodoxo, Karen Bombón Pozo (2021), discorre sobre a potência emancipatória da inclusão do debate de gênero no campo político via crítica feminista póspositivista, que emergiu durante a década de 1980. Esta crítica serviu de âncora teórica precedente ao desencadeamento de múltiplas abordagens e vertentes feministas singulares em seu campo de estudo, conforme apresenta o Quadro 2. O CAMPO TEÓRICO DO CONHECIMENTO POLÍTICO E AS CONTRIBUIÇÕES CRÍTICAS FEMINISTAS: PARTE II 93 Capítulo 7 Quadro 2: Vertentes feministas pós-positivistas segundo Bombón Pozo (2021) Abordagem Definição Vertentes Feminismo marxista Feminismo de ponto de vista Debate o enfoque de gênero como o lugar ocupado pelas mulheres em espaços considerados próprios da disciplinas de CP e RIs e sua histórica marginalização neles. Feminismo construtivista Feminismo radical Feminismo global Feminismo crítico Debate as desigualdades entre homens e mulheres a partir Feminismo da análise das socialista desigualdades materiais no sistema capitalista. Descrição Aborda a desigualdade de classe e a opressão dos proletários como precedente à desigualdade de gênero, sendo o capitalismo e não o patriarcado como o sistema opressor. Considera a masculinidade hegemônica como ferramenta de modelação das estruturas de poder e, consequentemente, do comportamento do Estado, sendo o conceito tratado como um discurso definidor (e excludente) das diferenças entre homens e mulheres. O feminismo radical analisa a opressão da mulher a partir do patriarcado sendo considerado como um meio pelo qual o mundo é construído a partir da visão masculina e, dessa forma a masculinidade significaria um conjunto de significados elaborados para a manutenção dos homens no poder. Aborda a globalização e seus impactos em diferentes âmbitos sociais como possível mecanismo de libertação e autonomia feminina, a fim de promover uma emancipação socioeconômica das mulheres. Entende que a emancipação feminina se dará apenas quando houver o fim das opressões contra as mulheres provenientes de estruturas econômicas e sociais. O CAMPO TEÓRICO DO CONHECIMENTO POLÍTICO E AS CONTRIBUIÇÕES CRÍTICAS FEMINISTAS: PARTE II 94 Feminismo materialista Feminismo crítico Debate as desigualdades entre homens e mulheres a partir da análise das desigualdades materiais no sistema capitalista. Feminismo neomarxista Feminismo negro Analisa as relações de poder Feminismo pós-moderno político através da noção de gênero. Feminismo pós-colonial e decolonial Capítulo 7 Aborda o capitalismo e o patriarcado como as estruturas de poder responsáveis por oprimir as mulheres, uma vez que as condições materiais feministas são fonte de pressão feminina em sociedade hierarquicamente dominadas por homens. Entende a mulher como um agente que sofre opressão sociocultural responsável por propagar estruturas de desigualdade social e discriminação, sendo a masculinidade e o capitalismo os principais componentes do sistema de opressões aos quais se deva lutar e transformar. Entende raça, sexo e classe como fatures determinantes nas desigualdades sociais, trazendo para o debate a importância da distinção de raça nas análises e construções teóricas a fim de mitigar as limitações apenas à experiência e demandas feministas de um grupo de mulheres brancas. Uma importante contribuição desta corrente é a introdução e problematização do conceito de interseccionalidade. Entende que a criação de conceitos é uma construção social utilizada como ferramenta para justificar a dominação de um grupo sobre outro, legitimando opressões e desigualdades com base em diferenças de gênero, raça, classe, etnia, etc. Se aproxima e dá voz aos debates dos feminismos comunitários e indígenas do Sul global. O CAMPO TEÓRICO DO CONHECIMENTO POLÍTICO E AS CONTRIBUIÇÕES CRÍTICAS FEMINISTAS: PARTE II 95 Analisa as Feminismo relações de poder pós-moderno político através da noção de gênero. Feminismo pósestruturalista Capítulo 7 Feminismo transnacional Analisa movimentos ativistas em todo o mundo como estes movimentos, quando promovidos por e para mulheres, têm um impacto significativo de cooperação, luta e emancipação. Entende que o poder é exercido por meio do discurso e do conhecimento, e questiona pressupostos ortodoxos da disciplina de RIs assim como as disparidades entre o discurso e a prática exercida pelos Estados. Fonte: Elaboração própria a partir de Bombón Pozo (2021). A partir da breve descrição sobre os moldes da contribuição teórica feminista durante o mais recente período de reestruturação do debate político acadêmico no campo da ciência política, que ainda ecoa seus desdobramentos três décadas após sua consolidação, verifica-se como a inclusão das mulheres e da perspectiva de gênero sobre “a” política, “o” político e, consequentemente, o poder, promove uma movimentação pragmática e essencial da academia e da militância política. Todavia, ainda que a contribuição crítica feminista ao campo do conhecimento teórico político seja de extrema importância para maior interdisciplinaridade e inclusão heterogênea e integra dos agentes influenciadores e influenciados nas agendas e na construção teórica, é importante ponderar qual o perfil das/dos pensadoras/es feministas responsáveis por essa onda disruptiva. Ademais, “o sucesso relativo do movimento na transformação da cultura contrasta nitidamente com seu relativo fracasso na transformação das instituições.” (FRASER, 2020, p.26), explicitando como a característica metamórfica dos paradigmas políticos, ainda que exploradas, encontram-se intrinsecamente condicionadas à manutenção das hierarquias tradicionais de poder. Toda a proposta de reestruturação epistemológica que padece sobre a crítica feminista ao campo teórico política também deve constantemente ser revisitada, para que conjuntos de regras não sejam re-engessados em formatos de controle do pensamento embasados na proposta teórica de redefinição das relações entre saber e poder. (HARDING, 2019, p. 106). Esse entendimento mostra-se como crucial para a subsistência da análise da crítica feminista, uma vez que determina se há ou não uma maior e completa representatividade das minorias marginalizadas no pensar e fazer político em suas mais diversas esferas, ou se a contribuições das quebras de paradigmas do terceiro grande debate são vinculadas especificamente à atribuição de uma nova ótica de análise que, ainda que vanguardeira, permanece não O CAMPO TEÓRICO DO CONHECIMENTO POLÍTICO E AS CONTRIBUIÇÕES CRÍTICAS FEMINISTAS: PARTE II 96 Capítulo 7 representativa. 3. CONSIDERAÇÕES FINAIS: COMPREENSÕES DE UMA “TEORIA POLÍTICA FEMINISTA” A contribuição crítica do feminismo ao campo da ciência política e das relações internacionais, sobretudo a vertente teórica, pode algumas estar relacionado à autointitulada “teoria política feminista”. Este foi um campo de autocitações centrado na produção quase exclusiva da academia anglosaxã, branca, que indiretamente Susan Okin (1992) acabou expondo, já que este seria um campo disciplinar dentro da teoria política que necessitou em certo momento da mobilização de um restrito grupo inicial de autoras que se reuniam periodicamente e fizeram o campo crescer. Ainda que tivesse uma variedade de posicionamentos críticos, destaca-se a predominância de uma adesão às perspectivas liberais, principalmente se tomarmos como consideração a própria Susan Okin (2001). A partir disso perceberam-se a endogenia e a prática recorrente de autocitações internas a esse campo. Ainda que esta fosse uma estratégia de consolidação disciplinar dentro da teoria e da filosofia políticas, o centramento da produção do conhecimento e do saber feministas em um lócus específico aboliria a importância, relevância e, principalmente, a utilidade de uma “teoria política feminista”. Esta acabaria se tornando, mais uma vez, uma hegemonia dentro do campo disciplinar, fazendo-se, de novo, o uso ardiloso das ferramentas do opressor e dominador, ou seja, do male-stream da teoria política. Hoje, então, pelo trabalho desenvolvido neste trabalho, discutido em Cypriano (2019) e aqui reproduzido, depois da exposição de uma miríade de elementos que informam sobre esse campo do conhecimento, faria sentido entender e definir a teoria política feminista como uma estratégia discursiva e de produção de conhecimento, que informa e é informada pela práxis do ativismo político e das múltiplas e diferentes experiências e relações entre as/os atrizes/atores dentro desse campo, que busca, ainda que na sua acomodação disciplinar dos campos que faz parte, a saber, a filosofia e a teoria política, o reconhecimento definitivo destas áreas por poder informar outra visão e entendimento sobre “a” política. Esse esforço deve ser ampliado, inclusivo e informado, já que esse tipo específico de saber é consequência de articulações locais e globais, envolvendo permanentes disputas de poder, como também abrangendo uma multiplicidade política de atrizes/atores em esferas variadas. REFERÊNCIAS ARRUDA, Ângela. Teorias da representação social e teorias de gênero. Cadernos de Pesquisa, n. 117, São Paulo, 2002, pp. 127-147. O CAMPO TEÓRICO DO CONHECIMENTO POLÍTICO E AS CONTRIBUIÇÕES CRÍTICAS FEMINISTAS: PARTE II 97 Capítulo 7 BOMBÓN POZO, Karen. Perspectivas feministas de la política exterior de los gobiernos Brasil, Argentina y Paraguay: el proceso de decisión e implementación de los tratados de megaproyectos energéticos para la construcción de las hidroeléctricas Itaipú y Yacyretá en 1973. Tesis (Doctorado em Relaciones Internacionles). Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais Ecuador. Quito, 2021. BOURQUE, Susan; GROSSHOLTZ, Jean. Politics an unnatural practice: political science looks at female participation. In: PHILLPIS, Anne (ed.). Feminism and politics. Oxford: Oxford University Press, 1998. CONNEL, Robert W. Masculinities. Los Angeles, CA: University of California Press, 1995. CYPRIANO, Breno. La idea feminista de la política desde el sur global. 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As the chapter is intended to be an introduction to students and professionals in the field, we quickly approach the notion of the field of political knowledge, the main dimensions in the theoretical field that feminism seeks to be critical, especially the epistemological dimension, the conceptual distinction between “the political” and “politics” and, also, a critique of so many feminisms to the hegemonic liberal perspective within this field. The study was divided into two parts, the introductory aspects, the discussion on the field of political knowledge and some aspects of feminist critical contributions are treated in the first part. In the last part, the currents and perspectives related to the various feminisms, the dimensions of political science, international relations and political theory and the final considerations are addressed, emphasizing what we understand as “feminist political theory”. KEYWORDS: Political Theory; Feminism; Political Science. O CAMPO TEÓRICO DO CONHECIMENTO POLÍTICO E AS CONTRIBUIÇÕES CRÍTICAS FEMINISTAS: PARTE II 100 CAPÍTULO 8 AS INTERSEÇÕES DAS DIMENSÕES DE GÊNERO, NEOLIBERALISMO E CONSERVADORISMO NAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS Lorena Ávila Soares Fonseca lattes.cnpq.br/6627245741315256 Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, Minas Gerais Breno Henrique Ferreira Cypriano lattes.cnpq.br/8398867970980446 Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, Minas Gerais RESUMO - Este capítulo se propõe a problematizar os debates de gênero no campo das relações internacionais (RIs) e ciência política (CP), a partir da perspectiva pós-estruturalista como um instrumental teórico e conceitual propício para análises feministas e críticas. O estudo apresenta uma breve contribuição da problematização do paradigma neoliberal e como este se reflete e se comporta no atual cenário político e socioeconômico de casos referentes ao neoconservadorismo político e religioso. Para tal objetivo, apresentase uma combinação de conceitos e teorias que se torna um potencial instrumento analítico que é capaz de articular os âmbitos de gênero, religião e raça em um contexto neoliberal. Como concluímos, este enquadramento teórico-analítico consegue se adequar a todos os estudos de casos de ascensão do ultraconservadorismo no mundo, adequando-se às especificidades de cada sociedade. PALAVRAS-CHAVE: Relações Internacionais; Gênero; Conservadorismo. 1. INTRODUÇÃO A ascensão dos movimentos da extrema direita no século XXI ocorreu concomitantemente à retomada de discursos conservadores, tradicionais, religiosos, heteronormativos e elitistas, ancorados na deterioração e deturpação das agendas de gênero. Isso se deu em um cenário de início de questionamentos do paradigma neoliberal vigente e dos benefícios advindos da globalização no mundo pós-Guerra Fria, no qual o discurso populista nacionalista ganhou espaço. Esse conservadorismo, delimitado por temáticas de gênero, neoliberalismo econômico, religião e raça, tem ganhado espaço globalmente e se refletido em diversas transformações político- AS INTERSEÇÕES DAS DIMENSÕES DE GÊNERO, NEOLIBERALISMO E CONSERVADORISMO NAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS 101 Capítulo 8 partidárias nas economias ocidentais. Assim, partindo do pressuposto de que a direita política e econômica se sentiria ameaçada com a expansão e ganho de influência das agendas de gênero, em um cenário globalizado e neoliberal, a principal questão que este trabalho se propõe é discutir conceitos e teorias que apresentariam um enquadramento analítico para a compreensão de como as agendas desses movimentos conservadores, que sustentam o discurso da extrema direita, agiriam para criar narrativas de distorção, opressão e produção de conteúdo de ódio frente às agendas de gênero. O estudo e análise da problemática proposta se dividem, então, em duas seções e uma conclusão: na primeira seção apresenta-se uma discussão teórica acerca da entrada da agenda feminista nas RIs e seu desencadeamento nos debates de gênero, sobretudo sobre a contribuição pós-estruturalista; a segunda seção promove uma contextualização socioeconômica e política referentes aos avanços graduais das agendas conservadoras nas últimas quatro décadas no mundo, destrinchadas em quatro âmbitos de análise: neoliberalismo, gênero, religião e raça. Como poderá ser percebida, toda a análise teórica aqui presente pode dialogar com casos de ascensão do ultraconservadorismo no mundo, adequando-se às especificidades de cada sociedade. Assim, este trabalho possibilita que, mais adiante, novas análises possam ser realizadas e comparadas em suas múltiplas abordagens, a exemplo da ascensão ultraconservadora no Brasil e sua ligação com o que chamamos hoje de “bolsonarismo”, nos Estados Unidos o fenômeno do “trumpismo”, o populismo de direita e religioso na Hungria e a atuação anti-gênero orquestrada pelo ataques aos direitos sexuais e reprodutivos na União Europeia, ou como o caso polonês com a atuação do partido de extrema direita Lei e Justiça (PiS, na sigla em polonês) do atual presidente Andrzej Duda e da Igreja Católica no mesmo tipo de empreitada (VIDA, 2019; BIROLI; VAGGIONI; MACAHDO, 2020; FONSECA, 2021). 2. O PÓS-ESTRUTURALISMO COM VIÉS FEMINISTA NAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS Neste trabalho, embasaremos a análise na abordagem feminista pós-positivista e sua vertente pós-moderna, uma vez que corrobora e ilustra a hipótese da construção de um discurso anti-gênero em prol da sustentação e legitimação de movimentos conservadores, possibilitando, assim, a compreensão da relação entre as agendas de gênero e o discurso político de poder da extrema direita. Desse modo, tem-se Patrícia Leavy (2007), que vê o pós-modernismo não apenas como uma abordagem teórica, mas também como uma posição epistemológica. Ela analisa a proposta pós-moderna de entender a natureza da construção do conhecimento, e das consequentes relações de poder advindas dele, por meio da construção social envolvida na análise dos discursos, assim como pelo método de desconstrução do discurso/palavras a partir do deslocamento de suposições das noções de semelhança e diferença presentes em sua construção de significado. AS INTERSEÇÕES DAS DIMENSÕES DE GÊNERO, NEOLIBERALISMO E CONSERVADORISMO NAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS 102 Capítulo 8 Para tal, Leavy (2007) traz para a discussão Michel Foucault (2006, 2008) e sua influência nos estudos feministas a partir da premissa de que “[...] todo o conhecimento é contextualmente limitado e produzido dentro de um campo se houver mudanças nas relações de poder.” (LEAVY, 2007, p. 89, tradução nossa). Afunila-se, a partir daí, para o feminismo pós-estruturalista da vertente pós-moderna, uma vez que este utiliza da desconstrução como ferramenta de análise, a qual nos será útil para investigação da construção do discurso dos movimentos populistas nacionalistas embasados na narrativa anti-gênero e sua utilização como ferramenta de poder. Sendo assim, o pósmodernismo, afunilado no pós-estruturalismo feminista, contribuirá para análise uma vez que estuda como “[...] os campos discursivos de gênero em que as pessoas operam e como formas patriarcais e centradas no homem de olhar para o mundo são comunicadas via discurso, incluindo linguagem, símbolos, ideologia, e assim por diante” (LEAVY, 2007, p. 91, tradução nossa). Assim, ao se envolver a dimensão política nos debates da disciplina, questionando as relações de poder e os fundamentos ontológicos e epistemológicos das RIs, tem-se as análises de Ann Tickner (1992) e Izadora Monte (2013) que debatem a prática do poder embasada no discurso e na detenção do conhecimento, questionando a discursiva do Estado e das correntes acadêmicas tradicionais, o que condiz com a futura análise proposta por esse trabalho da construção do discurso conservador disseminado pelos grupos populistas nacionalistas1 de extrema direita. Nesse sentido, o pósestruturalismo feminista analisa o poder político da linguagem na academia, nos discursos políticos e na prática, reinterpretando e desconstruindo conhecimentos, conceitos convencionais, metáforas ou discursos de política externa baseados na análise da linguagem (BOMBÓN POZO, 2021). Segundo Monte (2013), ao atribuir gênero como “categoria de análise às identidades estatais”, o pós-estruturalismo feminista “[...] concebe a linguagem como uma força de construção e reconstrução de ordens simbólicas falocêntricas” (MONTE, 2013). Dessa forma, torna-se viável a consideração de distribuição heterogênea de recursos de poder entre os indivíduos a partir de suas caracterizações de raça, classe, sexualidade, cultura, grupos religiosos, entre outros (BOMBÓN POZO, 2021). Tickner (1992), por sua vez, argumenta que esse poder também tem sua formação influenciada pelo contexto temporal, social e regional e que os analistas internacionais que optam pela abordagem feminista pós-estruturalista tentam, por si só, desmembrar esse poder assumindo a o lugar de fala de A nomenclatura do termo populismo, aplicado nas análises do cenário internacional desde a década de 1980, possui variações de acordo com a abordagem adotada por cada autor(a). Nesse sentido, tem-se a adoção de termos como populismo reacionário (FRASER, 2020); populismo nacionalista (BROWN, 2019); populismo iliberal (GRAFF; KAPUR; WALTERS, 2019). Nessa pesquisa, decidiu-se por adotar o termo populismo nacionalista, a partir da discussão feita por Wendy Brown, uma vez que esse engloba as questões da construção do discurso conservador, autoritário e excludente dentro dos países. 1 AS INTERSEÇÕES DAS DIMENSÕES DE GÊNERO, NEOLIBERALISMO E CONSERVADORISMO NAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS 103 Capítulo 8 “[...] impotentes indivíduos à margem do sistema internacional. [Assim,] além de questionar a capacidade do Estado ou capitalismo global para resolver problemas contemporâneos, eles colocam questões mais fundamentais sobre a construção do Estado como espaço político e fonte de identidade.” (TICKNER, 1992, p. 11, tradução nossa). Todavia, a título de fomentar a discussão, nesse momento é importante ter em mente que, ainda que a contribuição do feminismo pós-estruturalista nas RIs seja de extrema importância para maior interdisciplinaridade e inclusão dos agentes influenciadores e influenciados nas agendas e teorias da disciplina, é preciso levar em consideração qual o perfil do público de acadêmicos responsável por esse processo disruptivo. Esse entendimento mostra-se como crucial para a análise uma vez que determina se há ou não maior representatividade das minorias marginalizadas no cenário político internacional (e doméstico) e nos debates acadêmicos envolvidos por esses, ou se a contribuições das quebras de paradigmas do terceiro grande debate são vinculadas especificamente à atribuição de uma nova ótica de análise que, ainda que progressista, permanece não representativa. 3. O CONTEXTO SOCIOPOLÍTICO E ECONÔMICO DESDE A DÉCADA DE 1980 ATÉ OS DIAS ATUAIS: O NEOLIBERALISMO E SUAS RAMIFICAÇÕES Dada a delimitação teórica a ser englobada neste trabalho à luz da teoria pós-estruturalista feminista e partindo da premissa da influência direta da construção do conhecimento e do discurso nas práticas de poder (especialmente no poder político), prevê-se a relevância da contextualização da teoria no cenário sociopolítico e econômico no qual as agendas de gênero tem se difundido desde os anos 1980. A década de 1980 é um marco temporal desta análise uma vez que, além de situar a discussão teórica do terceiro grande debate das RIs, também delimita o início da vigência do paradigma neoliberal nas economias ocidentais. Ademais, para melhor entendimento e análise do cenário doméstico social que acolheu e aderiu ao discurso anti-gênero conservador dos grupos populistas nacionalistas, entende-se também a importância da discussão feita por Giddens, Beck e Scott (1994) a respeito do tradicionalismo e destradicionalização. Para os autores, a tradição, e consequentemente o tradicionalismo, estão intimamente ligados ao poder e ao conceito de autoridade, sendo essa relacionada à detenção do conhecimento assim como a capacidade de formular normas de vinculação (GIDDENS; BECK; SCOTT, 1994). Logo, as transformações paradigmáticas que vêm se alocando nas sociedades ocidentais ao longo das últimas décadas têm impacto direto nos processos de tradicionalismo e destradicionalização e, consequentemente, AS INTERSEÇÕES DAS DIMENSÕES DE GÊNERO, NEOLIBERALISMO E CONSERVADORISMO NAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS 104 Capítulo 8 nas estruturas de poder e seus mecanismos de manifestação e influência. Nesse sentido, primeiramente, mostra-se crucial para a análise o entendimento do paradigma vigente no ocidente desde a década de 1980: o neoliberalismo. A ascensão e decadência da hegemonia neoliberal será abordada por meio da visão de Nancy Fraser (2020) e Wendy Brown (2019), contribuindo para a contextualização do cenário no qual movimentos conservadores têm ganhado espaço. Assim, Fraser (2020) parte do pressuposto que o paradigma neoliberal se constitui de um neoliberalismo progressista, no qual a igualdade é materializada como meritocracia e o liberalismo econômico reina perante sociedades extremamente desiguais e submissas ao mercado. Para Fraser, “o neoliberalismo progressista foi capaz de articular uma política econômica regressiva, pró-negócios, com uma política progressista de reconhecimento, valorizando a diversidade e a representatividade, mas ressignificando igualdade como sinônimo de meritocracia” (FRASER, 2020), fazendo com que o mercado e a moral se tornassem a essência do desenvolvimento da nação e da liberdade, movidos pela tradição e não pela política, e contendo o progressismo proposto por meio destes. Desse modo, a forma como a liberdade foi moldada no discurso neoliberal, atrelada diretamente à meritocracia e à tradição, fez com que essa “moralidade tradicional” ancorasse um patriotismo nacionalista. Esse cenário foi amplamente favorável para a propagação do discurso de grupos de extrema direita, que utilizam do axioma da liberdade para justificar suas violações e seus extremismos e perpetuar tradições fundamentadas em desigualdades socioeconômicas e mitigação de direitos às minorias. No entanto, com a eclosão da crise de 2008, momento no qual se iniciam os questionamentos sobre a serventia e eficácia do paradigma neoliberal e da globalização que o acompanhou, o neoliberalismo progressista perde força como paradigma vigente, mas deixa como legado um discurso opressor e perpetuador de desigualdades mascarado de liberdade em meio a uma forte crise. Fraser (2020) argumenta, então, que a crise atual é uma crise geral. Não só o neoliberalismo progressista se tem mostrado falho perante às sociedades, como também tem gerado concomitantemente uma crise ecológica, econômica e social às quais, juntas, formam tal crise geral responsável por despertar nas sociedades um senso de necessidade de mudança radical e imediatista. Essa crise geral seria ancorada, por sua vez, no desmoronamento da hegemonia neoliberal progressista, que consiste em um projeto socioeconômico de diversificação da hierarquia social através da meritocracia concomitantemente com a manutenção dos ideais econômicos neoliberais conservadores nos setores mais dinâmicos da economia. Todavia, Fraser (2020) não questiona a manutenção das políticas neoliberais e sim da hegemonia neoliberal, a qual desde a década de 1980 tem sido responsável pela “autoridade política, moral, cultural e intelectual AS INTERSEÇÕES DAS DIMENSÕES DE GÊNERO, NEOLIBERALISMO E CONSERVADORISMO NAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS 105 Capítulo 8 de uma determinada visão de mundo - e com a capacidade dessa visão de mundo de se incorporar em uma aliança durável e poderosa de forças sociais e classes sociais” (FRASER, 2020, p. 76). Tendo como marco a crise econômica de 2008, a perspectiva neoliberal progressista e a globalização passaram a ser fortemente criticadas, deixando um espaço vazio entre a insatisfação do que se tem hoje e a imprevisibilidade das possibilidades do futuro, contexto que dá nome ao seu livro a partir de uma citação de Antonio Gramsci: “o velho está morrendo e o novo não pode nascer”. Wendy Brown (2019), por sua vez, sendo uma das principais referências no atual debate sobre o paradigma neoliberal e seus impactos, também argumenta em prol de sua decadência. Sua perspectiva será importante para entendimento do contexto uma vez que, apontando o neoliberalismo como o precursor do autoritarismo, Brown (2019) expõe como a deterioração da democracia, liberdade e igualdade moldaram uma sociedade regida por desconfianças e insatisfações. Segundo ela, “o sonho neoliberal era uma ordem global de fluxo e acumulação de capital livres, nações organizadas pela moralidade tradicional e pelo mercado e de Estados orientados quase exclusivamente para esse projeto” (BROWN, 2019). Dessa maneira, o neoliberalismo criou uma forma genuína de ataque ao político em prol do exímio de interferência externas no mercado, ataque este que se estendeu para os demais âmbitos sociais, até chegar à “forma democrática do político”, tendo como importante aliado a religião e a tradição a ela pertencente. Assim, conseguiu se difundir tão veementemente a partir dos anos 1980 pois estava inserido em um cenário de recessão econômica global e crises sociais, com uma promessa de transformação de realidade que beneficiaria a todas as camadas sociais, criando um. “[...] entusiasmo pelo mercado [...] tipicamente animado por sua promessa de inovação, liberdade, novidade e riqueza, [e] uma política centrada na família, religião e patriotismo [...] autorizada pela tradição, autoridade e moderação. Aquele inova e perturba, esta assegura e sustenta.” (BROWN, 2019, p. 110). No que diz respeito, então, à ascensão política de partidos de extrema direita no mundo e sua relação com o neoliberalismo, Brown (2019) tem seu argumento enquadrado na análise dos resultados da vigência do paradigma neoliberal nas últimas décadas. Essa influência se deu a partir do ataque à vida política, da ressignificação de liberdade como algo sem controle e com repulsa à justiça social - justificada pela retomada do tradicionalismo - assim como pelo resgate e distorção da ideia de moralidade usada como mecanismo de freio das lutas por igualdade. Da mesma forma, coloca-se em pauta o questionamento a respeito dos movimentos de reação à essa ascensão da extrema direita, questionando não só a proatividade com que se dão, como AS INTERSEÇÕES DAS DIMENSÕES DE GÊNERO, NEOLIBERALISMO E CONSERVADORISMO NAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS 106 Capítulo 8 também sua eficiência, uma vez que “enquanto a esquerda luta para articular os vários poderes que geram sujeitos sociais construídos e posicionados de modos diferentes, a direita esmaga essa luta com um discurso que reduz a liberdade a censura e coerção” (BROWN, 2019). Assim, nota-se como o paradigma neoliberal criou um cenário de aplicação efetiva utópica nas sociedades capitalistas, não se sustentando por muito tempo, e tendo o início do seu fim marcado pela crise de 2008 - fim esse marcado pela apropriação do discurso liberal por grupos extremistas e de ódio. O panorama sociopolítico hoje é caracterizado primordialmente pela polarização partidária, criando indignação, moralização, sátira e esperanças vãs de que facções internas ou escândalos da direita produzirão sua autodestruição, cenário este que infelizmente tem prevalecido sobre estratégias sérias para desafiar essas forças por meio de alternativas convincentes. Nós temos dificuldade até mesmo com a nomenclatura do paradigma que tem aos poucos se instaurado em detrimento do neoliberalismo: trata-se de autoritarismo, fascismo, populismo, democracia não liberal, liberalismo antidemocrático, plutocracia de extrema direita? Ou alguma outra coisa? (BROWN, 2019). Esse cenário neoliberal desencadeou a (re)ascensão de agendas também em outros âmbitos da sociedade. A religião, especialmente as cristãs, nas quais a tradição se mostra intrínseca à essência da prática religiosa, voltaram a ganhar um espaço político que havia por um tempo se diluído dentro do Estado laico. Sendo assim, a disseminação do discurso tradicional, ultraconservador, patriarcal e heteronormativo voltou a exercer uma influência significativa não apenas sobre a vida das pessoas, como também no direcionamento das instituições dos países nos quais a extrema direita tem se fortalecido. Dessa forma, a partir da análise de Neil Datta (2018) sobre a “lei natural” como uma estratégia dos movimentos extremistas religiosos europeus em combater os direitos humanos e direitos reprodutivos, Agnieszka Graff, Ratna Kapur e Suzanna Danuta Walters (2019) argumentam que: “[...] embora nem todos os da direita sejam religiosos, certamente é verdade que a direita religiosa se globalizou com um ímpeto impressionante, amadurecendo em termos de estratégias, objetivos e financiamento. [...] As ideias, objetivos e ambições da rede são os de extremistas religiosos, mas a linguagem explicitamente religiosa é estrategicamente substituída pela conversa sobre direitos e o discurso aparentemente neutro da lei natural.” (GRAFF; KAPUR; WALTERS, 2019, p. 543, tradução nossa). A partir da contribuição destas autoras, trazendo a discussão para o AS INTERSEÇÕES DAS DIMENSÕES DE GÊNERO, NEOLIBERALISMO E CONSERVADORISMO NAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS 107 Capítulo 8 exemplo do caso polonês, a ascensão da extrema direita política se deu em um cenário no qual os discursos nacionalista e católico se fundiram e foram difundidos com base em uma suposta sexualização infantil e demonização das agendas de gênero, tornando-se recorrentemente presente nas Igrejas, na mídia, no governo e, consequentemente, na população. Diante disto, criou-se um pânico moral, “contribuindo para a polarização política e uma atmosfera generalizada de ansiedade e suspeita que, posteriormente, fez com que o autoritarismo parecesse desejável.” (GRAFF; KAPUR; WALTERS, 2019, p. 551, tradução nossa). Ademais, esse discurso também corrobora com movimentos racistas, uma vez que o tradicionalismo se une ao nacionalismo dentro do discurso político religioso. Assim, Graff, Kapur e Walter (2019) trazem para a discussão o impacto do racismo e da xenofobia nos discursos conservadores, embasada na proteção da nação e fomento a um nacionalismo xenofóbico e extremista, a exemplo da extrema direita na Polônia que embate fortemente as agendas progressistas dentro do país, especialmente as de gênero. “Em 2014-15, as campanhas contra o gênero foram parcialmente substituídas e parcialmente fundidas com o pânico sobre a crise de refugiados na Europa. Foi a habilidade de combinar os dois temas que abriu caminho para que o Partido da Lei e da Justiça obtivesse a vitória eleitoral em 2015. [...] uma vez que os refugiados foram reinventados como bárbaros perigosos, o racismo se tornou aceitável. Gênero junto com refugiados (agora referidos como invasores e terroristas) foram demonizados como inimigos da nação, uma conspiração internacional que ameaça a cultura polonesa e a segurança das famílias polonesas. Pânico moral em torno do gênero combinado perfeitamente com a retórica dos inimigos nas portas.” (GRAFF; KAPUR; WALTERS, 2019, p. 551, tradução nossa). Assim, a análise dos movimentos conservadores mostra sua importância uma vez que sua ascensão se dá em detrimento de direitos e conquistas das agendas feministas, a fim de retomar políticas e impor um estilo de vida patriarcal, tradicional, religioso e discriminatório às sociedades neoliberais. Por meio da vertente neoliberal, que se ramifica nas esferas religiosas, de gênero e racial, o estudo de caso da Polônia, então, mostra-se como uma âncora para um debate que ultrapassa fronteiras. Sendo um dos países no qual o conservadorismo e o discurso populista reacionário, como classifica Nancy Fraser (2020), tem atualmente maior influência, as restrições de direitos e cada vez maior fechamento do país ao externo mostra-se como uma ameaça aos direitos humanos conquistados até hoje, em especial aos que abrangem minorias como é o caso das mulheres. AS INTERSEÇÕES DAS DIMENSÕES DE GÊNERO, NEOLIBERALISMO E CONSERVADORISMO NAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS 108 Capítulo 8 Carlos Henning (2015) explica a união de diferentes âmbitos discriminatórios em prol da sustentação de sistemas de opressão e discriminação através do conceito de interseccionalidade, o qual podemos aplicar nesta análise. Entende-se, então, que as análises sociais devem ser feitas levando em consideração as diferenças existentes dentro da sociedade em questão, atentando-se “[...] às diferenças que fazem diferença em termos específicos, históricos, localizados e, obviamente, políticos.” (HENNING, 2015, p. 111, itálicos do autor). Desse modo, as características dos diferentes grupos sociais presentes em uma sociedade, podendo se identificarem por raça, gênero e religião (no caso deste estudo), são responsáveis por, ao mesmo tempo gerarem diversidade e completude, também criarem discriminações e opressões responsáveis por promover desigualdades e a sustentação de grupos elitistas no poder da nação, como é o caso dos atuais Estados liderados por conservadores, que em sua maioria representam homens heterossexuais, brancos, religiosos e conservadores. Assim, percebe-se como a construção do discurso a ser analisado neste trabalho se dá pela ótica do vencedor, ou seja, a partir da visão de mundo, interesses e objetivos daqueles que se encontram em posições de poder e influência. Antonio Silva (2011), referenciando o trabalho de Walter Benjamin, expõe essa ótica de narração como a apresentação da “[...] história habitual [sendo], de fato, a ‘comemoração’ das façanhas dos vencedores, ela é a ‘apologia’ que tende a ‘recobrir os momentos revolucionários do curso da história’” (GAGNEBIN, 1999, p. 99 apud SILVA, 2011, p. 147). Nesse sentido, a história é construída a partir dos fatos considerados relevantes pelas e para as elites e, no presente, essa característica histórica de direcionamento narrativo transparece nos discursos de poder na medida em que estes disseminam e enfatizam as crenças e os objetivos destas mesmas elites. Desse modo, o neoliberalismo ultraconservador e de extrema direita que tem emergido nos últimos anos se manifesta como um projeto sociopolítico pós-democrático, embasado na restrição de liberdades - a partir de um discurso deturpador das agendas progressistas - em prol da manutenção de desigualdades. 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS Neste trabalho buscamos brevemente analisar a ascensão neoliberal e conservadora, em contraposição à agenda de gênero, principalmente a partir da década de 1980 e, por meio do embasamento na teoria clássica pós-estruturalista com viés feminista apresentamos um modo e uma forma analítica para se entender como o contexto social, político e econômico do período influenciou na ascensão de partidos ultraconservadores e de extrema direita no mundo têm atuado no cenário político. Assim, foi possível identificar a relação entre o contexto e o desencadeamento dos discursos anti-gênero, xenofóbicos, conservadores e heteronormativos e como estes se traduzem em sociedade ultraconservadoras. AS INTERSEÇÕES DAS DIMENSÕES DE GÊNERO, NEOLIBERALISMO E CONSERVADORISMO NAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS 109 Capítulo 8 Por fim, ressaltamos que os movimentos e debates que o paradigma neoliberal trouxe consigo, uma vez que a ascensão econômica de minorias e seu maior engajamento e influência política como consequência, desenharam uma sociedade na qual determinadas conquistas não conseguem mais serem dissolvidas. Desse modo, o conservadorismo tradicional se adaptou a este novo contexto e hoje busca, através do discurso instrumentalizado mascarado de busca por liberdade e proteção da família tradicional e potencializado pelos veículos midiáticos, condicionar e deturpar tais agendas progressistas na tentativa de deslegitimá-las. 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The study presents a brief contribution to the problematization of the neoliberal paradigm and how it reflects and behaves in the current political and socioeconomic scenario of cases referring to political and religious neo-conservatism. For this purpose, a combination of concepts and theories is presented that becomes a potential analytical instrument capable of articulating the spheres of gender, religion and race in a neoliberal context. As we concluded, this theoretical-analytical framework manages to fit all case studies of the rise of ultraconservatism in the world, adapting to the specificities of each society. KEYWORDS: International Relations; Gender; Conservatism. AS INTERSEÇÕES DAS DIMENSÕES DE GÊNERO, NEOLIBERALISMO E CONSERVADORISMO NAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS 111 Capítulo 9 CAPÍTULO 9 EVIDÊNCIAS SOBRE A POBREZA NO BRASIL: UMA APLICAÇÃO DA MODELAGEM DE EQUAÇÕES ESTRUTURAIS: PARTE I Leandro Nunes Soares da Silva lattes.cnpq.br/3416990604622129 Universidade Estadual de Maringá Marina Silva da Cunha lattes.cnpq.br/0933287370110532 Universidade Estadual de Maringá RESUMO - Este trabalho tem como objetivo analisar a pobreza nas famílias brasileiras e suas relações causais com as características da própria família, aspectos pessoais do chefe da família e com a infraestrutura do domicílio. Para tanto, a pobreza é avaliada pela Modelagem de Equações Estruturais (MEE), ainda pouco utilizada em estudos sobre o tema, que permite testar a validade de modelos teóricos que definem as relações causais entre as variáveis, além de permitir o uso de variáveis não observáveis. Para tanto, foram utilizados os microdados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios nos anos de 2004 e 2012. Entre os resultados, verificou-se que os domicílios chefiados por homem, com a presença de cônjuge, localizados na área urbana, com saneamento básico e conforto lar estão associados com o maior rendimento domiciliar per capita, fazendo com que estejam, proporcionalmente, em menor condição de pobreza, tanto em 2004 quanto em 2012. Dessa forma, a metodologia foi adequada para analisar as relações causais do fenômeno da pobreza brasileira. Esta comunicação foi dividida em duas partes, sendo apresentados os aspectos introdutórios e metodológicos na primeira parte e o desenvolvimento e conclusões na segunda parte. PALAVRAS-CHAVE: Pobreza; Determinantes da pobreza; Modelagem de Equações Estruturais. 1. INTRODUÇÃO Os temas sociais, como a pobreza, passaram a ter grande destaque nos anos 1990, sobretudo após o Plano Real, já que até então o principal foco da política econômica era a questão inflacionária. A respeito da incidência da pobreza no Brasil, os dados divulgados sobre o tema indicam que a partir dos anos 1980 houve, de modo geral, dois períodos de queda acentuada na incidência de pobreza, sendo o primeiro após o Plano Real e o segundo que se iniciou em meados dos anos 2000 e seguem EVIDÊNCIAS SOBRE A POBREZA NO BRASIL: UMA APLICAÇÃO DA MODELAGEM DE EQUAÇÕES ESTRUTURAIS: PARTE I 112 Capítulo 9 até o momento. O primeiro momento de queda é explicado pela redução do processo inflacionário que afeta, claramente, as camadas mais pobres da sociedade. Enquanto os resultados do segundo período se devem, entre outros fatores, ao aumento do emprego formal, aumento da renda média (sobretudo nos estratos mais baixos da sociedade), elevação do saláriomínimo real e queda na desigualdade da distribuição de renda verificada na última década, isso sem contar com os fatores demográficos. Segundo Rocha (2006), entre o final dos anos 1980 e 1994 a proporção de pobres se situou em torno de 30%. No entanto, com a implementação do Plano Real, houve nova queda na pobreza que passou para 20%, proporção essa que se manteve até o início dos anos 2000. Barros et al. (2000a) explica que o problema da pobreza no Brasil não está na escassez de recursos e sim na desigualdade da distribuição de renda que é o principal determinante da pobreza. A ideia básica é que o “o Brasil não é um país pobre, mas um país com muitos pobres”, tendo em vista que 64% dos países, em 1999, tinham renda per capita inferior à brasileira. No entanto, comparando o Brasil com países com renda per capita próxima, a incidência de pobreza no Brasil é três vezes superior ao encontrado nesses países, indicando que a distribuição dos recursos é a causa dessa elevada pobreza. Outrossim, os autores criticam a grande ênfase dada ao crescimento econômico como política de redução da pobreza e defendem a adoção de políticas distributivas. Por sua vez, em meados dos anos 2000 diversos estudos indicam que, independentemente da linha de pobreza utilizada, houve sinais evidentes de queda na pobreza, decorrentes tanto do aumento da renda, como da diminuição da desigualdade social, fato até então inédito no Brasil (HOFFMANN 2006, BARROS 2007, ROCHA 2013). Essa queda na pobreza é vista em IETS (2012), tendo em vista que em 1992 a porcentagem de pobres no Brasil era 45,9%, em 2011 passou para 18%, sendo significativa a queda de 2003 em diante em que o número de pobres passou de 67,3 milhões de pessoas em 2003 para 33,1 milhões em 2011, uma queda de 50,8% em termos absolutos. Segundo o IPEA (2012) essa queda na pobreza é explicada por mudanças na desigualdade de renda e o pelo crescimento econômico. Tais resultados foram obtidos através da mensuração da pobreza pela via mais tradicional, ou seja, da forma unidimensional, além de considerar como linha de extrema pobreza o valor de R$70,00 familiar per capita. Essa metodologia leva em consideração para classificar uma família como pobre unicamente a sua renda per capita. Porém, segundo Hoffmann (1998), a renda do indivíduo se constitui em uma medida imperfeita de seu bem-estar. Nessa perspectiva, surge o critério multidimensional, seguindo as contribuições de Amartya Sen, que procura quantificar as diversas carências, além da insuficiência de renda para definir a linha de pobreza. Sen (2000) fez uma crítica à visão até então predominante que EVIDÊNCIAS SOBRE A POBREZA NO BRASIL: UMA APLICAÇÃO DA MODELAGEM DE EQUAÇÕES ESTRUTURAIS: PARTE I 113 Capítulo 9 atrelava a questão do desenvolvimento unicamente ao crescimento da renda, tendo em vista que o desenvolvimento deve ser centrado no ser humano o que implica expansão da liberdade dos indivíduos. São cinco as liberdades elencadas: liberdades políticas, dispositivos econômicos, oportunidades sociais (como educação e saúde), garantias de transparência (direito à clareza, liberdade de lidar com os outros) e previdência social (rede de proteção social). Desse modo, há diversas situações que privam os indivíduos de viverem bem, em função das privações da liberdade. O desenvolvimento, dessa forma, consiste na expansão das liberdades que as pessoas desfrutam que não dependem exclusivamente de disposições econômicas, mas também de disposições sociais e políticas. Logo, o objetivo desse trabalho é analisar a pobreza em seus múltiplos determinantes, de modo que as privações sejam incorporadas, tais como as concernentes às questões educacionais e demográficas, para os anos de 2004 e 2012. Para tanto, além da análise unidimensional, é utilizada a Modelagem de Equações Estruturais (MEE) que é considerada adequada para tratar um tema complexo, com inúmeras nuances e correlações entre as variáveis, sendo capaz inclusive de utilizar variáveis não diretamente observáveis. O tema se justifica como importante porque a taxa de pobreza no Brasil voltou a aumentar em meados dos anos 2010 e o enfrentamento desse problema histórico é essencial para o desenvolvimento do país. Desse modo, a análise da evolução da pobreza é relevante para a avaliação de políticas públicas de combate à pobreza. Nesse aspecto, a utilização do instrumental de equações estruturais pode elucidar certas características não contempladas pelo método tradicional, uma vez que a carência de certos bens, não necessariamente a renda, como a falta de energia elétrica, pode ser um fator impeditivo para ultrapassar a linha da pobreza. Por fim, há uma carência de estudos que utilizam a MME para o país, com toda a complexidade envolvida e suas múltiplas inter-relações. Sendo assim, esse trabalho está divido em três seções além dessa introdução. A primeira parte analisa a metodologia empregada e o modelo empírico proposto, além das relações causais. A segunda parte contempla a mensuração da pobreza, a estimação do modelo proposto e a interpretação dos resultados, enquanto a última compreende as considerações finais. 2. METODOLOGIA Além dos métodos “tradicionais” de mensuração da pobreza, se discute a seguir a Modelagem de Equações Estruturais. Conforme Hair et al. (2009) e Marôco (2010), a Modelagem de Equações Estruturais – MEE (Structural Equation Modeling - SEM) é uma técnica de modelação utilizada para testar a validade de modelos teóricos que definem relações causais, hipotéticas, entre variáveis. Estas relações são representadas por parâmetros EVIDÊNCIAS SOBRE A POBREZA NO BRASIL: UMA APLICAÇÃO DA MODELAGEM DE EQUAÇÕES ESTRUTURAIS: PARTE I 114 Capítulo 9 que indicam a magnitude do efeito que as variáveis independentes, apresentam sobre outras variáveis, as dependentes. A MEE é uma extensão dos modelos lineares generalizados que considera, de forma explícita, os erros de medida associados às variáveis em estudo. Essa técnica pode ser descrita como a junção das técnicas de Análise Fatorial e de Regressão Linear. Contudo, a MEE é mais do que a soma das duas técnicas. Em primeiro lugar há uma clara diferença entre a MEE e a Estatística Clássica, tendo em vista que nesta última, a lógica é encontrar um modelo teórico que descreva os dados, ou seja, o modelo que encaixa na estrutura dos dados observada, numa estratégia exploratória. Em oposição, a MEE se baseia em um quadro teórico estabelecido ex ante. Dessa forma, a pesquisa começa com a formulação de um quadro teórico para, em seguida, verificar se os dados confirmam ou não a hipótese teórica. (Marôco, 2010) Outra característica da MEE é que permite trabalhar com variáveis que não são diretamente observáveis, chamadas de variáveis latentes. Como essas variáveis não são diretamente mensuráveis, elas são “medidas” por intermédio de outras variáveis ou indicadores com a utilização do método de Análise Fatorial. Dessa forma, diferente dos modelos econométricos tradicionais, na MEE as variáveis podem ser classificadas em duas formas: a) as variáveis manifestas; b) as variáveis latentes, ou fatores que são as variáveis não diretamente observáveis ou mensuráveis, sendo que a sua “existência” é dependente e formada com o uso das variáveis manifestas. Um exemplo de variável manifesta é a quantidade de dormitórios que existe em uma residência, já que sua mensuração ocorre de forma simples e direta. Por outro lado, o grau de felicidade de um indivíduo é uma variável latente, que apresenta características subjetivas e dependente de outras variáveis. Segundo Hair et al. (2009), para avaliar a qualidade dos resultados obtido na MEE são utilizadas as medidas de qualidade de ajuste. Nesse trabalho serão utilizados dois índices de ajuste absoluto que comparam a matriz de entrada com aquela predita pelo modelo proposto. As primeiras medidas de qualidade são o Root Mean Squares Error of Approximation (RMSEA) e o Standardized Root Mean Square Residual (SRMR) que são inapropriados se as suas estimativas forem superiores a 0,10. Já entre os índices empíricos que mensuram a qualidade do ajustamento em relação a modelos de referência, serão utilizados o CFI (Compative Fit Index) e o TLI (Índice de Tucker Lewis) e se apresentarem valores inferiores a 0,9 indicam um mau ajustamento. A etapa final da MEE consiste em verificar se os resultados correspondem à teoria proposta e se possíveis alterações no modelo são pertinentes. Com o objetivo de melhorar o ajuste, pode-se reespecificá-lo acrescentando ou eliminando parâmetros do modelo original. Contudo, essas alterações só são válidas caso tenham justificativa teórica. Os ajustes no modelo ocorrem por meio dos Modification Indices - MI. Dessa forma, segundo Marôco (2010), os parâmetros MI superiores a 11 podem ser alterados. Assim, EVIDÊNCIAS SOBRE A POBREZA NO BRASIL: UMA APLICAÇÃO DA MODELAGEM DE EQUAÇÕES ESTRUTURAIS: PARTE I 115 Capítulo 9 por exemplo, se duas variáveis manifestas apresentarem um MI elevado, é possível concluir que elas possuem uma correlação significativa, podendo ser criada uma seta de duas pontas entre elas. 2.1. Dados e modelo empírico Para o cálculo da pobreza e a estimação dos modelos são utilizados os microdados referentes a pessoas e famílias da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) dos anos de 2004 e 2012 com reponderação efetuada no ano de 2013, disponíveis no site do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Utilizou-se o ano de 2004 para iniciar a análise por duas razões. A partir desse ano, a PNAD passou a pesquisar os domicílios rurais de todas as regiões brasileiras, de modo que seja possível uma comparação direta com a PNAD de 2012; representa um período em que houve queda nos níveis de pobreza, sendo o segundo ano de vigência do maior programa de transferência de renda realizado, o Programa Bolsa Família. Assim, a utilização de 2004 e 2012 permite analisar a efetividade das políticas de erradicação da pobreza, considerando todo o país. Para este estudo, utilizou-se o critério adotado pelo Ministério do Desenvolvimento Social -MDS e, por extensão, pelo Programa Bolsa Família (PBF), em que é considerado pobre o domicílio com rendimento mensal per capita igual ou inferior a R$140,00, em 2012. As informações referentes ao rendimento foram deflacionadas pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor de 1° de outubro de 2012, de acordo com a sugestão de Corseuil e Foguel (2002). Dessa forma, os valores do rendimento domiciliar per capita mensal encontrado na PNAD 2004 foram divididos por 0,663869. Alguns filtros foram utilizados com o objetivo de deixar a amostra mais homogênea. Dessa forma, foram eliminadas as pessoas de referência ou chefes de família com idade igual ou inferior a 14 anos. Por fim, foram utilizadas informações somente dos domicílios que possuíam respostas para todas as variáveis utilizadas, ou seja, os domicílios com missings foram excluídos. Dessa forma, foram mantidos pelo menos 95% dos domicílios da amostra original. 2.2. Relações causais do modelo empírico: Fatores socioeconômicos associados à pobreza O modelo empírico proposto por Codes (2005) baseado nas relações teóricas está representado na Figura 1, assim como o sinal esperado das relações causais. De acordo com a literatura econômica, as fontes de rendimento das famílias são os salários, lucros, juros, aluguéis e transferências do governo. Como estão sendo analisadas as famílias em condição de pobreza, a participação dos lucros, juros e aluguéis no rendimento dessas famílias é praticamente nulo. Assim, restam os rendimentos provenientes dos salários e transferências do governo, sendo o primeiro a principal fonte. EVIDÊNCIAS SOBRE A POBREZA NO BRASIL: UMA APLICAÇÃO DA MODELAGEM DE EQUAÇÕES ESTRUTURAIS: PARTE I 116 Capítulo 9 Sabendo que o salário ocorre por meio da oferta de trabalho ou por meio do próprio negócio (pró-labore), fica claro a importância do trabalho na obtenção de renda e, por consequência, seu impacto na condição de pobreza do indivíduo e de sua família. Quanto aos ofertantes de mão de obra, estar empregado faz parte de um contexto maior que engloba como o indivíduo está inserido no mercado de trabalho, considerando se ele está no mercado formal ou informal, a instabilidade, a precariedade desse trabalho e a forma como se dá os reajustes salariais. Assim, os chefes de famílias com melhor inserção no mercado de trabalho apresentam condições de receber maior rendimento per capita. Nessa perspectiva, Barros, Corseuil e Leite (2000b) esclarecem a relação entre a pobreza e o mercado de trabalho em que a questão central é como os recursos humanos são utilizados e remunerados, de forma que quanto maior a remuneração recebida pelos trabalhadores, menor será o nível da pobreza. Além disso, a eficiência do mecanismo de alocação e remuneração dos recursos humanos depende do bom funcionamento do mercado de trabalho. Schwartzman (2004, p. 40) também defende essa linha de pensamento, em que “a participação no mercado de trabalho é a principal forma de inclusão das pessoas nas sociedades modernas, e o ponto de partida de todas as análises sobre inclusão e exclusão social”. Dessa forma, é preciso investigar quais são os determinantes que facilitam o acesso ao mercado de trabalho, como a raça, o gênero, a idade e a educação. Quais características individuais favorecem a melhor inserção no trabalho e o seu o nível salarial? A área da economia do trabalho estuda a discriminação de acordo com o diferencial de rendimentos. Sempre que trabalhadores perfeitamente substituíveis, ou seja, com as mesmas competências em um mesmo segmento do mercado trabalho recebem salários diferentes, há discriminação para aqueles que recebem menos que a média. Segundo Barros, Corseuil e Leite (2000b), as mulheres ganham menos que os homens, e os mulatos e negros ganham menos que os brancos. Assim sendo, há discriminação de gênero e de raça. Por sua vez, Soares (2000) pesquisou o diferencial de rendimentos entre os homens brancos, homens negros, mulheres brancas e mulheres negras, utilizando uma metodologia que é uma extensão da decomposição de Oaxaca. Para o autor, tanto as mulheres negras como os homens negros têm diferenças no salário em decorrência da inserção no mercado de trabalho, como devido à qualificação, quando comparados aos homens brancos. Dessa forma, os chefes de famílias mulheres e da etnia negra não somente recebem salários menores, como também estão expostos a maiores taxas de desemprego e trabalhos mais precários sendo, por consequência, mais propensos à pobreza. EVIDÊNCIAS SOBRE A POBREZA NO BRASIL: UMA APLICAÇÃO DA MODELAGEM DE EQUAÇÕES ESTRUTURAIS: PARTE I 117 Capítulo 9 De acordo com Henriques (2001), a heterogeneidade na escolaridade da população brasileira explica parte importante não somente da desigualdade de renda, como também da desigualdade racial. De acordo com o autor, no final do século XX, a escolaridade média de um jovem negro com 25 anos era de 6,1 anos, enquanto um jovem branco possuía 8,4 anos de estudo. Além disso, essa disparidade na intensidade da discriminação racial foi a mesma vivida pelos pais desses jovens, de forma que “a escolaridade média de ambas as raças cresce [...], mas o padrão de discriminação racial, expresso pelo diferencial nos anos de escolaridade entre brancos e negros, mantém absolutamente estável entre as gerações” (HENRIQUES, 2001, p. 27). Figura 1: Modelo empírico proposto Fonte: Elaboração própria, de acordo com Codes (2005) Quanto aos impactos da idade e da escolaridade no mercado de trabalho, os estudos da Teoria do Capital Humano afirmam que o investimento nos recursos humanos via educação e a experiência no trabalho proporcionam o desenvolvimento econômico. De acordo com Mincer (1974) que formalizou a função minceriana de ganhos salariais, quanto maior a escolarização do indivíduo, maior será o seu rendimento, ceteris paribus; assim como o maior número de anos de experiência no mercado de trabalho. A ideia é que o trabalhador com maior estudo terá uma produtividade maior, traduzindo-se em maior remuneração. Conforme Neri (2010), a educação (ou o estudo) é o mais relevante determinante da pobreza e da desigualdade no país. A renda aumenta monotonicamente com os anos de escolaridade. De acordo com o autor, a EVIDÊNCIAS SOBRE A POBREZA NO BRASIL: UMA APLICAÇÃO DA MODELAGEM DE EQUAÇÕES ESTRUTURAIS: PARTE I 118 Capítulo 9 distância entre os extremos diminuiu entre 2005 e 2006, já que a renda per capita que era 8,1 vezes maior para os que terminaram o segundo grau em relação aos sem escolaridade cai para 7,7. No último grupo, 35,10% das pessoas estão abaixo da linha de miséria, enquanto a primeira categoria tem 2,8%. Ademais, o retorno do investimento em educação para os que têm mais de 12 anos de estudo é bastante superior a base (183%). No tocante à maior experiência no mercado de trabalho, apresentada na equação minceriana, geralmente se utiliza a idade como proxy para experiência, de forma que quanto maior a idade do chefe de famílias, maior será sua experiência profissional. Em oposição, a pouca idade que se traduz na pouca ou nenhuma experiência, o que dificulta a entrada dos jovens no mercado de trabalho e explica a alta taxa de desemprego deles. Ainda de acordo com Neri (2010), nota-se que a incidência da pobreza declina quase que monotonicamente com a idade do indivíduo. O retorno no mercado de trabalho de acordo com a experiência persiste, inclusive para os indivíduos idosos que compreendem o grupo etário menos pobre, além de apresentaram maior redução da taxa de pobreza entre 2005 e 2006. Por sua vez, Henriques (2001) ao analisar a incidência da pobreza por faixa etária, verificou a concentração da pobreza entre as crianças, tendo em vista que 43% da pobreza se concentra na população de até 14 anos de idade, sendo que essa faixa etária compreende 29% da população. No que diz respeito aos idosos que poderiam compor um grupo vulnerável, dada a baixa inserção no mercado de trabalho, nota-se que esse grupo etário apresenta baixa incidência na taxa de pobreza no Brasil. De acordo com Rocha (2003), isso se deve às políticas públicas de aposentadoria e pensão que favorecem os idosos. Por outro lado, Codes (2005) relativiza a relação direta entre a idade e a inserção no mercado de trabalho (rendimento). De acordo com a autora, essa relação nem sempre é direta, sobretudo quando se analisa a população pobre. Nesse estrato social, os trabalhadores com maior idade podem ser substituídos pelos mais jovens. Assim, nos trabalhos mais “braçais” em que o vigor físico é necessário e que exigem pouca escolaridade, a experiência (idade) não é tão importante como nos trabalhos “intelectuais”. É possível entender que os trabalhadores mais jovens sejam preferidos aos mais velhos em razão de estarem mais aptos para as tarefas em que a força física é necessária. Outra característica que impacta na pobreza é a composição familiar. De acordo com Menezes Filho e Oliveira (2014), quanto maior o número de adultos em uma família, maior também será a quantidade de pessoas aptas ao trabalho, mantendo-se os demais fatores constantes, causa um aumento do rendimento familiar em termos per capita. Historicamente, devido à maior taxa de fecundidade entre os mais pobres, esses possuem uma proporção menor de adultos nas famílias do que os mais ricos. Enquanto em 1992, as EVIDÊNCIAS SOBRE A POBREZA NO BRASIL: UMA APLICAÇÃO DA MODELAGEM DE EQUAÇÕES ESTRUTURAIS: PARTE I 119 Capítulo 9 famílias mais ricas eram constituídas por aproximadamente 80% de adultos; as famílias 10% mais pobres possuíam apenas 48% de adultos. Em 2009, as famílias mais ricas atingiram 89% e as mais pobres 55%. Assim, esse conceito é exposto no modelo por meio da variável “dependente”, que representa a quantidade de pessoas no domicílio com renda nula em relação ao total de moradores. Assim, se nenhum dos moradores possui renda, a razão de dependência será de 1, e o domicílio será pobre. Logo, quanto maior a razão de dependência, menor a renda domiciliar per capita do domicílio, por isso a relação é negativa, uma vez que poucos membros da família têm que custear os gastos de todo o domicílio. Prosseguindo com a análise da estrutura familiar, chefes de domicílios do sexo masculino que vivem com a presença de cônjuge tendem a possuir renda maior, enquanto as famílias chefiadas por mulheres que vivem sem a presença de cônjuge têm menor renda per capita. Os chefes do sexo feminino geralmente formam famílias monoparentais e, por isso, apresentam maior razão de dependência no domicílio. Sobre a relação causal entre “idade” e “dependente”, chefes de domicílios com idade maior apresentam com maior frequência filhos maiores de idade, ou seja, em idade produtiva para o trabalho. Dessa forma, esses domicílios em que os chefes possuem uma idade maior, menor será a razão de dependência entre os membros dessa família. Por outro lado, naqueles domicílios em que os chefes apresentam menor idade, maior será a incidência de filhos menores de idade que não podem trabalhar. Logo, a relação entre idade e dependente é negativa. Por sua vez, a relação entre “inserção no mercado de trabalho” e a “razão de dependente” é negativa, uma vez que o domicílio em que o chefe que está inserido no mercado de trabalho, apresenta pelo menos um membro da família sem rendimento nulo que é o próprio chefe. Enquanto isso, o chefe que não está inserido no mercado de trabalho, lembrando-se que o chefe geralmente apresenta a maior parcela do rendimento domiciliar, apresenta maior quantidade de dependentes, já que ele próprio possui renda nula. No que diz respeito à infraestrutura dos domicílios que conferem um maior conforto aos seus residentes, como o acesso aos bens duráveis e a presença de banheiro, são vistas no modelo empírico como uma variável latente chamada de “Conforto no Lar”, já que uma única variável observável não é capaz de retratar de forma satisfatória o conforto no lar. Por sua vez, “Saneamento básico” reflete-se na “origem da água” e no “acesso à água”, conforme Figura 1. Assume-se que quanto maior o Conforto no Lar e quanto maior o Saneamento Básico, maior será o rendimento domiciliar per capita. O acesso à energia elétrica, por exemplo, permite que os moradores tenham aparelhos elétricos, como a máquina de lavar que, por sua vez, contribui para a redução das horas dedicadas aos serviços domésticos e o possível aumento na carga horária dedicada ao trabalho remunerado. O inverso também verdadeiro, já que quanto maior a renda, a compra de bens duráveis EVIDÊNCIAS SOBRE A POBREZA NO BRASIL: UMA APLICAÇÃO DA MODELAGEM DE EQUAÇÕES ESTRUTURAIS: PARTE I 120 Capítulo 9 e a aquisição de serviços de saneamento básico são facilitadas. Por sua vez, domicílios localizados na área urbana apresentam maior acesso ao mercado de bens e serviços para a compra de produtos que aumentem o conforto do lar, assim como são melhor assistidos em relação ao saneamento básico quando comparados aos domicílios rurais. Como salienta Haugnton e Shahidur (2009), a disponibilidade de infraestrutura - rodovias, água e eletricidade - e serviços, como saúde e educação, assim como a proximidade dos mercados são condições que favorecem a não pobreza. No entanto, devido à baixa densidade populacional verificada na área rural e por habitarem em regiões mais isoladas, esses domicílios possuem menor acesso a esses bens, sendo mais suscetíveis à pobreza. Todas essas variáveis fazem parte do modelo a ser testado que inclui quatro conceitos amplos, que são tratados na literatura sobre o tema: as condições de pobreza do indivíduo, as circunstâncias em que se dá a sua inserção no mercado de trabalho, suas características demográficas e a composição de sua família. A pobreza nesse modelo é representada pela variável observável “renda domiciliar per capita” e pelas variáveis latentes “Conforto no lar” e “Acesso a saneamento básico”. Essas três “medidas” estão correlacionadas positivamente uma com as outras e vão de encontro à abordagem multidimensional de analisar a pobreza, uma vez que várias dimensões são analisadas. Além disso, na Figura 1 consta em cada seta – seja de relação causal ou uma correlação – os sinais esperados segundo a revisão da literatura. Como todas as variáveis, com exceção de “dependentes”, apresentam valores maiores para características ou condições favoráveis para a situação de não pobreza, quando apresentam coeficientes positivos, elas favorecem o aumento da renda domiciliar per capita. Por exemplo, melhores condições na inserção e qualidade no trabalho, variáveis que “medem” a variável latente “inserção no mercado de trabalho” implicam maior renda ou, em outras palavras, menor chance de estar na pobreza.Logo, espera-se que o modelo a ser estimado pela MEE venha a apresentar os mesmos coeficientes de cada uma das retas expostas no modelo hipotético, para assim confirmar que o modelo teórico é válido. Portanto, considerando o modelo teórico e a abordagem de equações estruturais (MEE), há dois conjuntos de variáveis, as manifestas e as latentes. Neste trabalho entre as manifestas estão três variáveis para caracterizar as famílias, o rendimento domiciliar per capita em Reais, uma variável binária igual a um na presença de cônjuge, com valor igual a zero caso contrário, e a proporção de moradores dependentes ou com rendimento nulo. A localização do domicílio é indicada por uma variável binária igual a um se estiver em área urbana e zero em caso contrário. Ainda entre as variáveis manifestas, estão cinco variáveis que caracterizam a pessoa de referência no domicílio, além dos anos de estudos completos e a idade, o sexo é indicado por uma variável EVIDÊNCIAS SOBRE A POBREZA NO BRASIL: UMA APLICAÇÃO DA MODELAGEM DE EQUAÇÕES ESTRUTURAIS: PARTE I 121 Capítulo 9 binária igual a um para homem, os aposentados e pensionistas são indicados por duas variáveis binárias iguais a um na presença de cada categoria, por fim, a cor ou raça é representada por uma variável igual a um se o indivíduo é preto, dois se é pardo ou indígena e três se é branco ou amarelo. Entre as variáveis latentes estão onze variáveis para caracterizar o conforto do lar e o saneamento básico, além de duas para o mercado de trabalho. Entre as primeiras estão a iluminação que é igual a um se é de outra forma, igual a dois se é com querosene ou gás de botijão e igual a três se é elétrica; a origem da água é igual a um se é não canalizada, dois se de poço ou nascente e três se é canalizada; o acesso à agua é igual a um se é não canalizada, igual a dois se é poço ou nascente e igual a três se é canalizada; a variável banheiro é igual a um se não há banheiro, igual a dois se é com escoadouro por vala, igual a três se é com escoadouro por fossa e igual a quatro com rede coletora; a presença de televisão, geladeira, telefone (fixo ou celular), fogão e máquina de lavar são indicadas por cinco variáveis binárias iguais e zero em caso contrário; a variável computador é igual a um na sua ausência, igual a dois na sua presença sem internet e igual a três na sua presença com internet; a variável lixo é indicada por um se é jogado, igual a dois se é queimado ou enterrado, igual a três se é coletado de forma indireta e igual a quatro se é coletado de forma direta. Por fim, o mercado de trabalho de trabalho é representado pela variável trabalho que é igual a um se o indivíduo não está inserido, igual a dois se está inserido, mas não remunerado, igual a três se é conta-própria, igual a quatro se é empregado ou trabalhador doméstico e igual a cinco se é empregador. Adicionalmente, a variável qualidade é igual a um se o indivíduo está desocupado, igual a dois se está sem carteira de trabalho ou é conta-própria ou trabalha para autoconsumo sem remuneração; e três se é empregado do setor privado com carteira ou do setor público ou empregador. REFERÊNCIAS BARROS, R. P.; HENRIQUES, R.; MENDONÇA, R. Desigualdade e pobreza no Brasil: retrato de uma estabilidade inaceitável. Revista Brasileira de Ciências Sociais, volume 15, n. 42. São Paulo. 2000a. BARROS, R. P.; CORSEUIL, C. H.; LEITE, P. G. Mercado de trabalho e pobreza no Brasil. In: Henriques, Ricardo. Desigualdade e Pobreza no Brasil. Rio de Janeiro: IPEA, p. 177-229. 2000b. BARROS, R. P.; CARVALHO, M.; FRANCO S.; MENDONÇA, R. A queda recente da desigualdade de renda no Brasil. Texto Para Discussão do IPEA 1258. Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2007. CODES, A. L. M. Modelagem de Equações Estruturais: uma contribuição metodológica para o estudo da pobreza. 297 p. Tese (Doutorado) - UFBA, Salvador, 2005. EVIDÊNCIAS SOBRE A POBREZA NO BRASIL: UMA APLICAÇÃO DA MODELAGEM DE EQUAÇÕES ESTRUTURAIS: PARTE I 122 Capítulo 9 CORSEUIL, C. H.; FOGUEL, M. N. Uma sugestão de deflatores para rendas obtidas a partir de algumas pesquisas domiciliares do IBGE. Texto para discussão, nº 894. IPEA. Rio de Janeiro, 2002. HAIR, J. F.; BLACK, W.; BABIN, B.; ANDERSON, R.; TATHAM, R. Análise Multivariada de Dados. Editora Bookman, 6ª edição, 699p. 2009. HAUGNTON, J.; SHAHIDUR R, K. (2009). Handbook on poverty and inequality. Whashington, DC: The World Bank. 2009. HENRIQUES, R. Desigualdade Racial no Brasil: evolução das condições de vida na década de 90. IPEA. Texto de discussão 807. Rio de Janeiro. 2001. HOFFMANN, R. Distribuição de renda: medidas de desigualdade e pobreza. Editora Universidade de São Paulo. São Paulo. 1998. ______. Queda da Desigualdade da Distribuição de Renda no Brasil. De 1995 a 2005, e Delimitação dos Relativamente Ricos em 2005. In: Desigualdade de Renda no Brasil: uma análise da queda recente. Brasília. IPEA. 2006. INSTITUTO DE ESTUDOS DO TRABALHO E SOCIEDADE (IETS). Distribuição de Renda Pnad 1992-2011. 2012. Disponível em: <http://www.iets.org.br/article. php3?id_article=1979>. Acesso em 22/03/2013. INSTITUTO DE ECONOMIA E PESQUISA APLICADA (IPEA). A Década Inclusiva (2001-2011): Desigualdade, Pobreza e Políticas de Renda. Comunicados do IPEA n. 155. Rio de Janeiro, 2012. MARÔCO, J. Análise de Equações Estruturais. Fundamentos teóricos, software e aplicações. Editora Report Number. Pêro Pinheiro, 2010. MDS. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Disponível em http:// www.mds.gov.br/ (2013). MENZES FILHO, L, OLIVEIRA, A. A contribuição da educação para a queda na desigualdade de renda per capita no Brasil. Insper, Policy Paper n° 09. 2014 MINCER, J. Schooling, experience and earnings. National Bureal of Economic Research, Columbia University. New York. 1974. NERI, M. (Coord.). A nova classe média: o lado brilhante dos pobres. FGV/IBRE, Centro de Políticas Sociais. Rio de Janeiro, 2010. ROCHA, S. Pobreza no Brasil. Afinal, de que se trata? 3. Edição. Editora FGV. Rio de Janeiro. 2006. ______. A Pobreza no Brasil. A evolução de longo prazo (1970-2011). Estudos e Pesquisas n° 492. Instituto Nacional de Altos Estudos (INAE). Rio de Janeiro. 2013. EVIDÊNCIAS SOBRE A POBREZA NO BRASIL: UMA APLICAÇÃO DA MODELAGEM DE EQUAÇÕES ESTRUTURAIS: PARTE I 123 Capítulo 9 SCHWARTZMAN, S. As causas da pobreza. Fundação Getúlio Vargas. Rio de Janeiro. 2004. SEN, A. Desenvolvimento como liberdade. Tradução: Laura Teixeira Motta. Companhia das Letras. 416 p. São Paulo, 2000. SOARES, S. O perfil da discriminação no mercado de trabalho – homens negros, mulheres brancas e mulheres negras. Texto para discussão 769. Brasília. 2000. EVIDENCE ON POVERTY IN BRAZIL: AN APPLICATION OF STRUCTURAL EQUATION MODELING: PART I ABSTRACT - This study aims to analyze poverty in Brazilian families and its possible causal relationship with the family’s own characteristics, personal aspects of the family head and the home infrastructure. Therefore, poverty is evaluated by Structural Equation Modeling (SEM), also little used in studies on the subject, which allows you to test the validity of theoretical models that define the causal relations between the variables and allows the use of unobservable variables. Therefore, the data from the National Survey of Households in 2004 and 2012. Among the results were used, it was found that households headed by men, with the presence of spouse, located in urban areas, with sanitation and comfort home are positively associated with household income per capita, making these households are proportionally lower in condition of poverty, both in 2004 as in 2012. Thus, the methodology was adequate to analyze the causal relations of the Brazilian poverty phenomenon. This communication was divided into two parts, with the introductory and methodological aspects being presented in the first part and the development and conclusions in the second part. KEYWORDS: Poverty; Determinants of Poverty; Structural Equation Modeling. EVIDÊNCIAS SOBRE A POBREZA NO BRASIL: UMA APLICAÇÃO DA MODELAGEM DE EQUAÇÕES ESTRUTURAIS: PARTE I 124 CAPÍTULO 10 EVIDÊNCIAS SOBRE A POBREZA NO BRASIL: UMA APLICAÇÃO DA MODELAGEM DE EQUAÇÕES ESTRUTURAIS: PARTE II Leandro Nunes Soares da Silva lattes.cnpq.br/3416990604622129 Universidade Estadual de Maringá Marina Silva da Cunha lattes.cnpq.br/0933287370110532 Universidade Estadual de Maringá RESUMO - Este trabalho tem como objetivo analisar a pobreza nas famílias brasileiras e suas relações causais com as características da própria família, aspectos pessoais do chefe da família e com a infraestrutura do domicílio. Para tanto, a pobreza é avaliada pela Modelagem de Equações Estruturais (MEE), ainda pouco utilizada em estudos sobre o tema, que permite testar a validade de modelos teóricos que definem as relações causais entre as variáveis, além de permitir o uso de variáveis não observáveis. Para tanto, foram utilizados os microdados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios nos anos de 2004 e 2012. Entre os resultados, verificou-se que os domicílios chefiados por homem, com a presença de cônjuge, localizados na área urbana, com saneamento básico e conforto lar estão associados com o maior rendimento domiciliar per capita, fazendo com que estejam, proporcionalmente, em menor condição de pobreza, tanto em 2004 quanto em 2012. Dessa forma, a metodologia foi adequada para analisar as relações causais do fenômeno da pobreza brasileira. Esta comunicação foi dividida em duas partes, sendo apresentados os aspectos introdutórios e metodológicos na primeira parte e o desenvolvimento e conclusões na segunda parte. PALAVRAS-CHAVE: Pobreza; Determinantes da pobreza; Modelagem de Equações Estruturais. 3. A POBREZA NO BRASIL NOS ANOS DE 2004 E 2012 Iniciando pela análise unidimensional, nota-se que o rendimento mensal domiciliar per capita tanto no Brasil, quanto nos domicílios não pobres apresentou crescimento no período analisado. No agregado, esse valor subiu, em termos reais, de R$ 729,56 em 2004 para R$ 1.037,82, uma elevação de 42,25%. Quanto à mensuração dos pobres pelo método unidimensional, nota-se na Tabela 1 que, a despeito dos domicílios no país aumentarem EVIDÊNCIAS SOBRE A POBREZA NO BRASIL: UMA APLICAÇÃO DA MODELAGEM DE EQUAÇÕES ESTRUTURAIS: PARTE II 125 Capítulo 10 10,45 milhões entre 2004 e 2012, a quantidade de domicílios não pobres apresentou um acréscimo de 14,19 milhões e os domicílios pobres declinaram em 3,74 milhões. Em termos percentuais, a pobreza declinou de forma significativa entre os dois anos, passando de 15,48% dos domicílios para 6,70% em 2012. Tabela 1: Incidência da Pobreza nos domicílios, 2004 e 2012 Descrição 2004 2012 Domicílios % Domicílios % Total 50.622.343 100 61.074.952 100 Não pobres Pobres 42.786.157 7.836.186 84,52 15,48 56.979.977 4.094.975 93,30 6,70 Fonte: elaboração dos autores. Partindo para a análise multidimensional, são estimadas as relações causais expostas na Figura 1 nos domicílios pobres por meio da MEE. Para adequar as variáveis ao pressuposto do modelo de distribuição normal das variáveis, “idade” e “dependente” passaram por transformações matemáticas, sendo por isso chamadas de “idade2” a raiz quadrada de “idade” e “dependente2”, a variável “dependente” ao quadrado. Com essas transformações, os valores da assimetria e da curtose dessas variáveis ficaram menores, deixando-as com uma distribuição mais próxima da normal. Quanto ao pressuposto da ausência de outliers, foi realizado o teste de Bacon na base de dados dos dois anos, que indicou a ausência deles. O modelo proposto é estimado pelo método de máxima verossimilhança, utilizando a matriz de correlação de Pearson. No entanto, os primeiros resultados indicam que, ao contrário das relações teóricas, para o ano de 2012, as trajetórias de causalidade entre “raça” e ‘educação’; “idade” e “dependente”; “raça” e “inserção no mercado de trabalho”; e entre “sexo” e “dependente” apresentaram coeficientes estatisticamente não significantes a 10%. Assim, essas relações causais (setas de uma direção) foram excluídas do modelo. Feitas essas alterações, foi calculado os “Modification Indices” após a estimação do modelo, de modo que muitos erros nas variáveis manifestas apresentaram, de acordo com o teste, alta covariância com os erros de outras variáveis. Ainda assim, a inclusão da covariância entre os erros foi realizada no modelo com índice de modificação apenas com valores acima de 200. Em 2004, foram adicionadas as covariâncias nos erros entre “origem” e “água”; “origem” e “banheiro”; e “banheiro” e “lixo”. Enquanto, em 2012, além das inclusões feitas no período anterior, foram acrescentadas as relações entre “água” e “banheiro”; “trabalho” e “qualidade”; e “iluminação” e “televisão”, conforme se verifica na Figura 2. EVIDÊNCIAS SOBRE A POBREZA NO BRASIL: UMA APLICAÇÃO DA MODELAGEM DE EQUAÇÕES ESTRUTURAIS: PARTE II 126 Capítulo 10 Figura 2: Modelagem de Equações Estruturais, Brasil, 2004 e 2012. Fonte: Elaboração dos autores. Todos os coeficientes são estatisticamente significantes a 1%. Tendo em vista que a estimação ocorreu com os parâmetros padronizados, os coeficientes são interpretados como variações no desviopadrão. Desse modo, por exemplo, quando a “inserção no mercado de trabalho” aumenta um desvio-padrão, a renda domiciliar per capita diminui 0,27 desvios-padrão, ceteris paribus; se a variável “urbano” aumenta em um desvio-padrão, o Saneamento Básico aumenta ceteris paribus, 0,78 desviospadrão em 2004. EVIDÊNCIAS SOBRE A POBREZA NO BRASIL: UMA APLICAÇÃO DA MODELAGEM DE EQUAÇÕES ESTRUTURAIS: PARTE II 127 Capítulo 10 Os resultados da MEE, de modo geral, apresentaram os coeficientes com o sinal esperado. O coeficiente positivo entre “idade2” e “Imtr” e entre “estudo” e “Imtr” revelam que quanto maior a idade e o estudo, maior será a inserção no mercado de trabalho. Por sua vez, chefe do domicílio masculino impacta positivamente na presença de cônjuge que, por sua vez, favorece o maior rendimento domiciliar. Além disso, os domicílios urbanos apresentam maior “conforto do lar” e melhor “saneamento básico”, ao passo que esses atributos contribuem para o aumento da renda, como o esperado. No mais, a maior razão de dependência reduz, ceteris paribus, o rendimento da família. No que diz respeito à causalidade entre o mercado de trabalho e o rendimento, era de se esperar uma relação positiva, ao contrário, porém, do verificado. A análise fatorial da variável do mercado de trabalho apresentou coeficientes (cargas fatoriais) negativos em relação ao trabalho e à qualidade, contrariando o modelo teórico proposto. Por sua vez, a variável latente Conforto do Lar está condizente com o previsto, uma vez que se reflete no acesso à iluminação e na posse de geladeira e televisão. A direção conceitual dessas variáveis é positiva. O mesmo ocorre com a variável latente do Saneamento Básico. Fazendo a análise do mesmo modelo, mas para o ano de 2012 indica que os sinais dos coeficientes das relações causais coincidem com os resultados de 2004. Ademais, quanto ao ajustamento do modelo, os resultados indicam que dos quatro testes calculados, a MEE de 2004 apresentou bons valores somente nos dois índices (RMSEA=0,099 e SRMR=0,082), enquanto a MEE de 2012, só o teste SRMR com valor de 0,094 revela que o modelo tem um bom ajuste. Buscando contornar as limitações no ajustamento do modelo anterior, o modelo foi estimado novamente considerando o mercado de trabalho sendo representado pelas variáveis trabalho e qualidade, cujos resultados encontram-se na Figura 3. No ano de 2004, a variável manifesta “trabalho” foi incluída em substituição a variável latente de “Inserção no mercado de trabalho” do modelo empírico proposto. Dessa vez, os resultados são condizentes com a teoria, uma vez que o aumento de 1 desvio-padrão na qualidade do trabalho, causará um impacto positivo no aumento de 0,33 desvios-padrão no rendimento domiciliar per capita e causará um impacto na redução de 0,14 desvios-padrão na razão de dependência. A outra novidade desse resultado em relação aos anteriores é o fato da captação da relação bidirecional da variável “rendimentopc” com as variáveis latentes de Saneamento Básico e Conforto do Lar, conferindo ao resultado o caráter multidimensional dessa modelagem. Assim, o rendimento domiciliar per capita impacta no Saneamento Básico e vice-versa, ocorrendo o mesmo entre o rendimento e o Conforto do Lar. De acordo com os resultados, o aumento de 1 desvio-padrão no Saneamento Básico causa uma redução de 0,02 desvios-padrão no rendimento (resultado não esperado) e EVIDÊNCIAS SOBRE A POBREZA NO BRASIL: UMA APLICAÇÃO DA MODELAGEM DE EQUAÇÕES ESTRUTURAIS: PARTE II 128 Capítulo 10 um aumento de 1 desvio-padrão no Conforto do Lar acarreta o aumento de 0,02 no rendimento. Por sua vez, o rendimento domiciliar per capita eleva o Saneamento Básico em 0,06 desvios-padrão e o Conforto do Lar em 0,14 desvios-padrão. Tal fato revela que a posse de dinheiro facilita a compra de bens que favorecem o conforto do lar e que o impacto no Saneamento Básico é menor, pois depende mais da ação governamental, já que são bens públicos. Quanto aos demais coeficientes, não apresentam nenhuma mudança de sinal e nenhuma mudança significativa em relação aos resultados anteriores. Figura 3: Modelagem de Equações Estruturais, versão alterada, Brasil, 2004 e 2012. Fonte: Elaboração dos autores. Todos os coeficientes são estatisticamente significantes a 1%. EVIDÊNCIAS SOBRE A POBREZA NO BRASIL: UMA APLICAÇÃO DA MODELAGEM DE EQUAÇÕES ESTRUTURAIS: PARTE II 129 Capítulo 10 No que diz respeito a nova estimação para o ano de 2012, houve a inclusão da variável “qualidade” como uma variável “substituta” à inserção no mercado de trabalho. Assim como na estimativa para o ano de 2004, os resultados apresentaram relações corretas, ou seja, a maior qualidade de trabalho favorece o aumento do rendimento e desfavorece a razão de dependência no domicílio. Cabe notar que a relação negativa entre a variável que representa o mercado de trabalho e a dependência tornou-se mais intensa entre 2004 e 2012, passando de -0,14 para 0,40. Quanto às relações bidirecionais entre a variável do rendimento domiciliar com as variáveis latentes de “Clar” e “Saba” que, a princípio, deveriam apresentar todos os coeficientes positivos, apresentou uma relação negativa entre rendimento e “Saba” de 0,09 desvios-padrão, indicando que quanto maior o rendimento, menor será o Saneamento Básico do domicílio. Por sua vez, como em todas as estimativas anteriores, é evidente o forte impacto positivo que os domicílios urbanos têm nas melhores condições de conforto do lar e do saneamento, sendo ainda mais intensa essa última relação. Os testes pós-estimação, expostos no Apêndice indicaram um bom ajuste nos dois anos, uma vez que nenhum teste apresentou resultados que questionassem a qualidade do ajuste. A respeito das variâncias das variáveis manifestas, nota-se valores com um aumento de aproximadamente 2 pontos percentuais em relação ao modelo sem trabalho. Com a inclusão da nova variável explicativa, as variáveis manifestas que têm em suas equações a variável incluída, no caso o rendimento domiciliar per capita e a dependente, obtiveram aumento em suas variâncias explicadas. O rendimento per capita que tinha 31,22% de sua variância explicada anteriormente, nesse modelo com uma variável a mais, passou para 37,45% em 2004. Enquanto no ano de 2012, passou de 48,59% para 54,94%. Desse modo, a inclusão de uma variável relacionada a Imtr mostrouse pertinente pelo alto coeficiente dessa variável no rendimento domiciliar, por apresentar maior variância explicada das variáveis, além de considerar que esse último modelo estimado apresentou uma qualidade de ajuste tão boa quanto o modelo sem nenhuma variável de trabalho. Ainda assim, fica como sugestões para pesquisas futuras, uma maior investigação do problema encontrada na variável latente da “Inserção no mercado de trabalho”, uma vez que suas características são importantes na explicação da pobreza; a inclusão da variável “estudo” que não foi possível devido aos coeficientes inversos ao esperado; assim como a inclusão de outras variáveis. Por último, fazer estimações com os futuros dados a serem disponíveis que captem o efeito da pandemia na pobreza. A respeito do último modelo estudado, os resultados sugerem relativa estabilidade nas relações causais nos dois anos pesquisados. No entanto, confirmam o impacto negativo das famílias com maior razão de dependência EVIDÊNCIAS SOBRE A POBREZA NO BRASIL: UMA APLICAÇÃO DA MODELAGEM DE EQUAÇÕES ESTRUTURAIS: PARTE II 130 Capítulo 10 que possuem menor rendimento domiciliar, além de apontar que os chefes de família do sexo masculino com cônjuge possuem maior rendimento, assim como aqueles inseridos ou com uma melhor qualidade de trabalho, sendo por isso, menos pobres. Por fim, salienta-se a importância do “Conforto do Lar” e do “Saneamento Básico” satisfatórios e da localização urbana como relevantes na explicação da pobreza dessas famílias. 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS As questões relacionadas à pobreza estão na ordem do dia, seja nos organismos internacionais como a ONU, seja por meio de políticas públicas dos governos ou nos estudos acadêmicos. Antes, porém, o tema avançou em torno das definições do que vem a ser pobreza. Embora não haja uma definição única, convergem para a parcela da sociedade que se encontra em situação de privação. As definições vão desde as privações básicas à sobrevivência de um indivíduo a fatores como a liberdade do poder de expressão. Em outros termos, a pobreza que tradicionalmente tinha um conceito associado apenas à renda, passa a ser compreendida de forma mais complexa. Inicialmente, partindo de uma análise unidimensional se verificou que o rendimento domiciliar per capita, entre o ano de 2004 e 2012, propiciou a saída de grande quantidade de famílias da pobreza. Ainda assim, apesar do grande progresso verificado, restam mais de quatro milhões de domicílios pobres unidimensionais. Por sua vez, na abordagem multidimensional, realizado por meio da MEE, foram estimadas as relações causais e correlacionais nos domicílios abaixo da linha da pobreza, sendo essa variável correlacionada com a “condição do lar” e com o “saneamento básico”. Além disso, foram consideradas variáveis referentes ao chefe das famílias, demográficas e localização do domicílio. Nessa abordagem multidimensional é possível verificar as diversas relações causais e mecanismos de correlação entre as variáveis que “explicam” como a pobreza de fato ocorre. Os resultados permitem afirmar que os dados confirmam a teoria a priori nos dois anos ao afirmar que os chefes de domicílios do sexo masculino têm a maior possibilidade de viverem junto com cônjuge, que por sua vez, impactam positivamente no aumento da renda dessa família; domicílios situados na área urbana possuem maior conforto no lar e maior saneamento básico e, esses estão correlacionados com domicílios com maior renda. Logo, as características que impactam positivamente na renda domiciliar são o sexo masculino, melhor conforto do lar, presença de cônjuge e localização na área urbana. Por outro lado, domicílios com maior razão de dependência são mais pobres. Assim, os fatores com maior impacto no aumento da renda domiciliar são similares no período analisado. Conclui-se que o rendimento é um componente importante para o EVIDÊNCIAS SOBRE A POBREZA NO BRASIL: UMA APLICAÇÃO DA MODELAGEM DE EQUAÇÕES ESTRUTURAIS: PARTE II 131 Capítulo 10 estudo da pobreza, mas é necessário incluir outras perspectivas para um melhor diagnóstico no combate desse problema. Feito isso, nota-se que o perfil da pobreza está nítido e sua erradicação dependente tanto de características inerentes da própria família, como a quantidade filhos, o número de desempregados (ainda que essa também se relacione ao contexto macroeconômico e suas políticas públicas) e os anos de estudos; como depende também de fatores “exógenos”, como as políticas de transferência de renda e disponibilidade, pelo governo, de equipamentos de saneamento básico e outros bens públicos. Além disso, políticas públicas de melhoria no mercado de trabalho e no ensino público contribuiriam positivamente para a redução da pobreza no país. REFERÊNCIAS BARROS, R. P.; HENRIQUES, R.; MENDONÇA, R. Desigualdade e pobreza no Brasil: retrato de uma estabilidade inaceitável. Revista Brasileira de Ciências Sociais, volume 15, n. 42. São Paulo. 2000a. BARROS, R. P.; CORSEUIL, C. H.; LEITE, P. G. Mercado de trabalho e pobreza no Brasil. In: Henriques, Ricardo. Desigualdade e Pobreza no Brasil. Rio de Janeiro: IPEA, p. 177-229. 2000b. BARROS, R. P.; CARVALHO, M.; FRANCO S.; MENDONÇA, R. A queda recente da desigualdade de renda no Brasil. Texto Para Discussão do IPEA 1258. Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2007. CODES, A. L. M. Modelagem de Equações Estruturais: uma contribuição metodológica para o estudo da pobreza. 297 p. Tese (Doutorado) - UFBA, Salvador, 2005. CORSEUIL, C. H.; FOGUEL, M. N. Uma sugestão de deflatores para rendas obtidas a partir de algumas pesquisas domiciliares do IBGE. Texto para discussão, nº 894. IPEA. Rio de Janeiro, 2002. HAIR, J. F.; BLACK, W.; BABIN, B.; ANDERSON, R.; TATHAM, R. Análise Multivariada de Dados. Editora Bookman, 6ª edição, 699p. 2009. HAUGNTON, J.; SHAHIDUR R, K. (2009). Handbook on poverty and inequality. Whashington, DC: The World Bank. 2009. HENRIQUES, R. Desigualdade Racial no Brasil: evolução das condições de vida na década de 90. IPEA. Texto de discussão 807. Rio de Janeiro. 2001. HOFFMANN, R. Distribuição de renda: medidas de desigualdade e pobreza. Editora Universidade de São Paulo. São Paulo. 1998. ______. Queda da Desigualdade da Distribuição de Renda no Brasil. De 1995 a 2005, e Delimitação dos Relativamente Ricos em 2005. In: Desigualdade de Renda EVIDÊNCIAS SOBRE A POBREZA NO BRASIL: UMA APLICAÇÃO DA MODELAGEM DE EQUAÇÕES ESTRUTURAIS: PARTE II 132 Capítulo 10 no Brasil: uma análise da queda recente. Brasília. 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EVIDÊNCIAS SOBRE A POBREZA NO BRASIL: UMA APLICAÇÃO DA MODELAGEM DE EQUAÇÕES ESTRUTURAIS: PARTE II 133 Capítulo 10 Apêndice: Ajustamento do modelo 2004 2012 rendimento per capita 37,45 54,94 acesso à geladeira 40,18 56,13 Televisão 50,24 34,70 Iluminação 45,45 27,42 Origem 52,75 50,36 acesso à água 32,92 30,32 Banheiro 41,38 36,88 Lixo 62,55 70,03 Cônjuge 60,81 34,14 Dependente 2,03 14,78 Conforto do Lar 26,24 9,57 Saneamento Básico 64,94 72,65 Total 88,15 86,15 RMSEA 0,071 0,071 SRMR 0,048 0,052 CFI 0,951 0,949 TLI 0,932 0,928 Descrição R² da variância Variáveis manifestas Variáveis latentes Testes Fonte: elaboração dos autores. EVIDENCE ON POVERTY IN BRAZIL: AN APPLICATION OF STRUCTURAL EQUATION MODELING: PART II ABSTRACT - This study aims to analyze poverty in Brazilian families and its possible causal relationship with the family’s own characteristics, personal aspects of the family head and the home infrastructure. Therefore, poverty is evaluated by Structural Equation Modeling (SEM), also little used in studies on the subject, which allows you to test the validity of theoretical models that define the causal relations between the variables and allows the use of unobservable variables. Therefore, the data from the National Survey of Households in 2004 and 2012. Among the results were used, it was found that households headed by men, with the presence of spouse, located in urban areas, with sanitation and comfort home are positively associated with household income per capita, making these households are proportionally lower in condition of EVIDÊNCIAS SOBRE A POBREZA NO BRASIL: UMA APLICAÇÃO DA MODELAGEM DE EQUAÇÕES ESTRUTURAIS: PARTE II 134 Capítulo 10 poverty, both in 2004 as in 2012. Thus, the methodology was adequate to analyze the causal relations of the Brazilian poverty phenomenon. This communication was divided into two parts, with the introductory and methodological aspects being presented in the first part and the development and conclusions in the second part. KEYWORDS: Poverty; Determinants of Poverty; Structural Equation Modeling. EVIDÊNCIAS SOBRE A POBREZA NO BRASIL: UMA APLICAÇÃO DA MODELAGEM DE EQUAÇÕES ESTRUTURAIS: PARTE II 135 ÍNDICE REMISSIVO Distribuição de renda 57, 113, 123, 132 Diversidade 17, 19, 41, 79, 92, 105, 109 Doutrina peronista 49 Dramaturgia 32 A Alemanha 30, 34 Ambiente 23-26, 28, 65, 66 Análise multidimensional 126 Argentina 49-58, 60, 61, 98, 110 Assentamentos 38-47 Atividade de trabalho 67-69 E Efeito sonoro 26 Efeitos 9, 28, 29, 31, 35, 36, 50, 66 Emancipação 79, 83, 86, 94, 96 Equações estruturais 10, 112, 114, 121, 125 Ergonomia 62-67, 69, 71, 75 Escolaridade 10, 118, 119 Escuta 24, 25, 27, 29, 55 Especulação 40 Expressão artística 35 B Behaviorismo 81, 89 C Cadastro 9, 11, 38-40, 42-47 Campo do conhecimento 10, 7782, 88, 96 Ciência da informação 9, 13-18, 21 Ciência Política 10, 77-80, 88-91, 93, 97, 101 Clínica da Atividade 63, 69-73 Comunicação 20, 23, 24, 26, 53, 59, 112, 125, 139 Conservadorismo 12, 101, 108, 110 CTM 43, 47 F Feminismo 77-79, 82-86, 88, 90, 92-99, 103, 104 Ferramenta 13, 14, 29, 31, 36, 39, 44, 46, 47, 71, 72, 94, 95, 97, 103 Ferramentas semânticas 13 Filme acústico 32 Frequência sonora 25 D Descamisados 11, 49, 54 Desenvolvimento urbano 38, 42 Desigualdade 50, 94, 95, 105, 109, 113, 118, 122, 123, 132, 133 Determinantes 10, 95, 112, 114, 117, 125 Diálogo 20, 22, 27, 49, 79 Discurso 18, 20, 24, 32, 34, 35, 49, 51, 53, 54, 72, 74, 78-80, 94, 96, 101-105, 107-110 Discurso sonoro 32 ÍNDICE REMISSIVO G Gêneros profissionais 72-74 Gestão 20, 38-40, 47 H Hörspiel 30, 31, 33-35 I Informação 9, 11, 13-22, 26, 29, 30, 44 Informalidade urbana 9, 11, 39, 136 40 Infraestrutura 9, 10, 38, 42, 44, 112, 120, 121, 125 Interdisciplinar 19, 64, 78, 92, 96, 104, 139 Interface 9, 13-15, 18-22, 28, 139 Interlocução 79 P Patriotismo 105, 106 Peça radiofônica 9, 11, 23, 26, 30, 33-35 Peronismo 9, 49, 53, 54, 56, 5860 Planejamento 38, 44-46, 48 Plano Real 112 PNAD 116, 123, 133 Pobreza 10, 12, 40, 49, 50, 112133 Poluição sonora 23 Previdência social 114 Processamento 14, 16, 19-22 L Letras 19, 74, 124, 133, 139 Levantamentos 38, 42, 43 Liberalismo 79, 86, 105, 107 Liberdade 83, 84, 105-107, 109, 110, 114, 124, 131, 133 Linguagem radiofônica 9, 26 Linguística computacional 9, 11, 13-21 Lúdico 29 R Rádio 24, 25, 27-37, 51, 52, 59, 61, 139 Radioarte 34 Radiofonia 23, 25, 28 Radionovela 49, 50 Regularização 38-48 Relações Internacionais 10, 12, 77, 78, 88, 91, 93, 98, 101, 102 Representação 13, 14, 16, 18, 20, 46, 53, 84, 97 Ruído 23, 24, 27, 29, 36 M Mainstream 79, 81, 93 Malestream 79, 93 MEE 114, 115, 121, 128 Militância 84, 92, 96 Mixagem 33 Modelagem 10, 12, 112, 114, 122, 125, 127-129, 132 Montagem 32, 33 Moradia 39, 40, 43, 48 Moralidade 106 Música 24-28, 30-35 N Narrativa 23, 29, 31, 32, 102, 103 Neoconservadorismo 101, 110 Neoliberal 10, 12, 101, 102, 104111 O Organização do Conhecimento 13 Ouvido 24, 25, 27, 30, 31 ÍNDICE REMISSIVO S Saneamento básico 10, 112, 121, 125, 127, 128-132, 134 SIG 45 Silêncio 23, 26, 27, 29, 35, 36, 59, 91 Sociologia 19, 86 Sonoplastia 23, 27, 28 Sonoridade 26, 28 Sujeito 66, 70, 71, 73, 74, 77, 8183, 92, 107 137 T Tarefa 63-65, 67, 68, 70-74, 119 Teoria feminista 78, 83, 84, 86, 89-91, 93, 99 Teoria política 10, 77, 85, 86, 88, 97, 98 Trabalhador 49, 50, 53-57, 62-66, 68, 70-74, 117-119, 122 Trabalho 9-11, 14, 16, 20, 21, 3136, 38, 39, 42, 49-59, 62-75, 78, 83, 84, 89-91, 97, 102-104, 109, 112, 114, 115, 117-128, 130-133, 139 Tradicionalismo 104, 106, 108 Tradução 13, 21, 30, 36, 40, 55, 58, 75, 76, 79, 81, 83-86, 99, 103, 104, 107, 108, 124, 133, Transparência 47, 114 U Urbanização 38, 41-43 V Vocabulário 20 ÍNDICE REMISSIVO 138 SOBRE O ORGANIZADOR Guilherme Wiliam Udo Santos Doutorando em Artes no Programa de Pós-Graduação Interunidades em Estética e História da Arte da Universidade de São Paulo (PGEHAUSP). Professor nos cursos de graduação e pós-graduação do Centro Universitário Belas Artes de São Paulo, professor no Unicentro Drummond e Diretor Pedagógico da ANP - Educação e Cultura. Atuou como docente no EAD Laureate (Universidade Salvador), na Escola Nacional de Teatro e no Colégio Anglo-Brasileiro. Foi Analista Pedagógico Sênior na Faculdade das Américas. Mestre em Comunicação pela Universidade Paulista, Especialista em Design Instrucional pelo SENAC-SP, Especialista em Linguística e Ensino de Línguas pelo Centro Universitário UniSEB, Especialista em História da Arte pelo Centro Universitário Claretiano, Especialista em Língua Portuguesa pela Faculdade AVM, Especialista em Educação, Comunicação e Tecnologias em Interfaces Digitais pelo Centro Universitário UniSEB, Licenciado em Pedagogia pela Universidade Nove de Julho, Licenciado em Teatro pelo Centro Universitário Ítalo Brasileiro, Licenciado em Letras (Português, Inglês e Espanhol) pela Universidade Cruzeiro do Sul, Bacharel em Comunicação Social com habilitação em Rádio e TV pelo Centro Universitário Belas Artes de São Paulo, Ator formado pela Escola Incenna e Diretor Teatral pela SP Escola de Teatro. Ganhador do prêmio Expocom Nacional 2010 na categoria Audiovisual - Modalidade Programa Avulso de Áudio/Rádio com o trabalho de conclusão de curso de sua graduação “Zumpa Audiocast”, apresentado no XXXIII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação promovido pela Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação. Para contato, acesse www.guilhermeudo.com SOBRE O ORGANIZADOR 139