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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA – UFPB
CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS – CCJ
COORDENAÇÃO DO CURSO DE DIREITO – CAMPUS JOÃO PESSOA
COORDENAÇÃO DE MONOGRAFIA
FERNANDA LUCENA DE FREITAS MELO
RECONHECIMENTO EXTRAJUDICIAL DA PARENTALIDADE SOCIOAFETIVA
A PARTIR DO PROVIMENTO 63/2017 DO CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA
JOÃO PESSOA
2019
FERNANDA LUCENA DE FREITAS MELO
RECONHECIMENTO EXTRAJUDICIAL DA PARENTALIDADE SOCIOAFETIVA
A PARTIR DO PROVIMENTO 63/2017 DO CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA
Trabalho de Conclusão de Curso apresentado
ao Curso de Graduação em Direito de João
Pessoa do Centro de Ciências Jurídicas da
Universidade Federal da Paraíba como
requisito parcial da obtenção do grau de
Bacharel em Direito.
Orientadora: Dr.ª Raquel Moraes de Lima
JOÃO PESSOA
2019
Catalogação na publicação Seção de Catalogação
M528r Melo, Fernanda Lucena de Freitas.
Reconhecimento extrajudicial da parentalidade
socioafetiva a partir do Provimento 63/2017 do Conselho
Nacional de Justiça / Fernanda Lucena de Freitas Melo.
- João Pessoa, 2019.
60 f.
Orientação: Raquel Moraes de Lima.
Monografia (Graduação) - UFPB/CCJ.
1. Parentalidade socioafetiva. 2. Reconhecimento
extrajudicial. 3. Provimento. I. Lima, Raquel Moraes
de. II. Título.
UFPB/CCJ
AGRADECIMENTOS
Diante desse ciclo que se encerra em minha vida, olho para trás e fico feliz com o
caminho que percorri até aqui. Ao longo desses últimos cinco anos, amadureci o suficiente
para ter certeza do tipo de profissional que quero me tornar. Pude aprender a exercer a minha
futura profissão de forma digna e ética, sempre visualizando o respeito ao próximo.
Portanto, aos professores que contribuíram com minha formação pessoal e acadêmica,
meu mais profundo agradecimento. Em especial à minha orientadora, professora Raquel, que
me auxiliou na elaboração deste trabalho com tamanha atenção e zelo, obrigada pelos
ensinamentos, paciência e gentileza que contribuíram imensamente com o meu desempenho.
Não poderia deixar de agradecer a Deus, por zelar por mim a cada momento, honro a
Ele cada vitória em minha vida. Aos meus pais, que me incentivaram e nunca deixaram de
confiar em mim, devo a vocês tudo o que sou, rogo a Deus em poder retribuir, algum dia, pelo
menos uma parte do tanto que vocês fizeram e fazem por mim. Aos meus avós, irmãos, toda a
família, amigos e namorado, por caminharem sempre junto a mim e me apoiarem em cada
instante. Não teria chegado aqui sem o apoio de cada um de vocês, saibam que sempre terei
profunda gratidão!
RESUMO
O presente trabalho tem como escopo uma análise objetiva acerca do reconhecimento
extrajudicial da parentalidade socioafetiva à luz do Provimento 63/2017 do CNJ. A partir da
afirmação da afetividade enquanto valor jurídico determinante quando da configuração das
relações de parentesco. Pretende-se demonstrar a reorganização na estrutura jurídica da
família, de modo a atribuir à parentalidade socioafetiva posição jurídica de destaque,
sobretudo no que concerne ao tratamento isonômico em relação aos demais tipos de filiação.
A partir disso, estudar suas repercussões, sobretudo quanto ao seu reconhecimento e a devida
inscrição no registro civil, atentando, sobretudo, ao movimento de desjudicialização por qual
passa o Direito brasileiro. A pesquisa é qualitativa, realizada através de método dedutivo e
técnica de pesquisa documental indireta. Assim, através do estudo acerca do reconhecimento
extrajudicial da parentalidade socioafetiva, pretende-se demonstrar a importância deste para
milhares de pessoas que se encontram em situação de desamparo quanto à falta da
constituição da socioafetividade em seus registros civis, e que encontram obstáculos nas vias
judiciais passíveis de serem extintos a partir do trabalho cartorário diante dessa situação. No
mesmo sentido, demonstra-se a importância da multiparentalidade e de seu reconhecimento
jurídico. Nesse diapasão, é feita uma análise acerca do tratamento legal do tema, com foco no
Provimento 63/2017 do Conselho Nacional de Justiça que regulamentou a matéria de forma
específica. A partir disso, trata-se das repercussões suscitadas no mundo jurídico relativas à
referida norma administrativa.
Palavras-chave: Parentalidade socioafetiva; reconhecimento extrajudicial; provimento.
LISTA DE ABREVIATURAS
ADI – Ação Direta de Inconstitucionalidade
ANOREG – Associação dos Notários e Registradores
ARPEN – Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais
CNJ – Conselho Nacional de Justiça
CNPG – Conselho Nacional de Procuradores-Gerais do Ministério Público dos Estados e
União
CPC – Código de Processo Civil
ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente
IBDFAM – Instituto Brasileiro de Direito de Família
MP – Ministério Público
RE – Recurso Extraordinário
STF – Supremo Tribunal Federal
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................... 7
2 FILIAÇÃO ........................................................................................................................... 10
2.1 DO PARENTESCO E DA FILIAÇÃO .............................................................................. 11
2.2 FILIAÇÃO SOCIOAFETIVA ........................................................................................... 15
2.2.1 Adoção à brasileira e filiação socioafetiva................................................................... 18
2.3 RECONHECIMENTO VOLUNTÁRIO DE FILIAÇÃO .................................................. 20
3
MULTIPARENTALIDADE,
RECONHECIMENTO
JUDICIAL
E
RECONHECIMENTO EXTRAJUDICIAL DA SOCIOAFETIVIDADE ....................... 23
3.1 O JULGAMENTO DO RE 898.060/SC E SUA IMPORTÂNCIA PARA O
RECONHECIMENTO DA MULTIPARENTALIDADE ....................................................... 24
3.2 O RECONHECIMENTO JUDICIAL DA SOCIOAFETIVIDADE .................................. 27
3.3 O RECONHECIMENTO EXTRAJUDICIAL DA SOCIOAFETIVIDADE .................... 32
4 PROVIMENTO 63/2017 DO CNJ E SUAS REPERCUSSÕES JURÍDICAS ............... 37
4.1 REQUISITOS IMPOSTOS PELO PROVIMENTO 63/2017 DO CNJ ............................. 37
4.1.1 Discussões referentes ao artigo 14 do Provimento e ao reconhecimento da
multiparentalidade ................................................................................................................. 41
4.2 CRÍTICAS AO PROVIMENTO ........................................................................................ 43
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................................................. 52
REFERÊNCIAS ..................................................................................................................... 56
7
1 INTRODUÇÃO
A primazia da parentalidade biológica foi sendo desconstituída ao longo dos anos,
conforme a verificação paulatina de que a origem da filiação não é capaz, por si só, de
determinar o seu real sentido. Sobretudo diante da análise constante de casos em que crianças
são abandonadas pelos pais biológicos e acolhidas por outros que cumprem papel decisivo na
sua formação. A formalização efetiva da relação de parentesco somente é verificada, portanto,
através da existência de uma relação real de afetividade.
Ao eleger a afetividade como elemento constituidor da filiação, cumpre observar a
constatação da multiparentalidade, haja vista ser plenamente possível a existência
concomitante de paternidade biológica e afetiva, gerando os mesmos efeitos jurídicos,
reciprocamente, entre pais e filhos.
Ao longo dos anos, várias foram as discussões doutrinárias e jurisprudenciais nesse
sentido. Foram diversas as reflexões acerca dos efeitos e consequências jurídicas a partir do
reconhecimento da socioafetividade, bem como da possível prevalência dessa em relação à
paternidade biológica.
Ademais, discute-se também sobre a forma que se dará o procedimento de
reconhecimento desse tipo de filiação, uma vez que o reconhecimento da parentalidade
biológica é devidamente regulamentado pela codificação cível, mas esta não trata
expressamente da socioafetividade. Coube à jurisprudência e aos atos normativos dos demais
órgãos do Judiciário, portanto, o tratamento acerca da matéria e sua devida regulamentação.
As mudanças experimentadas pelo Direito de Família nos últimos, a partir das
evoluções no campo social, sobretudo após o advento da Constituição Federal de 1988,
somente são concretizadas e passam a se tornar efetivas após serem expressas no registro civil
do cidadão. Não poderia ser diferente, portanto, com o reconhecimento da parentalidade
socioafetiva. Uma vez que o Código Civil disciplina que “a filiação prova-se pela certidão de
nascimento”, resta evidente que a socioafetividade requer uma formalização registral para que
os seus efeitos jurídicos sejam devidamente produzidos.
Somado a isso, evidencia-se no cenário jurídico nacional um movimento geral de
desburocratização e desjudicialização. Nesse contexto, o oficial de registro civil de pessoas
naturais revela-se o profissional adequado para oficializar as questões relativas ao Direito de
Família que não compreendam demandas litigiosas.
Diante disso, revela-se importante o estudo do reconhecimento da parentalidade
socioafetiva, sobretudo no âmbito extrajudicial, a partir da edição do Provimento n. 63 do
8
Conselho Nacional de Justiça, que admitiu o referido procedimento diretamente perante os
oficiais de registro civil em todo o território nacional, cuja análise constitui o objetivo geral
do presente trabalho. Tema este que envolve algumas críticas e discussões que serão
explanadas no presente estudo.
A base metodológica utilizada está no uso de pesquisa teórico-dogmática, sendo
abordados estudos de doutrinadores e jurisprudências pertinentes ao tema, de matérias
constitucionais e infraconstitucionais. Especificamente, quanto ao método de abordagem, foi
utilizado o método dedutivo, que se coaduna como método que melhor se aplica para atingir
os objetivos que aqui se pretendem. Quanto aos métodos de pesquisa, utilizou-se o método
histórico, a partir da análise das alterações experimentadas pela socioafetividade e seu
reconhecimento no ordenamento jurídico brasileiro ao longo dos anos.
Quanto às técnicas de pesquisa, foi utilizada a pesquisa documental indireta, a partir
da análise de livros, artigos, notícias que tratam sobre o tema para um melhor entendimento e
tendo em vista uma abordagem do assunto de maneira fundamentada. Além da análise
jurisprudencial para uma melhor compreensão acerca da aplicabilidade do tema nos casos
práticos.
Diante disso, como uma melhor forma de compreender o tema, no primeiro capítulo
foi feita uma análise acerca dos conceitos do parentesco e da filiação, tendo em vista suas
características, classificações e a importância prática de cada um nos estudos jurídicos. Assim
como foi traçada uma análise histórica acerca do tratamento jurídico relacionado ao afeto e
sua importância para o Direito de Família nos dias atuais. Ademais, observou-se o conceito de
filiação socioafetiva, sua importância e desdobramentos no cenário jurídico atual. Por fim, foi
realizado um exame acerca do tratamento jurídico do reconhecimento da filiação, sobretudo
quanto à disciplina do tema no Código Civil.
No segundo capítulo, foram observadas as repercussões do julgamento do Supremo
Tribunal Federal no RE 898.060/SC quanto ao reconhecimento da multiparentalidade e a
produção de seus efeitos jurídicos. Ademais, aproximou-se o conceito de multiparentalidade
ao tema da discussão da parentalidade socioafetiva para uma posterior análise acerca do
reconhecimento desta. A princípio, foi feito um exame quanto ao reconhecimento judicial da
paternidade socioafetiva. Posteriormente, observou-se a importância do seu reconhecimento
extrajudicial e a necessidade da sua normatização em todo o território nacional a partir do
estudo do pedido de providências do IBDFAM direcionado ao CNJ cujo objetivo era a edição
de provimento que regulamentasse o tema.
9
No terceiro capítulo, por fim, foram analisadas as disposições do provimento n.
63/2017 do CNJ, com enfoque individualizado em cada dispositivo, inclusive dando destaque
às repercussões de cada um. Ademais, foram observadas as críticas direcionadas à norma
administrativa em questão desde a sua edição.
Diante disso, o presente trabalho busca fazer uma análise do conceito da filiação
socioafetiva e de suas repercussões no cenário jurídico, sobretudo quanto ao seu
reconhecimento e a inclusão devida em registros civis a partir do estudo do Provimento n.
63/2017 do CNJ que viabilizou o procedimento no âmbito extrajudicial em todo o território
nacional.
10
2 FILIAÇÃO
Ao tratar acerca de temas relacionados ao Direito de Família, é cediço mencionar a
evolução histórica por qual passou esse ramo durante os últimos anos no Brasil. Partindo da
Constituição Federal de 1988, a família passa a ser objeto de proteção estatal, haja vista que,
conforme o próprio texto constitucional aduz, trata-se da base da sociedade.
Acompanhando as mudanças refletidas na sociedade diante da transição de um Estado
liberal para um Estado social, a família passa a ser detentora de diversas normas
protecionistas, pautadas, sobretudo, na isonomia, uma vez que é característica do estado social
a intervenção na vida privada do indivíduo para a sua proteção. 1
São reconhecidos, também, conforme as mudanças sociais, os arranjos familiares
diversos daqueles pautados no casamento, de modo que a proteção estatal é estendida para os
coniventes em união estável, assim como famílias monoparentais, conforme disposição do
artigo 226 §§ 3° e 4° da Constituição de 1988. Em entendimento sobre o tema, Maria
Berenice Dias aduz: “A família à margem do casamento passou a merecer tutela
constitucional porque apresenta condições de sentimento, estabilidade e responsabilidade
necessários ao desempenho das funções reconhecidamente familiares.”2 Frise-se que a
doutrina e a jurisprudência já reconhecem outras entidades familiares além das mencionadas
pelo texto constitucional, tais como a união homoafetiva3.
Dentre os princípios do Direito de Família, destaca-se o da afetividade, ainda que não
expresso no texto constitucional, em oposição ao modelo patrimonial e individualista
anteriormente verificado. Em consonância com o referido princípio, tem-se o da igualdade
entre os filhos, inscrito no art. 227 §6° da Constituição, que determina “os filhos, havidos ou
não da relação de casamento, ou por adoção terão os mesmos direitos e qualificações,
proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação” assim como no art.
1.596 do Código Civil4.
1
“As Constituições brasileiras reproduzem as fases históricas que o país viveu, em relação à família, no trânsito
do Estado liberal para o Estado social.” (LÔBO, Paulo. Direito Civil: Famílias – 4 ed. – São Paulo: Saraiva,
2011. p. 33)
2
DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias – 11 ed.- São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016. p.
58.
3
Em sede de julgamento da ADI 4277 e da ADPF 132, o Supremo Tribunal Federal reconheceu a união estável
para casais do mesmo sexo como entidade familiar.
4
“Em boa hora o constituinte acabou com a abominável hipocrisia que rotulava a prole pela condição dos pais.”
(DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias – 11 ed.- São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016. p.
78)
11
Nesse sentido, a diferenciação entre os diversos tipos de filiação serve, tão somente,
para fins didáticos, persistindo como uma técnica jurídica5, uma vez que a Constituição
conferiu tratamento isonômico em absoluto para os filhos, independente da origem da
filiação.
2.1 DO PARENTESCO E DA FILIAÇÃO
O parentesco pode ser conceituado como um conjunto de “relações jurídicas
estabelecidas entre pessoas que mantêm entre si um vínculo familiar, sobretudo de
afetividade” 6. O referido vínculo pode se manifestar através da consanguinidade, ou seja,
entre as pessoas que mantêm um vínculo biológico entre si. Por afinidade, a partir das
relações entre um cônjuge ou companheiro e os parentes do outro cônjuge ou companheiro. E
por fim, pode ter natureza civil, decorrente de outra origem, que não a consanguinidade ou
afinidade, e onde se insere a afetividade7, a adoção e as técnicas de reprodução assistida.
A relação de parentesco remete à identificação das pessoas como pertencentes a um
grupo social que as envolve num conjunto de direitos e deveres. Além disso, funda-se em
sentimentos de pertencimento a determinado grupo familiar, em valores e costumes cultuados
pela sociedade8.
O seu estudo revela-se de extrema importância para vários ramos do Direito, haja vista
que assegura direitos e impõe deveres recíprocos, assim como são observadas algumas
proibições fixadas em razão de sua existência. Nesse sentido, sobre o conhecimento das
relações de parentesco Orlando Gomes apud Carlos Roberto Gonçalves9:
(...) reveste-se de grande importância prática, porque a lei lhe atribui efeitos
relevantes, estatuindo direitos e obrigações recíprocos entre os parentes, de
ordem pessoal e patrimonial, e fixando proibições com fundamento em sua
existência. Têm os parentes direito à sucessão e alimentos e não podem casar
uns com os outros, na linha reta e em certo grau da colateral. O parentesco é
importante ainda em situações individuais regidas por outros ramos do
Direito, como o processual e o eleitoral.
5
VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil – Vol. 5 – Direito de Família – 18ª ed. – São Paulo: Atlas, 2018.
p.243.
6
TARTUCE, Flávio. Direito Civil – Vol. 5 – Direito de Família – 13 ed. – Rio de Janeiro: Forense, 2018. p.
415.
7
Apesar de não haver menção expressa acerca da afetividade na legislação cível atual, o artigo 9° do Projeto de
Lei 470 de 2013 do Senado Federal, denominado Estatuto das Famílias, admite que o parentesco resulte da
consanguinidade, da socioafetividade e da afinidade.
8
LÔBO, Paulo. Direito Civil: Famílias – 4 ed. – São Paulo: Saraiva, 2011. p. 205.
9
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro- Vol. 6- Direito de Família – 15 ed. – São Paulo:
Saraiva. p. 302.
12
A lei regula tanto as relações de parentesco, no seu aspecto mais restrito e pessoal,
como disciplina os vínculos mais distantes e que igualmente interessam à ordem social. Os
direitos processuais, por exemplo, assenta normas relativas ao parentesco, vedando a oitiva de
testemunhas ligadas por laços de parentesco. No Direito Penal, o parentesco entre o autor do
delito e a vítima pode ser causa de agravamento ou de isenção da pena quando o crime é
cometido contra cônjuge, na constância da sociedade conjugal, ou entre ascendente ou
descendente. No direito administrativo e constitucional existem restrições de parentesco para
a ocupação de cargos de administração, e as inelegibilidades eleitorais10. Enfim, várias são as
consequências jurídicas provenientes das relações de parentesco, em diversos campos do
Direito.
Cumpre ressaltar que o conceito de parentesco não se confunde com a noção de
família, uma vez que, os cônjuges, por exemplo, não são parentes entre si, mas constituem
uma família.
O termo filiação, por sua vez, tem origem do latim filiatio, que tem como significado
procedência, laço de parentesco dos filhos com os pais, dependência, enlace 11. É o vínculo
que se estabelece entre os ascendentes e descendentes de primeiro grau, independente da
origem, consanguínea, por adoção, pela posse do estado de filho (socioafetividade), ou
técnicas de reprodução assistida.
Sob o aspecto do Direito, a filiação é um fato jurídico do qual decorrem inúmeros
efeitos. A filiação compreende todas as relações, e respectivamente sua constituição,
modificação e extinção, que têm como sujeitos os pais com relação aos filhos. Portanto, sob
esse prisma, o direito de filiação abrange o poder familiar, em que os pais exercem em relação
aos filhos menores, bem como os direitos protetivos e assistenciais em geral12.
Antes do advento da Constituição Federal de 1988, os filhos eram catalogados, tendo
como base a circunstância de ter sido gerado ou não durante a constância do matrimônio, haja
vista que este era o centro das relações familiares à época. Eram classificados em legítimos,
ilegítimos e legitimados.
Na vigência do Código Civil de 1916, os filhos legítimos eram concebidos na
constância do casamento, de acordo com a presunção pater is est, segundo a qual, se atribui
ao marido a paternidade do filho concebido durante o matrimônio. A filiação legitimada era a
10
MADALENO, Rolf. Direito de Família – 8 ed.- Rio de Janeiro: Forense, 2018. p.638.
LÔBO, Paulo. Direito Civil: Famílias – 4 ed. – São Paulo: Saraiva, 2011. p. 216.
12
VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil – Vol. 5 – Direito de Família – 18ª ed. – São Paulo: Atlas, 2018,
p.249.
11
13
resultante do casamento dos pais, estando o filho concebido, ou depois de havido o filho13. Os
ilegítimos não eram concebidos durante o casamento e, por isso, sofriam uma série de
restrições, inclusive não se admitia o reconhecimento dos filhos incestuosos e adulterinos, o
que lhes impedia de concorrer à sucessão ou a percepção de alimentos. Em crítica ao
tratamento discriminatório, Clóvis Bevilaqua apud Maria Berenice Dias14:
A falta é cometida pelos pais e a desonra recai sobre os filhos, que em nada
concorreram para ela. A indignidade está no fato do incesto e do adultério, e
a lei procede como se ela estivesse nos frutos infelizes dessas uniões
condenadas.
O que ocorria era a prevalência dos interesses da instituição do matrimônio em
detrimento dos direitos de personalidade e patrimoniais dos filhos que acabavam sendo
prejudicados pela conduta ilícita de seus pais, uma vez que o adultério era considerado crime
à época.
Ao longo do século XX, o tratamento discriminatório dos filhos foi sendo mitigado
com o advento de algumas leis, como a Lei do Divórcio, Lei 6.515/77, até que foi totalmente
extinto a partir da Constituição Federal de 1988.
A norma retrata verdadeira mudança de paradigmas, envolvente da
concepção de família. A desigualdade entre filhos, particularmente entre
filhos legítimos, ilegítimos e adotivos, era a outra e dura face da família
patriarcal que perdurou no direito brasileiro até praticamente os umbrais da
Constituição de 1988, estruturada no casamento, na hierarquia, no chefe de
família, na redução do papel da mulher, nos filhos legítimos, nas funções de
procriação e de unidade econômica e religiosa. A repulsa aos filhos
ilegítimos e a condição subalterna dos filhos adotivos decorriam
naturalmente dessa concepção15.
Em consonância com o novo tratamento constitucional, o Estatuto da Criança e do
Adolescente, em seu art. 27, extingue os pressupostos antes exigidos para o reconhecimento
da filiação, e eleva o referido instituto a direito personalíssimo, indisponível e imprescritível,
podendo ser exercido sem restrições por quaisquer filhos.
O princípio da proibição do tratamento discriminatório promove, assim, a
concretização da dignidade humana e se alia à proteção integral da criança e adolescente,
ambos dispostos no texto constitucional. Além disso, afasta o caráter patriarcal da família,
proporcionando a todos os filhos, inclusive os adotivos, os mesmos direitos e garantias.
13
FUJITA, Jorge Siguemitsu; Filiação – 2 ed. – São Paulo: Atlas, 2011. p.22
DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias – 11 ed.- São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016.
p.654.
15
LÔBO, Paulo. Direito Civil: Famílias – 4 ed. – São Paulo: Saraiva, 2011. p. 218.
14
14
Para fins didáticos, a filiação é classificada, no que tange à sua natureza, em jurídica,
biológica e socioafetiva. A filiação jurídica é o vínculo paterno-filial reconhecido pela lei16. O
Código Civil, em seu artigo 1.597, determina as hipóteses de presunção de paternidade dos
filhos havidos na constância do casamento. O dispositivo está amparado na velha máxima
latina mater semper certa est et pater is est quem nuptiae demonstrant, que pode ser resumida
da seguinte forma: a maternidade é sempre certeza, a paternidade é presunção que decorre da
situação de casados17. Parte da doutrina critica o referido dispositivo legal por não
acompanhar a evolução social direcionada pela Constituição, sobretudo quanto à pluralidade
dos núcleos familiares18.
A presunção de paternidade foi então superada pela busca da verdade biológica, o que
implica na segunda classificação doutrinária da filiação e, por sua vez, se estabelece através
da consanguinidade. A evolução científica permitiu a concretização da referida busca da
verdade biológica através do exame pericial de DNA que indica uma verdade quase absoluta
acerca da paternidade biológica.
Por muito tempo, a filiação biológica se sobrepunha em relação às demais, mas com o
advento do novo tratamento constitucional direcionado à família, sobretudo em relação à
primazia de sua proteção integral em todos os arranjos familiares e o alargamento do
tratamento legal para além da instituição do matrimônio, a essência da família passa a
concentrar-se nas relações pessoais e afetivas de seus integrantes. Todas essas mudanças se
refletem na identificação dos vínculos de parentalidade, levando ao surgimento de novos
conceitos e de uma nova linguagem que melhor retrata a realidade atual: filiação social,
filiação socioafetiva, estado de filho afetivo19.
O direito deu um salto à frente do dado da natureza, construindo a filiação
jurídica com outros elementos. A verdade real da filiação surge na dimensão
cultural, social e afetiva, donde emerge o estado de filiação efetivamente
constituído20.
16
FUJITA, Jorge Siguemitsu; Filiação – 2 ed. – São Paulo: Atlas, 2011. p.63.
TARTUCE, Flávio. Direito Civil – Vol. 5 – Direito de Família – 13 ed. – Rio de Janeiro: Forense, 2018.
p.423.
18
“Todavia, de modo inexplicável, o legislador-codificador manteve uma presunção de paternidade (art. 1.597)
somente para os filhos nascidos de pessoas casadas, ignorando a existência da pluralidade de núcleos familiares,
protegida, de forma expressa, pela Constituição Federal.” (FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD,
Nelson. Curso de direito civil: Direito das famílias – 7 ed.- São Paulo: Atlas, 2015. p. 540.)
19
DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias – 11 ed.- São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016.
p.657.
17
20
LÔBO, Paulo. Direito ao estado de filiação e direito à origem genética: Uma distinção necessária. Jus
Navigandi. Disponível em <https://jus.com.br/artigos/4752/direito-ao-estado-de-filiacao-e-direito-a-origemgenetica/2> Acesso em 19/03/2019.
15
Não obstante a filiação socioafetiva ainda não ser reconhecida expressamente pela
codificação legal cível, o instituto já é amplamente discutido e ratificado pela doutrina,
jurisprudência e demais legislações.
2.2 FILIAÇÃO SOCIOAFETIVA
A paternidade em si mesma não é um fato da natureza, mas um fato cultural. As
transformações mais recentes por que passou a família, deixando de ser unidade de caráter
econômico, social e religioso para se afirmar fundamentalmente como grupo de afetividade e
companheirismo, implicaram no esvaziamento biológico da paternidade21.
Nesse sentido, o aspecto determinante da filiação deixa de ser sua origem e passa a ser
a construção de vínculos psicológicos, sobretudo diante dos avanços científicos e sociais que
permitiram a utilização de técnicas de reprodução humana assistida e extirparam a
marginalização dos outros tipos de filiação diferentes da biológica.
No atual estágio da sociedade, não mais interessa a origem da filiação.
Popularizaram os métodos de reprodução assistida homóloga e heteróloga, a
doação de óvulos e espermatozoides, a gravidez por substituição. E isso sem
falar ainda na clonagem humana. Ditos avanços ocasionaram uma
reviravolta nos vínculos de filiação. A partir do momento em que se tornou
possível interferir na reprodução humana, a procriação deixou de ser um fato
natural para subjugar-se à vontade do homem22.
Segundo os ensinamentos de João Baptista Villela, que inaugurou a discussão do tema
em 1979, a consanguinidade tem, de fato, e de direito, um papel absolutamente secundário na
configuração da paternidade. Não é a derivação bioquímica que aponta para a figura do pai,
senão o amor, o desvelo, o serviço com que alguém se entrega ao bem da criança23.
Os estudos de Villela ressaltaram a relevância da configuração da paternidade a partir
da afetividade, de modo a atribuir valor jurídico ao afeto e a viabilizar a elaboração de teses
jurídicas no sentido do reconhecimento dos filhos socioafetivos.
A máxima popular, consagrada há muito tempo na sociedade, que afirma que “pai é
quem cria” toma proporções maiores e se legitima juridicamente.
21
VILLELA, João Baptista. Desbiologização da paternidade. Revista da Faculdade de Direito da
Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte. Ano XXVII, n. 21 (nova fase), maio 1979. Disponível
em: < https://www.direito.ufmg.br/revista/index.php/revista/article/view/1156> Acesso em 15/03/2019.
22
BARBOZA, Heloisa Helena. Direito à identidade genética. Juris poiesis. Edição temática: Biodireito, 2004.
Disponível em < http://www.ibdfam.org.br/_img/congressos/anais/208.pdf> Acesso em 15/03/2019.
23
VILLELA, João Baptista. Desbiologização da paternidade. Revista da Faculdade de Direito da
Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte. Ano XXVII, n. 21 (nova fase), maio 1979. Disponível
em: < https://www.direito.ufmg.br/revista/index.php/revista/article/view/1156> Acesso em 18/03/2019.
16
O real valor jurídico está na verdade afetiva e jamais sustentada na
ascendência genética, porque essa, quando desligada do afeto e da
convivência, apenas representa um efeito da natureza, quase sempre fruto de
um indesejado acaso, obra de um indesejado descuido e da pronta rejeição.
Não podem ser considerados genitores pessoas que nunca quiseram exercer
as funções de pai ou de mãe, e sob todos os modos e ações se desvinculam
dos efeitos sociais, morais, pessoais e materiais da relação natural de
filiação24.
Nesse diapasão, a perspectiva afetiva da paternidade é evidenciada como elemento
essencial da relação de filiação, haja vista que os vínculos consanguíneos são demasiadamente
frágeis para evidenciar o que efetivamente é capaz de informar uma relação de paternidade.
O Código Civil menciona, indiretamente, a filiação socioafetiva em alguns de seus
dispositivos. O inciso V do artigo 1.597 ao presumir concebidos na constância do casamento
os filhos havidos por inseminação artificial heteróloga, desde que tenha prévia autorização do
marido, de tal forma que o cônjuge será reconhecido como pai, e não aquele que forneceu o
material genético para a concepção da criança. No artigo 1.603, quando confere absoluta
prevalência ao termo de nascimento como prova de filiação, e nesse sentido a jurisprudência
vem construindo a base jurídica da filiação socioafetiva, ao negar a desconstituição das
adoções à brasileira25.
Sobre o tema, disserta Luiz Edson Fachin:
Pai também é aquele que se revela no comportamento cotidiano, de forma
sólida e duradoura, capaz de estreitar os laços de paternidade numa relação
psicoafetiva, aquele, enfim que, além de emprestar o nome de família, o trata
como sendo verdadeiramente seu filho perante o ambiente social. E no
fundamento da posse de estado de filho é possível encontrar a verdadeira
paternidade, que reside no serviço e no amor que na procriação. Esse sentido
da paternidade faz eco no estabelecimento da filiação e, por isso,
reproduzindo a modelar frase do Professor João Batista Villela, é possível
dizer que, nesse contexto, há um nascimento fisiológico e, por assim dizer,
um nascimento oficial26.
Destaca-se, então, o conceito de posse de estado de filiação, referente à situação
jurídica em que o indivíduo goza do status de filho em relação a outro indivíduo, sem que a
referida situação se corresponda com a realidade. Segundo Maria Berenice Dias27 “A tutela da
aparência acaba emprestando juridicidade a manifestações exteriores de uma realidade que
não existe”.
24
MADALENO, Rolf. Direito de Família – 8 ed.- Rio de Janeiro: Forense, 2018. p.660.
Ibidem. p. 662.
26
FACHIN, Luiz Edson. Da paternidade: relação biológica afetiva - Belo Horizonte: Del Rey, 1996.
27
DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias – 11 ed.- São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016.
p.677.
25
17
A posse do estado de filho se caracteriza, então, pela convivência familiar, pelo efetivo
cumprimento pelos pais dos deveres de guarda, educação e sustento do filho, pelo
relacionamento afetivo, tal qual o comportamento habitual entre pais e filhos, de um modo
geral, verificado na sociedade.
O estado de filiação compreende um conjunto de circunstâncias que solidificam a
presunção da existência de relação entre pais e filhos, capaz de suprir a ausência do registro
do nascimento. Em outras palavras, a prova da filiação dá-se pela certidão do registro do
nascimento ou pela situação de fato. Trata-se de conferir à aparência os efeitos de
verossimilhança, que o direito considera satisfatória28. Ratificando esse entendimento, o
inciso II do artigo 1.605 do Código Civil estabelece que, na falta ou defeito, do termo de
nascimento, poderá provar-se a filiação por qualquer modo admissível em direito, quando
existirem veementes presunções resultantes de fatos já certos, dentre os quais pode ser
destacado a posse do estado de filho.
Apesar de não haver menção expressa acerca do estado de filiação na legislação pátria,
a noção do referido instituto deu-se a partir do conceito de posse do estado de casado,
disposto na codificação civil nos artigos 1.545 e 1.54729. Nesse diapasão, aplica-se o conceito
analogicamente para as relações paterno-filiais.
A posse do estado de filho tem três requisitos, não cumulativos, delineados pela
doutrina. O tratamento (tractatio), relativo ao fato de que, entre si e perante a sociedade, as
partes se relacionam como se fossem unidas pelo vínculo de filiação, ou seja, como pais e
filhos. É possível considerá-lo como o principal requisito para a configuração do estado de
filho, vez que se encontra consubstanciado na própria relação vivenciada com o pai, na
medida em que este revela os sentimentos que nutre pelo filho através da preocupação com o
seu bem-estar, cuidando de sua saúde, promovendo a sua educação, e também zelando a todo
instante pela boa formação do filho30.
A fama (reputatio) que representa uma repercussão desse tratamento, quando o
conhecimento de vínculo ultrapassa o âmbito familiar, constituindo o reconhecimento geral
pela sociedade da referida situação.
28
LÔBO, Paulo. Direito Civil: Famílias – 4 ed. – São Paulo: Saraiva, 2011. p. 237.
Art. 1.545. O casamento de pessoas que, na posse do estado de casadas, não possam manifestar vontade, ou
tenham falecido, não se pode contestar em prejuízo da prole comum, salvo mediante certidão do Registro Civil
que prove que já era casada alguma delas, quando contraiu o casamento impugnado.
Art. 1.547. Na dúvida entre as provas favoráveis e contrárias, julgar-se-á pelo casamento, se os cônjuges, cujo
casamento se impugna, viverem ou tiverem vivido na posse do estado de casados.
30
CORRÊA, Vanessa Ribeiro. A filiação entre a verdade biológica e afetiva. Revista da Faculdade de Direito
de
Campos.
Ano
11,
n°
2
e
Ano
111,
n°
3,
2001/2002.
Disponível
em
<https://core.ac.uk/download/pdf/16013538.pdf> Acesso em 19/03/2019.
29
18
Com tom complementar e acessório, há o nome (nominatio), presente quando o filho
utiliza o sobrenome do seu suposto pai. Alerte-se que é levado em conta não somente o nome
registral civil, mas também o nome social, especialmente nos casos em que o filho é
conhecido pelo nome do pai perante a comunidade onde vive, ou vice-versa31. Frise-se que
não há exigência da constatação das mencionadas características de forma conjunta, uma vez
que não há comando legal nesse sentido e em caso de dúvida, o estado de filiação deve
sempre ser favorecido.
A filiação socioafetiva tem como base fática para seu estabelecimento a posse do
estado de filiação. A configuração da posse do estado de filho torna-se, nesse sentido,
indispensável para o reconhecimento judicial da parentalidade socioafetiva. Partindo dessa
premissa, observa-se o conteúdo referente ao Enunciado 519 da V Jornada de Direito Civil:
“O reconhecimento judicial do vínculo de parentesco em virtude de socioafetividade deve
ocorrer a partir da relação entre pai(s) e filho(s), com base na posse do estado de filho, para
que produza efeitos pessoais e patrimoniais.”
Nesse diapasão, a jurisprudência acolhe o reconhecimento judicial da socioafetividade
a partir da configuração da posse do estado de filho. O Superior Tribunal de Justiça ressalta
que “não se pode olvidar que a construção de uma relação socioafetiva, na qual se encontra
caracterizada, de maneira indelével, a posse do estado de filho, dá a esse o direito subjetivo de
pleitear, em juízo, o reconhecimento desse vínculo32”.
2.2.1 Adoção à brasileira e filiação socioafetiva
A chamada adoção à brasileira consiste em expressão popular para designar a adoção
feita sem o devido processo judicial, em desobediência aos trâmites legais, caracterizando um
procedimento irregular, tipificado como crime de parto suposto, constante no artigo 242, do
Código Penal. Ainda que contrária à lei, a situação se repete, assim como não é repelida pela
sociedade, chegando a ser considerada um “ato nobre”.
Em relação ao tema, discute-se acerca da desconstituição da chamada adoção à
brasileira, uma vez que se trata de um procedimento ilegal, mesmo após a convivência entre
as partes e a configuração de vínculos afetivos e ser observada a posse do estado de filho.
31
TARTUCE, Flávio. Direito Civil – Vol. 5 – Direito de Família – 13 ed. – Rio de Janeiro: Forense, 2018. p.
449.
32
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. REsp. 1.189.663. Rio Grande do Sul. 2010. Relatora Ministra Nancy
Andrighi.
Data
de
julgamento:
06/09/2011.
Disponível
em
<https://stj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/21082296/recurso-especial-resp-1189663-rs-2010-0067046-9stj/inteiro-teor-21082297?ref=juris-tabs> Acesso em 20/03/2019.
19
O enfoque da discussão se dá, geralmente, quando ocorre o fim de algum
relacionamento, e algum dos genitores do menor decide demandar judicialmente pela
percepção de alimentos, representando o incapaz. Como forma de vingança e com intenção de
livrar-se da obrigação alimentar, o adotante decide ingressar com alguma medida judicial para
desconstituir a parentalidade, alegando, em tese, que não é o pai biológico.
Diante da importância revelada pelas relações de afeto quando da constituição da
parentalidade, não é possível ignorar o vínculo afirmado. Ainda que se trate de uma situação
não reconhecida juridicamente, a produção de efeitos jurídicos, emocionais e patrimoniais é
patente.
A partir da constatação da voluntariedade do ato, a jurisprudência33 não admite a
anulação do registro de nascimento, considerando-o irreversível. Não sendo detectado
qualquer vício de vontade, é descabida a anulação, haja vista que a codificação cível não
autoriza a ninguém vindicar estado contrário ao que resulta do registro de nascimento, de
acordo com o artigo 1.604. Não obstante o dispositivo legal excepcionar a possibilidade de
anulação por erro ou falsidade, não se pode aceitar a alegação de falsidade do registro levada
a efeito pela própria pessoa.
Segundo Maria Berenice Dias,34, a adoção à brasileira também constitui uma filiação
socioafetiva. Existe um viés ético na consagração da filiação socioafetiva, o que justifica a
vedação às tentativas processuais de desconstituição do registro de nascimento, quando de
forma espontânea uma pessoa registra como seu filho alguém que sabe não ser o pai
consanguíneo.
A filiação socioafetiva da adoção à brasileira pressupõe o estabelecimento de
laços de afeto desenvolvidos entre o que promoveu o registro e a pessoa
registrada como filho, sem que necessariamente tenha ciência da veracidade
ou falsidade do registro de filiação, pois a filiação socioafetiva se estabelece
justamente em função desse elo de afeto desencadeado entre os dois polos de
amor de uma filiação que nasceu do coração35.
33
Ação negatória de paternidade. Registro. Exclusão da paternidade biológica. Erro à época. Inocorrência. Art.
1.604 do CC. Paternidade socioafetiva. Prevalência. Apelação a que se nega provimento. 1. Não pode o pai
vindicar estado contrário ao que consta do registro do nascimento, quando não provado o erro nem falsidade do
registro. Art. 1.604 do CC de 2002. 2. Constatada a existência de paternidade socioafetiva, não pode a filiação,
devidamente registrada, ficar a mercê da instabilidade das relações emocionais dos envolvidos. (TJMG, AC
1.0183.10.009301-6/001. 2.ª Câmara Cível. Rel. Des. Marcelo Rodrigues. Data de julgamento: 14/01/2014.
Disponível
em
<https://tj-mg.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/118762907/apelacao-civel-ac10183100093016001-mg/inteiro-teor-118762967> Acesso em 21/03/2019).
34
DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias – 11 ed.- São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016. p.
833.
35
MADALENO, Rolf. Direito de Família – 8 ed.- Rio de Janeiro: Forense, 2018. p. 661.
20
A partir da observância da socioafetividade, todos os efeitos jurídicos decorrentes da
filiação se aplicam. A manutenção da paternidade no registro civil se faz imperativa a partir
da observância do princípio do melhor interesse da criança e do adolescente, se for o caso,
bem como da dignidade humana, além do princípio da solidariedade, norteador das
configurações familiares. Ademais, cumpre observar o mandamento constitucional inscrito no
artigo 227 que aduz ser dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança o
direito à “convivência familiar”, ressaltando a “absoluta prioridade”.
Imperioso destacar que o registro da paternidade é entendido como um ato
declaratório, o que corresponde com a realidade fática. Ao registrar um filho, sabendo que não
existem vínculos biológicos, ainda que indevidamente, impede posterior anulação, haja vista
não tratar-se de falsidade do ato, sobretudo por ser voluntário.
Inquestionável a vontade de quem assim age em assumir a paternidade, não podendo
ser aceito arrependimento posterior. Imperativo prestigiar a posse de estado de filho de que
desfruta o registrado, na medida em que se constituiu uma filiação socioafetiva36. Paulo Lôbo
aduz que é situação de venire contra factum proprium (vedação ao comportamento
contraditório), violadora da boa-fé37.
O referido entendimento foi consolidado pelo Superior Tribunal de Justiça38 ao decidir
que “em se tratando de adoção à brasileira, a melhor solução consiste em só permitir que o pai
adotante busque a nulidade do registro de nascimento, quando ainda não tiver sido constituído
o vínculo de socioafetividade com o adotado”.
2.3 RECONHECIMENTO VOLUNTÁRIO DE FILIAÇÃO
A paternidade do filho extramatrimonial se opera via reconhecimento voluntário ou
por sentença judicial, em ação investigatória de paternidade. Ou seja, o que estabelece a
filiação resultante do relacionamento de pai e mãe não casados é o ato de reconhecimento.
O reconhecimento, voluntário ou forçado de filiação constitui direito personalíssimo,
assim como indisponível e imprescritível, de acordo com o Estatuto da Criança e Adolescente,
36
DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias – 11 ed.- São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016. p.
833.
37
LÔBO, Paulo. Direito Civil: Famílias – 4 ed. – São Paulo: Saraiva, 2011. p.251.
38
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Recurso Especial 1.088.157. Paraíba. 2009. Relator Ministro
Massami
Uyeda.
Data
de
julgamento:
23/06/2009.
Disponível
em
<https://stj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/6062250/recurso-especial-resp-1088157-pb-2008-0199564-3/inteiroteor-12198378> Acesso em 21/03/2019.
21
em seu artigo 27. Quando o pai ou a mãe, ou ambos, em conjunto ou sucessivamente,
reconhecem voluntariamente o filho, cumprem o dever legal de fazê-lo.
O reconhecimento voluntário é ato livre, pessoal, irrevogável e de eficácia erga
omnes. Na classificação dos atos jurídicos, constitui ato jurídico em sentido estrito, uma vez
que seus efeitos são predeterminados pela lei, não podendo ser estipulados livremente pelas
partes. Além de personalíssimo, o ato de reconhecimento voluntário tem como características
a voluntariedade, irrevogabilidade, incondicionalidade39. Trata-se também de um ato
unilateral e formal.
O artigo 1.609 do Código Civil disciplina as hipóteses de reconhecimento voluntário
de filhos, que poderá ser feito no registro de nascimento, por escritura pública ou escrito
particular, a ser arquivado no cartório de registro das pessoas naturais, por testamento e por
manifestação direta e expressa perante o juiz, ainda que o reconhecimento de filho não seja o
objeto único e principal do ato que o contém.
A Lei n. 8.560/92, que regulamenta a investigação de paternidade, estabeleceu mais
um procedimento para reconhecimento de paternidade, segundo o qual o oficial de registro
civil de menor apenas com a maternidade estabelecida deverá remeter ao juiz certidão integral
do registro e os dados do suposto pai, a fim de ser averiguada oficiosamente a procedência da
alegação. Se este admitir a paternidade, será lavrado termo de reconhecimento, a ser averbado
pelo oficial do Registro Civil junto ao assento de nascimento. Se, porém, negá-la, ou não
atender à notificação, os autos serão remetidos ao Ministério Público para que este promova a
ação de investigação da paternidade.
Ocorre que, a partir da verificação de dados coletados no Censo Escolar de 2009,
fornecidos pelo Ministério da Educação, por meio do Instituto Nacional de Estudos e
Pesquisas (INEP), constatou-se a existência de 4.869.363 (quatro milhões oitocentos e
sessenta e nove mil trezentos e sessenta e três) alunos para os quais ainda não existia
informação sobre o nome do pai. Nesse contexto, a Corregedoria do Conselho Nacional de
Justiça editou o Provimento n. 12 de 2010, determinando a identificação perante as
Corregedorias-Gerais dos Tribunais de Justiça daqueles estudantes que não possuem
paternidade estabelecida, para que, de posse da informação, o juiz competente providencie
notificação de cada mãe, para, querendo, fornecer os dados do suposto pai. Esse projeto
denominado de “Pai Presente” foi estendido aos filhos maiores de idade pelo Provimento n.
16/2012, que podiam comparecer pessoalmente perante o Oficial de Registro de Pessoas
39
LÔBO, Paulo. Direito Civil: Famílias – 4 ed. – São Paulo: Saraiva, 2011. p. 254.
22
Naturais para indicar o nome do suposto pai, sendo tomadas as providências da averiguação
oficiosa segundo os termos dos respectivos provimentos do CNJ40.
Segundo Tartuce41, diante da vedação de qualquer forma de discriminação, por óbvio,
não pode constar referência alguma a respeito da natureza da filiação, ou seja, se o filho é
havido ou não do casamento. Na verdade, a possibilidade de distinção não deveria ser sequer
cogitada. Nesse sentido, o artigo 5° da Lei 8560/92 determina que no registro de nascimento
não seja feita qualquer referência à natureza da filiação.
Nesse contexto, o reconhecimento voluntário da paternidade independe da prova da
origem genética, privilegiando o princípio da afetividade, norteador das configurações
familiares pós Constituição de 1988.
É característica fundamental do reconhecimento voluntário a irrevogabilidade do ato.
Tendo em vista que, depois de realizado, passa a integrar o âmbito de tutela jurídica do filho
reconhecido, convertendo-se em inviolável direito subjetivo deste. O reconhecimento certifica
o estado de filiação e, como tal, é indisponível. Extingue-se com sua exteriorização. O
interesse protegido é o do filho, sendo inadmissível o arrependimento posterior de quem
reconhece42.
Ao lado do caráter moral, o reconhecimento de filiação gera efeitos patrimoniais. Os
filhos reconhecidos equiparam-se em tudo aos demais, no atual estágio de nosso
ordenamento, gozando de direito hereditário, podendo pedir alimentos, pleitear herança e
propor ação de nulidade de partilha. Se o filho reconhecido falecer antes do autor da herança,
seus herdeiros o representarão e recolherão os bens, por direito de transmissão, se a morte
tiver ocorrido antes da partilha. O direito sucessório que se estabelece é recíproco entre pais e
filhos43.
40
MADALENO, Rolf. Direito de Família – 8 ed.- Rio de Janeiro: Forense, 2018. p. 750.
TARTUCE, Flávio. Direito Civil – Vol. 5 – Direito de Família – 13 ed. – Rio de Janeiro: Forense, 2018. p.
467.
42
LÔBO, Paulo. Direito Civil: Famílias – 4 ed. – São Paulo: Saraiva, 2011. p. 261.
43
VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil – Vol. 5 – Direito de Família – 18ª ed. – São Paulo: Atlas, 2018, p.
302.
41
23
3
MULTIPARENTALIDADE,
RECONHECIMENTO
JUDICIAL
E
RECONHECIMENTO EXTRAJUDICIAL DA SOCIOAFETIVIDADE
Ainda que carente de regulamentação específica, a socioafetividade esteve presente no
cotidiano das famílias brasileiras desde sempre. Sob a égide do Código Civil de 1916, era
reconhecida a posse do estado de filho, em favor de quem utilizasse o nome da família
(nominatio), fosse tratado como filho (tractatio) e fosse reconhecida a condição de
descendente pela comunidade (reputatio)
44
. Nesse contexto, enquanto vínculo de filiação, a
socioafetividade teve seu reconhecimento efetivo através da doutrina e da jurisprudência.
Frise-se que a partir das mudanças observadas nos novos arranjos familiares, o Direito
de Família passa a assumir um caráter sentimental, afastando do intuito meramente
patrimonialista persistente quando da criação deste ramo. A afetividade ganha espaço no
ordenamento jurídico ao ponto de ser consagrada como um princípio fundamental, ainda que
não expresso no texto constitucional. A família passa a identificar-se a partir da solidariedade,
deixando de lado o caráter individualista persistente nos dois últimos séculos45.
A ideia de filiação há muito tempo não implica mais necessariamente nos laços
consanguíneos entre pais e filhos, sobretudo diante das mais variadas modalidades de famílias
que se apresentam hodiernamente. Pessoas que não compartilham do mesmo DNA constituem
uma relação de afetividade mútua, o que já é suficiente para inserir tal vínculo no âmago de
uma estrutura familiar.
O Código Civil de 2002 reconhece, ainda que de uma forma tímida, o parentesco
afetivo a partir da disposição do art. 1.593 que regulamenta: “O parentesco é natural ou civil,
conforme resulte de consanguinidade ou outra origem.” Em complemento ao dispositivo,
foram elaborados enunciados nas Jornadas de Direito Civil com o objetivo de reconhecer no
parentesco civil a parentalidade socioafetiva. Nesse sentido, o Enunciado 103 da I Jornada de
Direito Civil:
O Código Civil reconhece, no art. 1.593, outras espécies de parentesco civil
além daquele decorrente da adoção, acolhendo, assim, a noção de que há
também parentesco civil no vínculo parental proveniente quer das técnicas
de reprodução assistida heteróloga relativamente ao pai (ou mãe) que não
contribuiu com seu material fecundante, quer da paternidade sócio-afetiva,
fundada na posse do estado de filho46.
44
TARTUCE, Flávio. Direito Civil – Vol. 5 – Direito de Família – 13 ed. – Rio de Janeiro: Forense, 2018. p. 27.
LÔBO, Paulo. Direito Civil: Famílias – 4 ed. – São Paulo: Saraiva, 2011. p. 18.
46
CONSELHO DA JUSTIÇA FEDERAL. Enunciado 103 I Jornada de Direito Civil. 2002. Disponível em <
https://www.cjf.jus.br/cjf/corregedoria-da-justica-federal/centro-de-estudos-judiciarios-1/publicacoes-1/jornadascej> Acesso em 08/01/2019.
45
24
A partir de uma interpretação garantista e tendo em vista a observância ao princípio da
proteção integral ao interesse do menor, expresso na Constituição Federal e no Estatuto da
Criança e do Adolescente, faz-se necessária a valorização da coexistência entre a
parentalidade afetiva e a consanguínea, o que constitui um verdadeiro avanço para o
ordenamento jurídico pátrio. Surge, então, a ideia da multiparentalidade e das suas
repercussões no tocante ao reconhecimento do vínculo afetivo enquanto elemento constitutivo
da parentalidade.
3.1 O JULGAMENTO DO RE 898.060/SC E SUA IMPORTÂNCIA PARA O
RECONHECIMENTO DA MULTIPARENTALIDADE
A multiparentalidade consiste no fato de o filho possuir dois pais ou mães
reconhecidos pelo direito, o biológico e o socioafetivo, em função da valorização da filiação
socioafetiva47.
Os casos mais comuns são os padrastos e madrastas que também se tornam
pais/mães pelo exercício das funções paternas e maternas, ou em substituição
a eles. A multiparentalidade é comum, também, nas reproduções
medicamente assistidas, que contam com a participação de mais de duas
pessoas no processo reprodutivo, como por exemplo, quando o material
genético de um homem e de uma mulher é gestado no útero de urna outra
mulher48.
Ante as diversas discussões levadas ao Judiciário quanto ao questionamento sobre a
prevalência ou não da paternidade socioafetiva em detrimento da biológica, o Supremo
Tribunal Federal, a partir do reconhecimento da repercussão geral 622 e no âmbito do
Recurso Extraordinário 898.060/SC, admitiu a possibilidade da multiparentalidade, tendo em
vista a ampliação da tutela normativa a todas as formas pelas quais a parentalidade pode se
manifestar49.
47
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro- Vol. 6- Direito de Família – 15 ed. – São Paulo:
Saraiva. 2018. p. 306.
48
PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Dicionário de direito de família e sucessões- ilustrado – São Paulo: Saraiva,
2015. p. 470. Disponível em < https://pt.scribd.com/document/385321952/Dicionario-de-Direito-de-Familia-eSucessoes-Rodrigo-Pereira-2015-pdf?doc_id=385321952&download=true&order=461864201> Acesso em
25/03/2019.
49
MIN. LUIZ FUX. Voto do relator. Supremo Tribunal Federal. RE 898.060. Santa Catarina. 2016. Disponível
em < http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticianoticiastf/anexo/re898060.pdf> Acesso em 08/01/2019
25
Foi firmada a seguinte tese pela Suprema Corte: “A paternidade socioafetiva,
declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação
concomitante baseado na origem biológica, com efeitos jurídicos próprios”.
Trata-se de mais um passo nos avanços ao reconhecimento do valor jurídico do afeto,
registrando juridicamente uma situação de fato vivenciada e possibilitando ao filho uma rede
de afetos e proteção50. Além disso, pôs fim à discussão acerca da hierarquia entre a
parentalidade afetiva e a biológica, de modo que as concebeu em patamar de igualdade, não
havendo mais que se falar em prevalência de uma em detrimento a outra.
Em seu voto, o ministro relator Luiz Fux menciona o fim da distinção entre filhos
legítimos, legitimados e ilegítimos na qual se apoiava o Código Civil de 1916, ressaltando que
o instituto da filiação à época do Código adotava critérios com base na centralidade do
casamento, ignorando, assim, os critérios biológicos e, sobretudo, o afetivo.
Hodiernamente, o relator destaca a constitucionalização do Direito de Família,
especialmente no que tange à observância à dignidade humana, além da importância do
direito à busca da felicidade, implícito na Constituição Federal de 1988, em seu art. 1°, inciso
III51, e sua importância no âmbito familiar, conforme se infere do seguinte trecho:
O indivíduo jamais pode ser reduzido a mero instrumento de consecução das
vontades dos governantes, por isso que o direito à busca da felicidade
protege o ser humano em face de tentativas do Estado de enquadrar a sua
realidade familiar em modelos pré-concebidos pela lei52.
Nesse sentido, sobrelevando a vontade do indivíduo de acordo com a persecução à
felicidade e à dignidade humana, faz-se mister a tutela jurídica dos arranjos familiares
pautados nas diversas formas que pode manifestar a parentalidade, seja pela presunção
decorrente do matrimônio, ainda persistente no Código Civil de 2002, seja pela origem
biológica ou pela afetividade.
O relator faz uma análise quanto ao Direito Comparado acerca do instituto da
pluriparentalidade, apontando o conceito de dupla paternidade (dual paternity), elaborado
pela Suprema Corte do Estado da Louisiana, nos Estados Unidos, desde a década de 1980,
cujo principal objetivo é a observância ao melhor interesse da criança e ao direito do genitor à
declaração de paternidade.
50
ROSA, Conrado Paulino da. Curso de direito de família contemporâneo – 2 ed.- Salvador: JusPodivm. 2017.
p. 285.
51
Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do
Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
III - a dignidade da pessoa humana
52
MIN. LUIZ FUX. Voto do relator. Supremo Tribunal Federal. RE 898.060. Santa Catarina. 2016. Disponível
em < http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticianoticiastf/anexo/re898060.pdf> Acesso em 08/01/2019
26
A ideia de que, ante a existência de mais de um tipo de parentalidade, apenas uma
deve prevalecer, já não deve mais ser aceita no cenário atual. A filiação há de ser reconhecida
como um direito da personalidade, inerente à existência do indivíduo, de modo que o fato de
impor a este que somente um aspecto de sua existência deve prevalecer em detrimento a outro
se revela inconstitucional e fere, sobretudo, o princípio norteador de todo nosso ordenamento
jurídico, qual seja, o da dignidade humana. Nesse sentir, observa Maria Berenice Dias:
Coexistindo vínculos parentais afetivos e biológicos ou apenas afetivos, mais
do que apenas um direito, é uma obrigação constitucional reconhecê-los.
Não há outra forma de preservar os direitos fundamentais de todos os
envolvidos, sobretudo no que diz com o respeito à dignidade e à
afetividade53.
A decisão do Supremo Tribunal Federal em sede do Recurso Extraordinário em estudo
configura-se como um grande avanço no cenário jurídico, tendo em vista a adequação do
Direito aos diferentes tipos de realidades práticas experimentadas pelos indivíduos, de modo a
amparar os arranjos familiares carentes de regulamentação pela legislação. Nesse sentido, os
ensinamentos de Tartuce:
O importante aqui é que, na linha do que já havia feito com o
reconhecimento das uniões homoafetivas, o STF reitera seu papel no
campo do direito de família: não fechar os olhos para realidade, acolhendo
todas as diferentes formas de família que já existem na prática e que não se
enquadram necessariamente nos modelos fechados que constam das nossas
leis e dos nossos códigos. A tese aprovada na análise da Repercussão Geral
622 representa um passo largo e decidido rumo à consagração de um
54
direito de família efetivamente plural e democrático no Brasil .
Limitando a aplicabilidade do instituto, observa o Ministro do Superior Tribunal de
Justiça, Marco Aurélio Bellizze, em sede de Recurso Especial 1.674.849/RS, diante de
matéria similar, que a multiparentalidade não é uma regra a ser seguida pelo Judiciário, mas
tão somente uma hipótese, conforme trecho do seu voto:
A possibilidade de se estabelecer a concomitância das parentalidades
socioafetiva e biológica não é uma regra, pelo contrário, a
multiparentalidade é uma casuística, passível de conhecimento nas hipóteses
em que as circunstâncias fáticas a justifiquem, não sendo admissível que o
53
DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias – 11 ed.- São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016,
p.683.
54
TARTUCE, Flávio. STF: Repercussão Geral 622: Multiparentalidade e seus efeitos. JusBrasil, 2016.
Disponível
em:
<https://flaviotartuce.jusbrasil.com.br/artigos/388310176/stf-repercussao-geral-622multiparentalidade-e-seus-efeitos> Acesso em: 08/01/2019.
27
Poder Judiciário compactue com uma pretensão contrária aos princípios da
afetividade, da solidariedade e da parentalidade responsável55.
A tese fixada na Repercussão Geral 622 deve ser aplicada com sapiência aos casos
concretos, evitando-se abusos em reconhecimento de filiações sem vínculos familiares, com
objetivos puramente patrimoniais, diferenciando efetivamente o vínculo biológico de vínculo
parental ou paternidade jurídica56. Em análise ao tema, Rolf Madaleno57 lembra que no corpo
do acórdão está enunciado pelo Ministro Luiz Fux, ser escopo da multiparentalidade o direito
à busca da felicidade, não se aferindo deste preceito que, uma flagrante e exclusiva caça ao
tesouro seja a consagração filosófica e constitucional da dignidade que pode ser reconhecido
em qualquer uma das espécies de filiação.
Uma vez reconhecida a multiparentalidade, cumpre observar que a socioafetividade
ganha um espaço mais amplo no ordenamento jurídico, e o seu reconhecimento faz-se
necessário, sobretudo no que concerne à produção de efeitos patrimoniais e extrapatrimoniais
decorrentes da filiação. Para tanto, a alternativa adequada e que permite maior publicidade
para os atos da vida civil é a averbação no registro civil desses indivíduos, segundo disposição
legal de Código Civil, em seu art. 10, inciso II que determina: “Far-se-á averbação em registro
público dos atos judiciais ou extrajudiciais que declararem ou reconhecerem a filiação”.
3.2 O RECONHECIMENTO JUDICIAL DA SOCIOAFETIVIDADE
A partir da vedação do tratamento discriminatório em relação à origem da filiação,
evidencia-se o reconhecimento da possibilidade da investigação da paternidade socioafetiva,
assim como ocorre com a biológica. Nesse sentido, Zeno Veloso apud Maria Berenice Dias58:
Se o genitor, além de um comportamento notório e contínuo, confessa,
reiteradamente, que é o pai daquela criança, propaga esse fato no meio em
que vive, qual a razão moral e jurídica para impedir que esse filho, não tendo
sido registrado como tal, reivindique, judicialmente, a determinação de seu
estado?
55
MIN. MARCO AURÉLIO BELLIZZE. Voto do Relator. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº
1674849
RS
2016/0221386-0.
Rio
Grande
do
Sul.
2018.
Disponível
em
<https://stj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/574626052/recurso-especial-resp-1674849-rs-2016-02213860/relatorio-e-voto-574626080?ref=juris-tabs> Acesso em 10/01/2019.
56
CARVALHO, Dimas Messias de. Multiparentalidade – Equiparação ou prevalência da filiação socioafetiva
com relação à biológica? In: PEREIRA, Cunha Rodrigo; DIAS, Maria Berenice. Famílias e sucessões:
Polêmicas, tendências e inovações. Belo Horizonte: IBDFAM, 2018. p.220.
57
MADALENO, Rolf. Direito de Família – 8 ed.- Rio de Janeiro: Forense, 2018. p.660.
58
DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias – 11 ed.- São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016. p.
732.
28
A partir do reconhecimento da possibilidade jurídica do estabelecimento da
parentalidade de origem socioafetiva, essa situação há de ser formalizada no Registro Civil de
Pessoas Naturais, sendo este a instituição em que é estabelecido, mantido e publicado o estado
civil dos cidadãos brasileiros59.
O registro civil revela-se de extrema importância para o próprio indivíduo e para a
sociedade como um todo, uma vez que garante a segurança necessária quanto às principais
informações pessoais, das quais decorrem diversos direitos e obrigações60.
Quando do registro da filiação de um indivíduo, este deve se aproximar da realidade o
máximo possível. Assim, se for o caso de um filho que dispõe de pai socioafetivo, além do
registral, não há que se falar em detrimento do registro de um em relação a outro, pois isso
não corresponderia à realidade fática do referido indivíduo. Corroborando esse entendimento,
as lições de Belmiro Welter:
Quando se cuida de ação de estado, de direito da personalidade,
indisponível, imprescritível, intangível, fundamental à existência humana,
como é o reconhecimento das paternidades genética e socioafetiva, não se
deve compreender o ser humano com base no direito registral, que prevê a
existência de um pai e uma mãe, e sim na realidade da vida de quem tem,
por exemplo, quatro pais (dois genéticos e dois afetivos), atendendo sempre
aos princípios fundamentais da cidadania, da afetividade, da convivência
em família genética e afetiva e da dignidade humana, que estão
compreendidos na condição humana tridimensional61.
O afastamento do pedido de registro no assentamento civil revela o caráter meramente
patrimonial da demanda que busca o reconhecimento da multiparentalidade, sendo esta uma
das principais polêmicas que envolvem a questão, conforme aponta Tartuce:
Há, ainda, o generalizado receio de que a posição adotada pelo STF possa
gerar demandas mercenárias, baseadas em puro interesse patrimonial.
Argumenta-se que a corte teria abe rto as portas do Judiciário para filhos
que somente se interessam pelos pais biológicos no momento de
necessidade ou ao se descobrirem como potenciais herdeiros de fortunas.
Nesse particular, competirá aos juízes e tribunais separar, como sempre, o
joio do trigo, empregando os mecanismos disponíveis na ordem jurídica
59
LIMA, Márcia Fidelis. Os atos registrais da filiação socioafetiva e os avanços do provimento n. 63 do
Conselho Nacional de Justiça – CNJ. In: PEREIRA, Cunha Rodrigo; DIAS, Maria Berenice. Famílias e
sucessões: Polêmicas, tendências e inovações. Belo Horizonte: IBDFAM, 2018. p. 430.
60
CASSETTARI, Cristiano. Multiparentalidade e parentalidade socioafetiva: Efeitos jurídicos- 3ª ed. – São
Paulo: Editora Atlas, 2016, p. 85.
61
WELTER, Belmiro Pedro. Teoria tridimensional do direito de família. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009.
p.222.
29
brasileira para se evitar o exercício de uma situação jurdícia subjetiva em
descompasso com seu fim axiológico-normativo62.
No sentido do reconhecimento da parentalidade socioafetiva, a Lei 11.924, de 17 de
abril de 2009, alterou o art. 57 da Lei 6.015/73, que dispõe sobre os registros públicos, para
admitir que:
O enteado ou a enteada, havendo motivo ponderável e na forma dos §§ 2 o e
7o deste artigo, poderá requerer ao juiz competente que, no registro de
nascimento, seja averbado o nome de família de seu padrasto ou de sua
madrasta, desde que haja expressa concordância destes, sem prejuízo de seus
apelidos de família.
Nesse sentido, o processo de reconhecimento da socioafetividade passou por algumas
mudanças nos últimos anos. Para tanto, inicialmente, os indivíduos deveriam recorrer ao
Judiciário para proceder com a averbação do nome do pai ou mãe socioafetivos em seu
registro civil. Não necessariamente a partir de uma ação declaratória ou investigatória de
paternidade, podendo dar-se de forma incidental, como diante de uma ação de alimentos, por
exemplo.
É o que leciona Cristiano Cassettari ao aduzir que o referido mandado de averbação,
portanto, deve ser expedido pelo juiz, obrigatoriamente, sempre que for reconhecida uma
parentalidade socioafetiva ou uma multiparentalidade, isso, independentemente da ação
judicial proposta, que não precisa ser, necessariamente, a declaratória ou investigatória, pois o
reconhecimento pode ser também incidental, ou seja, em uma ação que não tenha o objetivo
de reconhecer isso, mas que ele é fundamental para a concessão do direito. Como exemplo,
cita-se a ação de alimentos63.
O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, em decisão sobre o tema, reconheceu, em
ação de investigação de paternidade, a parentalidade socioafetiva entre as partes, sob a
alegação de que o ativismo judicial e a peculiar atuação do juiz de família impõem, em afago
à solidariedade humana e veneração respeitosa ao princípio da dignidade da pessoa humana,
que se supere a formalidade processual, determinando o registro da paternidade, com base na
observância da posse do estado de filho64.
62
TARTUCE, Flávio. STF: Repercussão Geral 622: Multiparentalidade e seus efeitos. JusBrasil, 2016.
Disponível
em:
<https://flaviotartuce.jusbrasil.com.br/artigos/388310176/stf-repercussao-geral-622multiparentalidade-e-seus-efeitos> Acesso em: 08/01/2019
63
CASSETTARI, Cristiano. Multiparentalidade e parentalidade socioafetiva: Efeitos jurídicos- 3ª ed. – São
Paulo: Editora Atlas, 2016. p. 266.
64
TJRS. Apelação Civil 70008795775. 7.ª Câmara de Direito Privado, Rel. José Carlos Teixeira Giorgis. Data de
julgamento: 23/06/2004. Disponível em < https://tj-rs.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/21946449/apelacao-civelac-70048610422-rs-tjrs/inteiro-teor-21946450?ref=juris-tabs> Acesso em 08/01/2019
30
A ação judicial mais adequada é a chamada Declaratória de Reconhecimento de
Filiação Socioafetiva, sendo considerada imprescritível pela doutrina65. Fala-se ainda acerca
da propositura da Ação Investigotária de Paternidade tendo em vista o reconhecimento da
socioafetividade. Ambas devem ser aceitas para a declaração do vínculo e posterior averbação
em registro civil, não importa o nome adotado, em atenção, inclusive, ao princípio processual
da instrumentalidade das formas.
A demanda se constituirá com base nas evidências de que há, de fato, afetividade entre
as partes. Todavia, este implica em um dos maiores problemas da referida ação, uma vez que
nem sempre as partes conseguem juntar provas suficientes a demonstrar a configuração da
socioafetividade, de tal forma que a burocratização excessiva acaba sendo prejudicial à
demanda. O problema se agrava, sobretudo, diante das camadas mais carentes da população,
em que o acesso a Justiça torna-se mais árduo, e a dificuldade em formar um acervo
probatório satisfatório, maior.
Não há que se falar de procedimento de adoção, uma vez que são considerados
institutos diversos. Em se tratar de paternidade socioafetiva e multiparentalidade, tem-se que
estas divergem do conceito de adoção unilateral, tendo em vista que não há rompimento de
vínculos jurídicos com o outro genitor, mas uma situação de igualdade entre ambos (pai
afetivo e biológico).
Frise-se que as principais características do reconhecimento é a imprescritibilidade,
como mencionado acima, inclusive, é possível que seja realizado post mortem. Aliás, a
possibilidade da adoção póstuma, mesmo que não tenha iniciado o respectivo processo, tratase do reconhecimento da filiação socioafetiva. Deste modo, é juridicamente possível a ação
declaratória de filiação socioafetiva ser proposta após o falecimento de quem desempenhou as
funções de pai66.
Além disso, é irrevogável, de modo que não é possível posterior ajuizamento de ação
negatória de paternidade, salvo em caso de vício de consentimento. Por fim, é incondicionado,
não há que se falar em termo ou condição ao ato.
Os principais defensores da judicialização para o reconhecimento da socioafetividade
invocam, principalmente, a segurança jurídica na qual se envolve a maioria das demandas
judiciais, sobretudo quando faz-se necessária a verificação do melhor interesse da criança e
adolescente, a análise individual de cada caso permite um exame mais exato para tanto.
65
CASSETTARI, Cristiano. Multiparentalidade e parentalidade socioafetiva: Efeitos jurídicos- 3ª ed. – São
Paulo: Editora Atlas, 2016, p. 76.
66
DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias – 11 ed.- São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016. p.
733.
31
Nesse diapasão, ante a carência de legislação que regulamente a multiparentalidade,
faz-se necessária a análise individual de forma específica. Foi o que restou demonstrado no
julgamento do Recurso Especial 1.674.849/RS, acima mencionado, em que foi negado o
direito ao reconhecimento da multiparentalidade, tendo em vista que, se assim o fosse feito,
haveria lesão à proteção do melhor interesse da criança, conforme demonstrado através de
estudo social. É o que se infere da ementa do julgado:
RECURSO
ESPECIAL.
AÇÃO
DE
INVESTIGAÇÃO
DE
PATERNIDADE
C/C
RETIFICAÇÃO
DE
REGISTRO
DE
NASCIMENTO. FILHO HAVIDO DE RELAÇÃO EXTRACONJUGAL.
CONFLITO ENTRE PATERNIDADE SOCIOAFETIVA E BIOLÓGICA.
MULTIPLICIDADE
DE
VÍNCULOS
PARENTAIS.
RECONHECIMENTO CONCOMITANTE. POSSIBILIDADE QUANDO
ATENDER AO MELHOR INTERESSE DA CRIANÇA. APLICAÇÃO
DA RATIO ESSENDI DO PRECEDENTE DO SUPREMO TRIBUNAL
FEDERAL
JULGADO
COM
REPERCUSSÃO
GERAL.
SOBREPOSIÇÃO DO INTERESSE DA GENITORA SOBRE O DA
MENOR. RECURSO DESPROVIDO. 1. O propósito recursal diz respeito
à possibilidade de concomitância das paternidades socioafetiva e biológica
(multiparentalidade). 2. O reconhecimento dos mais variados modelos de
família veda a hierarquia ou a diferença de qualidade jurídica entre as
formas de constituição de um novo e autonomizado núcleo doméstico (ADI
n. 4.277/DF). 3. Da interpretação não reducionista do conceito de família
surge o debate relacionada à multiparentalidade, rompendo com o modelo
binário de família, haja vista a complexidade da vida moderna, sobre a qual
o Direito ainda não conseguiu lidar satisfatoriamente. 4. Apreciando o
tema e reconhecendo a repercussão geral, o Plenário do STF, no
julgamento do RE n. 898.060/SC, Relator Ministro Luiz Fux, publicado no
DJe de 24/8/2017, fixou a seguinte tese: "a paternidade socioafetiva,
declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do
vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica, com todas
as suas consequências patrimoniais e extrapatrimoniais." 5. O
reconhecimento de vínculos concomitante de parentalidade é uma
casuística, e não uma regra, pois, como bem salientado pelo STF naquele
julgado, deve-se observar o princípio da paternidade responsável e primar
pela busca do melhor interesse da criança, principalmente em um processo
em que se discute, de um lado, o direito ao estabelecimento da verdade
biológica e, de outro, o direito à manutenção dos vínculos que se
estabeleceram, cotidianamente, a partir de uma relação de cuidado e afeto,
representada pela posse do estado de filho. 6. As instâncias ordinárias
afastaram a possibilidade de reconhecimento da multiparentalidade na
hipótese em questão, pois, de acordo com as provas carreadas aos autos,
notadamente o estudo social, o pai biológico não demonstra nenhum
interesse em formar vínculo afetivo com a menor e, em contrapartida, o pai
socioafetivo assiste (e pretende continuar assistindo) à filha afetiva e
materialmente. Ficou comprovado, ainda, que a ação foi ajuizada
exclusivamente no interesse da genitora, que se vale da criança para
conseguir atingir suas pretensões. 7. Ressalva-se, contudo, o direito
personalíssimo, indisponível e imprescritível, da menor pleitear a inclusão
do nome do pai biológico em seu registro civil ao atingir a maioridade,
32
momento em que poderá avaliar, de forma independente e autônoma, a
conveniência do ato. 8. Recurso especial desprovido67.
No entanto, a judicialização do reconhecimento da socioafetividade envolve, dentre
outros problemas, uma excessiva burocratização, como destacado acima, uma demanda
significativa de tempo, como a maioria dos demais pleitos judiciais, além de maiores gastos
financeiros para as partes.
Não há dúvidas de que o Direito brasileiro encontra-se em um movimento de
desjudicialização, sobretudo após o Código de Processo Civil de 2015 que deu importante
destaque aos meios alternativos de resolução de conflitos, tais quais a mediação e a
conciliação. O Direito de Família não poderia ir em direção contrária e a possibilidade do
reconhecimento extrajudicial da paternidade socioafetiva é um dos principais marcos para a
desburocratização desse ramo do direito.
3.3 O RECONHECIMENTO EXTRAJUDICIAL DA SOCIOAFETIVIDADE
O reconhecimento jurídico da parentalidade socioafetiva demonstra-se incontestável
no cenário jurídico atual, sobretudo após as importantes decisões dos Tribunais Superiores
que reconheceram seu valor. Nesse sentido, a partir da ausência de legislação específica sobre
o tema experimentada anteriormente à edição do Provimento do CNJ que cuida do assunto,
alguns estados já regulamentavam, através de provimentos das corregedorias dos respectivos
Tribunais de Justiça, o reconhecimento extrajudicial da socioafetividade.
O principal fundamento é a autorização do reconhecimento voluntário de paternidade,
perante o Oficial de Registro Civil pelo Código Civil, inscrita em seu art. 1.609. Nesse
diapasão, mediante uma interpretação extensiva, a permissão abrange também as hipóteses de
reconhecimento voluntário de paternidade socioafetiva, devendo esta ser tratada em condição
de igualdade em relação às demais espécies de filiação.
O provimento 009/2013 do Tribunal de Justiça do Estado de Pernambuco foi o
primeiro nesse sentido, permitindo que todos os cartórios de registro civil do estado recebam,
sem necessidade de ação judicial, pedidos de reconhecimento de parentalidade socioafetiva,
conforme observações de Cassettari. 68
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA . Recurso Especial nº 1674849/RS - 2016/0221386-0. Rio
Grande do Sul. 2018. Relator: Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE. Data de Julgamento: 17/04/2018.
Disponível em <https://stj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/574626052/recurso-especial-resp-1674849-rs-20160221386-0/relatorio-e-voto-574626080?ref=juris-tabs> Acesso em 14/01/2019.
68
CASSETTARI, Cristiano. Multiparentalidade e parentalidade socioafetiva: Efeitos jurídicos- 3ª ed. – São
Paulo: Editora Atlas, 2016, p. 88.
67
33
O provimento considerou, dentre outros fatores, os Provimentos nº 12, 16 e 26 do
Conselho Nacional de Justiça cujo objetivo é facilitar o reconhecimento voluntário de
paternidade biológica, dos quais se originou o programa “Pai Presente”, tendo em vista a
garantia ao direito à paternidade, constitucionalmente previsto, para as pessoas que não têm
esse registro em seu assentamento civil.
Além disso, o provimento também considerou a grande quantidade pessoas, crianças e
adultos, sem registro de paternidade estabelecido, embora tenham relação de paternidade
socioafetiva já consolidada.
Percebe-se que o provimento em questão apenas autorizava o registro da
socioafetividade de quem ainda não possuísse qualquer registro de paternidade em seu
assentamento civil. Distante ainda, portanto, da ideia de multiparentalidade. No entanto, há de
se ressaltar que o provimento é datado de 2013, enquanto a decisão do STF que reconheceu
plenamente a multiparentalidade somente ocorreu em 2016. Portanto, ainda assim, o ato é
bastante significativo e inovador no tocante à elevação da socioafetividade a um patamar de
igualdade em relação às demais formas de manifestação da filiação.
A iniciativa do Tribunal de Justiça de Pernambuco foi reiterada nos estados do
Maranhão e do Ceará. Nesse sentido, Cassettari69 dispõe:
O provimento pernambucano, que é de 2 de dezembro de 2013, foi
transformado, in totum, pelas Corregedorias-Gerais de Justiça do Estado do
Ceará, em 17 de dezembro de 2013, no Provimento 15/2013, e do Estado do
Maranhão, em 19 de dezembro de 2013, no Provimento 21/2013.
Em 2014, foi a vez das Corregedorias de Justiça dos estados de Santa Catarina e do
Amazonas, e em 2016, do Rio Grande do Sul. Todos no sentido de reconhecer a paternidade
socioafetiva daqueles que já se acham registrados, mas sem paternidade estabelecida.
Surge, então, a necessidade de edição de uma regulamentação geral para orientação de
todos os estados brasileiros quanto ao reconhecimento extrajudicial da socioafetividade, tendo
em vista a desburocratização quanto ao procedimento, implicando na redução do custo
emocional dos envolvidos. Ademais, configura-se importante na relevante e árdua missão de
desafogar o Judiciário das inúmeras ações judiciais em trâmite.
O papel do Conselho Nacional de Justiça, enquanto órgão administrativo mais elevado
do Poder Judiciário, é decisivo no sentido da edição da referida regulamentação em âmbito
69
CASSETTARI, Cristiano. Multiparentalidade e parentalidade socioafetiva: Efeitos jurídicos- 3ª ed. – São
Paulo: Editora Atlas, 2016. p.89.
34
nacional, conforme sua competência para edição de atos regulamentares constitucionalmente
prevista, de acordo com o art. 103-B, §4°, inciso I70.
Nesse diapasão, O IBDFAM (Instituto Brasileiro de Direito de Família), a partir de
pedido de providências ao CNJ, em junho de 2015, elaborou petição cujo objetivo era a
regulamentação de registro civil de paternidade socioafetiva perante os oficiais de registro
civil de todo o país.
A demanda revelou-se importante, sobretudo diante da edição dos provimentos
anteriormente citados pelos tribunais de justiça de alguns estados do país, de modo que se faz
necessária a padronização da regulamentação da matéria, além da sua extensão para todo o
território brasileiro. Nesse sentido, as palavras do Min. João Otávio de Noronha, Corregedor
Nacional de Justiça à época do recebimento do pedido de providências em análise:
Por sua vez, a existência de diversos provimentos editados pelos Tribunais
de Justiça dos estados da federação, sem a respectiva orientação geral por
parte dessa Corregedoria Nacional de Justiça pode suscitar dúvidas e
ameaçar a segurança jurídica dos atos de reconhecimento de paternidade
registrados perante os Oficiais de Registro Civil de Pessoas Naturais71.
Nesse diapasão, a ANOREG/BR (Associação dos Notários e Registradores)
manifestou-se nos autos defendendo a regulamentação do reconhecimento voluntário da
paternidade socioafetiva diretamente perante os oficiais de registro civil, assim como a
uniformização e padronização das orientações já editadas pelos Tribunais de Justiça de alguns
estados. Em sentido contrário, portanto, à ANOREG/DF que rechaçou a possibilidade do
reconhecimento extrajudicial da parentalidade socioafetiva.
Verificada a possibilidade jurídica do pedido do IBDFAM, o Corregedor Nacional de
Justiça, em sua decisão, atenta para o fato de que o reconhecimento extrajudicial há de ser
feito através de escritura pública, e não documento particular, tendo em vista a comprovação
efetiva de que a relação é constituída de afeto, sobretudo para evitar eventuais fraudes.
Somado a isso, atenta ao fato de que deve ser ato personalíssimo, não devendo ser admitida a
sua realização através de procuração.
70
Art. 103-B. (...)
§4º Compete ao Conselho o controle da atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário e do
cumprimento dos deveres funcionais dos juízes, cabendo-lhe, além de outras atribuições que lhe forem
conferidas pelo Estatuto da Magistratura:
I - zelar pela autonomia do Poder Judiciário e pelo cumprimento do Estatuto da Magistratura, podendo expedir
atos regulamentares, no âmbito de sua competência, ou recomendar providências;
71
CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Pedido de Providências n° 0002653-77.2015.2.00.0000. Ministro
João
Otávio
de
Noronha.
Data
de
Julgamento:
14/03/2017.
Disponível
em
<https://www.cnj.jus.br/pjecnj/ConsultaPublica/DetalheProcessoConsultaPublica/documentoSemLoginHTML.se
am?ca=3b54e7f20cae4e15f93b9c617b43ac1469121fb210986eab808255d0eb00a2bc4635ccd0d5247b21b166de0
ee7e3ec9f39b484d172d84d8e&idProcessoDoc=2126908> Acesso em: 17/01/2018.
35
Quanto à questão da multiparentalidade, o Ministro compartilha da tese de que não
deve ser uma regra, mas verificada individualmente em vistas ao melhor interesse da criança,
além disso, requer a vontade convergente e espontânea de todos os pais. Assevera ainda que
teme por dispor sobre o tema, uma vez que não existe legislação cível atual que disponha
sobre:
Contudo, temerário seria se este Conselho Nacional de Justiça reconhecesse
a possibilidade de registro em cartório de múltiplos vínculos de filiação
quando a discussão ainda não se encontra madura no âmbito do Poder
Judiciário e inexiste norma legal que autorize o múltiplo registro de pais no
assento de nascimento. Extrapolaria este Conselho as suas atribuições
previstas na Constituição Federal, no seu Regimento Interno e no
Regulamento da Corregedoria Nacional de Justiça, além de violar
frontalmente a separação entre os Poderes da Federação.72
Coerente observação do ministro quanto ao tema, no entanto, diante da edição do
provimento ora requerido, há de se ter cautela para que tal análise individual da
multiparentalidade não seja um empecilho à extrajudicialização do reconhecimento da
socioafetividade, ou seja, que não seja uma exceção à regra do procedimento mais eficaz e
desburocratizado. Não é possível ignorar o fato de que a parentalidade afetiva está
intimamente ligada ao conceito de multiparentalidade, como explanado anteriormente, e
conforme o entendimento consolidado pelo Supremo Tribunal Federal. Portanto, não deve ser
enfrentada de forma apartada diante da extrajudicialização.
Diante disso, o Ministro aduz que impõe-se a edição de Provimento com o objetivo de
esclarecer e orientar a execução dos serviços extrajudiciais quanto à matéria em análise. Para
tanto, determinou a formação de grupo de trabalho para a elaboração de norma administrativa.
A decisão remonta um grande avanço para a desburocratização do Direito de Família
e, sobretudo, para a valorização e pleno reconhecimento da afetividade enquanto valor
jurídico que permeia o cotidiano de várias famílias brasileiras.
Em análise ao tema, Márcia Fidelis Lima enfatiza a importância da averbação da
paternidade socioafetiva nos registros civis, sobretudo quando se trata de crianças ou
adolescentes que necessitam de um documento que oficialize a relação para atos da vida civil,
diante da necessidade de assistência e representação:
72
CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Pedido de Providências n° 0002653-77.2015.2.00.0000. Ministro
João
Otávio
de
Noronha.
Data
de
Julgamento:
14/03/2017.
Disponível
em
<https://www.cnj.jus.br/pjecnj/ConsultaPublica/DetalheProcessoConsultaPublica/documentoSemLoginHTML.se
am?ca=3b54e7f20cae4e15f93b9c617b43ac1469121fb210986eab808255d0eb00a2bc4635ccd0d5247b21b166de0
ee7e3ec9f39b484d172d84d8e&idProcessoDoc=2126908> Acesso em: 17/01/2018.
36
Como toda situação fática, a falta de um documento formal que comprove a
relação, causa dificuldades para o convívio, mormente quando se trata de
menor, que precisa de assistência/representação. O filho socioafetivo (de
fato) é tratado diferente na escola porque o pai que vai na reunião de pais e
nas festas da escola não consta ou não é o mesmo que está mencionado em
seus documentos. O pai/mãe socioafetivo, que despende ao filho todo o
amor, todo o cuidado, todos os deveres que às vezes nem o pai/mãe registral
o faz, fica impedido de exercer, de direito, prerrogativas do Poder Familiar.
Situações simples como: assinar contrato na escola, autorização de passeios
escolares, protocolos de correspondências endereçadas ao filho menor,
viagem sozinho com o filho (que depende da autorização de quem detém o
Poder Familiar), todas essas situações fáticas, quando enfrentadas por um
adulto (como na União Estável), já criam grande constrangimento e
sofrimento. Quando se trata de criança ou adolescente a situação requer
maior cuidado e se agrava ainda mais, podendo criar consequências que
refletirão na vida adulta desse menor73.
Ante o exposto, em dezembro de 2017 foi editado o Provimento 63 do Conselho
Nacional de Justiça que regula, dentre outras matérias, o reconhecimento extrajudicial da
parentalidade socioafetiva, permitindo que este seja feito em todo o território nacional e não
mais somente nos estados cujas corregedorias dos respectivos Tribunais de Justiça houvessem
editado provimentos específicos sobre o tema.
73
INSTITUTO BRASILEIRO DO DIREITO DE FAMÍLIA. Especialistas avaliam Provimento que autoriza
reconhecimento
da
socioafetividade
em
cartórios.
IBDFAM.
Disponível
em
<http://www.ibdfam.org.br/noticias/6504/Especialistas+avaliam+Provimento+que+autoriza+reconhecimento+da
+socioafetividade+em+cart%C3%B3rios> Acesso em 21/01/2019
37
4 PROVIMENTO 63/2017 DO CNJ E SUAS REPERCUSSÕES JURÍDICAS
O Provimento 63 do Conselho Nacional de Justiça, segundo sua ementa, institui
modelos únicos de certidão de nascimento, de casamento e de óbito, e dispõe sobre o
reconhecimento voluntário e a averbação da paternidade e maternidade socioafetiva e sobre o
registro de nascimento e emissão da respectiva certidão dos filhos havidos por reprodução
assistida.
O provimento considerou, quanto à parentalidade socioafetiva, o cabimento da edição
de normas básicas e uniformes para a realização do registro ou averbação, visando conferir
segurança jurídica à paternidade ou à maternidade socioafetiva estabelecida, inclusive no que
diz respeito a aspectos sucessórios e patrimoniais. Além disso, a ampla aceitação da
parentalidade socioafetiva pela doutrina e jurisprudência, assim como a possibilidade de o
parentesco resultar de outra origem, que não a consaguínea, além da proibição de
discriminação relativa à filiação.
Considerou também a possibilidade de reconhecimento voluntário da paternidade
biológica perante o oficial de registro civil e, ante o princípio da igualdade jurídica da filiação,
no mesmo sentido de haver o reconhecimento voluntário da paternidade ou maternidade
socioafetiva. Ademais, a necessidade de averbação, em registro público, dos atos judiciais ou
extrajudiciais que declararem ou reconhecerem a filiação, conforme determina o Código
Civil.
Discorreu, ainda, acerca da decisão do Supremo Tribunal Federal, em sede do
julgamento do RE 898.060/SC, que admitiu a possibilidade de reconhecimento de paternidade
socioafetiva concomitante à paternidade biológica. Além disso, considerou o reconhecimento
da união contínua, pública e duradoura entre pessoas do mesmo sexo como família, assim
como a garantia do direito ao casamento civil às pessoas do mesmo sexo.
O provimento, nesse sentido, passou a regulamentar a paternidade e maternidade
socioafetiva a partir da Seção II, dos arts. 10 a 15, legitimando o seu reconhecimento
extrajudicial e estabelecendo o procedimento a ser adotado para tanto.
4.1 REQUISITOS IMPOSTOS PELO PROVIMENTO 63/2017 DO CNJ
O procedimento para o reconhecimento extrajudicial da socioafetividade requer a
observância de alguns requisitos formais enumerados pelo Provimento 63 do CNJ, o que se
faz necessário para evitar eventuais fraudes, sobretudo quanto à possível burla ao Cadastro
38
Nacional de Adoção. Além disso, a falta de alguns requisitos poderia abrir a possibilidade de
regularização de sequestros e comércio de crianças, segundo assevera o Ministro Corregedor
Noronha em decisão sobre o tema74.
O art. 10 do Provimento legitima a possibilidade do reconhecimento da parentalidade
socioafetiva pelos oficiais de registro civil de pessoas naturais, destacando, ainda, que a
referida autorização se destina a pessoas de qualquer idade. Nesse ponto, surgem algumas
críticas, uma vez que a afetividade se constitui após um período de convivência em que seja
possível constatar a chamada “posse do estado de filho”. Como reconhecer a parentalidade
socioafetiva em relação a um recém-nascido, por exemplo?75 Em contrapartida, não se afigura
justo que uma legislação estipule um tempo mínimo de convivência, haja vista que o referido
período não é capaz de indicar, por si só, a existência ou não de vínculos afetivos.
Ademais, em defesa do provimento, alguns autores alegam ser possível a existência de
um vínculo afetivo antes mesmo do nascimento de uma criança, uma vez que a posse do
estado de filho pode, perfeitamente, ocorrer durante o período gestacional, pelo convívio
social do casal76. Diante disso, o oficial de registro civil responsável haverá de colher outras
informações que indiquem a configuração ou não da socioafetividade entre as partes.
Nessa senda, o provimento aplica analogicamente regras adotadas para o instituto da
adoção, dispostos no Estatuto da Criança e do Adolescente, diante da lacuna legislativa sobre
o tema, ao determinar que somente poderão requerer o reconhecimento os maiores de 18 anos,
independentemente do estado civil. Cumpre ressaltar que a referida regra está, contudo, em
dissonância com o previsto no provimento 16/2012 do CNJ, que dispõe sobre o
reconhecimento espontâneo de filhos perante os Oficiais de Registro Civil de Pessoas
Naturais, e admite o reconhecimento de paternidade biológica por maiores de 16 e menores de
18 anos, independentemente de assistência para sua realização77.
74
CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Pedido de Providências n° 0002653-77.2015.2.00.0000. Ministro
João
Otávio
de
Noronha.
Data
de
Julgamento:
14/03/2017.
Disponível
em
<https://www.cnj.jus.br/pjecnj/ConsultaPublica/DetalheProcessoConsultaPublica/documentoSemLoginHTML.se
am?ca=3b54e7f20cae4e15f93b9c617b43ac1469121fb210986eab808255d0eb00a2bc4635ccd0d5247b21b166de0
ee7e3ec9f39b484d172d84d8e&idProcessoDoc=2126908>Acesso em: 30/01/2019
75
DOMITH, Laira; ASSIS, Ana Cristina. O risco de desnaturação do conceito de socioafetividade pelo
provimento 63 do cnj. Revista de Direito de Família e Sucessão. V.4, n.1, p. 1-20, jan./jun.2018. Disponível
em < www.indexlaw.org/index.php/direitofamilia/article/download/4026/pdf> Acesso em 30/01/2019
76
LIMA, Márcia Fidelis. Os atos registrais da filiação socioafetiva e os avanços do provimento n. 63 do
Conselho Nacional de Justiça – CNJ. In: PEREIRA, Cunha Rodrigo; DIAS, Maria Berenice. Famílias e
sucessões: Polêmicas, tendências e inovações. Belo Horizonte: IBDFAM, 2018. p. 438.
77
SALOMÃO, Marcos. A filiação socioafetiva pela posse do estado de filho e a multiparentalidade no
provimento 63 do CNJ. Consultor jurídico. Disponível em <https://www.conjur.com.br/dl/marcos-salomaonorma-cnj-mostra.pdf > Acesso em 11/02/2019
39
Além disso, o pretenso pai ou mãe deverá ser pelo menos 16 anos mais velho que o
filho a ser reconhecido. Assim como não poderão reconhecer a maternidade ou paternidade
socioafetiva os irmãos entre si nem os ascendentes, no mesmo sentido do art. 42 do ECA, Lei
8.069/90.
O referido artigo assevera, ainda, que o reconhecimento será irrevogável, somente
podendo ser desconstituído mediante via judicial e a partir da observância de alguma hipótese
de vício de consentimento. Confere, assim, a segurança jurídica necessária ao ato. Cumpre
ressaltar que uma posterior anulação de filiação pode resultar em diversos prejuízos
emocionais e patrimoniais a ambas as partes.
Contribuindo com a desburocratização do procedimento, o provimento estabelece que
o reconhecimento da paternidade ou maternidade socioafetiva será processado perante o
oficial de registro civil das pessoas naturais, ainda que diverso daquele em que foi lavrado o
assento, mediante apresentação de alguns documentos. Dessa forma, os interessados podem
comparecer ao cartório de registro civil mais próximo para proceder com o reconhecimento.
Em seguida, o provimento atenta para a análise cautelosa que deve ter o registrador
quando da verificação minuciosa dos documentos pessoais do requerente, bem como da coleta
da assinatura em termo de reconhecimento de filiação socioafetiva. Durante todo o
procedimento, é de suma importância uma atuação prudente do registrador para detectar se a
relação, de fato, está envolvida pela afetividade que configura o vínculo de filiação, de modo
a implicar no melhor interesse da criança, bem como sua proteção integral, se for o caso.
Ademais, o art. 11 do provimento enuncia a coleta obrigatória das assinaturas, feita
pessoalmente, do pai e da mãe registrais do reconhecido, caso este seja menor. Frise-se que é
vedado que o referido ato seja feito através de procuração. Dessa forma, ante a
impossibilidade de comparecimento de ambos no ato do reconhecimento, o caso há de ser
apresentado ao juiz competente, conforme legislação local. A regra citada dá margem,
portanto, ao reconhecimento da multiparentalidade, conforme explanação de Tartuce78:
Constarão desse termo os dados do requerente do vínculo, os dados do
campo "filiação" – e não campos "pai" e "mãe", como tradicionalmente se
utilizava –, e do filho a ser reconhecido, devendo o registrador colher a
assinatura do pai e da mãe biológicos do reconhecido, caso este seja
menor (art. 11, § 3º). Percebe-se, portanto, que há necessidade de
autorização dos últimos, caso existam no registro, o que já abre a
78
TARTUCE, Flávio. Anotações ao provimento 63 do Conselho Nacional de Justiça – Parte II. Migalhas.
Disponível
em:
<https://www.migalhas.com.br/FamiliaeSucessoes/104,MI280973,11049-
Anotacoes+ao+provimento+63+do+Conselho+Nacional+de+Justica+Parte+II> Acesso em: 30/01/2019
40
possibilidade de reconhecimento da multiparentalidade, na linha da
recente decisão do STF que gerou a nova norma administrativa.
A impossibilidade de anuência por procuração, porém, dividiu a opinião de alguns
estudiosos que consideraram a regra discriminatória, uma vez que confere tratamento
diferenciado entre o reconhecimento da parentalidade biológica e da socioafetiva:
Entendemos que essa determinação, além de desarrazoada, é
inconstitucional, haja vista que estabelece tratamento discriminatório no
reconhecimento da filiação a depender de sua origem, se biológica ou
socioafetiva, uma vez que o Provimento 16/2012 do CNJ, que dispõe sobre
reconhecimento extrajudicial da paternidade biológica, não exige que a
anuência da mãe ou do filho maior seja dada pessoalmente, bastando que
seja apresentado documento escrito autêntico79.
Aplicando analogicamente, mais uma vez, regra concernente à adoção, para o filho
reconhecido maior de 12 anos, é exigido o seu consentimento para a realização do ato, no
mesmo sentido do art. 45 § 2° do Estatuto da Criança e do Adolescente. Presume-se que com
essa idade a criança já tenha condições de exprimir sua vontade quanto à referida questão.
Em relação às pessoas com deficiência, o provimento determinou a observância das
regras da tomada de decisão apoiada constantes no Código Civil. Nesse sentido, a pessoa com
deficiência recorre a pelo menos duas pessoas de sua confiança para prestar-lhe apoio quando
da tomada de decisão pelo reconhecimento extrajudicial da socioafetividade. Cumpre ressaltar
que a pessoa com deficiência pode estar presente nos dois polos da relação, como pai
reconhecedor ou filho reconhecido, de acordo com a autorização legal pelo Estatuto da pessoa
com deficiência em seu art. 6°80.
Reproduzindo a decisão do Ministro Corregedor Noronha, o reconhecimento pode
ocorrer através de documento público, para que seja efetivamente verificada a relação de
afetividade entre as partes, conferindo maior segurança ao ato. O provimento adicionou
também a possibilidade de reconhecimento por documento particular de disposição de última
vontade, hipótese válida, sobretudo, diante da possibilidade do reconhecimento post mortem
pela via judicial.
79
SOUZA, Carlos. CNJ cria regras para reconhecimento extrajudicial de filiação socioafetiva. Consultor
jurídico. Disponível em < https://app.vlex.com/#WW/search/*/provimento+63+cnj/vid/698162553> Acesso em
05/02/2019
80
Art. 6°: A deficiência não afeta a capacidade civil da pessoa, inclusive para:
III – exercer o direito de decidir sobre o número de filhos e de ter acesso a informações adequadas sobre
reprodução e planejamento familiar;
V – exercer o direito à família e à convivência familiar e comunitária; e
VI – exercer o direito à guarda, à tutela, à curatela e à adoção, como adotante ou adotado, em igualdade de
oportunidades com as demais pessoas.
41
O art. 12 do provimento remonta, mais uma vez, à atuação cautelosa exigida ao
registrador diante do procedimento. Ao deparar-se com suspeitas de fraudes, falsidade, má-fé,
vício de vontade, simulação ou dúvida acerca da configuração da posse do estado de filho,
deverá se abster de praticar o ato, justificadamente, e encaminhar o caso ao juiz competente.
O provimento é vago quanto aos demais atos a serem adotados pelo registrador para
que possa ter a certeza da configuração da posse do estado de filho. Portanto, alguns autores
defendem que, na prática, seria prudente a oitiva de testemunhas e, se for o caso, do exame da
certidão de casamento ou instrumento que reconheça a união estável entre o pretenso
registrador e a mãe ou pai biológico. Frise-se, porém, que este último não é requisito
indispensável para a configuração da parentalidade socioafetiva, diante dos diversos arranjos
familiares existentes na sociedade81.
Havendo discussão judicial sobre o reconhecimento da paternidade ou de
procedimento de adoção, o reconhecimento da filiação pela sistemática estabelecida pelo
provimento não deverá ser realizado, conforme disposição do art. 13, haja vista tratar-se de
questão prejudicial, por serem relevantes ao objeto do procedimento. Além disso, é dever do
requerente declarar a existência da eventual ação judicial, sob pena de incorrer em ilícito cível
e penal. Nesse sentido, a conduta do requerente há de ser pautada pela boa-fé, constituindo
como obrigação abster-se de omitir informações relevantes ao ato.
Ainda sobre as discussões judiciais, o art. 15 preconiza que o reconhecimento
espontâneo da parentalidade socioafetiva não será óbice a eventual demanda judicial que
verse sobre a verdade biológica, mais precisamente, as ações de investigação de paternidade.
Frise-se que se trata de direito fundamental e, portanto, incondicionado, a busca a identidade
genética.
4.1.1 Discussões referentes ao artigo 14 do Provimento e ao reconhecimento da
multiparentalidade
O artigo 14 do provimento merece análise pormenorizada, uma vez que trouxe em sua
redação alguns pontos que levaram a discussões doutrinárias acerca da multiparentalidade e
da possibilidade de seu reconhecimento extrajudicial pelo procedimento regulamentado pelo
provimento em questão.
81
SOUZA, Carlos. CNJ cria regras para reconhecimento extrajudicial de filiação socioafetiva. Consultor
jurídico. Disponível em < https://app.vlex.com/#WW/search/*/provimento+63+cnj/vid/698162553> Acesso em
05/02/2019
42
Segundo o referido artigo da norma administrativa, o reconhecimento da paternidade
ou maternidade socioafetiva somente poderá ser realizado de forma unilateral e não implicará
o registro de mais de dois pais e de duas mães no campo filiação no assento de nascimento.
Surge o questionamento quanto à determinação da realização de forma unilateral, de modo
que, alguns estudiosos se posicionaram pelo entendimento de que a expressão significaria o
não reconhecimento da multiparentalidade pela via extrajudicial, segundo exposição de
Tartuce:
Duas correntes se formaram nos principais fóruns de debates do seu
conteúdo. Uma mais cética, à qual estava filiado, entendia que a norma
não reconhecia a multiparentalidade pela via extrajudicial, diante do uso
do termo "unilateral", o que supostamente atingia o vínculo em relação ao
ascendente reconhecedor. A outra, mais otimista, concluía de forma
contrária, ou seja, na linha de efetivação extrajudicial completa da decisão
do STF82.
Em nota de esclarecimento acerca do tema, a Associação Nacional dos Registradores
de Pessoas Naturais (ARPEN) se posiciona pela possibilidade do registro extrajudicial da
multiparentalidade autorizado pelo Provimento 63 do CNJ. Em justificativa, aponta a menção
expressa ao julgamento do RE 898.060/SC, que reconheceu a multiparentalidade e suas
repercussões jurídicas, na parte introdutória de considerações da norma administrativa83.
Além disso, em referência à redação do artigo 14, a associação entende que no registro
será possível ter no máximo dois pais, um registral e um socioafetivo, e duas mães, no mesmo
sentido, sendo quatro no total, não podendo esse número ser ultrapassado.
Corroborando com o entendimento, a nota evidencia a redação do art. 11 §3° do
provimento que determina a coleta obrigatória de assinaturas do pai e mãe biológicos, dando
margem, portanto, ao reconhecimento da multiparentalidade como destacado acima.
Em esclarecimento à expressão “unilateral”, a associação destaca que não é possível
fazer o reconhecimento simultâneo de pai e mãe, de modo que um dos pais ou uma das mães
devem ser registrais. Além disso, em caso de reconhecimento de mais de um registrador
socioafetivo, e já havendo pais registrais, deverá o oficial realizar dois atos distintos.
Ilustrando a situação, Marcos Salomão traz a seguinte hipótese:
82
TARTUCE, Flávio. Anotações ao provimento 63 do Conselho Nacional de Justiça – Parte II. Migalhas.
Disponível
em
<https://www.migalhas.com.br/FamiliaeSucessoes/104,MI280973,11049Anotacoes+ao+provimento+63+do+Conselho+Nacional+de+Justica+Parte+II> Acesso em 09/02/2019
83
ASSOCIAÇÃO NACIONAL DOS REGISTRADORES DE PESSOAS NATURAIS. Nota de esclarecimento
acerca
do
provimento
CNJ
n°
63/2017.
Disponível
em
<
http://ibdfam.org.br/assets/img/upload/files/2%20NOTA%20DE%20ESCLARECIMENTO%20PROVIMENTO
%20CNJ%20N%C2%BA%2063%20(1).pdf> Acesso em 09/02/2019
43
Assim, hipoteticamente, se uma criança tiver apenas o nome da mãe no seu
registro e comparecem ao cartório o pai socioafetivo e o pai biológico
querendo reconhece-la ao mesmo tempo, para cada reconhecimento será
lavrado um termo próprio84.
A exigência que o reconhecimento deve ser realizado de forma unilateral, leva à
conclusão da necessidade de ser individual, vedando o reconhecimento conjunto. Assim, se
ocorrer posse do estado de filho em face de um casal, deve ser realizado um ato de
reconhecimento da mãe e outro do pai, individualmente85.
Ao fim do procedimento, o termo de reconhecimento da parentalidade socioafetiva é
lavrado e averbado no registro civil do filho a ser reconhecido, de modo que nova certidão de
nascimento é expedida, sem fazer qualquer menção à origem da filiação86.
Colaborando,
assim, para que todas as origens de filiação sejam tratadas de forma isonômica, sem nenhum
tipo de discriminação.
4.2 CRÍTICAS AO PROVIMENTO
Apesar das diversas inovações trazidas pelo provimento 63 do CNJ no tocante ao
reconhecimento da parentalidade socioafetiva, que significa um grande avanço para o direito
brasileiro, a norma administrativa, desde que foi publicada, vem dividindo opiniões de
estudiosos, bem como de órgãos públicos acerca de sua legalidade e da ausência de
mecanismos judiciais diante do procedimento.
É temida a falta da atividade jurisdicional que alguns julgam ser necessária à
realização do ato. Destaca-se a intervenção do Ministério Público, uma vez que, segundo a
legislação processualista brasileira, este deverá atuar na defesa dos interesses e direitos sociais
e individuais indisponíveis, conforme art. 176 do CPC, assim como deverá ser realizada sua
intimação como fiscal da ordem jurídica nos processos que envolvam interesse de incapaz.
Também existem críticas quanto à falta de assistência jurídica exercida pelos
advogados ou defensores públicos que supostamente deveriam acompanhar as partes quando
84
SALOMÃO, Marcos. A filiação socioafetiva pela posse do estado de filho e a multiparentalidade no
provimento 63 do CNJ. Consultor jurídico. Disponível em <https://www.conjur.com.br/dl/marcos-salomaonorma-cnj-mostra.pdf > Acesso em 11/02/2019
85
CARVALHO, Dimas Messias de. Multiparentalidade – Equiparação ou prevalência da filiação socioafetiva
com relação à biológica? In: PEREIRA, Cunha Rodrigo; DIAS, Maria Berenice. Famílias e sucessões:
Polêmicas, tendências e inovações. Belo Horizonte: IBDFAM, 2018. p.214.
86
SALOMÃO, Marcos. A filiação socioafetiva pela posse do estado de filho e a multiparentalidade no
provimento 63 do CNJ. Consultor jurídico. Disponível em <https://www.conjur.com.br/dl/marcos-salomaonorma-cnj-mostra.pdf > Acesso em 11/02/2019
44
da realização do ato, como se exige, por exemplo, para homologação extrajudicial de divórcio
consensual, de acordo com o art. 733 §2° do Código de Processo Civil.
Ademais, observam-se reprovações quanto à ausência de estudos sociais elaborados
por equipe interprofissional que acompanha as interações familiares e desenvolvem trabalhos
de aconselhamento, orientação encaminhamento e prevenção, indicando uma avaliação
multidisciplinar nas ações que envolvam interesses de menores.
Questionando o afastamento da atividade jurisdicional no reconhecimento da
socioafetividade e a dita priorização dos interesses dos adultos frente aos interesses de
crianças, o Colégio de Coordenadores da Infância e Juventude dos Tribunais de Justiça do
Brasil ingressou, em março de 2018, com pedido de providências sob nº 000171140.2018.2.00.0000 junto ao CNJ para requerer a modificação ou revogação do Provimento
63/2017.
Apontou-se, ainda, o risco de legitimação da prática ilícita de entrega para adoção ao
viabilizar, por exemplo, que após o reconhecimento da parentalidade socioafetiva, ocorra uma
futura destituição do poder familiar de pai ou mãe registral através do pedido de adoção
unilateral pelo companheiro do pai socioafetivo inicialmente reconhecido. O procedimento
regulamentado pelo provimento em pauta viabilizaria, assim, burla direta ao Cadastro
Nacional de Adoção, levando a uma legitimação da chamada adoção à brasileira.
Em defesa da manutenção do provimento, o IBDFAM se manifestou nos autos e
assinalou que a função atribuída aos cartórios através da norma administrativa é meramente
certificatória de situação jurídica já consolidada. De fato, a norma administrativa apenas
ratificou situação jurídica amplamente reconhecida, seja pela decisão do STF na tese de
repercussão geral 62287, seja pelas práticas consolidadas em Tribunais de Justiça de vários
estados que regulamentavam o reconhecimento extrajudicial da socioafetividade.
Ademais, destaca-se que os profissionais cartorários são amplamente qualificados para
a realização do referido procedimento, uma vez que já são incumbidos da certificação do
nascimento, e para tanto, não há a necessidade do questionamento acerca da veracidade
biológica, conforme exposto:
Capilarizados de modo eficiente os serviços registrais, cuja titularidade é
reservada a bacharéis em Direito e o acesso depende de concurso público,
mais de que pertinente outorgar-lhes a prática de atos que não dependem de
um juízo de convicção e de certificação sentencial. Cabe lembrar que é do
registrador civil a competência certificatória dos principais atos da vida civil
87
A paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de
filiação concomitante baseado na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios.
45
da pessoa: seu nascimento e sua morte, sem ser questionada a veracidade da
declaração de filiação biológica ou a própria ocorrência da morte. Não é
exigido nem o teste de DNA para o estabelecimento da maternidade e
paternidade, e nem a apresentação do defunto para que sua morte seja
atestada88.
Nesse diapasão, há de se destacar, mais uma vez, a necessidade do tratamento
isonômico entre as diversas formas pelas quais se manifesta a filiação, em consonância com o
Código Civil e a Constituição Federal que proíbem quaisquer designações discriminatórias
relativas à filiação. Portanto, o tratamento conferido à certificação da parentalidade
socioafetiva não deve ser diferente do conferido à certificação da parentalidade biológica.
Há de se ressaltar, além disso, a distinção fundamental entre a adoção e a paternidade
socioafetiva, uma vez que o requerente no pedido de providências assinalado aproximou, de
forma equivocada, os referidos institutos. A partir da adoção, extingue-se automaticamente o
poder familiar, conforme previsão do art. 1.635 do Código Civil. Em contrapartida, através do
reconhecimento da filiação socioafetiva, não há a perda do poder familiar, sobretudo diante da
legitimação da multiparentalidade, que apenas adiciona o exercício, não o subtrai.
Ao contrário da adoção, não há a substituição dos pais biológicos pelos
socioafetivos, mas, sim, a inclusão dos últimos no assento de nascimento do
filho. Enquanto a adoção rompe de maneira irrevogável o vínculo
consanguíneo para constituir o parentesco civil, o reconhecimento da
parentalidade socioafetiva tão somente acrescenta, lado a lado, amor e
ventre89.
Contestando esse ponto, o IBDFAM ressalta que o risco de adoções irregulares é o
mesmo para os casos de reconhecimento de paternidade biológica, uma vez que não se exige,
para tanto, a prova pericial através do exame de DNA. Ademais, o processo legislativo há de
ser pautado pela presunção de boa-fé90.
Cumpre ressaltar, ainda, que o procedimento regulamentado pelo provimento não
afasta, por completo, a atuação jurisdicional, haja vista que há menção expressa no corpo da
norma administrativa sobre o controle judicial em caso de fraude ou erro, seja para a
revogação do ato, seja para a recusa do registrador em praticá-lo.
88
INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO DE FAMÍLIA. Manifestação pela manutenção do provimento
63/2017
em
sua
integralidade.
IBDFAM.
Disponível
em
<http://ibdfam.org.br/assets/img/upload/files/manifesta%C3%A7%C3%A3o%20IBDFAM%20Prov_%2063%20
ao%20%20CNJ%20correcao%20Berenice%2002_05_2018.pdf> Acesso em 14/02/2019
89
BARANSKI, Julia. A parentalidade socioafetiva no provimento 63/2017 do CNJ. Consultor Jurídico.
Disponível
em
<https://www.conjur.com.br/2018-jun-19/tribuna-defensoria-parentalidade-socioafetivaprovimento-632017-cnj> Acesso em 19/02/2019
90
INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO DE FAMÍLIA. Manifestação pela manutenção do provimento
63/2017
em
sua
integralidade.
IBDFAM.
Disponível
em
<http://ibdfam.org.br/assets/img/upload/files/manifesta%C3%A7%C3%A3o%20IBDFAM%20Prov_%2063%20
ao%20%20CNJ%20correcao%20Berenice%2002_05_2018.pdf> Acesso em 19/02/2019
46
Em oposição à norma administrativa, alega-se também a sua inconstitucionalidade
formal, tanto objetiva quanto subjetiva. Nesse sentido, o Ministério Público de alguns estados
do Brasil, assim como a Coordenação do Proinfância (Fórum Nacional dos Membros do
Ministério Público da Infância e Adolescência) e o Grupo Nacional de Direitos Humanos
impugnaram o provimento 63 do CNJ, no tocante ao reconhecimento da parentalidade
socioafetiva,
através
de
representações
de
inconstitucionalidade,
investigações
e
recomendações aos oficiais de registro civil, por não concordarem com o afastamento da
atividade jurisdicional no procedimento regulamentado em pauta.
O Ministério Público do estado de Goiás, em março de 2018, encaminhou
representação à Procuradoria Geral da República, arguindo a inconstitucionalidade do
Provimento ao apontar que sua edição ultrapassou as atribuições do CNJ, em afronta a alguns
dispositivos constitucionais. Destacou-se a violação à proteção integral às crianças ao afirmar
que o provimento aborda a situação referente ao reconhecimento de menores de forma
bastante simplificada, o que fere a concepção de que são titulares de direitos especiais 91.
Em abril do mesmo ano, durante o V Congresso Nacional do Proinfância, foi aprovada
a entrega de representação à Procuradoria Geral da República de Ação Direta de
Inconstitucionalidade em face do provimento do CNJ ora discutido, sendo aprovado o
seguinte enunciado:
Enunciado n° 7 - O reconhecimento voluntário da paternidade ou da
maternidade socioafetiva regulado pelos arts. 10 a 15 do Provimento nº
63/2017 da Corregedoria Nacional de Justiça é inconstitucional por violar o
art. 1°, parágrafo único, o art. 2°, o art. 22, I, o art. 103-B, § 4°, I, e § 5º, o
art. 127, “caput”, e o art. 227, “caput” e §§ 5° e 6°, da Constituição
Federal92.
No mesmo sentido do alegado pelo MP de Goiás, a Coordenação do Proinfância
chama atenção para a simplificação excessiva de um procedimento extremamente complexo
do ponto de vista técnico, uma vez que o procedimento exige, tão somente, a declaração de
vontade das partes e a análise de alguns documentos. A preocupação é ratificada no seguinte
trecho:
A maior preocupação com a higidez de títulos de propriedade imobiliária do
que com a situação existencial de crianças e adolescentes representa sinal
91
Assessoria de comunicação do MPGO. Filiação socioafetiva: MP-GO pede questionamento de provimento
da Corregedoria Nacional de Justiça. Disponível em <http://www.mpgo.mp.br/portal/noticia/filiacaosocioafetiva-mp-go-pede-questionamento-de-provimento-da-corregedoria-nacional-de-justica-2#.XGv3uaJKjIU> Acesso em 20/02/2019
92
Fórum Nacional dos Membros do Ministério Público da Infância e Adolescência. V Congresso do Proinfância.
Rio de Janeiro. 2018. Enunciado 7. Disponível em < https://www.proinfancia.net/enunciados> Acesso em
20/02/2019.
47
claro de que ainda se vive, no Brasil, uma realidade marcada pelo
patrimonialismo, herança de um assado colonial, com longo histórico de
violações sistemáticas e institucionalizadas a direitos humanos93.
Faz-se referência ao dispositivo constitucional que fixa a competência privativa da
União para legislar sobre direito civil. A crítica é também dirigida ao caráter normativo
primário do provimento, ao tratar de questão polêmica ainda não regulamentada pela
legislação cível. Afirma, assim, que a edição do provimento foge das atribuições
constitucionais designadas ao CNJ.
Com base nos mesmos motivos apontados na referida representação de
inconstitucionalidade, em julho de 2018, o Ministério Público do Rio Grande do Norte
recomendou aos oficiais de registro civil da cidade de Mossoró que não realizem o
reconhecimento de paternidade ou maternidade socioafetiva em que são partes crianças ou
adolescentes. Segundo o órgão, a medida tem caráter emergencial, dado os efeitos jurídicos
imediatos gerados nas vidas de crianças e adolescentes em decorrência do provimento do
CNJ. 94
No mesmo sentido, o Ministério Público dos estados de Minas Gerais e da Bahia
expediram, respectivamente, as recomendações 003/2018 e 04/2018 com o mesmo objetivo
do não processamento do reconhecimento extrajudicial da parentalidade socioafetiva.
Em reunião com o então corregedor nacional de justiça, ministro Humberto Martins, o
Grupo Nacional de Direitos Humanos, do Conselho Nacional de Procuradores-Gerais do
Ministério Público dos Estados e da União (CNPG), pleiteou a revogação do art. 11 do
provimento 63, dispositivo este que autoriza o reconhecimento de paternidade e maternidade
socioafetivas perante os oficiais de registro civil. Em crítica à norma administrativa, dispõe-se
que a partir do lançamento de um novo sistema nacional de adoção, em que dar-se maior
transparência aos pretendentes à adoção, soa desarrazoada uma norma que autoriza a adoção à
brasileira sem qualquer tipo de controle jurisdicional95.
Há de se ressaltar, no entanto, que a competência para regulamentar a padronização de
certidões de nascimento em todo o território nacional é atribuída ao CNJ pela Constituição
93
Fórum Nacional dos Membros do Ministério Público da Infância e Adolescência. Proposta Coletiva de
Representação
por
Inconstitucionalidade.
Rio
de
Janeiro.
2018.
Disponível
em<https://athenas.mpto.mp.br/athenas/FileUploadController/get_public_file/1c33fcf5606c2b14fab58f7c0c4867
75/> Acesso em 20/02/2019
94
MINISTÉRIO PÚBLICO DO RIO GRANDE DO NORTE. RECOMENDAÇÃO Nº. 0005/2018/12ª
PmJMos.
Mossoró
–
RN.
2018.
Disponível
em
<https://www.mprn.mp.br/portal/files/20180720_RecomendacaoCartoriosMossoro.pdf> Acesso em 27/02/2019
95
MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DA BAHIA. Riscos de processos de paternidade socioafetiva sem
fiscalização
do
MP
são
discutidos
em
reunião
no
CNJ.
Disponível
em
<
https://www.mpba.mp.br/noticia/43990 > Acesso em 27/02/2019
48
Federal e pelo seu Regimento Interno, conforme assevera Tartuce em comentário às críticas
ao provimento96. O texto constitucional no art. 103-B, em seu §4°, confere ao órgão o poder
de expedir atos regulamentares, tendo em vista o controle da atuação administrativa do Poder
Judiciário e de seus órgãos, incluindo os de serviços notariais. De acordo com o art. 8° do
regimento interno do CNJ, é atribuição do corregedor nacional de justiça expedir
recomendações, provimentos, instruções, orientações e outros atos normativos destinados ao
aperfeiçoamento das atividades dos órgãos do Poder Judiciário e de seus serviços auxiliares e
dos serviços notariais e de registro97.
Em discussão no Supremo Tribunal Federal acerca da constitucionalidade do CNJ, em
sede da ADI 3.367, o poder regulamentar do órgão foi ratificado, sobretudo diante da
indicação de que o Conselho reafirma o princípio federativo e não fere a separação de
poderes. Nesse sentido, o voto do relator:
Por outro lado, a competência do Conselho para expedir atos regulamentares
destina-se, por definição mesma de regulamento heterônomo, a fixar
diretrizes para execução dos seus próprios atos, praticados nos limites de
seus poderes constitucionais, como consta, aliás, do art. 103-B, § 4º, I, onde
se lê: “no âmbito de sua competência”. A mesma coisa é de dizer-se a
respeito do poder de iniciativa de propostas ao Congresso Nacional (art. 103B, § 4º, inc. VII) 98.
Ora, o provimento 63 nada mais é do que um ato normativo que aperfeiçoa as
atividades dos serviços notariais e de registro, em obediência ao regimento interno e à
Constituição Federal.
Frise-se que o procedimento de reconhecimento extrajudicial da socioafetividade já
vinha sendo feito em vários estados brasileiros, através de atos normativos expedidos pelas
corregedorias dos tribunais de justiça. O provimento do CNJ veio padronizar o referido
procedimento em todo o território nacional, de acordo com sua competência.
A normatização das atividades notariais e registrais pelo Conselho surge a partir da
necessidade de sua uniformização, aliada à capacidade dos serventuários para absorver
funções antes reservadas estritamente ao judiciário, conforme o seguinte entendimento:
96
TARTUCE, Flávio. Anotações ao provimento 63 do Conselho Nacional de Justiça – Parte II. Migalhas.
Disponível
em:
<https://www.migalhas.com.br/FamiliaeSucessoes/104,MI280973,11049Anotacoes+ao+provimento+63+do+Conselho+Nacional+de+Justica+Parte+II> Acesso em 20/02/2019
97
CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Regimento Interno: Estabelecido pela Resolução nº 67 de
03/03/2009.
Disponível
em
<http://www.cnj.jus.br/images/atos_normativos/resolucao/resolucao_67_03032009_18102018150005.pdf>
Acesso em 21/02/2019
98
PELUSO, Cezar. Supremo Tribunal Federal. Voto do relator. Ação Direta de Inconstitucionalidade n° 3.3671. Brasília. 2005. Disponível em < http://www.stf.jus.br/noticias/imprensa/VotoPelusoADI3367.pdf> Acesso em
21/02/2019
49
Para além das atribuições expressas, aspectos institucionais explicam a
fertilidade normativa sobre o notariado e os registros. Ao lado de um
ambiente propício à uniformização (a atividade é delegada pelo Poder
Judiciário dos estados, com grande discrepância regulatória em cada unidade
da Federação), houve uma espécie de simbiose estrutural: a uma forte
organização e consciência funcional do CNJ juntou-se a crescente
capacidade dos notários e registradores para absorver funções antes
reservadas ao espaço estritamente judicial99.
Ademais, ainda que não exista legislação cível que trate do assunto, o referido ato
regulamentar teve origem para adequar os casos práticos extrajudiciais ao precedente do
Supremo Tribunal Federal, a partir do julgamento do RE 898.060/SC. Diante da omissão do
legislador, o provimento passa a elucidar as repercussões do julgado, de modo a não
prejudicar aqueles que pleiteiam o reconhecimento da socioafetividade em razão da lacuna
legislativa.
Além disso, não há que se falar em simplificação excessiva do referido procedimento,
mas de desburocratização e, sobretudo, o alívio da sobrecarga do Judiciário em transmitir aos
registradores atribuição da qual são plenamente capazes de realizar. Frise-se que o Direito
caminha para a extrajudicialização, tendo em vista procedimentos mais rápidos e efetivos, e
alguns destes já são regulamentados pelo Código de Processo Civil.
Os representantes do Proinfância assinalaram a reserva jurisdicional em matéria de
adoção prevista na Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança, em vigor no
Brasil, e no mesmo sentido, o Estatuto da Criança e do Adolescente ao enunciar que o vínculo
de adoção constitui-se por sentença judicial. Segundo a proposta de representação por
inconstitucionalidade em discussão, a adoção também se enquadra em procedimento apto à
formalização do vínculo de filiação socioafetiva100.
No entanto, como já defendido anteriormente no presente trabalho, a adoção não se
aproxima do procedimento regulamentado pelo provimento em comento, haja vista,
sobretudo, que não existe a destituição do poder familiar ao ser reconhecido o vínculo de
socioafetividade. Ao contrário, uma vez que o ato regulamentar faz expressa menção à
multiparentalidade, o que ocorre é uma ampliação do poder familiar, tendo em vista a maior
proteção do filho a ser reconhecido.
99
KUMPEL, Vitor; BORGARELLI, Bruno. Provimento reaviva debate sobre limites do CNJ em serventias
extrajudiciais. ARPEN Brasil. Disponível em < http://www.arpenbrasil.org.br/artigo.php?id=276> Acesso em
21/02/2019
100
FÓRUM NACIONAL DOS MEMBROS DO MINISTÉRIO PÚBLICO E DA INFÂNCIA. Proposta
Coletiva de representação por inconstitucionalidade. Rio de Janeiro. 2018. Disponível em
<http://blog.proinfancia.net/2018/04/proinfancia-entrega-representacao.html> Acesso em 21/02/2019
50
As garantias e direitos do indivíduo, enquanto filho, são estendidos, como por
exemplo, a pluralidade de pais registrais pode ensejar a percepção de alimentos pelo pai
biológico e pelo socioafetivo, sem quaisquer distinções, como assegurado pela Constituição.
A representação de inconstitucionalidade em comento aduz que o tratamento
isonômico entre os diversos tipos de filiação somente há de ser conferido após a propositura
de ação judicial, com intervenção obrigatória do Ministério Público. No entanto, a referida
proposta não atenta ao fato de que o reconhecimento espontâneo da paternidade biológica,
conforme regulamentado pelo Código Civil e o provimento n° 16/2012 do CNJ101, não
exigem a propositura de demanda judicial, uma vez que basta ao declarado pai a sua
identificação e o reconhecimento inequívoco da paternidade para a formalização do vínculo.
Cumpre salientar que o reconhecimento voluntário da filiação biológica, nos registros
em que a paternidade não fora estabelecida, em qualquer momento e em qualquer esfera, não
necessita de qualquer comprovação, trata-se de ato meramente declaratório.
Ou seja, ao conferir à paternidade socioafetiva esse requisito, observa-se, de imediato,
o tratamento discriminatório entre as referidas modalidades de filiação. E ainda, a
configuração da parentalidade socioafetiva é observada muito antes da propositura da ação
judicial, a partir dos laços de afinidade entre as partes, de tal modo que o seu reconhecimento
extrajudicial é entendido como um ato meramente declaratório de situação fática já existente.
Essa existência prévia ao registro é ratificada pelo conteúdo da Repercussão Geral 622 do
STF, ao mencionar a “paternidade socioafetiva, declarada ou não”.102 Esse fato não pode ser
ignorado diante do tratamento isonômico a ser conferido entre os diferentes tipos de filiação.
Por fim, assinalou-se também a crítica quanto a não verificação efetiva da afetividade
a partir do procedimento disciplinado pelo provimento, sobretudo nos casos em que os filhos
reconhecidos são muito novos, o que pode resultar no risco de desnaturação do conceito de
socioafetividade.
O Provimento 63 do CNJ não se refere, em momento algum, a como deverá
agir o tabelião em caso de recém-nascido, não impondo prazo mínimo para
que pai, mãe e filho socioafetivos realmente experienciem este vínculo
101
Art. 6°: Sem prejuízo das demais modalidades legalmente previstas, o reconhecimento espontâneo de filho
poderá ser feito perante Oficial de Registros de Pessoas Naturais, a qualquer tempo, por escrito particular, que
será arquivado em cartório.
Art. 7°: A averbação do reconhecimento de filho realizado sob a égide do presente Provimento será concretizada
diretamente pelo Oficial da serventia em que lavrado o assento de nascimento, independentemente de
manifestação do Ministério Público ou decisão judicial, mas dependerá de anuência escrita do filho maior, ou, se
menor, da mãe.
102
LIMA, Márcia Fidelis. Os atos registrais da filiação socioafetiva e os avanços do provimento n. 63 do
Conselho Nacional de Justiça – CNJ. In: PEREIRA, Cunha Rodrigo; DIAS, Maria Berenice. Famílias e
sucessões: Polêmicas, tendências e inovações. Belo Horizonte: IBDFAM, 2018. p. 437.
51
parental que será objeto de registro, motivo pelo qual receia-se que o
conceito de socioafetividade possa acabar banalizado103.
Nesse diapasão, o MP do Rio Grande do Norte, quando da recomendação aos oficiais
de registro civil da cidade de Mossoró pela não aplicação da norma do CNJ, aduz, dentre
outros motivos, que foi apurado em inquérito civil o reconhecimento da paternidade
socioafetiva de crianças de idade tenra:
CONSIDERANDO que, em Inquérito Civil instaurado no âmbito da 12ª
Promotoria de Justiça de Mossoró (IC 06.2018.00000711-9) foi constatado
que, após o Provimento 63/17 - CGNJ, já houve, em um dos Cartórios de
Registro de Pessoas Naturais de Mossoró, três casos do reconhecimento
socioafetivo de paternidade ou maternidade de crianças, sendo todas elas de
tenra idade, e, em dois desses feitos administrativos, os petizes tinham
menos de um ano de idade e o reconhecimento se deu por pretendentes
oriundos da região Sudeste do país, que se deslocaram até Mossoró para
realizar o referido ato jurídico104.
No entanto, o provimento é claro quanto à cautela exigida pelo registrador quando da
realização do reconhecimento. Se os casos citados acima pareciam suspeitos, o dever do
serventuário seria abster-se de praticar o ato e encaminhá-lo ao juiz competente, de acordo
com o art. 12. Assim, o que realmente se observa nas situações em comento, é a inobservância
pelo registrador de seu dever funcional, podendo ser apurada sua responsabilidade civil ou
criminal, conforme autoriza a Constituição Federal105.
103
DOMITH, Laira; ASSIS, Ana Cristina. O risco de desnaturação do conceito de socioafetividade pelo
provimento 63 do cnj. Revista de Direito de Família e Sucessão. V.4, n.1, p. 1-20, jan./jun.2018. Disponível
em < www.indexlaw.org/index.php/direitofamilia/article/download/4026/pdf> Acesso em 27/02/2019
104
MINISTÉRIO PÚBLICO DO RIO GRANDE DO NORTE. Recomendação nº. 0005/2018/12ª PmJMos.
Mossoró
–
RN.
2018.
Disponível
em
<https://www.mprn.mp.br/portal/files/20180720_RecomendacaoCartoriosMossoro.pdf> Acesso em 27/02/2019
105
Art. 236. (...)
§1° Lei regulará as atividades, disciplinará a responsabilidade civil e criminal dos notários, dos oficiais de
registro e de seus prepostos, e definirá a fiscalização de seus atos pelo Poder Judiciário.
52
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
As mudanças vivenciadas pelo Direito de Família a partir da constitucionalização da
sua proteção integral, da valorização do próprio indivíduo em razão da observância da
dignidade humana em detrimento da objetificação do casamento, da filiação, do caráter
patrimonial da família, da vinculação religiosa de seus efeitos, permitiram o reconhecimento
da afetividade como valor jurídico e como principal norteador das interações familiares.
Nesse diapasão, o texto constitucional extirpa todo e qualquer tratamento
discriminatório relacionado aos filhos. Não há mais que diferenciar os legítimos dos
ilegítimos uma vez que todos possuem os mesmos direitos e deveres.
Acompanhando as mudanças sociais pautadas na diversidade de interações,
relacionamentos e arranjos familiares, o ordenamento jurídico brasileiro passa a contemplar a
multiparentalidade, sobretudo por tratar-se da realidade fática vivenciada por vários
indivíduos. A tese de que a parentalidade socioafetiva deve ser privilegiada em detrimento da
biológica perde o seu sentido, tendo em vista, principalmente, que uma não exclui a outra e,
mediante a observação do melhor interesse da criança e do adolescente, a convivência
pacífica e harmoniosa de ambas é a melhor alternativa para um ambiente familiar equilibrado.
A jurisprudência já caminhava no sentido do reconhecimento da multiparentalidade,
até que o Supremo Tribunal Federal fixou tese no sentido de admitir a coexistência da filiação
socioafetiva e biológica, privilegiando, portanto, todos os aspectos da vida do indivíduo.
Ademais, uma das grandes contribuições da referida decisão da Suprema Corte foi a
consolidação da posição jurídica de que a socioafetividade constitui forma de parentesco civil.
No entanto, há de se concluir que esta não é uma verdade absoluta, ou seja, nem
sempre deve ser reconhecida a coexistência de ambos os vínculos, uma vez que o principal
objetivo para tanto é o melhor interesse da criança. Ademais, conforme entendimentos
doutrinários e jurisprudenciais, devem ser eliminadas quaisquer demandas com interesses
meramente patrimoniais. Frise-se que a melhor alternativa sempre será a convivência pacífica
e harmoniosa dentro do âmago familiar.
Eleva-se, então, a importância da parentalidade socioafetiva, ainda que não
regulamentada pela codificação civil. A configuração da chamada posse do estado de filho é
elemento essencial para o seu reconhecimento judicial a partir do qual, começam a surtir os
efeitos relativos à filiação, tais quais os sucessórios, previdenciários e os demais que podem
surgir em vários campos do Direito.
53
Uma das principais consequências decorrentes do reconhecimento da parentalidade
socioafetiva é observada no assentamento ou averbação da filiação no registro civil do filho
afetivo o que permite maior publicidade para os atos da vida civil. O Código Civil disciplina
as hipóteses do reconhecimento judicial e extrajudicial do reconhecimento de filhos havidos
fora da constância do matrimônio. Diante da premissa da vedação ao tratamento
discriminatório entre os filhos exposto na Constituição Federal, há de se admitir também a
investigação de paternidade socioafetiva. Contemplando, inclusive, a multiparentalidade,
tendo em vista que, diante do referido ato registral do indivíduo, faz-se necessária a maior
aproximação com a realidade fática possível, honrando todos os aspectos de seu íntimo e sua
personalidade.
Portanto, no âmbito judicial, o filho interessado no reconhecimento da paternidade
socioafetiva deverá ingressar com ação declaratória de paternidade ou ação de investigação de
paternidade e, a partir dessas, pleitear pela procedência de seu reconhecimento e consequente
averbação no registro civil. Diante disso, todos os efeitos decorrentes da filiação serão
legitimamente observados.
Ocorre que, em se tratando de reconhecimento voluntário da paternidade socioafetiva,
a via judicial acaba por ser demasiadamente burocrática, o que resulta numa demanda maior
de tempo. Além disso, a produção de provas do referido processo pode ser um problema para
as partes, uma vez que o vínculo afetivo se traduz no comportamento subjetivo, difícil,
portanto, de ser retratado através de documentos ou outros meios probatórios. Somado a isso,
é fato que o acesso ao Judiciário ainda é difícil para as camadas mais pobres da população.
Nesse contexto, há de se ressaltar o movimento de desjudicialização pelo qual passa o
Direito brasileiro, sobretudo após a vigência do Código de Processo Civil de 2015 que
privilegiou em seu texto os meios alternativos de solução de demandas.
A partir disso, surge a discussão acerca da viabilização do reconhecimento
extrajudicial da parentalidade socioafetiva, considerando, inclusive, que o reconhecimento
voluntário de paternidade biológica já podia ser feito diretamente perante os oficiais de
registro civil. Uma vez observada a vedação ao tratamento discriminatório, não deve subsistir
diferença quanto ao assunto entre ambas. Ademais, há de ressaltar a necessidade de
averbação, em registro público, dos atos judiciais ou extrajudiciais que declararem ou
reconhecerem a filiação, conforme determina o Código Civil.
Diante disso, e a partir da constatação de que várias corregedorias dos Tribunais de
Justiça de diversos estados do país já editavam provimentos no sentido da possibilidade do
reconhecimento da paternidade socioafetiva pela via extrajudicial, observa-se a necessidade
54
de regulamentação da matéria em âmbito nacional, tendo em vista a padronização do
tratamento jurídico conferido ao procedimento.
Com a edição do Provimento n. 63//2017 do CNJ, o reconhecimento da parentalidade
socioafetiva diretamente perante os oficiais de registro civil foi autorizado em todo o território
nacional. Admitiu também o registro simultâneo de mais de um pai ou mãe, o que viabiliza a
multiparentalidade.
Além disso, o provimento se revela significativo ao ter como objetivo conferir
segurança jurídica à paternidade ou à maternidade socioafetiva estabelecida, inclusive no que
diz respeito a aspectos sucessórios e patrimoniais.
O oficial de registro civil, nesse sentido, age conforme suas atribuições ao declarar
formalmente situação fática já existente. O provimento ratificou situação jurídica amplamente
reconhecida pela decisão do STF quanto à multiparentalidade e pelas práticas consolidadas
em Tribunais de Justiça de vários estados.
Em resposta ao temor quanto à eventual insegurança jurídica que o procedimento
poderia revelar, por afastar a demanda do crivo jurisdicional, alegada, em sua maioria pelos
representantes do Ministério Público de alguns estados brasileiros, o provimento exige uma
série de requisitos para o procedimento do reconhecimento extrajudicial da socioafetividade.
Com disposições similares às das regras de adoção, determina a irrevogabilidade do ato, bem
como alerta para uma atuação prudente do registrador, que deve sempre fazer uma análise
atenciosa de cada caso individualmente, sobretudo para evitar eventuais fraudes.
Ademais, a atividade jurisdicional não foi completamente afastada diante do referido
procedimento, uma vez que a proteção integral da criança e adolescente deve sempre ser
observada com prioridade, de modo que, ao deparar com uma situação aparentemente
duvidosa quanto à configuração da posse do estado de filho, é dever do registrador, segundo
determinação do provimento, o encaminhamento do caso ao juiz competente. Ressalte-se que,
havendo negligência por parte do oficial, este poderá responder civil ou criminalmente,
conforme disposições constitucionais.
Ao editar o referido provimento, o Conselho Nacional de Justiça agiu conforme suas
atribuições, dentre as quais a competência para regulamentar a padronização de certidões de
nascimento em todo o território nacional conforme a Constituição Federal e seu Regimento
Interno. Há de se concluir, portanto, que não existiram vícios quanto à inconstitucionalidade
formal subjetiva, uma vez que o CNJ atuou dentro de sua competência quando da edição do
ato normativo.
55
A referida norma administrativa revela-se de suma importância uma vez que supre
lacuna legislativa referente à regulamentação do tema, sobretudo após a decisão do Supremo
Tribunal Federal que reconheceu a viabilidade da multiparentalidade, legitimando-a e
inserindo-a, de fato, no ordenamento jurídico brasileiro.
Ademais, o provimento finalmente proporciona o tratamento isonômico exigido por
comando constitucional, uma vez que, no ato do reconhecimento voluntário de paternidade
biológica, não são exigidas quaisquer comprovações, sendo realizado através de mera
declaração. Não poderia ser diferente, portanto, quando a origem da filiação é socioafetiva.
56
REFERÊNCIAS
ASSESSORIA DE COMUNICAÇÃO DO MPGO. Filiação socioafetiva: MP-GO pede
questionamento de provimento da Corregedoria Nacional de Justiça. Disponível em
<http://www.mpgo.mp.br/portal/noticia/filiacao-socioafetiva-mp-go-pede-questionamento-deprovimento-da-corregedoria-nacional-de-justica--2#.XGv3uaJKjIU> Acesso em 20/02/2019
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