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Paisagem, um espaço de habitar: notas pessoais de uma aula de Aurora Carapinha.
1. Como nos diz Simon Schama, a paisagem para além de ser um amontoado de pedras ou
um conjunto de rochas, é também um amontoado de memórias.1 Para Rute Matos, Schama
“(...) defende um modo de olhar, de redescobrir o que já possuímos, mas que, de alguma
forma, se escapa ao nosso reconhecimento e apreciação para, deste modo, apresentar não
uma explicação do que perdemos mas sim do que ainda podemos ter. Para isto o autor
selecciona três sistemas constituintes da paisagem: a mata, a água e a rocha (geologia) e,
através deles, procura desvendar o seu conteúdo mítico, indo de um lugar para outro, de uma
época para outra, através de transições planeadas, onde percebemos o que se mantém
inalterado ou com a mínima transformação, o que surge de novo e o que desaparece,
impelindo-nos a encarar velhos cenários com um novo olhar e a reconhecer a quantidade de
memória acumulada que está presente na paisagem.”2
A Paisagem é pois feita desta construção. A paisagem tem por isso um valor identitário. É
irrepetível, porque só existe nesta relação intima entre as condições geográficas, ecológicas e
o povo que as interpretou e as transformou. Cada vez que fazemos um atentado na paisagem,
ele tem repercussões ao nível ecológico, mas também ao nível cultural e ao nível da nossa
identidade, porque a paisagem é um espaço de habitar. Para Rute Matos, “A paisagem é uma
construção resultante de dinâmicas culturais, sociais e económicas de carácter colectivo,
resultado formal de um conjunto de factores e processos interactivos, quer naturais –
directamente relacionados com fenómenos e valores biológicos, ecológicos ou ambientais,
presentes em espaços intervencionados pelo homem – quer culturais – referentes aos valores
formais que num dado momento exprimem a herança que representa a natureza, a tradição
ou o progresso enquanto testemunho da acção humana.”3
Por isso mesmo, a paisagem é objecto de interesse de vários campos do conhecimento. Para
o arquitecto, o valor da paisagem é matéria de trabalho pelas diversas possibilidades de
reflexão sobre a sua acção no espaço, que no entanto, vão muito para além de um conjunto
de questões formais e visuais essenciais à caracterização do lugar. Para muitos, o carácter do
lugar é uma relação afectiva com o mesmo, transcrita em avaliações subjectivas de teor mais
ou menos poético, que depois se transcrevem em frases poéticas. Contudo, o carácter do
lugar não se pode resumir a um conjunto de questões formais e visuais. O carácter do lugar
tem que ser a soma das questões visuais, que por sua vez são resultados de um conjunto de
outras relações. O perigo desta valorização poética da imagem, sem compreendermos a
complexidade do conjunto de todas as relações, poderá implicar tirar partido das formas mas
não do carácter do lugar.
2. Uma velha dicotomia que o tempo tem atenuado, leva alguns autores a diferenciar a
paisagem em duas realidades distintas: paisagem natural e paisagem cultural. Outra das das
discussões actualmente aceite como ultrapassada, mas que durante muito tempo dividiu
quem trabalha o espaço de habitar, é separação entre paisagem rural e paisagem urbana. A
1
Simon Schama, Paisagem e memória. São Paulo, Companhia das Letras, 1996.
2
Rute Matos, A Reinvenção da Multifuncionalidade da Paisagem em Espaço Urbano - Reflexões, Tese de
Doutoramento. Évora, Universidade de Évora, 2010, p. 149.
3
idem, p. 49.
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paisagem é só uma, e transforma-se em rural, em industrial, em urbana, conforme as
necessidades do homem. Não há várias paisagens. Há apenas uma, que é contínua, mas que
se vai transformando, uma vez que não se podem estabelecer limites entre estas diferentes
realidades, dada a sua estreita relação.
Viver bem a cidade não é uma preocupação da nossa história recente, mas uma preocupação
ancestral, quer no oriente quer no ocidente. A urbanidade, entra na preocupação da discussão
da cidade, como afirma Matos, citando Mumford, “bem antes da formação da cidade industrial
já a noção de viver para lá das complexidades da civilização era atractiva, tal como o
demonstram as villae romanas e, posteriormente, as renascentistas.”4 Mas, é com a visão das
utopias do século XIX, ainda segundo a mesma autora, que a preocupação da urbanidade se
desenvolve tal como hoje a conhecemos, “(...) não tanto no pressuposto de salvar o espaço
urbano mas sim a cidade enquanto comunidade, tendo apresentado novas fórmulas de
convivência que exigiam uma integração do espaço agrícola com o espaço urbano.”5
3. As questões levantadas no final do século XIX mas sobretudo no século XX sobre a relação
entre a cidade e o campo, são consequência directa da ruptura entre estas duas realidades.6
Ou seja, a cidade e o campo sempre foram uma realidade una, na sua relação: sempre uma
precisou da outra numa grande relação de inter-penetração. Mas este sistema depende da
qualidade da intervenção do homem para manter o seu equilíbrio, ou seja, do conhecimento e
valorização da ecologia. As rupturas surgem pela violentação dos processos naturais que
quebram equilíbrio, que no seu limite podem conduzir ao fim do planeta. A este propósito,
Rute Matos cita aquilo que Caldeira Cabral classificava de “trabalhar com a Natureza, ou
contra ela.”7
Um jardim, desenvolve-se num habitat, é uma criação artística. A paisagem, é um objecto
estético. A paisagem é espaço de habitar. A arquitectura da paisagem, envolve uma
construção com a natureza, e por isso precisa de tempo.
“A paisagem revela-se então expressão de existência e forma de representação da relação
que o homem estabeleceu com a natureza, transformando-a em formas que respondem às
várias funcionalidades da paisagem - habitar, cultivar, recolher, fruir, conservar em bases
sustentáveis pela economia e ecologia dos processos. Este entendimento da paisagem
determina, que a compreensão, a caracterização, a avaliação inter-relacional dos vários
sistemas que desenham a paisagem sejam um processo metodológico recorrente na prática
da arquitectura paisagista em Portugal, motivando também que a proposta se ofereça quase
como uma evidência do lugar pré- existente.”8
4
Rute Matos, A Reinvenção da Multifuncionalidade da Paisagem em Espaço Urbano - Reflexões, op. cit.,
p. 109.
5
idem, p. 110.
6
A construção de jardins, surge sempre quando há rupturas de urbanidade.
7
Rute Matos, A Reinvenção da Multifuncionalidade da Paisagem em Espaço Urbano - Reflexões, op. cit.,
p. 48.
8
Rute Matos, “A Reinvenção da Multifuncionalidade da Paisagem em Espaço Urbano - Reflexões”, Tese
de Doutoramento, Universidade de Évora, Évora, 2010, p. 95.
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4. Numa visão muito cartesiana, podemos catalogar três momentos na teorização da
construção do conceito da paisagem assentes em três idades: a idade do camponês, com a
construção da paisagem definida pelos campesinos; uma outra, mais elitista e mais
duradoura, identificada com a ideia da arte; finalmente a idade da paisagem que vai para além
das significações estéticas, definida pelo conhecimento de quem a olha enquanto geógrafo,
ou arquitecto, ou engenheiros.
Podemos dizer que nos últimos anos, os estudos da paisagem se dividem entre os que
reflectem sobre a paisagem enquanto representação e os que analisam a paisagem enquanto
elemento identitário. A visão expressa por Jean-Marc Besse no seu livro “Voir la terre, six
essais sur le paysage et la géographie” segue este segundo caminho, numa visão muito
bachelariana, que a nós, enquanto arquitectos, nos interessa particularmente.
Segundo Edir Pereira, a questão colocada por Jean-Marc Besse no seu livro “Voir La Terre”, e
que nos abre a possibilidade de pensar a paisagem para além da história do conceito, “(...) é a
emergência da experiência, da consciência e do sentimento da paisagem na modernidade.”9
Besse, reflecte ao longo de seis ensaios, sobre a nossa existência enquanto sujeitos da
paisagem. A nossa relação com o espaço numa experiência paisagística, é abordado ao longo
do primeiro ensaio, numa tensão que opõe um sentido interior - que desqualifica o espaço - e
um sentido exterior - que valoriza a posição e o deslocamento no espaço.
No segundo ensaio, este autor reflecte sobre a Terra como paisagem, para demonstrar como
antes de adquirir uma significação puramente estética ligada ao campo das artes pela pintura,
a paisagem era uma experiência territorial e geográfica. Para Besse, o que provoca esta
mudança de interpretar e ver o mundo, neste início de século XVI, é o grande deslocamento
provocado pelas grandes navegações e descobrimentos.
O terceiro ensaio explora a concepção de paisagem do século XVIII a partir de uma visão
romântica. Segundo Pereira, “Mostra a relação entre um mundo já representado (pelos textos
e pelas pinturas, a cultura herdada) e o mundo como objecto visual - a paisagem agora não
apenas como um meio a partir do qual se produz uma imagem do mundo, o mundo como
imagem dada a um observador distanciado e deslocado, mas também como imagem de uma
representação.”10 Reflecte a experiência paisagística como condição de uma vivência
efectivamente integral do mundo.
Jean-Marc Besse, observa no quarto ensaio que as significações da paisagem vão para além
das significações estéticas, enquanto produção cultural. Além disso, relaciona-as com a
particularidade de quem as olha: o geógrafo, o cientista, o engenheiro, o arquitecto, etc. Na
leitura de Pereira, sobre o pensamento de Besse, “O que não é apenas uma questão
subjectiva, mas antropológica, já que o olhar desses sujeitos representa saberes instituídos. A
paisagem não é apenas objecto de uma contemplação e avaliação estética, mas o seu valor
reside no facto de ser representativa da acção humana e, mais ainda, do desenvolvimento de
uma cultura do olhar.”11 Esta separação da condição subjectiva e objectiva, (ou seja, da
9
Edir Pereira, “Resenha - Ver a Terra: Seis Ensaios Sobre a Paisagem e a Geografia” in GEOgrafia VIII(15),
Rio de Janeiro, Universidade Federal Fluminense, 2006, p. 143.
10
Edir Pereira, “Resenha - Ver a Terra: Seis Ensaios Sobre a Paisagem e a Geografia”, op. cit., p. 145.
11
Edir Pereira, “Resenha - Ver a Terra: Seis Ensaios Sobre a Paisagem e a Geografia”, op. cit., p. 146.
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estética e da ciência) no conhecimento da paisagem é uma atitude modernista. É a paisagem
de que nos fala Álvaro Domingues, “Mais do que uma morfologia, ou de uma tipificação de
morfologias, as paisagens geográficas continham uma espessura antropológica, uma memória
reveladora de diversas sedimentações ou marcas deixadas por sucessivas transformações. As
paisagens eram património cultural, elemento imprescindível da identidade de um povo ou até
de um modelo de coesão do Estado-Nação. De resto, ideologicamente, as regiões – áreas de
extensão de unidades e padrões de paisagem –, legitimavam as teses orgânicas do equilíbrio
da nação na sua diversidade e relação entre ambientes («meios geográficos») e «modos de
vida», e o quadro estável do mosaico das paisagens-tipo de cada região.”12
O quinto ensaio, ainda segundo Pereira, analisa a relação entre a geografia, a paisagem e a
fenomenologia. A fenomenologia filosófica distingue geografia e paisagem, ficando a primeira
do lado da percepção e a segunda do lado do sentir. O tema é retomado no sexto e último
ensaio, ainda que olhado de uma outra perspectiva: a paisagem como sentido de
responsabilidade ética de habitar a terra.
Mas começando pela “primeira idade” de facto, o camponês é o grande responsável pelo
desenho da paisagem. O caso europeu em geral, e o português em particular, são disso um
exemplar testemunho. O desenho de paisagem desenvolve-se nestes “pequenos laboratórios”
que o homem funda: a pequena horta, o horto, numa manifestação da vontade de transformar
o espaço que o recebia.
Seguidamente chega a idade do artista, que tanto vai do jardineiro ao pintor, e que sobrepõe à
idade anterior do camponês uma leitura estética, ou seja, a afirmação da dicotomia ócio / não
ócio. De facto, a visão esteta só poderia vir de quem não produzia, não porque o camponês
não a tivesse, mas porque exige um certo afastamento para a fazer. Neste processo a pintura
exerce um papel fundamental, muito relacionado com forma de pensar e de estar. Mas esta
apreciação estética da natureza, está muito ligada ao elogio do belo natural.
Mas o que é a natureza? Para Rosário Assunto, a natureza é tudo, é qualquer coisa que não
conseguimos abarcar na nossa condição humana. Mas há uma relação afectiva do homem
com a natureza. Não é por acaso que as primeiras representações da paisagem são
emolduradas pelo vão de uma janela; porque segundo Assunto, a paisagem é o excerto da
natureza que o homem consegue compreender. O pensamento deste autor recorda-nos a
importância de restabelecermos uma ordem de continuidade entre o ser humano e o ser
natural.
Assunto propôs para "um problema que parecia definitivamente liquidado, o problema de uma
qualificação estética da natureza a procurar na natureza mesma - ou melhor, na natureza de
que fazemos experiência."13 Segundo Adriana Serrão, a densidade intrínseca da paisagem
vem acentuada por duas linhas fundamentais: por um lado, a qualidade estética deve ser
procurada "na natureza mesma", como qualidade própria e não projectada de fora; como
segundo elemento, na natureza que experienciamos, porque "vivemos nela", num habitar ou
12
Álvaro Domingues, “A Paisagem Revisitada” in Revista Finisterra XXXVI(72). Lisboa, Centro de Estudos
Geográficos - Faculdade de Letras, 2001, p. 55.
13
Rosario Assunto, “Il Paesaggio e l’estetica” in Adriana Serrão, “Filosofia e Paisagem - Aproximações a
uma Categoria Estética” in Philosophica (23), Lisboa, Departamento de Filosofia da Faculdade de Letras Universidade de Lisboa, p. 92.
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vivenciar directo. Como natureza estética directamente experienciada, presença e não
representação, a paisagem apresenta-se assim segundo uma dupla referência: ao ser mesmo
da natureza e ao nosso modo de a experienciar. Implica o nosso estar-em nela: é sempre a
"experiência de nós vivendo nela".14
Assunto avança ainda com o conceito de "finitude aberta" (finitezza aperta), isto é, como um
espaço que reúne simultaneamente três dimensões: a finitude, a abertura e a exterioridade. Ao
mesmo tempo delimitada, aberta e exterior, uma paisagem é um espaço especial onde
emerge uma "meta-espacialidade do espaço" e onde se dá também como que uma
"cristalização" do próprio tempo.
5. Estamos na terceira idade. Pensar o lugar e a sua história, procurando remover as
sucessivas camadas do tempo que se sobrepõem umas às outras, é um acto fundamental no
projecto. Longe de ser uma análise historicista, é um dos muitos instrumentos que
manipulamos enquanto arquitectos para entender o lugar. Ou como lhe chama Alexandre
Alves Costa, são os nossos “instrumentos de reconhecimento do real”15 para perceber a
história e o passar do tempo. A arquitectura, vista também como construção da paisagem,
acaba quase sempre por ser um equilíbrio entra a Natureza e tudo o resto que o tempo ainda
não comprometeu, num princípio de continuidade, mais ou menos desinibido, num processo
baseado no espírito do lugar. E a memória é indissociável desta caracterização do lugar.
14
Adriana Serrão, “Filosofia e Paisagem - Aproximações a uma Categoria Estética” in Philosophica (23),
Lisboa, Departamento de Filosofia da Faculdade de Letras - Universidade de Lisboa, p. 92.
15
Alexandre Alves Costa, “Musealização do Sítio de Castelo Velho (resumo)” in Susana Oliveira Jorge
(coord.), Recintos Murados da Pré-História Recente. Porto-Coimbra, Faculdade de Letras da Universidade
do Porto, 2003, p. 67.
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Referências
ASSUNTO, Rosario, Il Paesaggio e l’estetica. Palermo: Edizioni Novecento, 1994.
COSTA, Alexandre Alves, “Musealização do Sítio de Castelo Velho (resumo)” in Susana Oliveira
Jorge (coord.), Recintos Murados da Pré-História Recente. Porto-Coimbra: Faculdade de
Letras da Universidade do Porto, 2003, p. 67-78..
DOMINGUES, Álvaro, “A Paisagem Revisitada” in Revista Finisterra XXXVI(72). Lisboa: Centro
de Estudos Geográficos - Faculdade de Letras, 2001, p. 55-66.
MATOS, Rute, A Reinvenção da Multifuncionalidade da Paisagem em Espaço Urbano Reflexões, Tese de Doutoramento. Évora: Universidade de Évora, 2010.
PEREIRA, Edir, “Resenha - Ver a Terra: Seis Ensaios Sobre a Paisagem e a Geografia” in
GEOgrafia, ano VIII(15). Rio de Janeiro, Universidade Federal Fluminense, 2006, p. 143-149.
SERRÃO, Adriana, “Filosofia e Paisagem - Aproximações a uma Categoria Estética” in
Philosophica (23). Lisboa: Departamento de Filosofia da Faculdade de Letras - Universidade de
Lisboa, p. 87–102.
SCHAMA, Simon, Paisagem e memória. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
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