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MICRO-RESISTÊNCIAS (2008-2024) PODE A FOTOGRAFIA CONSTRUIR FUTURO PARA UM CORPO? * Luana Assis Navarro1 Resumo: Este memorial é uma versão de uma leitura performativa, apresentada no Seminário Avançado Espaço(s): trânsitos entre o específico e o amplo, do PPGARTES da UNESPAR, em maio de 2022. Articulando anotações visuais e textuais de cadernos de processo, o texto apresenta as questões que movem a série fotográfica Micro-resistências, em desenvolvimento desde 2008, na qual instauro meu corpo nu em diversas situações de paisagens e arquiteturas. Podendo também ser lido como um trabalho de fotoperformance, nas imagens mantenho-me em pé, corpo ereto e encaro a câmera, tensiono a relação de um corpo lido como “feminino” e por isso, supostamente vulnerável em relação ao espaço público em que está situado. Apesar disso, não há fragilidade na ação, mas um estar consciente e em alguma medida afrontoso. O nu que proponho não deseja seduzir o espectador, mas justamente desfazer-se de um modo de representação romantizado e sexualizado. A partir de Britto e Jacques (2008), penso ainda a instauração deste corpo em espaços desencarnados. Depois de 16 anos, o trabalho incorpora a passagem do tempo que é perceptível na transformação da minha materialidade, que atravessa e é atravessada pelos espaços e lugares. Palavras-chave: Corpo; Fotografia; Leitura performativa; Paisagem. 1 Luana Navarro é artista visual e docente na PUC/PR, nos cursos de artes e comunicação. Desenvolve projetos com fotografia, vídeo, performance, leituras e textos. Possui mestrado em Artes Visuais pela Universidade do Estado de Santa Catarina e especialização em História da Arte Moderna e Contemporânea pela Escola de Música e Belas Artes do Paraná. Sua produção artística recente parte de contextos políticos específicos e propõe um jogo a partir da imagem da artista e as possibilidades de deslocamento de discursos e presenças. Tem especial interesse pela palavra, a leitura em voz alta e a imagem do corpo como dispositivo de criação. Em 2022, foi uma das artistas selecionadas no XI Salão Victor Meirelles, que aconteceu no MASC, em Florianópolis. Em 2023 realizou a exposição individual PROCUREM-SE, no Museu Paranaense, em Curitiba. Contato: luananavarro85@gmail.com / Curitiba/PR-Brasil Revista O Mosaico | vol.18 no.1 | Número 26 jan-jun-2024 | ISSN: 1980-5071 | Curitiba 1 MICRO-RESISTANCES (2008-2024) CAN PHOTOGRAPHY BUILD A FUTURE FOR A BODY? Abstract: This memorial is a version of a performative reading, presented at the Advanced Seminar Spaces: transits between the specific and the broad, at PPGARTES at UNESPAR, in May 2022. Articulating visual and textual notes from process notebooks, the text presents the questions that drive the photographic series Micro-resistances, in development since 2008, in which I place my naked body in different situations of landscapes and architecture. Also possible to be read as a work of photoperformance, in the images I remain standing, body erect and face the camera, tensioning the relationship of a body read as “feminine” and therefore, supposedly vulnerable in relation to the public space in which it is located. Despite this, there is no weakness in the action, but a conscious and to some extent affronting nature. The nude I propose does not wish to seduce the viewer, but precisely to get rid of a romanticized and sexualized mode of representation. Based on Britto and Jacques (2008), I also think about the establishment of this body in disembodied spaces. After 16 years, the work incorporates the passage of time that is noticeable in the transformation of my materiality, which crosses and is crossed by spaces and places. Keywords: Body; Photography; Landscape. Revista O Mosaico | vol.18 no.1 | Número 26 jan-jun-2024 | ISSN: 1980-5071 | Curitiba 2 Nas últimas semanas revirei arquivos, abri dezenas de DVD´s e CD´s com arquivos de fotografias, alguns não funcionavam mais. Pânico. Encontrei negativos não digitalizados. Encontrei coisas que eu não procurava. E, foi bom. Em geral, ao falar de um trabalho, falamos do que foi feito. Os dias que atravessei, no entanto, me apontaram a possibilidade de pensar e falar também a partir da operação do que supostamente não foi feito, e pensar de que forma, determinados lapsos na constância de um projeto como este, que completa 16 anos, podem articular também alguns sentidos possíveis. Figura 1 Fonte: Acervo da artista. Marialva, 1988 Revista O Mosaico | vol.18 no.1 | Número 26 jan-jun-2024 | ISSN: 1980-5071 | Curitiba 3 1 Nota suspensa no meio da página é a voz entre a pele e o osso que a movimenta, que a mantém de pé. o dedinho do pé esquerdo agarra o chão. o dedinho do pé direito também agarra o chão. o tronco vacila. os olhos insistem abertos. numa altura média de 1m e 55 cm o olha não oscila. a voz raspa o músculo. o pé direito é projetado para trás com a parte de cima voltada para baixo, o chão empurra o pé o pé empurra o chão. o chão inicia o toque de ossinho por ossinho. metatarso. tarso. tíbia. patela invade chão. com voz entre pele e osso produz quedas. de tanto falar sobre aquilo que fazia descobriu que interessante era o que não via, o que não tocava, o que não lia. descobriu que fazia o que fazia para entender as coisas que não fazia. Revista O Mosaico | vol.18 no.1 | Número 26 jan-jun-2024 | ISSN: 1980-5071 | Curitiba 4 Estou e não estou nas imagens. Pelo Whatsapp, recebo em 2016 uma fotografia. Setembro de 1988. Um tio anexa a mensagem: encontrei essa foto dos tempos em que visitava vocês. Eu não voltaria a falar com esse tio, tretas no grupo da família, compartilhamento da imagem da ex-presidenta Dilma Roussef, em um adesivo colado no tanque de abastecimento de gasolina de um carro branco, Dilma aparece de pernas abertas, a mangueira de abastecimento é inserida no espaço da sua vulva. Emojis de bombas, fogo e risadas. Em qual imagem do seu corpo está você? Seu corpo está aí, onde você está agora? O corpo que você constrói, está aqui agora? Em qual imagem do corpo está você? Em 2008, inicio a série Micro-Resistências. Figura 2 - Micro-Resistências, 2008 Fonte: Acervo da artista Procedimento simples: me colocar nua diante da câmera, registrar. Neste período, em 2008, eu vivia em um grande prédio na Praça Santos Andrade, imersa num vibrar urbano antes desconhecido. Aos sábados pela manhã, barulho de manifestações de professores da rede pública, à tarde, maracatu. Me adaptando a uma constituição de arquitetura distinta do que me Revista O Mosaico | vol.18 no.1 | Número 26 jan-jun-2024 | ISSN: 1980-5071 | Curitiba 5 atravessara até então. De onde eu venho não há prédios altos, grandes corredores, múltiplas janelas, perda do horizonte, elevadores subindo e descendo corpos em silêncio. Me encontro em espaços sem identidades definidas, entre o público e o privado, faço uma imagem na porta de entrada do apartamento, dou um passo para fora, dois, três, estou no corredor. Me fixo em estacionamentos, me fixo onde a presença humana não é evidente. Fabiana Britto e Paola Berenstein Jacques (2008, p.80), chamam estes espaços de: espaços desencarnados. Supostos novos espaços, mais privatizados e não apropriados pelos seus habitantes. Frios, assépticos, de trânsito, e fluxo previsto no cotidiano, espaços entre o que se nomeia pelo afeto e o que se nomeia pela funcionalidade. Em certo sentido, a primeira etapa de Micro-Resistências, que considero ir até 2011, enfatiza minha relação com este tipo de ambiente, desvelando uma possível corpografia urbana. É a partir da repetição do corpo que passamos a olhar para estes locais e que passo a olhar para os espaços. Essa massa viva, no centro da fotografia, transforma ambientes em cenários, não há aparente memória local, não há aparente memória no corpo visível relacionada as texturas, linhas, entradas, corrimões, botões, pedregulhos. Cada coisa está em um suposto lugar, corpo – coisa – arquitetura – coisa. Cada materialidade distanciada do que toca e daquilo que é tocado. Revista O Mosaico | vol.18 no.1 | Número 26 jan-jun-2024 | ISSN: 1980-5071 | Curitiba 6 Figura 3 Fonte: Acervo da artista Revista O Mosaico | vol.18 no.1 | Número 26 jan-jun-2024 | ISSN: 1980-5071 | Curitiba 7 Que corpo é esse que se mostra? A partir de agora, substituirei a palavra corpo por: punhado de terra caixa de ressonância invólucro de palavras massa vibrante vazio sustentado Revista O Mosaico | vol.18 no.1 | Número 26 jan-jun-2024 | ISSN: 1980-5071 | Curitiba 8 A pose, invólucro de palavras, braços juntos ao tronco, é o indício da tentativa de afirmação de um punhado de terra que pode ser enfrentamento e assumir a capacidade de se opor ao ambiente, criando uma narrativa que revela uma insistência e persistência em existir. Esta caixa de ressonância não quer seduzir, segue como massa vibrante, sólida, fincada no espaço. O que se mostra não se erotiza. Será? Repetir a verticalidade, estar simplesmente em pé, em condição de prémovimento, o que pode anunciar esta ação? Hubert Godard (1999 ) nos diz que, estar de pé, é uma atitude em relação ao peso, à gravidade, sustentar-se pelo desejo de estar. Desejo estar. A repetição da verticalidade dessa caixa de ressonância me lança ao encontro das estátuas vivas, seres que habitam a cidade e podem ser vistos em semáforos, nas esquinas, na Rua XV. Encarnando precariamente figuras como um homem prateado, um anjo com asas tortas, um cowboy dourado, estas performances urbanas agenciam a estaticidade como uma espécie de aprisionamento, movem-se a partir de uma gorjeta, e no movimento geralmente não há som. Assim, sustenta-se ali, no meio da cidade, silêncio, o vazio da boca fechada. Micro-resistências talvez seja uma coleção de silêncios e de vazios da boca fechada. Que ruídos, ou vibrações menores uma imagem é capaz de abrigar? Percorrer a cidade buscando identificar possíveis cenários e o que pode se estabelecer em fotografias me leva a outras paisagens, naturais, construídas, em abandono, em processo de algo. Me torno algo que passa a buscar lugares que espelham um esvaziamento interno. Corpo oco? Prédio oco? Casa oca? A pergunta: o que é resistência? gera movimento e deslocamento, ela não está fora de mim, ela é e faz-me um ser que se dedica a experimentar ambientes, tensionar paisagens. Um invólucro de palavras esvaziado, mas movido pelo desejo de um estado. Entre identificar um possível enquadramento, ajustar a câmera, fotometrar, tirar a roupa, me posicionar e aguardar o clique, a duração da espera Revista O Mosaico | vol.18 no.1 | Número 26 jan-jun-2024 | ISSN: 1980-5071 | Curitiba 9 me toma em tempo expandido. Estar diante da câmera é compreender o tempo como o contexto do corpo. O corpo como operador do tempo. O que acesso através da execução do trabalho agora, existiu antes? Rememorar estados anteriores deste corpo. Anos 90. Expoingá: Festa de rodeio. Monga, a mulher gorila. Espetáculo de ilusionismo, personagem central uma mulher, do tipo malhada, loira, de biquini, sob um jogo de luzes, seu corpo dança, ela passa as mãos nos cabelos, olha fixamente, seduz sabendo seduzir, seduz e estranhamente, lentamente, bem lentamente, sobre sua pele uma fina cama de pelos aparece, ela, que ainda seduz e que ainda dança e ainda passa as mãos nos cabelos, transforma-se. A mulher em processo de tornar-se gorila, agita-se, incorpora estado de violência, as mãos agarram a grade, num golpe brusco, ela arranca o metal e ultrapassa o limiar do que antes era só encantamento e desejo. É bonito ver ela arrancar as grades. Ouve-se gritos, desespero, crianças corajosas correm, fogem, uma paralisa. A mulher, agora gorila, caminha pelo espaço ao redor da paralisia, a mulher não seduz mais, a mulher não dança, a mulher não passa as mãos nos cabelos. Alguém interrompe. Suspende-se a sessão, 20 minutos depois, as luzes acesas, e um corpo ainda em paralisia. Ninguém mais seduz. O que acesso agora existirá em um momento próximo? O corpo se atualiza diante da câmera, ainda que sensações e movimentos internos não possam ter visualidade externalizada. A paralisia não implica a não mobilidade. Tudo é movimento, dentro. Pequenos indícios apontam que há afetação: a respiração que sutilmente se acelera, um leve movimento dos pés, o vento que toca o cabelo. Na fotografia, um corte no tempo e no espaço, sem promessa de algo por vir. Será? O que a fotografia de 1988 anunciava? Revista O Mosaico | vol.18 no.1 | Número 26 jan-jun-2024 | ISSN: 1980-5071 | Curitiba 10 Pode a fotografia construir futuro para um corpo? Retomando as imagens, algumas com 16 anos de existência, penso nos espaços, situações, paisagens não registradas, penso que fui um corpo também não registrado. Acesso um arquivo de imagens faltantes, é a partir das imagens faltantes que acesso a extensão de um tempo, entre um corpo e outro, o intervalo. O tempo é também um vão de imagens. Entre as imagens feitas, intervalos de meses e anos. Que corpo é este que não descansa?, me pergunta Ana Luisa Lima. Entre 2016 e 2022, mais imagens faltantes. Onde estava? Multidão, Rua XV, multidão, Avenida Paulista, multidão, Rua XV de novo, multidão, Brasília, multidão, Rua XV, multidão Av. Paulista. Dias entre o quarto e a sala. Rua XV. Silêncio, corpo encerrado em um apartamento. Apatia. Tudo é branco. Não há desejo, não há vida. Alguém morre todo dia. Fuga. Alguém morre no alto de um prédio distante. Fuga. Figura 4 - Camiseta da artista com apropriação de LUTOLUTA, de Décio Pignatari e Who does she think she is?, de Barbara Kruger, 2016 Fonte: acervo da artista Alguém preenche por dentro uma camiseta no espaço público. Alguém está não querendo estar. Revista O Mosaico | vol.18 no.1 | Número 26 jan-jun-2024 | ISSN: 1980-5071 | Curitiba 11 Figura 5 - Processo de trabalho com anotação de caderno e autoretrato. Curitiba, 2022 Fonte: acervo da artista Ana Luisa, te leio na tarde fria de outono, mas com sol entrando pela janela. Você diz: A real revolução encontra movimento nos pequenos gestos. Naqueles momentos em que sucumbir é mais simples e sem dor. Permanecer é um verbo que articula grandezas. Como um corpo fincado sobre si mesmo. Quando ele mesmo é paisagem a ser consultada nos momentos que os olhos apenas enxergam sem ver. Confundem, CONFUNDO, o Vazio inquieto de dentro com a imensidão do que se estende para fora. Figura 6 - Micro-resistências. 2008 – 2024 Fonte: acervo da artista Revista O Mosaico | vol.18 no.1 | Número 26 jan-jun-2024 | ISSN: 1980-5071 | Curitiba 12 Que paisagens se inscrevem por dentro deste corpo que resiste? 15 mil pessoas nas ruas A vibração de tambores Uma sobrinha que nasce Uma amiga que morre Um golpe Abusos O atravessamento de paixões sussurradas, gritadas 2 anos de medo constante 600 mil mortos Uma ameaça no meio da rua Revista O Mosaico | vol.18 no.1 | Número 26 jan-jun-2024 | ISSN: 1980-5071 | Curitiba 13 Figura 7 - Micro-resistências, 2022 Fonte: acervo da artista Estou e não estou nas imagens. O clique da câmera é a atualização do corpo. Figura 8 - Micro-resistências, 2008 Fonte: acervo da artista Revista O Mosaico | vol.18 no.1 | Número 26 jan-jun-2024 | ISSN: 1980-5071 | Curitiba 14 Figura 9 - Registro de processo. 2008 – 2024 Fonte: acervo da artista Agradecimentos: Alfredo Esparza, Elenize Dezgeniski, Fabio Costa, Guilherme Jaccon, Gi Pagotto, Gregoria Cochero, Janaina Matter, José Luiz Flores, Kolja Dominic, Lidia Ueta, Maria de Lourdes Navarro, Michelle Pucci, Miriane Figueira, Monalisa Melo. *Uma versão desta leitura performativa, aqui apresentada como um memorial, foi apresentada no “Seminário Avançado Espaço(s): trânsitos entre o específico e o amplo”, do PPGARTES da UNESPAR, em Curitiba, no dia 20 de maio de 2022. As fotografias que compõem este texto foram projetadas sequencialmente durante a leitura. Revista O Mosaico | vol.18 no.1 | Número 26 jan-jun-2024 | ISSN: 1980-5071 | Curitiba 15 REFERÊNCIAS BRITTO, F. D., & JACQUES, P. B. (2008). Cenografias e corpografias urbanas: um diálogo sobre as relações entre corpo e cidade. Cadernos PPGDisponível em: AU/FAUFBA, 7(2). https://periodicos.ufba.br/index.php/ppgau/article/view/2648. Acesso em: mai. 2024. GODARD, Hubert. Gesto e percepção. In: PEREIRA, R.; SOTER, S. (Orgs.). Lições de dança. Rio de Janeiro: UniverCidade, v. 3, 1999. LIMA, Ana Luisa. Verbetes ou como (re)conhecer um corpo sem sinônimo in Corpo sem sinônimo. Navarro, Luana. Curitiba, PR: Cigarra, 2016. Recebido: 01/03/2024 Aceito: 30/04/2024 Revista O Mosaico | vol.18 no.1 | Número 26 jan-jun-2024 | ISSN: 1980-5071 | Curitiba 16