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https://doi.org/10.35520/metamorfoses.2019.v16n1a27548 PARA MEMÓRIA FUTURA DO NEO-REALISMO1 FOR PURPOSES OF FUTURE REFERENCE OF NEO-REALISM Carina Infante do Carmo2 RESUMO Fernando Namora foi pioneiro na narração da história do neo-realismo, de que foi protagonista desde a primeira hora. Desde 1956, o escritor empenhou-se em valorizar a evolução e o lugar daquele movimento literário na literatura portuguesa de novecentos. Por meio da escrita ensaística, Namora responde ao ocaso neo-realista mas também à hostilidade crescente do campo literário português àquele movimento, pondo em causa muitos lugares comuns da crítica e um conceito linear e monológico de tempo histórico em literatura. PALAVRAS-CHAVE: Neo-Realismo; história literária dos escritores; campo literário e cultural; consciência de classe do escritor; tempo histórico-literário (conceito de). ABSTRACT Fernando Namora was a pioneer in the narration of Neorealism story, in which he was a protagonist from the first hour. Since 1956, the writer has endeavored to value the evolution and the place of that literary movement in the nineteenth-century Portuguese literature. Through essay writing, Namora reacts to the neo-realist twilight, but also to the growing hostility of the Portuguese literary field to that movement, questioning not only many common places of literary criticism but also its linear and monologic concept of historical time in literature. KEYWORDS: Neorealism; Literary History of Writers; Literary and Cultural Field; Writer’s class consciousness; Historical and literary time (concept of). 1 Este artigo reproduz a versão a ser publicada, ainda em 2019, numa colectânea de ensaios e testemunhos sobre Fernando Namora, organizada por José Manuel Mendes. 2 Professora da Universidade do Algarve, Centro de Estudos Comparatistas, Faculdade de Letras, Universidade de Lisboa. A revista Metamorfoses utiliza uma Licença Creative Commons - Atribuição-NãoComercial 4.0 Internacional (CC-BY-NC). Metamorfoses, Rio de Janeiro, vol. 16, número 1, p. 15-24, 2019 Para memória futura do neo-realismo Carina Infante do Carmo Numa entrevista dada, em 1985, a Maria Alzira Seixo na revista ICALP, Fernando Namora dá nota de como a literatura portuguesa do meio século anterior se tornara “muito consciente de si própria” (SEIXO, 1985, p. 34), “crítica ao mesmo tempo que criação” (idem: ibidem) ou mesmo “literatura de pesquisa” (idem: ibidem). Esta observação tem amplitude suficiente para dar conta de traves-mestras da literatura novecentista como a auto-reflexividade das formas narrativas ou poéticas e o exercício imbricado de invenção e pensamento artísticos que poetascríticos (no caso português, Fernando Pessoa, Jorge de Sena ou Gastão Cruz) protagonizam de forma emblemática ao longo do século XX. A resposta de Namora encaminha-se, contudo, para um sentido mais circunscrito: o de sublinhar a entrevista como género dialógico que potencia a reflexão do escritor sobre a sua obra. Nesse sentido, ela configura “uma das variadíssimas manifestações de para-literatura” (idem: ibidem), sobretudo pelo impacto que o testemunho autoral da entrevista pode ter na escrita, enquanto recitação pensante da palavra literária. Não poderei explorar, agora e em toda a extensão, esta fértil linha de leitura que se liga à construção e projecção da figura autoral, tão relevantes em Namora. Dela retiro, ainda assim, um pressuposto (o da natureza reflexiva, investigativa da literatura dos meados do século passado) para chegar a um traço que Mário Sacramento (SACRAMENTO, 1967, p. 180-181) e, mais tarde, António Pedro Pita (PITA, 1998, p. 16) associaram a Namora e a companheiros seus neo-realistas. Falo da potência ensaística destes autores, cerceada embora pela prolongada asfixia censória, e, por isso, não raro expressa em obras literárias. Nos anos 1960, a prática ensaística dos neo-realistas ― que Mário Dionísio e João José Cochofel, esses sim, levam a cabo em contínuo desde as décadas de 1940/50 sobre literatura e sobre pintura ou música, respectivamente ― traduz-se numa série de prefácios que escrevem sobre obras de outros neo-realistas: Mário Dionísio sobre Poemas Completos (2ª. ed. aumentada, 1963), de Manuel da Fonseca, e sobre Casa na Duna (3ª. ed. rev., 1964), de Carlos de Oliveira; ou em obras próprias: Alves Redol, em Fanga (6ª. ed. rev., 1963), Gaibéus (6ª. ed. refundida, 1965), Teatro I (1966) e Avieiros (5ª. ed., 1968); e, antes de todos eles, Fernando Namora, em Casa da Malta (5ª. ed., 1961).3 Esta vaga de prefácios é um sintoma da capacidade de análise retrospectiva dos mais relevantes protagonistas do neo-realismo que, entretanto, haviam amadurecido do ponto de vista intelectual e criativo e viviam o ocaso do movimento, enquanto conjunto concertado e interdisciplinar de iniciativas editoriais e culturais, ininterrupto desde 1937.4 O prefácio a Casa da Malta coincide temporalmente com a evolução do romancista para 3 Devo ainda assinalar, neste contexto histórico-literário, os prefácios a obras de Redol, falecido em 1969, de Mário Dionísio a Barranco de Cegos (3ª. ed., 1970) e de Joaquim Namorado a Fanga (8ª. ed., 1972). 4 Conforme defendem Alexandre Pinheiro Torres (1983, p. 46) e Luís Augusto Costa Dias (1996a, p. 52-58), o período de constituição do neo-realismo deve situar-se a partir de 1937. Ocorre nesse ano a sua tomada de consciência como grupo, com intervenção através de publicações periódicas culturais. Constituem-se, desde essa data, como movimento cultural e não apenas como corrente literária, cujo início a crítica habitualmente situa em 1939, por causa da 1ª. ed. de Gaibéus. Metamorfoses, Rio de Janeiro, vol. 16, número 1, p. 15-24, 2019 16 Para memória futura do neo-realismo Carina Infante do Carmo uma fase urbana e que a crítica literária costuma associar a uma superação do neo-realismo e à incorporação existencialista; superação e incorporação providenciais para assegurar a qualidade estética que aquela reconhece a Namora mas não a muitos neo-realistas. Ora, o mais curioso é ler aquele texto namoriano e ver relatada a experiência dele na profunda interligação (sem anular a sua individualidade) com a história do neo-realismo e a sua evolução entre a década de 1930 até ao momento em que escreve; em suma, com espírito crítico mas sem abjurações.5 A aguda consciência histórica, concentrada no neo-realismo e no lugar incontornável que este ocupa na literatura portuguesa do século XX, radica num caminho longo de Fernando Namora. Afinal de contas, ele foi “um elemento preponderante no campo da iniciativa literária do grupo de Coimbra” (DIAS, 1996b, p. 18), enquanto organizador das colecções Novo Cancioneiro e Novos Prosadores. Ao prefácio acima referido Namora acrescenta, no mesmo ano, Esboço Histórico do NeoRealismo (1961), apresentado à Classe das Letras da Academia das Ciências de Lisboa, de que era membro desde 1955, indiciando, nessa qualidade, a sua consagração dentro da instituição literária. Este texto tem, por sua vez, um antecedente, cuja identificação devemos a Luís Augusto Costa Dias: a conferência A Nova Geração Literária Portuguesa que Namora proferiu, ao que parece, em 1956, no Colóquio Internacional de Literatura, em Saragoça. O Esboço Histórico do Neo-Realismo veio depois a ser revisto e fixado, sete anos depois, sob o título “Em torno do neo-realismo”, no volume Um Sino da Montanha. Cadernos de um Escritor (1968). Irei determe nesta peça mais tardia, não sem antes sublinhar a iniciativa pioneira de Namora de pensar a história do neo-realismo que, como se vê, remonta aos anos 1950. Se cotejado com o texto de 1956(?) e a sua primeira versão de 1961, o ensaio de 1968 ganha contundência, na forma como denuncia o funcionamento do campo cultural e literário, cada vez mais hostil aos neo-realistas, e ainda mais consistência, na opção de afirmar um entendimento sistémico, dialógico e evolutivo da história literária que não se fica pela arrumação, em prateleiras estanques, de autores e movimentos. Por isso, não esquece as vozes individuais dentro do neo-realismo e sugere algumas heranças e permeabilidades com autores, tradições e correntes coevas. Os termos são incisivos para acusar o “sectarismo tribal” (NAMORA, 1991b, p. 196)6 do circuito crítico, apostado em decretar fronteiras rígidas, rótulos e óbitos, e para denunciar a “inconstância das modas e a sua falta de rigor” (p. 198), simpatias e conveniências corporativas. Daqui resultam, no seu entender, a depreciação malévola e a tentada rasura do neo-realismo da diacronia novecentista, “orquestrada numa ofensiva que, por ser tenaz, nos leva a concluir pela solidez do que pretendem denegrir” (p. 203). A este propósito, é interessante recuar a 1957, quando numa entrevista a Óscar Lopes, Namora receava a repetição de depoimentos neo-realistas sobre a sua própria história. Tinha, 5 No prefácio de Casa da Malta, Namora afirma: “Evoluir, porém, não é renegar.” (1991a, p. 19). 6 A partir desta nota as citações de “Em torno do neo-realismo” serão identificadas pelo número de página. Metamorfoses, Rio de Janeiro, vol. 16, número 1, p. 15-24, 2019 17 Para memória futura do neo-realismo Carina Infante do Carmo claro, um sentido táctico de afirmação do neo-realismo que queria renovado e amadurecido, capaz de continuar a disputar um lugar de força dentro do campo literário e em que cada escritor pudesse ajustar o percurso ao seu temperamento e potencialidade.7 Mas intuía uma certa ideia de fim. Namora sente, por isso, a necessidade de retomar o tema, nos dez anos subsequentes a esta entrevista e depois, esparsamente, em entrevistas de imprensa, recolhidas por José Manuel Mendes em Encontros com Fernando Namora (1979). Namora rebate lugares comuns da crítica (persistentes até hoje, sublinhe-se), antes de mais, a incompatibilidade entre criação artística e intervenção política, como sempre invocara o presencista João Gaspar Simões. Contesta que tenha existido uma programação prévia do neorealismo, a anteceder a publicação de meros subprodutos literários, submetidos ao utilitarismo do combate político-ideológico. Não esquece o relevo da presença, o seu empenho na europeização da nossa cultura e a valia de uma “inquietação igualmente veraz e historicamente necessária, por ter contribuído para uma autenticidade artística” (p. 207). Só que o individualismo presencista já não respondia à urgência intelectual e política dos anos 1930, tempo de gestação neo-realista. Daí um aristocratismo que fazia questão de se opor à “«popularização» banalizadora” (p. 207) da arte, quando se impunham a cultura de massas e o convívio da arte com os interesses comuns, da classe trabalhadora, em particular, como, na sua opinião, fez o neo-realismo. Para o efeito, enuncia até o papel da Universidade na constituição do novo campo cultural e literário, tendo em vista a sua experiência coimbrã que ficcionou no romance Fogo na Noite Escura (1943), depois revisto numa edição de 1957. A desmontagem dos clichés depreciativos do neo-realismo parte, no argumentário de Namora, da recusa das ideias de estatismo, homogeneidade ideológica e estética, propugnada não apenas por adversários mas também por prosélitos do movimento, em busca de graus de pureza na sua caracterização. Esse sentido de pureza fizera-se ouvir com intensidade na chamada Polémica Interna, à entrada dos anos 1950 ― o ponto alto de uma dissonância congénita ao neo-realismo em que se enfrentaram concepções diferentes de marxismo e de arte, entre quem defendia a arte como reflexo e quem a entendia como conhecimento. “Em torno do neo-realismo” fala de uma metamorfose neo-realista e da busca de condições e soluções do seu tempo histórico para a prática literária. Namora aceita a existência de fases, uma rudimentar, outra amadurecida, mas faz subjazer à sua leitura uma visão complexa e plural do fenómeno. A prova disso está no “estilo próprio” (p. 212) que identifica nas primícias de Alves Redol, Carlos de Oliveira, Castro Soromenho, Manuel da Fonseca, Leão Penedo, Vergílio Ferreira, Marmelo e Silva, Soeiro Pereira Gomes, assim como na persistência de epígonos do primeiro neo-realismo, numa fase adiantada da sua existência. 7 Nessa entrevista, Namora temia o efeito perturbador de repetir vezes sem conta o que foi o neo-realismo: “o de que ao neo-realismo pouco mais resta do que deixar a casa arrumada, com um rótulo bem visível à porta, antes que os prováveis sucessores a venham resolver ou desacreditar” (LOPES, 1957, p. 187). Metamorfoses, Rio de Janeiro, vol. 16, número 1, p. 15-24, 2019 18 Para memória futura do neo-realismo Carina Infante do Carmo O ensaio não se escusa a concretizar o que entende por incipiente no neo-realismo inicial: refere a “monotonia de temas, de ambientes, de processos” (p. 209), uma “estandardização das personagens” (p. 210) e uma “visão primária das contradições sociais” (p. 210); Redol não anda longe deste diagnóstico na “Breve memória” que, em 1965, junta à 6ª. ed. refundida de Gaibéus. Centrada em atmosferas provincianas e rurais, devedoras da influência da literatura brasileira, essa produção literária revelava, afinal, um cunho romântico. Daí a “atitude de compadecimento da parte do escritor pelos seus heróis, conduzindo-os a assumir o carácter exaltado e lírico de símbolos” (pp. 207-208), ou, dito de outra forma, um “populismo literário, plangente e monocórdico, que se destinava a cortejar o sentimentalismo das massas” (p. 210). O amadurecimento neo-realista, via-o Namora no desenho problematizador do ser humano que não prescindia da inscrição nas condições materiais e históricas da sua actividade: […] a literatura neo-realista admitia e admite não só toda a espécie de renovação formal, que harmonize a expressão artística com a atmosfera que a solicita, mas também todas as pesquisas no sentido de ir mais dentro da complexidade do homem, na sua consciência individual e na sua consciência colectiva, o homem que assume livremente o porquê do seu viver e do seu agir dentro de um todo em que se insere. (p. 198) Olhados em perspectiva, os três decénios de neo-realismo confirmavam já grandes contributos para o panorama literário nacional. Namora exemplifica. A tarefa ambiciosa de refundar a paisagem literária do país, a renovação do romance, superando os bloqueios que o género vivera, entre nós, desde o início do século XX, e um terceiro dado de natureza sociológica: a dedicação ao trabalho literário que caldeou uma consciência profissional, capaz de contrariar os malefícios de um continuado amadorismo entre os autores portugueses. A identificação neorealista com o “homem comum, com as suas agruras e aspirações, dando-lhe ela própria um exemplo de luta em que era necessário persistir” (pp. 214-215), criou ainda condições para um “renovo do diálogo público-escritor” (p. 215), dignificador da “obra que o justifica” (p. 216). Na sua óptica, havia um senão. Se o crescimento do público leitor não colou Portugal à industrialização da cultura, este fenómeno repercutiu-se negativamente inclusive dentro do neo-realismo, a viver uma “fase crítica de crescimento” (idem: ibidem), com uma “mecanização ou […] facilitação do labor literário” (p. 216). A motivação-chave deste ensaio explicita-se no epílogo do texto: sublinhar e incentivar “uma evolução no sentido de procura e aproveitamento de outras experiências” (p. 219) por parte do movimento neo-realista, à semelhança do exemplo do próprio Namora. No prefácio de Casa da Malta, o ângulo adoptado fora mais pessoalizado a este respeito. Aqui o escritor salienta o fascínio neo-realista pela tradição picaresca, de que é exemplo, como sabemos, o seu A Noite e a Madrugada (1950), ou declara a sua dúvida quanto à viabilidade do género romance, facto que o levará a explorar formas mais intensamente autobiográficas e fragmentárias, a partir de Diálogo em Setembro (1966). As evidências da transformação neo-realista são estas: Metamorfoses, Rio de Janeiro, vol. 16, número 1, p. 15-24, 2019 19 Para memória futura do neo-realismo Carina Infante do Carmo Repúdio do panfletarismo, de cinzas bem soterradas, apuro no estilo, substituição do verismo da linguagem pela linguagem «significativa» e da dramaticidade epidérmica pela dramaticidade intrínseca, análise mais profunda das personagens, que se singularizam em vez de se diluírem na tinta grossa do fresco colectivo, retorno ao subjectivismo, apetência pelos novos ângulos dos problemas existenciais, que a vida de hoje agudiza, recurso ao picaresco, naqueles escritores de temperamento medularmente ibérico, tentação pelas buscas experimentais que pretendem criar uma nova forma de romance, tecnicamente revolucionária e na qual intervenham ou adquiram relevância certos elementos que fazem parte da vida humana e a espelham ou influenciam ― aceitando assim que a ficção, tal como tantos advertem, chegou a um beco sem saída, no qual ou se deteriora ou rompe noutras audaciosas direcções. (p. 217) A intenção de Namora é, pois, a de questionar a aplicação redutora da etiqueta neorealismo que ofusca pontos de contacto entre autores de orientações estéticas diferentes, a valia de obras iniciais do movimento como “definitivas da nossa literatura contemporânea” (p. 219) e a maturação pessoal dos seus autores mais inventivos e inquietos, que nunca poderiam cingir-se a uma receita arregimentadora. Assim o confirma quer em neo-realistas da primeira hora, com originais ou reescritas (Namora, Redol ou Oliveira), quer em autores posteriores, como José Cardoso Pires ou Augusto Abelaira, que começam a sua obra em diálogo com o neo-realismo. Depreende-se, então, que é neles que o autor de Retalhos da Vida de um Médico encontra potencialidades de desenvolvimento, superação e resposta aos desafios coectâneos. Há nesta avaliação pontos de contacto com Mário Sacramento, em Há uma Estética Neo-Realista? (1968), título apenas referenciado em nota de rodapé (p. 205), tal como Sentido e Forma da Poesia Neo-Realista (1968), de Eduardo Lourenço, reivindicando Namora a antecedência da sua análise histórico-literária, mas sem mais comentários. Sacramento critica os neo-realistas na sua fase inicial por terem criado personagens em função de um público potencial (proletário) e real (burguês): assim explica a “adesão esquemática (e consequentemente dogmática) à tese abstracta da classe ascendente [o proletariado, em regra rural], o que redundou em crítica epidérmica do figurino burguês” (SACRAMENTO, 1968, p. 50).8 A origem burguesa dos escritores neo-realistas traduzirase, então, na caricatura das classes dominantes e na idealização dos dominados. Sacramento sinaliza, deste modo, os dilemas na consciência de classe dos neo-realistas. Tais dilemas teriam levado, já na fase de maturação, Alves Redol, em Barranco de Cegos (1961), ou Manuel da Fonseca, no conto “O último senhor de Albarrã”, de O Fogo e as Cinzas (1953), a recuarem “para o plano da historicidade, transferindo o conflito para os quadros do mundo feudal, pois era mais fácil aderir a um tipo de explorador já ultrapassado e dar nele, por forma indirecta, a problemática do presente” (idem, p. 60).9 8 Munido, é certo, de um referente marxista, Sacramento convergia com o que, anos antes, tinham agudamente observado sobre o tema Irene Lisboa (1998, p. 131-132) e Adolfo Casais Monteiro (2003, p. 109). 9 Sem retirar pertinência à proposta de Sacramento, é um tanto discutível falar em adesão a figuras de Metamorfoses, Rio de Janeiro, vol. 16, número 1, p. 15-24, 2019 20 Para memória futura do neo-realismo Carina Infante do Carmo Sacramento (como Namora) diz ainda confiar na renovação do neo-realismo, fecundado por outras correntes estéticas e apports filosóficos, antes de mais do existencialismo, visível em Fernando Namora e Vergílio Ferreira. Contudo, a confiança era, num caso e noutro, mais expressão de desejo do que realidade. Os anos 1950, abertos pela chamada Polémica Interna do neo-realismo, introduziram uma “reconfiguração, que será dissolvente” (PITA, 2014, p. 21) para o campo literário neo-realista. Daí para a frente multiplicaram-se factores de perturbação, quando se questionam a noção de real e as suas formas de representação; quando se consagra a referência moderna/ista e pessoana, conectada com uma modernidade pós-Pessoa (Sena, Sophia, Eugénio, Cesariny) e, depois, com fulgor experimental da Poesia 61; quando ganha espaço a cultura de massas e visual, mesmo num país bloqueado pela ditadura e pela Guerra Colonial. Ao criticar obras mais recentes, Sacramento exprimia, afinal, o desejo de um neorealismo que nunca viu materializado. Quanto a Namora, acaba a assumir malgré lui o tempo póstumo do neo-realismo, o que dizia temer em 1957. Na sua lucidez solidária, impõe-se-lhe a necessidade de desafiar a depreciação gradualmente hegemónica do neo-realismo entre a crítica literária daqueles anos 1960: Com efeito, alguns representantes do neo-realismo têm sido valorizados pelo que, no ponto de vista de certos comentadores, os vai emancipando de uma filiação literária constrangedora. Seriam esses os verdadeiros artistas, capazes de uma obra perdurável, visto que só são perduráveis e válidas, mesmo enquanto documentos sociais, as obras sem compromisso, e a sua deserção aos preconceitos neo-realistas apresentar-se-ia, pois, como sintoma frutuoso. (NAMORA, 1991b. p. 217)10 1968 era já o tempo da avaliação exterior ao movimento neo-realista; mudara “de sede”, como diz António Pedro Pita (PITA, 2014, p. 30). Crescia a objecção de críticos e autores a uma classes dominantes em decadência, quando é complexa a posição que sobre elas toma o narrador, sobretudo no caso de Fonseca. O mesmo diremos da observação que dá como anacrónico o quadro sócio-económico representado nas obras de Redol e Fonseca, sendo essa ainda uma realidade no Portugal do tempo em que escreve o ensaísta. De todo o modo, exprime sobretudo um incómodo inerente ao neo-realismo: o ter o operariado industrial como classe de referência revolucionária e, depois, fazer a “transferência dessa verdade teórica para a realidade prática das camadas rurais” (COELHO, 1972, p. 143). 10 Também Carlos de Oliveira cabe no figurino do neo-realista resgatado pela crítica por já não o ser. Além disso, pronuncia-se, com ironia, sobre a predilecção neo-realista pelo povo camponês, o “que tem irritado nos últimos trinta anos um número considerável de estetas citadinos ou cosmopolitas” (OLIVEIRA, 1979, p. 179). Na nota “O que é o povo?” (1970), de O Aprendiz de Feiticeiro (1971), Oliveira secunda a crítica de Alexandre Pinheiro Torres ao “Leitor Distraído” (idem, p. 180): aquele que julga que esse é “um tema exclusivo dos neo-realistas” (idem: ibidem) e “também o único tema deles” (idem: ibidem). Rastreia as razões nacionais para a primazia literária do trabalhador rural, a linhagem de que o neo-realismo é herdeiro (Cesário, Aquilino), o alargamento do quadro social representado pelas suas obras e a afinidade com o romance sul-americano da altura. Quem sabe se, além de visar os detractores do neo-realismo, Oliveira não estaria aqui a moderar a radicalidade de Sacramento na sua crítica ao ruralismo neo-realista? Metamorfoses, Rio de Janeiro, vol. 16, número 1, p. 15-24, 2019 21 Para memória futura do neo-realismo Carina Infante do Carmo arte identificada com o fim da verdade prática, como se lia, em 1963, num inquérito promovido pelo O Tempo e o Modo, concebido, importa dizê-lo, com colaboração bastante plural, mas sob o pano de fundo de um conflito intelectual típico da Guerra Fria. O debate crítico no campo literário dos anos 1960 fora antecedido por duas dissidências do neo-realismo e do quadro teórico do materialismo histórico, ambas ocorridas em 1949: a de Eduardo Lourenço, com Heterodoxia, e, de forma mais estrondosa, a de Vergílio Ferreira, a partir do romance Mudança. Tais dissidências, sobretudo a de Vergílio Ferreira, vão repercutir-se na polémica que este último travou com Alexandre Pinheiro Torres, em 1963, a propósito da publicação de Rumor Branco (1962), de Almeida Faria. O tema, que incendeia as páginas do Jornal de Letras e Artes, nos dois primeiros meses de 1963, terá as suas sequelas no Diário Lisboa e na revista O Tempo e o Modo. E no seu rescaldo prevalece uma mudança. A posição hegemónica que o neo-realismo conquistara com o Pós-Guerra à política cultural do salazarismo, tinha neste contexto uma inversão derradeira. Falando de dentro e em defesa do movimento, “Em torno do neo-realismo” trata em exclusivo de matéria narrativa.11 Neste domínio se evidenciou o neo-realismo, sob o influxo da linguagem do cinema – Baptista-Bastos sublinhou-o em O Filme e o Realismo (1962) – e através da “presentificação da acção e relativização do ponto de vista” (LOSA, 1996, p. 34) de narradores e personagens (monólogo interior, corrente de consciência ou discurso indirecto livre), no que acaba convergindo com a tradição modernista. Em contraponto, não é menos verdade que se esgotam o referente ruralista e a forma romanesca até aí praticada, como o comprovam, daí para a frente, Fernando Namora e, mais ainda, Carlos de Oliveira. O ano em que Namora publica “Em torno do neo-realismo” é, entretanto, um momento crucial na prosa portuguesa contemporânea, haja em vista a publicação de O Delfim, de José Cardoso Pires, e de Bolor, de Augusto Abelaira. Obviamente esse marco é fruto de uma mutação operada ao longo das décadas de 1950-60. Em “Uma literatura desenvolta ou os filhos de Álvaro de Campos”, publicado, em 1966, na revista O Tempo e o Modo, Eduardo Lourenço identifica já naquela conjuntura um salto em frente da nossa literatura, com exclusão de qualquer neorealista histórico. Condescende no elogio à “preocupação erótica” (LOURENÇO, 1994, p. 264) de Namora ainda próximo da presença (As Sete Partidas do Mundo e Fogo na Noite Escura) e às “excelentes novelas de Manuel da Fonseca” (idem, p. 261) mas, no fim de contas, ao neo-realismo só resta o conflito entre literatura e “ideologia como ética mascarada e «deus ex-machina»” (idem: ibidem). Convoca a obra de Agustina Bessa-Luís, José Cardoso Pires, Almeida Faria ou Maria Judite de Carvalho para caracterizar uma escrita emergente, sob o signo 11 Por não ser matéria desta reflexão de Namora, deixo de lado o problema da poesia neo-realista, seduzida pela coralidade e pela vontade de intervir mas coagida por uma subjectividade solista e lírica. Assim se tornou tensa (mas não inviável) a relação com o modernismo e difícil a compreensão dentro do campo neo-realista do rumo poético tomado por Carlos de Oliveira a partir de Cantata (1960). Sobre esta matéria se pronunciaram na década de 1960: Mário Sacramento, em Há uma Estética Neo-Realista? (1968) e, com maior profundidade, Eduardo Lourenço, em Sentido e Forma da Poesia Neo-Realista (1968), e Fernando Guimarães, em A Poesia da presença e o Aparecimento do Neo-Realismo (1969). Metamorfoses, Rio de Janeiro, vol. 16, número 1, p. 15-24, 2019 22 Para memória futura do neo-realismo Carina Infante do Carmo pessoano, de Álvaro de Campos em especial: reconduzida à matéria-prima linguística, a “Nova Literatura” (idem, p. 258) fazia vingar uma “neutralidade ética inegável, ou antes, indiferença ética profunda, espécie de desconhecimento ou surdez elementar diante dos chamados valores que informam a nossa efectiva e ainda actuante mitologia espiritual portuguesa” (idem, p. 266). É inegável o acerto de Lourenço sobre aqueles dez anos que superam a linhagem romântica por meio de uma representação objectivada do real, determinada pelo riso e/ou pelo erotismo, e ao arrepio do modelo romântico, reconhecível na orientação épico-lírica do neo-realismo. Mais problemático será generalizar a todos aqueles autores a ideia de neutralidade ou indiferença éticas (mesmo se não incorporam a matriz marxista) ou declarar, pelo exemplo das suas obras, o cumprimento de heranças lineares ou gestos de ruptura revolucionária e cancelamento absoluto em relação a uma corrente literária coeva como o neo-realismo. É justamente por ter vivido por dentro e ter uma compreensão constelar do seu tempo histórico-literário que Fernando Namora participa, com tenacidade, na luta pela memória sobre o que, à data, já era visto em perspectiva, o legado do neo-realismo. Referências: COELHO, Eduardo Prado. Mário Sacramento perante a teorização do neo-realismo (plano para um trabalho). In: No Reino Flutuante. Exercícios sobre a Razão e o Discurso. Lisboa: Edições 70, 1972 [1969], pp. 139-147. DIAS, Luís Augusto Costa. Contribuição preliminar para o conceito de «geração de 1937». In: Vértice. Série II, nº. 75, p. 52-58, Dez. 1996a. ______. Alguns contextos de um texto de Namora [apresentação crítica de Fernando Namora, A Nova Geração Literária Portuguesa]. In: Algar, nº. 1, p. 17-19, Jan. 1996b. LISBOA, Irene. Apontamentos. Org. e pref. Paula Morão. Lisboa: Presença,1998 [1943]. LOPES, Óscar. Fernando Namora - Uma personalidade. In: Lusíada. Vol. 3, nº. 10, p. 184-189, Out. 1957. LOSA, Margarida. O herói. In:Vértice. Série II, n°. 75, p. 32-37, Dez. 1996. LOURENÇO, Eduardo. Uma literatura desenvolta ou os filhos de Álvaro de Campos. In: O Canto do Signo. Existência e Literatura. 1957-1993. Lisboa: Presença, 1994 [1966], p. 255267. MONTEIRO, Adolfo Casais. A Poesia da presença. Estudo e Antologia. Lisboa: Cotovia, 2003 [1959]. 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