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VESTÍGIOS DO VÉU NA SOCIEDADE CRIMINALIZAÇÃO DO ABORTO VESTIGES OF THE VEIL IN CRIMINALIZATION OF ABORTION SECULARIZADA: SECULAR SOCIETY: A THE Loreley GARCIA1 Resumo Trata-se de um ensaio que discute o aborto sob a ótica dos Direitos Humanos, a conexão entre a cidadania e os direitos reprodutivos, a história da ilegalidade do aborto, o mito do amor materno e o aborto ilegal no contexto da saúde pública e da estratificação social. Palavras chave: aborto, cidadania, amor materno, história do aborto, infanticídio, saúde pública. Abstract This essay discusses the abortion from the perspective of Human Rights, the connection between citizenship and reproductive rights, the history of illegal abortion, the myth of maternal love and the practice of illegal abortion in the context of public health and social stratification. Key words: abortion, citizenship, maternal love, history of abortion, public health, infanticide. A Cena No XXI, cerca de 25% dos países do mundo consideram o aborto ilegal, proibido ou restrito. Considerado crime, a punição é variada compreendendo da multa à prisão. Dados da ONG Women on Waves e do Center for Reproductives Rights demonstram que 98 % dos países admitem o aborto para salvar a vida da gestante; em 67% dos países, para preservar a saúde física, dos quais 65% dos países admitem o aborto para preservar a saúde mental da gestante, incluindo o suicidio; em 49% dos países, os casos de estupro ou incesto permitem o abortamento; os casos de anencefalia, impossibilidade de vida-extra uterina ou má-formação do feto são motivos para abortamento em 46% dos países. Contudo, 62% dos países admitem o aborto sem que haja justificativas relacionadas à saúde física ou emocional, em 34% deles, as razões socio-econômicas são suficientes, em 28% basta a requisição da mulher sem necessidade de outra justificativa. Encontram-se nesta última condição, o aborto sem restrições, países como Cuba, Guiana, Guiana Francesa na America Latina, Tunísia e Africa do Sul na África, países asiáticos como Nepal, Vietnam, Cambodja, China, Mongolia e as ex-repúblicas soviéticas. A interrupção da gravidez para preservação da saúde mental da mulher é aceita na América Latina, apenas na Colombia como liberalidade. Já no Chile, El Salvador, Republica Dominicana e a Nicaragua sandinista, representam na América Latina os grandes expoentes do movimento auto-denominado pró-vida, porque não aceitam o 1 Universidade Federal da Paraiba/PPGS e PRODEMA. e-mail: loreleygg@gmail.com aborto em nenhuma circunstancia, nem mesmo com risco de morte materna. Parece irônico, além de paradoxal, existir uma luta pela vida que condena à morte as mulheres grávidas. No mundo inteiro, as leis restritivas ao aborto violam os direitos humanos das mulheres com base em acordos feitos na Conferência Internacional das Nações Unidas sobre População e Desenvolvimento no Cairo, na Quarta Conferência Mundial sobre a Mulher em Pequim e na Declaração Universal dos Direitos do Homem (artigo 1 & 3 & 12 & 19 & 27.1). O Brasil alinha-se aos países mais atrasados do planeta, estando a maioria absoluta concentrada no Terceiro Mundo, quando comparamos a legislação sobre o aborto. Esse é outro paradoxo, porque no que tange a preservação das instituições democráticas, o Brasil alinha-se com países da América do Norte e da Europa, cioso na manutenção do Estado de direito e as liberdades democráticas. Weffort (1985), discutindo a democracia no Brasil, demonstra que o pensamento autoritário não se reduz aos conservadores, mas está especialmente na esquerda brasileira. A garantia de espaços de diversidade e pluralidade, debates e consenso, permitirá a transformação da sociedade brasileira num contexto democrático. A idéia da democracia, enquanto valor em si mesmo, depara-se com uma cultura caracterizada pelo autoritarismo e o conservadorismo. No entanto, é no confronto no interior da cena democrática que poderá surgir uma nova cultura. Em Hannah Arendt (1991), os seres são desiguais, constituindo uma heterogeneidade múltipla, o que permite a igualdade é a cidadania, o direito a ter direitos, os princípios constitutivos da democracia. Contudo, a cidadania plena implica na existência de condições concretas e objetivas para que haja o exercício dos direitos civis, políticos e sociais na vida cotidiana. A despeito da Constituição de 1988 ter incluído inúmeros direitos sociais no seu texto, uma imensa parte da população permanece ausente da cidadania plena. Ou está marginalizada pelo processo econômico, ou excluída do processo político-social, sequer conhecendo "o direito de ter direitos", pois a luta para sobreviver compromete a organização, mobilização e participação por mudanças na cidadania. O Brasil carece do espaço mínimo vital, definido por Arendt, para emergir o espaço público que garanta participação cidadã a essa imensa parcela da população. Existe uma cidadania ausente ou incompleta devido não apenas a razões econômicas, mas a exclusão que atinge as parcelas discriminadas da população, incluindo as mulheres de todas as classes sociais. Nos anos 60 foi conquistada a liberdade de escolha da maternidade com o surgimento dos métodos contraceptivos eficazes. Todavia, ainda hoje, as mulheres seguem lutando pelo direito de não se submeter a gestação indesejada. Coloca a desembargadora Berenice Dias que é inconcebível, na era dos Direitos Humanos, uma mulher suportar a gravidez indesejada e todos os seus transtornos sendo considerada como um mero instrumento reprodutor. Restringir a interrupção da gravidez ao aborto terapêutico - quando há risco de vida à gestante - e ao aborto emocional - decorrente de estupro, é ignorar a dimensão cidadã e a questão social que envolve essa questão. 25 O Estado é omisso no que tange a formação do cidadão, essa tarefa foi atribuída à família (o art. 227 da Constituição Federal outorga primeiro à família, à sociedade e por último ao Estado a formação e a proteção da criança e do adolescente). Todavia, a família não é uma instituição democrática na qual as tarefas e responsabilidades são distribuídas com equidade, mas uma construção hierárquica na qual a criação dos filhos recai sobre a mãe, quer ela possa ou não dar conta do encargo, portanto é indispensável que tenha o direito de optar. Nem o Estado, nem a sociedade podem substituir a vontade da mulher no direito de decidir sobre sua vida, seu corpo e o desejo de ter uma prole. Aborto e Ética A Ética (ethos - caráter) expressa o comportamento justo e a atitude correta nas interações humanas. Moral (mos - costumes, modos) é um conjunto de normas que regulam o comportamento do homem em sociedade, estas normas são adquiridas através da educação, da tradição e na vida cotidiana. A ética costuma ser confundida com a moral, mas são duas coisas diferentes. A ética teoriza sobre o comportamento moral dos homens em sociedade, enquanto a moral/ costume seria o conjunto de normas ou regras adquiridas ao longo do tempo. Para Durkheim, a Moral é a “ciência dos costumes”, anterior a própria sociedade. A Moral existiria desde que os tempos em que os bandos nomades vagavam pelo mundo, já que todo ser humano é dotado de consciência Moral e distingue o bem do mal num determinado contexto social. Desde Sócrates, a Ética investiga e explica as normas morais, conduz a ação humana não apenas pela tradição, educação ou hábito, mas sobretudo pelo sentido da correção, convicção e discernimento. Se a Ética é teórica e reflexiva, a Moral é eminentemente prática. A Ética não é imposta através da força, mas é a atitude que cada indivíduo adota diante da realidade dada. A Ética realiza o papel de consciência de uma sociedade na busca do “bom” caminho. Assim, a despeito das particularidades, busca atingir um elemento universal acima do relativismo cultural, por esse motivo a ética é entendida como um elemento supracultural. A ética seria o aspecto científico da moral, uma reflexão sobre os valores e sua validade, para alem das contingências impostas pela especificidade social. Se a moral é pensada como um conjunto de valores válidos em determinado contexto social; a ética pretende uma discussão sobre os valores universais. Portanto, a moral circunscreve-se cultural e historicamente, já a ética é transcendente. É possível considerar como atitude ética, algo que a moral social repudia. A diferença prática entre Moral e Ética é que esta é o juiz das morais. Ética é uma legislação do comportamento Moral das pessoas. Se a Moral tem por objetivo adequar o indivíduo a um determinado grupo social; a ética destaca a diferença e contempla a subjetividade de cada indivíduo. Nas sociedades ocidentais, desde o fim da 2ª Guerra Mundial, entende-se que as relações políticas e sociais são éticas quando existe respeito aos Direitos Humanos. Esses direitos humanos se redefinem, estão em expansão permanente, nunca completamente acabados, porque, segundo Lefort (1983), a invenção democrática implica na constante criação de novos direitos. 26 A cidadania e os direitos humanos constituem o núcleo ético da sociedade contemporânea. Numa sociedade constituida à luz dos direitos humanos, o indivíduo, ao nascer vivo, já possui direitos humanos e naturais. Em Locke (Two Treatise of Government, 1690), a liberdade é um direito natural, o pressuposto básico da noção de cidadania. No Liberalismo Clássico, a liberdade vincula-se a ideia de propriedade privada. “Embora a terra e todas as criaturas inferiores sejam comuns a todos os homens, cada homem tem uma propriedade em sua própria pessoa; a esta ninguém tem qualquer direito senão ele mesmo.” (LOCKE, 1978:45). A lei natural, entende que a primeira propriedade é o próprio corpo, logo, ser proprietário de si mesmo permite ao indivíduo apropriar-se das coisas do mundo. A partir desta leitura, não se pode pensar o cidadão se o indivíduo não for proprietário, minimamente, do seu próprio corpo. A escravidão seria a antítese da cidadania; o escravo, o não-cidadão por excelência. Desde o século XVII, o conceito de cidadania vem sendo reformulado, adquirindo, através dos tempos, os contornos exigidos pelas demandas sociais. Embora, mantenha no seu núcleo, a concepção de cidadania atrelada à liberdade e a garantia do direito sobre o próprio corpo, o direito de ir e vir, entre outros. Contudo, a realidade de inúmeros países demonstra a incompletude da cidadania, quando o Estado decide sobre o corpo do indivíduo, notadamente, em circunstâncias como o aborto e a eutanásia. Ao impedir a eutanásia, o Estado compromete a cidadania do conjunto da sociedade, mas, em se tratando do aborto, afronta a cidadania das mulheres. Além de interferir no direito de decisão sobre o próprio corpo, o Estado promove a ineqüidade entre os cidadãos, criando uma categoria de cidadãs de segunda classe com menos direitos, ou seja, não proprietárias do próprio corpo integralmente. O Estado justifica a proibição do aborto a partir da moral religiosa cristã, desconsiderando a diversidade de crenças existentes na sociedade e ignorando a existência dos não crentes. Se, para a Igreja Católica, a vida se inicia no momento da concepção, os muçulmanos acreditam que quando Alá sopra a vida no novo ser entre o 80º e o 100º dia da gravidez. No budismo, todas as formas de vida são sagradas. São crenças diferentes, diferentes visões de mundo, mas a democracia implica no respeito às diferenças e liberdade de escolha. Ocorre que a moral social foi construída num contexto que privilegiava os interesses hegemônicos de determinado momento histórico. No Brasil, as questões populacionais foram decididas a partir de uma articulação entre Estado e Igreja, desde a colonização. A historiadora Del Priori (1993) demonstra que metrópole portuguesa tinha uma grande preocupação com o vazio demográfico da terra brasileira, sempre afeita a invasões externas. O Estado incentivava, com rigor, uma política de ocupação assentada em três vertentes: a luta contra ligações extra-conjugais fora do controle do Estado e da Igreja; uma medida que cerceava a reprodução de populações mestiças e pobres que viviam às margens do sistema mercantilista implantado no Brasil. A segunda vertente, consistia na proibição da instalação de conventos de freiras 27 (1606), sob a alegação de que era preciso povoar a terra com gente honrada, reduzindo as mulheres à categoria de meras reprodutoras. Finalizando, a imposição do matrimônio e a condenação de qualquer forma de controle procriativo garantiria o aumento da população necessário à ocupação das terras continentais da colônia. Hoje, a Igreja Católica condena o aborto. Essa proibição aparece como se fosse ahistórica, encobrindo o fato de que há cerca de 150 anos atrás, a interrupção da gravidez era tolerada por essa mesma Igreja. Foi apenas em 1869, que o papa Pio IX, decidiu que a alma existe desde o momento da concepção. Os doutrinadores da Igreja, alegam que o papa baseou-se nas evidencias científicas da época, como a Teoria Celular de 1839, uma descoberta que comprova que o corpo é composto de células. Ela foi acoplada à crença católica sobre a alma. No século XXI, ainda nos baseamos nesta crença da alma/vida implantada no momento da concepção para proibir o aborto. Após inúmeras tentativas para inferir legitimidade científica à crença, até o momento, a ciência não evidenciou a existência da alma, nem o momento exato da sua transmigração. Portanto, a colagem indevida da ciência e da fé está extremamente desarticulada e não convence quando observada à luz dos fatos históricos. Na realidade, o que levou a Igreja a declarar que a vida começa no momento da concepção foi um acordo político. Em 1848, temendo o avanço das forças liberais na luta pela unificação da Itália, o Papa Pio IX fugiu e colocou-se sob a proteção de Imperador francês, Napoleão III. A França vivia um momento de industrialização e enfrentava problemas como a baixa natalidade e a falta de mão de obra ameaçava comprometer o crescimento industrial. O Papa e o Imperador selaram um acordo: em troca da declaração papal de que a vida começava no ato da concepção, a França ajudaria Pio IX a retomar sua posição no Vaticano. A célula fecundada adquire status de ser vivo e a Igreja inicia uma ardorosa campanha na defesa dos direitos do não nascido. A vida humana latente, aparentemente, é mais valiosa que as vidas de fato existentes; considerando que o ardor na sua defesa, não encontra correlato no empenho pela defesa das vidas que já estão na Terra. Tendo abolido a Roda dos Enjeitados, a Igreja exige o nascimento de filhos indesejados, descartando qualquer obrigação sobre a manutenção e a criação destas novas almas. Evidentemente, o papel da Igreja existe é orientar os seus fiéis, que devem se comportar de acordo com os mandamentos da doutrina para não serem punidos com penas como a excomunhão. Porém, essa atitude é aceitável quando se resume, exclusivamente, aos seus fiéis. No Estado democrático, ético e laico não pode existir, nem há lugar para imposição de regras de comportamento de uma religião, mesmo majoritária, para o conjunto da sociedade, que é plural. A sociedade não é um todo homogêneo, mas é composta por uma diversidade de crenças e não crentes, sob os quais a Igreja não tem qualquer poder de decidir ou influenciar o comportamento. Como fica o Estado laico neste contexto? Max Weber, em sua teoria geral da secularização, coloca que a emancipação histórica da esfera secular do domínio do religioso é um processo inerente à modernização social e culmina na separação 28 jurídica entre o Estado e a Igreja. Outros sociólogos concebem o processo de secularização como a autonomia interior do indivíduo, algo mais abrangente do que a laicização do Estado. Outras concepções admitem que há uma relativa independência entre os dois processos, assim a laicização do Estado pode avançar mais que a secularização da sociedade, e vice-versa. Há países onde a sociedade é religiosa, e até mesmo existe a religião do Estado, porem a sociedade é bastante secularizada, é o caso da Grã-Bretanha e da Dinamarca. Existem Estados laicos em sociedades cujas instituições são permeadas pelo sagrado, como a Índia. Há Estados ocupando posições intermediárias e transitivas. No Brasil, a secularização da sociedade avança, enquanto a laicidade do Estado está estagnada. De acordo com Sader, a separação da Igreja do Estado é uma conquista irreversível da democracia. As razões religiosas podem orientar decisões privadas das pessoas, mas nunca definir critérios para a cidadania em sociedades democráticas e republicanas. Dias destaca que a lei que vigora no Código Penal Brasileiro, de 1940, sobre o aborto tem o propósito de preservar a moral familiar em detrimento da dignidade da mulher. Embora o aborto seja criminalizado, nada impede sua prática clandestina. Para Sarmento (2006), o Brasil deveria adotar a solução utilizada pelos países europeus que legalizaram o aborto no primeiro trimestre da gestação. Paralelamente, criaram mecanismos extrapenais afins de evitar a “banalização do aborto”, como o planejamento familiar, a educação sexual e uma rede de proteção social para as mulheres. Argumenta que a racionalidade e a moral exigem a urgente reformulação das leis brasileiras sobre o direito ao aborto, é necessária uma mudança urgente na legislação para garantir a proteção integral dos direitos humanos das mulheres. A Constituição Federal de 1988 estabeleceu algumas condições essenciais para a reformulação do Código Penal Brasileiro, entre elas a não-incorporação da proteção da vida desde a concepção. Sarmento considera que a desigualdade de direitos impõe às mulheres ônus sociais e pessoais infinitamente maiores do que os impostos aos homens e questiona a forma como o Estado controla a vida reprodutiva das mulheres. Um campo minado Algumas pesquisas2 demonstram que o discurso sobre o aborto aparece entremeado de imagens bélicas, envolvendo luta, facas, tiros em defesa da vida como se a ação se desenrolasse num front de batalha. Ardaillon (1997), coloca que o debate sobre o aborto produz um campo minado, típico de situaçõeslimite que suscitam a confrontação de diferenças morais, políticas, religiosas e culturais e constituem o que Lyotard define como différends. “Os différends, ao contrário dos litígios, são conflitos sem solução, são discussões que não chegam a um consenso definitivo”(Lyotard, 1983 apud Ardaillon, 1997, p.2). Na ótica différend feminista, o direito de abortar faz parte da autonomia do indivíduo mulher. À mulher, e só à ela, cabe a decisão sobre a contracepção e o aborto livre, controlar a fertilidade e tornar-se 2 TORNQUIST, Carmen Susana, Práticas Contraceptivas e Aborto em Grupos Populares Urbanos (apresentação de trabalho no Congresso ALAS/Recife, 2011) 29 mãe "se, e quando desejar". A aquisição deste direito, ressalta a autora, confere mudança do status social da mulher e promove equidade entre os sexos. È com os direitos reprodutivos assegurados, que a mulher obtem a cidadania integral, quando “condições de construir sua individuação política como qualquer outra minoria política” ( Ardaillon, 1997, p.4). Não é possivel falar em democracia plena ou cidadania integral sem a garantia dos direitos sexuais e reprodutivos. Essa posição ficou evidente durante a Conferência Internacional sobre População, no Cairo ( 2004) e na Conferência Mundial da Mulher, em Pequim (2005), nestas conferências, a criminalização do aborto foi considerada uma violação à dignidade humana. Embora ainda permaneçam, embora velados, os estereótipos e preconceitos que questionam a racionalidade feminina, desconsiderando as mulheres como seres éticos e racionais. A opção pela maternidade envolve avaliação e decisão a partir de inúmeros elementos. O que ocorre quando se subtrai das mulheres o direito a essa decisão, quando não se permite que escolham pela maternidade ou o aborto da gravidez indesejada? Na verdade, essa atitude moral e religiosa, oculta um sério preconceito de gênero, a partir do qual, assuntos de tamanha relevância, como vida e morte, não poderiam ficar a cargo das mulheres. Está sendo colocada em questão a racionalidade feminina, quase indigna de crédito. Ao controlar a natalidade e exercer seu poder de decisão a mulher comete um pecado e um crime, não um ato de responsabilidade ou demonstração de formas altamente desenvolvidas de consciência cujo exercício e refinamento coloca em consideração o equilíbrio da família, ou mesmo, da coletividade. Na sociologia de Max Weber (1987), a ação social é tipificada em quatro modalidades: a ação tradicional, engendrada pelo costume ou hábito enraizado; a ação afetiva ou emocional, motivada pelos sentimentos do agente com relação ao Sujeito da ação; a ação racional com relação a valores, são as atitudes que envolvem planejamento orientado pelos princípios morais e valores do agente; e, finalmente, a ação racional com relação a fins, aqui nos deparamos comum uma ação eminentemente moderna, adequada ao mundo industrial e urbano, atitudes cujo planejamento é orientado pelos resultados que serão alcançados com sua realização. Observamos que existem dois pares de ações, cuja diferença fundamental entre eles está no fato de que, no último, o indivíduo consegue visualizar seus motivos para a ação, ao contrário do primeiro par. Isso, equivale a dizer que, nesta modalidade de ação, temos um maior controle sobre os resultados. O indivíduo escolhe como vai agir racionalmente, calcula os custos e prevê as conseqüências das atitudes. A opção pela tradição ou costume dificilmente se dá por escolha, salvo exceções que envolvem identidades de minorias políticas. Ao mesmo tempo, não se escolhe quem iremos amar. Nas ações racionais, ao contrário, a marca é o individualismo, o exercício da capacidade de ser um agente que pode se ajustar, afrontar ou recriar as estruturas que o rodeiam. A ilegalidade do aborto nega à mulher a capacidade de agir em conformidade a ação racional com relação afins na decisão de gerar, ou não, uma nova vida. À ela caberia, no imaginário social, reproduzir a 30 tradição e resguardar a emoção no espaço privado, o idion não político. Essa é última fronteira que impede a entrada efetiva a mulher no espaço público, a koinonia, e precisa ser derrubada. A despeito dos preconceitos e estereótipos, existe uma ética feminina, não escrita, que conclama as mulheres racionais a não se comportarem como “galinhas poedeiras” irresponsáveis pelos seus atos. Quando decidem abortar, as mulheres se pautam pelo mesmo princípio que os homens ao declarar as guerras: a liberdade e a autodeterminação, considerando que a dignidade é tão importante quanto a sobrevivência. Paris (2000) alerta para a ironia da situação na qual é dado aos homens o direito de guerrear, matar e destruir, até na guerra santificada e moralmente exigida. Contudo, quando se fala em aborto, as pessoas se sentem chocadas. Os mesmos que defendem a guerra, recusam o aborto com veemência, reeditando uma atitude clânica, segundo a qual, matar um estrangeiro é mais aceitável que ferir um membro da comunidade, mesmo que seja um não nascido. Na cultura sexista, o que mais incomoda é ver a mulher retomando um poder primevo, porque é muito poder que está em jogo, já que ela decide, faz um julgamento moral que envolve a vida ou a não vida. Esse poder, durante séculos, pertenceu aos homens, na guilhotina, garrote, forca, cadeira elétrica e, até hoje, aciona os mecanismos da injeção letal. Aceita-se que as mulheres dêem a vida e que os homens a destruam. Neste cenário, ela tem poder de dar e nenhum de destruir ou mesmo evitar a vida. Se observamos a história da humanidade, verificamos que pouca guerras podem ser consideradas justas, legitimas ou racionais, não se pode dizer o mesmo do aborto. A escolha pelo aborto reconhece os limites na oferta do melhor de nós mesmos e nossos recursos, isso configura uma ação racional com relação afins. Porque existe um limiar, a partir do qual, não há condições de se oferecer a vida. Aqui, a razão e a emoção indicam que a vida deve ser dada integralmente, não pela metade, nem para atender exigencias sociais. A espécie humana é dotada da capacidade do juízo e de volição, o que conduz a um cenário diversificado, onde uns desejam e outros não desejam procriar. Dar a vida é um ato racional humano. A procriação precisa ser refletida e decidida pela mulher como escolha individual, realizada por um agente moral, pois viver numa sociedade democrática tem como pressuposto a liberdade de escolha. Esse fato, nos liberta dos imperativos biológicos, aos quais estariamos submissos, malgrado nossos desejos. Numa democracia é inaceitável que alguns tenham o direito de forçar outros a se reproduzir. Gerar, parir e criar um filho contra a vontade constitui uma violação moral inaceitável aos direitos humanos da mulher. Uma gravidez imposta traz sofrimento psicológico, social, economico, mental e espiritual. Forçar uma mulher a parir e maternar é uma das mais profundas feridas inflingidas ao espírito humano. Um filho não desejado traz em si a marca da dominação que contamina a relação mãe e filho, vital para o desenvolvimento pleno e sadio da criança. Outra crença moral dissiminada pela Igreja é que a mãe amará incondicionalmente o filho concebido, independente de desejar ou poder assumir essa responsabilidade. Aqui se emprega a idéia de que o amor materno é obra da natureza. 31 Contudo, a prática social desmonta esse mito. Ao longo dos séculos, inúmeras medidas foram adotadas para se livrar das crianças indesejadas. O infantício seletivo foi praticado na Europa, entre os séculos IX e XVII. A Igreja ignorou solenemente essa prática. Entre os séculos XVIII e XIX, as crianças abandonadas abarrotavam os orfanatos, degraus de igrejas e a roda dos enjeitados dos conventos. Cenas da Inglaterra, século XVIII, descritas por Marvin Harris: Dezenas de milhares de mães encharcadas de gim costumavam atirar os bebes no Tâmisa, ou os enrolavam nos panos utilizados por variolosos, lançavam-os em barris de entulhos, rolavam por cima deles durante o estupor alcoólico e, de qualquer maneira, procuravam encurtar a vida dos filhos por meios diretos ou indiretos. Nos dias de hoje... o infanticídio ainda é praticado em grande escala nos países subdesenvolvidos (Harris, 1978,p. 68). No Brasil colonial, era freqüente crianças serem abandonadas nas ruas e devoradas por animais. No século XXI, casos chocantes de infanticídio ainda são registrados no país, mostram recém nascidos mortos ou abandonados nas latas de lixo das grandes cidades, jogados nas lagoas, rios e canais, deixados dentro de carros ou asfixiados em saco plástico. Numa única palavra: descartados. Trata-se de desumanidade essa proliferação de crimes perpetrados por mães, muitas delas meninas, sem assistência do Estado, da família ou dos namorados? O que há de errado com essas mães mostradas pela mídia como desvairadas, doentes ou desnaturadas? São mulheres que não podem ou querem ser mães, naquele momento nem naquela circunstância. Força-las é uma violência cujo resultado alimenta um ciclo de mais violência. A filósofa francesa Elizabeth Badinter foi uma das primeiras a rebater o mito do amor materno, na década de 80. Para ela, o amor materno é uma construção social que não nasce espontaneamente, nem com a notícia da gravidez, nem durante a gestação ou no momento do parto. Ele pode acontecer, ou não. Durante muito tempo, os estudiosos do tema, viram o infanticídio e atos semelhantes de “maldade” materna como resultado de situações de estresse extremo vividas pelas mães. Harris pesquisou o infanticídio e observou que nem sempre ele é praticado dentro do arcabouço explicativo darwinista. Isso sugere que o imperativo da procriação não passa de um mito. A guerra e o infanticídio feminino são sistemas de controle da população usados nas sociedades tradicionais em face dos recursos disponíveis. Na guerra, o campo do poder masculino se amplia, sua influência na demografia gera uma situação opressiva para a mulher. Na esteira das guerras encontramos estupros, seqüestros e a escravização. A guerra é uma atividade sexista. O infanticídio, coloca em xeque a naturalização do "instinto maternal". Marvin Harris descreve como os europeus cristãos, no século XIX, se desfaziam dos filhos indesejados por métodos indiretos, entre eles a asfixia. O número de abandonados nas ruas chegou a ser alarmante entre os anos de 1824 e 1833. Tais desumanidades, perpetradas por aqueles que, supostamente, protegeriam a prole com a própria vida, seriam impossíveis se o vínculo entre mães e filhos fosse algo natural e inconteste. Entre as formas de infanticídio indireto está a alimentação inadequada, os descuidos com higiene e saúde, a negligencia e o abandono, uma forma eficaz era enviar o recem-nascido a ama de leite sem prover o 32 pagamento, o que determinava a morte do nascido em questão de dias. Essa prática evitava o infanticídio direto e recaia, com frequencia, sobre as meninas já que demandavam dotes e não trabalhavam na terra. Os métodos variavam de inanição, desidratação, exposição aos elementos, asfixia ou traumatismos múltiplos. A grande diferença entre o aborto de um embrião ou um feto e o infanticídio é que os bebes são seres vivos, dotados de direitos humanos, direito à vida e cuidados. O trabalho Nancy Scheper-Hughes, da Universidade da Califórnia - Berkeley, “Death Without Weeping”, realizado no Nordeste brasileiro, detectou algumas formas indiretas de infanticídio, entre elas a negação sutil e secreta de alimentar os recém nascidos. Esse trabalho provocou revolta e acusações, mas é resultado de uma observação realizada em Alto do Cruzeiro (PE), local de grande pobreza, privações, sexismo, fome crônica, exploração econômica e alta taxa de mortalidade infantil. As mulheres que fizeram parte desta pesquisa, tiveram, em média, 9.5 gravidezes, das quais 3.5 crianças morreram. Cerca de 70% dos óbitos ocorreram nos seis primeiros meses de vida, sendo 82% antes de completarem o primeiro ano de vida. Do total das mortes anuais na comunidade, 45% eram de crianças com menos de 5 anos. Scheper-Hughes observou que inúmeros partos ocorriam sem apoio das redes de proteção ao recém nascido, institucionais ou familiares. As mães solteiras, empregadas domésticas ou trabalhadoras informais no entorno da indústria sucro-alcooleira não tinham como levar os filhos para as casas onde trabalhavam, nem carregá-los até os bancos de rios onde lavam a roupa, tampouco podem andar os vários quilômetros até as roças de cana carregando recém nascidos. As crianças mais velhas cuidam dos recém nascidos, ou então, eles são simplesmente deixados em casa sozinhos. Não é incomum saber que morreram só e desassistidos. A pesquisadora revela o fato que mais a impressionou nesta realidade impiedosa, a indiferença das mulheres em relação a morte de seus filhos. Elas se justificavam alegando que alguns bebes teriam ‘aversão pela vida’, sua morte seria natural e previsível. Provavelmente, essa estratégia tenta mitigar a dor do próprio desamparo, pois sabem que carecem de condição para trazer outros filhos ao mundo e da opção de evitar, ou interromper uma gravidez indesejada. Scheper-Hughes relata que, mesmo quando é possível salvar a vida dos bebes, com um simples e barato soro caseiro, era difícil convencer as mães a assumir essa tarefa quando acreditavam que o bebe era marcado pela morrer, seria um anjo e não uma criança. Essas crianças estigmatizadas, na sua maior parte, sofriam desnutrição ou desidratação. A alta expectativa de mortalidade, associada a percepção da morte infantil com estoicismo, produz um padrão de nutrição diferenciado entre crianças que ‘vingavam’ e que “queriam morrer”. As sobreviventes recebiam alimentos, enquanto os estigmatizados eram deixados para morrer à mingua. Os anos de pesquisa no Alto Cruzeiro comprovaram que há uma negligencia seletiva, ou o que Harris denomina de infanticídio passivo. Essa estratégia de sobrevivência é outra demonstração de que o amor materno não é um ato natural, mas uma construção emocional, psíquica, social e cultural. 33 A conclusão do estudo analisado é que num ambiente hostil à fragilidade da vida infantil, o desligamento emocional da mãe aumenta a espiral da alta mortalidade . Mas considerando que para as mulheres pobres só existe a indiferença generalizada, o descaso social e a negligencia institucional, deixar os filhos morrerem parece ser a única solução para suas desesperadas condições. No Nordeste do Brasil, na Índia, em Bangladesh, a taxa de mortalidade nos primeiros anos de vida chega a 40%. Neste contexto, as formas de desapego e negligencia produzem uma triagem entre os que têm e os que não têm chance de sobreviver. Essas práticas também são registradas na África e na América Central. A Igreja contribui para a rotinização e indiferença ante a morte infantil pregando uma atitude conformista e aceitação passiva da perda. Com isso, Estado e Igreja permanecem indiferentes, as mães permanecem abandonadas e os bebês, mortos. No, Dona Nanci, I won’t cry, and I won’t waste my life thinking about it from morning to night.... Can I argue with God for the state that I’m in? No! And so I’ll dance and I’ll jump and I’ll play Carnaval! And yes, I’ll laugh and people will wonder at a pobre like me who can have such a good time.3 Scheper-Hughes conclui, melancolicamente, que ninguém culpou Biu por dançar nas ruas durante os 4 dias de carnaval enquanto se reuniam para o funeral de Mercea, a caçula que morrera de pneumonia durante as festividades. O resto da família mal teve tempo de trocar a fantasia. Essa é a radiografia cruel da realidade encontrada no Nordeste brasileiro. Não sabemos até que ponto estas mulheres desejavam este número de gravidezes e filhos nestas condições de vida. Não conhecemos o nível de escolha destas mulheres, mas quando a escolha é praticamente inexistente, que tipo de relação se desenvolve na procriação sem o desejo de ser mãe? Dificilmente se poderá culpabilizar as mulheres, porque o crime está na hipocrisia social. Polícia ou saúde pública? Um dos aspectos ignorado e negligenciado pela Igreja e pelo Estado é que, a despeito da ilegalidade do aborto, ele é praticado e constitui um imenso problema de saúde pública. Salvo por tímidas tentativas de implantação de uma política de redução de danos. Estima-se que, no Brasil, entre 750.000 e um milhão e meio de abortos sejam praticados por ano, na grande maioria, em péssimas condições de higiene, segurança e respeito à dignidade humana, acarretando mortes e seqüelas físicas e psicológicas. Os custos econômicos e sociais do aborto clandestino e inseguro, recai sobre o conjunto da sociedade. Dados da OMS, demonstram mais de 50 milhões de abortos são provocados a cada ano no mundo todo, a metade é realizada sem condições de segurança. Como consequência, cerca de 200 mil mulheres morrem por ano em decorrência do aborto clandestino. 3 Não, dona Nancy, eu não choro e não vou desperdiçar a minha vida pensando nisto dia e noite...Posso discutir com Deus pela situação em que me encontro? Não! Então eu vou dançar e pular e brincar o Carnaval! E sim, eu vou dar risada e as pessoas vão admirar-se por uma mulher pobre como eu ter um momento tão bom.(tradução minha). 34 O aborto inseguro é uma violação dos direitos humanos das mulheres e instrumento de perpetuação da injustiça social quando reforça a desigualdade entre as classe, etnias e gêneros. A ilegalidade do aborto não evita sua prática, apenas o torna inseguro. Portanto, quando se defende a legalização do aborto, defende-se a saúde e a vida das mulheres. A tipificação do aborto como delito não desestimula a mulher a se submeter ao aborto. Pelo contrário, incentiva as práticas de risco, como declarou o Comitê sobre a eliminação da discriminação contra a Mulher das Nações Unidas, o Cedaw e o Comitê de Direitos Humanos das Nações Unidas (CdH) estabelece que: O respeito ao direito à vida das mulheres inclui o dever dos estados de adotarem medidas para evitar que elas recorram a abortamentos inseguros e clandestinos que ponham em risco sua vida e sua saúde, especialmente quando se tratar de mulheres pobres e afrodescendentes (CdH, Observação Geral nº 28, parágrafo 10). Pratica-se a desobediência sistemática da doutrina cristã desde o fim do Império Romano. São usados anticoncepcionais como a rolha cervical, infusões, duchas, espermicidas, métodos para provocar aborto que custavam suas vidas. Até hoje, expedientes como agulhas, cabides, arames tomam lugar da cureta obstétrica, sem assepsia, sem respeito, sem dignidade e muito menos, cidadania. Naturalmente, as mais afetadas fazem parte dos grupo sociais menos privilegiados, são jovens, pobres, muitas delas negras. A maternidade precisa ser entendida como um processo, um ato humano de volição e desejo de assumir o cuidado com outro ser. O desejo da mulher controlar a natalidade revela a percepção de que a sobrevivência depende da capacidade de fornecer à cada criança o necessário para o seu desenvolvimento integral. As mulheres são elas, notadamente, as primeiras a sofrer com a escassez, crises, guerras e, por esse motivo, não permitim o nascimento de um filho quando há risco de sobrevivência ou compromete os filhos existentes. Mesmo nas sociedades altamente repressoras, as mulheres encontram formas de controlar a natalidade através da contracepção e do aborto. Até a Idade Média, as parteiras atuavam como aconselhadoras sobre uso de ervas e poções, até a Igreja afasta-las das mulheres, condenando-as por prática de bruxaria e impondo a proibição de remédios para aliviar dores do parto (PARIS, 2000). Da mesma maneira que os soldados islamicos doam suas vidas na esperança de arrebanharem as 72 virgens no paraíso, ensina-se que a mulher que morre de parto, vai direto para o céu. Essa medida manipuladora é utilizada, sobretudo, com adolescentes no início do desenvolvimento psíquico, corporal e mental, cuja gravidez interrompe a trajetória da vida impondo um filho que não se tem vontade de cuidar. Atualmente, no Brasil, temos cerca de 1/3 dos lares no país sustentados por mulheres. São as responsáveis pelo amparo econômico, afetivo, físico e emocional necessário à sobrevivência e o desenvolvimento pleno das crianças. Como se pode forçar alguém a assumir um papel de tamanha responsabilidade sem o seu consentimento? A mãe constrangida a procriar seria igualmente cuidadosa, protetora, nutridora, cuidadora, paciente e compreensiva? Ou tudo não passa de um mito? A maternidade humana é uma escolha ética, não imposição genética (Rosado, 2004). 35 É um ato de extrema violência obrigar alguém a procriar contra a própria vontade. Quais são as conseqüências deste constrangimento? Quem será o grande prejudicado com essa medida punitiva? A mulher, sem duvida, mas, mais do que ela está em jogo, a vida dos filhos indesejados, pois essa violencia termina por degradar a relação mãe/filho. Até os anos 90, a UNICEF estimava que 100.000.000 crianças no mundo careciam de teto, pais, educação e dinheiro. Isso é resultado direto da degradação social a que muitas mulheres estão submetidas por não ter acesso ao aborto. A rejeição social, associada ou não à pobreza, é uma das origens da prostituição de jovens mães solteiras na América do Sul, África e Ásia. Para essas crianças indesejadas, a opção pela rua e a marginalidade, inúmeras vezes, resulta da vivência doméstica conturbada e brutal, na qual a violência é perpetrada pelos próprios pais ou consentida pela omissão. “É a família o primeiro e mais devastador foco de rejeição e de ressentimento”(Dimenstein, 2007). A rejeição e seus efeitos nefastos para a psiquê humana não são privilégio de uma classe social. Perpassa toda sociedade, as famílias pobres, a classe média sem tempo para acompanhar o crescimento das crianças educadas pela televisão, até os mal educados filhos das familias ricas criados por babás. “A mulher pobre com muitos filhos pode ser um fator de risco. Isso não é preconceito. É uma obviedade. Quando indesejadas, as crianças recebem menos atenção e sofrem mais agressões”(Dimenstein, 2007). O desenvolvimento infantil pleno requer cuidados, atenção e afeto, as crianças precisam ser acolhidas, nutridas no corpo e no espírito porque são frágeis e vulneráveis por um longo período de tempo. O aborto precisa ser legal e vir acompanhado por uma politica séria de planejamento familiar, uma política responsável que impeça o surgimento da multidão de abandonados e maltratados, indesejados dos quais ninguém se ocupa, nem a Igreja, nem o Estado. REFERÊNCIAS ARDALLION,DANIELLE. (1997). Cidadania de corpo inteiro. Discursos sobre o aborto em número e gênero. Tese de doutorado, Departamento de sociologia, FFLCH, USP. ARENDT, HANNAH. (1991). A Condição Humana.Rio de Janeiro: Forense Universitária. BADINTER, ELIZABETH. (1985). Um Amor conquistado: o mito do amor materno. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. CEDAW. http://www.un.org/womenwatch/daw/cedaw. Acessado em dezembro de 2011. DEL PRIORE, MARY (1993). Ao sul do corpo: condição feminina, maternidade e mentalidade no Brasil Colônia. 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