Rev. Latinoam. Psicopat. Fund., São Paulo, 24(2), 243-250, jun. 2021
http://dx.doi.org/10.1590/1415-4714.2021v24n2p243.1
Editorial
Os afetos na pandemia da Covid-19 e a
política da imobilização psíquica
Emotions during the Covid-19 pandemic and
the politics of psychological immobilization
Maria Livia Tourinho Moretto*1
Nelson da Silva Jr.*2
Em seu Editorial da Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, há menos de um ano, em setembro de
2020, Ana Maria Oda e Sonia Leite, registravam: “o número de
óbitos causados pela pandemia de Covid-19 (doença pelo novo
coronavírus) já́ ultrapassa 142 mil pessoas no Brasil, e o número
de casos de infecção chega a quase 4,8 milhões. No mundo, são
mais de 1 milhão de mortes e 33 milhões de casos” (Oda & Leite,
2020). Entre seus efeitos de horror e de entorpecimento, as Editoras
já apontavam o caráter inominável subjacente às cifras daquele
momento.
Hoje, em junho de 2021, as cifras brasileiras ultrapassaram
470.000 em número de mortos pela pandemia e cerca de
16.841.954 de casos infectados. Desde então, reafirmou-se o
caráter evitável de pelo menos um quinto dessas mortes: pelo
menos 94.000 teriam sido evitadas caso o governo federal tivesse
*1, 2 Universidade de São Paulo – USP (São Paulo, SP, Brasil) .
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agido com seriedade e responsabilidade diante da realidade da pandemia
e da possibilidade de atenuar seus efeitos, como por exemplo, adquirindo
as vacinas quando foram oferecidas e aproveitado a rede do SUS já em
funcionamento para sua distribuição planificada. Alguns aspectos desse
genocídio receberam seus nomes, e ao lado do horror e do entorpecimento,
outros afetos tomaram a cena, como a indignação com o caráter intencional
dessas mortes, como tem se tornado claro na CPI da Covid. Mas, para além
da indignação, outro afeto tem insistido, a saber, o espanto com a servidão
voluntária de extensas camadas da população brasileira diante de um chefe de
estado populista, que fomenta a violência, a precedência da economia sobre
as vidas humanas e cuja atuação antidemocrática tem visado desautorizar
as instituições públicas de modo sistemático. Hoje, ao lado do risco da
pandemia, novas sombras ameaçam a vida pública brasileira como, por
exemplo, a violência desenfreada de um Estado de Direito que se articula às
milícias e, assim, favorece o retorno ao regime do Estado da força.
Alguns índices mostram o sofrimento psíquico decorrente desse estado
de coisas. O impacto da pandemia na saúde mental e na qualidade de vida
dos brasileiros pode ser notado pelo aumento de casos de suicídio, depressão,
ansiedade e violência doméstica. De acordo com Rocha et al. (2021) os
comprometimentos psicológicos têm sido expressos também por instabilidades
de humor, níveis elevados de ansiedade, situação de estresse, frustração,
solidão, raiva e alteração de padrão de sono. Fatores associados à duração
prolongada da medida de confinamento, às possibilidades de contágio, às
instabilidades econômicas, ao desconhecimento e às incertezas que permeiam a
doença, são determinantes para o grau de sofrimento psíquico.
A Psicopatologia Fundamental não poderia deixar de refletir sobre
essa situação catastrófica a partir de seu próprio campo conceitual. Freud
(1914/1982b) define o sofrimento como uma experiência ligada ao
narcisismo, recorre ao humor (Freud, 1927/1980) como uma possibilidade
de defesa frente ao sofrimento, e afirma, no texto “Mal-estar na civilização”,
que ele é derivado de três fontes: do próprio corpo (por meio do processo de
adoecimento), do mundo exterior (que pode voltar-se contra nós com forças
de destruição esmagadoras e impiedosas) e da relação com os outros homens
(supondo que esta última seja a mais penosa entre as três fonte mencionadas)
(Freud, 1930/1982d).
A pandemia da Covid-19 potencializa essas três fontes de sofrimento em
um único acontecimento: em primeiro lugar, atinge o corpo de cada um de
modo imprevisível, alguns permanecendo assintomáticos, e outros tendo um
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EDITORIAL
desfecho fatal a partir da infecção; em segundo lugar, representa uma ameaça
invisível que parte do exterior, ameaça que atinge o planeta por inteiro e exige
uma postura preventiva diante dela, alterando nossas formas de vida de modo
inédito; e, finalmente, ceifa vidas que nos são caras, privando os enlutados até
mesmo dos obséquios, cuja dimensão pública cumpre o papel de nos auxiliar
a desinvestirmos dos que foram e novamente abraçarmos a vida.
Caso avancemos nossa reflexão em direção às estruturas psíquicas
afetadas pelo impacto dessas três fontes, Freud nos convida a trabalhar a partir
da premissa de que há uma dimensão sociopolítica do sofrimento (Debieux-Rosa, 2016). A primeira constatação é que a sobreposição de fatores traz
sérios obstáculos à tradução dessas experiências em palavras, o que tende a
impelir os sujeitos a vivenciá-las na lógica do trauma (Green, 2000).
De fato, o aumento dos índices epidemiológicos ligados ao sofrimento
psíquico confirma uma premissa da psicanálise a respeito da participação
da dimensão social na estrutura psíquica. Para Freud, o aparelho psíquico
é, desde o início, não apenas radicalmente aberto à dimensão social, como
também estruturado por essa dimensão. Nessa premissa estão presentes duas
teses sobre o sofrimento psíquico. Primeiramente a tese que as patologias
são dependentes da organização social em que surgem. Trata-se de um tema
explicitamente abordado por Freud, pelo menos desde 1908, em seu texto
“A moral sexual civilizada e a neurose moderna” (Freud, 1908/1982a) onde
apontou o caráter patogênico de uma excessiva exigência de sublimação da
sexualidade por parte da cultura vienense da época. Nesse primeiro tempo, a
patogênese da sublimação está na origem dos sintomas neuróticos, caso ela
ocorra em excesso. A premissa freudiana de que o sujeito se estruture a partir
da sociedade em que vive, retoma uma tradição de crítica social inaugurada
com Rousseau; é apresentada de forma independente por Marx e tem sido
central no Instituto de Pesquisa Social desde Adorno e Horkheimer. Premissa
que afirma a historicidade das formas de pensar e sentir, e, portanto, o caráter
social de todo sofrimento individual.
Num segundo tempo de sua obra, após a introdução da pulsão de morte
na economia psíquica, a sublimação inerente à formação do Superego terá o
poder de desfusionar a pulsão de morte das pulsões de vida, para, em seguida,
refusioná-las sob a forma do masoquismo moral (Freud, 1924/1982c). Nesse
caso, o sofrimento assume um estatuto de inevitabilidade, donde a expressão
Patologias das comunidades culturalizadas, presente em “Mal-estar na
civilização” (1930/1982d). Esta é a resposta de Freud ao grande enigma da
filosofia política descrito por La Boétie (1553/1976) e conhecido como a
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Servidão Voluntária: “Por que milhares de pessoas voluntariamente sacrificam
sua liberdade a um tirano sem serem coagidas a isso pela força física?” Isto é,
como entender a servidão voluntária?
A hipótese freudiana é consistente para sua época. Ela permite uma
interpretação forte sobre a sedução exercida pelas ideologias totalitaristas e
seus líderes, coisa que o século XX testemunhou abundantemente. De fato,
o masoquismo moral sempre esteve solidamente apoiado em dois polos: a
economia psíquica organizada pelo complexo de Édipo e a cultura patriarcal
ocidental. As religiões e as instituições sociais correlatas, como a família, a
educação e a justiça, funcionam como discursos que valorizam o sacrifício.
Nesse contexto, o sacrifício aos ideais gera um aumento exponencial da
satisfação masoquista do Ego, como também do rigor das exigências do
Superego, o que foi exemplarmente descrito por Freud em “Moisés e a
religião monoteísta” (1937/1982e).
Em ambos os casos, os impactos de tais fatores patogênicos endógenos
dependem da relação dos sujeitos com a verdade dos próprios afetos: sejam
eles desejos eróticos, desejos de crueldade ou desamparo. Verdade, portanto, no
sentido grego de desvelamento, resgatado por Heidegger, e interpretado em Ser
e Tempo (Heidegger, 1927/1979), como um confronto com nossa intolerável
finitude. A fuga incessante da própria verdade tem sido a principal abertura do
psiquismo à manipulação por parte do outro, seja ele a indústria cultural, seja
ele o governo. Com efeito, as patologias do social podem ser consideradas não
apenas “restos” indesejáveis de uma cultura, mas produtos inerentes a elas, elas
também revelam o modo que cada sociedade nomeia o tratável e o intratável
de si mesma. Em tais nomeações do tratável e do intratável reside seu modo de
gestão do sofrimento, tal como demonstrou Michel Foucault em sua História
da loucura (Foucault, 1964/1978). A nomeação e gestão social dos afetos se
revelam como instrumentos de gestão social (Cerqueira Filho, 2005; Safatle,
2016; Safatle, Silva Junior & Dunker, 2020).
Cabe, portanto, retomar os afetos de horror, entorpecimento, indignação
e espanto que a população brasileira tem sofrido a partir dessa perspectiva
política de gestão dos afetos. Ao serem traduzidos exclusivamente como
resultantes de disfunções orgânicas, os sofrimentos adquirem formas de
nomeação que distanciam os sujeitos da experiência de uma vida em comum.
Claro está que, ao excluir dele todas as causas sociais e históricas, esta
resignificação do sofrimento implica necessariamente sua despolitização.
Contudo, a atuação do Governo Federal deu um passo além dessa forma já
tradicional de alienação política que separa os sofrimentos da situação social
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EDITORIAL
em que surgem. Com uma estratégia de desmentidos constantes, sabotagem
incansável da suposição de uma realidade compartilhada através das fakenews, práticas de intimidação a jornalistas e cientistas que ousam discordar
e denunciar as inconsistências, a incompetência e a má-fé no uso dos
aparelhos de Estado, o que temos que reconhecer é que o entorpecimento, a
paralisia e o espanto se tornaram os principais afetos de gestão instrumental
do Estado brasileiro. Fomentar o caos social e a imobilização psíquica tem
aparentemente sido uma estratégia temerária para atingir um sinistro objetivo
de apropriação pessoal de um poder que é do povo.
É nesse momento íngreme de nossa história, onde a ciência tem sido
um alvo preferencial de ataque, que assumimos a responsabilidade de dar
continuidade à RLPF em sua longa e consistente trajetória editorial. Desde seu
fundador e primeiro Editor, Manoel Tosta Berlinck, a RLPF tem se consagrado
como uma revista que abrange não somente pesquisas relacionadas às clínicas
da psicologia, da psicanálise e da psiquiatria em sentido estrito, mas também
estudos sobre a subjetividade em suas articulações mais amplas com a história,
a filosofia, as ciências sociais, as artes e a cultura em geral. Esse estímulo a
perspectivas interdisciplinares na abordagem da psicopatologia constitui a
principal singularidade da revista frente aos periódicos da chamada área “psi”
(Psicologia, Psiquiatria, Psicanálise e Saúde Mental) existentes no Brasil e
internacionalmente. Recebemos a RLPF em um momento privilegiado de
sua história, garantido não apenas pela regularidade e alta qualidade de suas
publicações, como também em vista das conquistas realizadas por suas três
últimas editoras: Ana Rudge, Sonia Leite e Ana Maria Oda que deram passos
decisivos em sua organização interna, no aprimoramento de seus processos
de edição com a adoção da plataforma ScholarOne, na maturação de sua
linha editorial, no reforço e ampliação da vocação interdisciplinar da revista,
na busca de alternativas criativas para sua autonomia e equilíbrio financeiro,
na implantação de critérios acadêmicos para a submissão de artigos, como a
exigência de Orcid dos autores.
Diante de nós, outros desafios se impõem, para além da manutenção das
conquistas realizadas até agora. Em nome da importância da pontualidade e
da qualidade da informação, estabelecemos como metas a redução máxima
possível dos prazos entre submissão do manuscrito, sua avaliação e decisão
editorial final e a implementação de um sistema de detecção de plágio.
Estamos cientes e atentos ao fato de que o espaço editorial para a
psicopatologia e para a psicanálise estreita-se cada vez mais dentre os
periódicos científicos de alto impacto. A sobrevivência de uma disciplina no
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mundo editorial depende, sem dúvida, de sua visibilidade nos grandes fóruns
intelectuais mundiais e de suas repercussões no âmbito acadêmico.
Firmamos, com empenho e entusiasmo, o nosso compromisso de investir
na ampliação da circulação da RLPF no âmbito internacional, promovendo
ações em busca de cooperação internacional, seja pelo aumento da publicação
de autores estrangeiros em nossa revista, favorecendo os avanços nas trocas
científicas, seja por meio de ações que aumentem o impacto de publicações
derivadas das pesquisas produzidas em nosso país, acarretando maior
visibilidade da ciência brasileira.
Referências
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Cerqueira Filho, G. (2005). Autoritarismo afetivo: a Prússia como sentimento. São
Paulo, SP: Escuta.
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Frankfurt-am-Main: Fisher Taschenbuch Verlag. (Trabalho original publicado
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Freud, S. (1982d). Das Unbehagen in der Kultur. Studienausgabe (Vol. IX). Frankfurtam-Main: Fisher Taschenbuch Verlag. (Trabalho original publicado em 1930).
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Green, A. (2000). La position phobique centrale: avec un modèle de l’association
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Oda, A. M., & Leite, S. (2020, set.) A pandemia de COVID-19 no Brasil: em busca
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Rocha, D. M., Silva. J. S., Abreu, I. M., Mendes, P. M., Leite, H. D., & Ferreira, M.
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Citação/Citation: Moretto, M. L. T., & Silva Junior, N. da (2021, jun.). Editorial.
Os afetos na pandemia da Covid-19 e a política da imobilização psíquica. Revista
Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, 24(2), 243-250. http://dx.doi.
org/10.1590/1415-4714.2021v24n2p243.1
Editoras/Editors: Profa. Dra. Ana Maria Galdini R. Oda e Profa. Dra. Sonia Leite
Recebido/Received: 4.6.2021 / 6.4.2021 Aceito/Accepted: 7.6.2020 / 6.7.2020
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Maria Livia Tourinho MoreTTo
Professora Titular do Departamento de Psicologia Clínica, Instituto de Psicologia da
Universidade de São Paulo (São Paulo, SP, Br); Editora da Revista Latinoamericana
de Psicopatologia Fundamental (São Paulo,SP, Br).
Avenida Professor Mello Moraes 1721 – Cidade Universitária
05508-030 São Paulo, SP, Br
liviamoretto@usp.br
https://orcid.org/0000-0002-8446-4640
neLson da siLva Jr.
Professor Titular do Departamento de Psicologia Social e do Trabalho, Instituto
de Psicologia da Universidade de São Paulo (São Paulo, SP, Br); Editor da Revista
Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental (São Paulo, SP, Br).
Avenida Professor Mello Moraes 1721 – Cidade Universitária
05508-030 São Paulo, SP, Br
nelsonsj1961@gmail.com
https://orcid.org/0000-0002-2454-5019
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