JOÃO DO RIO E O CINEMATOGRAPHO: PRIMEIRA
MODERNIDADE LITERÁRIA E PRIMEIRO CINEMA
Adalberto MÜLLER *
RESUMO: Em Cinematographo: chronicas cariocas, João do Rio não apenas estabelece
pela primeira vez nas nossas letras uma correlação técnica entre o trabalho do escritor e
o do cinegrafista, mas situa o cronista carioca como um autor genuinamente moderno,
pelo modo como observa a metrópole em formação a partir de técnicas modernas de
observação similares às praticadas no primeiro cinema (early cinema).
PALAVRAS-CHAVE: João do Rio. Literatura e cinema. Vida urbana. Tecnologia e
percepção. Modernidade e modernismo.
A literatura produzida por João do Rio, em Cinematographo: chronicas
cariocas (de 1908), acompanha de perto, como um documentário, a nova
sensibilidade e o novo estado de coisas da primeira modernidade brasileira. Muito
antes de 1922, a literatura de João do Rio já é moderna (e não pré-moderna), uma
vez que é produzida sob influxo da vida urbana na metrópole em formação, e sente
o impacto das novas tecnologias de transporte e de um novo sistema midiáticocultural (SCHMIDT, 2008). Ao mesmo tempo, o Cinematographo de João do Rio
(ou Joe, como ele assinava a coluna de mesmo nome na Gazeta de Notícias) é
testemunha ocular, mas também sonora e vocal, do surgimento da primeira
metrópole moderna no Brasil, que se dá em torno das transformações urbanísticas
implantadas no Rio de Janeiro a partir de 1903. Graças ao ímpeto modernizador de
políticos como o prefeito Pereira Passos (engenheiro e urbanista), com o respaldo
do presidente (paulista) Rodrigues Alves (que queria transformar o Rio numa
vitrine de um Brasil moderno) e de engenheiros positivistas como Lauro Müller e
Paulo de Frontin, realiza-se o “bota abaixo” da antiga cidade colonial, e rasgamse avenidas (como a Avenida Central, hoje Avenida Rio Branco), criam-se novas
linhas de bonde e de trem, e ampliam-se os espaços culturais e boêmios da cidade.
A Exposição Universal de 1908 coroa a imagem de um país que despertava de
um sono secular, e mostra aos brasileiros uma nova cidade, que perde a alcunha
de Cidade da Morte para se tornar a Cidade Maravilhosa. O projeto urbanístico –
que lembra o de Haussmann em Paris – tinha por finalidade não outra coisa senão
* UFF – Universidade Federal Fluminense. Instituto de Letras – Departamento de Ciências da
Linguagem. Niterói – RJ – Brasil. 22220-060 – adalbertomuller@gmail.com
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transformar o cenário urbano em razão dos ideais republicanos a serviço do novo
capitalismo industrial financeiro em formação:
O plano de 1903, que serviu de base à remodelação do Rio de Janeiro, sob
a Prefeitura de F. Pereira Passos, representa, em comparação ao precedente,
o reflexo urbano do projeto que a República trouxe consigo, ou seja, a
reorganização da sociedade mediante a indução de uma sociedade formalmente
moderna, isto é, capitalista, antes pelos efeitos na esfera da circulação, do que
pelas causas na produção. Nesse sentido, as concepções deviam atender aos
imperativos postos pelo novo sistema, ou seja: a reprodução da força-trabalho e
sua divisão funcional em classes contida na fórmula “saneamento” [...] Tornar
eficiente e rápido o sistema de transporte e de circulação seja de mercadoria
seja de força-trabalho, contida na fórmula “melhoramento da viação urbana”
[...] A indução da produção, base da riqueza, e a concentração de tal riqueza,
augurado na fórmula “melhoramento e embelezamento”, atendia ao objetivo
formal de oferecer uma fachada “desenvolvida”, moderna e segura ao país,
“sendo a capital considerada como o país inteiro” (CHIAVARI, 1985, p.589).
Não é por uma razão fortuita que a coluna “Cinematographo”, assinada por
João do Rio (Aliás, João Paulo Alberto Coelho Barreto), sob o pseudônimo Joe,
tinha o nome dessa mais nova mídia óptica – um optische Medium (KITTLER,
2002). Digamos logo: o cinema, na literatura de Joe, aliás, João do Rio, não é um
pretexto para outra coisa. Essa literatura já é cinema, ela já diz “eu sou cinema”.
Como, aliás, toda a literatura realmente moderna que virá em seguida, pois na era
da “reprodutibilidade técnica” todas as artes serão afetadas pela “perda da aura”, e
mais ainda, pelo “inconsciente ótico” (Optisches-Unbewusst) descrito por Walter
Benjamin (2002) em seu texto sobre a reprodutibilidade técnica, todas elas se
transformam com o advento das tecnoimagens e da tecnoimaginação (FLUSSER,
2003). Estou querendo dizer, com todas as letras, que Joe (aliás, Paulo Barreto) não
apenas incorpora o olhar cinematográfico, mas percebe as coisas como cinema,
pensa como cinema e escreve como cinema. Por isso, aqui, agora, a relação
literatura e cinema – ou cinema e literatura, não importa – seja tão radical, já que
ela está na raiz do que se verá (e do que se lerá) no século moderno e também no
século modernista. Tomada desse ângulo, a diferença entre o moderno em João do
Rio e o modernismo de 1922 é apenas quantitativa, na medida em que o olharcinema (e o ouvir-gramofone) apenas se narrativizaram e se industrializaram mais
e mais, entre 1908 e 1922. Mas é ainda o cinema e o gramofone que escrevem a
nova literatura, uma literatura que “se escreve” intransitivamente, assim como “se
grava” imagem e som.
O cinema nasce de um desejo crescente de capturar a aceleração e o
movimento decorrentes das transformações nos meios de produção e consumo,
bem como na alteração radical dos meios de circulação de mercadorias e pessoas
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João do Rio e o Cinematographo: primeira modernidade literária e primeiro cinema
na alta modernidade. A partir da segunda metade do século XIX, na Europa, e em
torno de 1900, no Brasil, a eletricidade, o vapor, o trem e o automóvel alteram
profundamente a concepção de tempo e de espaço, e imprimem um novo regime
perceptivo (CRARY, 1991; SCHIVELBUSCH, 1986). O cinema e o gramofone são
as novas formas de “escrita” desse tempo acelerado. Mecanicamente, os 16 quadros
por segundo do cinematógrafo e as 78 rotações por minuto do gramofone criam
um novo sistema de comunicação, não mais simbólico, mas analógico (vivemos
hoje num outro regime, muito mais complexo, o digital). O sistema analógico não
se organiza em função da contemplação da imagem religiosa, muito menos em
função da interpretação da palavra impressa, mas em função da circulação massiva
e da recepção descentrada e anônima, que oferece múltiplos inputs e outputs ao
sistema. No sistema analógico, já não podemos interpretar, no sentido clássico. O
máximo que podemos fazer é desmontar os aparatos, abrir as “caixas-pretas”, de
modo a revelar o sistema discursivo que lhe é subjacente. O sistema analógico é
pós-hermenêutico. João do Rio bem percebeu isso. Em primeiro lugar, percebe que
o cinema é a sucessão ininterrupta das “fitas”:
Com pouco tens a agregação de vários factos, a história do anno, a vida
da cidade numa sessão de cinematographo, documento excellente com a
excellente qualidade a mais de não obrigar a pensar, senão quando o cavalheiro
teima mesmo em querer ter ideas. (RIO, 1909, p.v).1
“Agregação” corresponde ao que mais tarde, quando o cinema se domestica
pela literatura – e perde a sua força analógica, tornando-se simbólico –, chamarse-á de montagem. No regime da agregação, a mídia é a mensagem, isto é, ela
chama a atenção para si mesma, para o regime de mostração. É daí que vem a força
poética do “cinema das origens”:
O panno, uma sala escura, uma projeção, o operador tocando a manivella e
ahi temos ruas, miseráveis, políticos, actrizes, loucuras, pagodes, agonias,
divórcios, fomes, festas, triumphos, derrotas, um bando de gente, a cidade
inteira, uma torrente humana – que apenas deixa indicados os gestos e passa
leve sem deixar marca, passa sem se deixar penetrar... (RIO, 1909, p.vi)
Ao contrário do hermeneuta, que quer penetrar o texto em busca do
“sentido”, intenctio autoris, e acaba achando-se a si mesmo – “Il lit le livre de
lui-même”, dirá Mallarmé da cena de Hamlet lendo um livro –, o espectador
do cinematógrafo é um hermenauta, navegando entre imagens que desfilam e
passam por suas retinas. Para ler o Cinematographo, precisamos, mais do que
uma hermenêutica, de uma hermenáutica. Mas, dirão, as imagens estupidificam
e emburrecem, exatamente porque não interpelam o exercício crítico da razão.
De fato, mais do que interpelar, as imagens apelam. As imagens excitam. São
1
Mantivemos a grafia original nas citações do livro de João do Rio.
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excitantes. Elas correspondem, para o intelecto moderno, ao que os trens e
automóvel correspondem para as pernas. Com elas, simplesmente, chega-se
mais rápido. Do mesmo modo que elas chegam mais rápido. De modo que o
“intelectual crítico”, sentado em sua escrivaninha, a compulsar velhos tomos e
alfarrábios, não consegue pensar a 78 rotações por minuto e muito menos a 16
quadros por segundo:
Alguns esthetas de atrazada percepção desdenham do cinematographo. Esses
esthetas são quase sempre velhos críticos ankilosados cuja vida se passou a
notar defeitos nos que sabem agir e viver. Nenhum desses homens, graves
cidadãos, compreehende a superioridade do alliviante progresso d’arte.
O cinematographo é bem moderno e bem d’agora. Essa é a sua primeira
qualidade. (RIO, 1909, p.vii)
A isso acrescenta o cronista que o cinematógrafo não é mais um avanço
tecnológico entre outros, nem é resultante de outros avanços de priscas eras. Não,
o cinematógrafo é diferente de tudo o que já se viu, não pode ser julgado por
outros parâmetros que não os processos de modernização tecnológica de que faz
parte.
Todos os generos de arte perdem-se no tempo distante. Todas as ciências
têm Raízes fundas na negridão clássica das eras[...] O Cinematographo ao
contrario. É d’outro dia, é extra-moderno, sendo como é resultado de uma
resultante de um resultado scientifico moderno. (RIO, 1909, p.vii-viii)
Assim como Pereira Passos ia alargando e iluminando as avenidas do Rio –
com os resultados científicos modernos de Lauro Müller e Paulo de Frontin –
criando pontes – mas também expulsando uma horda de miseráveis para os
subúrbios cariocas, diga-se de passagem –, assim quis Paulo Barreto (digo, Joe,
digo, João do Rio) introduzir o cinematógrafo nas letras. A propósito, já que cito
de viés o título de um livro muito conhecido, e talvez mais do que o livro (de João
do Rio) que lhe deu origem ao título – refiro-me, é claro, ao livro Cinematógrafo
das letras, de Flora Süssekind (1987) – não posso me furtar a fazer aqui um elogio
e uma ressalva.
O livro de Flora Süssekind é pioneiro, no Brasil, do estudo do que ficou
conhecido por aqui como “materialidades da comunicação”, e que, na Alemanha, é
parte do campo da Medienwissenschaft e da Medientheorie. Devemos a esse livro
de Flora Süssekind o primeiro estudo sistemático e bem fundamentado do impacto
das tecnologias de comunicação sobre a literatura. Trata-se, para ela, acertadamente,
digamos, de:
[...] sugerir uma história da literatura brasileira que leve em conta as
suas relações com uma história dos meios e formas de comunicação,
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cujas inovações e transformações afetam tanto a consciência de autores
e leitores quanto as formas e representações literárias propriamente ditas
(SÜSSEKIND, 1987, p.26).
Não vou me deter na polêmica do chamado “pré-modernismo”, que é mais
uma polêmica de escola, mas num momento bastante específico do texto de
Flora Süssekind, um momento que diz respeito apenas a João do Rio, e, mais
especificamente, ao conceito de cinema que está em jogo no Cinematographo.
No julgamento final que faz do Cinematographo e da prosa de João do Rio em
geral, Flora Süssekind considera que o escritor carioca ainda adota uma atitude
meramente imitativa em relação ao cinema, não sendo capaz ainda – como os seus
companheiros de geração – de “enformar” seus textos a partir da técnica própria
dessa nova mídia. Em outros termos, João do Rio vê o cinematógrafo do mesmo
modo que vê a Exposição Nacional, como um “espectador encantado da exhibitio
moderna” (SÜSSEKIND, 1987, p.25):
Diante dos novos maquinismos, a reação, meio no susto, numa primeira
instancia, é, pois, de imitação. Não parece possível ainda a João do Rio
reelaborar criticamente esse influxo técnico. É possível somente uma espécie
de flirt rápido com ele. Situação que não seria, no entanto, exclusividade de
Paulo Barreto. [...] Sem chegar, no período a estabelecer em geral ligações mais
perigosas, com melhores resultados estéticos, com tais artefatos modernos
(SÜSSEKIND, 1987, p.48).
Sob a égide da “reelaboração crítica” e do critério de gosto que caberia melhor
aos estetas fin-de-siècle que a uma pesquisadora do seu talante, Flora Süssekind
quer aniquilar em dois parágrafos o projeto central do Cinematographo. Mas o
mais interessante é que a régua para julgar a o “flirt rápido” vem dada a seguir:
“Montagens e cortes passariam a invadir, de fato, a técnica literária com a prosa
modernista” (SÜSSEKIND, 1987, p.48). Socorrendo-se dos modernistas de São
Paulo, que fariam já uma “literatura-de-corte”, capaz de “dialogar maliciosamente
com as novas técnicas e formas de percepção” (SÜSSEKIND, 1987, p.48), Flora
Süssekind acredita que João do Rio teria ficado no limiar das transformações
provocadas pelo advento do cinema. No entanto, sua concepção precisa ser revista
a partir do momento em que se considera que há um outro cinema que não é ainda
“modernista”, mas já é “bem moderno”.
A releitura do Cinematographo deve acompanhar necessariamente uma
releitura do conceito de cinema que está em questão quando se fala de cinema nas
letras. Ao que tudo indica, ao privilegiar corte e montagem, Flora Süssekind parece
desconhecer ou desconsiderar os estudos de Tom Gunning e André Gaudreault
sobre o que se chamava “cinema primitivo”. A nova historiografia do cinema vem
mostrando desde meados dos anos 1980 – época em que Flora redige seu livro –
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que o cinema do período 1895-1910 não era assim “primitivo”, assim como não era
“mudo”. Nem atrasado, nem deficiente, o cinema desse período fazia parte do que
se chamava “espetáculo de atrações”, que tinha regras de produção e de exibição
muito diversas daquilo que entendemos normalmente por cinema. Em primeiro
lugar, a noção de “corte e montagem” – que para muitos é a única forma de cinema,
o cinema das origens apresentava uma sucessão de pequenos filmes organizados
segundo padrões bastante variáveis (às vezes, o próprio projecionista definia a
ordem dos filmes), que eram apresentados dentro de um contexto de espetáculo
muito diverso do cinema atual. Era um cinema que privilegiava as “vistas” (quase
fotografias animadas) em câmera fixa, sem cortes. O espetáculo consistia muito mais
na quantidade e qualidade de “vistas” que eram exibidas, algumas com comentários
e/ou acompanhamento musical. Desse modo, o cinema de então funcionava como
uma enciclopédia visual, trazendo uma série de imagens distantes para um público
cada vez mais curioso com o que se passava nos vários pontos do planeta. O
cinema – como já vinham fazendo seus “predecessores” ópticos, como as lanternas
mágicas e os panoramas – cria aquilo que em língua alemã se define pelo termo
“Fernweh”, o desejo de ver países distantes (oposto a “Heimweh”, que traduzimos
por saudade), que os meios de transportes e o turismo iriam tornar possível. Por
outro lado, o cinema de atrações cria um novo conceito de espaço, relativiza as
noções de próximo e distante. E ainda – e isso é importante para se entender as
crônicas de João do Rio – criam uma maneira nova de olhar para a cidade, para
múltiplos lugares e camadas sociais.
Algumas passagens do Cinematographo deixam clara essa mobilidade de
pontos de vista, ou de “vistas”, semelhantes às criadas pelos estúdios de Thomas
Edison ou dos irmãos Lumière, mas também lembrando os travelogues, gênero
bastante comum de filmetes, que combinavam as vistas de lugares exóticos com
comentários:
Há cerca de cem metros da estação do Sampaio fica o barracão. Quando
saltámos ás 3 da tarde de um trem de suburbio atulhado de gente, iamos com o
semi-assustado prazer da sensação por gosar. Era alli, naquelle barracão, que
se cultivava o sport feroz das brigas de gallo (RIO, 1909, p.103).
Outro dia, ao passar pela rua do Lavradio, observei com pesar que em toda
a sua extensão havia apenas três casas de chopp [...] Ha uns sete annos, a
invenção partira da rua da Assembléa. Alguns esthetas, imitando Montmartre,
tinham inaugurado o prazer de discutir literatura e falar mal do proximo nas
mesas de marmore do Jacob. Chegavam, trocavam frases de profunda estima
com os caixeiros, faziam enigmas com phosphoros, enchiam o ventre de
cerveja e estavam sufficientemente originnaes (RIO, 1909, p.129).
Eram dez horas da noite. Toda a praça parecia viver na estrídula iluminação
do music-hall, uma iluminação violenta de lampadas electricas em candelaria
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pelas duas faces e de holophotes escandalosos que investigavam e alanhavam
a sombra do square de segundo em segundo. Á porta, entre a entrada para
o jardim e um bricoete estreito onde se installára o bilheteiro, a multidão
acotovellava-se nervosa e febril (RIO, 1909, p.145).
O olhar do cronista-cinegrafista também não deixa de atentar para as mazelas
sociais, sobretudo a dos deserdados do progresso, como na bela crônica sobre a
greve dos trabalhadores da companhia de gás, que alude a uma obra de H.G. Wells:
Em muitos sítios deste Rio de Janeiro gritalhão e meetingueiro, ha regimens
que seriam o inferno para os servos da gleba da edade média e que só podem
ser comparados á allucinante visão da História dos Tempos Futuros, de Wels
[sic]. A algumas braças de Nictheroy, há uma ilha que se intitula suavemente de
Fome Negra. Os homens nessa região viraram apenas machinas. São aparelhos
da grande machina de levar o minéreo, o piquiry, para os navios de carga.
Quanto descança essa gente? Quando dorme? Quando pensa? É impossível
saber. Estão ali com as mãos rotas dissorando uma gosma amarella, a pelle
gretada, os olhares desconfiados (RIO, 1909, p.198).
Por outro lado, um olhar atento para o cinema das origens, como mostra
entre nós um Arlindo Machado, demonstra que o processo de “narrativização”
do cinema – um processo de “linearização” do cinema em torno de uma narrativa
mimética baseada no princípio da montagem e na adaptação de clássicos da
literatura – é um processo de domesticação de sua força espetacular, de sua
“desordem”, do modo como promovia um riso burlesco e irônico, um riso
incontrolável. O processo de narrativização é também o processo de industrialização,
que estandardiza os produtos e processos de produção, estabelecendo a divisão
de trabalho (roteirista, cinegrafista, diretor, ator) para melhor submeter o cinema
ao processo do capital. O cinematógrafo se transforma assim em cinema, e a
poesia se transforma em prosa prosaica. O cinema as origens, o cinematógrafo
de atrações (GAUDREAULT, 2008), como diria Vico a respeito da poesia, é a
infantia da sétima arte, e por isso mesmo nele se encontra o devir e a deriva
do cinema: aquilo que ele poderia ter sido e não foi, aquela possibilidade de
transformar-se em seu Outro.
João do Rio, aliás Joe, foi muito sensível a esse cinema, e, ao contrário do
que se que afirma, incorporou na sua técnica literária técnicas do primeiro cinema.
Já desde a Introdução (que estávamos citando), João do Rio deixa claro o seu
programa estético:
Ao demais, se a vida é um cinematographo collossal, cada homem tem no
craneo um cinematographo de que o operador é a imaginação. Basta fechar
os olhos e as fitas correm no cortical com uma velocidade inacreditável.
Tudo quanto o ser humano realisou, não passa de uma reprodução ampliada
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da sua própria machina e das necessidades instinctivas d’essa machina. O
cinematographo é uma d’ellas (RIO, 1909, p.viii).
Vale lembrar que cinematógrafo designa na época três coisas: a sala em
que se projetavam as “fitas”, o projetor e a câmera. Essa simpática “confusão”
dos três termos é sintomática de uma não separação das coisas, o cinematógrafo
como um continuum câmera-projetor-sala: o cinematógrafo funciona aqui,
fenomenologicamente, como aquilo que Vivian Sobchak (1992) como um “film
body”, um corpo-filme. Por outro lado, a metáfora faz da própria vida uma tela de
cinema e de cada pessoa uma câmera cujo cinegrafista é a imaginação. Note-se: João
do Rio não diz que nossos olhos são câmeras que meramente registram as coisas de
forma aleatória. Não, é a imaginação – a kantiana Einbildungskraft, capacidade de
criar imagens – que opera a nossa câmera externa (os olhos). Parafraseando o poeta
Manoel de Barros – que disse que o homem não é uma coisa sem ninguém dentro –,
podemos dizer que nosso corpo é uma câmera cujo operador é a nossa imaginação,
de modo que o “registro” não é aleatório e fortuito, mas programado, por assim
dizer. Para vermos o que foi gravado, para fazermos a projeção, precisamos fechar
os olhos, de olhos fechados somos o próprio cinematógrafo.
Antecipando Marshal McLuhan e a escola de Toronto, João do Rio transforma
a mídia cinema numa extensão do nosso corpo – tomado aqui já como “sua própria
machina” – o cinema é uma “reprodução ampliada”, logo, uma extensão, da
machina-corpo e de suas “necessidades instintctivas”. E vai mais longe. Se cada
um de nós é o seu próprio cinema – como cada um de nós está se transformando
cada vez mais no seu próprio noteboock, iPhone ou iPad – como fica a Historia, a
experiência coletiva da vida-cinema? Go on, Joe:
Ora, como os factos succendendo-se não parecem e que ninguém pode
exactamente repetir com a mesma emoção e o mesmo estado d’alma um
acto da existencia, o cinematographo fica modesta e gloriosamente como o
arrolador da vida actual, como a grande historia visual do mundo. Um rolo de
cem metros na caixa de um cinematographista vale cem mil vezes mais que
um volume de historia – mesmo porque não tem comentarios philosophicos.
E isso, porque no fundo o cinematographo é uma série de novellas e de
impressões pessoaes do operador á procura do “bom momento”, é a nota do
seu temperamento a escolher o assumpto já feito, e a procurar as posições para
tomar a fita (RIO, 1909, p.ix).
O inconsciente óptico produzido pelo cinema – inconsciente que Freud não
previu, nem Lacan, por estarem pouco preocupados com o cinema, e demais com a
literatura – se traduz aqui no “grande arrolador da vida actual” e na “grande historia
visual do mundo” (RIO, 1909, p.ix). Se um rolo de cem metros de filme 16mm tinha
(a 16 quadros) cerca de 3 minutos, vê-se que a proporção não é nada econômica
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João do Rio e o Cinematographo: primeira modernidade literária e primeiro cinema
e bastante favorável ao cinematographo. Se Joe (digo, Paulo Barreto) parece ter
uma segurança e uma confiança extrema no que diz, é porque precisa incorporar
do cinematógrafo aquilo que é mais essencial para a sua literatura: a velocidade da
informação está em razão de sua novidade, e essa depende, por sua vez, do “bom
momento”, do “temperamento” para “escolher o assumpto”, e, sobretudo, das boas
“posições”, ou pontos-de-vista, ou ângulos, diríamos hoje. Reconhecendo que o
cinematógrafo altera não apenas a literatura, mas o modo de percepção das coisas,
porque ele é a síntese de ciência e arte – “é uma feição científica da arte” (RIO,
1909, p.ix) – João do Rio decide fazer cinema com a literatura, decide transformar
a literatura no “cinematographo de letras”:
A chronica evoluiu para a cinematographia. Era reflexão e commentario,
o reverso desse sinistro animal de genero indefinido a que chamam: artigo
de fundo. Passou a desenho e a caricatura. Ultimamente era photographia
retocada mas sem vida. Com o delírio apressado de todos nós, é agora
cinematographica, – um cinematographo de letras, o romance da vida do
operador no labirinto dos factos, da vida alheia e da fantasia – mas romance
em que o operador é personagem secundário arrastado na torrente dos
acontecimentos (RIO, 1909, p.x).
Escrita técnica, a Introdução ao Cinematographo apresenta um programa
bastante detalhado de como a literatura se transforma em cinema antes mesmo
de surgirem as adaptações, que nada mais são do que literatura da literatura,
subliteratura, uma vez que negam a força própria do cinema. A resposta de Joe é
veemente: ao invés de literaturizar o cinema, melhor seria cinematizar a literatura.
O cinema não precisa da literatura, mas esta, sim, do cinema.
Então, ao contrário do que a crítica literária supôs, Joe (aliás, Paulo Barreto)
emprega arrojadas técnicas cinematográficas em suas crônicas, a ponto de podermos
considerá-lo também um precursor do documentário moderno, aquele documentário
que não se limita a entrevistar e mostrar imagens anódinas e pitorescas com voz off,
mas que trabalha com a polifonia de vozes narrativas, com as propostas do cinéma
direct, com a justaposição de pontos de vista, com a ficcionalização do real, com o
contínuo deslocamento e com a desterritorialização, com o viés subjetivo e poético
das vozes narrativas e descritivas. Tudo isso está nas crônicas de João do Rio. Basta
ver. Ou filmar.
Interessa-me, por fim, falar do silêncio em torno desse que poderia ser tanto
o primeiro teórico do cinema a se ler nas escolas de cinema brasileiras, como
o primeiro autor moderno a se ler nas e escolas de literatura, se o diálogo entre
literatura e cinema não se restringisse à questão da adaptação. Muito antes de os
roteiristas pensarem em adaptar clássicos da nossa literatura para o cinema, este
último já se havia transformado em literatura, assim como esta já havia absorvido
o cinema, num processo antropofágico – o mesmo processo que dará força às
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nossas novelas, ao deglutir o TBC e a radionovela, além da literatura, é claro
(MÜLLER, 2012).
Creio que não foi por acaso que a homenagem que a Academia Brasileira de
Letras prestou a João do Rio por ocasião de sua morte – ele que tanto lutou para
entrar nela, diga-se de passagem – foi um silêncio de dez minutos. Isso me faz
pensar em Arsênio Godard. Nada mais propício do que lembrá-lo, Godard, ainda
mais em se tratando de cinema nas letras. Trata-se de um personagem de um dos
contos de João do Rio (aliás, Joe), “O fim de Arsênio Godard”, publicado pela
Garnier em 1910, em Dentro da noite. Arsênio Godard é um revoltoso francês
resgatado na Baía de Guanabara por uma navio da Marinha. O comandante do
navio ordena que ele fique incomunicável – isto é, que ninguém lhe dirija a palavra
ou lhe responda – o que acaba levando Godard à loucura, e a imolar-se diante dos
marinheiros. Como Godard, João do Rio não foi ouvido: não enquanto moderno,
não enquanto precursor de uma teoria cinematográfica, não enquanto mestre de
uma literatura absolutamente original e única, não como visionário do mundo
que estamos vendo passar hoje pelos nossos olhos e ouvidos como um grande
dispositivo cinematográfico digital. Não por acaso, se João do Rio mereceu 10
minutos de silêncio, se 100 mil pessoas foram ao seu enterro para logo esquecerse dele, é porque ele conseguiu realizar, rigorosamente, no Cinematographo, em
1909, aquilo a que se propôs: escrever uma fita. O que faltava (ou ainda falta?)
eram olhos de ver.
MÜLLER, A. João do Rio and the Cinematographo: first modernity and early
cinema. Itinerários, Araraquara, n.36, p.187-197, Jan./Jun., 2013.
ABSTRACT: The book Cinematographo: chronicas cariocas by João do Rio not only
establishes for the first time in our literature a technical approach between the work
of both the writer and the cameraman, but also situates the Brazilian author as a first
modernist by the way he observes the growing metropolis from the standpoint of the
modern techniques of observation which are similar to those practiced in the early
cinema.
KEYWORDS: João do Rio. Literature and film. Urban life. Technology and perception.
Modernity and modernism.
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João do Rio e o Cinematographo: primeira modernidade literária e primeiro cinema
Referências
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Recebido em: 26/12/2012
Aceito em: 10/06/2013
Itinerários, Araraquara, n. 36, p.187-197, jan./jun. 2013
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