que recomenda um texto
impessoal e hermético em
termos de seguir os
referenciais de um
determinado campo
específico e
disciplinarmente
delimitado.
Esperamos que gostem!
Boa leitura!
“QUANDO PENSA QUE NÃO...” vol. IV
É um convite para que
todas, todos e todes leiam
estes relatos, mas também
inspiremse para
redigirem seus próprios
relatos.
No meio do livro, tinha uma pandemia... no meio da
pandemia, tinha um livro... E assim foi! E assim tá sendo...
Mas, Salve! Salve! Depois de um período tão difícil pra todxs
nós, eis que estamos de volta com o Vol. IV do nosso livro
Quando Pensa que Não...! A pandemia continua, mas
também nossa vontade de tocar pra frente esse projeto,
tentando, com afinco, transformar isso em tradição.
Como não poderia deixar de ser, continuamos no
presente volume com a proposta original que é a de
“registrar, textualizar e compartilhar diversas experiências
vivenciadas nas pesquisas de campo, nos arranjos de
problematização ou sistematização feitos na academia”.
Tratase, portanto, mais uma oportunidade de dizer o que é
indizível em publicações acadêmicas mais convencionais.
Mais espaço para as subjetividades, tão inerentes em
trabalhos de etnoecologia/etnobiologia, e, ao mesmo tempo,
também tão pouco expressadas.
Se o paradigma cientificista vigente separou a ciência e
arte ao longo da história, taí uma excelente tarefa para nos
imbuirmos, que é de buscar e expor o sensível na/da alma
das(os) pesquisadoras e pesquisadores. Sim, pois o que a
natureza humana uniu, a epistemologia não há de apartar.
Esta proposta de
textualização de
vivências e experiências
relacionadas à
Etnobiologia e
Etnoecologia na forma de
contos, crônicas e causos,
surge de uma iniciativa
despretenciosa, cujo
lançamento se deu em
2012, no Simpósio
Brasileiro de
Etnoebiologia e
Etnoecologia, em
Florianópolis.
“QUANDO PENSA QUE NÃO...”
Contos, crônicas e causos em Etnoecologia
Vol. IV
Organizadores
Francisco José Bezerra Souto
Gustavo Taboada Soldati
Lin Chau Ming
Reinaldo DuqueBrasil
Rumi Regina Kubo
Desde lá o grupo de
organizadores, Franzé,
Lin, Reinaldo, Tigu e
mais tarde Rumi,
persistem com a
proposta de abrir o
espaço a todas as pessoas
envolvidas com
trabalhos no campo da
Etnobiologia e
Etnoecogia, para
relatarem facetas do
fazer etnobiológico, não
difundidos
convencionalmente.
Esta iniciativa, além de
propiciar uma fonte de
leitura prazerosa,
também se constitui em
uma forma de questionar
os cânones da produção
científica
hegemonicamente aceita,
Organizadores
Francisco José Bezerra Souto
Gustavo Taboada Soldati
Lin Chau Ming
Reinaldo DuqueBrasil
Rumi Regina Kubo
"QUANDO PENSA QUE NÃO..."
Contos, crônicas e causos em Etnobiologia
Vol. IV
Sociedade Brasileira de Etnobiologia e Etnoecologia
Porto Alegre, 2022
Publicado pela Sociedade Brasileira de Etnobiologia e Etnoecologia (SBEE)
Todos os direitos reservados.
Associese em https://www.etnobiologia.org/
© Francisco José Bezerra Souto, Gustavo Taboada Soldati, Lin Chau
Ming,einaldo DuqueBrasil, Rumi Regina Kubo
1ª edição: 2022
Editorachefe: Tatiana Mota Miranda
Sociedade Brasileira de Etnobiologia e Etnoecologia
Diretoria 20212022
Presidência: Flávio Bezerra Barros (UFPA)
Vicepresidência:
Gabriela Coelho de Souza (UFRGS)
1º secretário: Bernardo Tomchinsky (UNIFESSPA)
2º secretário: Kátia Mara Batista (ACPM)
1º tesoureiro: Nilo Leal Sander (UNEMAT)
Conselheiros:
Ana Paula Glingskoi Thé (UNIMONTES)
Francisco José Bezerra Souto (UEFS)
Érika Fernandes Pinto (ICMBio)
Representantes Regionais:
(SE): Maíra Borgonha (UFF)
(SU): Natália Hanazaki (UFSC)
(CO): Ieda Maria Bortolotto (UFMS)
(NE): Edna Marina Ferreira Chaves (IFPI)
(NO): Maria das Graças Pires Sablayrolles (UFPA), Moacir Haverroth (Embrapa
Acre)
Conselho Editorial
Eraldo Medeiros Costa Neto (UEFS) – Diretor
Bernardo Tomchinsky (UNIFESSPA)
Carolina Joana da Silva (UNEMAT)
Cláudia Nunes Santos (UFPA)
Edna Maria Ferreira Chaves (IFPI)
Emmanuel Duarte Almada (UEMG)
Érika Fernandes Pinto (ICMBio)
Flávio Bezerra Barros (UFPA)
Gustavo Taboada Soldati (UFJF)
Kátia Mara Batista (UNESC)
Lin Chau Ming (UNESP Botucatu)
Natalia Hanazaki (UFSC)
Reinado Duque Brasil (UFJF)
Conselho Científico
Amélia Frazão Moreira (Portugal)
Ana Haydeé Ladio (Argentina)
Ângelo Giuseppe Chaves Alves (Brasil)
Armando Medinaceli (Bolívia)
Dídac Santos Fita (Espanha)
Eduardo Corona Martínez (México)
Francisco José Bezerra Souto (Brasil)
Geilsa Santos Costa Baptista (Brasil)
Lorena Dall’Ara Guimarães (Brasil)
Maria Cristina Teixeira Braga Messias (Brasil)
Maria das Graças Pires Sablayrolles (Brasil)
Mauricio Vargas Clavijo (Colômbia)
Pascale de Robert (França)
Reinaldo Paiva Lucena (Brasil)
Roseli Barros (Brasil)
Rumi Regina Kubo (Brasil)
Tania Gonzalez Rivadeneira (Equador)
William Balée (Estados Unidos)
Permitida a cópia total ou parcial deste documento, desde que
citada a fonte.
As informações apresentadas nesta obra são de exclusiva
responsabilidade de seus autores/as.
Ficha catalográfica
Capa e fotografia: Franzé
Revisão: Francisco José Bezerra Souto, Gustavo Taboada Soldati
Lin Chau Ming, Reinaldo DuqueBrasil, Rumi Regina Kubo
Revisão Língua Espanhola: Claudia Patricia Zuluaga Salazar, José
BrenesAndrade, José Manuel Valencia Espina, Katherine Vanessa
Flórez e Shirley Rodríguez González
Editoração eletrônica: Rumi Regina Kubo
Software livre utilizado: Scribus
Formato 16 X 23 cm, fonte Book Antiqua
Papel polen 80 g
Tiragem 100 exemplares
APRESENTAÇÃO............................................................................9
PREFÁCIO........................................................................................11
AUTORES.........................................................................................13
Ataíde: o bicho do manguezal
Alexandre de Brito Alves
32
La luz plateada del Himalaya
Alonso Pérez Ojeda del Arco & Carolina Perret
36
Historias, rostros, y mates en el Chaco Santiagueño
Alonso Pérez Ojeda del Arco
40
Entre balaios e quilombos
Alyne Freire de Melo 45
Dois relatos de caça na Amazônia Ocidental
André Luís Cote Roman
47
O corpo na Amazônia: o chamado de Dorothy Stang
Andrey Henrique Figueiredo dos Santos
53
Às vezes nem é a pergunta que é errada…
Anna Flavia Menezes da Silveira Lima
59
O voo da Fênix: das moléculas aos conhecimentos tradicionais
Claudia Nunes Santos
62
Desmatar
Dérick Lima Gomes 66
Xavier, el pescador
Diego Pérez Ojeda del Arco 71
Caminhos para etnofarmacologia entre os Igbo na Nigéria
Elaine Elisabetsky
75
O cúmulo do absurdo
Érika FernandesPinto
80
Banho
Fausto Cafezeiro
86
Da selva de pedra à selva Amazônica e seus seres encantados
Fernanda Carneiro Romagnoli
90
Cheguei numa bacia azul...e fui amada!
Flávio Bezerra Barros
94
Por que SBEE e não SBE? Não sei! Só sei que foi assim...
Francisco José Bezerra Souto 99
Quem tem medo da Ecologia Humana?
Francisco José Bezerra Souto 103
“Pagar mico”. Isto é ruim ou bom para a pesquisa etnobiológiva
em Educação?
Geilsa Baptista
107
Salvos pelo método...
Gilney Charll Santos 113
Vertigem de rebojo
Gustavo Goulart Moreira Moura
116
Travessias identitárias
Gustavo Taboada Soldati
118
Sete prosas para voar
Gustavo Taboada Soldati
121
Esperá pra ir quando dé... igarapé!
Jessé Renan Scapini Sobczak 124
Cultivando memorias: ¿Cuántas historias caben en un choclo?
José Manuel Valencia Espina 126
A pernoita quilombola em Porto Trombetas
Juliana Cardoso Fidelis
130
Ode aos povos das águas
Larice Almeida Marinho
136
Falem com o Marcão!
Lin Chau Ming
138
Reta (quase) final
Lin Chau Ming
144
Mais um ano sem carro
Lin Chau Ming
148
Vinte!
Lin Chau Ming
154
Amazônia, entre povos e floresta: o começo dessa história foi no
rio Jordão
Málika Simis Pilnik e Tarik Argentim
159
Da poesia a resistência
Marcela Eringe Mafort
165
O “Meteoro Bípede” e o Karajá no shopping center
Marcelo Nivert Schlindwein 167
Isso não vai para o relatório
Márcia Regina Antunes Maciel
174
Viagem à Etiópia: O banheiro da UNESCO
Márcia Regina Antunes Maciel
180
Encosto
Maria Christina de Mello Amorozo 186
Chi´ibal uj
María Teresa Pulido Silva 188
Rádio de pilha
Mario Rique Fernandes
193
Aprendendo com as castanheiras
Mario Rique Fernandes
196
Una curación en el Sahel
Matías PérezOjeda del Arco 201
Baresolone, Senegal: Rebeldía para alterar las Ítacas en Senegal
poscolonial
Matías PérezOjeda del Arco & Florie Chazarin
205
“Uma vez ela quase me come”
Mayra Patrícia Corrêa Tavares
209
“Contratempos” de um mapeamento: em busca das capoeiras de
Seu Pedro Brás
Myrian Sá Leitão Barboza (Myroca) 212
Episódios de um doutorado distante parte I o emicista, o
eticista, e as formigas da dona Maria Marta
Natalia Hanazaki
218
Episódios de um doutorado distante parte II seu Máximo é
mesmo o máximo
Natalia Hanazaki
222
Minha primeira vez na Amazônia encantada
Norah Costa Gamarra227
As plantas da minha infância: um exercício de auto etnografia
Paula Chamy 230
Chá pra curá o “figo”
Rafael Sá Leitão Barboza
237
Jonminhot Marét Ererré
Reinaldo DuqueBrasil & Shirley Djukurnã Krenak 243
Panos coloridos lançados ao sabor das ondas e sopros do mar!
Roberta Sá Leitão Barboza 248
A aula de Celina
Rumi Regina Kubo 251
Escrever para rememorar
Rumi Regina Kubo 254
Casa Grande e Dona Umbuzeira
Shana Sampaio Sieber257
Ciência da Mata
Tomaz Ribeiro Lanza 262
“A mandioca é o pão de Deus na Terra”
Yan Victor Leal da Silva
267
"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
APRESENTAÇÃO
No meio do livro, tinha uma pandemia... no meio da
pandemia, tinha um livro... E assim foi! E assim tá sendo... Mas,
Salve! Salve! Depois de um período tão difícil pra todxs nós, eis
que estamos de volta com o Vol. IV do nosso livro Quando pensa
que não...! A pandemia continua, mas também nossa vontade de
tocar pra frente esse projeto. Lá se vão 10 anos do Vol. I, quando
publicamos e lançamos no Simpósio Brasileiro de Etnobiologia e
Etnoecologia em Florianópolis em 2012. Com muito esforço,
mantivemos a “tradição” com os volumes II e III nos Simpósios em
Feira de Santana (2016) e Belém (2018). E é com uma alegria e
satisfação danada que lançamos o vol. IV no agora Congresso
Brasileiro de Etnobiologia e Etnoecologia de CáceresMT.
A proposta do livro continua a ser a de “registrar,
textualizar e compartilhar diversas experiências vivenciadas nas
pesquisas de campo, nos arranjos de problematização ou
sistematização feitos na academia”. O indizível de nossas
vivências, sentimentos, experiências tem mais uma oportunidade
de serem transformadas em publicação, algo que não ocorre em
periódicos acadêmicos mais convencionais. Um espaço importante
para as subjetividades, tão comuns e inerentes em trabalhos de
etnoecologia/etnobiologia, e, ao mesmo tempo, também tão
poucos expressadas.
A prosa e a poética, normalmente invisibilizadas na
academia, compõem o estilo literário dos textos. Uma “subversão”
super benvinda e já prevista por Boaventura de Sousa Santos,
quando afirmou em seu já clássico Discurso Sobre as Ciências que
“a criação científica no paradigma emergente assumese como
próxima da criação literária ou artística”. Sim, a Etnobiologia e
9
"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
Etnoecologia aqui cumprem seu histórico papel na quebra do
paradigma cartesiano, onde razão e emoção não se misturam.
Talvez tenhamos aqui algumas pistas para um fazer científico
descolonizado. Pratiquemos!
É nisso que apostamos ao investirmos nesse tipo de
publicação. Fazer, se não uma ciência melhor (nem somos tão
pretensiosos), mas uma ciência diferente e talvez mais próxima
aos contextos de nossos trabalhos, que transita entre povos e
comunidades tradicionais, entre seres humanos e nãohumanos. Se
o paradigma vigente separou a ciência e arte ao longo da história,
taí uma excelente tarefa para nos imbuirmos, que é de partilhar o
sensível na/da alma dos pesquisadores. Sim, pois o que a natureza
humana uniu, a epistemologia não há de apartar.
Transdisciplinaridade é bom e nós gostamos! Tá tudo junto dentro
da gente... Esperamos, portanto, que esse livro não seja apenas
lido por vocês, mas refletido, incorporado... saboreado! Quem sabe
a leitura lhes acrescente algo no seu fazer, no seu pensar e no seu
sentir etnobiológico/etnoecológico. Quando pensa que não...,
quem sabe, estaremos lendo um texto de vocês no vol. V...
Sigamos!
Organizadorxs
10
"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
PREFÁCIO
“Quando pensa que não...” já é um clássico! Não está aqui
apenas para complementar nem para ficar à margem ou ser
alternativo. Este livro e os volumes homônimos que o antecederam
representam uma experiência em si mesma. E que experiência!
Tomei conhecimento desta empreitada desde que “Quando...”
(acho que já posso chamálo assim) era uma criancinha. Lembro,
com muito gosto, de ver e ouvir pessoas queridas como Gustavo
Soldati e tantas outras contando suas histórias na Universidade
Católica de Pernambuco, em Recife, durante o Congresso Latino
Americano de Etnobiologia, há mais de 10 anos. Naquela ocasião,
fazia pouco tempo que “Quando...” tinha nascido.
Mas, como eu ia dizendo, este e os anteriores volumes de
“Quando...” constituem uma experiência em si mesma. Uma
experiência de trazer à tona as experiências vividas no fazer
(etno)científico nosso de cada dia, ou seja, de tornar cada vez mais
visíveis e dizíveis determinadas coisas que antes eram apenas
anedóticas. Uma metaexperiência, portanto.
Tratase de um trabalho de permite estabelecer pontes ou
conexões, de modo a superar aquela dicotomia destacada e
criticada por Paulo Freire em sua obra Pedagogia do Oprimido: a
dicotomia entre o “saber de experiência feito” e o “saber de
experiência narrada ou transmitida”. Considero bastante oportuno
e digno de nota o fato de que este livro é chancelado pela
Sociedade Brasileira de Etnobiologia e Etnoecologia, entidade
representativa de (etno)cientistas da qual faço parte, com muito
gosto, na condição de sócio fundador.
Neste esforço, as experiências de jovens iniciantes juntamse
àquelas de outras pessoas que já acumularam várias décadas de
11
"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
trabalho no campo das etnociências. Algumas dessas histórias são
narradas por membros de povos tradicionais em coautoria com
cientistas mais, digamos, acadêmicos. Esses aspectos reforçam,
salvo engano meu, aquela dimensão de metaexperiência a que me
referi anteriormente. Uma conexão de experiências!
Com este livro, que privilegia memórias, podemos, quem
sabe, “arrancar alegria ao futuro”, como queria Maiakóvski, o
Poeta da Revolução. É dessa alegria arrancada ao futuro que
precisamos neste exato momento, para superar a ameaça do
neofascismo que nos assombra e ceifa vidas. E agora, preciso
terminar este prefácio, pois que se não já seria ele um “causo” ... E
vou terminálo justamente com o trecho final da “Ordem no dois
ao exército das artes”, escrita por Maiakóvski e traduzida por
Haroldo de Campos:
“Perdidos em disputas monótonas,
buscamos o sentido secreto,
quando um clamor sacode os objetos:
‘Dainos novas formas!’
Não há mais tolos boquiabertos,
esperando a palavra do ‘mestre’.
Dainos, camaradas, uma arte nova
– nova –
que arranque a República da escória.”
Quando pensa que não... estamos fazendo novas artes! Viva
“Quando ...” !
Angelo Giuseppe Chaves Alves
Departamento de Biologia
Universidade Federal Rural de Pernambuco
12
"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
AUTORES
Alexandre de Brito Alves
Olá, meu nome é Alexandre de Brito Alves, mas para os familiares mais
próximos (pai, mãe e irmãs) Aleixo é o como me denominam. Gosto
muito de futebol, apesar de não mais jogar. Deixei o esporte na
adolescência e fiquei um pouco gordinho...coisas da vida moderna.
Quanto a minha formação, em 2009 comecei a estudar Letras com
Habilitação em Língua Inglesa na Universidade Federal do Pará, porém
um ano depois estava no curso de História, que foi ofertado pela mesma
instituição na cidade de Bragança, onde eu residia à época. À frente veio
o Mestrado em Sociologia na UFPA e atualmente adentrei ao Doutorado
também em Sociologia, na mesma instituição. Atualmente ministro aula
de História na rede pública, tentando mostrar aos jovens a importância
de se estudar o passado e o presente.
alexandrehistoria2010@yahoo.com.br
Alonso Pérez Ojeda del Arco
Lima, Perú. Ingeniero forestal con más de 10 años de experiencia de
trabajo e investigación con pueblos indígenas de la Amazonía peruana
en el manejo de recursos naturales, saberes tradicionales y medios de
subsistencia, gestión territorial integral y gobernanza comunitaria. Es
miembro activo de la Sociedad Internacional de Etnobiología. Ha viajado
por los cinco continentes. Vive en los bosques de neblina de Perú junto a
su pareja, y su pequeño hijo Tane, cuyo nombre refiere al Dios del
bosque y de las aves.
alonso.perez.ojedadelarco@gmail.com
Alyne Freire De Melo
Possui Licenciatura Plena em Ciências Biológicas pela Universidade
Estadual do Piauí, Mestrado em Agronomia pela Universidade Federal
13
"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
do Piauí, atualmente faz doutorado em Desenvolvimento e Meio
Ambiente na mesma IES. Trabalha (ou dá trabalho) com Etnobiologia em
comunidades quilombolas no interior do Maranhão.
alynefmelo@yahoo.com.br
André Luís Cote Roman
Estudei Agronomia em Viçosa, Minas Gerais – setembro passado, quase
trinta anos depois de minha formatura, resolvi dar uma volta por lá,
acho que para matar a saudade e agradecer/reverenciar o lugar onde, na
juventude, vivenciei situações que acabaram por me dar um pouco de
casca grossa para as peripécias futuras. Depois me mudei para Belém em
busca de novidades geográficas, culturais, outros acepipes do banquete
da vida, e de algum campo de estudo mais condizente comigo: encontrei
a Etnobotânica. Por meio dela morei em outras cidades amazônicas,
conheci tantas pessoas, professores, colegas de turma, ribeirinhos,
seringueiros, pescadores litorâneos, vigilantes de campus universitários
– companheiros de café nas madrugadas de estudos... Reverencio tudo
isso, e reverencio, de coração, este espaço de compatilhamento de tantas
outras vivências.
coteroman@yahoo.com.br
Andrey Henrique Figueiredo dos Santos
Papa Xibé, e tomo açaí com açúcar (sem banana, pfv). E jacaré não anda
na rua em Belém! Bom, dizem quem eu sou Geógrafo. Como teimoso
que sou, fui continuar os estudos em um programa de pósgraduação
em desenvolvimento rural. Agora me encontro nessa... lendo o povo da
fenomenologia existencial (né fácil não viu! Ô povo para escrever difícil.
Égua!). Mas tenho um sonho de ser agrônomo, artista visual e psicólogo.
É muito querer para uma vida. Mas com calma, a gente chega lá! Nas
horas vagas, sou amante de literatura marginal e de futebol (torço para o
maior do Norte, Paysandu!). Qualquer coisa, podem mandar Email
esculachando a crônica escrita por mim. Agradeço às professoras da
transamazônica, que me salvaram de uma vida sem ladeiras!
andreyyhenrique@hotmail.com
14
"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
Anna Flavia Menezes da Silveira Lima
Anna Flavia, vinte e um anos de muita ansiedade e 'agoniação'. Filha de
Iansã (sim, com todas as características), devota de Iemanjá e protegida
por Exú (muito forte, inclusive). Completamente apaixonada por
Antropologia, Etnoecologia e Pedagogia (sinceramente?! não me vejo
fazendo algo que não envolva essas áreas). Gosto de conversar com
qualquer pessoa, gosto de ouvir as pessoas falarem sobre o que elas
gostam e também gosto muito de falar. Atualmente me sinto confortável
com o que eu trabalho (já disse acima né) e embora o mundo diga que
não vale a pena continuar, que não é importante… eu acho que é, eu
acho que vale.
annaflaviamenezesl@gmail.com
Carolina Perret
Chaco, Argentina. Ingeniera química y artista. Vive y trabaja en la
Amazonia peruana. Es responsable de monitoreo hídrico para la ONG
Instituto del Bien Común (IBC), donde actualmente trabaja para
identificar el impacto de las intervenciones del programa sobre los
servicios ecosistémicos. Amante de la naturaleza y la vida sencilla, vive
aprovechando los pequeños momentos junto a sua familia.
carolinaperret@gmail.com
Claudia Nunes Santos
Filha de corajosos sergipanos que migraram para a “terra da garoa”,
nasci em uma madrugada fria de janeiro. Após décadas de vida
estudantil em instituições públicas, sou hoje o fruto de sonhos sonhados
e vividos. Também dos sonhos esquecidos, das realizações inesperadas,
dos encontros desejados e dos desencontros sofridos. Itinerante por
atavismo, vivi em diferentes lugares pelos quais sinto pertencimento,
pois minha territorialidade é simbólica. Recentemente, retornei para
Sergipe, onde estou Professora na Universidade Federal.
Academicamente, interessada nas relações entre humanos e outros
animais. Artisticamente, querendo me encontrar entre a tecelagem e a
dança. Espiritualmente, buscando me libertar da perambulação.
claudianunes.bio@gmail.com
15
"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
Dérick Lima Gomes
Alguém que ama jogar, assistir e discutir sobre futebol. Apreciador de
literatura, música e outras formas de arte. Geógrafo, cuja graduação
rendeu quatro dos melhores anos vividos de 27, além de amigos
queridíssimos e outras tantas alegrias. Mestre em Agriculturas Familiares
e Desenvolvimento Sustentável pela Universidade Federal daqui, o Pará.
Um rapaz feliz por estar realizando um de seus vários sonhos: atuar
como docente na Universidade do Estado do Pará, onde fez a graduação
e com quem vive, desde então, uma relação de amor e aprendizado.
dericklima16@hotmail.com
Dianny Cuadrado Pachón
Nasci em 25 de maio de 1992, em Bogotá, Colômbia. Fiz graduação na
Faculdade de Ciências e Educação da Universidad Distrital Francisco José
de Caldas (UDFJC), no programa de Biologia (Licenciatura). Atualmente
sou estudante do programa de Pósgraduação em Biologia Vegetal da
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) na linha de
pesquisa: ecologia, conservação e uso dos recursos vegetais. Tenho
experiência na área de Biologia Geral, com ênfase em Botânica e
Etnobotânica.
diannyqa@hotmail.com
Diego Pérez Ojeda del Arco
Mestrando em Antropologia Social pelo Programa de PósGraduação em
Antropologia da Universidade Federal do Pará (PPGA/UFPA), estudante
peruano bacharel em Antropologia pela Universidade Federal
Fluminense (UFF). Interessado nos estudos relacionados à Antropologia
da Amazônia, em especial no que diz respeito às teorias de etnicidade,
populações tradicionais e grandes projetos desenvolvimentistas.
Atualmente faz parte do Grupo de Estudos Amazônicos (GEAM/UFF).
diegoperezojedadelarco@gmail.com
Elaine Elisabetsky
Filha científica orgulhosa do Prof. Ivan Izquierdo, meu orientador de IC e
Doutorado (1981) na Escola Paulista de Medicina. Foi ele que me ensinou
16
"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
a fazer ciência, complementando o excelente curso de biomedicina
voltado exatamente para formar professorxs e pesquisadorxs nas áreas
de medicina. Doutora desempregada tive que optar por estudar na
França (bolsa Pos Doc do governo Francês) ou ir para Belém do Pará
(CNPq, Programa de Fixação de Pessoal Científico na Amazônia). As
repostas (positivas) das duas bolsas sairam no mesmo dia... Para
desespero de muitos fui para a UFPA e iniciei minha carreira na
Etnofarmaco. Sempre associada à área de psicofarmaco e neurociências,
coordenei o laboratório de Etnofarmacologia na UFPa de 1981 a 1991 e
na UFRGS de 19912017. Tive o prazer de conviver com, ensinar e formar
muitos alunxs, dos de pós gratificação a maioria hoje Professorxs
Universitárixs. Hoje docente convidada, continuo trabalhando com
prazer em pesquisa e pós graduação .... ainda que mais do que gostaria.
elaine.elisabetsky@gmail.com
Érika FernandesPinto
Bióloga de formação e etnobióloga de coração. Doutora em
Psicossociologia e Ecologia Social, trabalha há mais de 20 anos na área
socioambiental, buscando a convergência das políticas de conservação
com os direitos de povos tradicionais e o resgate dos valores culturais da
natureza. Idealizadora do projeto Sítios Naturais Sagrados do Brasil,
busca promover o reconhecimento, a proteção e a valorização desses
lugares e das tradições a eles relacionadas. Peregrina por lugares
encantados vivenciando encontros com a sua magia e a sabedoria de
seus
guardiões.
Compartilha
suas
histórias
no
blog
https://snsbrasil.blogspot.com/
erika.icmbio@gmail.com
Fausto Cafezeiro
Geógrafo de formação, revisor de textos em muitos momentos, professor
como ofício, escritor para não morrer de tédio. Invento histórias, desde
criança, por exercício arbitrário e indisciplinado. O prazer de inventar
pessoas, coisas, momentos. A magia de brincar com os fatos, de encantar
as coisas bobas, corriqueiras, sem importância. As normas da língua, dos
formatos de redação científica, dos manuais de revistas e periódicos,
todos eles fingem: a paixão, o belo, o verdadeiro, residem principalmente
17
"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
nas metáforas, nas interpretações fugidias da experiência. Sempre há
mais a contar do que os relatórios, relatos e notícias podem registrar. O
inesperado, o espontâneo, aquilo que deixa sem palavras, é isso o que
tento escrever.
faustogc@hotmail.com
Fernanda Carneiro Romagnoli
Nasci em São Paulo, capital, em 1985. Me formei em bacharelado e
licenciatura em Biologia. Na graduação, me interessei pela conservação
ambiental e comecei a perceber que sem abordar as questões humanas, a
natureza não poderia ser conservada. Cursei mestrado em Biologia de
Água Doce e Pesca Interior no Instituto Nacional de Pesquisas da
Amazônia (INPA) e desde então passei a me dedicar totalmente às
diversas formas de relação homemnatureza, com especial foco na
etnobiologia e na educação ambiental. Cursei doutorado em
Desenvolvimento Socioambiental no Núcleo de Altos Estudos
Amazônicos (NAEA) da Universidade Federal do Pará (UFPA) e,
atualmente, sou professora da Universidade Federal Rural da Amazônia
(UFRA), no campus Capitão Poço, localizado na região nordeste
paraense.
fcarneiroromagmoli@gmail.com
Flávio Bezerra Barros
Nasci em Recife, cidade linda e de uma diversidade cultural apaixonante.
Sou filho de Seu José e Dona Lúcia, figuras muito importantes na minha
vida. Ele era um paraibano dos bons; ela, pernambucana danada. Adoro
natureza, aventuras, conhecer lugares, pessoas e me encantar com cada
experiência vivida. Moro em Belém do Pará, cidade pulsante, cheia de
surpresas e sabores inesquecíveis. Sou professor na Universidade Federal
do Pará. Tenho uma família linda e muito amada. Gracias a Pachamama
por este presente do universo. Cecinha é minha companheira de todas as
horas, meu amor, minha amiga e mãe do meu filho Thomaz, que é a
maior alegria do pai...ele é um gato e um artista plástico de mãocheia!!!
Faz parte dessa trama uma tal de Luluca, uma viralatinha linda e muito,
mas muito, amorosa...Viva Xangô!!!
flaviobb@ufpa.br
18
"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
Florie Chazarin
Interessada na justiça social e ambiental, procurando compreender mais
abertamente sobre as diferenças e semelhanças, passadas e futuras, das
populações. Geógrafa social que atualmente mora em Angola.
floriechaz@gmail.com
Francisco José Bezerra Souto (Franzé)
Muita coisa mudou desde o último vol. III... Continuo também
conhecido como Francisco José Bezerra Souto, tenho agora 54 anos (com
corpinho de nem mais sei quanto), potiguar exilado na Bahia
(espontaneamente, mas também saudoso), pai de Cauê, Gabriel e agora
também de Beatriz (joinhas raras de 14, 05 e 02 anos, respectivamente),
esposo
de
Lalá
(grande
amor,
grande
amor),
professor/pesquisador/mestre/doutor (blá, blá, blá, blá..., “grande
coisa”!), jardineiro (sem muito tempo e doido pra ser agricultor!),
surfista (Huuuum... será ainda?), fotógrafo (meio afastado, mas de olhar
atento), excorredor (ainda volto!), leitor (quase inveterado!), fã de
música boa (inveterado!), aprendiz de Ukulelê (falta decorar as notas)...
Bem, por vezes, desconfortável nesse mundo, mas doido pra aprender a
“transvêlo” (graças a Manoel de Barros).
franze.uefs@gmail.com
Geilsa Baptista
Baiana, sonhadora, inquieta, divertida e criativa por natureza. Professora
da UEFS, mãe, esposa, tia, filha, amiga. Ama, estuda e vive a vida.
Ensinando a ensinar, conhece muitas pessoas, com as quais interage,
emociona e se emociona, ajuda e é ajudada, protege, conhece, brinca,
sorri, se aborrece, perdoa, descreve e escreve. Nas horas vagas, viaja, se
recolhe, contempla, pinta, costura, borda, arruma, desarruma, inventa,
tenta. Uma metamorfose ambulante, cheia de criatividade, lealdade,
amizade e desejos de um mundo melhor.
geilsabaptista@gmail.com
Gilney Charll Santos
É Doutor em Etnobiologia e Conservação da Natureza pela UFRPE e
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"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
Professor do IFPE – Campus Belo Jardim, onde atua na área de Biologia
geral. Tem especial interesse em entender os fatores que modulam as
relações entre pessoas e natureza, na interface processos ecológicos e
evolutivos. Em adição, é Pernambucano, recifense que adora sorrir,
viajar, conhecer novas paisagens, culturas, povos e conversar com as
pessoas. Também adora estar perto da família e dos amigos, seja jogando
conversa fora, refletindo sobre as coisas da vida ou contando piadas.
Acha melhor ainda, quando esses momentos são acompanhados de uma
boa música e de uma cerveja bem gelada.
gilneycharll@hotmail.com
Gustavo Goulart Moreira Moura
"Não direi:
Que a biografia me sufoca e amordaça
Vida consumida se acumula,
Se represa e vira cisterna de água morta.
As linhas que a biografia armem ou não armem
Não valem uma flâmula de lágrimas que passeiam rápidas"
gustavomoura@ufpa.br
Gustavo Taboada Soldati
O codinome Tigu segue incessantemente me perseguindo pelas bandas
que a vida me leva, “pra ver se um dia descanso feliz”. Mineiro
clandestino e de coração segue vagabundo. Sobrevivi ao retorno de
Saturno, mas não à vida acadêmica. Voltei pra zona, para a Zona das
Matas ausentes, onde creio ser professor da Universidade Federal de Juiz
de Fora. Viu seu time ser campeão. Pai de Luizinho e companheiro de
Susana.
gtsoldati@gmail.com
Jessé Renan Scapini Sobczak
Possui graduação em Ciências Biológicas pela Universidade Santa
Úrsula (2006), e mestrado em Ecologia na Universidade Regional do Alto
Uruguai e das Missões (URI – Campus Erechim, 2010). Ao término
ministrou aula na rede pública, sendo professor substituto na
Universidade Federal de Santa Maria Campus Palmeira das Missões
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"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
(20122013). Iniciou o doutorado no programa de Sistema Costeiros e
Oceânicos da Universidade Federal do Paraná (2014) e, antes de concluir,
assumiu concurso no Instituto Federal do Tocantins (2015),
permanecendo até 2019. Foi redistribuído e, atualmente, é professor do
Instituto Federal do Rio Grande do Sul, Campus Vacaria. Têm
experiência e trabalhos publicados na área de ensino de ciências,
limnologia, etnobiologia e etnoecologia, com ênfase em pescadores
artesanais.
jesserenan@yahoo.com.br
José Manuel Valencia Espina
Engenheiro em Conservação de Recursos Naturais (Licenciado e
Bacharel) pela Universidade Austral do Chile. Mestre em
Desenvolvimento Rural pelo Programa de Pósgraduação em
Desenvolvimento Rural da Universidade Federal do Rio Grande do Sul
(PGDR/UFRGS). Atualmente trabalha na World Wildlife Fund (WWF
Chile) no Programa de Pesquerías Sustentables, coordenando e
desenvolvendo projetos socioambientais nos ecossistemas costeiros
marinhos junto a povos e comunidades tradicionais no Chile.
josevalenciaespina@gmail.com
Juliana Cardoso Fidelis
Desde que deixei em Santarém/Pará, onde nasci e cresci, estou a
descobrir que essa cidade de belas praias e de ceú azul nunca me deixou
completamente. O tom turquesa de seu principal rio, o Tapajós, está
sempre presente em meus dias, conquistando ao longo desses 7 anos de
viagem e estudo mundo a fora, a posição de minha cor e desejo favorito.
Sou Juliana Cardoso Fidelis, filha do rio Tapajós, a filha que não tarda,
mas que retorna continuamente. Tenho 25 anos e tenho por mãe dona
Pituca e por vó a dona Zoca, conhecedoras das plantas e dos peixes
amazônicos e de seus respectivos tempos de fartura. Além de santarena
sou pesquisadora/mestra em antropologia e sociologia/e aluna de
doutorado na Unicamp/SP. Gosto de pintar nas horas vagas, além de
fotografar e viajar por todos os lugares, apesar de não permanecer no
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"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
mesmo lugar por muito tempo. Acredito que seja de rio ser corrente e
estar passando, nesse sentido descrevo em fluxo, em processo, aprendi
com isso a viver o momento e de alguma forma eternizálo.
julianaacardosofideliss@gmail.com
Larice Almeida Marinho
Nascida às margens do Rio Tapajós, com berços interculturais, cresci
entre as raízes indígenas e os céus forasteiros. A origem da minha família
se mesclou aos ímpetos do meu amago e torneime parte do mundo.
Viajei com asas mecânicas e pés descalços pela maior extensão de terra
que consegui até o dia de hoje. Se há algo a dizer sobre quem sou é isto:
sou de todo lugar, sou – em suma – um pequeno raio de luz caminhando
pela terra. Meu propósito é clarear o caminho e seguir andando,
descobrindo, experimentando. Meu nome vem da espécie Larix decidua
do gênero Larix, de coníferas pertencentes à família pinaceae. Como filha
da terra, escrevo sobre meu lugar e tempo.
lariceamarinho@gmail.com
Lin Chau Ming
Cursei Engenharia Agronômica pela ESALQ – USP, em Piracicaba, SP, e
antes de me formar me enveredei pelo interior do Brasil para conhecer
comunidades tradicionais e seus modos de vida. Formado, fui trabalhar
com famílias de agricultores familiares em Adrianópolis, PR, pela
EMATER. Depois de quase 10 anos, entrei na carreira universitária,
ministrando aulas de Botânica na Universidade Federal do Paraná e
depois na UNESP – Botucatu, onde estou até hoje, ministrando aulas de
Horticultura e Etnobotânica. Paixão juvenil pela Amazônia me fez
procurar (e encontrar!) trabalhos com comunidades indígenas e
tradicionais, para onde sempre vou, junto com alunos e outros
professores. Adoro o que faço! Ah, fui presidente da SBEE durante duas
gestões e me orgulho disso também.
linming2809@gmail.com
Málika Simis Pilnik
Olá! Sou Málika Simis Pilnik, bióloga (UNESP/Botucatu) e mestra em
botânica tropical (INPA). Vivo no estado do Acre desde 2017, vim para
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"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
pesquisar e trabalhar com temas relacionados à sociobiodiversidade da
Amazônia brasileira. Desenvolvo atividades junto aos indígenas do povo
Huni Kuĩ (Kaxinawá), principalmente nos seguintes temas: etnobotânica,
agroecologia, segurança e soberania alimentar e nutricional, práticas
alimentares tradicionais e conservação e manejo dos recursos naturais.
Acredito que esta publicação seja imprescindível para a divulgação de
vivências registradas em diários de campo – nossos fiéis amigos, mais
ainda quando do isolamento geográfico e comunicativo. Sou grata pela
oportunidade.
mali.simis1202@gmail.com
Marcela Eringe Mafort
Professora de Educação Básica da Secretaria de Estado de Educação de
Minas Gerais, Mestre em Ensino pela Universidade Federal Fluminense,
licenciada em Ciências Biológicas pela Universidade Estadual do Norte
Fluminense Darcy Ribeiro. Atuando em Linhas de Pesquisa nas áreas de
Ensino, Educação Ambiental, Ecologia e Etnobiologia.
mafortmarcela@gmail.com
Marcelo Nivert Schlindwein
É natural de Brusque, SC, com graduação na UFSC, morando por alguns
anos entre os “Manezinhos” da Lagoa da Conceição e do Ribeirão da
Ilha. Cursou o mestrado e doutorado com em zoologia, na Unesp de Rio
Claro. Desde deste período começou a se interessar pela Etnobiologia,
com principal interesse pela Etnozoologia. Através do curso de formação
de professores (PARCELADAS UNEMAT), onde teve contato com várias
etnias indígenas, como os Karajá e os Tapirapé. Participou de dois cursos
de agronomia para assentados da reforma agrária (INCRAPRONERA),
participando de projetos que envolviam o manejo da biodiversidade por
ribeirinhos e quilombolas. Durante quase duas décadas fez viagens de
Campo ao Parque Estadual da Ilha do Cardoso (PESC), em Cananéia,
onde pode conviver com a cultura caiçara. Na UFSCAR ministrou na
graduação a disciplina de Etnoecologia. Em todos os lugares que foi
professor não perdeu a chance de tocar violão para a lua, mesmo ela
reclamando ou não...
mnivert@ufscar.br
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"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
Márcia Regina Antunes Maciel
Bióloga, formada pela Universidade Federal do Mato Grosso do Sul
(UFMS), Mestre em Ecologia da Biodiversidade pela Universidade
Federal do Mato Grosso (UFMT)/Cuiabá, MT. Doutora em
Agronomia/Etnobotânica pela Universidade Estadual Paulista/Campus
de Botucatu, SP, (UNESP). Com raízes caboclas fruto da mestiçagem
brasileira que se perde no tempo, fui criada entre os santos católicos e os
batuques dos terreiros da Umbanda. Depois de “ciganamente” rodar
pela estrada da vida, casar, ter filhos, descasar, ser avó, não imaginava
que ao buscar os diplomas, reencontraria as benzedeiras, o sagrado
adormecido, o maracá da Jurema. De lá prá cá, tenho me movimentado,
ora atuando em consultorias ambientais, principalmente com povos
indígenas, ou ministrando aulas em academias. E a vida segue no
planeta Gaia.
marciamacielmt@hotmail.com
Maria Christina de Mello Amorozo
Por boa parte da vida, fui bióloga, com alguns conhecimentos
antropológicos, professora universitária e pesquisadora na Universidade
Estadual Paulista (UNESP), além de uma pessoa como tantas outras. A
carreira acadêmica terminou, ficou a pessoa, querendo aprender novas
possibilidades – escrever contos, moldar o barro em potes e tigelas,
plantar mudas de árvores.
mcm.amorozo@gmail.com
María Teresa Pulido Silva
Nací en “la nevera” (Bogotá). Mis padres, Lucila y Santiago, eran
colombianos de pura cepa. Crecí en una familia maravillosa, con mis dos
hermanos del alma. A Gonza lo recordaré y extrañaré hasta el día que lo
vuelva a encontrar en una esfera aun desconocida para mí. Mientras
tanto vives en mi corazón y en mi ser. Tengo y atesoro el cariño de
Susana. Me hice etnobotánica después de múltiples visitas a conocer las
plantas de las amigas de mi mamá y de las narraciones de mis tíos sobre
la vida en la selva. Años después llegué a la Península de Yucatán a
desarrollar mi estudio doctoral con el etnobotánico Javier Caballero.
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"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
Ahora me desempeño como profesor investigador en la Universidad
Autónoma del Estado de Hidalgo. Hidalgo es uno de los estados más
pequeños de México, que tiene la magia que una tercera parte de su
población es indígena. Este crisol cultural es un lugar propicio para una
etnobotánica. Te pongo mis correos mtpulido@yahoo.com y
mtpulido@gmail.com pues me encantaría recibir tus palabras. Concluyo
recordando que mi apellido Silva, tan popular también en el Brasil, viene
del latín y significa selva, floresta. ¿será tanta exuberancia y verdor mi
destino?.
Mario Rique Fernandes
Sou paulistano desterrado, filho de paraibanos, sangue nordestino,
viajante e migrante, meu nome é rio que flui pro mar, e mar que volta a
ser rio. Vivo atualmente na Amazônia, cidade da Pedra Pintada,
Itacoatiara é seu nome, onde vegeta embaixo do chão uma Cobra
enrolada. No norte me tornei pai de Bento e Maria (my life), e cumpri
minha sina de virar doutor em antropologia. “Minha vida é andar por
esse país pra ver se um dia descanso feliz”. Atualmente pesquisador, em
devir professor, pra mais que professor, sonho em ser um dia educador.
E poder ser tocado e tocar o coração das pessoas para a natureza que
queremos preservar, conservar e aprimorar. Natureza que somos e com
a qual precisamos aprender a dialogar – através da arte, da ciência, da
filosofia e da espiritualidade. Isso é o que me movimenta e o que me faz
continuar no desafio maior de conservar a vida em solidariedade e
sincronia com o nosso planeta.
riquemario@gmail.com
Matías PérezOjeda del Arco
Interessado na transmissão de conhecimentos ecológicos tradicionais e a
descolonialidade que emerge das praticas de luta da ruralidade na
Amazônia e África, e na defesa dos territórios ancestrais contra os
avanços das políticas neoliberais. Com uma (de)formação acadêmica em
sociologia rural e ciências florestais nos Países Baixos e no Peru,
atualmente mora em Angola.
matias841@gmail.com
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"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
Mayra Patrícia Corrêa Tavares
Praiana, filha de pescador. Sempre adorei ouvir as histórias contadas
pelo meu pai e experientes, se era verídico ou não, o fato é que cresci
respeitando os causos e contos da minha região amazônica. Já dizia um
sábio professor na graduação, “uma mentira contada diversas vezes
poderá virar uma grande de uma verdade”. Não hesitei em pensar que
ele tinha razão. Mas quando me reporto a infância, as prosas que me
contavam, prefiro acreditar que são histórias com “h”. Sou licenciada em
Letras, Língua Portuguesa pela Universidade Federal do Pará, pós
graduada em Ciências Ambientais e Desenvolvimento na Amazônia pelo
Instituto Federal do Pará. Acredito que estes ajudaramme a entender e a
compreender o valor do modo de vida do lugar em que vivi os oito
primeiros anos. Lugar composto de conhecimentos e valores advindo de
uma herança sociocultural.
mayrapatriciaport@gmail.com
Myrian Sá Leitão Barboza
Miroca foi o carinhoso apelido agraciado por meu painho e inicialmente
restrito a família sexteto Trololó. Só que os ventos nordestinos
esvoaçaram longe e espalharam a graça pelas caudalosas águas
amazônicas... Agora, Miroca é inté pronunciada por alguns que fazem
graça da "suposta" intimidade, mas NÃO se preocupe não! Se conquistar
na simpatia, poderá versar Miroca com todo respeito e alegria. Natural
de Ohlinda cidade!, criada na muvuca da aurora Recifense, agora navega
nas correntezas amazônicas. De fato, uma Pernamparaense Parabucana!
Amante de frevo e guitarrada, cavalo marinho, côco e carimbozada,
angoleira sim sinhora! Cuidado, num se confunda não, é gêmea de
feitiço e de profissão!
miramiroca@gmail.com
Natalia Hanazaki
Nascida em São Paulo, capital, perto do Bixiga mano, ali perto da Nove
de Julho, capisci? Descendente de japoneses (sansei, 3a geração no
Brasil), ecóloga de formação de graduação, ecóloga de formação de
mestrado, ecóloga de formação de doutorado e, apesar dessa aparente
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"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
convicção disciplinar, sempre buscando as fronteiras interdisciplinares
da ecologia. Desde 2002 morando em Florianópolis, professora da UFSC,
cientista e pesquisadora interessada nessa fascinante interface entre as
pessoas e a biodiversidade. Mãe do Pedro e do André. Maratonista,
triatleta, violoncelista bem meiaboca. Na eterna busca pela identidade,
tradição e mudança.
hanazaki@gmail.com
Norah Costa Gamarra
Mãe de Miguelito, sagitariana e latina americana, é natural de Alagoas e
com origem boliviana. Carrega da cultura de seus ancestrais o encanto
pelas comunidades detentoras de conhecimento e práticas tradicionais. É
formada em Biologia pela Universidade Federal de Alagoas, Mestre e
doutoranda em Biodiversidade e Conservação. Atualmente desenvolve
pesquisas sobre a pesca artesanal, junto a pescadoras e pescadores do
litoral alagoano, e sobre formas de gestão de Unidades de Conservação.
Fora do âmbito acadêmico, se dedica à maternidade, aprecia a vida junto
ao mar e às rodas de capoeira.
norah.gamarra@gmail.com
Paula Chamy
Biofílica extrema, frustrada por não ter ficado com a medicina
veterinária, por não poder viver submersa nos oceanos (baleia ou sereia,
qualquer uma estaria valendo) e por ser de uma espécie que faz tantas
crueldades com as demais. Mas, por outro lado, feliz por ter conhecido
tanta gente maravilhosa nas Etnos. Vegetariana há milênios, orquidófila,
fotógrafa, bordadeira, amazona, tudo no mais profundo amadorismo.
Viajante, caminhante, andarilha, fazendo travessias pelo mundo para ver
ser entendo um pouco dele algum dia, ou noite, porque, afinal, como
disse Mário Quintana, viajar é trocar a roupa da alma e a minha gosta de
muito de trocar de indumentária.
paula.chamy@gmail.com
Rafael Sá Leitão Barboza
Biólogo, fugiu da seca do nordeste para a Amazônia em 2007, foi
apresentado à etnobiologia, mudouse para Santarém para trabalhar com
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"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
comunidades ribeirinhas pelo IPAM, foi gestor da RESEX Riozinho do
Anfrísio pelo ICMBio. E depois de muita água, durante alguns anos,
voltou para a seca porque ficou com saudade da colega de turma, casou
e hoje é pai de Mateus. Agora tá estudando pra ser dotô em
biodiversidade na UFRPE.
rafabarboza@gmail.com
Reinaldo DuqueBrasil
é mineiro de BH com raízes espalhadas pelas Minas e pelos Gerais.
Apaixonado pelos sertões, tornouse biólogo e doutor em Botânica pela
UFV. Trabalha como professor da UFJF, onde coordena o Núcleo de
Agroecologia de Governador Valadares (NAGÔ) e vê na Etnoecologia a
esperança de incentivar a solidariedade entre as pessoas e o respeito à
natureza. Acredita que nossas ferramentas acadêmicas de ensino,
pesquisa e extensão tem o dever de contribuir com a luta pelos direitos
dos povos originários, comunidades tradicionais e demais grupos
historicamente marginalizados. Papai do Téo, viajante nato, antifascista,
poeta de prosa fiada, curte a diversidade, a poeira da estrada e qualquer
música que toque a alma.
reinaldo.duque@ufjf.br
Roberta Sá Leitão Barboza
Me identifico como uma pernamparamapaense pai d´égua, criada no
cuscuz com bode e abduzida pelo peixe no tucupi com suco de bacuri.
Tanto gosto de dançar maracatu e marabaixo, como carimbó, coco de
roda e uma boa guitarrada. Mãe de Iara, rainha das águas, e da Maria
Flor, minha Fulôzinha arretada! Atualmente moro na perola do Caeté,
cidade Bragança no Estado do Pará, onde atuo como professora da
Universidade Federal do Pará. Em casa sou contadora de histórias; na
rua muitos causos gosto de ouvir e algumas rimas costumam sair...
betabarboza@gmail.com
Rumi Regina Kubo
Gaúcha de nascença, nipônica de origem, brasileira de coração. Filha de
agricultores, bióloga, antropóloga e artista plástica, atua hoje junto ao
Programa de Desenvolvimento Rural (PGDR) e no Departamento de
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"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
Economia e Relações Internacionais (DERI) da Universidade Federal do
Rio Grande do Sul.
rumikubo2002@gmail.com
Shana Sampaio Sieber
Sou mulher, mãe de duas filhas nascidas no sertão pernambucano, Flora
e Cora. Pesquisadora, extensionista e educadora, com uma trajetória
interdisciplinar originária das Ciências Florestais, que amadurece nas
Ciências Sociais. No doutorado, a convivência com o semiárido
extrapolou as minhas práticas acadêmicas e de campo, num processo de
(con)vivência com a realidade do semiárido e construção de
conhecimento e identidade, mudando a minha forma de ver e viver (n)o
mundo, diante de histórias de vidas marcadas por relações de gênero
desiguais e sobrecarregadas jornadas de trabalho. Atuando junto ao
Dadá: grupo de Estudos, Pesquisa e Extensão sobre relações de gênero,
sexualidade e saúde e ao NEPPAS: Núcleo de Estudos e Práticas
Agroecológicas do Semiárido, minhas práticas agora problematizam
essas questões, buscando envolver as mulheres nos processos
construídos. Atualmente estou no meu segundo doutorado na
UNICAMP/FEAGRI, tecendo os fragmentos dessa história, entre
rupturas e continuidades, descobrindo modos de conhecimentos.
shanasieber@yahoo.com.br
Shirley Djukurnã Krenak
Pertence ao povo Krenak do Vale do Rio Doce, MG. Formada em
Jornalismo, publicidade e propaganda, atua na defesa dos direitos
indígenas e dos rios sagrados contra a mineração. É escritora e
educadora indígena, com livros publicados: “A onça protetora” e
“Cartilha Krenak Ererré”, atuando em parceria com escolas públicas e
privadas da região. É coordenadora pedagógica do projeto
Pluriversidade do Watu desenvolvido em parceria com Núcleo de
Agroecologia da UFJF em Governador Valadares. Desenvolve trabalhos
terapêuticos ancestrais voltados para o despertar do ser humano para a
cura pela Mãe terra. krenak31@hotmail.com
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"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
Tarik Argentim
Olá! Sou Tarik Argentim, bacharel em Direito (PUCSP), advogado
popular e indigenista especializado na Fundação Nacional do Índio –
FUNAI. Me mudei para o estado do Acre em 2017 para trabalhar,
contribuir e aprender com a sociobiodiversidade da Amazônia brasileira.
Atuo diretamente com membros e comunidades de diversas terras
indígenas no Vale do Juruá. Desenvolvo atividades sobretudo nas
temáticas de políticas públicas, gestão ambiental e territorial,
etnodesenvolvimento e agroecologia, conservação e manejo dos recursos
naturais, entre outras questões relacionadas aos direitos dos povos
indígenas. Creio que a presente publicação colabora com a troca de
experiências entre todos aqueles que desempenham atividades de campo
nos rincões do Brasil. Agradeço pela oportunidade.
tarik.escmod@gmail.com
Tomaz Ribeiro Lanza
Apaixonado pela vida, pela diversidade humana e pelas plantas sou
agrônomo e educador por formação. Pesquisador na área de
etnobotânica, agricultura tropical e sistemas agroflorestais. Mestre em
fitotecnia pela UFRRJ e doutorando em agronomia, pela UNESP, em
trabalho na TI Kaxinawá de Nova Olinda – AC. ao longo dos últimos
anos atuando junto a empresas e organizações na área de consultoria em
agricultura e meio ambiente, com atividades de assistência técnica,
extensão rural, identificação botânica, recuperação de áreas degradadas e
agricultura tropical.
tomazlanza@gmail.com
Yan Victor Leal da Silva
Nascido e criado nas margens do Assentamento Dom Orione, primeira
ocupação do MST na Região Metropolitana de Belo Horizonte, Minas
Gerais. É membro colaborador do grupo Kaipora – Laboratório de
Estudos Bioculturais da UEMG. Atualmente é Doutorando do Programa
de PósGraduação em Desenvolvimento Social da UNIMONTES. É
educador popular, comunista e no ano de 2020 começa um trabalho
como Professor do Assentamento Estrela do Norte MST, Montes Claros
MG.
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"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
yanvicctor@gmail.com
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"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
Ataíde: o bicho do manguezal 1
Alexandre de Brito Alves
O manguezal é um lugar que resguarda muitos perigos,
todos da Vila de Bacuriteua sabiam disto. Porém, o senhor Pedro
Paulo, um experiente trabalhador de quarenta e oito anos e trinta,
emprenhado nas raízes pontiagudas das Rhizophora mangle e da
Laguncularia racemosa já não se importava com as intemperes que
poderia encontrar. A vizinhança o orientava a ter cuidado com as
visagens do meio ambiente como o Ataíde e o Curupira, por
exemplo. Ao ouvir sobre elas respondia sem dar importância.
Não há nada além de homens e lama no manguezal.
Em 19 de maio de 2010 ele organizou uma ida ao
manguezal. Tratou de convidar Pedrosa, Renato e Daniel.
Encontrou os três juntos, assistindo (à TV) uma partida de futebol
na casa de Dona Laura, a proprietária do bar “Ressaca Boa”.
Moçada, vamos lá pegar essas 80 cambadas2 ?
Será Paulo ?... Respondeu Renato, meio inseguro.
É, vamos.
Quando? Redarguiu Pedrosa.
Amanhã, preparem seus materiais. Já tem uma compra
acertada com um marreteiro daqui, a gente vai vender ao mesmo
nossa produção. Temos que fazer 80 cambadas de caranguejos,
vendemos por 480 reais e dividimos o dinheiro. O que vocês
acham?
Os três convidados se entreolharam, todos acostumados
com essa atividade. Aceitaram de pronto.
Então tá; amanhã iremos a partir da parada 17 da PA458
(estrada que corta parte do manguezal), quando o ônibus vier, a
gente vai, disse Pedro, em tom animado.
1 Este conto é um relato de um pescador artesanal residente na cidade de BragançaPA, contado
durante minhas pesquisas de Graduação e de Mestrado, entre os anos de 2010 e 2017.
2 Correspondem a 14 caranguejos amarrados a um fio.
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"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
Noutro dia, às seis da matina, os três estavam prontos.
Pegaram o ônibus e chegaram meia hora depois na ponte do Furo
Grande; alugaram a canoa do senhor Cassiano e partiram para
dentro do manguezal.
Naquele dia a labuta foi árdua e praticamente não
conseguiram capturar caranguejo.
Daniel, o mais cansado entre todos, colocou a mão à cintura,
respirando com os seguintes dizeres:
É pessoal, o caranguejo está difícil de ser encontrado,
portanto, eu acho que é melhor a gente voltar.
Paulo, por outro lado, divergiu:
Não! Vamos ficar! Né pessoal?
Pedrosa e Renato, também muito cansados, se
entreolharam, e não responderam nada.
É claro que os dois estavam querendo retornar, porque
eram 3 da tarde e a maré estava subindo. Em pouco tempo todo o
manguezal estaria cheio, e, daquela forma, os passos humanos
seriam dificultados pelo atoleiro. Eram conhecidas por todos as
histórias de pessoas que haviam morrido naquele ambiente. Mas,
contrariamente, à vontade da maioria, Paulo convenceu a todos de
que noutro dia encontrariam mais caranguejos. Sua mente não
deixava de projetar que os amigos não caminharam o suficiente, de
que noutro dia tudo ocorreria bem.
Onde vamos ficar, Paulo? perguntou Daniel, com a face
fechada.
Meu caro, vamos andar só uns 500 metros daqui para o
rancho do Manoel Cavalo. Ao chegar lá, dormiremos até de
manhã.
O rancho é uma espécie de moradia, feita de madeira e
coberta de folhas, seus lados são abertos, embora existam também
aqueles que são fechados, totalmente. Serve para os trabalhadores
dormirem e/ou descansarem no manguezal.
Chegaram ao rancho almejado. O local tinha apenas uma
panela velha e umas duas colheres. Os amigos se organizaram
para passar a noite. Combinaram de não dormir todos
33
"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
simultaneamente a fim de evitar perigos. Assim, enquanto três
dormiam, um ficava observando o local. Então a noite veio.
Consumadas nove horas, todos ainda estavam acordados.
Daniel, bastante conversador, começou a contar estórias de
assombrações. A especulação de que no manguezal existe um
bicho grande, feio e muito fedorento deixava Pedrosa e Renato
vidrados, enquanto isso, Paulo não dava atenção, permanecia com
seu enorme cigarro à boca e ajustando uma pequena fogueira para
que a fumaça afastasse as carapanãs e os maruins, insetos que
tempesteavam o manguezal, e infernizavam a vida dos
trabalhadores.
Em meio às conversas, os três adormeceram e Paulo
permaneceu acordado.
Vou dormir também, não quero saber de bicho! Então
deitou e o sono lhe encontrou.
Passadas umas quatro horas após a soneira, Paulo abriu o
olho, após escutar um forte barulho no meio da floresta. Observara
suas proximidades e notara os companheiros aos roncos. Mais
uma vez, o sono pegou o velho coletor de caranguejo.
Novamente Paulo acordou em plena madrugada,
entretanto, não mais pelo barulho de árvores quebrando, a
situação agora era terrível. Ao abrir os olhos ele conseguiu
enxergar o rancho a 50 metros de distância, ainda conseguia
detectar o pequeno fogo quase apagando. Seu tronco, assim como
as pernas estavam sobre o controle de algo, algo grande e muito
forte que o carregava adentro do manguezal. O horrendo cheiro da
coisa penetrou rapidamente sua narina e, por um segundo,
lembrouse do Ataíde (o bicho do manguezal). Com os braços
soltos às costas barrentas da coisa, ele então resolveu que deveria
reagir rapidamente, porque estava sendo conduzido ao interior da
floresta, e se não resistisse poderia morrer nas piores situações.
Paulo, então, com toda a força, virou o corpo à frente e tentou
aplicar uma gravata na criatura, que reagiu apertandoo com mais
força. Paulo gritou com toda a força de seu pulmão. O grito
acordou Daniel que, ao abrir os olhos, não viu mais o
companheiro. Enquanto os gritos continuavam.
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"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
Paulooooooooo! gritou desesperado Daniel, acordando os
outros.
Levantamse, Ataíde está matando Paulo!
Os outros, rapidamente, despertaram e se apossaram das
facas que carregam, em desespero, saíram correndo ao som
reverberado. Depois de percorrerem alguns metros, viram o
sujeito lutando contra uma criatura de uns dois metros de altura,
tão peluda que não dava para ver a fisionomia do Ser na
escuridão, parecia que Paulo lutava contra sua própria sombra na
noite. Não se sabia à maneira, mas Paulo conseguiu escapar dos
braços do Ataíde e lutava intensamente contra este.
Deixao seu maldito! Deixa, nós vamos te mandá ao
inverno, seu Diabo.
E, assim, os três partiram para cima do bicho, munidos de
suas facas e outros instrumentos cortantes.
Paulo conseguiu se desvencilhar da criatura. Atracou o
corpo barrento com toda a força, entretanto, o bicho era muito
forte e o jogou ao chão, estava tentando asfixiálo, com os braços
que parecem galhos de árvores. Nosso personagem já estava
ofegante quando os amigos, gritando, se aproximaram. Ao ver os
homens se lançarem dispostos a matar ou morrer, a criatura
correu, e sumiu no matagal.
Paulo escapou. Acordando logo, por um terrível grito no
meio do manguezal.
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"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
La luz plateada del Himalaya
Alonso Pérez Ojeda del Arco
Carolina Perret
Desde que tenemos uso de razón, siempre nos atrajeron las
montañas de nieve. Tal vez, porque no las teníamos cerca, en
Lima, Perú, o en Chaco, Argentina, nuestros lugares de origen, o
tal vez, por estímulos visuales a temprana edad como el libro
titulado Tin Tin en el Tibet que alguna vez Alonso atesoró de
pequeño. Con el correr de los años, independientemente, y como
pareja, fuimos alimentando esos cantos odiseicos, estimulados
posteriormente con películas como Himalaya de Eric Valli, o libros
míticos como: La senda de las nubes blancas, de Anagarika Govinda
o, El leopardo de las nieves, de Peter Mathiessen. Lo cierto es que las
montañas de nieve siempre permanecieron en nuestro imaginario
– y en el del ser humano como lugares salvajes, silentes,
inalcanzables.
Habíamos llegado a Kathmandú, Nepal, luego de un
congreso de la Sociedad Internacional de Etnobiología ISE,
llevado a cabo en el reino de Bután. Siempre creímos que este tipo
de eventos, además de permitir el intercambio de ideas y
conceptos en nuestras respectivas disciplinas e investigaciones,
abren una oportunidad para conocer otras miradas, otras gentes y
culturas, y es allí donde radica la verdadera experiencia de los
mismos, incluso más allá del plano académico.
Luego de varios días en la capital nepalí, ubicada en un
valle cerca de los 1400 msnm, creíamos, y sentíamos, que debíamos
mirar desde más arriba. El calor agobiante y la lluvia sin fin del
monzón nos invitaban a ir más allá de las nubes. Es así que
decidimos hacer una caminata alrededor de una de las cadenas de
montañas más altas del planeta: los Annapurnas, que con más de
ocho mil metros se ubica en el corazón del Himalaya nepalí. No
fue difícil convencernos; además de las nieves eternas y la
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"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
diversidad en naturaleza y cultura, que anhelábamos contrastar
con la memoria de nuestros Andes peruanoargentinos, la idea de
que veríamos, por arriba de los cuatro mil metros, a los míticos
yaks (Bos mutus), una especie de vaca peluda, típicamente
ilustrada en postales o documentales que se hacen sobre estas
alturas, bastó para no dudar desde los primeros planteamientos, y
emprender el recorrido.
Y sin más, partimos. Un bus destartalado nos llevó a
Besisahar, desde donde empezamos la caminata. Cada día nos
levantábamos al alba y desayunábamos sin prisa, mientras
repasábamos el mapa. Estábamos solos, sin guía, y sin
porteadores. El camino, sin embargo, estaba muy bien señalizado
y serpenteaba atravesando pequeños pueblitos y monasterios que
parecían perdidos en el tiempo.
Nuestro itinerario fue, generalmente, caminar por las
mañanas y llegar alrededor del mediodía al pueblito donde
pasábamos la noche. De esta manera descansábamos por las
tardes, recorríamos los pueblos y sus monasterios; e
intercambiábamos palabras con la gente local, si el idioma neutral,
inglés en este caso, lo permitía.
En los desayunos, confiábamos en el tsampa, alimento
energético y altamente nutritivo preparado a base de harina de
cebada y otras gramíneas locales, además de leche de yak, y en el
que, curiosamente, encontramos cierta similitud a la Mashica de los
Andes peruanos, harina que se elabora comúnmente sobre la base
de cebada tostada y molida. Por las noches, la dieta consistía en
platos como el dal bhat, un guiso de arroz y lentejas, momos, una
especie de masa cocida y rellena con diferentes ingredientes, y de
vez en cuando algo de carne o queso de yak.
Por las tardes, casi religiosamente, releíamos
intercambiando turnos un viejo libro del Leopardo de las nieves, de
Peter Matthiesen. Un libro que habla de su viaje, allá en los años
70s, en el contexto de una expedición para fotografiar a la cabra
azul (Pseudois nayaur) y el leopardo de las nieves (Panthera uncia);
además de una búsqueda personal, espiritual, interna, en el
corazón de las nieves perpetuas. Curiosamente en una
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"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
oportunidad, siguiendo a nuestro audaz narrador, y cuando
subíamos una pendiente para fotografiar yaks, terminamos
encontrándonos con un grupo de cabras azules. Una bendición de
la naturaleza.
Caminamos por valles donde la marihuana crece de manera
silvestre y libre en los caminos de ahí su nombre Cannabis indica,
así como crece la cantuta (Cantua buxifolia) en la sierra peruana, o
el chaguar (Bromelia hieronymien) en el Chaco argentino.
Caminamos por pueblos que parecen escribir su presente en un
pasado de varios siglos atrás. Lugares donde el OM MANI
PADME HUM, famoso mantra budista tibetano, reza en las
piedras talladas colocadas en los ríos para que el agua lleve por su
cauce el mensaje. Reza también en las ruedas de oración, esas que
están colocadas por filas y en muros, para que los caminantes las
giren, siempre en sentido horario, poniendo en potencia sus
plegarias. Caminamos por pueblos donde las banderas de oración
esas típicas banderitas de colores que nos transportan
inmediatamente al Himalaya flamean a cielo turquesa, llevando
también por el viento, el mensaje de sus mantras.
Finalmente, ese sueño insatisfecho de montañas terminó
llevándonos por uno de los lugares más ignotos que pudimos
caminar, haciendo más de 130 kilómetros y cruzando un pase de
altura, el ThorongLa, a 5416 msnm.
Luego de esos días y noches, de estar rodeados de seis
miles, siete miles y ocho miles, montañas que soñamos desde
niños, y que solíamos dibujar con un lápiz carboncillo en los
cuadernos de la escuela. Luego de caminar por senderos y pueblos
que abrazaban el cielo; y recibir y devolver cordialmente un
Namasté como saludo, terminamos tomando una serie de buses o
colectivos que, haciendo los transbordos respectivos, debido a las
secuelas del monzón, nos dejaron a tiro de unas horas hacia la
frontera con India.
Casi como culmina un viaje, así terminamos de leer, un día
antes de despedirnos de las nieves imperiales, el libro Leopardo de
las nieves. Era de tarde, casi de noche, y el viento subía feroz por el
valle del Kali Gandaki. Nos habíamos refugiado en un hospedaje
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"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
de nombre Yak Donald´s, y al que la famosa cadena de comida
rápida le hubiese puesto denuncia por copia de logo, y ultraje de
concepto. Agotados, descansando y recordando lo caminado,
tomábamos té Masala, un té con leche y especias que se volvió
nuestro favorito. Al norte se dibujaban los inicios del legendario
Reino de Mustang, y un poco más allá, la meseta del Tibet. Un
pastor de cabras regresaba trayendo consigo a su rebaño, un grupo
de adultos mayores rezaba, una por una, las 108 cuencas de sus
rosarios o malas budistas, y nosotros girábamos una de las
pequeñas rueditas de oración que portábamos como recuerdo. OM
MANI PADME HUM. Terminamos de leer el libro, y nos
despedíamos de los Annapurnas, bajo la luz plateada del
Himalaya.
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"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
Historias, rostros, y mates en el Chaco Santiagueño
Alonso Pérez Ojeda del Arco
Los siguientes relatos forman parte de un viaje en bicicleta
que el autor hizo durante 4 meses por las zonas rurales del
altiplano boliviano y el Chaco argentino en el marco del Proyecto
“Amazonía para el mundo”. Su objetivo fue realizar charlas y
diálogos con escuelas e instituciones respecto a la diversidad
cultural y biológica de la Amazonía, así como incentivar la toma
de conciencia respecto a las amenazas que se ciernen sobre ella. El
método, quizás no el más convencional, se cimentó en el simple
hecho de que viajando en bicicleta se puede estar más cerca de la
gente y de la realidad circundante.
I
Desperté recordando las noches azules de Bolivia. Los
pronósticos del friaje sobre Santiago del Estero, Argentina, habían
sido ciertos. Había pernoctado en la localidad de Quimilí, en las
instalaciones del Movimiento Campesino de Santiago del Estero
–MOCASE, una agrupación de más de 20 años de lucha que busca
la defensa del territorio, la reivindicación a los campesinos sin
tierra frente a los grandes capitales de la soya y las grandes
transnacionales fagocitarias del modelo capitalista.
Por intermedio de los compañeros del MOCASE había
decidido visitar una de las comunidades donde trabajaban. Es así
que tomé la ruta hacia la Colonia Lote 38, a una hora en bicicleta,
primero por un camino afirmado, y luego por un sendero angosto
que iba paralelo a un canal de agua. Doña Leticia, una mujer
mayor curtida por el sol, me recibió con los brazos abiertos. La
acompañaban Carlos y un niño llamado Walter, quienes venían
apoyándola en las faenas por aquellos días. Su finca era un típico
rancho santiagueño; un corral de cabras, árboles para leña,
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"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
colectores de lluvia, un horno de barro y ladrillos, entre otras
cosas.
Pasamos la mañana alimentando a las cabras, contando las
que no habían regresado a dormir la noche anterior, aplicando cal
a las patas de los animales, y juntando algo de leña para el
almuerzo. De un momento a otro, mientras cebaba unos mates,
Leticia nos pidió a Walter y a mí que traigamos un cabrito para
beneficiarlo. Traigan a ese guachito que a su madre se la comió un puma
la vez pasada, dijo señalándolo y sellando el destino del pequeño.
Carlos, que impávido había estado afilando un par de cuchillos,
procedió a ultimarlo y sacarle la piel con una gran destreza. Tienes
que dejar que toda la sangre salga, de lo contrario la carne quedará
oscura. Antes el cuero se vendía, ahora no hay mercado. Si lo quieres
vender nunca le saques toda la grasa de lo contrario va a pesar poco… las
tripas para afuera, es lo primero que se malogra. Me bombardeaba de
consejos dado el interés con el que lo observaba.
Un par de horas más tarde, reunidos ya en la mesa
compartiendo el animal preparado junto con panes en su horno de
barro, Leticia se dirigió hacia mí y dijo: Muchacho, esto que vez, es
por lo que luchamos ¡Soberanía alimentaria! Yo lo crié, yo lo maté, yo lo
cociné. Sé de dónde viene lo que está en mi plato. En ese momento, sus
palabras fueron potencias que circulaban en el aire. Me contó del
olvido hacia los campesinos, de la expropiación de las tierras, de la
banalización de sus ideas por parte de las autoridades, de sus
luchas, y de otras luchas.
Era ya de tarde cuando el viento venía cada vez más frío
haciendo presagiar nuevamente una noche de estrellas, tan diáfana
como gélida. Me despedí de todos y en especial de Leticia con un
gran abrazo. Marché ligero, pero con la cabeza repleta de historias.
Las palabras de Leticia me acompañaron hasta la central del
MOCASE donde encontré refugio contra el frío. Aún de noche, ya
acostado, seguí pensando en ella, en la fuerza de sus palabras, la
lucidez de sus ideas, y en su lucha sin descanso.
41
"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
II
Desde el primer momento que hablé con Don Carlón, supe
que era un hombre forjado en el campo. Tenía una mirada
profunda, de esas que lo han visto todo, en sus manos se dejaban
ver las marcas de la vida diaria con el monte. Oírlo hablar era un
placer y, pese a su edad, conservaba una vitalidad que ni los
algarrobos (Prosopis nigra) del Chaco tienen.
Había llegado yo a su rancho ubicado en el Paraje Santa
Rosa, a 7km de Quimilí, en horas de la siesta. Lo encontré
ensillando su caballo a punto de salir a buscar sus cabras al monte.
Hola chango, sentate. Antes de que le preguntara como sabía dónde
estaban, se anticipó: Hay viento norte, las cabras siguen al viento… Yo
cuido a mis animales. Vos podés ir cortando un poco de chala. Allí está el
maíz para las aves. Se marchó.
Regresó y pasamos la tarde tomando mate, conversando, y
terminando algunas faenas en el rancho. Llegó la noche y, a la luz
de un brasero, empezó a descifrarme muchos secretos del monte
chaqueño. Nos remontamos a la época de los ferrocarriles y a la
triste historia de los árboles de quebracho. Respecto a los primeros,
Eduardo Galeano escribiría con razón, que lejos de ser el motor de
la comunicación de las distintas provincias del interior, las vías
férreas eran arterias que unían los centros de producción y
materias primas con los puertos que enviaban todo al viejo
mundo, dejando nada en el nuestro.
Por otro lado, al igual que en la Amazonía con el caucho
(Hevea brasiliensis), a fines del siglo 19 y las primeras décadas del
siglo 20, los árboles de quebracho colorado fueron víctimas del
más irracional exterminio. La variedad santiagueña (Schinopsis
lorentzii) fue diezmada para hacer durmientes de ferrocarril. La
variedad chaqueña (Schinopsis balansae) por su parte, fue codiciada
por sus cualidades imputrescibles y alto contenido de taninos por
la industria de la curtiembre. Eduardo Rosenzvaig escribiría en su
42
"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
libro Etnias y arboles del Gran Chaco: Nadie quería hachar los
árboles de quebracho. Su dureza representaba una tarea
inhumana. Por si fuera poco, además de esa mítica dureza, el árbol
producía una dermitis severa por el contacto con la piel. Con el
canto de las hachas, durante esa época no solo se diezmó el monte
chaqueño, sino también a las poblaciones aborígenes, muchas de
ellas esclavizadas a vivir cortando quebrachos durante
generaciones. Antes abundaban, yo incluso trabajé en la madera
¿Vos sabes qué hacer cuando te agarra el quebracho colorado? Si al árbol
no le agradas, ahí mismo te empieza a picar y enronchar el cuerpo. A mí
no me hace daño, pero he visto… A mi señora le agarró. Tenes que hacer
una tortilla con ceniza y llevarlo al pie del árbol. Dejarle ahicito y luego te
vas, pero sin voltear a verlo. ¡No tenes que darte vuelta! Recordaba Don
Carlón. Sin duda, el árbol de quebracho sigue vigente en la
memoria colectiva de la gente, y esto se manifiesta, en las creencias
y el atesoramiento de otros tiempos.
La temperatura había bajado y ya empezaba a helar afuera.
Un gato negro, al pie del brasero, nos hacía compañía. Don Carlón
se acomodaba una venda que tenía en la mano producto de una
quemadura. ¿Y vos queres ir a sacar algodón al Chaco?, preguntó
curioso. Si, me gustaría aprender de la cosecha, contesté. Le había
contado mi intención de entrar a sacar algodón con los cosecheros,
así, conocería el oficio. Durante el viaje había procurado acercarme
a los trabajos diarios de la gente, algo que me permitía vivenciar
de cerca sus modos de vida, y claro está, hacer algunos pesos
extra. Y si chango. No es fácil. Tenes que laburar todo el día. Duele la
espalda y los dedos de la mano te sangran… te pagan por kilos y ahora
que está helando no es bueno. El algodón pierde peso. Selló el tema,
preocupándome.
Pasó un rato y siguió contándome historias mientras
comíamos bizcochitos de grasa, hasta que, se levantó de su silla y
encendió la radio, y en silencio escuchamos el programa de su
sobrino Darío en la FM del Monte. La música chacarera fue
llegando y, de manera sublime, con el cansancio, el ferrocarril del
sueño me condujo, gracias a Don Carlón, al monte chaqueño
43
"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
donde el recuerdo de los majestuosos quebrachos descansa.
III
A media mañana, un viejo hombre ceba su mate. El sabor
de la hierba tibia le recuerda a su mujer. Sus alpargatas, trajinadas,
dejan ver sus pies que transitan el otoño de una vida construida
bajo las espinas del monte chaqueño. Sus ojos, casi apagados,
reverberan la luz de la brasa donde se calienta una tetera tan
anciana como él. Es un domingo cualquiera, y como si fueran
recuerdos que brotan de la memoria, hace cuenta de sus
pendientes: alimentar a los pollos con maíz, sacar chala para el
buey, extraer agua del aljibe para consolar a su caballo sediento de
sombra, y vender un par de algarrobos convertidos ya en madera
anochecida.
Ya por la tarde, luego de la siesta, y agobiado por el calor, el
anciano sale a su patio y se sienta a acariciar a su gato. Su vista se
pierde en un amasijo de ramas del árbol de itín (Prosopis kuntzei)
que olvidó cortar para despejar el camino. Duda por un instante,
pero sigue allí, con la mirada impertérrita. De un bolso, saca
algunos copos de algodón, los acaricia, son de la cosecha anterior.
El color blanco en sus manos le recuerda el cabello de su mujer. A
lo lejos, nubes negras murmuran truenos. Hay viento norte –ese
que solo sabe de días calurosos pero no le da importancia. Ensilla
su caballo, vuelve a mirar las ramas del itín, y maldice. Tranca su
puerta, y se marcha con dirección al rancho de su compadre. Su
radio está averiada, y hoy juega su Boca Juniors querido.
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"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
Entre balaios e quilombos
Alyne Freire de Melo
Ouvi dizer que quem conta um conto, aumenta um
ponto...Então resolvi contar, essa história histórica, que se passou
há muito tempo, ainda passa e não se sabe até quando passará.
Quando se pensa que não, ainda tem quem lembre dele,
simplesmente tem um povo lá pras “bandas” do Jenipapo, nas
Caxias do Maranhão que não esquece jamais. Um velho Manuel,
que poderia ser Chico ou Antôin ou qualquer outro caboco que só
quer uma vida digna, longe dos tempos da escravidão.
A Lei Áurea foi assinada, faz tempo, mas muita coisa não
mudou...O pobre negro virou favelado ou quilombola e as amarras
que o matavam no passado; ainda que invisíveis agora, continuam
a matar. Mas o povo de outras bandas o chama de carambolo, que
nada mais é que um calango feio, e que ainda diz sim pra tudo.
O Negro Cosme, aquele que achava que negro poderia ser
“gente livre” também, chamava sua luta de “Guerra da Lei da
Liberdade Republicana”. Foi líder da Balaiada, rebelião ocorrida
no Maranhão e Piauí entre 1838 a 1841. Ele lutava contra a
escravidão, castigos morais e físicos, a pobreza e todo tipo de
abusos físicos e morais sofridos pelos pobres e especialmente “os
negros escravos e os escravos negros” no século XIX.
Depois da libertação veio a escravidão social... aquela que
dói mais que os açoites e chibatadas. Por isso “meus amigos” digo
pra vocês: Quando fizer besteira só não fale que fez nas coxas...
Porque as coxas que fizeram telhados de senhores do passado; são
as mesmas que continuam a fazer.
E hoje, para muitos, esse tal de negro Cosme é considerado
herói da revolta da Balaida com direito a estátua e tudo... Virou
plataforma de estudo... Mas nem a escola das bandas que ele
passou leva o nome dele... O tal de Manuel, que poderia ser
Raimundo, que lute... E lute mesmo porque quilombola bom, é
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"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
aquele calado no quilombo, comendo o que não tem e esperando o
que não vai chegar.
Só sei que ele foi enforcado, simplesmente porque juntou
um monte grande de negros para lutar por uma vida digna, só que
nessa grande “brincadeira” ele ameaçou o “sossego público” do
Maranhão... E por isso morreu pra nunca mais voltar.
As marcas desse passado ainda estão nas bandas de lá; na
Gameleira ainda tem uma senzala... Aí chega em Cana Brava das
moças e se acha um cruzeiro do tempo da escravidão. Pra lá tem
até um cacimbão, que servia para matar a sede dos irmãos negros
que por lá passavam; Só que hoje tudo tem dono, porque a terra é
do dono e tudo que tem lá também.
A única coisa que eu sei disso tudo, é que nem eu mesma
sei; até quando o negro, pobre e quilombola vai aguentar. Como
cantou Zé Ramalho, Êh, ô, ô, vida de gado. Povo marcado. Êh,
povo feliz! Assim o quilombola ainda vive sem nem pão e nem
circo... Mais calango bom... Só balança a cabeça porque nasceu
assim e assim viverá.
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"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
Dois relatos de caça na Amazônia Ocidental
André Luís Cote Roman
À Dânya Regina
Proêmio
Há mais de duas décadas na região amazônica, torneime
morador de várias cidades, algumas paraenses, outras acreanas.
Entre as do Pará, vou me despedindo, enquanto traço essas
lembranças, da cidade minerária de Itaituba; já vivi na vizinha
Santarém – de tipologia pesqueira – e na portuária Belém, terra
natal de milha filha, nascida com pseudônimo de escritora. No
Acre, passei alguns anos em Rio Branco – cidade onde construí
amizade com gente tão diversa e especial, como são diversos e
especiais os povoados e paisagens existentes nesse setentrião do
país – e alguns meses em Assis Brasil: cidadadezinha, também com
nome de escritor, tríplice fronteira, terra dos “Manchineri” e
“Jaminawa”, e tablado das duas histórias que se seguem.
Antes de expôlas, cabe um comentário sobre um belíssimo
escrito de Euclides da Cunha, o qual folheei há muitos anos (por
ora não consegui resgatálo), e do qual retive meras
reminiscências, todas elas reportando a discriminações
geográficas, levantadas pelo autor, entre as porções leste e oeste da
região amazônica, especialmente no que tange à sua hidrografia. O
que restou do texto em minha memória (por certo, de forma
imprecisa) é o fato de a Amazônia Ocidental encerrar grandes
interflúvios, com seus rios ‘paralelos’ (estava escrito desse jeito?),
muita floresta no meio, sem aquela exuberante ‘interconectividade
fluvial’ (Euclides, me perdoe!), exibida pelos grandes rios dos
estados do Pará e do Amazonas. Se isso ocorre, facultase, para fins
de contextualização dos relatos esboçados abaixo, pressupor os
inúmeros causos de pesca ainda por serem registrados no âmbito
da Amazônia Oriental e os inúmeros causos de caça ainda por
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"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
serem escritos no âmbito da Amazônia Ocidental, mesmo os
inusitados demais, a exemplo destes que, às pressas, consegui
alinhavar.
1
A caça é a caça e as circunstâncias: que suerte!
Em Rio Branco, após malograda tentativa de encontrar
trabalho, aproveitei a providencial possibilidade de ganhar algum
dinheiro como assessor do Secretário de Agricultura e Meio
Ambiente de Assis Brasil, para a execução de um projeto de cunho
ambiental, envolvendo outros municípios próximos, além desse
que na ocasião me contratava, sede para tal projeto.
Assis Brasil logo me encantou pela rusticidade, pelo
colorido indígena na pequena praça e vielas da cidade, pela
curiosa Bolpebra – localidade boliviana com quatrocentos
habitantes e seu pequeno comércio à margem do rio Acre; pela
presença da singela ponte de Integração BrasilPeru, por onde eu
passava, em minhas caminhadas à tarde, rumo à localidade de
Iñapari. Através desta ponte eu ganhava, diariamente, um país
inteiro para atravessar, fascinante pela floresta, pela cordilheira
dos Andes, pelo Pacífico. Mas obviamente não prosseguia, voltava
para tomar meu banho, comer um lanche num dos quiosques da
pracinha, e descansar no sossego do meu quarto, no hotel do Seu
Bebé.
O café da manhã, tomavao no supermercado da cidade,
onde uma funcionária do estabelecimento, senhora peruana, volta
e meia me perguntava sorridente se eu já tinha me aventurado
pelo seu país, visitado Cusco, Arequipa ou passeando no Lago
Titicaca. Até que um dia, apareci no seu trabalho para comprar um
pouco de soles, pois intentava conhecer a próxima cidade, além da
existente na fronteira: “já é um começo, balbuciei”. “Sí, es el punto
de partida para descubrir otros lugares hermosos...”, animoume a
acolhedora mulher.
Início de tarde de sábado ensolarado, latinha de cerveja na
mão, adentrome a um táxilotação para entranharme por
cinquenta quilômetros até o distrito de Ibéria, departamento de
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"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
Madre de Dios, província de Tahuamanu. O clima no carro era
descontraído, motorista brincalhão, e quando espantei, já estava
acomodado em uma cadeira, na calçada de um armazém da
cidade, feliz da vida, com um litrão de cerveja escura aos pés, e um
saquinho de plátanos deshidratados nas mãos. Bebia com calma, e
respondia derretido às saudações das pessoas, curiosamente
educadas, que passavam por mim, crianças ou gente de idade,
feito uma senhorinha com vestes andinas, ainda habitante de
minhas recordações: “buenas tardes señor”.
Depois desse pequeno pacto com a cidade, fui dar uma
olhadinha rápida numa feira, onde intrigoume ver moças e
senhoras de compleição indígena usando véus roxos, e outros
trajes exóticos. Também as casas, de arquitetura simples, mas de
aspecto todo particular, me davam a sensação de me encontrar não
na Amazônia, mas em algum lugarejo rural asiático.
Sem tardar muito, o tempo fechou, ouvi trovões, e fiquei
com medo de pegar chuva e não conseguir chegar com calma a
Assis Brasil, onde à noite iria a um piseiro com amigos. Saí então
pela rua em busca de condução para regressar a Iñapari. Logo
encontrei uma, justamente à procura de mais um indivíduo para
completar a lotação. De novo, sobroume o banco ao lado do
motorista, desta vez peguei um malhumorado, a cara do temporal
que se armava.
Dirigir sob a tensão do céu escuro – pejado de uma torrente
fabulosa de água prestes a desabar sobre um carrinho velho, cheio
de gente, à alta velocidade, ocupado em desviar de pessoas e
animais de criação que apareciam pelo caminho, numa estrada
precária de chão batido – tudo isso exige cuidado, atenção,
parcimônia com simpatias, etc. Contudo, eu e, pressenti, também
os passageiros da parte de trás do automóvel, notamos uma
concentração ainda assim invulgar por parte do senhor do volante,
extraordinária mesmo ao contexto conhecido.
Em um determinado momento da nossa curta viagem ousei
puxar assunto com o chofer, na linguagem da minha saudosa avó,
disparando uma pergunta fácil de responder com monossílabo, e
já sabendo que a resposta seria positiva: “já estamos no domínio
49
"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
de Assis Brasil”? E ele quase grita, seco: “claro!” Um pouco mais
para frente, mandei outra, a qual não deu tempo de ele responder,
pois os de trás precipitaram (claaro!), presumivelmente para
poupálo de aborrecimento inútil.
Cerca de uns vinte minutos depois, atento ao caminho, pelo
enlevo à paisagem que se descortinava à nossa frente, avistei um
animal silvestre de pequeno porte iniciando sua travessia, a uma
certa distância do carro. Resolvi não falar nada, resigneime como
um caso perdido, uma poesia, em forma de bicho, a menos no
mundo: ele iria esmagálo. No entanto, o carro começou a conter
velocidade e passei a contar com a bondade inata a todo ser
humano frente à delicadeza de um inofensivo agouti. Relaxei, mas
em menos de um segundo ouvi a batida. “Matou?”! Perguntei
angustiado. “Claaaro!”, responderam todos, inclusive o motorista.
Ele deu ré, chegou onde o pequeno roedor se encontrava, desceu
do veículo (seguio, curioso), abriu o bagageiro poeirento e
arremessou o corpo inerte do animalzinho para o seu interior.
Com o “atraso de nascença” que me cabe, não pude evitar
de levar na orelha o estrondoso e derradeiro claaaaro! da excursão,
agora só do chofer. É que depois de remoer um pouco o
acontecido, enquanto o silêncio continuava a rugir entre a gente,
concluí que o abrandamento da velocidade do carro foi para não
estragar a carne do animal pelo esmagamento. Nosso protagonista
estava caçando! Estava caçando, arrisco a dizer, desde que
partimos do encantador pueblo de Iberia. Quis confirmar isso,
escolhendo a dedo as palavras, e obtive a viciada resposta.
No dia seguinte, fui tomar meu desjejum no supermercado,
uma leve dor de cabeça, ressaca do piseiro, e encontro a senhora
peruana, minha ‘assessora para assuntos turísticos no Peru’,
conforme eu costumava brincar. Contei os meus encantos com a
cidadezinha, aproveitei para fazer algumas perguntas sobre certas
coisas que observara por lá, quando lembrei de comentar o
episódio do nosso retorno a Assis Brasil. Ao chegar na parte onde
digo que ‘avistei um animal de pequeno porte iniciando sua
travessia a curta distância do carro...’, ela, boquiaberta, deixa
escapar um comovido e poético que suerte!
50
"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
2
A caça é a caça e as circunstâncias: que azar!
Pouco antes de deixar Assis Brasil, cometi uma
imprudência que poderia ter me custado caro. Retornando de
Iñapari de uma das minhas caminhadas, resolvi encurtar trecho,
tomando uma rota indígena próxima à Ponte de Integração Brasil
Peru. Achei que conseguiria chegar em Assis antes de escurecer,
mas no meio do trajeto já não podia enxergar nada. Míope, lentes
dos óculos engorduradas, cego, ia tentando me guiar pelo tato dos
pés com o solo da estreita trilha, levemente demarcada pelo uso
dos nativos.
Num determinado ponto do percurso, um bando de
queixadas, suponho, se assustou comigo emitindo um
amedrontado “grunhido”. Felizmente fugiram. Ouvi um barulho
de água, devem ter desembestado rumo a algum banhado
próximo, talvez não tivessem filhotes no bando. Não vi nada, mas
se eu fosse atacado, não teria o que fazer.
Nessas caminhadas, não era raro eu estar acompanhado de
outros ‘esportistas’: uma colega do Ibama, o próprio secretário do
meio ambiente com quem eu trabalhava, ou algum pesquisador,
geralmente de Rio Branco, convidado a ministrar cursos ou
proferir palestras sobre questões ambientais para o projeto que
justificava a minha presença por lá.
Havia uma outra pessoa que de tempos em tempos eu
observava, de andar solto mas determinado, fazendo esse trajeto.
Digo, não o trajeto dos índios, mas o convencional, o da BR317,
por vezes movimentado de carros, aquele que liga, por meio da
Ponte da Integração, Iñapari a Assis Brasil.
Refirome a um vendedor ambulante de bijuterias
delicadas, fabricadas com fibras vegetais, linhas, pedrinhas raras:
unanimidade entre todas a mulheres do planeta, inclusas algumas
jaminawa, dispostas a levar muitas peças da produção deste
caminhador, ‘gratuitamente’ – na nossa lógica e linguajar –,
conforme presenciei certa vez na pracinha em frente ao hotel onde
eu morava.
51
"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
Igualmente artistas, as índias, naquela ocasião, se
mostravam irredutíveis em levar aquelas joias. E me compadeci
daquela figura, metade do rosto tatuada, longa e fina trança na
barbicha, cabelos compridos amarrados em coque, repetindo,
quase chorando, às mulheres sensíveis à arte, nem tanto ao artista,
o apelo: “mas é o meu trabalho... meu trabalho... trabalho...
trabalho!”.
Uma semana depois, pela janela da Secretaria do Meio
Ambiente, tento localizar de onde vem um choro longo, doído,
sem interrupção. Vejo que são índias, algumas com aquelas
características “tipoias” carregando bebê, a lamentar a morte de
algum ente querido, segundo me explicaram. Alguns minutos
mais, outra mulher, o mesmo choro, depois outra, e outra.
Já esquecido da última manifestação de luto, vem o
“choro”, aparentado aos anteriores: na persistência em que se
dava, na agudeza, na modulação e no impulso de comiseração que
provocara em mim os murmúrios antecedentes. Pesar por um país
que não existe mais? Cheguei mesmo a pensar tratarse de mais
uma desconsolada mulher, mas não era. Era um carro de boi, com
suas rodas rangentes, trazendo produtos agrícolas e o artista: uma
das pernas atada com faixas malacabadas, seguindo de carona,
acompanhado por duas ou três crianças indígenas.
Estava ele voltando da ‘trilha dos índios’, onde meses antes
tive a sorte de não ter sido acometido pelos porcos selvagens.
Durante o decurso que esteve por aquela rota, deparouse com um
animal encouraçado – uma iguaria – um tatu. Procurou
instrumento improvisado para abatêlo e, não havendo o tempo
com que dispunha para elaborar seus graciosos adornos, com
medo de lhe escapar a presa, usou o instrumento do seu próprio
corpo, porém o chute foi em falso. Machucouse. Que azar, meu
amigo! Que azar, meus amigos!
52
"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
O corpo na Amazônia:
o chamado de Dorothy Stang
Andrey Henrique Figueiredo dos Santos
As linhas a seguir são relatadas a partir da experiência
vivida na carne, à beira da Transamazônica paraense, mais
precisamente no Projeto de Desenvolvimento Sustentável (PDS)
Esperança, município de Anapu, sudoeste do Pará. Local em que
Dorothy Stang desenvolveu seus projetos de luta e onde seu corpo
tombou, sendo brutalmente assassinada no dia 12 de fevereiro de
2005. Sua morte foi encomendada por fazendeiros da região.
Era minha primeira vez em Anapu. O convite veio do
querido Wallace Pantoja (amigo da vida), então, combinamos para
que a travessia ocorresse em julho de 2018, mas sinceramente, eu
não sabia o que esperar da viagem. Tentei me preparar
psicologicamente e fisicamente, pois sabia que seria intenso. No
total éramos quatro: Wallace, Dieyson, Gustavo e eu, dois em cada
moto, Gustavo e Dieyson na época moravam em Anapu, e sabiam
manobrar as motos nas vicinais3 , como ninguém. Aquelas ladeiras
das vicinais me impactaram de uma forma inexplicável, a beleza
maior são seus caminhos sinuosos. Até hoje quando reflito sobre à
beira da Transamazônica, imagino as vicinais como corpos
deitados sobre a floresta.
Ao entrar no PDS Esperança, me perguntei quem foi
Dorothy Stang? Dorothy Mae Stang, nascida em 31 de junho de
1931, em Dayton no Estado de Ohio, Estados Unidos, chegou ao
Brasil na década de 1960, era missionária da Congregação das
Irmãs de Notre Dame de Namur, fazia parte da Comissão Pastoral
da Terra (CPT), e da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil
(CNBB). Sua prática esteve baseada nos princípios dessa releitura
do evangelho junto aos pobres, inspirada na Teologia da
Libertação. Inclusive, as pessoas que a conheciam, me relatavam
3 Do latim: “vizinhança”. Longos ramais. Prefiro chamar vicinal, pois é como os sujeitos que
moram “à beira da faixa” (nas vicinais da transamazônica) as chamam.
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"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
que ela possuía um grande poder de organização e articulação
política. Dorothy descobriu, em conjunto com os agricultores, a
existência do Plano de Desenvolvimento Sustentável (PDS), que foi
elaborado pelo governo do FHC.
Portanto, ela descobriu em algum lugar engavetado esse
projeto e a partir da luta organizada fizeram o governo executálo.
Além disso, Dorothy mapeou lotes no qual os Contratos de
alienação de terras públicas (CATPS) estavam vencidos e sabia que
poderia reivindicálo junto à justiça para que essas terras fossem
destinadas à reforma agrária. “Andava com estes mapas sempre
em sua sacola de pano”. Infelizmente, depois de 14 anos de
investigação esses mapas sumiram, misteriosamente, da bolsa que
usava no dia de seu assassinato. Vale ressaltar que esse objeto
estava sob domínio policial.
Tudo era registrado por ela em forma de escrito e
denunciado na delegacia, Ibama, MPF e estadual. Infelizmente,
casos como esse, em regiões de conflitos fundiários são muito
sensíveis, fazem com que ocorram confrontos assimétricos onde os
“tubarões” não brincam em serviço.
Tempos depois me perguntei novamente quem era a
Dorothy Stang? Que dimensões do pensar o espaço emergem (no
presente mesmo) dessa mulher? Por que a gente não inverte a
lógica em vez de categorizála como liderança camponesa ou
religiosa? Quem era essa mulher que tinha vontades, desejos e
frustrações? Que vivia em um ambiente hostil, onde enfrentava
predominantemente um público masculino nos espaços decisórios,
e como essas histórias de vida bagunçam certas categorias sobre a
Amazônia e revelam outras? Quero convidálos para uma reflexão
existencial sobre o corpo da Dorothy.
Algo que me marcou intensamente foi um diálogo que tive
com uma família em direção ao PDS Esperança. A frase foi de um
agricultor que conhecia a Dorothy: “Ela andava tudo por aí sem
medo, com uma televisão pequena no ombro mostrando a história
da região para os colonos”. Quem era essa mulher que andava? O
que ela sentia? O que ela pensava? Que lutas ela enfrentava pelo
andar? Portanto, começa a se desenhar uma geografia.
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"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
Que tal pensarmos nesse corpo, mas não somente o corpo
da Dorothy, mas de outras pessoas que fizeram e fazem parte do
processo dessa realidade precária da Transamazônica? Esse corpo
como uma ausência, o corpo interditado que se espalha nas
entranças porque é sempre uma fuga, um escapismo, sempre um
contornamento de algo incontornável, por isso as vicinais vão se
formando. A vicinal é uma ambiência que é produzida no
contornamento dessas interdições, desse corpo que é fraturado, do
corpo que precisa ir além, pois não é permitido! Então, esse corpo
ocupa os espaços, ele vai atrás, ele cansa, ele cai, ele tem que lutar
mesmo na dor, tendo sempre dificuldades de passagem.
É interessante refletir como a Dorothy se ambientalizou nas
vicinais de Anapu e como o seu corpo significou e significa para as
pessoas que ali estão, tal qual emociona e marca a trajetória de luta
na região e viceversa. Portanto, a carne no mundo não é somente
esse ambiente, mas, sim, de que forma o corpo sente e faz sentir
esse ambiente.
O que essas pessoas são enquanto vidas? Enquanto
existência concreta? Enquanto “eu e a cerca”? Ou então sobre “a
mulher que andava tudo por aí sem medo”. Estou falando da
dimensão da caminhada, do corpo, do cansaço, da emboscada.
Chegou o momento de conhecer o memorial que fizeram
para ela dentro do PDS Esperança, onde ocorreu o assassinato.
Avistei de longe a cruz pintada de azul com o seu nome em preto e
dois pés de cacau entre a cruz... Na verdade, não consigo
descrever o que eu senti no momento. Talvez, todas as definições
sejam medíocres demais para isso. Apenas o choro, e o abraço do
meu amigo Wallace, e o silêncio em respeito... Aquele memorial é
um elã de unidade de uma luta que transcende a própria ideia de
questão agrária, mas que a engloba também. É justamente essa
imagética de alguém que tomba, mas ela enquanto carne é como a
gente. Ao lado do memorial, adentrando a floresta, encontrase
uma homenagem feita em uma placa no meio de uma árvore com
a seguinte frase: “Inmemorian aos mártires que tombaram na luta
pela preservação e reforma agrária na Amazônia. Anapu, 26 de
maio de 2009”. Linda homenagem! Porém, a placa está cheia de
55
"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
marcas de bala. Ninguém sabe quem fez aquilo, porém,
suspeitamos quem seja...
Se começasse uma luta feroz novamente no PDS, o primeiro
lugar a ser defendido seria o memorial da Dorothy e ao mesmo
tempo, seria o lugar com mais tentativa de destruição (no ano de
2018, uma amiga pesquisadora estava em trabalho de campo
dentro do PDS Esperança, e me contou que pistoleiros entraram no
assentamento na tentativa de arrancar a cruz do memorial). É por
isso que estar lá, o memorial e na árvore ao lado, a placa em
homenagem aos mártires cheia de marca de bala. Penso que as
pessoas que atiraram na placa querem dizer que não aceitam ela,
tentam difamála, e ao mesmo tempo, as pessoas fazem a romaria
da floresta todo ano, caminhando 55 quilômetros de distância em
vários dias em homenagem a ela. Ou seja, essa mulher que lutava
contra pecuaristas, fazendeiros, grileiros, garimpeiros, em prol da
reforma agrária e preservação da floresta e ao morrer praticamente
vira uma santa. O que é a romaria da floresta4, senão uma
homenagem a uma santa, uma mártir.
Sobre a ida ao PDS Esperança e a visitação ao memorial e a
placa em homenagem aos mártires que tombaram nessa luta,
gostaria de compartilhar com vocês três pontos nesse movimento
experimental à beira da Transamazônica:
1º) O meu corpo cansou e sentiu as ladeiras das vicinais de
forma intensa. Agora imaginem as famílias que fazem esses
trajetos todos os dias com a produção na costa (seja no verão ou
inverno). Isso dá uma dimensão diferente dos gargalos do
processo, de como essas famílias se deslocam para o centro
urbano, ou se a moto falha no meio da vicinal? Como aconteceu
com a moto de um sujeito que ajudamos a consertar na volta. E se
não tiver ninguém para ajudar, como é que faz? Esse corpo cansa,
ele não é uma máquina, ele não é um número. Nossos artigos
tendem a transformálo em tabelas, quadros, invalidando essa
historicidade do corpo.
4 Manifestação política e religiosa que ocorre desde 2006 no município de AnapuPA, em
homenagem à vida, ao sonho e à missão religiosa da missionária Dorothy Stang.
56
"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
2º) A outra questão é, como eu fui atraído nas caminhadas
"aqui e ali", mergulhando fundo na lógica das experimentações,
sentir mudanças de atmosferas, mudanças de sensações. E essa
mudança de atmosfera é o resultado de uma luta, senão o PDS
Esperança se tornaria o que ao arredor dele se tornou; pasto para o
gado passar. Presenciar isso, de certa forma, foi um assédio na
paisagem, o assentamento sendo cercado por fazendas...
Acredito que os nossos corpos sentiram a importância
daquele lugar. A gente sentiu o frescor de estar ali, a paz de estar
ali, uma floresta calorosa e aconchegante, fresca enquanto ar, e a
beleza de registrar uma fotografia em específico que agora se
encontra em meu quarto (quem sabe os próximos volumes do
“quando pensa que não...” permitam inserilas ao decorrer da
escrita) parecia que eu estava em um santuário e isso é importante
não perder de vista, como o exercício da caminhada diz muito
sobre as lutas, e conectado ao exercício da caminhada, essa fala:
“ela caminhava tudo por ai sem medo (...). E no fundo, penso que
a Dorothy poderia ser morta a qualquer momento naquele
ambiente. Na verdade, seus escritos descobertos após sua morte
ratificam isso. As ameaças eram constantes contra sua vida. A
escolha de permanecer... Acho que isso diz muito sobre ela.
Na manhã do dia 11 de fevereiro de 2005, antes de sair da
zona urbana de Anapu em direção ao PDS, Dorothy fez algumas
ligações para conhecidos e o tom da conversa foi de um jeito
diferente, conforme alguns relatos. Ela sabia, no fundo, que não
voltaria viva de lá. Não sei como, mas, ela sabia.
3º) Como é que, de alguma maneira ou de outra, o fato de
estar ali de frente para o memorial dela, me conecta com pessoas,
memórias, trajetórias, histórias, objetivos e projetos. Conectame
com a Dorothy Stang, sem que eu a conheça efetivamente. Penso
que tenha uma dimensão de intuição que emergiu naquele
momento, o emocional e, portanto, subjetivo. Fico pensando como
aquele ambiente do PDS ganha densidade para mim, e o que é
aquilo? Aquilo é um local onde um corpo caiu, no sentido mais
precarizado da descrição seria isso, mas não para mim. O local
onde ela tombou é simbólico e emocional, que entra e preenche os
57
"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
espaços de uma densidade tão grande, que eles se tornam grandes
pela própria luta. E nessa realidade movediça, no meio da
Amazônia que a Dorothy nos ensina novas formas de existir e
estar no mundo, onde o ser humano é o possível artista da sua
própria vida.
Sementes de cacau foram lançadas! Dorothy existe!
58
"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
Às vezes nem é a pergunta que é errada…
Anna Flavia Menezes da Silveira Lima
Eu sempre gostei de fazer muitas perguntas porque saber
tudo e conseguir entender e falar sobre tudo faz o meu ego leonino
se sentir privilegiado por informações passadas pra mim e
guardadas na minha cabeça. Além de fazer perguntas, sempre que
posso eu tô ouvindo a conversa alheia, principalmente se envolver
idosos e crianças. Perguntar e ouvir a resposta ou simplesmente
ouvir, me dá uma gama de conteúdo, às vezes desnecessário, às
vezes legal, às vezes eu nem lembro o que.
Meu primeiro contato, envolvendo a universidade, com as
perguntas e as respostas alheias ou passar um tempo ouvindo o
outro foi em uma viagem para Cachoeira que eu fiz em 2018. Foi
uma viagem de campo da aula de Etnobiologia e Etnoecologia. A
gente tinha que escolher um lugar da feira local para entrevistar as
pessoas sobre a vida delas, sobre como elas trabalhavam e etc.
Nesse dia, eu lembro que o trio (eu e mais dois colegas)
resolvemos nos separar para procurar e decidir em qual lugar
faríamos as entrevistas. Resolvemos ficar com o Mercado de
Peixes.
Prédefinimos algumas perguntas como “qual seu nome?”,
“quantos anos tem?”, “trabalha aqui há quanto tempo?” e tal, só
que conversar com gente é um caminho que te leva pra tantos
cantos que as perguntas feitas antes acabam não valendo de nada.
Três entrevistados mexeram comigo nesse dia: dois homens e uma
mulher. Eu dei bom dia, nos apresentei e a moça nem olhou pra
mim. Cada pergunta que a gente fazia, ela batia no peixe antes de
responder, como se descontasse no peixe o fato de não poder nos
bater. Num momento eu disse “senhora?”, ela me olhou dura,
bateu o peixe na mesa e continuou atendendo os clientes. Eu quase
chorei, mas ri bastante depois.
Os dois rapazes: um mais velho e um mais novo. O mais
59
"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
velho entrou no Mercado e foi logo falar com a gente, contou como
aprendeu a pescar, que pescava com os filhos e ensinava pra eles e
eu “quantos filhos o senhor tem?” e ele riu, dizendo “muitos,
muitos”. A verdade é que eu nem lembro muita coisa porque só
conseguia prestar atenção no jeito engraçado que ele se movia e
ficava feliz falando sobre si.
O rapaz mais novo vendia siri. Eu, depois de dois anos na
universidade, cursando biologia, cheguei toda contente pra falar
com ele e disse “nossa, moço, você vende caranguejo, né? como
você faz pra pegar eles?”. O moço levantou a cabeça e disse “não,
isso aqui é siri”. “Mas como assim é siri?", eu disse. Ele riu, se
endireitou como se fosse um sabetudo e disse “moça, olha a perna
de trás dele. Tá vendo? É siri mesmo.”. Ele pegou e me mostrou as
pernas do bichinho e eu “é, realmente é siri em moço”, mas não
fazia ideia se era ou não siri. Depois eu perguntei “e vem cá, como
você faz pra pegar ele?” e o moço, rindo: “eu não sei não, você não
vai saber”.
Quando voltei, eu só conseguia lembrar da risada dos homens e do
desconforto da mulher. Era como se uns ficassem felizes com as
perguntas, se sentissem maravilhosos em responder e outros não
tivessem tempo pra’quela “besteira”. Ou seja, eu adorei entrevistar
as pessoas e ouvir elas falando (ou não falando!).
Por ter amado minha primeira experiência, de fato, e gostar
de perguntar e de ouvir, me encantei pela Etnoecologia. Quando
meu orientador disse que eu poderia trabalhar entrevistando as
pessoas, eu pensei “ai, meu Exú, é tudo que eu mais quero e é o
que mais vai me deixar feliz na vida”. Nem esperei ele terminar de
me explicar e já fui logo dizendo que queria fazer isso mesmo.
Decidimos sobre o meu projeto e, depois de muito pensar, fui
conhecer as pessoas que fariam parte do meu trabalho.
Fui pro bairro Tapera II (ou Aeroporto, ou Matinha, ou
Mantiba, ou Banca… tantos nomes que não sei qual usar) pra
conversar com as moças. Cheguei lá na casa de uma delas e ela foi
logo me pedindo desculpas pela casa bagunçada e mandando eu
entrar. Me deu várias frutas pra comer e me disse que estava
fazendo um feijão, pra eu esperar e comer também. Eu disse que
60
"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
tudo bem. Perguntei se, enquanto o feijão cozinhava, eu poderia
conversar com ela sobre o quintal dela e ela disse que “tá beleza”
(KKKKK amei uma senhora de 70 anos falando beleza e fazendo o
gesto de legal com a mão).
Perguntei o nome dela, a idade e algumas outras coisas.
Então eu fiz a seguinte pergunta: "mas a senhora tem quintal?” e
ela olhou pra mim, com o ar mais debochado que conseguiu
expressar, e riu “MAS É ÓBVIO! EU MORO NA ROÇA! ISSO
AQUI TUDO É MEU QUINTAL. ALI, ALI, ALI. TUDO ISSO
AQUI!”. Conversamos a tarde toda, ganhei mudas de plantas,
comi o feijão e ouvi ainda que "Homem não leva ninguém pra
lugar nenhum, o que leva é ser médica e cuidar de gente".
É tão maravilhoso você sentir o conforto das pessoas pra te
contar as coisas, rir com (muitas vezes de) você. Não importa se
você pergunta certo, se você pergunta errado ou se você nem
pergunta… o que realmente importa é o quanto você está disposto
a ouvir qualquer coisa que a pessoa tenha a te dizer. E, além de
saber muito sobre muitas coisas pela visão dos outros, meu ego
leonino continua em alta e feliz em saber o que sei do que me
ensinaram e contaram.
Às vezes nem é a pergunta, às vezes é o jeito que você ouve
que importa.
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"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
O voo da Fênix: das moléculas aos
conhecimentos tradicionais
Claudia Nunes Santos
No volume 3 (pág. 122) desta coleção, narrei, brevemente,
como trilhei o “caminho do meio” entre mucuras5 e indígenas na
Reserva de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá6. Continuo
aqui esse exercício autoetnográfico7, revolvendo e articulando
memórias, encontros e desencontros, afetos e subjetividades. Ao
tempo em que confesso a violência cognitiva sofrida enquanto
construía minha identidade científica, revelo o meu modo de
(re)significar o mundo acadêmico por meio da resistência
intelectual. Almejo que o compartilhamento das minhas vivências
(e sofrências) acadêmicas sirva como facilitador da interação com
pessoas dos diversos campos em que transito. Atendendo, assim, à
minha finalidade de intensificar o diálogo, sem querer eliminar as
diferenças, mas realçálas. Rever minha trajetória e seus
desdobramentos, além de materializar a consciência do meu lugar
na academia, possibilitoume uma desafiadora perspectiva da
direção não linear que os meus conceitos, ideias, percepções e
representações me trouxeram, levandome a vislumbrar a
necessária e inadiável religação dos saberes.
A opção pela Biologia foi em si uma contingência social,
pois não havia (no final da década de 80) o curso desejado em
Aracaju. Meus pais, vindos da região sergipana do baixo São
Francisco, não dispunham de recursos financeiros, para que eu
5 Nome dado na Amazônia aos pequenos mamíferos escansoriais (transitam pelo solo e estratos
arbóreos intermediários) ou arborícolas pertencentes à Ordem Didelphimorphia.
6 Unidade de conservação localizada entre os Rios Japurá e Solimões, na Amazônia ocidental.
7 Na autoetnografia, o pesquisador deixa de ser um observador passivo e passa a expor sua face
mais humana e vulnerável (GERGER, M.M. e GERGER, K.J. "Qualitative Inquiry: Tensions and
Transformations". The Handbook of Qualitative Research. 10251046, 2000).
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"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
pudesse cursar Psicologia em outro Estado. Assim, ingressei, em
1987, no Bacharelado em Ciências Biológicas da Universidade
Federal de Sergipe (UFS). O fragmentador sistema de créditos
vigente na universidade pósditadura militar, não impediu minhas
frequentes incursões às prateleiras de Psicologia, Sociologia e
Antropologia da biblioteca, em busca da compreensão da
cognição. Também não me impossibilitou cursar créditos eletivos
em disciplinas das Ciências Humanas. Bem como de empreender
atividades políticas e culturais, através da militância estudantil.
Como estudante de Biologia, realizei estágio no Projeto
Tartarugas Marinhas (TAMAR), na Reserva Biológica de Santa
Isabel, localizada no município de Pirambu, litoral norte
sergipano. Durante o convívio com as famílias de pescadores,
nasceu a minha inquietação quanto à finalidade da construção do
conhecimento acadêmico, e à utilidade desse conhecimento para a
transformação da condição humana no planeta. Essa angústia
cresceu ao longo do percurso acadêmico que me trouxe até aqui. E
ainda hoje, contextualizando os saberes para a compreensão dos
problemas, cada vez mais globais e interdependentes, questiono:
como romper com a opressora formalidade regulamentada das, já
seculares, instituições de ensino e pesquisa?
No afã de avançar no entendimento da capacidade
cognitiva, optei por estudar mamíferos, os animais cuja formação
hipocampal8 tornouos capazes de armazenar informações,
viabilizando, o que se conceitua como memória e aprendizado.
Para tanto, não poupei esforços em enveredar por ambientes
naturais, capturando as “inteligentes criaturas peludas”. Percorri
os fragmentos que nos restam de mata atlântica em Sergipe (Crato,
Serra de Itabaiana, área de influência do Polo cloroquímico), e
posteriormente nos meandros dos rios amazônicos (Japurá,
Amazonas/Solimões,
Xingu).
Sempre
distribuindo
estrategicamente armadilhas para capturar vivos os pequenos
mamíferos habitantes desses lugares, onde se implantava o “mito
moderno da natureza intocada”9, como regulamentava o Sistema
8 Parte do sistema límbico do cérebro de mamíferos, responsável pelas emoções e comportamentos
sociais.
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"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
Nacional de Unidades de Conservação (SNUC). Acontece que,
nestes lugares, habitavam também humanos que “tocavam” a
natureza local com base em seus conhecimentos milenares
(indígenas, quilombolas, afroindígenas, ciganos) e nas suas
práticas sustentáveis (pequenos agricultores, ribeirinhos,
pescadores, extrativistas, pequenos comerciantes).
Enquanto a Ciência me oferecia técnicas de captura,
métodos para observar e mensurar as características moleculares
da diversidade animal, eu me deslumbrava com a diversidade
humana em realidades que não eram comumente narradas nas
descrições da “área de estudo” dos livros e artigos científicos.
Foram muitos fragmentos gênicos isolados e amplificados, a
partir das amostras de tecido coletadas nos animais capturados;
muitas sequências nucleotídicas analisadas e umas tantas
hipóteses filogenéticas inferidas... ao tempo em que as histórias de
vida, os saberes dos povos e comunidades tradicionais
inflamavam a “bela plumagem vermelha” que eu encobrira com
títulos acadêmicos obtidos por força das circunstâncias. Só me
restou “juntar os ramos de canela, sálvia e mirra”10 ...
O eco, em diferentes linguagens, vindo de povos das
florestas, do mar, das estrelas, chegavam ao “monte de cinzas” em
que eu jazia inerte e transmutada. E “quando pensa que não” ... as
cinzas tomam forma novamente, pousando em um novo lugar
Montes Claros, Minas Gerais, onde acontecia o X Simpósio
Brasileiro de Etnobiologia e Etnoecologia.
Minhas primeiras observações sobre as conexões entre
humanos e animais não humanos foram expostas, e novas
conexões acadêmicas construídas. A ressignificação do fazer
acadêmico foi também um bálsamo para romper o silenciamento
identitário dos meus ascendentes (história para outra crônica).
Neste pouso revigorante, encontrei pessoas pesquisadoras que me
9 Segundo Carlos Diegues é a ideologia preservacionista baseada na visão do homem como
necessariamente destruidor da natureza, subjacente nos programas de criação de áreas protegidas
dos sécs. XIXXX.
10 Alusões à lenda da ave mitológica, Fênix, que possuía plumagem vermelho incandescente.
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"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
acolheram e incentivaram a permanecer Etnobióloga. Dentre estas,
o atuante Etnobiólogo Eraldo Medeiros Costa Neto (Professor
Pleno no Departamento de Ciências Biológicas da Universidade
Estadual de Feira de Santana), passou de principal referência
teóricometodológica a “Guru” acadêmico. Com toda a força e
beleza que a palavra “Guru” representa para mim. Quando
convivi, na Índia, com Hindus no Asham11 Dayananda Saraswati,
em Rishikesh (mais história para contar), aprendi que “quando o
discípulo está pronto, o Guru aparece”. Eraldo apareceu e me fez
acreditar que eu, finalmente, estava pronta para transpor as pedras
do caminho com as asas de uma existência feliz.
Preparava um ninho de ervas (canela, sálvia e mirra) onde seria incinerada pelo sol quando chegasse
a hora de “morrer”. E renascia das próprias cinzas, sendo considerada um símbolo da imortalidade
e do renascimento espiritual.
11 Deriva do termo sânscrito aashraya, que significa “proteção”, sendo usado atualmente para
designar uma comunidade formada com o intuito de promover a evolução espiritual dos seus
membros, frequentemente orientado por um místico ou líder religioso.
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"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
Desmatar
Dérick Lima Gomes
Sempre achei maravilhoso estudar as realidades de
comunidades rurais, embora saiba que o real, além de
maravilhoso, pode ser incrivelmente triste e terrível.
Pouco tempo atrás recebi feliz o convite para participar de
uma pesquisa sobre as catadoras de mangaba de Sergipe, onde
muitas mulheres catam e vendem mangaba para sustentar suas
famílias – hoje cada vez mais com a ajuda dos maridos, vítimas do
desemprego que aumenta no campo e na cidade. Elas, que são
sobretudo mulheres pobres e negras, têm lutado pelo livre acesso a
áreas onde há gerações extraem a fruta, já que donos de sítios e
empresários as têm cercado, desmatado ou cobrado pela coleta,
além de às vezes ameaçarem de morte as que não obedecem às
regras impostas.
Na Amazônia, onde nasci e resido, as ameaças de morte são
frequentes, e a própria morte, mais do que a vida, é o principal
motivo pelo qual a região é retratada no noticiário internacional,
com assassinatos de lideranças, indígenas ou da própria natureza.
Apesar disso, nunca consegui encarar com naturalidade o fato de
alguém saber que pode morrer a qualquer momento, seja aqui ou
em Sergipe. Talvez a ameaça seja um blefe, uma forma de coagir
ações indesejadas, talvez não. E assim a angústia da dúvida atinge
não só o ameaçado, mas pais, parceiro, filhos e amigos. Quando
concretizada, também mata uma parte de cada um deles; alguns
não ressuscitam nunca.
Talvez pensando nisso, muitas catadoras deixaram de
coletar nos sítios cercados. Outras só os adentram depois de pagar
as taxas cobradas por seus donos. Algumas mulheres, as mais
dependentes da mangaba, continuam a coleta apesar das
proibições, provavelmente porque as ameaças de morte são menos
assustadoras do que o risco de morrer de fome. Para estas, a maior
66
"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
tristeza, ou desonra, talvez não sejam as ameaças dos
proprietários, ou que eles lhes chamem de ladras, mas o fato de
precisarem viver agora com a raiva e o desprezo das companheiras
que com muita dificuldade pagam pela permissão para catar.
Ainda em Sergipe, uma novidade. Nunca tivera a chance de
conhecer comunidades tradicionais que vivem no meio urbano, até
visitar uma das últimas áreas com mangaba de Aracaju. Ali, há
várias décadas, algumas pessoas coletam essa e outras frutas em
um terreno da Aeronáutica, próximo ao aeroporto da capital. Elas
conseguiram a permissão diretamente de um oficial da instituição,
e desde então passaram a catar sem maiores problemas. Tudo
mudou quando a Aeronáutica doou o espaço para a Prefeitura, e
com as promessas desta de construir casas populares, a área foi
ocupada por pessoas sem moradia. Durante a ocupação, várias
mangabeiras e outras árvores foram destruídas, e a previsão é que
o último resquício também seja.
A principal liderança dos catadores de Aracaju, como todos
do bairro aparentam saber, foi ameaçada de morte mais de uma
vez por pessoas da ocupação. Uma delas aconteceu enquanto se
preparava para conceder uma entrevista para um jornal televisivo
local, o que assustou o próprio repórter. O ambiente hostil do
lugar, uma ilha de conservação cercada por um oceano de
desmatamento, e ruas sem saneamento básico, porém, contrasta
com a serenidade desse homem que luta não só para que as
mangabeiras permaneçam em pé, mas também, assim me pareceu,
encara a possibilidade da morte como mais uma entre outras
tantas possibilidades da vida, como a de conseguir com que não
sejam expulsos dali.
Só pude entender melhor, embora não com naturalidade,
pessoas que enfrentam situações semelhantes depois de conversar
com mais duas catadoras. A primeira me contou como seu pai
adoeceu à medida que as árvores estavam sendo derrubadas, e a
consciência do catador sobre seu malestar resultar disso. Ele e a
sua família sempre viveram com a ajuda e a companhia das
mangabeiras, por isso, quem o conheceu pensou que não havia
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"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
como ser diferente: a morte das árvores e a do homem significava
uma só, afinal, o que é o homem se não a natureza que adquire
consciência de si própria12? Mas o maior exemplo de que o ato de
desmatar pode ser uma das formas mais cruéis de assassinato, e
cuja ameaça também machuca como se fosse direcionada a um
ente querido, talvez tenha sido oferecido pela segunda catadora, a
mãe da liderança jurada de morte, ao comentar sobre a possível
derrubada das frutíferas: “acho que aí vai ser que nem quando
morre uma pessoa da família, que a gente fica com aquele peso no
coração”.
12 Há mais de um século Élisée Reclus lembrava o que hoje a maioria finge esquecer.
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"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
Sensações e raciocínio
Dianny Brigiette Cuadrado Pachón
Sentir e pensar duas palavras que envolvem razão e
coração. Seres sentipensantes (Eduardo Galeano nos resgatou),
somos todos? Ou às vezes poucos? Nosso dia a dia e nossas
decisões levam muito disso, pensar sentindo e sentir pensando.
Hoje, faço parte de uma história que pensa em construir
memória, lembrar costumes, resgatar práticas, semear esperança e
claro, colher, colher legumes, grãos, ervas, tubérculos; colher
saúde, colher bemestar, colher soberania, colher agroecologia.
Sentir para plantar?
Sidrolândia, um município no meio do estado de Mato
Grosso do Sul, onde mulheres, homens e crianças convivem e
fazem parte de um grande e expressivo número de
migrantes/assentados rurais. Eu, uma migrante urbana, falante da
segunda língua materna mais falada do mundo, de pele mestiça,
olhos achinados e traços indígenas, sentir para pensar?
Todos migrantes, participando, conversando embaixo das
mangueiras, ou qualquer outra árvore de boa sombra, tereré do
lado nos hidratando, aos comuns 38 °C; muitas perguntas, muitas
respostas, muitos pensamentos? Muitos sorrisos, muitos
sentimentos?
Nasci e cresci em uma cidade capital, onde por motivos
óbvios o dia a dia é muito agitado. Junto aos agricultores
familiares, senti outra realidade, ouvi histórias de sobrevivência,
acampando na beira da estrada e compartilhando o camping com
as cobras. Ouvi memórias familiares, onde orgulhosamente um
homem me contava como, quando era criança, morava em uma
ilha e só conversava com mais duas famílias. Também ouvi sobre
as luas e os ventos importantes, nova para tudo o que pega brisa
de fora e minguante para o que segura o passo do caminhante. E
claro, falamos muito sobre as sementes, as sementes geracionais, as
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"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
sementes da vida, as sementes de casa, as sementes da família,
sentir para viver?
Sentipensar a etnobotânica parece ser intrínseco, indagamos
sobre as práticas, registramos os quefazeres, acompanhamos as
cotidianidades e vivemos de a pouco como os outros seres.
Pensamos para sentir? Acredito que em boa parte, sim.
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"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
Xavier, el pescador
Diego Pérez Ojeda del Arco
Después de casi una semana de viaje en aquel barco, que a
los pocos se iba convirtiendo en nuestro hogar, arribábamos por
fin a nuestros últimos destinos. Las tres últimas comunidades
quilombolas do Baixo Amazonas del municipio de Santarém/PA que
nos tocaban visitar, ya se podían divisar a lo lejos desde dentro de
la embarcación con la que lentamente nos acercábamos a tierra
firme. Aquel territorio que se extendía ante nuestros ojos nos
mostraba tímidamente el sendero que habría que recorrer para
poder llegar hasta ellas.
El acceso no fue fácil, nuestro barco inclusive no pudo llegar
hasta la orilla, puesto que el pequeño puerto de la comunidad a
donde nos dirigíamos se encontraba completamente inundado por
las lluvias. Febrero es un mes en que el llamado inverno amazónico
comienza a mostrarse más implacable, y las fuertes tempestades,
que ya nos habían hecho probar de su furia a mitad de una
unánime noche en medio del imponente Amazonas, hacían con
que el nivel del agua subiera de forma considerable en toda la
región.
Finalmente pudimos arribar à beira do rio gracias a la
pequeña lancha de apoyo con la que contábamos, y una vez allí,
después de poder compartir un poco con la gente del lugar,
rápidamente nos dimos cuenta de que los problemas que nos
fueron relatados eran exactamente los mismos que habíamos
podido escuchar en todas las otras comunidades visitadas. La falta
de titulación del territorio por parte del Estado era sin duda la
carencia máxima. Casi diez años habían pasado desde que fueron
realizados los estudios necesarios para la titulación de los
territorios colectivos, pero nada concreto había sucedido hasta el
momento. Ni sombra de aquel bendito título que quizás algún día
llegará, quien sabe solo después de que toda esperanza se haya
71
"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
extinguido.
La falta de una simple firma en Brasília hacía con que la
espera y el sufrimiento de cientos de familias se prolongase
indefinidamente. Esto sin mencionar a todos aquellos que ya
habían partido, a los que se les tuvo que enterrar en una tierra que
hasta en el último aliento de sus vidas nunca les perteneció. Es
realmente increíble poder evidenciar frente a nuestros ojos como
se sufre y se lucha tanto por la tenencia de la tierra en este país.
Como la falta de una reforma agraria seria, que tome en
cuenta no solo el área de la vivienda y el área de cultivo, y sí la
propiedad colectiva de las comunidades en su conjunto (lo cual
hoy en día podría parecer más una utopía que una realidad a ser
concretizada), todavía hace arder esa herida abierta de injusticia
que solo aumenta cada día que pasa.
Y los problemas se incrementan, pues afloran los conflictos
incluso entre las mismas comunidades quilombolas vecinas que
pelean por algún pedazo de tierra que ni título de propiedad
oficial tiene todavía. Del mismo modo, poblaciones quilombolas e
indígenas no dan su brazo a torcer en la lucha por algunos metros
de territorio que consideran suyo, cada quien basándose en su
respectiva memoria ancestral. Todo por causa de tener y asegurar
un lugar en el mundo en el que se pueda trabajar, crear y vivir.
Y finalmente, está el problema de siempre, el de toda la
vida, el problema de y con los hacendados; con los dueños de
grandes extensiones de tierra sobrepuestas con territorios
quilombolas e indígenas de uso colectivo. Si bien es cierto que en
teoría estos fazendeiros serían indemnizados por el gobierno una
vez emitido oficialmente el título de pose de las comunidades
quilombolas, ellos saben mejor que nadie sobre las debilidades del
poder estatal y se resisten a salir de esas tierras comunitarias. De
esta forma, pueden continuar impulsando la cosecha de
monocultivos a gran escala, seguir con la extracción ilegal de
madera, así como también con la crianza del ganado bufalino que
no respeta cosecha alguna. Ellos continúan cercando y cercando el
territorio y los sueños de las comunidades tradicionales,
dejándolas muchas veces prensadas contra el rio, sin tener hacia
72
"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
donde avanzar, hacia donde escapar, cada vez más arrinconadas
por la indiferencia del aparato estatal, y más recientemente por el
agronegócio, que se confunde con este último, avanzando
desenfrenadamente sobre cuerpos y territorios vivos.
Una vez terminada nuestra visita a esas tres últimas
comunidades quilombolas, las que por momentos nos mostraron
parte de la todavía existente y desbordante Miseria del mundo,
emprendimos el retorno, aun con nuestras cabezas intentando
procesar la cruda realidad a la que habíamos sido expuestos. Sin
poder pensar en otra cosa, solo pudimos despertar de esa especie
de estado de trance en la que nos encontrábamos al percatarnos de
lo complicado que iría a ser nuestra salida. Pasaba que el barquero
que nos acompañaba, junto con nuestra lancha de apoyo, se
encontraba a kilómetros de distancia, no pudiendo escuchar a
nuestros llamados; tampoco había señal de celular, lo que tornaba
imposible cualquier tipo de comunicación.
Para nuestra suerte, al lado del puerto inundado al que
habíamos llegado, encontramos a un joven pescador de no más de
30 años. Su nombre era Xavier, y se encontraba terminando de
trasladar a unos chanchos hacia su comunidad, trabajo que
realizaba para poder llevar algunos reais a la mesa de su hogar. Era
sin duda un claro representante del campesinado más pobre de la
región, que, ante la falta de un terreno mínimamente digno, tenía
que realizar toda serie de trabajos para poder subsistir.
Conversamos con él y se ofreció a ayudarnos, llevándonos
así en su pequeña lancha hasta el barco que nos transportaba, eso
sin antes no dejar de disculparse repetidas veces por el olor de
orines y estiércol impregnado en su embarcación, el cual había
sido dejado por los chanchos que se encontraba transportando.
Pude conversar brevemente con él en el trascurso del corto
viaje. Me contó que cuando su compañera vio llegar a lo lejos a
nuestro barco, esta le dijo, desesperada, que retirase
inmediatamente las redes de pesca que habían colocado más
temprano en el lago, pensando que nosotros éramos funcionarios
del IBAMA, el instituto brasilero del medio ambiente que, entre
otras cosas, regula la pesca predatoria. Xavier me contó que le dijo
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"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
firmemente a su compañera que no lo haría, que no iba a retirar
nada de ahí, y que, si el IBAMA venía, les iba a decir que él y su
familia necesitaban comer, y que él no iba a robar.
Finalmente, le pregunte cuál era su opinión sobre los
conflictos internos que existían entre las propias comunidades
quilombolas de la región, sobre los conflictos que ellos tenían con las
comunidades indígenas vecinas, y sobre los conflictos que todos
estos tenían con los fazendeiros. Yo sinceramente solo quería saber
qué era lo que él sentía ante tantos problemas, ante tanta
confusión, ante tanta injusticia. Xavier, mirando hacia el final del
lago como buscando una respuesta a mí, y solo ahora me doy
cuenta, inútil pregunta, simplemente, y sin dejar de mirar
perdidamente el horizonte, me respondió:
"O ser humano é um bicho muito louco..., às vezes eu prefiro
trabalhar com porcos". (...)
74
"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
Caminhos para etnofarmacologia
entre os Igbo na Nigéria
Elaine Elisabetsky
A África e seus mistérios foram objetos de livros infanto
juvenis da minha geração. O fascínio, fantasioso ou não,
permanece. Nos caminhos pelos quais a Etno me levou tive o
prazer de conhecer e conviver profissionalmente com o Prof.
Maurice Iwu, um fitoquímico da etnia Igbo. Cientista da mais alta
categoria,
politicamente
engajado
na
conservação
da
sociobiodiversidade e no desenvolvimento de produtos não
madeireiros a partir de conhecimentos tradicionais, especialmente
medicamentos. Professor em Nsukka (Nigéria), coordena o
Biodiversity Conservation Program (BDCP). A Nigéria moderna é
composta de mais de 250 grupos étnicos agrupados sob a tutela da
Inglaterra. Como o processo imperialista (assim como em outras
partes do mundo) manipulou e atropelou as diferenças culturais e
os territórios originais persistem até hoje tensões políticas entre os
grupos, e entre cada grupo e o governo federal. Ainda que a língua
oficial do país seja inglês, os Igbo, Hausa, Yoruba e Fulani, entre
outras etnias mantêm seu idioma vivo e largamente utilizado.
Em 1993 fui convidada a participar da coleta de
informações etnofarmacológicas para a empresa estadunidense
Shaman Pharmaceuticals (Califórnia, EUA), cuja estratégia
científica fundamentavase no conhecimento tradicional dos povos
como base para o desenvolvimento de novas drogas. Em sua rede
de consultores, havia fitoquímicos e etnobotânicos de vários
países, incluindo nomes de peso como Norman Farnsworth
(Chicago, entre outras coisas, criador da base NAPRALERT),
Richard E. Schultes (Harvard, considerado o pai da etnbotânica) e
Koji Nakanishi (Columbia University, considerado por muitos um
dos maiores fitoquímicos da história). Adotando códigos de ética
em consonância com a convenção de biodiversidade (da qual os
EUA não são signatários), a empresa criou e mantem a Healing
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"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
Forest Conservancy como braço da firma para repartição de
benefícios13. Como resultado dessa estratégia científica, o
medicamento Mytesi® foi aprovado pela Food and Drug
Administration dos EUA (FDA) como a primeira droga botânica
oral consistindo de uma entidade molecular nova (new molecular
entity: NME), indicada para aliviar os sintomas de diarreia não
infecciosa em pacientes portadores de HIV/AIDS em terapia com
antirretrovirais. O ingrediente ativo é Crofelemer, uma
proantocianidina complexa isolada e purificada do látex de Croton
lechleri (Sangre de Drago), amplamente usado no Peru para vários
fins, incluindo diarreia.
Maurice desejava minha participação num congresso que
iria presidir em Nusukku e negociou com a Shaman: a empresa
custeava minha participação no congresso e em troca eu poderia
fazer parte da expedição etnofarmacológica entre os Igbo (grupo
ao qual Maurice pertence). Da expedição fizeram parte, o Dr.
Thomas Carlson, então, médico e funcionário da Shaman (hoje
professor na UCLA Berkeley), um professor da Universidade
especialista em pólen (do qual infelizmente não me recordo o
nome), A. Ozioko curador do herbário da Universidade de
Nsukka, e Cosmos N. Obijiofor funcionário do BDCP. Para mim
pareceu que era tudo de bom: iria conhecer a Nigéria, participaria
do congresso e aplicaria meus conhecimentos etnofarmacológicos
no mundo real do desenvolvimento de drogas a partir de
conhecimento tradicional. De quebra receberia por meus préstimos
à Shaman.
Os Igbo têm embebido em sua tradição cultural o apreço
por uma relação equilibrada com o meio ambiente. Totens, tabus e
outras regras proibitivas são expressões de valores sociológicos e
religiosos que refletem e reforçam o intuito de proteger os recursos
ambientais, e a implementação de maneiras não destrutivas de
13 Tratase de uma corporação diferenciada na medida que busca reconhecer a origem
do conhecimento e promover a justa repartição dos benefícios. A descrição do manejo
sustentável de C. lecheri com comunidades da Amazônia Peruana ilustra o modus
operandis da companhia, tal como descrito por Steven King em diversas publicações.
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"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
explorar os recursos locais. O povo Igbo é dividido em pequenos
reinados e cada comunidade tem seu próprio chefe e governo. As
decisões comunitárias incluem os chefes da aldeia, seus assessores,
agentes de saúde tradicionais e os mais velhos, respeitados por sua
sabedoria adquirida com a experiência. A participação efetiva da
comunidade é essencial, já que por vezes as necessidades
individuais são sacrificadas em prol do bem da comunidade, e no
caso de uma dada comunidade em prol do bem do grupo Igbo.
Já conhecia a companhia e o método de ‘etnofarmaco’
desenvolvido pela Shaman para trabalho de campo, uma vez que,
assim como o Dr. Iwu, eu também fazíamos parte do grupo de
consultores da Shaman. O interesse maior era por antivirais, mas
havia outras áreas de interesse. Me comuniquei com eles, e com
Maurice sobre o congresso, mas pouco estudei a Nigéria ou os
Igbo. Tudo isso seria logo após o Carnaval e o verão me ocupou de
outra forma. O Congresso era em Nsukka, a uns 600 km de Lagos,
onde chegava o voo. Mal acostumada, achei que ao chegar o resto
estaria resolvido pelos que me convidaram e que me esperariam
no aeroporto. Ledo engano. Deime conta das dificuldades ao
perceber que antes de conseguir chegar ao saguão de chegada com
a mochila (carregada com roupa para este congresso em Nsukka, e
para outro no Oregon, USA, ao qual eu iria direto da Nigéria, além
da roupa para o trabalho de campo) e o equipamento fotográfico
(acumulado por anos, à época uma bolsa com câmera, lentes,
baterias e apetrechos de limpeza) já tinha sido abordada 3 vezes
com vistas a propina.
No saguão me dou conta que não há ninguém. Espero, e
nada acontece. Vou até um balcão de informação onde dizem que
tenho de embarcar em outro aeroporto (o doméstico). As gurias
solidárias me fazem desistir da ideia de ir de ônibus,
argumentando que pode levar qualquer coisa entre 18 horas e três
dias. E com a não tão velada informação de que eu poderia não
chegar com vida. Ficam apavoradas que não haja ninguém por
mim. E decidem chamar um táxi de confiança para me levar ao
outro aeroporto. Me asseguram que uma vez lá arranjar passagem
não seria problema.
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"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
Chega o táxi. Um carro cujo modelo não lembro, mas tipo
um “galochão”14 amplo. As meninas explicam onde vou, me
dizem quanto vai custar e me tranquilizam. Esse motorista, um
senhor que elas conhecem, vai me deixar onde preciso ir. O carro
começa a andar e, finalmente, dou uma relaxada; seja como for
sigo adiante para o congresso, onde também encontrarei o pessoal
da expedição. Logo em seguida começo a ouvir berros vários,
acompanhados com dedos em riste apontando para o carro: “it is
on fire”, “fire”, “it is on fire”. Quando consigo entender o
marcante sotaque nigeriano percebo as labaredas saindo do capô
do motor! Quero descer! Mas não quero deixar minha mochilona,
com roupas para quase dois meses, nem meu caro e único
equipamento fotográfico. Meio em pânico, peço ao motorista que
pare o carro para eu descer. Ele, calmamente, faz um lânguido
gesto com a mão e diz: “keep calm, the wind will take care of it”.
Com um misto de horror e fascínio entendo finalmente que todo
dia ou toda hora que ele liga o motor sai fogo, mas a estratégia de
ficar calmo e andar para fazer vento e apagar o fogo parece
plenamente adequada. Desisto e fico.
Chego no aeroporto que era pequeno, bastante cheio, e
parecido com uma feira. Mulheres elegantes com roupas coloridas,
feitas de tecidos lindos, amarrados simplesmente, turbantes e
colares vistosos. Homens em roupas tradicionais também muito
coloridas, em geral uma calça larga e uma túnica até o meio das
coxas. O falar alto. Os sorrisos abertos e muito brancos. Uma festa!
Logo alguém me manda para um banco, onde encontro outra
estrangeira branca. Não era um lugar específico, não havia mais
nada que nos ligasse, mas fomos como que classificadas no mesmo
arquivo e acabamos nos ajudando olhando as bagagens enquanto
uma ou outra resolvia questões variadas. Consigo a passagem.
Cada vez que se ouvia o anúncio de partida de avião todos se
14 Aprendi depois que os carros na Nigéria, pelo menos naquela época, eram em sua grande
maioria meio arredondados, sem formas bem definidas devido aos inúmeros reparos artesanais na
lataria.
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"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
movimentavam. Muitas vezes, saiam uns quantos ao mesmo
tempo, ou pelo menos essa me parecia a lógica. Quando se passava
pela única porta de embarque, deparávamonos com vários aviões
de porte pequeno ou médio estacionados e cada um descobria a
que aeronave deveria se dirigir. Filas de gente colorida indo para
cá e para lá. Confesso que me senti insegura quanto ao estado de
manutenção dos equipamentos aeroportuários.
Aterrissei em Nsukka, e cheguei ao hotel onde o congresso
acontecia. Ficaram felizes e surpresos de me ver. Alguma confusão
com a data em que eu chegaria, explicava a ausência de apoio em
Lagos. Encontro Maurice (que é chamado para esclarecer minha
afiliação ao congresso, quarto e que tais) e, já no auditório
assistindo a abertura do evento, Tom Carlson sentado ao lado do
Darrell Posey. Ato contínuo, Posey propõe que troquemos a
próxima palestra pela piscina. Aos poucos fui sendo tomada pela
emoção de estar entre amigos, viva, bem faceira na piscina com
uma bebidinha celebrando os caminhos para onde a ethnofarmaco
me levou até então e continuava me levando. A expedição? Fica
para outra história15.
15 Agradeço ao Lin Chau Ming pelo incentivo para que eu escrevesse esse texto e ao Roberto
Regensteiner pela edição e sugestões.
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"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
O cúmulo do absurdo
Érika FernandesPinto
Há alguns anos, descobri um tema novo de pesquisa e me
apaixonei por ele – os sítios naturais sagrados. São montanhas,
cavernas, cachoeiras, rios, lagos, árvores e outros elementos da
natureza que têm um significado simbólico especial para povos
indígenas e tradicionais, religiões ou linhas espiritualistas e a
sociedade em geral. Lugares encantados, espalhados por todo o
mundo, reconhecidos por culturas antigas e atuais, com histórias
fascinantes recheadas de mistérios, magia e milagres.
Movida pelo desejo de me aprofundar na temática,
enveredei a fazer um doutorado sobre o assunto, mal sabendo que
iniciava uma verdadeira jornada iniciática, que iria resultar em
profundas transformações pessoais. Uma saga que me levou a
muitas viagens, tanto exteriores como interiores.
Em uma dessas aventuras aportei no meio do Oceano
Pacífico, no lugar tido como o mais longínquo de qualquer outro
do planeta – o Havaí. Inevitavelmente associado ao ideário de
“paraíso selvagem”, se esse arquipélago fica “no meio do nada” ou
“no centro de tudo”, depende da perspectiva do interlocutor.
Fui participar de uma conferência e visitar dois Kahunas
(xamãs havaianos) que conheci uns anos antes Glenn Kila,
carinhosamente chamado de Uncle Glenn, e seu sobrinho e
aprendiz Chris Oliveira. Eles são uns dos últimos guardiões de
conhecimentos ancestrais dos clãs nativos de Oahu, povo quase
dizimado quando o território foi conquistado pelos guerreiros da
ilha vizinha, liderados por um rei de nome Kamehameha I, o
Grande, que contou com uma “ajudinha” de armas modernas
cedidas por colonizadores europeus. Um processo que ficou
conhecido como “a unificação do Havaí”, mas que nas letras
miúdas representou o extermínio de muitos clãs que habitavam o
arquipélago originalmente.
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"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
O Havaí é realmente tão bonito quanto a sua fama. Parece
que foi montado como cenário para a gravação de algum filme –
praias de areias brancas com coqueirais rodeadas por um mar azul
turquesa, costões rochosos com ondas gigantescas, montanhas
verdejantes com lindas cachoeiras de águas cristalinas, flores e
aves coloridas e exóticas, o sol quase sempre brilhando no céu e
muitos, muitos arcosíris, às vezes três ao mesmo tempo.
Um jardim de maravilhas, cenográfico e também meio
“erótico”. Segundo nossos “personal Kahunas”, as paisagens têm
vida e são interpretadas como partes do corpo, incluindo falos,
vaginas e seios. As montanhas têm gênero, são masculinas ou
femininas, também têm nome, personalidade e seus caprichos.
Quando os raios de sol penetram em um determinado vale, por
exemplo, ocorre tipo uma cópula cósmica, que fecunda a terra e
gera a chuva que traz a fertilidade.
A força da criação está por toda parte e as belas paisagens
escondem inúmeros lugares sagrados que preservam o equilíbrio
do planeta e assumem funções diversificadas. Tem lugares para
celebrar a vida e para celebrar a morte, para honrar os ancestrais,
para se purificar, para se refugiar, para pedir perdão, para enterrar
os ossos daqueles que passaram dessa para melhor e para guardar
os belly button (umbigos) dos que acabaram de chegar.
Na minha estada tive oportunidade de visitar vários deles,
acompanhada do meu filho e de um amigo querido, com nossos
guardiões altamente especializados que mostraram um lado do
Havaí que não se encontra nos guias de turismo.
Em uma formação rochosa próxima ao mar, acessada
depois de uma longa caminhada, tivemos uma cerimônia de
batismo. Pegando nossas oferendas, Uncle Glenn invocou o poder
espiritual do lugar – chamado de mana – e suas divindades –
pedindo proteção e que fossemos recebidos como filhos na grande
família havaiana.
Mesmo sem entender o significado das palavras e dos
cantos entoados em um dialeto antigo, senti a força e a beleza do
que estava ali acontecendo. A cerimônia foi finalizada com o
tradicional rito do Aloha, que envolve encostar testas e narizes e
81
"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
compartilhar da mesma respiração – o sopro da vida – um gesto de
comunhão e fraternidade. Uncle Glenn pediu, então, que
escolhêssemos uma pedra do lugar para levar como lembrança
daquele momento especial. Perguntei se isso não era um sacrilégio,
como ocorre em certos lugares sagrados, dos quais não se deve
levar nada. Mas ele garantiu que não, explicando que as pedras
carregam o DNA do seu local de origem e que esse intercâmbio
energético era benéfico.
Alguns dias depois, sem o Uncle Glenn, fomos conhecer a
Big Island e o famoso Parque Nacional dos Vulcões, onde está o
Kilauea, morada da deusa Pelehonuamea – ou apenas Pele, para os
íntimos – uma das referências mais importantes do grande
panteão de divindades da mitologia havaiana. Como as ilhas
foram criadas pela lava dos vulcões, Pele é considerada “aquela
que molda a terra sagrada”, a deusa do fogo. Algo parecido com a
nossa Yansã, porém mais temperamental e, em algumas situações,
violenta, pois poder e destruição andam juntos.
A lenda de Pele – em suas múltiplas versões – é uma das
mais conhecidas do Havaí. Filha de um rei, teria nascido no Taiti,
onde seu temperamento ardente e indiscrições com o marido da
irmã a colocaram em problemas. Banida por seu pai, viajou até as
ilhas havaianas em uma canoa, onde reinou soberana. Mas pouco
tempo depois, sua irmã chegou e a atacou. Pele conseguiu se
recuperar dos ferimentos e fugiu para outras ilhas, onde cavou
várias fossas gigantes, incluindo as que agora formam a cratera de
Diamond Head, em Oahu, e o vulcão Haleakala, em Maui. No
entanto, foi encontrada pela irmã, que a assassinou. Morta em
corpo, seu espírito transformouse em Akua, a sagrada
personificação de um elemento da natureza (no caso, o fogo),
enquanto sua rival se transformou na deusa das neves, passando a
morar no vulcão extinto Mauna Kea, conformando dois territórios
sagrados distintos na Big Island.
Para os havaianos, Pele exerce uma notável influência
cultural e presença contemporâneas. Mesmo que a antiga religião
tenha sido banida oficialmente em 1819, ela emergiu como um
símbolo de resiliência, adaptabilidade e poder da cultura
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"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
originária das ilhas, sendo reverenciada em inúmeros cantos
tradicionais. Ela representa não apenas os aspectos físicos das ilhas
havaianas, mas também a paixão ardente da sua cultura.
Pele controla os fluxos de lava e cabe não a irritar. Seus
rompantes tanto criam como destroem a vida, formando novos
vulcões que entram em erupção, cobrem a terra com lava e iniciam
o ciclo novamente. O vulcão Kilauea é um dos mais ativos do
mundo e entra em erupção regularmente. Quando se torna mais
intenso do que o habitual, coloca as comunidades vizinhas em
perigo. Em maio de 2018, por exemplo, várias tiveram que ser
evacuadas. Os moradores fazem oferendas de flores e folhas de Ti
(uma planta nativa sagrada) como recurso para apaziguar a deusa.
As rochas que se formam do resfriamento da lava e geram a
nova terra são chamadas de Kipuka e consideradas filhos de Pele.
Os locais onde o fluxo de lava extravasa no mar, além de
conformar um espetáculo de rara beleza, são sagrados. E contase
que Pele lança sua ira implacavelmente sobre aqueles que os
profanam.
Ao visitar um desses sítios, seguimos todo o protocolo
recomendado pelo Uncle Glenn – limpar os pés para retirar
impurezas antes de entrar no espaço sagrado, nos apresentar
falando nosso nome completo e origem, invocar os ancestrais e
guardiões do lugar para pedir permissão e agradecer aos espíritos.
Da mesma forma, para sair, também pedimos permissão e perdão
por qualquer falta que possamos ter cometido. Lembrando da
nossa experiência do batismo, pedi licença para levar umas
pedrinhas, que guardei cuidadosamente na minha mochila e que
me acompanharam de volta ao Brasil.
Um tempo depois, pesquisando informações na internet,
encontrei uma notícia que comentava sobre a quantidade de
pacotes que a administração do Parque Nacional dos Vulcões
recebia de pessoas que mandavam de volta pedras levadas por
elas do Havaí, alegando terem sido afetadas pela Pele´s curse
(maldição de Pele). Os relatos incluíam acometimento por
infortúnios, má sorte, perdas e calamidades. Acreditando
seriamente terem se tornado alvo de forças vingativas, pediam que
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"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
as pedras fossem devolvidas ao local de origem, com desculpas à
deusa do vulcão.
Coincidência ou não, lembrei que na semana em que
cheguei de lá faleceu minha tia avó, na semana seguinte o meu
chefe e na sequência o meu tio avô. Era só o que me faltava! Ir para
o Havaí e voltar de lá com uma maldição da deusa do vulcão!!!
Como logo eu, “especialista” em sítios sagrados, fui cometer uma
gafe dessa? Era o cúmulo do absurdo!
Alguns dizem que a tal maldição foi uma invenção de
guardasparques que queriam desencorajar os visitantes dessa
prática, mas Uncle Glenn, a quem recorri, me garantiu que ela
tinha base na cultura ancestral.
Ainda que eu estivesse pronta para correr para o aeroporto
e pegar o primeiro voo de volta ao Havaí, ele me orientou sobre
como me “redimir” com a deusa do vulcão e devolver as pedras
colocandoas no mar aqui mesmo no Brasil, pedindo que
voltassem para casa. Era mais prático do que atravessar meio
mundo, mas não tão fácil, já que eu morava em Brasília, a mais de
mil quilômetros do oceano mais próximo.
Viajei então para Curitiba e de lá segui até o litoral, onde fiz
uma breve cerimônia reproduzindo a ritualística e as palavras
conforme Uncle Glenn me orientou. Como as pedras iriam se
deslocar de Paranaguá, no Oceano Atlântico, até o Havaí, no
Oceano Pacífico, permanece um mistério para mim, mas Uncle
Glenn disse para não me preocupar, que as pedras sabiam o
caminho. Quisera eu ter essa sabedoria, de não importa onde
estiver saber o trajeto de voltar para casa!
Essa história me mostrou que há uma outra dimensão de
códigos que devemos levar em consideração no trabalho de
campo. Para além dos naturais e culturais, os espirituais, ditados
não pelas pessoas, mas pelas entidades que habitam no mundus
imaginalis – aquele espaço visionário intermediário entre a
dimensão sensível e visível e o inefável transcendente.
Aprendi, com meus cicerones havaianos, que é por meio da
contemplação silenciosa da natureza que recebemos as melhores
aulas sobre as leis e princípios que regulam a vida e governam o
84
"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
universo. Algo resumido de forma muito simples no valor
ancestral de Malama´aina – de que nos importando e cuidando da
terra, a terra cuida de nós.
Que o espírito havaiano possa nos contagiar e inspirar o
profundo e reverente amor por todas as formas de vida e o
respeito a todas as culturas.
Mahalo nui loa!
(Muito obrigada)
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"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
Banho
Fausto Cafezeiro
Enxáguo a nascente e lavo a porra toda
Pra maresia combinar com o meu rio, viu?
Minha lagoa engolindo a sua boca
Eu vou pingar em quem até já me cuspiu, viu?
(Elza Soares. Banho)
Como pode ser a própria imagem fatal? Jamais consegui
entender. Meu legado filosófico não ensina isso. O mito de Narciso
que vocês contam e recontam desde o tempo de meus primeiros
descendentes tem concepções muito estranhas. Primeiro, como
pode um ser tão belo não amar? Como pode sua beleza o tornar
tão vil e arrogante a ponto de desprezar o sentimento de outrem
por si? Que espécie de beleza é essa dos gregos? É a forma física o
que faz alguém belo? Onde está o belo nas coisas, na alegria de
viver, no cultivar das belas coisas? Em algum lugar pode estar, no
mito de Narciso não.
Os especialistas vão me chamar de inculta. Vão dizer que
não domino perfeitamente o conceito de beleza segundo os gregos.
Pode ser. Mas não por isso que vou deixar de enunciarme. Sou eu
mesma a beleza. Sou a responsável pelo encanto do belo. Sou eu
quem fertiliza o chão para que vida cresça. Sou eu a água doce dos
rios, das cascatas, das nascentes, das cacimbas. Sou eu as águas do
ventre e do nascimento onde vivem os bebês, meus protegidos
preferidos. Sou eu aquela que se banha se olhando, admirandome
e vendome. Sou a dona dos espelhos que tiram os loucos do
estado de loucura.
Sou a que se banha, em um dos atos mais bonitos do
candomblé, expressão dos meus ensinamentos ancestrais, criada
por meus filhos brasileiros. Alguns deles dizem, inclusive, que fui
eu quem a criou. De certa forma até foi. Fui eu, grafada,
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"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
movimentada, corporificada pelos meus descendentes. No meu
banho, me lavo, num ato imenso de prazer e de êxtase. Lavo
minha própria beleza. Ensino, lavando, algo que jamais os
colonizadores castradores poderiam conceber: o amor pela beleza
do próprio corpo. Todo ser tem sua beleza. Todo corpo é belo. O
banho é, então, o cultivo da beleza. A verdadeira beleza, a beleza
do mundo, das coisas, dos seres. Lavo minhas pulseiras. As de
ouro, as de cobre, as de prata. O que são os adornos senão um
sinal do amor à beleza do corpo? O corpo enfeitado merece brilho,
merece resplandecer, merece ser contemplado e vivido. Com o
movimento das águas, embalos os meus bebês, os filhos de toda a
beleza roubada a seus pais pela diáspora. Dou a eles o sono, a
calma, a paz e a certeza de que brilharão. E vocês, os ocidentais,
matam meus bebês com armas e balas. Matam aqueles em quem
eu derramei minhas águas. E para não me chamarem de narcisista,
lanço mais um de meus segredos: sou Iyalodê, a MãeSenhora da
Sociedade. Sou eu quem zela para que a sociedade viva bem. Sou a
dona do bemviver, sou a responsável para que os meus vivam o
belo e o bom. Sou a beleza da vida social, guardiã civilizatória dos
costumes. Vocês não amam a beleza.
Meus espelhos sempre foram as águas, tão límpidas e tão
sagradas que mostram a exuberância de meus filhos. Em certo
momento, confesso que senti certa ojeriza a espelhos. Eles foram
trocados por árvores. Em troca da destruição, da morte da Mãe
Mata, deuse a seres que viviam em harmonia o espelho narcísico.
Tiveram a ousadia de entregar o olhar sobre a própria imagem em
troca da destruição, como quem diz “ou sua beleza ou sua vida”.
Só isso já é destruição. Por isso, espelhos não me agradaram.
Foram os meus descendentes que me refizeram gostar
deles. Os espelhos lhes mostravam sua beleza, algo de que eram
alienados. Punham suas joias no espelho. Maquiavamse. Minhas
filhas me deram muito orgulho ao criar as irmandades, plenas de
sua beleza e cheias de joias. Elas mesmas começaram a me dar
espelhos de presente. E resolvi dançar com eles na Bahia, enquanto
me banhava. Assim, reafirmei a posse sobre os espelhos, objetos
meus, armas para perpetuar meu legado. O espelho de vocês
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"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
adoeceu aos meus, através de um processo que vocês, ocidentais,
operam apesar de não o saberem explicar em sua totalidade. Vocês
operam sem conhecer o processo, os meus conhecem o processo e
não o operam. Dele são alienados.
Os mitos são verdade. Eles têm o poder de fazer com que as
coisas ajam sobre o mundo. Depois do mito de Narciso, todos os
seus espelhos tornamse amaldiçoados. Isto não ocorre por um
poder mágico guardado nem pela invocação de frases, como o
mundo fosse um grande caldeirão de uma bruxa velha e
voluntariosa. Isto ocorre porque, por mais que não se fale dele, o
mito continua existindo. Ele sempre explica algo. Ele ajuda a fazer
as coisas acontecerem daquele jeito narrado. Meu povo o sabe, mas
isso não o livrou de nada. Vocês, julgando os legados meu e dos
outros deuses como crendice, superstição ou ignorância, não
aprenderam que criaram uma armadilha para vocês. Se o
soubessem, vocês mesmos estariam libertos desta maldição: a da
imagem que seduz, enlouquece, apaixona. Narciso ensinou vocês a
se olharem e se acharem lindos, e acreditar que o mundo gira em
torno de uma beleza falsa. Uma beleza da aparência. Uma beleza
do que se é por fora. Além disso, quando vocês desorientaram
meus descendentes a ter referências brancas, os puseram numa
armadilha ainda mais cruel: a de procurar imagens brancas. A de
se apaixonarem por uma imagem que jamais verão como sua por
mais que queiram ou se esforcem. Só é possível chegar ao belo
vendo coisas belas. O olho que mostra o belo também é meu
domínio.
Esse é o adoecimento dos meus filhos na sociedade de
vocês. Insatisfeitos em fazer deles coisas, insatisfeitos de inventar
um sistema a hierarquizálos, e insatisfeitos em tiraremnos da
minha terra, vocês os enlouqueceram. Vocês os fizeram sofrer, os
fizeram estranhar a própria imagem. Meus filhos odiaramse ao
perseguir uma forma, um corpo, os traços que não eram os deles.
Fiz, então, dos meus espelhos armas. Trago de volta a realeza
perdida de meu povo. Arma com que os curo e que uso para evitar
a morte da minha própria existência e a dos meus. Arma lavada
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"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
em meu banho epistêmico, que traz de volta a bela imagem do que
se é. Eu como os meus, todos somos frutos da bela imagem do que
se é. Apaixonandonos por nós, amamos a todos nós, e por isso
sou Iyalodê.
Vocês são os que matam as minhas crianças a bala e os que
enlouquecem meu povo com espelhos amaldiçoados. Mas
maldições são laváveis. Sou eu mesma quem as lava. Se os
espelhos de vocês foram ferramentas de dizimação, física e
simbólica, os meus são armas de guerra, prontos a devolver a
natureza nossa aos meus.
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"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
Da selva de pedra à selva amazônica
e seus seres encantados
Fernanda Carneiro Romagnoli
Como uma legítima paulistana, cresci sendo uma “menina
de prédio”, aquela que empinava pipa de sacola de supermercado
na janela do terceiro andar e que brincava no playground
cimentado. Nas aventuras imaginárias com meus amigos,
explorávamos cavernas existentes embaixo de escadas, fazíamos
treinamentos de sobrevivência na selva no escorregador e
enfrentávamos dias no oceano em pequenos botes para chegar ao
Japão, sem sair do mesmo lugar. Foram tantas aventuras!
Mesmo com esse espírito aventureiro, a correria de São
Paulo, o ônibus diário, a concretude da vida moderna dificultavam
meu voo em ares mais puros. Quem diria que, ao terminar o
Ensino Médio, eu iria optar pela graduação em Biologia! E, por
uma das ironias do destino, quem diria que, ao terminar a
graduação, eu seria aprovada para cursar o mestrado no estado do
Amazonas, o que mudaria para sempre minha vida!
Morando em Manaus, comecei a viver aventuras parecidas
com as da minha imaginação de criança: fazer focagem de jacarés
no escuro entre as árvores da floresta alagada, ouvir esturro de
onça por perto sem enxergála, entre muitas outras.... E além do
contato com a vida natural em si, a vida na Amazônia me trouxe o
contato com os seres encantados da floresta.
Minha pesquisa de mestrado envolvia botosvermelhos,
animais conhecidos por serem “misteriosos”, “sedutores” e até
“mágicos”. Em uma pequena cidade às margens do Rio Negro,
Novo Airão, em frente ao maior arquipélago de ilhas fluviais do
mundo as Anavilhanas conversei com muitos moradores locais
e pude conhecer melhor o que os botos representam para muitos
amazônidas. Muitas vezes as pessoas estranhavam eu, loira,
olhos claros, com sotaque paulistano, perguntando sobre botos.
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"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
Não raro achavam que eu trabalhava para o IBAMA ou que
estava colhendo informações sobre crimes para denunciar. Embora
exista um conflito entre pescadores e botos na Amazônia ao
disputar pelos mesmos peixes, muitas pessoas reconhecem a
existência de um tipo de boto encantado, que pode seduzir
mulheres mas que, acima de tudo, é protetor das águas. Ao
começar minha conversa, procurava fazer as perguntas previstas
na minha entrevista. Porém, ao falar sobre botos, todas as pessoas
com quem conversava, começavam a me contar histórias sobre os
botos encantados.
Ao me sentar em um banco na calçada para uma conversa,
um senhor narrou que seu amigo trabalhou como vigia de uma
base de um órgão ambiental que ficava no meio do rio, sem casas
ou outras pessoas por perto. Este amigo pescava usando bomba,
mesmo sabendo dos danos ambientais que poderia causar. Certa
noite, dormindo sozinho na base, ouviu alguém batendo na porta.
Era tarde da noite e ele estava no meio do rio, não ouviu barulho
de nenhuma embarcação chegando, fosse rabeta ou voadeira.
Abriu a porta. Era um homem muito distinto, vestido de branco e
que usava um chapéu. Este homem olhou em seus olhos e lhe
falou firmemente para que nunca mais pescasse usando bomba.
Virouse e mergulhou no rio. Era um dos botos encantados lhe
fazendo uma advertência para proteger os cardumes e o rio. O tal
vigia nunca mais pescou com bomba.
Na mesma cidade, uma mulher de uns 40 anos se sentou
para responder a minha entrevista e me contou que seu pai,
quando jovem, era pescador e pescava demais, usando malhadeira
e retirando muito peixe dos rios. Certa vez, pescando próximo a
uma ilha, ele e seu colega encostaram a embarcação e pararam
para descansar. Pouco depois, viram um “cardume” de botos
chegando perto de onde eles estavam. Os botos subiram em terra e
se transformaram em cavalos que corriam velozmente, assustando
os homens. Eles também entenderam o recado: não poderiam mais
pescar de forma predatória.
Ainda andando por Novo Airão, parei em uma casa onde
havia uma espécie de oficina. Um senhor bem velhinho veio me
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"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
atender. Sentouse e conversou comigo, respondendo minhas
perguntas e me contando suas vivências. Me contou sobre seus
dias de caça e que já havia encontrado com a matinta várias vezes.
Certa vez, a matinta apareceu de repente e exigiu fumo para que
fosse embora. “Foi o jeito dar o fumo pra ela...” Em seguida, me
perguntou: “você acredita que eu já vi a matinta?”. Naquele
momento, eu não sabia o que responder. Não queria parecer uma
pessoa cética ou dar a impressão de que não estava acreditando no
que me contava. Meu impulso foi responder “eu nunca passei uma
noite no meio da floresta, então, não posso duvidar do que não
vivi”.
Anos depois realizei pesquisa em uma comunidade no meio
do Rio Amazonas, próxima a Santarém, Pará: a Água Preta. Neste
momento, meu trabalho como etnobióloga já havia amadurecido e
passei a priorizar o tempo de conversa com as pessoas. Já não
levava roteiros preparados, apenas ideias gerais do que queria
conversar. Assim, as conversas se tornavam mais longas e a
riqueza das histórias maior. Neste local, muitas pessoas contaram
sobre os botos assobiando enquanto rodeavam as casas. Saíam das
águas e se transfiguravam em homens, especialmente em época de
festa e nas casas onde havia moças. Os botos “faziam medo” noites
inteiras com aquele assobio, e o chefe da família, muitas vezes,
chegava a atirar com a espingarda para espantálos, que,
rapidamente, voltavam para a água. Contaram sobre botos que
andavam nas trilhas e fugiam quando alguém focava com a
lanterna. Contaram sobre um boto que ficava sentado no banco da
igreja.
Em uma das casas, um senhor idoso me contou sobre a
cobra grande. A comunidade Água Preta fica em uma região do
Rio Amazonas onde o rio é recortado. Anualmente, há queda de
barrancos e sedimentação de terras, mudando a configuração do
rio. Como o rio muda demais, o senhor afirmou que só poderia ser
a cobra grande quem fazia isso. Afinal, quem mais teria o poder de
aumentar a profundidade e a largura do rio? Além disso, em dias
de tempestade, ele ouvia o estrondo feito pela cobra grande. E
quando isso acontecia, podia ter certeza de que o rio tinha
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"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
afundado mais.
As pesquisas no interior da Amazônia me mostraram que,
para os Amazônidas, especialmente aqueles que vivem mais
próximos aos rios e florestas, a relação com a natureza é muito
mais complexa do que a maioria das pessoas modernas de São
Paulo pode imaginar. Árvores, animais, ecossistemas são mais do
que isso, são história, espiritualidade, elo das pessoas com as
próprias pessoas. Nas selvas de pedra, muita gente busca isso em
igrejas, na arte ou em outros meios, mas na floresta, tudo é tão
mais acessível. É intrínseco ao ser humano da floresta!
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"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
Cheguei numa bacia azul...e fui amada!16
Flávio Bezerra Barros
Era um típico domingo de julho de 2017, em Belém do Pará.
Na paisagem amazônica se via mangueiras, jardins e samaumeiras
gigantes. O sol brilhava intensamente e o calor agitava a todos e
todas. A Praça da República estava repleta de transeuntes,
comerciantes, crianças, e toda a sorte de gente a andar de um lado
pra outro visitando as barraquinhas que vendem os mais diversos
tipos de produtos, inclusive comidas e bebidas. Típicos bombons
do Pará, também havia. Visitar a feirinha da República nesta
metrópole amazônica é um programa tradicional de domingo. Era
possível observar pessoas passeando com seus animais de
estimação, e também famílias e amigos a espalhar suas toalhas no
chão a fim de preparar um singelo piquenique. Amanheci muito
contente neste dia, pois na noite anterior havia sonhado que este
domingo seria o meu dia D.
Sonhei que encontraria pessoas muito especiais e que uma
amizade nasceria a partir desse encontro. Achei estranho terem me
carregado numa bacia azul junto com a minha irmã, pois apesar de
querer conhecer uma praça desde sempre, nunca lá tínhamos ido,
nem tampouco sabíamos para onde estavam a nos conduzir. No
percurso de nossa casa até esse tal lugar, ficávamos a pensar: para
onde estão nos levando? O que vão fazer conosco nesta bacia azul?
Quando chegamos, constatamos que o tal lugar era mesmo a
praça. Eu apaguei, passei mal com o calor e o percurso da viagem.
O que aconteceu daí em diante, infelizmente não lembro.
Me deu assim uma zonzeira, uma dor de cabeça, um passamento,
não sei explicar. Quando acordei estava num lugar diferente, com
pessoas nãofamiliares. Minha irmã já não estava comigo e senti
imensa saudade dela. Fiquei a pensar para onde a teriam
carregado. Achei estranha aquela casa sem quintal, nem árvores,
16 Uma homenagem a Luluca.
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"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
nem terra para eu brincar, correr, embolar pelo chão. O cheiro não
era o mesmo cheiro que eu estava familiarizada. Fiquei triste,
quieta, mas o que mais me doía era terem me separado da minha
irmã.
O tempo foi passando e eu não conseguia recordar o que
teria de fato se sucedido naquele bendito domingo de julho. Como
minha memória não trouxe as respostas que eu buscava, fui
vivendo e aprendendo a conviver com aquelas pessoas novas, com
vozes desconhecidas, costumes muito particulares. Tenho
recordação que eles cuidavam muito bem de mim, me davam
comida, eram carinhosos, me colocavam no colo, ensinaramme
coisas muito bacanas para minha vida. Deramme um nome. Fui
crescendo, crescendo, e quando me dei conta, percebi o quanto eu
era importante neste novo lar que, apesar de não ser como eu
gostaria, era repleto de harmonia, amor e carinho para comigo.
No começo de tudo eu considerava eles (Fábio, Marcela e
Thales) meio preconceituosos, porque achavam que eu era uma
coisa, mas eu era outra. De vez em quando me investigavam,
pegavam nas minhas pernas, apertavam minha cabeça, espiavam
meu sinal alvo como leite por debaixo do meu peito...Por causa do
meu jeito estranho e quieto, essas pessoinhas até imaginaram que
eu era doente (logo julgaram: ela vê mal, ouve com dificuldade,
anda de maneira cambaleante) e até me levaram pro médico. Foi
hilário, pois ele, o médico, logo sentenciou: ela não está doente,
goza de boa saúde! Na verdade, eu apenas era infante ainda e
estava me desenvolvendo. Flagrei inclusive a Marcela ligando para
sua irmã descrevendo estas características de adoecimento e
pedindo conselhos. Eu pensei: tudo bobagem! Depois percebi que
os vizinhos deles não gostavam de mim e fiquei hiper triste
quando dona Francisca me chamou de preta e feia, colocando pra
fora seu racismo. Entretanto, numa certa ocasião, após este
episódio, ouvi os donos da casa conversando e criticando a beata
racista, demonstrando assim cuidado comigo, e se preocupando
com as injúrias proferidas contra mim. Neste dia me senti bastante
orgulhosa!
Minha vida foi seguindo, a saudade de minha irmã foi
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"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
aumentando e, apesar dessa ausência, nunca perdi a esperança de
reencontrála viva e feliz. Uma das coisas que eu mais gostava era
tomar banho com a Marcela, que sempre reservava um xampu
muito cheiroso. Eu também tinha uma toalha e a cama era bem
aconchegante. Quando ela dizia “vamos tomar banho?”, eu corria
em disparada para esse banho, pois adorava. Com relação à
comida, não era muito afeita, pois achava que aquilo não era
comida digna: repetia demais, cheirava esquisito...até que um dia
resolveram diversificar depois de meus constantes protestos de
fome, e eu fiquei bem agradecida. Hoje como coisinhas bem
gostosas e sou gulosa. Assumo mesmo que gosto de comer, e
muito. Com o passar do tempo, nossa relação de amizade foi
crescendo e se fortalecendo, os laços de afeto iam ficando cada vez
mais intensos. Eu sempre fazia festinha quando Fábio chegava à
noite do trabalho e ele me abraçava, dizia palavras carinhosas
comigo e correspondia às minhas expressões de amizade
verdadeira. Uma vez até ouvi ele dizer que nunca tinha me visto
de cara feia, emburrada ou guardando rancor, como seus parentes
fazem de vez em quando. Adoro ouvir esses elogios. Lembro que
nessa jornada da vida, ele até gritou comigo e me deu uma
palmadinha, pois eu fazia algumas besteiras, como falar alto e dar
cabo de coisas importantes da casa. Ele dizia assim: para de falar
alto para não incomodar a vizinhança. Eu demonstrava resignação
naquele momento, ficava meio entristecida, mas logo entendia que
isso fazia parte da sua incapacidade de me compreender, de
conhecer as profundezas do meu universo particular e logo o
sentimento de tristeza cessava e tudo voltava ao normal.
A vida foi seguindo e nossa relação foi só se estreitando.
Até os dias atuais eu gosto muito de ficar perto do Fábio, deitada
por onde ele estiver...é tanto carinho que tenho por essa criatura
que, até quando ele vai pro banheiro, eu vou atrás, e nem me
importo com os cheiros estranhos que aparecem nessa parte da
casa quando nós dois estamos por lá. Uma das coisas que mais
gostamos de fazer juntos é passear a noitinha na Praça da
República. Lá eu posso me encontrar com meus colegas e trocar
ideias interessantes. Rola paquera, fofocas, brincadeiras e até
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"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
visitas não bemvindas. Volto pra casa quase sempre cansada,
esbaforida. Contudo, uma das coisas que mais me alegra é saber
que o Fábio aprende comigo, me escuta, me observa, mesmo não
entendendo muito bem minha maneira distinta de se comunicar.
Vejo que ele me olha nos olhos, e eu encaro ele. Percebo
claramente seu esforço. Consigo até imaginar o que ele pensa de
mim...ouvi outro dia ele contando que eu tenho capacidade de ver
o que ninguém vê. E é verdade. Às vezes eu falo alto, fico
arrepiada, com olhar fixo para um lugar. É porque estou vendo
algo estranho, estrangeiro e invisível aos olhos dos meus
companheiros de lar, e eu preciso agir no sentido de afastar aquela
força metafísica. Tudo vai se apaziguando e eu me acalmo.
Gosto também quando o Fábio se agacha para falar comigo
olhando bem dentro dos meus olhos, demonstrando respeito. Mas
teve um momento de minha vida que eu passei um perrengue
medonho. Isso foi em janeiro de 2018, quando eles três, Fábio,
Marcela e Thales viajaram e não me levaram. Ouvia eles
articulando tudo escondido de mim. Não queriam que eu
conhecesse o plano deles, mas eu percebia, sentia tudo o que
estava acontecendo. Quando o momento chegou, eles me levaram
para um lugar distante e lá me deixaram. A despedida foi dureza,
para eles e para mim também. Havia comida, parentes meus
distantes para brincar e trocar ideias, mas eu sentia falta do Fábio,
Marcela e Thales.
O tempo passava e nada deles irem me buscar, até que um
certo dia me apanharam e tudo voltou ao normal, apesar da ferida
que se fez na minha perna e nunca contei para eles o que havia
ocorrido por lá: eles não entenderiam mesmo. Quando entramos
no carro, foi só alegria. O tempo foi passando e vocês não sabem o
que aconteceu. Fábio e Marcela me levaram pra praça num
daqueles domingos e sabe quem a gente encontrou? Verônica, a
minha irmã. Ela estava grande, bonitona, sadia, e bem danada.
Ela era diferente de mim, pois enquanto eu tinha uma
personalidade calma, Verônica era bastante ativa. Só sei que o
Fábio combinou com a Isadora (a mãe da Verônica) de a gente se
encontrar de vez em quando, o que foi possível duas vezes. Fui
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"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
levada para a casa da minha irmã e lá pudemos colocar a conversa
em dia, falar de nossas vidas, de nossas casas, das pessoas com as
quais a gente convivia.
Ficamos muito animadas e brincamos muito, corremos
juntas, dormimos coladas uma na outra e para minha surpresa
Verônica me contou tudo o que havia acontecido naquele domingo
na Praça da República. É que o Cristiano tinha nos tirado de nossa
mãe e resolvido nos dar para alguém. Ele nos colocou naquela
bacia azul e foi lá na praça que ele deu a gente, disse Verônica. Eu
fui pra casa da Isadora e você, Luluca, foi pra casa desse pessoal,
continuou Verônica. Depois lembrei que alguns de nossos irmãos
morreram. Nós somos sobreviventes nessa história. Verônica
continuou contando: quando o Cristiano nos deu, ele disse que a
gente era um tipo de gente, mas erámos outro tipo de gente. É por
isso que seus donos se questionavam. Não era culpa deles, não.
Você tinha que continuar crescendo para eles saberem que
você não era o que tinham dito, mas guardava relação de alguma
forma. Eu imaginava naquele dia como você estaria e em qual
lugar e pensava que você imaginava o mesmo. Só que você, ao
chegar à praça, ficou muito abalada e desmaiou e eu, não. O que
importa é que você está bem, feliz e encontrou pessoas incríveis,
que aprendem a ser humanos melhores a partir dessa relação de
aprendizagem e afeto, demonstrando que quando se está aberto a
experiências, não existe fronteira entre nós, disse Verônica a
Luluca.
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"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
Por que SBEE e não SBE? Não sei!
Só sei que foi assim...
Francisco José Bezerra Souto
Eu sempre gostei muito de História. Acho que desde
menino na escola, creio. Hoje, mesmo dando aula na área de
Zoologia, Etnoecologia e Ecologia Humana, sempre que possível
utilizo a História para contextualizar um determinado assunto ou
conhecimento no tempo. Pra isso, uso muito a justificativa do prof.
Sebastião Pimentel Franco (UFES) quando diz que “com a História
entendese o passado, compreendese o presente e fazse projeções
para o futuro”. Acho importante nos localizarmos na escala dos
tempos. Até pra que entendamos um pouco, como bem cantava
Cazuza,“por que que a gente é assim?”
Vou fazer aqui, então, um exercício de memória. Vou voltar
ao ano de 1996, quando em Feira de SantanaBA foi realizado o I
Simpósio de Etnobiologia e Etnoecologia. Vãose aí perto de 24
anos. Talvez, você que esteja lendo esse texto nem tinha nascido
ainda (nóis é antigo, mas nóis é jovem, tá?)! Ou talvez você que
esteja lendo, assim como eu, estava participando daquele histórico
evento (tu é antigo, mas é jovem, né?). Lógico que cada um que
esteve lá tem suas lembranças, suas vivências, sua visão dos fatos,
que podem (e devem) ser até diferentes das minhas. Não tenho,
portanto, a pretensão de contar “a história da SBEE”, mas apenas
minha visão nela e dela naquele distante evento.
E foi um “senhor” evento! Por ser o primeiro, lógico, mas
também pela constelação de grandes nomes da Etnobiologia e
Etnoecologia que dele participou. Estavam lá Brent Berlin, Victor
Toledo, Darrel Posey, Elaine Elisabetsky, Zé Geraldo, Márcio
Campos, Ordep Serra, Alpina Begossi, Nivaldo Nordi, entre outras
estrelas que não lembro agora. Estavam também algumas figuras
ainda neófitas na época, mas que hoje são grandes nomes de nossa
SBEE, tais como Ângelo Giuseppe (UFRPE), José Mourão (UEPB),
99
"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
Eraldo Costa Neto (UEFS), Fábio Bandeira (UEFS), Ulysses
Albuquerque (UFPE), Nivaldo Peroni (UFSC), Natália Hanazaki
(UFSC), Rumi Kubo (UFRGS), Gabriela de Souza (UFRGS), Lin
Chau Ming (UFSC), Cristiane Seixas (Unicamp), sem esquecer de
nosso querido e saudoso Guy Nishida (Little Japa). Foi uma
verdadeira festa! Eu não aproveitei mais dela porque não tinha
conhecimento suficiente de Etno e nem muita noção da dimensão
da importância daqueles nomes que a gente assistia falando nos
auditórios ou trombando nos corredores! Pra vocês terem uma
ideia, nem tiete eu consegui ser! Não tirei foto com ninguém!
Minto! Tirei uma foto clássica de Ângelo com Posey que sei que ele
guarda com muito carinho! Me arrependo muito disso! Hoje, eu
tiraria fotos com muitxs delxs!
Lembrome que fiz um minicurso com Victor Toledo, uma
das figuras mais importantes da epistemologia da Etnoecologia.
Seja pelo espanhol rápido, seja pela sua abordagem, não entendi
muita coisa. Ainda assim, pude dizer que fiz um curso com
Toledo! Aliás, um idioma comum no Simpósio era o português
com fortes sotaques estrangeiros. Nesse sentido, creio que poucos
lembram (com exceção de Ângelo), uma palestra de Brent Berlin, o
papa da Etnotaxonomia, heroicamente tentando falar português.
Num determinado momento, buscando desesperadamente
encontrar uma palavra no seu vocabulário, sem sucesso saiu com
essa: “Aaaaaah!!! My brain está queimada!”. Parou um pouquinho,
pensou e completou “queimada ou queimado?”. Rimos muito da
cena na hora!
Sim, mas deixe eu ir logo pra parte que se refere ao título
desse texto. Próximo ao final do evento, tivemos uma assembleia
na qual seria criada a nossa Sociedade. Surgiu um dilema
inusitado: qual nome teria? Sociedade Brasileira de Etnobiologia,
seguindo a tendência da já criada Sociedade Internacional de
Etnobiologia? Ou seria Sociedade Brasileira de Etnoecologia, termo
utilizado por Toledo que incluiria a Etnobiologia, explicitado em
seu clássico trabalho “What is Ethnoecology?” ?
Falouse muito naquele momento, mas não se chegava a um
consenso... Eis que, com toda sua falta de noção e conhecimento,
100
"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
vai Franzé, pede a palavra e sugere pra coordenação da mesa que
fosse discutido os conceitos de Etnobiologia e Etnoecologia, até pra
que as pessoas tivessem mais clareza do que significava cada coisa,
ajudando assim a encontrar o melhor nome. Como resposta da
mesa, foi dito: “Não é necessário, pois essa é uma questão já
totalmente ultrapassada”. Quem me falou isso? Não digo aqui
nem f...orçando!!!! Cara, fiquei com muita vergonha na hora!
Explicitei minha ignorância pra todo mundo e fiquei com a
desagradável impressão que só eu não sabia daquilo. Calado
estava, calado fiquei. Ali... murcho, murcho!
Seguiuse a assembleia e ficou meio que acertado que o
nome da sociedade seria Sociedade Brasileira de Etnobiologia.
Nisso, inesperadamente, o prof. Marcio D´Olne Campos
(Unicamp), como eu disse anteriormente, uma das estrelas do
evento, falou: “Então, não poderei fazer parte dessa Sociedade,
pois trabalho com Etnoastronomia! E isso não se encaixa na
Etnobiologia!” Pronto!!!! Criouse um vespeiro danado no
auditório, pois ninguém concebia que ele não fizesse parte dessa
nova sociedade que ali nascia. A partir daí, desenrolouse uma
discussão histórica sobre o que era de fato Etnobiologia e
Etnoecologia, suas características, epistemologias, tendo como
debatedores as maiores autoridades do assunto do Brasil e do
mundo! Cara! Era isso que eu tinha sugerido! Juro! Lembro demais
que depois comentei isso um pouco indignado com o amigo
Nivaldo Nordi e ele me disse: “É, você fez a sugestão certa pra
pessoa errada...”.
Bem, guardada a minha insignificante indignação, foi um
verdadeiro show de discussão! Brilhante mesmo! Ao final, optou
por um nome híbrido que levasse tanto em conta o critério
utilizado pela Sociedade Internacional (International Society of
Ethnobiology), como a abordagem, pode se dizer inovadora à
época, de Victor Toledo. Foi criada naquele momento, portanto a
Sociedade Brasileira de Etnobiologia e Etnoecologia, a nossa SBEE!
Restou um pequeno dilema de natureza fonética. Seria
pronunciada “Sbii” , lembrando o “bee” da abelha em inglês; ou
“Sbéé”, do berro do bode, tão característico daqui de Feira de
101
"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
Santana e do Nordeste. O bode venceu a abelha anglosaxônica,
mas ainda há controvérsias pra alguns...
Como eu disse lá em cima, muito provavelmente, outras
pessoas terão visões, opiniões ou lembranças distintas do que foi
esse momento crucial da história de nossa SBEE. É como dizia
aquela maravilhosa música dos Beatles (Fixing a Hole), “And it
really doesn't matter if I'm wrong I'm right. Where I belong I'm
right” (Realmente não me importo se estou certo ou estou errado.
Onde me enquadro, estou certo). Ou, pra não fugir do popular, o
velho ditado “quem conta um conto, aumenta um ponto” também
me ajuda. É isso... Olhar pra trás é um pouco fazer história.
Estando presente é vivêla. E eu estava ali, ao lado dela. E, por
graça do destino (ou do bom senso do grande Márcio Campos), me
senti como se ela tivesse também ali... do meu lado.
102
"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
Quem tem medo da Ecologia Humana?
Francisco José Bezerra Souto
Eu tenho! Melhor, eu tinha...Calma aí, vou explicar. Venho
trabalhando com Etnoecologia já há bom tempo, inclusive
ministrando cursos e disciplinas. Ainda que tenha acumulado uma
certa bagagem, nunca ficou muito claro pra mim qual a diferença
entre Etnoecologia e Ecologia Humana. E olhe que sempre fui
chegado nas epistemologias! Quando alguém me perguntava isso,
eu sempre saía com a resposta: “tem gente que acha que é a
mesma coisa... Tem gente que acha que é diferente... Eu acho que é
a mesma coisa, só que é diferente”. Piada besta, mas que servia pra
me safar dessa pergunta saia justa. Brincadeiras à parte, sem
problemas, eu sempre assumia que não sabia.
Mas o destino é um danado! Prega peças na gente. Há dois
semestres atrás, nosso ilustre Governador do Estado da Bahia,
atropelando o Regimento das Universidades Estaduais baianas,
aprovou na surdina, uma medida que nos obrigava a ter uma
carga horária maior em sala de aula. De uma hora pra outra, foi
um correcorre geral de gente buscando disciplinas pra ministrar.
E eu, que não tive jeito, entrei nessa correria. Já ministrava
Etnozoologia e Metazoários e fiquei desesperado, pois nem tempo
teria para montar uma nova disciplina optativa. Fui no Colegiado
do curso e as disciplinas que constavam no currículo e que eram
um pouco do meu perfil, já tinham sido assumidas por colegas.
Restaram apenas duas: Mecânica Hidrostática de Espaçonaves
Siderais I (brincadeira! Não era isso, mas era algo tão estranho
quanto) e… Ecologia Humana! Disciplina criada e ministrada por
Zé Geraldo (José Geraldo Marques), que após sua aposentadoria,
foi assumida por Eraldo (Eraldo de M. Costa Neto), mas que não
estava sendo ofertada no momento. Juro, cheguei a pensar em
assumir a tal Espaçonave... na esperança de que ninguém se
matriculasse nela. O coordenador me disse que os alunos adoram
103
"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
disciplinas esquisitas e que as chances de aparecer alguém
querendo fazer era razoável. E aí eu teria mesmo que estudar
Espaçonaves, algo total e literalmente fora do meu universo! Tive
que pegar a danada Ecologia Humana!
Você pode estar pensando que isso era bobagem minha.
Que não tinha nada demais em assumir uma disciplina correlata.
Você está pensando isso porque não é um virginiano que precisa
de tudo bem esquematizadinho e organizadinho pra se sentir
confortável. Além de eu não dominar o assunto, não ter muitos
livros da área e de ser de uma disciplina que não foi criada por
mim, as aulas começariam dali há um mês! Estresse total!
E agora? O que fazer? Corri pra pedir ajuda para os
universitários! Pros professores universitários, melhor dizendo.
Olhe, se tem uma coisa que na vida acadêmica eu fiz bem foi
amigos! E eles não me faltaram nessa hora! Por Zap e por emails
saí perturbando meio mundo de gente, pedindo arrego! Arrego,
significa aqui textos slides e vídeos sobre o tema, pois muitos deles
já tinham tido e têm experiências em ministrar Ecologia Humana.
Perturbei Mourão (José da Silva Mourão/UEPB), Ângelo (Ângelo
Giuseppe Chaves Alves/UFRPE), Nivaldo (Nivaldo Nordi/ex
UFSC), Tigu (Gustavo Soldati/UFJF), Nivaldo Peroni (UFSC),
Natália (Natália Hanazaki/UFSC) e Eraldo (Eraldo Medeiros
Costa Neto/UEFS).
Todos me mandaram vários textos e slides, o que deveria
ter me tranquilizado... Mas não foi isso que aconteceu. Cada um
deles tinha sua visão, metodologia, abordagem particular da
Ecologia Humana. Lá vai eu ter que trabalhar esse calhamaço de
informações, junto com os livros que comprei correndo, faltando
duas semanas pra começar as aulas! Quero aqui lembrar que um
virginiano é um ser totalmente avesso à insegurança. Só quem é,
sabe! Pirei do cabeção!
Mas encarei! Pra início de conversa, tive que fazer um
apanhado dos conceitos disponíveis de Ecologia Humana, até para
definir melhor como seria a minha abordagem. Pra minha
surpresa, descobri que existem inúmeros desses e com elementos e
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"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
critérios também bem distintos. Depois de estudálos e de me
espantar com a abrangência do tema, resolvi criar o meu próprio
conceito, mas que não tive coragem ainda de publicálo. Seria algo
como “o estudo interdisciplinar entre tudo e uma caralhada de
coisas!” Juro que teve gente que gostou!
Aperreios à parte, tive que exercitar o que talvez seja o meu
maior talento acadêmico: sistematizar informações... e foi ótimo! À
medida que fui fazendo isso e me inteirando das coisas, parece que
o fio do novelo foi se desenrolando. E com isso, o virginiano foi se
acalmando e, pasmem, curtindo! A abrangência do assunto que
tanto assustou no início, virou elemento pra se usar nas aulas
reportagens (da BBC à Folha), filmes (de Dança com Lobos ao O
Sal da Terra), documentários (O Povo Brasileiro a Vento Forte),
músicas (de Tom Zé à Bjork) programas de tv (de Greg News a
Greg News mesmo!). Muito legal! Queria muito que essa fosse
uma disciplina diferente do contexto pedagógico, no geral, meio
careta do nosso curso... e isso facilitava. A ponte com a
Etnoecologia teve como base uma das definições que eu sempre
usei nas aulas, que foi a de Johnson de 1974, a qual diz que
Etnobiologia é “uma abordagem diferente para a ecologia humana
que extrai seus objetivos e métodos da etnociência”. Confesso que,
pelo meu desconhecimento, essa definição nunca fez muito
sentido, mas se mostrou reveladora. Adorei esse conforto
epistemológico! Juntei a fome com a vontade de comer e, a partir
daí, deslanchei!
Ajudou muito também o fato da disciplina ser optativa (tem
seu apelo pros alunos), não ter chamada (vem quem quer) e nem
prova (mas tem avaliação, tá?), ser dada no próprio Laboratório de
Etnobiologia e Etnoecologia (LETNO), amplo, claro e agradável,
com ar condicionado, em torno de uma mesona de granito onde
posso deixar minha térmica e cuia de chimarrão e conversar,
discutir descontraidamente com a moçada. Lógico, não fiquei livre
dos bocejos do pessoal (tem coisa que é chata mesmo, né?), mas
posso muito bem dizer que o brilho nos olhos deles é mais
frequente, o que, aliás, me alimenta de sobremaneira. É lógico
105
"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
também que eu me divirto bem mais do que eles. Mas nem
poderia ser diferente, pois pra eles é só um semestre de aulas, pra
mim tem a ver com opção de vida.
Gostei tanto que, quando a justiça nos deu ganho de causa
em relação à atitude inescrupulosa de nosso “querido” governador
(olho nele, pois tá doidinho pra ser presidente!), deixei de
ministrar Etnozoologia e fiquei com Ecologia Humana! Pois é, a
rapadura não é mole, mas... cara, tem se mostrado muito, muito
doce!
106
"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
“Pagar mico”. Isto é ruim ou bom para a
pesquisa etnobiológica em Educação?
Geilsa Baptista
Certa vez, buscando na internet a origem do "pagar mico,
me esbarrei com um texto da revista Super Interessante, o qual nos
conta que a origem desta expressão está num jogo infantil lançado
na década de 1950, chamado e “Jogo do Mico”. As cartas são
compostas por imagens de animais macho e fêmea. Os jogadores
precisam encontrar os pares. O mico é o único animal que não
forma um par e o jogador que termina com a carta do mico deve
“pagar o mico”. Imediatamente percebi que essa explicação estava
relacionada com aquilo que eu achava que era, ou seja, falar algo
inadequadamente, provocar alguma situação que causa vergonha,
humilhação... E, de repente, me peguei em altas gargalhadas,
lembrando dos micos que já paguei nas minhas pesquisas com a
etnobiologia! Como não disponho de muito espaço, darei foco nas
partes que considero mais relevantes e, ao final, responderei a
pergunta: Pagar mico, isto é bom ou ruim para a pesquisa
etnobiológica?
No final da minha graduação em Licenciatura em Ciências
Biológicas na Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS),
quando tive os primeiros contatos com a etnobiologia, entendi que
muitos aspectos precisam ser considerados para a realização de
uma pesquisa etnobiológica, entre elas: 1º) Escutar atentamente o
sujeito participante, despindose dos próprios preconceitos como
forma de melhor compreender a sua lógica; e 2º) Nunca desprezar
aquilo que o outro diz, ainda que nos pareça um absurdo. Isto era
e ainda é muito importante para mim, mas hoje vejo que estava
faltando algo!
Certa vez, acompanhei um professor da UEFS numa visita
com foco etnobiológico junto à comunidade indígena Pankararé,
Bahia. Eles não tinham escolas e isto me chamou a atenção,
107
"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
especialmente porque nos falavam com riqueza de detalhes acerca
dos aspectos biológicos e ecológicos do seu entorno! Além disto,
era nítida a alegria nos seus rostos quando interagiam conosco,
que chegamos ali sedentos para aprender com eles! E foi por essa
“sede de aprender” que mergulhei nas minhas emoções e quando
estava sentada com uma senhora indígena e seus amigos
provando uma melancia, eu lhe perguntei:
Como a senhora tira o caroço da melancia para que possa
comer?
A senhora caiu em profunda gargalhada e, apontando o dedo em
minha direção disse:
Olha gente, que engraçado, ela chama a semente de
caroço! Não é caroço moça! É semente!
Todos ficaram rindo de mim e, obviamente, eu também,
mas por dentro estava muito envergonhada, dialogando comigo
mesma a razão de eu pensar que aquela senhora não sabia o
significado de semente e a razão de eu não perguntar primeiro
como ela nomeava aquela estrutura. Saibam, ali eu paguei o meu
primeiro mico, demonstrando subestimar o outro, embora eu
soubesse que não foi esta a minha intenção.
A vida seguiu, e logo comecei atuar como professora de
biologia numa escola pública do estado da Bahia que atende
jovens agricultores. Segui com a etnobiologia, um campo
acadêmico que despertou em mim um grande desejo de investigar
como esses jovens concebem os seres vivos e fenômenos
biológicos, porque penso ser importante ensinar biologia de
maneira dialógica. Por esta razão, busquei realizar entrevistas com
os estudantes nas suas realidades culturais e, numa dessas,
quando combinei uma visita à casa de um estudante para
investigar como ele e sua família cultivam o milho, novamente,
paguei um mico!
Ao chegar na casa do rapaz, sua mãe me recebeu pedindo
para aguardálo na sala. Fiquei ali sentada por uns vinte minutos
quando, de repente, ele saiu vestido de paletó e gravata. Não
consegui conter o meu espanto e disselhe:
Oh, por que se arrumou tanto? Não precisava, poderia
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"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
ficar vestido como sempre fica, estaria bem!
E o estudante, demonstrando não ter gostado do que eu lhe
disse, falou seriamente:
Professora, a gente é da roça, mas sabe que ser
entrevistado por pessoas que sabem mais precisa estar arrumado e
preparado!
Confesso que fiquei muito mal, especialmente pela minha
pergunta e o fato de ele ter demonstrado que eu sabia mais que
ele! E comecei a me questionar: Para que eu falei aquilo? Teria
sido melhor escutálo, sem nada dizer com relação a sua roupa?
O estudante se sentou ao meu lado e percebi que ele estava
com muita vergonha! Talvez porque deu o melhor de si para me
receber e, como podem imaginar, a conversa não fluía. Então,
resolvi contornar a situação agindo como se nada tivesse
acontecido e deu certo, pois iniciamos e terminamos a entrevista
tranquilamente e com uma riqueza de saberes que me foi revelada
por aquele jovem agricultor!
O tempo passou e em 2005 durante as minhas leituras da
pesquisa de mestrado acerca das contribuições da etnobiologia
para o ensino e aprendizagem em ciências, pelo Programa de Pós
Graduação em Ensino, Filosofia e História das Ciências (UFBA e
UEFS) encontrei um argumento da socióloga Renate Brigitte
Viertler, de 2002: o “... pesquisador que, enquanto ele mesmo,
igualmente um ser humano, não poderia escapar aos ditames
culturais de sua própria origem social. Estudar culturalmente um
“outro” indivíduo, grupo ou população, significa também, tornar
se mais consciente de si mesmo enquanto postura e forma de
vivenciar o mundo...”. Este argumento me ajudou compreender
melhor as minhas ações diante da realidade investigada, de que
preciso me submeter a um deslocamento cultural, que seja
consciente. Isto se concretiza nas salas de aula, quando me pego
num monólogo e, automaticamente, ligo o meu “pisca e alerta”,
sinalizando que eu preciso escutar primeiro, e daí fluir nosso “bate
papo”.
Achava que bastaria relacionar de forma consciente os meus
pensamentos e a linguagem utilizada para expressálos, até que
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"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
um dia, já não mais atuando como professora na escola, mas
somente na universidade, quando pensava que não, lá estava eu
pagando mais um mico!
Tudo aconteceu em 2018, durante uma saída de campo com
uma turma da Licenciatura em Ciências Biológicas da UEFS,
quando visitamos uma comunidade quilombola localizada
próximo a Baia de Todos os Santos. Através de entrevistas com os
moradores, que vivem da pesca e da mariscagem, os licenciandos
deveriam investigar os saberes locais e elaborar recursos e
sequências didáticas para a promoção do diálogo intercultural nas
aulas de ciências e biologia das escolas da região de Feira de
Santana, Bahia.
Ao me aproximar de uma dessas entrevistas, percebi que o
nosso informante estava situado exatamente na parte do
manguezal onde uma fábrica lançava os seus dejetos. Fiquei muito
impressionada, pois percebi o ambiente poluído e o pescador
estava, no que eu considerei, sem nenhuma proteção contra os
possíveis malefícios do ambiente para a sua saúde. Assim, sem
lembrar dos micos que paguei no passado, perguntei ao
informante:
O senhor não acha que corre risco para a tua saúde estar
aqui nesta parte onde tem os resíduos da fábrica?
Aquele homem estava de cabeça baixa mostrando aos meus
orientandos a morfologia de um caranguejo e, de repente, olhou
nos meus olhos e disse:
A senhora veio de Feira de Santana aqui, certo?
Eu lhe respondi positivamente que sim e ele continuou:
Certamente deve ter corrido algum risco, mas veio porque
precisa, né?
Eu lhe respondi que sim e ele falou:
Pois é, assim somos nós, sabemos que todos os dias temos
perigo. Muitos aqui têm doença de pele, de respiração, mas
continua porque precisa professora!
Eu concordei com o que ele disse e depois fiz silêncio,
deixandoo continuar com a sua explicação, porém, estava
constrangida e, novamente, me fiz questionamentos acerca da
110
"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
minha relação com o pesquisado: O que a minha pergunta
significou? Por que voltei a fazer uma pergunta que partia apenas
da minha emoção diante do observado?
Tenho aproveitado esses questionamentos para pensar na
investigação etnobiológica envolvendo também as salas de aula,
ensino e formação dos professores. Vivemos tempos e espaços
onde o capitalismo e o cientificismo a ele atrelado marginaliza as
comunidades locais, especialmente nas escolas, que poderiam
auxiliar os jovens na ampliação das suas visões de mundo e
participações ativas nas sociedades, mas isto não acontece! Os
professores, não conseguem desvincular o imperialismo científico
das suas práticas... Isto seria um problema decorrente da cultura
escolar e/ou da formação inicial e continuada?
Tenho várias respostas, mas nenhuma delas é única e
aplicável em todos os casos, e penso que nenhum pesquisador as
tem. O que posso afirmar, concordando com Viertler, é que é
preciso mais consciência de si mesmo no encontro com o outro e
sua cultura, porém, não tenho como perder de vista que, como um
ser humano, tenho emoções que podem interferir nas minhas
ações como pesquisadora. Podemos transparecer as nossas
emoções sem refletir acerca da conveniência disto, tal qual
aconteceu comigo quando paguei os micos que vos conto aqui.
Muitos professores e pesquisadores operam dentro de uma
lógica etnocêntrica em que foram formados e se formam, e para
que mudanças aconteçam é preciso reflexões sobre e nas próprias
ações, como dizia Donald Shon na década de 1980. Essas reflexões
certamente nos ajudarão na conscientização, porém vejo que não é
tão fácil deixar de fora o eu emocional! Talvez a formação do
pesquisador precise incluir abordagens do campo da psicologia,
como da Inteligência Emocional proposta pelo psicólogo Howard
Gardner na década de 1980, a qual argumenta que podemos
desenvolver a capacidade de reconhecer e avaliar as nossas
emoções, conseguindo lidar com as suas influências nos nossos
pensamentos e linguagens. Creio que isto é possível através de
compartilhamentos entre os nossos pares e por um período
prolongado.
111
"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
Respondendo o questionamento que intitula este texto, digo
que sim, “pagar mico” é bom para a pesquisa etnobiológica, desde
que acompanhado de reflexões acerca dos próprios pensamentos e
emoções que fluem das relações com os outros e suas culturas. Na
condição de pesquisador(a), não podemos esquecer do universo
cultural do outro e nem do nosso próprio universo, que envolve
nossas percepções, pensamentos e emoções! Tenho conseguido
oferecer a mim mesma, aos professores e futuros professores de
biologia momentos de reflexões acerca do que pode significar ser
professor e pesquisador no campo da etnobiologia. Fazemos
nossas rodas de conversa, quando compartilhamos nossas
experiências, sentimentos e emoções sobre isso construímos nossos
significados. Os micos que paguei nas minhas pesquisas já foram
contados nas minhas salas de aula e no Grupo de Investigações em
Ensino de Ciências (GIEECUEFS) que coordeno, e foram tantos os
comentários, risos e conclusões, que prefiro deixar para um outro
momento, num outro causo!
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"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
Salvos pelo método...
Gilney Charll Santos
Foi em um daqueles dias corridos de trabalho de campo que
tudo aconteceu. Mas antes de contar o ocorrido, permitame que o
deixe a par de como era uma das minhas atividades no interior da
Floresta Nacional do Araripe Apodi (FLONA Araripe), sul do
Ceará, no tempo em que ainda fazia mestrado. Para fazer um
estudo quantitativo da remoção natural de diásporos de pequi
(Caryocar coriaceum Wittm.), várias estacas (paus) de
aproximadamente 160 cm eram fincadas ao redor de pequizeiros
adultos reprodutivos. Além disso, um detalhe você precisa saber:
para facilitar a localização dessas estacas em campo, as suas
“cabeças” (extremidades superiores) eram pintadas de vermelho.
Pronto, esse pequeno relato do procedimento metodológico será
suficiente para que entenda o desfecho dessa história.
Na FLONA Araripe, a rotina já fazia parte da minha vida.
Acordava cedo, tomava o café da manhã, vestia a roupa de campo
e me mandava para o mato, sempre na companhia do mateiro e de
um amigo de laboratório e parceiro de campo. Entretanto, em um
certo dia, já nas últimas campanhas, eu e o meu parceiro
decidimos dispensar o mateiro, pois concordamos que já sabíamos
percorrer sozinhos as áreas de estudo e, além disso, ainda
poderíamos economizar com o valor da diária dispensada. Sem
muitos recursos para financiar a pesquisa, infelizmente algo
bastante comum aqui no Brasil, achamos que essa seria uma boa
decisão.
Nas áreas de estudo, permanecíamos o dia inteiro, exceto
nos dias em que eu precisava voltar ao Recife de avião, e o único
voo era no meio da tarde, por volta das 15:00h. Nesses dias, as
atividades costumavam ir até às 12:00h, para dar tempo de voltar
ao alojamento, arrumar as coisas e seguir até o aeroporto da cidade
de Juazeiro do Norte, que ficara a cerca de 1h de carro do
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"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
alojamento, no interior da floresta. Entretanto, foi exatamente em
um desses dias que passamos por um baita de um “perrengue”,
que após o ocorrido foi motivo de muita reflexão e gargalhadas.
Estava cumprindo mais um dia de trabalho de campo, em
uma área/parcela de Cerradão de 1 ha, quando, de repente, o meu
parceiro de campo, achandose o grande conhecedor daquela área,
resolveu fazer o monitoramento por um caminho diferente do
habitual, com a finalidade de ganhar tempo. Acabei indo na dele,
afinal não seria nada mau ter mais tempo para se organizar para a
viagem que estava por vir. Assim, simplesmente o acompanhei em
silêncio por dentro da mata, que ia se “fechando” na medida que
caminhávamos. Achei que não tinha como nos perder, pois já
havíamos visitado aquela área tantas vezes que isso seria algo
improvável de ocorrer. Só que para o nosso desespero, a princípio
silencioso, aconteceu. Não esqueça que esse era um daqueles dias
que eu precisava voltar ao Recife de avião. Então, imagine o que se
passava pela minha cabeça. No mínimo, que iria haver o meu “no
show” no aeroporto.
Depois de já termos caminhado uns 20 minutos, o meu
companheiro de campo olhou para mim com os olhos arregalados,
e com a voz presa, em um tom angustiante, falou:
Meu amigo, a gente se perdeu!?
Serenamente, para não o deixar ainda mais aperreado do que já
estava, falei:
Te aperreia não que vamos sair dessa.
Na verdade, eu estava fazendo um esforço danado para manter
me calmo e não transparecer que estava tão aperreado quanto ele.
Porém, naquela hora, alguém tinha que manter a calma, não
é mesmo?
Passados uns 40 minutos de caminhada em círculo e nada
de encontrar a saída, preocupado com o horário do voo e ao
mesmo tempo com a nossa segurança, atinei para algo: pedi para
que o meu parceiro, bem mais leve do que eu, subisse em uma
árvore e tentasse avistar pelo menos uma das estacas fincadas na
área de estudo. Estava convicto de que se encontrássemos uma
daquelas estacas conseguiríamos voltar para a parcela e encontrar
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"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
a saída. Para aumentar ainda mais a nossa aflição, a primeira
tentativa foi sem sucesso. Caminhamos mais um pouco, a fim de
encontrar uma árvore mais alta e encontramos. Agora, na segunda
tentativa, com alegria, o meu amigo soltou a voz:
Tá acolá! Tô vendo a cabeça vermelha do pau!
Que alívio, leitor!
O meu parceiro permaneceu em cima da árvore e guioume,
no grito, até o local onde estava o bendito pau. Chegando lá,
também no grito, guiei o meu amigo até mim. No momento do
reencontro, houve muita comemoração e, com mais de uma hora
de atraso, o trabalho daquele dia foi concluído. Acredite, foram
minutos que pareceram uma eternidade.
Após o ocorrido, seguimos às pressas ao aeroporto. No
trajeto, refletimos bastante sobre os erros que cometemos e
chegamos às seguintes conclusões: 1. Em uma pesquisa no interior
de uma floresta, é preferível não tentar economizar com a dispensa
do mateiro; 2. Na ausência do mateiro, mesmo conhecendo a área
de estudo, é melhor não tentar encurtar caminhos, mas sim fazer o
velho “feijão com arroz”, ou seja, seguir pelas trilhas sempre
percorridas. Essas lições eu levei para o meu doutorado, que
também foi realizado na FLONA Araripe, e os erros aqui
cometidos jamais foram repetidos.
Ainda no trajeto até o aeroporto, também encaramos a
situação que acabara de acontecer com uma pitada de humor.
Agora, com o sorriso estampado no rosto, o meu amigo e parceiro
de campo dizia:
Rapaz, mas veja que legal! Fomos salvos pelo método, um
pau da cabeça vermelha.
Não conseguia parar de sorrir, diante dessa fala!
Ah, sobre o voo? Sim, deu para embarcar!
115
"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
Vertigem de rebojo
Gustavo Goulart Moreira Moura
Uma foto, uma linda foto... esparramado num “trapiche”
tentava reproduzir ao infinito aquele instante em que, entre dois
caícos, tombava um arcoíris ao oceano nascido de duas nuvens
que se destacavam no céu. Ambas refletiam o sol, como dois olhos
de sóis, que insistia em permanecer atrás de uma delas quando na
arcada deveria se aninhar. Na arcada um céu com as tintas do
poente da tempestade que acabara de passar... preto, roxo, rosa,
laranja, amarelo e até azul... um espectro de cores conviviam no
céu como eu jamais vira. Eu, me embebia nas cores...
desconcertado, inquieto, em infernos causados por tanta beleza; as
águas do Saco do Arraial, Lagoa dos Patos, também, mas calma,
serena... como se fizesse parte de tudo aquilo: do céu agigantado
na planície arenosa, do continente logo às suas margens e do
oceano numa outra margem que se sucedia a tatear a maior praia
do mundo... Transbordando de alegria por conseguir tornar
possível a partilha do momento, fui compartilhar, mais tarde, já
noite, mesmo que pelo visor da máquina digital. Adultos e
crianças ilhéus se aninhavam para ver e revêla... menos uma
velhinha que, serena, como se ressonasse as águas da Lagoa,
seguia sentada na outra ponta da mesa da cozinha: “Já vou aí lhe
mostrar, D. Nilza...”; “Tá bom”, respondeu ela com um leve erguer
de mão e balanço de cabeça. Desvanecido o grupo, levei a máquina
a deslizar por cima da mesa até que chegamos à outra ponta:
“Lindo, não é, D. Nilza?”; “Ah, é, isso é as nuvem do céu bebendo
água do oceano”.
Cambaleante, me sentei, e olhava no fundo dos olhos azuis
da velha a pensar como tudo aquilo, de repente, ficarame
estranho. D. Nilza pertencia a uma família e a uma comunidade da
Ilha dos Marinheiros, Porto do Rei, que eu convivia mais do que as
outras, era mais próxima ao meu campo de ordenação que a
116
"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
comunidade da Coréia, comunidade de estudo, que eu, até aquele
momento, quase não tinha ido, portanto, o cotidiano me pertencia
ainda menos.
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"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
Travessias identitárias
Gustavo Taboada Soldati
Sempre gostei bastante da “galera da clorofila”. Quando
criança, adorava aguar o jardim e sentia que elas ficavam muito
felizes. Na graduação, tempo de experimentações, tentei “viver de
luz”. Uma professora me questionou irritada “desde quando tu
tem cloroplasto? Nem parece que estuda Biologia”. Transitei por
alguns laboratórios de Botânica até entender que, apesar de minha
paixão, me faltava algo para ser completamente feliz. A
proximidade com agricultores e assentados pela reforma agrária
me fez entender que faltava “homens” e “mulheres”. Faltavam
pessoas. Descobri (apenas isso) uma tal de Etnobotânica e fui
brincar nos quintais do mundo...
Durante a minha primeira experiência, conheci o Seu Fábio.
Agricultor rústico que, além da lida na terra, tratava de fazer
longas ripas de eucalipto. Ao comprimentálo, impressionaramme
as suas mãos. Marcadas pelas atividades diárias, eram
notavelmente grosseiras, ásperas, rijas. Falo das mãos apenas para
introduzir os seus pés, aquilo sim me espantou. Seu Fábio nunca
tinha vestido um calçado, apenas um par emprestado em seu
casamento, me disse. Transitava pelas farpas de sua marcenaria
com muita destreza. Empolgado com o papo bom, marquei com
ele a minha primeira turnê guiada! Sim, imaginem a minha
felicidade. Caminharíamos pelo fragmento florestal no sábado de
manhã. Foi uma super produção. Calça, bota, perneira, camisa
comprida, colete cheio de bolsos, chapéu, facão. Lista livre e
gravador, na época aquele de fita cassete que a gente registrava
entrevista em cima da outra. Acha pouco? Ainda tinha os aparatos
botânicos, saco de coleta, podão, tesoura de poda. Não conseguiria
descrever como eu me sentia realizado, me sentia como um
verdadeiro biólogo. A primeira coisa que fiz ao avistar Seu Fábio
foi, evidentemente, reparar os seus “pés”. Buscava um calçado,
118
"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
afinal, andaríamos no meio do mato. “Bom dia, Seu Fábio, vamos
subir para a mata?” Hermeneuticamente pensando, minha
pergunta significava “já cheguei, agora já pode colocar o sapato
para partirmos”. Ele respondeu sereno, “vamos sim”.
Desconcertado, falei meia dúzia de palavras e perguntei
novamente, “vamos subir para a mata?” Novamente, “vamos
sim”. Hermeneuticamente pensando, a resposta dele dizia “a hora
que você quiser”. Imaturo, não agüentei e perguntei “mas o senhor
não vai calçar nenhum sapato?” “Meu filho, nem calçado eu
tenho”. Os pés que não eram pés de Seu Fabio fizeram a minha
primeira transição, exorcizar o biólogo jonesiano. O primeiro passo
havia sido dado. Se eu tivesse que caminhar junto aos agricultores
e agricultoras deveria romper com alguns preceitos.
Mais tarde, nas andanças pelo norte de Minas,
acompanhado do grande companheiro Reinaldo, conheci os
vazanteiros do São Francisco. Aprendemos sobre a agricultura de
vazante, sobre a arte da pesca. Conversamos sobre a diversidade
agrícola e soberania, uso do espaço e luta pelo território. Mas algo
me incomodava. À beira do rio, em solo mineiro, avistava a Bahia.
Depois de um tempo calado, perguntei ao vazanteiro que me
acompanhava, “tu é mineiro ou tu é baiano?” Acho que as minhas
experiências pernambucanas tendenciaram a pergunta. “Eu não
sou mineiro e nem bahiano, eu sou do rio. O rio é que me define”,
me disse. Hermes deixara de acreditar no pão de queijo e no
acarajé para conhecer a terceira margem roseana. Mais um passo
na transição. Identidade é autodefinição, auto reconhecimento. Sou
eu quem constrói o meu lugar de fala.
Meu batismo foi dado pelo mesmo Reinaldo, tempo depois.
Estávamos numa reunião com algumas lideranças tradicionais.
Acompanhávamos uma discussão sobre estratégias. Ao saber de
nós, calejado de vivenciar conflitos e lutar pelo livre acesso à
biodiversidade e ao território, uma das principais lideranças
geraizeira disse “nós não gostamos de biólogos”. Tentando
mediar, disseram “mas eles são biólogos do bem”. “É..., mas a
gente não gosta de biólogo”, retrucou irredutível. Eu já sabia que
biólogos não gostam de gente, mas entendi naquele momento que
119
"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
as gentes também não gostam dos biólogos. Não posso esconder
que a afirmação me incomodou por demais, muito mesmo. Apesar
dos erros, fizemos uma opção política de caminhar com os povos
tradicionais. Nossa história, ainda que curta, indica este
direcionamento, acredito. Sempre há um silêncio que antecede
grandes revoluções. Reinaldo, disse em altura moderada,
suficiente para a sua voz ser escutada, “eu não sou biólogo, sou
etnobiólogo”. Nunca um rompimento epistêmico me fez tanto
sentido.
Toda essa prosa gerou o questionamento que ora ou outra
se atreve a me provocar. Qual é o “meu território”, ou seja, qual é
o meu “lugar de fala”, a partir do qual eu tenha certo respaldo
histórico e político para sustentar posicionamentos? Numa
sociedade de correlações de força esse entendimento é necessário,
tanto que em todos os espaços populares de avaliação, construção
de análises de conjuntura e definição de estratégias sempre há o
momento para as falas dos territórios. Numa dessas experiências,
uma liderança campesina pernambucana me perguntou “como
está lá no teu território?” e fui enviado a diversos “lugares”. A
própria essência do “fazer etnobiológico” tornava essa resposta
difícil para mim. O romantismo de nossa prática me despertava o
desejo de “ser um agricultor”, a aproximação com quilombolas,
tradicionais e indígenas me dava a esperança de “ser um pouco
eles”. Entendo que sou um cientista, apesar da pequena, mas
considerável biodiversidade que embeleza meu jardim. Um
cientista que optou por dispor o seu conhecimento àqueles que
não fazem parte do processo de desenvolvimento ou não são a
prioridade. Àqueles que estão à margem das escolhas da sociedade
capitalista. Que a academia é um espaço de disputa e que dita a
“verdade” nunca foi segredo para mim, mas a certeza de que esse
é o meu território confesso que é recente. Foi uma dura ruptura,
confesso. Não posso e nem quero falar “pelos” meus parceiros,
prefiro falar “com” eles. Pode ser que no próximo volume esse
entendimento dicotômico que demanda um limite, um limiar, seja
desfeito, mas isso faz parte da travessia.
120
"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
Sete prosas para voar
Gustavo Taboada Soldati
Certa vez, numa banda da Serra, Dodô nos contou que
estava injuriada porque a vaca não estava produzindo leite. Todo
dia de manhã, quando ia para a ordenha não tirava nada. Era o
desespero acordar sem tomar um pingado. “Mas eu vou descobrir
o que está acontecendo, deve ter um bicho mamando na minha
vaca”, comentou. Dodô acordou mais cedo, noite ainda escura, e
foi caminhando silenciosamente até o curral. “Ocês num vão
acreditar, quando liguei a lanterna vi uma cobra mamando todo o
leite!” Pouco tempo depois, já em outra banda da Serra, comentei
“diz que tem cobra que bebe leite na teta da vaca” e um apanhador
retrucou “tem mesmo, eu já vi dessas também”.
*
Sem querer, cheguei a uma carvoaria. “Bão?” “Bão...”,
respondeu o carvoeiro. Assuntei o que tinha que assuntar, aprendi,
sem pretensão, um pouco sobre o ofício, os nomes dos buracos da
caldeira. Lembro que o mais próximo ao chão era o tatu. “Mas a
lida é bastante difícil, não é?”, perguntei. “Moço, difícil demais e
faz mal pra saúde. Certa vez estava ruim, tossindo demais. Fui
procurar um médico na cidade. Expliquei para ele que eu
trabalhava no carvão, estava sentindo falta de ar e que acreditava
que era a fumaça. Ele me perguntou quais plantas eu fazia carvão,
eu respondi que era de pereiro, angico, pau preto. O dotô disse
que era para eu não me preocupar porque era tudo páu medicinal.
O dotô disse que a fumaça era medicinal, fazia mal e curava
depois”.
*
“Além de todo esse conhecimento que o senhor nos
ensinou, das plantas da roça, dos quintais, nós também estamos
estudando os ‘pratos típicos’ da região. Cada lugar tem um prato
típico, num é mesmo? Para o senhor, qual é o prato típico daqui?”
“Como assim, menina?” Em resposta, gesticulando e com um tom
de voz mais empolgante, “qual que o prato que vocês mais comem
121
"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
aqui!?” “Uai, nos comê é com esses prato normal, esses prato de
vidro mesmo...”
*
O que diriam os quintais...? Um dia aprendi que “quintal” é
“onde as galinhas andam”. Assustei quando descobri que os
vazanteiros não criam quintais. “Porque?” “Uai, meu filho, num
adianta nós plantá pé de fruta nenhuma aqui, quando é época da
cheia, o rio leva tudo...” Depois de uma reflexão, seguiu “é, mas o
mesmo rio que leva é o rio que traz. Aqui aparece planta que nós
nunca havia visto...” Essa dinâmica temporal também me foi
explicada num assentamento recém conquistado. “Carrapicho
picão é bom pra dor de barriga...” “Onde o senhor consegue o
carrapicho picão?” “Eles ainda não chegaram... vão chegar”
“Como assim?” “É que nós acabô de abrir esse quintal. O
carrapicho picão ainda vai chegar. Tem umas plantas que anda
onde nós anda, mas elas demoram a chegar...”
*
Conversávamos na pequena e quente sala sob o olhar da
Santa. Meus olhos transitavam entre a minha interlocutora e o
quadro. Túnica vermelha, um ramo verde na mão esquerda e um
prato com dois olhos na outra. “Quem é?”, eu desconhecia a
imagem que me hipnotizava. “É Santa Luzia, sou devota. Meu
filho ia para a escola e ficava com muita dor de cabeça, não
conseguia estudar. Chorava muito, era um desespero. Ele queria
estudar, mas não conseguia. Depois de muita peleja, conseguimos
saber que ele tinha um problema na visão. A gente tinha que
comprar uns óculos, mas não tinha dinheiro, só conseguimos por
causa do Bolsa Família”. “Vocês recebem o Bolsa Família?” “Sim”
“E quanto que é?” “Sessenta e dois reais! Isso porque eu tenho dois
filhos”.
*
Tínhamos passados bons momentos de aprendizado no
quintal do “Seu Porfí...o”. Liderança local, era “Seu Porfí...o” para
cá, “Seu Porfí...o” para lá... Mas eu ainda não tinha entendido o
nome perfeitamente. Nas andanças pelo quilombo... “Ó, a Senhora
122
"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
é irmã do “Seu Porfí...o”, que coisa boa! A gente acabou de
entrevistar ele, mas a gente não entendeu bem o nome dele. Seria
bom colocar o nome certinho dele aqui na folha. O nome dele é
“Seu PorfíRio” ou “Seu PorfiLio”? Ela olhou assustada e descrente
com uma pergunta tão sem sentido e respondeu contundente, sem
hesitar e com um tom de normalidade: “Uai, é Porfííí....oooo”.
*
Discutíamos o direito de uso da biodiversidade e as
violações que a atual legislação sobre este tema trouxe aos
tradicionais. Depois de fazer uma análise muito profunda, a
raizeira conclui “eles [as empresas, a academia e o governo] nos
chamam de ‘detentores’ do conhecimento, como se os nossos
saberes fossem coisas a serem portadas. Nós, povos tradicionais,
somos ‘guardiões’, nunca detentores”. O sentido também muda
quando discutimos a agrobiodiversidades. O companheiro ressalta
“as sementes crioulas não são um ‘patrimônio da humanidade’,
mas patrimônio dos agricultores à serviço da humanidade”.
123
"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
Esperá pra ir quando dé... igarapé!
Jessé Renan Scapini Sobczak
Acordamos cedo. Chegamos na noite anterior pra
aproveitar bem o outro dia... e acordamos cedo! Tomamos café,
bem tranquilos, conversando, assistindo os primeiros noticiários
da TV e olhando o tempo, ou melhor, saber se estava ‘limpo’. Ah,
até o momento estava apenas eu e o Adriano no aguardo do
restante do pessoal. Logo mais chegaria a Cris, que havia ido
buscar o carro da instituição e junto com ela vinha a Priscila (que
trabalhava junto no mesmo laboratório) e também o Lima (outro
colaborador). Tínhamos como propósito realizar visitas às
comunidades de pescadores da região e apresentar um projeto...
Chegaram! Todos estavam ali, equipamentos, mantimentos e pé na
estrada. Não demorou muito e aquele céu parcialmente ‘limpo’
começou a se fechar e os primeiros pingos de chuva já podiam ser
vistos no retrovisor e o parabrisa começou a fazer seu serviço.
Aquele "pé na estrada" de asfalto encontrou o chão pela frente,
agora já não tão seco devido a chuva; nos aproximamos do
povoado.
Estavam nos aguardando, mesmo diante de tamanha
chuva, que naquela hora ‘engrossou’, mais pessoas estavam se
reunindo no local combinado. Tirando o pequeno atraso, tudo
correu bem! Encerrando, fomos convidados por um dos presentes
a ir em sua casa que ficava na outra esquina – e a chuva
continuava – entramos na casa e nos deparamos com a humildade
das pessoas ali presentes, com água beirando a canela, e
agraciados com um bolo, suco e aquele cafezinho. A prosa poderia
se estender mais, no entanto tínhamos que dar continuidade nas
visitas às outras comunidades. Saímos cheio de histórias e barriga
cheia.
Retornamos pelo mesmo caminho para cidade mais
próxima, e depois pegamos outro caminho... A Cris já tinha estado
124
"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
nesses lugares antes, assim como a Priscila, mas era novidade pra
mim, assim como pros outros. A paisagem exuberante, alguns
morros e vegetação fechada, sem movimento de outros
automóveis... até encontrarmos um igarapé. Num primeiro
momento cogitamos passar, analisamos melhor, escutamos um
senhor que estava de moto do outro lado que disse que o melhor
seria aguardar umas 4 horas... Levamos em consideração o que ele
disse, mas mesmo assim ficamos vendo alguma forma de passar –
até porque tínhamos marcado a reunião e estávamos sem sinal de
telefone para avisar.
Ficamos naquela de não saber o que fazer, quando não se tem
muito o que fazer... até que Adriano comenta, fumando um
palheiro, reiterando aquilo que o senhor havia dito: “Esperá pra ir
quando dé!”. E quando reparamos, o igarapé... quando reparamos,
estávamos todos nós com palheiros e discutindo várias questões
do projeto que estava se iniciando e, por incrível que pareça, não
teríamos um tempo como aquele para uma ‘reunião’. Proveitoso,
não programado e descontraído... essas foram aquelas horas que se
passaram até que o igarapé baixasse para passarmos. Já havia se
formado uma pequena fila de carros, pequena mesmo... e mesmo
que a reunião tivesse sido perdida, ainda tínhamos que dar uma
satisfação da demora em chegar, quando na verdade todos lá já
sabiam... igarapé!
125
"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
Cultivando memorias:
¿Cuántas historias caben en un choclo?
José Manuel Valencia Espina
A veces, total o parcialmente, uno se siente dueño de la
verdad, dada cierta acumulación de conocimientos y experiencias
sobre un determinado tema. Sea este un proceso químico, un
hecho histórico, la biología de un animal o cualquier otra cosa,
algunos de nosotros tendemos a pensar que conocemos todo o casi
todo sobre aquello. Incluso, y sin ánimos de grandeza, nos
sentimos con el poder y el deber de transmitir estos conocimientos.
Mi caso no difiere mucho de esta lógica. Me sentía un gran
conocedor de una planta en particular: el choclo. Conocido como
maíz en gran parte del mundo, en Latinoamérica recibe diferentes
nombres populares como elote en México, mazorca en Colombia,
jojote en Venezuela y choclo en casi todos los demás países,
incluido Chile, mi país de origen. Fue aquí, en su zona central, en
donde trabajé durante 5 temporadas estivales en la polinización
del maíz. Básicamente, nuestro trabajo era el que hacen las abejas y
otros animales: transportar el polen al lugar adecuado de la planta
para que germine y produzca frutos y semillas.
Una vez terminado el año curricular y, acompañado de mis
hermanos y un grupo de amigos, salíamos de la casa de nuestras
familias por varias semanas a trabajar de “temporeros”. De lunes a
lunes, de sol a sol y sin recibir siquiera protector solar,
trabajábamos en medio de los infinitos y contaminados campos de
cultivo. Digo contaminados porque cuando entré a la universidad,
comprendí por qué a veces, posterior a la aplicación de “ciertos
productos”, varios de nosotros presentábamos mareos y dolores
de cabeza. Entendí lo que eran los agrotóxicos, los monocultivos y
algunas consecuencias que enferman a la naturaleza como, por
ejemplo, la sequía y el cáncer. También me hizo sentido porque
nuestro trabajo era el de imitar la función que cumplen las abejas,
126
"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
el viento y otros seres vivos.
Desde una óptica diferente, pero también ligada a la
universidad, tuve la oportunidad y el privilegio de conocer a un
grupo de personas que constantemente me enseñan a desaprender
y luego volver a aprender. Entre casualidades y causalidades,
comencé a visitar una aldea indígena perteneciente al pueblo
MbyáGuarani, en el sur de Brasil. Fue aquí en donde descubrí
otras formas de entendimiento de aquello que yo ya daba por
sabido. Comprendí y me situé en un espacio donde la lógica de la
vida tiene otros ritmos y expresiones, desconocidos para mí hasta
entonces. En fin, tuve el privilegio de adentrarme en un mundo
que canta, palpita y vive una resistencia histórica, al igual que
varios otros mundos de saberes. Fue aquí, en la Tekoá Pindó
Mirim, en donde conocí otro mundo de saberes y relaciones, con y
desde la naturaleza. Y es aquí también donde sigo aprendiendo
sobre los choclos.
Entre el humo del fuego y del tabaco, aprendí que el origen
del maíz es Mesoamericano y que los MbyáGuarani lo cultivan
hace cientos de anos. El avaxi no es solo una planta nutritiva, sino
que también es un alimento sagrado que convoca una importancia
medicinal, cultural y espiritual de los Mbyá Guarani. Fue en estas
tierras y gracias a estas personas que me acogieron de forma tan
sencilla y sincera, que aprendí que el avaxi no tan solo nutre el
cuerpo, sino que también el espíritu.
En la aldea lo he comido cocido, asado, como harina,
incluso bebiéndolo como jugo. Varios son los platos que las
mujeres Mbyá Guarani cocinan, como el mbojapé, una receta
preparada con harina de maíz y agua, cocinada en las cenizas del
fuego. Fuego que además de ser imprescindible y vital en la vida
del pueblo Mbyá Guarani, también es sagrado, como los choclos.
En una tarde de primavera, durante el tiempo en que el
maíz emerge de la tierra y comienza a crecer en altura, acompañé y
trabajé junto a la aldea en los cultivos de maíz. Tal y como se
representa la diversidad de la propia vida, junto a los choclos
también estaban presentes otras especies, como la mandioca, el
maní o las sandias. Mientras arrancábamos las plantas no
127
"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
deseadas, les comenté brevemente mis aventuras con el maíz,
desde historias familiares, hasta las largas jornadas de trabajo. Fui
desentrañando algunas memorias que llevaban más de 10 años
guardadas en mi baúl de los recuerdos. Entre risas y bromas,
comencé a contarles todo lo que yo sabía sobre cuidados y
particularidades de los choclos. Durante varios minutos intenté
comunicar todo lo que algún día había aprendido. Desde la
distancia óptima para plantar, pasando por el tipo de suelo y el
significado químico del color de sus hojas, atiborré de información
a mis colegas de labores. Llegado un momento, uno de los
indígenas me interrumpió y me pregunto qué sabía yo – que tanto
se supone que sabía – sobre la reproducción del maíz. Dadas mis
ganas de seguir comunicándome, recité como loro varios de los
tecnicismos que aprendí tanto en el trabajo como en la
universidad. Comenté cómo la polinización era un servicio
ecositemico fundamental, la importancia del viento, y varias otras
informaciones que, al parecer, sólo a mí me hacían sentido. Hablé
sobre madurez sexual, polen, tubos polínicos, polinización
cruzada, estigmas, pistilos, panojas, entre varios otros.
A la vez que hablaba, una voz en mi cabeza se preguntaba
si aquella explicación hacía sentido para ellos, como hacía para mí.
Mientras esto acontecía, todos me escuchaban atentos,
intercalando su atención con algunas risas. Unos minutos después,
el cacique de la aldea, que desmalezaba como uno más entre todas
y todos, se acerca y me dice: “¿Entonces es así como los juruá ven y
entienden del maíz?”. (Los juruás somos todos los no indígenas).
“Ustedes son expertos en complejizar algunas cosas que para
nosotros son sencillas. Para nosotros el maíz también se reproduce
gracias al viento…es el viento quien escoge quién se casa con
quién…los maíces se casan entre ellos con la ayuda del viento y así
producen sus frutos”. No era la primera vez que Arnildo, el
cacique de la aldea, me estimulaba e incitaba a (re)pensar ciertas
creencias que muchas veces y sin cuestionarnos, damos por hecho.
En ese momento, la invitación y el llamado son claros:
descolonizar nuestras mentes y abrir nuestros corazones y
imaginarios.
128
"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
Entre matrimonios y polinización cruzada, hay un elemento
en común que traspasa todo tipo de lógica asociada a los choclos,
me refiero al agua. Reproducción simbólica de la vida en nuestro
planeta, el agua también es la frontera más extensa de países como
Chile y Brasil. Se estima que son necesarios 70 litros de agua para
que una planta de maíz pueda desarrollarse plenamente. Pero,
¿Será que todos quienes cultivan choclos tienen la misma
posibilidad de acceso a este otrora bien común?
Mi memoria me recuerda que el acceso, la cantidad y la
abundancia de agua que los choclos monocultivados tenían es
totalmente diferente a la nula o escasa capacidad de riego que
tienen los indígenas. Probablemente si ellos tuviesen acceso a las
tierras que les fueron despojadas, y en donde el agua no fuese una
limitante, las cosechas serian bastante más abundantes de lo que
son. Pero, la realidad es otra. El lugar que les fue asignado hace
más de 20 años es un puñado de hectáreas, que antes de su
llegada, era ocupado por plantaciones forestales de eucalipto. Un
lugar en donde abundaba la infertilidad y la tierra seca, ellos y
ellas, en base al empuje y a la convicción de sus ideas, se las han
ingeniado para reforestar y darle vida al que ahora es su espacio,
su aldea.
El contexto actual en el que viven muchas familias
indígenas está marcado por inseguridades alimenticias,
nutricionales, hídricas y energéticas. Esta cruda realidad es parte
de una violencia estructural que los pueblos originarios vienen
sufriendo y combatiendo hace combatiendo hace cientos de años.
Pese a este genocidio, algunas historias siguen siendo contadas y
vividas por sus protagonistas. Según Ailton Krenak, historiador y
filósofo indígena, una de las mejores maneras para atrasar el fin
del mundo es poder seguir contando historias, principalmente
aquellas que nos muestran la riqueza y diversidad de estos
mundos existentes, a veces olvidados, perseguidos, silenciados,
pero que aun así, continúan (re)existiendo y contándolas.
Esta es apenas una más de los cientos de historias que se
siguen contando en Latinoamérica. Por mi parte, yo me sigo
preguntando: ¿Cuántas historias y memorias caben en un choclo?
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"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
A pernoita quilombola em Porto Trombetas
Juliana Cardoso Fidelis
Quando fazia campo no fim do dia 12 de maio de 2018,
acompanhei seis dos oito coordenadores das comunidades que
formam o Território Quilombola Alto Trombetas II e que saíam do
porto de Oriximiná, no Oeste do estado do Pará, a bordo do
Comandante de Curuçá em direção ao Alto rio Trombetas. A
pequena embarcação estava carregada de alimentos retirados da
sede da Associação das comunidades Remanescente de Quilombo
de Oriximiná (Arqmo), os quais haviam sido enviados por
empresários de Belém em troca da isenção de impostos devidos ao
governo do estado. No barco, os quilombolas amontoaram em
pilhas os fardos de arroz, feijão, macarrão e farinha. As pilhas de
alimentos foram identificadas e agrupadas pelos integrantes da
coordenação executiva da Associação das Comunidades
Remanescentes de Quilombo do Alto Trombetas II (ACRQAT) e
não poderiam ser realojadas após essa separação cuidadosa, cujo
objetivo era facilitar o posterior desembarque em cada
comunidade do território. Assim, no Comandante de Curuçá, a
locomoção estava difícil e a subida, pesada. Embora os tripulantes
contassem histórias para animar o percurso a montante do rio
Trombetas, o maior da região, passando por várias comunidades
ribeirinhas e quilombolas. Parte deles já havia baixado o rio
juntamente com outros comunitários que, aproveitando a carona,
adiantaram atividades na cidade. Para mim, a subida era
especialmente cansativa, porque já estava há mais de dez dias em
campo e o percurso até a cidade já havia sido feito algumas vezes
durante a luz do dia. Marquinho, um dos homens de confiança no
território, estava na função de capitão da embarcação, substituindo
André, que a conduzira quando estivemos próximos às
comunidades do baixo curso do rio. Assim, seguindo as
precauções do comandante interino Marquinho, a rede na qual eu
130
"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
dormia estava atada próximo ao teto da embarcação, a salvo de
qualquer acidente que pudesse ser provocado por um banzeiro
forte que jogasse água no meu caderno de campo ou no meu
computador, comprometendo, assim, o equipamento que
costumava ser solicitado pelos quilombolas nas reuniões da
associação em que eu estivesse presente. Todos, cansados pela
subida demorada, encontraram uma maneira de se acomodar para
conversar “sobre as coisas do território” e sobre os “causos” que já
haviam presenciado em outras viagens, subindo e baixando o rio
Trombetas. Em meio às brincadeiras para passar o tempo,
questionei sobre a navegabilidade do rio durante a noite, já que
seu curso ora é mais largo, ora mais estreito, seguindo sempre um
corredor de água negra de onde se vislumbra a floresta verde de
grandes dimensões. Da pequena embarcação, a água é vista de
perto, e a floresta é nitidamente visível, ao contrário do que ocorre
quando viajamos nos barcos de linha que partem de Santarém. A
luz do sol dava lugar à escuridão, mas Marquinho era guiado por
André, conhecido na região por ser “consertador” experiente e
exímio navegador. Eu estava receosa diante das seguidas
“batidas” da embarcação na água. Fazia dias que não utilizava um
banheiro, então comecei a lavar as pernas e os braços nas ondas
que se formavam quando batiam nas paredes da embarcação. Já
estávamos próximos à Floresta Nacional Saracá Taquera e à
Reserva Biológica do Rio Trombetas. Navegando um pouco mais,
vejo uma cena, no sentido empregado por Vincent Crapanzano.
Encontravame sentada na lateral do barco e próxima à cabine de
navegação, precisamente entre a água e o chão de madeira quando
percebi que dois faróis se aproximavam, a cerca de 30 metros da
embarcação. Eles iluminavam a margem do rio, próximo da mata,
e traziam à minha memória as histórias contadas por meus
familiares que viveram durante muitos anos em comunidades,
transitando e dependendo do rio para praticamente tudo. A água
do rio se agitava, batia sucessivamente na embarcação e todos
estavam em silêncio. Eu segui com os olhos aquela luz que
chamava atenção na medida em que se aproximava e me fazia
pensar no que minha avó materna sempre contou, de todas as
131
"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
vezes que precisou atracar o barco de pesca de meu avô quando
avistavam no rio os olhos da Cobra Grande, senhora guardiã das
águas, mãe de todos os encantados. Sempre existiu um grande
respeito e temor em volta das histórias de pescaria na região de
Santarém, lugar onde nasci e cresci, então, naquele momento,
associei a cena à existência/presença da cobra. Entrei na cabine de
navegação, onde se encontravam os experientes navegadores
daquele rio e questionei, da forma mais polida que podia, sobre a
real necessidade de seguir com o barco àquela altura da noite,
diante do agito das águas, indo ao encontro daqueles olhos dos
quais já ouvira muito falar. Além de mim, ninguém mais havia
feito tal associação, mesmo sendo o rio Erepecuru conhecido pelas
histórias de encantados, dentre eles a própria cobra grande, figura
mítica que costuma viver nos fundos das águas e costuma aparecer
aos pescadores. Os homens procuravam atar suas redes ou se
deitavam na proa da embarcação, enquanto Marquinhos e André
pareciam se divertir com as minhas perguntas e seguiam
tranquilos subindo o percurso. Aquela imagem talvez tenha sido
motivada por minha angústia por estar quebrando ali um contrato
moral de navegação, pois já passava das onze horas da noite e, o
horário me parecia impróprio para realizar tal tarefa. Ainda rindo
da situação, Marquinhos, que sabia por onde navegava, afirmou
que não havia cobra e sim mineração; e os faróis, que para mim
eram olhos da cobra, não passavam de dois sinalizadores que, à
noite, direcionam os navios até o porto de abastecimento de
bauxita em Porto Trombetas (PTR). O potencial narrativo da cena
por mim formada fora negado, diluindose diante dos meus olhos.
Estávamos entrando na “área da mineração”, onde eu já estivera
por tantas vezes. Passando por mais alguns sinalizadores,
finalmente chegamos à Company Town (Cidade Companhia). Sob
o calor inclemente do mês de maio, típico da virada do inverno
para o verão, vi do porto pequenas embarcações que chegavam e
saíam de PTR com “trabalhadores das minas”, vindos de
comunidades não tão próximas, que recorrentemente ocupam
vagas nos empregos temporários na Mineração Rio do Norte.
Naquela noite, o “Comandante de Curuçá” também atracou no
132
"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
porto para que a tripulação descansasse até a manhã seguinte. No
entanto, quando atracamos, a gente que dormia nos barcos tratou
de compartilhar informações sobre assuntos variados, desde o
número de fichas do ambulatório até o recrutamento para novos
postos de trabalho, tomando o espaço como ponto de comunicação
e socialização no Alto Trombetas. O porto conta com uma boa
estrutura de pavimentação, segurança e limpeza, constituindo um
espaço importante na dinâmica local, como me disse José Pinto,
feirante e comunitário do território: “No porto se faz o mais
necessário, lá se faz qualquer negócio e qualquer conhecido
chega”. É nele que se troca favor, se compra e se vende
mercadorias primordiais para o dia a dia dos moradores locais
como a gasolina, o diesel e alimentos “da cidade”,
industrializados. Dali é fácil avistar a bauxita explorada sendo
escoada no interior de navios tipo Panamax, por meio de uma
grande estrutura de ferro de cor vermelha. Do lado oposto a essa
estrutura, se encontram pequenos alojamentos flutuantes feitos
para os empregados contratados por prestadoras de serviços e
uma estreita passarela onde lanchas e barcos vindos da região
atracam, com passageiros e cargas. Em terra estão a sede
administrativa do ICMBio, a feira de venda de produtores rurais e
extrativistas, um pequeno ambulatório ligado à estrutura da feira,
duas sedes administrativas de cooperativas quilombolas, agências
de bancos privados, pequenos comércios, ponto de táxi, bar,
lanchonete/restaurante, escritórios de advocacia/contabilidade,
além da guarita que controla a entrada e saída de pessoas no
interior da company town. Ali, na beira do rio, foi o local onde
pernoitei pela primeira vez junto com comunitários do território
Alto Trombetas II. Assim como nós, havia grupos que dormiam
em pequenas embarcações que, como compreendi posteriormente,
funcionam como acampamentos/moradia de empregados
temporários da MRN. Muitas vezes, essas embarcações onde se
“dorme, se banha e se come”, acabam servindo de suporte
logístico para quem passa dias esperando atendimento médico no
ambulatório da feirinha ou no hospital da mineração. Nesses
barcos é comum encontrar feirantes e algumas famílias em
133
"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
“baixada” para Oriximiná, mostrando as facetas do trânsito em
torno da company town. Era a quinta vez que eu estava em
temporada de campo, subindo e baixando o rio Trombetas. Nunca
havia dormido no porto. Posso dizer que pernoitar não é uma
tarefa corriqueira, é preciso motivos para isso, uma finalidade,
pois como relatou Deuzilene, filha de Marquinho: “ninguém
pernoita no porto porque gosta”. Naquela ocasião, Marquinho, o
articulador da ACRQAT e homem respeitado na região, chamou
atenção para a embarcação atracada ao nosso lado. Tratavase de
um barco que alojava trabalhadores da comunidade Jamari,
contratados temporariamente. No mesmo barco estavam esposa,
filha e dois netos de Marquinho, que aproveitaram a subida de
final de semana dos homens às comunidades para baixar com eles
e pernoitar em PTR. Segundo elas, no porto encontrariam com
Marquinho para pagar a estadia na embarcação com um pouco da
gasolina conquistada na “parceria” entre a MRN e a ACRQAT,
que possibilitara a busca dos alimentos em Oriximiná. Assim,
dividindo espaço, cobertores e até redes na embarcação de
pequeno porte, estavam trabalhadores, crianças e mulheres, dentre
elas uma grávida. Enquanto os primeiros articulavam uma forma
estratégica de permanecer no trabalho, acampando no porto para
garantir o emprego, os demais arranjavam uma forma de acessar
atendimentos e consultas médicas sem precisar enfrentar mais
viagens, dificultadas por falta de recursos e meios de troca para
permanência no porto. Quem tivesse conhecidos e parentes mais
próximos vivendo no TQ vizinho Boa Vista, ou na comunidade do
Moura, conseguia “dar seu jeito de passar os dias”, como explicou
Deuzilene. Ela havia “baixado” com moradores da comunidade
Jamari, que estavam trabalhando nas minas, e explicou que a
quem não contava com tal suporte de acolhimento restava pagar
ou negociar aluguéis de casas na Ilha do Ajudante, situada logo à
frente de PTR , ou permanecer nos acampamentos às margens da
cidadeempresa, pernoitando nas embarcações atracadas. Por
morarem, acamparem no porto, viverem de aluguéis em um
espaço fora do empreendimento, os quilombolas são também
134
"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
conhecidos como a gente do “beiradão”, que não deveria estar na
company town e se aglomera, literalmente, nas margens (do rio).
Ali, trabalhadores, feirantes e pessoas em busca de consultas
médicas construíam e articulavam, em tempo real, estratégias
distintas para entrar na cidade fechada, esperando de “barco em
barco, à sorte do porto”, o melhor meio de fazêlo. Esse é um
retrato comum no dia a dia de quem pernoita para conseguir
adentrar a cidade da mineração e a sua estrutura, acionando redes
de troca e reciprocidade para não voltar para casa sem conseguir
seu intento... e “tentar seus direito”. Compartilhando os dias com
os quilombolas aprendi que pernoitar possui um significado maior
que julgara possuir, significa mais que a espera, mais que a
dormida. Pernoitar é estar de barco em barco, à sorte do porto.
135
"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
Ode aos povos das águas
Larice Almeida Marinho
A ilha que leva o nome do Santo oferece mais do que dias
regados a sol e águas refletindo tons de vida. O seu nome, apesar
de homenagear o Santo, não possui apegos às tradições paroquiais.
Na verdade, aqui a vida assumiu seu próprio ritmo. Os caminhos
de seu cotidiano são fluídos e em nada se parecem com a
linearidade do pensamento forasteiro. Os rios norteiam a maior
parte das “estradas”, quer seja com seus nomes ou braços, braços
que abraçam forte as ribanceiras. É mais do que um abraço. É o
firmar constante de toda a história que esse lugar guarda, com
todos os processos fisicos e de alma, com os quais se pode contar.
A pedogênese narra temporalidades tanto expedientes, como o
subir e descer das águas, quanto duradouras, como as formações
da Ilha. O barro que está em todo lugar, permite ver que a água é a
vida que flui e influi em tudo. A água é parte do ser, que já se
orienta em função dessa fluidez constante.
Singularmente, a várzea é feita de patamares. E cada um
deles possui variações, gradientes de suas intercorrências. O verde
é soberano, mas há verdes dentre verdes e cada um deles
representa um conjunto vivente. Com a relva aquática
contrastandose com o barro, surgem as barreiras espelhadas, que
se estendem notavelmente pelos rios à medida que caminhamos
pela estrada que é o Rio Amazonas. Uma pintura constante que
não sibila.
As pessoas vivem em torno de outro tom, mais escuro,
desenhado através das copas das árvores frutíferas, árvores como
os ‘muricizais’. Conforme a paisagem se torna mais densa,
encontramos casas, roças e muitos sorrisos. A vida não tem, em
sua forma mais simples, fronteiras.
Com uma beleza multiforme, a várzea evoca sentidos,
através da vastidão de seus cheiros, texturas e sabores.
136
"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
Os pássaros andam sempre, à depender da espécie, em
bando, bem como as pessoas. A caça/pesca do pirarucu também
acontece coletivamente. Cada um partilha da força que tem para a
comunidade, todos os dias, para festejar suas existências, suas
lutas e a comida, que se respeitada, dá sempre e com prazer.
137
"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
Falem com o Marcão!
Lin Chau Ming
Era o primeiro congresso de Botânica que participaria, com
apresentação de trabalho na forma de resumo. Goiânia, no Estado
de Goiás, em 1991. A participação em congressos científicos é
sempre importante para diferentes coisas, como divulgar os
resultados de algum trabalho realizado, mas o meu objetivo
principal era conhecer e entrar em contato com pessoas que
trabalhassem com plantas medicinais, foco de meu trabalho como
extensionista rural da Emater – Paraná, e que era também uma
demanda que surgia das famílias dos agricultores familiares do
município onde eu trabalhava, Rio Branco do Sul, na região
metropolitana de Curitiba.
Num intervalo de sessões, li, num pequeno cartaz escrito à
mão em um papel sulfite, um convite que me chamou a atenção.
Haveria uma reunião para os interessados em trabalhar na
Amazônia, indicando também o dia, horário e local. Nossa! Pensei,
é uma chance para eu satisfazer um grande desejo, o de ir
novamente para lá e poder fazer alguma pesquisa na região,
naquela floresta. Já havia ido a Manaus e a Marabá, no final da
minha graduação em Agronomia, e conhecido um pouco da
floresta e os habitantes amazônicos, tendo me encantado com
tudo. Ter a chance de poder retornar àquela região seria fantástico.
Anotei as informações, extasiado.
Em geral, imaginei, convites desse tipo, e divulgados em
congresso de Botânica, onde há a presença de milhares de
estudantes e profissionais que trabalham com plantas, certamente
atingiriam o interesse de muitas pessoas, então achava que haveria
muitos interessados e candidatos para esse convite. Iria mesmo
assim para a reunião, na expectativa de ver o que um novato como
eu, poderia conseguir.
Dia marcado, fui com uma pequena antecedência ao local
138
"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
do encontro, gosto de chegar cedo aos compromissos. Havia
apenas duas pessoas. Talvez tivesse me enganado de sala. Que
nada! Perguntando àquelas duas pessoas, a mulher, Profa. Nívea
Fernandes, respondeu que a reunião era ali mesmo, não tinha
entrado em local errado. Apresentoume ao homem que estava
com ela, Douglas Daly, botânico do Jardim Botânico de Nova
York. Mas como? Cadê os interessados? Fiquei perguntando a
mim mesmo. Depois de alguns minutos, chegaram mais duas
pessoas. E não chegou mais ninguém, sendo então iniciada a
reunião.
Era o convênio que o Jardim Botânico de Nova York havia
celebrado com a Universidade Federal do Acre para projetos de
pesquisa botânica naquele Estado. A profa. Nívea e o Dr. Douglas
estavam divulgando o convênio em busca de interessados.
Acharam apenas 3, para minha alegria, pois haveria menos
“competidores”. Explicados os objetivos, os critérios e os
procedimentos, cada um dos candidatos presentes deveria
escrever um projeto e encaminhar para as duas instituições.
Estava sempre acompanhando os noticiários ambientais e
políticos no Brasil (e no mundo) e me animava propor um trabalho
com plantas medicinais na Reserva Extrativista Chico Mendes,
unidade de conservação recém formada pelo Governo Federal,
fruto da luta realizada por seringueiros acreanos, liderados pelo
Chico Mendes, pela garantia da posse de terra aos seringueiros e
conservação das florestas. O líder seringueiro havia sido
assassinado alguns anos antes e a Reserva Extrativista recebera o
nome em sua homenagem. Foi o que fiz. Escrevi o projeto, enviei
para os dois responsáveis, e em poucas semanas, recebi o sinal
verde da aprovação. Minha alegria foi indescritível! Chance de
retornar à Amazônia e agora poder trabalhar com os seringueiros
em locais onde a floresta era muito bem conservada.
Segui os ritos oficiais e constava deles, a necessidade de ter
autorização da entidade que representasse aquela categoria de
trabalhadores, o Conselho Nacional dos Seringueiros (CNS),
formado em 1985, durante o 1º Encontro Nacional de Seringueiros,
realizado na Universidade de Brasília, englobando também outros
139
"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
extrativistas, na luta pela defesa da floresta e reforma agrária na
Amazônia, como contraponto a uma instituição do Governo, o
Conselho Nacional da Borracha, que fazia as normativas para a
produção e comercialização da borracha.
Para surpresa minha, o CNS havia negado a autorização.
Não sabia o porquê. Nem a Profa. Nívea e tampouco Douglas
Daly. Ela já havia tentado conseguir uma explicação, sem sucesso.
Por telefone, ela sugere, como última alternativa, a minha ida a Rio
Branco, onde ficava a sede da entidade, para uma discussão direta
com seus representantes. Separei um pouco do dinheiro de minha
bolsa de mestrado e comprei a passagem aérea à capital acreana.
Fui recebido pessoalmente pelo presidente do CNS, Júlio
Barbosa, seringueiro morador do Seringal Dois Irmãos, em Xapuri,
parte integrante da RESEX Chico Mendes. Participou de vários
empates com Chico Mendes. Empates são reunião de seringueiros
e seringueiras que se organizam e vão ao encontro dos locais onde
estão sendo feitas as derrubadas, no sentido de impedir, empatar,
a derrubada. Naquela ocasião ele estava em uma posição de
destaque na luta dos seringueiros por programas de políticas
públicas para o desenvolvimento das diferentes RESEX’s que
haviam sido formadas na Amazônia, em seus planos de manejo.
Estava acompanhado por dois técnicos, um deles engenheiro
florestal e outra, uma engenheira agrônoma, Andrea Alechandre,
hoje professora de Agronomia na UFAC.
As justificativas para a negativa dada pelo CNS consistiam
em alguns itens: 1. Meu projeto seria sobre plantas medicinais,
uma temática sensível nas questões de potencial exploração
econômica e patente por parte de indústria farmacêutica; 2. Seria
feito na RESEX Chico Mendes, local de recente mobilização dos
seringueiros e estava sob os olhares constantes da mídia do Brasil e
do mundo; 3. O projeto seria financiado por uma instituição
estrangeira, americana, o Jardim Botânico de Nova York; 4. Eu não
era nativo do Brasil, apesar de naturalizado.
Conclusão do CNS: a preocupação de eu ser um “biopirata”
era grande, e eu poderia enviar os materiais coletados na RESEX
para os Estados Unidos e de lá para as indústrias farmacêuticas
140
"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
interessadas, e seria mais um caso de biopirataria, com sérios
prejuízos para os seringueiros e ao Brasil, então, o projeto não seria
autorizado.
Claro que a tudo isso contraargumentei, um por um, item
por item. O projeto dava garantia de segurança e soberania para o
Brasil e para as comunidades. Destaquei vários pontos que
tocavam diretamente nessas questões, mesmo antes da
regulamentação feita pelo Governo Brasileiro em 2001, aliás, devo
ter sido um dos primeiros a fazer isso no Brasil.
Propus um contrato assinado entre as partes; reconhecia o
direito que os seringueiros tinham dos conhecimentos tradicionais
sobre essas plantas; garantia que o projeto não tinha objetivos
econômicos; propunha contrapartidas acordadas pelas partes;
permitiria o acompanhamento e participação de um seringueiro
durante todo o meu trabalho de campo, designado pelo CNS;
publicaria um livro com os resultados do projeto, escrito em co
autoria com seringueiros e que seria uma forma de comprovar a
propriedade intelectual dos seringueiros sobre os conhecimentos
tradicionais, e o livro seria distribuído gratuitamente nas
comunidades da RESEX Chico Mendes; as minhas coletas seriam
em número mínimo necessário (6 duplicatas) e haveria o envio de
apenas duas duplicatas ao Jardim Botânico de Nova York, o
restante permaneceria no Brasil. E as duas que seriam enviadas ao
exterior passariam por um “spray” de produtos tóxicos, para
dificultar a identificação dos componentes químicos da planta em
eventual extração não autorizada.
Também não queria colocar meu nome, minha reputação
profissional em jogo, mas os técnicos e o presidente do CNS foram
irredutíveis.
A mim não havia outra alternativa senão agradecer a
oportunidade pela reunião e voltar a Botucatu, mas num instante
final em minha memória veio a lembrança de outro evento
ocorrido com acreanos uns anos atrás.
O ano era de 1987, eu ainda trabalhava na EmaterParaná e
havia ajudado a fundar a Associação dos Funcionários da Emater
Paraná, e havia também organizado a formação da FASER, a
141
"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
Federação das Associações de Servidores das Emateres. Naquele
ano, em Curitiba ocorreu o 1º Congresso da FASER, quando fui
eleito presidente dessa entidade. Era um período difícil, pois o
Governo Sarney realizava a Operação Desmonte, com a extinção
de diversos órgãos públicos federais, dentre eles, a EMBRATER,
em Brasília, que organizava as políticas de assistência técnica e
extensão rural (ATER) no Brasil e repassava os recursos para as
Emateres nos Estados. Diante disso, e com a grande possibilidade
de haver o fim dos recursos federais para ATER nos Estados, cada
associação se mobilizou, realizando discussões e manifestações
contra essa proposta do Governo Federal. Fui a diversas dessas
manifestações em todo o Brasil, incluindo no Acre. Muitas
representações dos funcionários sofreram represálias por conta
dessas movimentações, por contrariar interesses dos dirigentes das
Emateres, dentre elas a Associação dos Funcionários da Emater
Acre (ASSEA), cuja diretoria foi sumariamente demitida pela
empresa.
Marcos Inácio Fernandes, presidente da ASSEA, sociólogo,
acreano filho de seringueiros, tinha o apelido de Marcão por ser
bem alto, e em conversa comigo durante o congresso em Curitiba,
me perguntou se a FASER poderia custear as despesas do
advogado que iria defender os funcionários demitidos em
audiência judicial em Porto Velho, Rondônia. “Claro que
podemos” respondi. Semanas depois, soube que os funcionários
haviam vencido a causa, sendo readmitidos. Marcos Fernandes foi
nomeado anos depois presidente da EmaterAcre, numa
reviravolta política naquele Estado, com a ascensão do PT ao
poder no Acre, ficando por alguns anos no trabalho de fortalecer
os trabalhos de ATER, antes de entrar por concurso público, como
professor da UFAC, na área de Sociologia.
Então, ao me despedir, disse a meus interlocutores:
Falem com o Marcão!
Semanas depois recebo ligação da profa. Nívea, dizendo
que o CNS havia aprovado o meu projeto. Júbilo total. Um projeto
de pesquisa acadêmica aprovado por uma experiência política,
como nunca imaginaria, me permitiu iniciar os trabalhos na
142
"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
RESEX Chico Mendes. Não sei se é a melhor das alternativas, mas
demonstrou que também podem ser situações interligadas, mesmo
sem saber.
143
"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
Reta (quase) final
Lin Chau Ming
Na vida tudo tem seu final, depois de um começo. Final de
um trabalho, após seu início, final de uma noite, após o entardecer,
final de um dia, de uma semana. Final de um ano, final de uma
festa, de um jogo de cartas ou de futebol. Final de um curso, final
de uma obra, de um projeto, tudo deve ter um final. Final de uma
amizade, de um namoro, após a empolgação com o novo amor, até
final de um casamento, bem mais comum atualmente. Final da
infância, de risada fácil, alegre e ingênua, da adolescência,
querendo ser donos de nossos próprios narizes, sem períodos
rigorosamente definidos, mas chegam. E tem também, finalmente
(desculpem o português) o final da vida, este, inexorável.
Nas nossas vidas, alguns planejam as coisas, fazem tudo
certinho, passo a passo, outros nem tanto, deixam a vida lhes
levar. Cada um tem sua característica, uns gostam das coisas mais
organizadas, outros aceitam um pouco mais o livre acontecer.
Afinal, não temos domínio de tudo. Mas temos que aceitar
tudo que aconteceu e seus resultados, é nossa vida.
Estou chegando a mais um final em minha vida. Creio ter
feito bastante coisas durante os quase 59 anos de minha singela
existência. Divertime muito em muitas delas, fiquei triste em
outras e em tantas outras fiquei satisfeito, resultado legal,
atividade realizada, missão cumprida. Como já disse, tentei
planejar algumas delas, com sucesso. Significa que estabeleci
atividades com alguma antecedência, segui o que me determinei,
fiz tudo certinho e terminou, cem por cento. Em outras, as coisas
iam acontecendo, iam e vinham, como ondas do mar, muitas vezes
sem saber para onde iam, eu as acompanhava a seu sabor. Se me
arrependi de algo durante esse período? Claro que sim, às vezes
tomamos decisões erradas, fruto de inexperiência ou de análise
intempestiva. Mas creio que no total, na média, fiz as coisas certas.
144
"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
Sim, desta vez estou planejando esse final. Sei que podem e
devem acontecer coisas que não estarão no “script”, mas vou
tentar. Estou planejando o final de minhas atividades profissionais
como professor universitário. Dediqueime intensamente a elas,
tenho certeza. Já vou cumprir o que determina a lei de
aposentadoria, mesmo com a fase de transição que pode ser
alterada pelo Governo (em tempo, Fora, Temer! Diretas, já!).
E já estou fazendo uma transição, com duas características
principais: a transição para uma vida mais rural e a minha
transição de atividades na Faculdade de Ciências Agronômicas.
Fiz minha mudança definitiva neste ano para o sítio que adquiri há
cinco anos. Saí da cidade e estou gostando bastante do novo local e
do novo estilo de vida. Acordo bem cedo e antes de ir para o
trabalho na universidade, ainda dá tempo de fazer algumas coisas
por lá, corriqueiras, como ver a horta, as galinhas e outras aves que
crio, comer alguma fruta colhida no pé, dentre tantas outras coisas
que satisfazem a alma. Nos finais de semanas tenho mais tempo
para fazer o que um sítio demanda, tem trabalho todos os dias.
Assim que me aposentar, serei agricultor em tempo integral, acho
que falta essa atividade para eu completar um círculo virtuoso de
um agrônomo que foi extensionista, professor, pesquisador e,
agora, produtor rural. Aplicar na prática tudo que aprendi e
vivenciei.
Decidi também não mais orientar estudantes de doutorado
desde o ano passado e orientar neste ano os últimos mestrandos
no programa de pósgraduação em Horticultura, onde estou
vinculado há 20 anos. Dos alunos de graduação, a posição é a
mesma. Acho que mantive relações acadêmicas com muitos deles
nesse período e agora devo diminuir o ritmo, finalizando as
últimas orientações vigentes. Essa também é a situação com
relação às disciplinas que ministro. Vou também finalizar os
últimos projetos de pesquisa que coordeno, não vou enviar mais
nenhum outro, pois em geral eles têm duração de pelo menos 2
anos. Assim termino tudo com mais calma, sem o costumeiro
estresse que eles sempre me causam.
145
"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
Essa transição teve uma novidade: tive meu pedido de bolsa
de estágio sênior no exterior aprovado pela CAPES, um tipo de
pós doutorado para os pesquisadores mais experientes. Passarei
um ano em Nova York (de novo!), trabalhando com plantas
alimentícias utilizadas por comunidades indígenas multiétnicas do
Alto Rio Uaupés, Amazonas, a partir de julho deste ano, no Jardim
Botânico de Nova York, onde se localiza o herbário com a maior
coleção de plantas amazônicas do mundo, vejam só. E a biblioteca
com
maior
acervo
de
livros/documentos
sobre
Botânica/Horticultura reunidos em um único local dos Estados
Unidos.
Essa viagem estava, por assim dizer, não propriamente
programada, apesar de eu ter tomado a iniciativa de enviar o
pedido. Mandei meio que por mandar apenas, no ano passado...
Não estava muito animado, porque já tinha decidido me aposentar
no ano que vem, mas já que foi aprovado (e sei que a concorrência
é muito grande e a situação de financiamentos para pesquisa do
Governo Federal está complicada), decidir ir.
Já assinei o contrato, estou nas tratativas de finalizar os
documentos para o visto, compra das passagens, seguro viagem,
aluguel de apartamento por lá, organização do plano de atividades
e outras coisas pertinentes a esse período no exterior. Está me
tomando um tempo adicional, principalmente porque tenho que
resolver ainda várias pendências (quase eternas) por aqui, de
relatórios e prestação de contas de projetos, além de acertar a
situação dos meus atuais orientados/estagiários e das aulas. Isso
sem contar as pendências de casa, familiares.
Retornarei em julho de 2018 e como terei compromisso de
ficar na UNESP por mais o mesmo período que fiquei fora do
Brasil (é o que estipula a norma de bolsa da CAPES), poderei me
aposentar em julho de 2019, o que pretendo fazer. Assim, espero
ter cumprido mais um final em minha vida e poder iniciar outro
começo, com outras finalidades e características, como agricultor
orgânico/agroecológico e também me dedicando mais à família
(que deixei meio abandonada, sem a devida atenção, o que
146
"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
lamento muito hoje) e às muitas coisas mais simples de nossas
vidas.
Abraços a todos e até a volta.
PS: Escrevi esta crônica em maio de 2017 e agora, deixei a vida me levar,
e mesmo aposentado, fui selecionado num edital para professor visitante
sênior no Programa de PósGraduação em Agroecossistemas da
Universidade Federal de Santa Catarina, onde ficarei de por dois anos, a
partir de agosto de 2019 adiando, um pouquinho, o que havia planejado.
Florianópolis, janeiro de 2020.
147
"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
Mais um ano sem carro
Lin Chau Ming
Algumas árvores já começam a ter suas folhas caindo ao
chão. Ainda é verão, mas o outono já se avizinha, os dias são mais
frescos. Incrível como as estações de ano por aqui são bem
marcadas, cada uma com características próprias e definidas,
apesar das mudanças que o aquecimento global tem provocado
recentemente, dizem os cientistas. A maioria das árvores continua
com folhas verdes, mas algumas já começam a amarelar. Em
Ginkgo biloba isso é mais facilmente percebido nessa época; em
pouco tempo todas as folhas ficarão amarelas e logo depois a copa
ficará sem folha nenhuma, num belo espetáculo da natureza.
As folhas de crabapple apresentam manchas mais escuras
causadas por algum fungo oportunista, ficam espalhadas nos
gramados dos parques e também ao longo das calçadas
cimentadas perto do Jardim Botânico. Essas árvores produzem
minimaçãs, que maduras, vermelhinhas, são consumidas por
pássaros ávidos por comida nesse tempo de início de escassez
alimentar para os animais silvestres. Eu também as como, são
saborosas, pego um punhado delas e saio comendo, creio que não
farão muita falta aos animais, há outras opções por perto.
Uma bicicleta totalmente pintada de branco, acorrentada
em um poste, mostra o local onde um ciclista foi atropelado por
algum veículo e faleceu. Paro por curiosidade e respeito, sei o que
essa situação representa. O guidão está um pouco torto e se vê nele
um pequeno ramalhete de flores de plástico e uma placa indicando
a data fatídica. Não há nome grafado em nenhum local, talvez
fosse um desconhecido, mas creio que foi em respeito ao morto.
Por aqui há ciclovias em toda a cidade, bem estruturadas, uma
excelente opção para a mobilidade urbana, mas mesmo assim,
acidentes acontecem, pois o número de veículos aumenta
consideravelmente a cada ano e os motoristas parecem não ter o
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"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
mesmo cuidado ao volante. O uso de celulares enquanto dirigem é
uma das principais causa de acidentes motivados por motoristas,
igual a qualquer lugar no mundo.
Um esquilo sai saltitando, com uma pequena noz de
Quercus entre os dentes. Encontra um local no gramado perto do
carvalho que forneceu o fruto e cavoca um pequeno buraco onde
deposita a noz. É para guardar e poder comer depois. Sempre
admirei esses pequenos animais, são ágeis, rápidos e inteligentes.
Se acostumaram com a presença humana em seus territórios e é
sempre divertido oferecer um pouco de comida a eles. Se
aproximam devagarinho, meio ressabiados, afinal, sabem que
somos predadores, instinto ainda impera em seus cérebros. No
Brasil não é comum encontrar seus parentes sulamericanos nas
praças. Porque será?
O lixo deixado nas calçadas e nas ruas destoa bastante da
propalada civilidade desse país desenvolvido, dando um ar mais
realista a esse país multiétnico. Realmente me causa indignação o
consumismo exacerbado por aqui. Jogase tudo no lixo, ou nas
ruas. Pessoalmente, utilizaria alguma parte desse descarte, aliás,
tenho usado sim, como as mobílias que encontrei e estou usando
agora no apartamento onde moro. Outras pessoas também coletam
e reciclam os materiais descartáveis. Algumas delas as vejo
diariamente, pegando garrafas pet e latinhas de refrigerante ou
cerveja e levandoas para alguns locais que recebem esses
produtos e em troca oferecem cinco centavos por unidade
reciclada, estimulando essa parte da cadeia produtiva. Lixo, sim,
vale dinheiro.
O ponto de ônibus está cheio, deve estar atrasado.
Finalmente, chegou, ainda bem, já estava sentindo um pouco de
frio, o vento veio devagar, mas ficou, e eu não trouxe uma roupa
mais quente. As pessoas se sentam, cansadas, final de expediente
para uma maioria, retorno para casa, descanso merecido. É um
veículo novíssimo, com bancos de plásticos azuis e os corrimões
amareloouro presos ao teto e a luz bem intensa. O ar
condicionado está ligado, deixando o ambiente ainda mais frio.
Sentome bem debaixo de uma grade onde o fluxo de ar frio é mais
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"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
forte, causando um pouco de desconforto, mas nada que não se
possa suportar por algum tempo.
Um dos cartazes internos mostra uma poesia chamada Um
Nome, de Ada Limón, e eu me atrevo a fazer uma tradução livre
dela, em prosa, falando sobre quando Eva caminhava entre os
animais, no início da criação, e ia lhes dando nomes, um por um:
rouxinol, falcão de ombros vermelhos, caranguejo violinista,
gamo... E que depois poderíamos imaginála voltando, querendo
que eles respondessem; e olhando em seus olhos, sussurava: dê
um nome para mim, dê um nome para mim.
Uma pequena e singela poesia, em uma iniciativa chamada
Poesia em Movimento, da Sociedade de Poesia da América e da
Autoridade Metropolitana de Transportes; legal, vale a pena lêla
no original e refletir, enquanto a viagem continua.
Uma jovem mãe tenta conter os ânimos de um par de filhos,
que faz bagunça nos bancos, cada um com um pirulito na boca.
Correm para longe do alcance da mãe e voltam, gritando sem
parar e dando gargalhadas sonoras. Consegue, não sem antes ter
dado uns pitos mais fortes neles. Energia à flor da pele, gastamna
em qualquer oportunidade. As aulas acabaram de começar por
aqui. Aqueles meninos, decerto, não conseguiram gastar toda a
energia durante o período na escola. Como será na casa deles? A
mãe vai ter que ter atenção redobrada e muita paciência.
Não há correria para sair do ônibus, as portas se abrem e o
motorista que dirigia sem estresse, espera, aparentemente bem
calmo, os passageiros descerem naquele ponto. Uma senhora com
um andador demorou um pouco mais, mas não se percebe
nervosismo entre os passageiros que ainda não saíram, todos
aguardam a idosa poder, por conta própria, descer do coletivo.
Um sistema hidráulico comandado pelo motorista faz abaixar o
degrau junto com uma rampa, permitindo a mobilidade daquela
senhora. Nesse processo, um apito avisa intermitentemente, até
sua finalização. Fui o último a descer, tranquilo.
Parte da calçada por ando agora foi refeita recentemente.
Vejo o cimento com cor mais clara. Diferentemente das calçadas no
Brasil, as daqui não são feitas como “casca de ovo”, ou seja, com
150
"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
apenas uma camada bem fina. São feitas com uma camada bem
grossa de concreto, assim duram muito mais tempo e tem um
acabamento mais caprichado, pois os contornos dos recortes das
calçadas é alisado, ficam mais bonitos. Mas já podem ser
observadas muitas manchas pretas em cima delas: são chicletes
pisoteados, cuspidos pelo povo e que vão ficando no chão,
enfeiando o lugar. Realmente, isso poderia ser evitado.
A maioria das calçadas possui árvores plantadas. E elas são
plantadas em espaço bem maior do que no Brasil; espaços
retangulares não cimentados com aproximadamente 5 x 10 pés são
destinados a cada árvore e não apenas um quadradinho de 50 x 50
cm. Assim, crescem melhor e há maior área de drenagem nas vias
públicas. As mudas plantadas são bem maiores sobrevivência é
bem maior depois de alguns anos. O Departamento de Parques de
Nova York coloca uma placa de alumínio em cada muda plantada,
com seu nome popular e científico e informações sobre como
cuidar dela, além de um site, um QRcodee um telefone (301) para
obter mais informações sobre a espécie plantada. É um programa
chamado Histree, uma corruptela bem interessante. Isso sim, coisa
de primeiro mundo. Li que a cidade tem mais de 600 mil árvores
plantadas nas ruas, não contando as nos parques e praças; acho
que é um número até pequeno pois dá pouco mais de uma 0,06
árvores por habitante. Mas a cidade continua plantando, fácil é
observar plantas novas nas calçadas. Qual é o número na cidade
de São Paulo? E Botucatu? Não sei, alguém poderia verificar isso.
Na deli da esquina, um grupo de dominicanos fala bem alto.
Normal para esse povo caribenho, sempre alegre. Uma
comunidade de lá habita essa parte do Bronx onde moro, muito
numerosa. Pouco mais adiante, outro grupo dança ao som de uma
salsa. Alguns aos pares, outros não, dançam em grupo ou
isoladamente. Não, não é Despacito, hit do momento por aqui
também. Não sei o nome da música, pois não acompanho esse tipo
de tendência musical. Mas são bem animadas, reconheço. Cheiro
de pollo al horno preenche o ambiente, bem característico,
complementando a cultura local.
Falando em cheiro, mais alguns quarteirões depois,
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"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
algumas pessoas conversam junto a uma caixa dos Correios
americanos. Jovens, usam tênis, calções e camisetas, se preparando
para um jogo ou exercício na praça Claremont, que fica bem perto.
E o cheiro de weed (em inglês local, mas pode ter outro significado,
desta vez agronômico) ou marijuana (em espanhol, mas usada e
entendida em várias partes do mundo) é inconfundível. Passo sem
dar bola, é muito comum na cidade, mesmo proibida. Mas não
gosto de seu cheiro, é desagradável para mim. Sua legalização já
foi aprovada em alguns Estados americanos, para uso terapêutico
ou autoconsumo.
Um casal passeia com um chihuahua, essa raça mexicana
muito comum por aqui. Esse tem cor marrom escuro e manchas
claras no peito, nas patas e na ponta do rabo.Cãozinho esperto,
corre e fica cheirando todos os lugares por onde passa. Não late
para pessoas que passam ao lado, deve ter sido adestrado para
isso, pois em geral os representantes dessa raça são bem nervosos,
se estressando com pessoas ou animais que se aproximam deles. O
passeio ativa as reações fisiológicas do pequeno animal, que se
apronta para fazer cocô. Curbyourdog, é um aviso comum nas
calçadas da cidade, indicando a necessidade de limpar as fezes de
seus animais, sob pena de uma multa de 100 dólares. O casal
espera seu pet terminar o serviço e recolhem em um saco plástico,
enquanto o animalzinho continua se afasta do local. Mesmo com
essa lei, por aqui há muitos locais onde é preciso prestar atenção
para não levar materiais com cheiro desagradável debaixo das
solas dos sapatos.
Finalmente, chego em casa. Caminhei por cerca de vinte
minutos, um pequeno exercício, feito devagar. Subo os degraus da
entrada do prédio que tem o padrão daqui, de tijolinhos à vista e
com as escadas de incêndio de ferro na parte externa. A cidade
ainda está bem acordada. Mas eu me protejo do seu correcorre
descansando um pouco, antes do jantar e do banho. O dia foi
realmente cansativo, muita coisa aconteceu.
Foi assim um pouco de um dia de minha vida por aqui, em
mais um ano sem carro.
PS: crônica escrita no verão de 2018, durante a realização de estágio
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"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
sênior no exterior, no Jardim Botânico de Nova York, pesquisando as
coletas botânicas das plantas alimentícias utilizadas por comunidades
indígenas multiétnicas do Alto Rio Uaupés, Amazonas.
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"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
Vinte!
Lin Chau Ming
Deitado confortavelmente em sua rede de algodão, feito por
sua esposa, Carlos18, ancião mais idoso da aldeia SuruíPaiter,
descansava após o almoço na tarde quente e úmida na região
ocidental da Amazônia brasileira, no município de Cacoal,
Rondônia.
Sua idade foi calculada em 90 anos, por medida
antropométrica feita por funcionários da Funai, mas poderia haver
diferença, para mais ou para menos, dadas as imprecisões desse
método. Sua baixa estatura e o corpo mais atarracado poderiam
estar fora dos padrões das medidas utilizadas.
Os SuruíPaiter são falantes de uma variação do Tupi,
diferente do falado por seus parentes da região sulsudeste do
Brasil e do nheengatu amazônico. Tiveram os primeiros contatos
com a sociedade nãoindígena nos anos 1960, quando o avanço da
fronteira agrícola, promovida pelo Governo Militar, alcançou seu
território ancestral. Em 07 de Setembro de 1969 foi feito o contato
oficial e essa data serviu de motivo para dar nome à Terra
Indígena de seu povo, T.I. 07 de Setembro.
Sua rede estava armada, junto com outras de sua família,
em uma construção feita de esteios de madeira coberta com folha
de babaçu e ficava ao lado de algumas casas da aldeia, para
descanso, cozinha e convívio social de membros da família. Dois
de seus filhos também descansavam em redes. Eu estava sentado
em um toco de árvore que servia como um banco. Os SuruíPaiter
mais idosos apresentavam em suas faces uma tatuagem feita com
jenipapo, dois traços retilíneos que cortavam a face da ponta de
uma orelha a outra. Além disso, furavam o lábio inferior para
18 Todos os nomes deste texto são fictícios.
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"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
inserir uma peça fina, tipo uma agulha, feita de resina vegetal.
Carlos e sua esposa apresentavam as marcas dessas duas
tradições. Essas características foram eliminadas com o contato,
juntamente com suas crenças religiosas originais. Não há mais
pajés ativos em toda a terra indígena, e as religiões de cunho
católico e cristão dominam todas as aldeias do Território.
Conservam ainda o hábito da caça e do plantio de roçados
tradicionais, este último quase desaparecendo, dada a
preponderância do plantio café e banana, ambos para venda fora
das aldeias.
Ao lado dessa construção, duas de suas netas lavavam os
pratos e panelas utilizados no almoço. A vinda da luz elétrica
promoveu uma mudança em alguns dos hábitos tradicionais. Não
se vai mais ao rio (ou apenas em algumas poucas ocasiões) lavar
pratos e roupas ou tomar banho, dadas as facilidades que a água
de poço artesiano, instalado em vários locais da aldeia,
promoveram recentemente. Há uma casinha com um chuveiro frio
e uma torneira em uma bancada de madeira, que serve de
estrutura para lavar utensílios domésticos ou roupas. Ah, e água
gelada, guardada em garrafas pet na geladeira de uma das casas, é
essencial para o novo estilo de vida deles.
Um periquito fazia zoada solitária, preso que estava em
uma pequena gaiola, talvez chamando pelos seus, que não
respondiam naquele momento. Um casal de araras responde, no
alto, num voo atravessando a aldeia, mas não serve para o
periquito, são parentes distantes. Cachorros da raça de caça
americana deitavam próximos a seus donos, sonolentos, o mesmo
ocorrendo com o único gato da aldeia, numa convivência amistosa.
Galinhas passavam de quando em quando por perto, ciscando à
procura de insetos ou minhocas.
Naquele ambiente tranquilo, fiz uma rápida conta mental e
concluí que Carlos teria 41 anos quando do primeiro contato com
os nãoíndios. Disseram que ele foi o primeiro de seu povo a ver
um avião e ter ido contar essa história para sua aldeia, e que boa
parte dela não acreditou nele, pois como imaginar que algo, além
155
"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
de pássaros, poderiam voar tão alto?
Quanta história (e outras) ele tem para contar. Que
transformações radicais aconteceram desde que passaram a ter
contato com a sociedade moderna. Bastante lúcido e olhar elétrico,
não demonstrava a idade que tinha. Estava curioso para saber suas
experiências de vida antes do contato. Apenas tranquilidade na
vida na floresta? Seguramente não, muitas coisas mais agitadas
aconteceram, sim. Mas não tão violentas quanto as que seu povo
está enfrentando agora, como a mineração de diamante,
desmatamento, invasão da Terra Indígena, pastagens e tantas
outras violações em seus direitos.
Aproveitei e pusme a conversar com ele. No meio da
conversa, um assunto me veio à mente e que talvez não tenha sido
estudado por nenhum antropólogo. Aliás, penso que talvez deva
ter havido tal estudo, mas não tive a chance ainda de pesquisar.
Estava meio receoso em perguntar, mas tomei um pouco de
coragem e fui adiante. Queria saber sobre guerra entre os grupos
indígenas da região no passado não muito distante. Disseme que
as guerras eram feitas para garantir maior área em seus territórios
para caça e pesca, além de melhores terras para o cultivo de suas
plantas. E também lugares sagrados tinham que ser protegidos da
cobiça alheia. Garantiume que as guerras não eram feitas para
pegar mulheres e crianças para adoção, pois os cinco clãs
existentes, suas regras sobre casamento intergrupos, o sistema
patrilinear adotado, e o bom número de pessoas de sua etnia,
garantiam um adequado equilíbrio populacional.
Mas guerreavam.
E na guerra, em seu sentido literal, há uma consequência
clara. Morte! Morte dos guerreiros das partes envolvidas na
contenda.
Olhei mais fixamente para o ancião, peguei um fôlego,
respirei mais fundo, e perguntei:
O senhor já matou algum índio quando era mais jovem?
Imediatamente, não demonstrando surpresa com minha
pergunta, se acomodou na rede, mudou de posição, agora sentado
nela, e de frente para mim, estendeu suas duas mãos com as
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"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
palmas abertas e as colocou perto de seus dois pés, com as pernas
esticadas.
Quantos? indaguei, não entendendo o que ele queria me
dizer com o gestual.
Repetiu o movimento, com maior ênfase nos dedos das
mãos e colocandoos mais perto dos dedos dos pés.
Vinte! disse João, seu filho, que acompanhava a conversa,
olhando pra gente, mesmo deitado na rede.
Com mais calma, pude então concluir pelo número
mostrado com os membros de seu corpo. Como não tinha
percebido isso antes? Mesmo tendo aprendido o português já com
certa idade, Carlos entendia e falavao fluentemente, junto com a
língua materna, esta com mais fluidez e desenvoltura. Não pude
entender porque usou a linguagem dos gestos, a linguagem
corporal.
Explicou depois que as vítimas foram os Zoró e os
Nhambiquara, etnias que vivem na região e que atualmente têm
seus territórios confrontantes com os dos Suruí. Hoje, apesar das
desavenças históricas anteriores, convivem em paz.
Quais armas usava? perguntei.
Flechas e borduna, respondeu com um pequeno sorriso,
mostrando alegria pelas ações passadas.
Não conseguia imaginar uma pessoa de corpo pequeno
manejando a borduna para golpear os adversários. Seria uma luta
de corpoacorpo, com certeza. Ganhei do filho dele uma dessas
armas de guerra, hoje fabricadas para adorno. Feitas com a parte
mais externa e dura do estipe de pupunha silvestre, não tem mais
do que 70 cm de comprimento. Tem sua parte de cima afiada e
uma cabeça com formato lanceolado, com três incisões em cada
um dos lados, que aparentemente serviriam para quebrar mais
facilmente alguma parte do corpo do adversário escolhido.
Mesmo adotando tática de tocaia, atacando apenas quando
estivesse bem próximo do outro, a borduna exigiria técnicas de
ataque mais sofisticadas, dada a necessidade de golpear a curta
distância. Situação que o uso do arco e flecha não exigiria, posto
poder atingir o adversário à distância, mas necessitando de
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"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
habilidade e precisão no manuseio dessa outra arma de guerra,
agora de caça ou ainda produzida como adorno. Mas como atingir
a flecha no adversário no meio da floresta, com tantos obstáculos
no meio do caminho? Árvores o esconderiam do inimigo na
floresta, mas também protegeria o lado oposto do ataque. De novo,
o estabelecimento de técnicas especiais de caça, atirar sem ser
notado, sem fazer barulho.
O arco também é feito de pupunha, com o encordoamento
feito de fibras de tucum. As flechas são feitas de uma taquara fina,
com penas de arara em uma das pontas (a que se conecta com a
corda), para dar uma aerodinâmica adequada durante o seu
percurso aéreo, e na outra ponta, diferentes formatos e materiais,
dependendo do tipo de caça, uns mais penetrantes e outros mais
contundentes. Carlos é um dos que ainda dominam as técnicas no
fabrico dos arcos e flechas.
Fiquei pensando: Será que também dependia do tipo de
pessoa a ser atingida, nas épocas quando ainda havia guerra?
Não perguntei, e também não fiz outras perguntas relativas
a esse tema, segurei um pouco o meu ímpeto, pois imaginava estar
entrando em assunto com potencial conflituoso ou mesmo tabu
(atualmente), apesar do sorriso que havia notado no ancião.
Precaução, uma atitude sempre presente nos trabalhos de
campo. Mas vai ser assunto de conversa na próxima oportunidade
em que estiver com ele, acho que não haverá problema, já
estaremos mais próximos e à vontade para conversar sobre isso. E
vai ser em breve.
158
"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
Amazônia, entre povos e floresta:
o começo dessa história foi no rio Jordão
Málika Simis Pilnik e Tarik Argentim
O tempo era de chuva: janeiro de 2018. Partimos de
Cruzeiro do Sul rumo ao Jordão, no vale do Juruá, estado do Acre,
para estabelecer o primeiro contato in loco com as famílias que
participariam da pesquisa de mestrado. Dentre os motes dessa
jornada, buscávamos estabelecer uma relação de confiança a fim
de obter a anuência e o consentimento das lideranças e demais
membros das comunidades quanto ao trabalho pretendido junto
ao povo Huni Kuĩ.
Nativo das aldeias da Terra Indígena Kaxinawá do Baixo
Rio Jordão, localizada no sudoeste da Amazônia brasileira, o
grupo que pretendíamos trabalhar vive em um dos locais mais
isolados do país – haja vista a ausência de estradas e a carência de
meios de comunicação que conectem a região ao restante do
território nacional. Suas terras pertencem a um município novo,
criado em 1992, sob as bases da antiga “Vila Jordão”. Até hoje, os
mais velhos dizem “vamos à vila”.
Para chegar ao local, fora preciso se locomover por três
diferentes modais de transporte. Primeiro tomamos um ônibus de
Cruzeiro do Sul/AC, que percorreu os últimos e esburacados
trechos da BR 364, por aproximadamente seis horas, até atingir a
cidade de Tarauacá/AC. Dali fomos, pelas alturas, sentido Jordão,
através de uma aeronave monomotor (popularmente conhecida
como “teco teco”, que, digase de passagem, faz um barulho
arretado e dá um medo danado!). Finalmente subimos nas
pequenas embarcações (verdadeiras canoas rústicas com os
regionais motores de rabeta) para ganhar o rio Jordão até o
esperado destino: as aldeias.
Os indígenas narram que, antigamente, costumavam
construir canoas de madeira guariúba. Desciam e subiam pelos
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"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
rios de “varejão”, utilizando o caule da canabrava (abundante nas
matas ciliares pioneiras) como uma espécie de remo. Contam que
demoravam cerca de duas semanas só para chegar à
Tarauacá/AC. Um contraste enorme, se levarmos em conta que,
atualmente, é possível alcançar o mesmo local em menos de uma
hora, por via aérea. “Ah, hoje a vida é muito mais fácil!”.
Impreterivelmente, para dois amantes da floresta, a melhor
parte do deslocamento foi a viagem de canoa. Sobre as águas
brancas, castanhas, que serpenteiam, incansáveis, as verdes matas,
avistávamos desde plantas herbáceas, como helicônias, capebas,
pobrevelhos; até árvores frondosas e imponentes, como
samaúmas, angelins e cumarus. Em seus galhos, comum é avistar a
morada de aves japiim, conhecidos pelos indígenas por txanas, as
quais fazem seus ninhos “dependurados” como belos lustres que
adornam os seres em pé da floresta.
A chegada à aldeia do povo Kaxinawá (Huni Kuĩ, como se
autodenominam) foi motivo de alegria e agitação. Fomos muito
bem recebidos, com cantos, sopros em buzinas (confeccionadas
com taboca e rabo de tatu), e, para felicidade de todos, abundância
de comida. Aqueles que não tinham algo especial para oferecer –
como carnes de caça, peixes e/ou frutos sazonais – sempre
serviam ao menos macaxeira ou banana cozida, acompanhados de
coloridos mundubim (o popular amendoim).
Os primeiros dias na floresta são desafiadores. De início,
enfrentamos a lida diária com os insetos, entre piuns, meruins,
carapanãs, além dos temíveis mucuins. As chuvas repentinas nos
alertavam: é preciso estar atento e cuidar para "não derrapar nos
caminhos de tatu". Na mata, a cautela deve ser redobrada. Um
olho no solo: para não pisar em espinhos de tucum, tropeçar em
paus caídos, atropelar correições de formigas, entrar em buracos e
se machucar com as tucandeiras; e o outro na linha do horizonte,
desviando dos obstáculos das varações: desde enormes teias de
aranhas, passando por certos animais peçonhentos, aos conspícuos
espinhos do murmuru.
Tivemos a oportunidade de conhecer todas as aldeias da
Terra Indígena Kaxinawá do Baixo Rio Jordão. Guiados pelo Txai
160
"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
Bane Duabake, filho do reconhecido líder indígena Getúlio Sales
Kaxinawá, em cada uma das comunidades fazíamos reuniões com
os moradores. Explicávamos o trabalho a ser desenvolvido e,
aquele que dominava melhor o português, traduzia para os
demais. Conversavam um momento na língua nativa (hãtxakuĩ) e,
em seguida, observado pelo silêncio dos demais, o portavoz nos
dava o veredito.
Ao chegarmos na terra indígena, fomos direto à aldeia
Nova Empresa. É a comunidade com a menor população da TI,
sete famílias e cerca de 60 pessoas. Tratase do lugar em que reside
Lucas Sales Kaxinawá, um dos principais interlocutores da
pesquisa. Lá participamos de tradicionais pescarias com tingui –
um arbusto, cujas folhas são coletadas pelas mulheres e pisadas
pelos homens até virarem bolões que são arremessados nos
igarapés. Tivemos a oportunidade de experienciar todo o processo.
Após alguns segundos, pudemos observar que os peixes começam
a bulhar na superfície da água – graças a um conhecimento
originário que provoca paralisia temporária no sistema nervoso
dos seres das águas.
Além desta, pudemos vivenciar diversas outras atividades
corriqueiras do modo de vida Huni Kuĩ: colheita de legumes do
roçado; confecção de cestos de fibras de palmeiras; tecelagem
meticulosa em tear manual – desde a colheita e fiação artesanal do
algodão, até a obra final (bolsas, coletes, faixas, cachecóis, etc.); e,
não menos importante, o aguardado preparo da “caiçumaforte”
(chamada de masato, em hãtxakuĩ).
Esta experiência foi, digamos, visceral. Logo após a refeição,
já realmente satisfeitos da comida farta, Ayani, a matriarca,
apontou: “agora vamos fazer o masato!”. Uma bebida fermentada à
base de macaxeira, produzida exclusivamente por mulheres. Nos
afastamos dos homens e em roda sentamos. A macaxeira cozida no
centro e, ao lado, uma bacia para a massa salivar. A matriarca
começou a mastigar um pedaço, enquanto suas filhas olhavam
para a novata e riam (talvez alegrandose em reconhecer o choque
cultural encarado pela iniciante).
Então, quase que sem coragem para enfrentar mais comida
161
"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
pela frente, um pedaço foi abocanhado. “Masque até quase engolir
e cuspa no vaso”! Seguiuse à instrução, como boa aprendiz. A
primeira vez é estranho, pois há o impulso de engolir; nada que
com a prática não se acostume. Ficamos mastigando e cuspindo
por aproximadamente uma hora, quando Ayani disse chega e
tampou com um pano a bacia. A bebida ficaria pronta após dois a
três dias, tempo necessário para a fermentação. Este processo
peculiar tratase de uma tecnologia de conhecimento de
determinados povos indígenas amazônicos, os quais perceberam,
através da experiência, que a bebida fermentava com maior
intensidade na presença da saliva.
Ainda na aldeia Nova Empresa, tivemos outra experiência
especial: a participação em um “feitio” de nixipae (ayahuasca),
justo na data de aniversário da autora. Baita presente! Na tradição
dos Kaxinawá, as mulheres coletam as folhas da kawa e os homens
maceram o caule do cipó huni. Depois, esses vegetais são
colocados em grandes panelas para juntos trabalharem no fogo
durante horas. Participamos apenas dois dias de um esforço que
dura até semanas, mas pudemos perceber o extremo labor e
dedicação necessários para a produção desta sagrada bebida que
nos conduz pelo universo dos espíritos da floresta.
A segunda aldeia que visitamos é chamada de Nova
Cachoeira. Lá, conhecemos a dona Maria Jarlene, da família Maia,
mãe de dez filhos e avó de quatro crianças. Afrodescendente, filha
de antigos seringueiros oriundos do Nordeste, casouse com o
agente agroflorestal indígena desta comunidade e vive há vinte
anos entre os Huni Kuĩ. Compreende tudo na língua nativa, se
pinta de jenipapo e urucum, usa os adornos tradicionais, porém
disse, ela mesma, não saber falar o hãtxakuĩ. Nessa realidade de
rincão amazônico, acabou por desenvolver outras formas de
comunicação. Este caso mereceria um intrigante estudo
antropológico, mais ainda considerando que ela é a única não
indígena deste grupo familiar.
Depois, seguimos para a aldeia Morada Nova. Era chegada
a época de colheita do mundubim, geralmente cultivado nas praias
do rio Jordão. Todas as moradias estavam com as cumeeiras
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"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
repletas de vagens amarradas em pares (técnica típica de
armazenamento compartilhada pelos membros desse povo).
Olhávamos para o teto das casas e não havia nenhum centímetro
que não fosse preenchido com a leguminosa. Algo único de se ver!
Os Huni Kuĩ são exímios plantadores de amendoim, e possuem
sete variedades que diferem em cores, sabores, texturas e
tamanhos.
Subimos um pouco mais pelo rio e visitamos a aldeia Astro
Luminoso. Tratase de uma comunidade relativamente nova.
Caminhamos pela mata com os jovens e nos deparamos com um
pé de “biorana” carregadíssimo. No solo, haviam diversos frutos.
É uma das espécies do gênero Pouteria (Sapotaceae) que produz
um dos maiores frutos que já vimos! Provamos. A polpa é
suculenta, de sabor excelente, adocicado e refrescante. Comemos
um bocado.
No entanto, os meninos não nos avisaram que era
recomendado apreciar acompanhado da ingestão de água, devido
a abundância de látex que a espécie possui. Após cerca de 30
minutos, quando já estávamos de volta em uma das moradias,
começamos a sentir dor de barriga. O Ixã, garoto de dez anos de
idade, disse saber como aliviar a dor. Pegou uma rolha, queimou e
passou o calor em nossas barrigas. Enquanto isso, sua irmã Maspã
cantava uma música, que, segundo ela, servia para melhorar
problemas estomacais. E não é que deu certo?
Já no final da viagem, deslocamonos, a jusante, para as
aldeias localizadas mais próximas do município do Jordão, a saber:
Novo Lugar e São Joaquim “Centro de Memória”. Nelas vivem os
indígenas mais anciãos que tivemos a possibilidade de conhecer.
Nos contaram diversos causos sobre: o tempo das malocas, anterior
ao contato com não indígenas; o tempo das correrias, período de
fuga e extrema violência contra os povos nativos para a exploração
da Hevea brasiliensis pelos colonizadores; o tempo do cativeiro,
quando foram escravizados pelos patrões seringalistas para
trabalharem exclusivamente no “corte da seringa”; e, finalmente, o
tempo dos direitos, representado pela demarcação dos territórios e
pela liberdade de poderem ser diferentes do entorno, o que
163
"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
contribuiu com o fortalecimento do modo de vida tradicional.
Na canoa, de volta para a casa, os dois viajantes se
entreolharam com uma mesma sensação: missão cumprida. Não
somente pelo consentimento das comunidades para o
desenvolvimento do projeto de pesquisa; mas, sobretudo, por
terem conhecido uma realidade tão viva e ancestral,
contraditoriamente invisibilizada no restante do Brasil. O coração
estava pleno, embora a mente inquieta para superar os desafios
apresentados. Tais vivências nos fizeram, inclusive, refletir e
compreender melhor um dos papéis da própria Etnobiologia:
trabalhar
pela
valorização
dos
conhecimentos
locais/tradicionais/autóctones/indígenas,
na
luta
pelo
reconhecimento daqueles que permanecem vivendo, aprendendo e
conhecendo com a natureza que genuinamente somos.
164
"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
Da poesia a resistência
Marcela Eringe Mafort
De um rio de águas aparentemente vistosas, erguemse os
olhos que diante dos meus são poesia. Rostos e peles queimadas
do sol, mãos calejadas e em parte das vezes machucadas pelo suor
do ganha pão do diaadia. Na silhueta do Rio Pomba, um dos
afluentes mais importantes da bacia do Rio Paraíba do Sul, o
pescador vai fazendo o seu tracejado... Vindo à memória
recordações de um rio que há tempos não se vê mais...
Como diz o velho pescador, “tinha muito peixe nesse rio,
tinha vida e tinha sustento”. Com olhos de quem tenta imaginar
tanta riqueza, observo somente o que restou do que disseram ser o
progresso. O ciclo do café, o “licor negro”, os empreendimentos
hidrelétricos... O tal progresso de quem? Pouco sobrou das matas
ciliares, seu leito majestoso se encolhe cada vez mais. Peixes que
antes eram vistos aos montes, hoje estão vivos somente no passado
dos mais antigos.
As redes e tarrafas que antes eram sinônimos de fartura,
hoje somente representam resistência e luta. Meu olhar segue seus
olhares... O que dizer diante do vazio? Neste instante o silêncio já
fala... Procuro manter meu equilíbrio e a neutralidade que a ciência
me exige, mas confesso que do outro lado dessa linha imaginária,
meu lado humano fica em ruínas!
Sigo os trabalhos de campo vendo a poesia nos olhos
marejados dos pescadores que ainda resistem. Armam suas redes,
batem suas tarrafas, cortam o rio de fora a fora somente no
instinto, à procura de voltar ao seu lar com o sustento da família.
Lutam pela cultura que ainda viva, percorrem suas veias. Com o
sorriso, não mais tão largo, porém que insiste mesmo nesses
tempos difíceis a aparecer, fazem da fé sua morada contra a
desistência.
A única coisa que o pescador do Pomba quer, é ver o seu rio
165
"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
como antes, como um dia acompanhados de seus amigos ou entes
queridos conheceram e aprenderam a sobreviver dele. Esperam
que suas vozes sejam escutadas, seus gritos respeitados e que seus
filhos e netos possam ver o que seus olhos viram um dia... Um Rio
Pomba rico, abundante e sagrado para aqueles que vivem dele!
No fim, como pesquisadora, digo que ser uma etnobióloga
muita das vezes é sentir na pele a aspereza da vida e fazer dela não
mais um templo de solidão... É demonstrar por meio da ciência,
relatos e desabafos de povos e populações silenciadas. Fazer dos
momentos de poesia da profissão um grito de luta e resistência.
166
"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
O “Meteoro Bípede” e o
Karajá no shopping center
Marcelo Nivert Schlindwein
Às margens do belo Rio Araguaia um índio Karajá arpoa de
maneira precisa um grande pirarucu. O grande peixe mítico, que
habita as lagoas da planície criada pelo grande rio, foi atingido ao
romper a lâmina d´água quando subiu para respirar. Sem perceber
que aquele seria o seu último movimento de ir à superfície como
soberano absoluto daquela lagoa. Bem protegido por uma couraça
de escamas escuras e avermelhadas e quase duzentos e cinquenta
quilos faziam do grande peixe praticamente imune ao ataque de
qualquer inimigo natural. Apenas um primata recémchegado com
seu arpão de ponta de ferro modificara a condição imemorial de
“rei” do lago. Durante milhares e milhares de anos seus
antepassados tinham habitado naquele ambiente, sem a presença
da ágil canoa de madeira, habilmente manobrada pelo solitário
humano. Os bàdolèkè18 gigantes já tinham sumido e, mesmo os
“médios” como este que acaba de ser arpoado, já tinham
praticamente desaparecido de todo o Médio e Alto Araguaia.
O jovem guerreiro sabia a razão do desaparecimento dos
pirarucus. Atualmente muito poucos índios ainda pescavam
usando apenas o velho barco tradicional, feito de um único tronco.
Usando o largo remo tradicional decorado e finamente adornado
com a pintura individual de cada pescador. Já não existiam os
antigos arpões feitos de osso e apenas as canoas feitas de um único
tronco que desafiassem com igualdade de condições o gigante do
rio. A maioria hoje em dia prefere a comodidade do barco a motor
com casco de metal. Além disto, não se captura mais o grande
peixe para os rituais do Aruanã ou para o consumo da aldeia, mas
grande parte do que é pescado é vendido ou trocado por
mercadorias na cidade. As mantas salgadas de pirarucu são muito
18 Nome dado pelos Karajá ao homem branco
167
"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
procuradas. O gigante do rio tem o azar de seu um dos peixes mais
saborosos que a evolução criou. Uma manta de vinte quilos pode
render um bom dinheiro, que vale muito açúcar, arroz, ou mesmo
ser trocada diretamente por aguardente, a água de fogo dos tori19 ,
e, também gasolina para os motores e balas para as espingardas
calibre 22.
Depois da alegria de ter arpoado o grande peixe, o Karajá
sente uma profunda tristeza. Olhando as escamas do grande peixe
brilhando sobre o sol lembra das coisas que estudou fora da aldeia.
Ele estudou em universidade tori, e viajou para a terra dos
brancos, em um lugar que ironicamente se chamava Barra dos
Bugres. Por cinco anos estudou em uma universidade que o
branco criou para os índios. Lá se encantou estudando os mistérios
da física e da (etno)astronomia com o professor Carlos Argüello.
Mas também viu gente falar da floresta sem ter
pertencimento e envolvimento com ela. Viu a arrogância do
branco e a certeza quase cega de suas teorias ecológicas misturadas
em discurso vago e cosmético, algo que denominavam de
sustentabilidade. Vestiuse e comeu comida de branco e viu como
uma caixa luminosa chamada televisão praticamente comandava a
maior parte da vida deles. Viajou até a cidade grande, sofreu o
calor sufocante de Cuiabá. Algo que nem no dia mais quente com
sol a pino em um cerrado descampado depois de queimado por
um incêndio podia produzir. Foi no lugar que percebeu ser o
maior templo tori. Não era uma igreja, mais sim aquilo que
chamam de shopping center. Um lugar que ao contrário do calor
que parecia derreter o asfalto, fazia um frio que lhe doeu a alma.
Em um primeiro momento se maravilhou com as coisas que os
brancos criaram. Suas máquinas, adereços e infinitas bugigangas.
Mas logo se cansou daquela velocidade para nada, daquele
brilho sem conteúdo e, daquele importar imenso apenas com as
coisas. Percebeu que naquele mundo muito pouco valiam as
pessoas. Horrorizouse com o modo como tratavam os anciões,
que na sua aldeia eram o símbolo da sabedoria, uma experiência a
19 Nome dado pelos Karajá ao homem branco.
168
"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
ser venerada e preservada. Não conseguia entender como
deixavam que crianças ficassem abandonadas, que não pudessem
brincar livres. Que tivessem que pedir esmolas nos semáforos...
Sentiu falta de estar quase nu na floresta. Daquilo que estava
fazendo naquele momento. Estar no meio de um lago capturando
um grande pirarucu. Mas ao ver o animal abatido, com suas
escamas avermelhadas brilhando ao sol, sentiu como se tudo
aquilo fosse uma espécie de final do mundo. Como se tudo
terminasse junto como o último respiro dado na superfície do lago
pelo grande peixe.
No pequeno assentamento de cerca de 600 pessoas, que
apenas por motivos políticos teimase a se chamar de cidade20 , um
menino corre quase desesperado atrás de uma galinha, ao lado do
indiferente e caudaloso Rio Araguaia. Na outra margem se pode
ver as praias de areia branca que começam a se formar na Ilha do
Bananal. As outras crianças, a maioria netas dos pioneiros
maranhenses que cruzaram o deserto do Gurupi para criar gado
de retiro21 , observam espantadas. Criadas no local, não entendem
o porque daquele menino da cidade grande correr tão empolgado
atrás de uma mera galinha, criada sem dono na beira do rio, muito
espertas para escapar dos oportunistas jacarésaçus. O menino era
filho de um dos professores que durante uma semana ministrava
disciplina em curso de formação de professores em nível
superior22.
Apesar de o pai ser um professor de História com larga
experiência no interior do Brasil, o menino havia sido criado em
20 A localidade tinha o nome de Mato Verde, e foi rebatizada em homenagem ao “desbravador” e
colonizador do local. Ao retirar a aldeia de índios que havia no melhor local, a “cidade” passou a ter
o nome acronímico, a mistura do nome do “coronel” e de sua filha.
21 Sistema de criação de gado extensivo que usa a propriedade comum de um campo geral. Soltase
o gado durante a seca para recolhêlos aos retiros no princípio da cheia. A posse do gado era dada
pela marcação das fêmeas e a venda dos novilhos e a marcação dos bezerros escolhidos para o novo
ciclo de seca/cheia.
22 Projeto Licenciaturas Plenas Parcelada, uma parceira da Universidade do Estado do Mato Grosso
com várias universidades, principalmente do sudeste do Brasil. O projeto pretendia levar formação
169
"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
um ambiente completamente citadino, na cidade de Campinas em
São Paulo. Crescera sem praticamente nenhum contato com
natureza, basicamente restrita aos documentários na televisão e as
visitas aos zoológicos. Para alguém criado nestas condições, uma
galinha solta na rua era a personificação do mundo selvagem,
ainda mais na imensidão da paisagem das margens do Araguaia.
Para o menino da cidade também era difícil entender que aquelas
crianças que brincavam com latas velhas, pedaços de madeira e
carinhos feitos de latas de querosene! Não tinham videogames e
nem mesmo uma mísera bola de futebol de verdade. E como
podiam ficar soltas na rua sem horários e sem quem as vigiasse?
Como podiam mergulhar de galhos altos da piranheira23 sem a
vigilância e mesmo proibição dos adultos? Como não tinham
medo dos jacarésaçus, das cobras, das aranhas e das formigas
lavapé? E o pior, onde estava o shopping para fornecer as coisas
básicas necessárias para a sobrevivência? Para esta criança
campineira era como se aquelas outras crianças pertencessem a
uma outra espécie.
Todos os humanos são igualmente humanos enquanto
espécie em todas as dimensões. O que nos separa basicamente é o
modo que interagimos com o ambiente em relação a nosso
desenvolvimento tecnológico. A cultura nos faz indivíduos únicos
e determina nossa pegada ecológica. Quando mais tecnocrática a
sociedade se conforma, mas antropocêntrica ela tende a se tornar.
A biodiversidade é condicionada a um ponto de vista utilitário em
relação a nossa espécie24 . O Homo sapiens desenvolveu, ao longo
superior a locais remotos sem acesso a universidades e foi fortemente estruturado a partir das
experiências pedagógicas inovadoras que partiram da Prelazia de São Félix do Araguaia. Um dos
seus principais apoiadores foi o bispo Pedro Casaldáliga. Este projeto foi muito atuante nos anos 90
do século XX.
23 Piranhea trifoliata: árvore comum nas barrancas do Rio Araguaia. De seu tronco se faz canoas e
seus frutos servem de alimento para peixes.
24 Ver Schlindwein, M.N. Rivera, D.N. Um indivíduo de uma espécie silvestre é mais importante
que um indivíduo de uma espécie domesticada? In: Ética Socioambiental. (1a. ed.) São Paulo:
Editora Manole, 2019, p. 396432.
170
"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
de sua evolução cultural, ferramentas e as tecnociências como
elementos que não tem equivalentes nas espécies conhecidas neste
planeta, modificando radicalmente o modo como usamos a
biodiversidade. Nossa atual sociedade tecnocrática impõe uma
pressão de extinção sobre outras espécies que poderíamos
caracterizar os humanos como o equivalente de “meteoros
bípedes”. Basta permanecer um tempo distante da nossa sociedade
de consumo, por exemplo acompanhar o jovem Karajá em uma
pescaria, para perceber como é estranha esta verdadeira
compulsão que assalta uma parte significativa da Humanidade.
Ao deixarmos a condição de caçadorescoletores, para
agricultores/pastores
e,
posteriormente
para
urbanóides/tecno/dependentes nos livramos do peso da
produção direta de nosso sustento. Os urbanóides são de certa
forma cleptoparasitas de quem produz o alimento e energia.
Talvez parte do nosso desenfreado consumo hedonista venha da
tentativa de justificar pela posse de bens e ornamentos a nossa
inutilidade ecológica. A posse de determinados objetos nada mais
seria a busca de status que justifica sermos mantidos pelo sistema.
Consumir é justificar ser o abutre que bica Prometeu. E este está a
beira de um precipício que pode levar à extinção. Nos últimos
duzentos anos este componente consumista veio acoplado a algo
mais perigoso. Além do discurso antropocêntrico se implementa
um perigoso discurso etnocêntrico, onde ter acesso e possuir
determinados recursos indicavam uma inerente superioridade
sobre as outras etnias e culturas.
O darwinismo social e a eugenia deram bases científicas às
limpezas étnicas, que agora podiam ser aplicadas cientificamente
em todo o mundo, justificando o colonialismo na América, Ásia,
Oceania e África. Agora não era mais a fé, mas a ciência que
preconizava a inegável superioridade da cultura invasora sobre as
nativas. A evolução cultural tinha como ápice a civilização
ocidental e a eliminação da cultura considerada inferior eram favas
contadas neste processo. Este imperialismo cultural foi
determinante para a perda de biodiversidade em todas as suas
dimensões. Pois ao suprimir as etnias nativas e sua cultura
171
"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
extinguiu também práticas milenares de manejo que estas culturas
tinham nos seus ambientes. Práticas que em alguns casos eram as
responsáveis pela manutenção de uma alta diversidade local. A
“erosão” cultural é, definitivamente, uma das significativas
causadoras da erosão da biodiversidade!
Nosso impacto sobre as espécies equivalentes à queda de
um asteroide ou outro fenômeno de mega extinção é parte da
equação da nossa “conquista” do planeta. Mas existe um
importante componente a ser analisado em relação ao modo em
que manejamos os recursos naturais. Diferente do Karajá, a maior
parte da energia e os recursos naturais que consumimos não está
diretamente relacionado a sobrevivência dos indivíduos, mas
necessidades ligadas à nossa evolução cultural e a grande
quantidade supérfluos da assim denominada sociedade
tecnocrática. Esta é uma das razões de sermos metaforicamente
comparáveis a um desastre ambiental astronômico, que
denominamos como os “meteoros bípedes”. Hoje cerca de 75% da
superfície terrestre da terra tem algum tipo de impacto direto da
ação humana e todo o planeta sofre impacto indireto em função
dos poluentes e dos gases do efeito estufa. O quanto deste impacto
poderia ser atuado apenas repensando nossos padrões de
consumo? Isto vale para o que comemos, vestimos, como nos
locomovemos e nos divertimos. Nosso consumo, muito além de
nossas necessidades ecológicas, pode justificar ética e mesmo
evolutivamente o desaparecimento de tantas espécies? Quando
comparamos o H. sapiens com qualquer outra espécie de
vertebrado de grande porte observamos que apenas aquelas que
de algum modo se associaram a nossa espécie tiveram sua
distribuição aumentada a partir do surgimento dos humanos
modernos. Os estudos mostram todas as espécies de grandes
vertebrados que não se associaram com nossa espécie quando não
foram simplesmente dizimadas pela caça e destruição do ambiente
em que viviam, ou tiveram suas distribuições bastante diminuídas.
O Karajá, portador de uma sabedoria ancestral, tem seus
hábitos moldados pelo ambiente. Já nossa sociedade tecnocrática
tenta moldar o ambiente à sua própria imagem e semelhança. Será
172
"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
que o mundo deve virar um grande Shopping Center e perder
toda infinita riqueza e beleza da biodiversidade? Não se propõe
aqui que meteoro bípede simplesmente volte ao passado e
denegue seus avanços tecnológicos, mas que nossa sociedade
possa aprender com as populações tradicionais as lições de
gerações de convivência e manejo antes que o meteoro caia nas
nossas próprias cabeças.
173
"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
Isso não vai para o relatório
Márcia Regina Antunes Maciel
Tenho minhas raízes e vivência na religião de Umbanda,
sendo neta de benzedeira, trago também na cara e no corpo a cor
da mestiçagem cabocla da maioria dos nascidos nessa terra Brasil.
Após o período de dutoramento, comecei a trabalhar em
consultoria ambiental, especializando em questões indígenas, e,
sempre que parto para algum trabalho, vou ao terreiro buscar
proteção.
Lembro que estava fazendo um trabalho para um órgão
indigenista, no estado de Rondônia, no qual compunha uma
equipe formada por uma bióloga, no caso eu, um engenheiro
florestal, agrônomo, pedagogo e o coordenador, que claro, era um
antropólogo, gente boa, experiente, das antigas, com certa
humildade raro de se achar no meio da Antropologia. Vou
preservar os nomes. Para otimizar uma das etapas do trabalho de
campo, formouse duas equipes. Ficando eu, o agrônomo e o
pedagogo em uma, e os demais na outra. Tratavase da elaboração
de um plano de salva guarda para um povo indígena. Entre outras
situações, a complexidade desse trabalho se dava, pois, a região
era e, é, de grande conflito envolvia madeireiros, garimpeiros,
missões, povos indígenas etc., etc.... A cada vinte ou trinta dias,
voltávamos para casa e depois retornávamos para o campo, isso
durou cerca de um ano e meio. A região é historicamente
complexa, lá brota o ouro, o diamante, tem a floresta rica em
madeira, atiçando ainda mais a cobiça humana, levando ao espólio
desvairado da mãe natureza. Os locais de exploração dos minérios
parecem formigueiros de tanta gente, doenças, bebidas, drogas, e
uma água/lama de mercúrio e outras coisas que circulam dia e
noite. Nas andanças por lá, vez por outras nos deparávamos com
pistoleiros, muambeiros (nacionais e estrangeiros), gente corrupta;
políticos, e, tristemente havia também boas pessoas em busca do
174
"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
pão de cada dia. E no meio disso tudo, estavam os indígenas
abandonados pelo poder.
Após um período de descanso, e às vésperas do retorno
para a área indígena, fui no terreiro fazer meu canjerê25, falei com a
entidade que lá estava, que era o caboclo26 Seu Sete Flechas. Disse
que estava retornando para um lugar onde iria trabalhar, e as
estradas não estavam boas, pedi proteção para que tudo corresse
bem. O caboclo pediu umas ervas e com baforadas do seu charuto
me benzeu com as ervas. Depois disse assim: “minha filha, lá não
será fácil, aconteceu algo triste lá. A mata lá chora de tristeza, a
terra lá sangra para fazer brilhar os olhos dos gananciosos... e
aqueles que moram lá, sofrem também. Mas, minha filha precisa
ir, vai, é seu ganha pão, seu trabalho. Caboclo vai ajudar”. Eu a
tudo ouvia e agradecia. E continuou as instruções: “Quando minha
filha chegar lá, vão botar vocês numa choupana. Minha filha vai
fazer assim, assim..., leva esse fumaçadô [charuto]”. Ele apagou o
charuto e me deu. Agradecida fui para casa e no outro dia parti
para a Amazônia.
Chegando na cidade onde era o ponto de encontro,
encontrei meus colegas de equipe, e no tempo certo, partimos para
área. Desta vez percorreríamos sete aldeias floresta adentro, por
estradas ruins (lama, buracos, troncos caídos). Por azar, na
segunda aldeia, meu dente que era parafusado, caiu, mas
continuei assim mesmo ora com dente ora sem dente, pois
desparafusava e eu tentava recolocálo no lugar, pois não tinha
como voltar à cidade e arrumar. Já lá pela quarta aldeia, os
indígenas nos receberam no início amistosamente, mas havia algo
estranho no ar, descarregamos a comida e estávamos nos
acomodando. De repente, começaram a falar no idioma materno,
logo tomaram a chave do carro, e disseram: “vocês estão presos
aqui... e não tem conversa, vamos prender vocês”. Um dos rapazes
25 Canjerê: Ritual de proteção..
26 Caboclos: são uma linha de trabalho de entidades de Umbanda, que se apresentam como
indígenas nos médiuns incorporados.
175
"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
da equipe tentou argumentar, mas logo foi silenciado por um
jovem que se armou de um arco e flecha dizendo que não queriam
conversa, queriam a presença da FUNAI, e do pessoal da saúde.
Um arrepio percorreu meu corpo, lembrei do caboclo bem que o
caboclo avisou! Silêncio total da nossa parte, enquanto isso, agora
já mais de vinte pessoas, falavam e bradavam em sua língua, sabe
se lá o que conversavam. Disseram que deveríamos ficar ali até
que decidissem o que fariam conosco. Conversamos entre nós e
não sabíamos ao certo o que fazer. Eu disse para mantermos a
calma, afinal estamos aqui porque eles nos chamaram, não éramos
invasores, não tínhamos feito nada de errado. Ficamos na casa.
Passaramse cerca de duas horas. Resolvemos fazer um lanche,
assamos um pão e um bolo para tomarmos um café, pois se fosse
morrer, que antes tomasse um café bem quente!
Tomando o café, voltou a lembrança do Caboclo Seu Sete
Flechas, vixii! estava tudo acontecendo como ele falou. Resolvi
andar pela casinha de madeira, e, ao entrar em um dos quartos,
percebi que era como o caboclo havia descrito. Valeime Nossa
Senhora! Outro arrepio percorreu meu corpo! Lembrei do charuto
e da vela, que estavam comigo. Chamei a equipe e disse: olha
gente, isso que vou dizer e fazer não vai para o relatório. Estamos
numa situação delicada aqui. Um colega falou, sim sabemos disso,
a coisa pode ficar feia. Retomei a palavra e narrei o que o Caboclo
havia falado dias atrás. Ouviram atentamente, outro colega mais
aflito, disse, então vamos começar logo a reza. O que foi mesmo
que ele disse para fazer? Não sou adepto de nada, mas agora, tá
valendo tudo. Então respondi: o caboclo disse que quando
estivéssemos presos, é para eu fazer uma "coisa". E um colega
perguntou: O que? O que? Um despacho? Eu disse, mais ou
menos... risos para descontrair. É sério gente, peço para fazermos
uma corrente positiva de pensamentos bons, emitindo muito
amor, buscando a proteção da Mãe Natureza. Eles falaram: tudo
bem, vamos vai dar tudo certo. Enquanto preparo as “coisas”, um
dos colegas disse ir de vez em quando em uns batuques, e, para
minha surpresa falou: “vai na fé e Saravá, que Oxóssi esteja
176
"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
conosco”.
Peguei um pratinho e fósforo, fui para o quarto e achei o
cantinho mencionado por Seu Sete Flechas. Lá coloquei a vela
acendi para o índio dono daquele lugar... depois o charuto... dei as
baforadas para o ar, mentalizei a energia dos caboclos da Mata
Virgem, o Caboclo Seu Sete Flecha e a Cabocla Jurema. Pedi ao
Orixá das matas, Oxóssi, proteção para todos ali, para que tudo
fosse acalmado e esclarecido. Fiz uma oração e mentalizei amor e
paz para todas as pessoas que lá estavam. Nos acalmamos e
ficamos no aguardo.
Passados uns vinte minutos, chegou uma comissão de
índios e nos levaram para o local onde estavam reunidos. Quando
chegamos lá, havia mais ou menos umas 80 pessoas, algumas
pintadas com urucum e jenipapo, outros com grandes arcos e
flecha e outros com bordunas. Nos posicionaram a frente do
grupo. Fizeram algumas perguntas, mas não nos deixavam
responder. E a cada momento, um deles falava, e falava, e falava...
isso demorou mais ou menos umas três horas. Já cansada, sentei
no chão, estava com sede e fome, todos nós estávamos, não deu
tempo de comer o pão, somente o gole de café. Mas nesse
momento, o melhor que se tem a fazer, é ouvir, pois tudo o que
querem é desabafar. Isso aprendi com os servidores da FUNAI,
aqueles das antigas que já passaram poucas e boas no trabalho de
indigenismo.
Já estávamos ali há quase quatro horas e parecia que tudo
caminhava para o final. Eles iriam nos levar de volta para a
casinha, nos deixariam lá presos até aparecer alguém da FUNAI
ou da Saúde. E, num ímpeto, pedi a palavra dizendo que gostaria
de responder as perguntas. Então, o cacique desconfiado autorizou
minha fala. Em pensamento pedi iluminação e sabedoria a Deus,
aos Orixás, aos guias, aos anjos e santos do céu, ao panteão todo.
Aos poucos fui respondendo os questionamentos, explicando o
motivo da nossa ida até a aldeia.
Também oportunizaram aos demais membros da equipe
falar. Dissemos quem éramos, onde morávamos, porque
estávamos ali, etc. Entre outras informações, mostrei literalmente a
177
"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
eles parte do nosso sacrifício para fazer aquele trabalho a pedido
deles mesmos. Eu estava sem um dente (aquele parafusado), que
havia caído em outra aldeia. Abri a boca e mostreilhes o buraco na
boca, pois optei por não ir até a cidade arrumar para cumprir o
compromisso assumido com eles. Relatei que o colega pedagogo,
toda noite gemia de dores na coluna, e mesmo assim, cada um
estava cumprindo com o compromisso. Foi então que, após meu
discurso, sensibilizando a todos, o colega pedagogo completou:
“enquanto vocês estavam aqui reunidos, juntos nós fizemos um
lanche, eu fiz o pão, ela fez o bolo e ele fez o café. Cada um fez
uma parte. E o que vocês acham? É melhor nós comermos
sozinhos esse lanche, ou convidarmos vocês para dividirmos esse
alimento?” E um coro respondeu: “é bom dividir”.
E ele
finalizou; é assim gente, nosso trabalho aqui é ouvir vocês sobre os
problemas, e juntos tentar achar uma solução para o que vocês
estão passando aqui. Vocês pediram para que fosse feito esse
estudo, foi feito uma seleção, e nós estamos aqui para isso, para
sermos a caneta de vocês.
Foi quando uma das lideranças tomou a palavra e explicou:
“sim, nós sabemos disso e pedimos desculpas, mas, o que
aconteceu aqui na aldeia, foi muito triste. Já tem um mês que uma
das nossas crianças passou mal, ficou com febre alta, muito doente.
E estava tudo alagado, a ponte tá lá caída, já pedimos e nada,
ninguém arrumou. Ficamos ilhados, não tinha como sair, ninguém
veio, a criança morreu nos braços da mãe. Nós chora muito. Nós
estamos aqui sem ajuda do governo, da saúde, sem nada. Nossos
velhos estão doentes, as crianças, todos nós doente. Depois
descobrimos que vocês não era da saúde, aí nos queria alguém da
saúde aqui. Mas depois descobrimos que vocês viriam mesmo, que
nós tinha pedido, isso é verdade. Então nós pedimos ajuda pra
vocês agora”. Àquela altura, eu já me debulhava em lágrimas, pois
quando ele narrou a morte da criança, algumas pessoas caíram no
choro e eu junto chorei. E continuou: nós vamos autorizar vocês
fazerem o trabalho de vocês. E nós queremos ajuda também, nossa
saúde tá precária”.
Dissemos que faríamos o possível para que fossem ouvidos,
178
"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
que aquilo constaria nos documentos, e o que estivesse ao nosso
alcance, faríamos. Mas, no fundo sabíamos que éramos
impotentes, pois o poder público ainda hoje tem descaso com as
questões indígenas. Nos dias seguintes, fizemos nosso trabalho,
saímos com as informações e tudo consta lá no relatório técnico,
fizemos um documento, protocolamos nas instâncias cabíveis, mas
sentíamos que seria só mais um caso do descaso, e assim
tristemente o foi.
Ao partirmos daquela aldeia, tive a impressão de ver à beira
da estrada um pequeno curumim com um cocarzinho reluzente,
agitando suas mãozinhas de infante, e com suas asas angelicais,
parecia flutuar no ar. Desapareceu na mata verde, agora repousará
nos braços da cabocla Jurema..., não sente mais febre, estará
cercado pelos querubins de Oxóssi que cantam assim: “Ele é
pequeninho, mora no Humaitá, sua madrinha é Yara seu padrinho
é Oxalá”.
Mas, isso não foi para o relatório, nem as velas, nem o
charuto e nem as lágrimas...
PS. Oxóssi: divindade das religiões de matriz africanas, orixá, que
representa o conhecimento e as florestas. Normalmente, representado pela
figura de um homem que tem em suas mãos um arco e flecha, considerado
uma espécie de guardião e caçador. Na Umbanda é também o “Rei dos
caboclos índios”.
179
"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
Viagem à Etiópia:
o banheiro da UNESCO
Márcia Regina Antunes Maciel
Tempos atrás fiz uma viagem à África, região da Etiópia,
junto com o professor Lin Chau Ming e nosso objetivo, foi
conhecer a agricultura tradicional desenvolvida naquele país.
Durante nossa viagem, tivemos diversos momentos, uns
emocionantes, outros alegres, e também alguns um pouco mais
tristonhos. E um desses momentos tristes, era quando nos
deparávamos com os grandes olhos negros das crianças que
vendiam “souvenir” em locais turísticos. A mim chamava a
atenção, além da situação dessas crianças, descalças, mal nutridas,
roupas surradas, também a maneira tão quieta como nos ofereciam
os produtos, ou apenas estendiam as mãozinhas em um pedido
silencioso. Como era penetrante aqueles olhos grandes, olhos
negros e molhados. Também senti a quase ausência das
instituições que tantas campanhas mundiais fizeram contra a fome
e a miséria, etc. e tal, afinal, ainda hoje, quando se fala em África,
pensamos logo na canção "We Are The World”, ao menos para nós
quarentões, foi algo marcante naquele tempo.
Lá na Etiópia, existe também a miséria, é um país em
reconstrução, saído de um pósguerra. Falta água em vários
lugares, a energia oscila, e, de duas a três vezes por dia, tem
apagão, e muitas outras mazelas inerentes aos países que durante
sua história sofreram agressões ao seu modo de vida, cultura, ou
foram expropriados das suas riquezas. E mesmo assim, lá como
aqui, tem gente que ri, dança, mulheres que vão ao salão, pessoas
vendendo frutas nas ruas, têm as igrejas católicas ortodoxas
lotadas de fiéis, orações nas mesquitas, carros transitando. Há um
colorido nas ruas feito pelas frutas e vestimentas das pessoas,
principalmente nos mercadões e feiras livres onde o comércio
fervilha, vendem de um tudo. É aquele vai e vem, com aquele
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"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
aroma delicioso de comida de rua misturado às flores, ervas e
plantas, e a vida segue.
Em um desses momentos de folga, fomos visitar as ruínas
do castelo da Rainha de Sabá (a pronúncia correta é: Shabat), e,
segundo eles, os etíopes, ela teria vivido um “affair” com o Rei
Salomão, e, conforme alguns historiadores, os dois teriam tido um
filho. Daí a linhagem salomônica e sabaítica ter certa importância
política e cultural lembrada até hoje pelas pessoas de lá, explicou
um guia turístico.
Andando pelo local, precisei ir ao banheiro, e, ao buscar por
informação, indicaram uma casa logo mais à frente. Notei que a
construção era diferente das demais. Era feita de tijolos e concreto,
uma construção imponente se comparada com as outras, que eram
de outros materiais, ou eram de barro ou de palha, e às vezes havia
uma lona preta por cima reforçando o telhado também de palha.
Nessa construção diferenciada, tinha bebedouro com torneiras e
água gelada, uma pequena área, um belo jardim, tudo cercado por
uma mureta, e um portão de ferro. Havia uma placa indicando
pertencer aquele espaço à UNESCO. Enquanto o Lin e nossos
acompanhantes olhavam os artesanatos, me dirigi até o local, e
chamei por alguém: Helou? Helou?
De repente, saiu de lá de dentro uma senhora já de meia
idade, alta, magra, branca de olhos azuis, com aquelas roupas que
parecia ter saído de um dos filmes do Indiana Jones. Ela me
atendeu com olhar fechado. Eu, como toda pessoa brasileira, abri
logo um sorriso e fui logo cumprimentandoa: Olá, boa tarde, tudo
bem? Estendendolhe a mão. A mulher (sem pegar na minha mão,
e, como dizemos aqui: me deixou no vácuo), disse num tom frio
contrastando com a quentura do local: O que você quer? E eu,
depois de recolher minha mão e de desmanchar o sorriso,
educadamente disse: por favor, eu poderia usar o banheiro? E, ela
olhoume de cima a baixo, e com um gesto, indicoume uma
direção, dizendo: Para lá. Caminhei para lá. Chegando ao local
indicado, vi três paredes feitas de palha secas. Entrei naquele
banheiro, e a latrina era um buraco no chão, com duas tábuas para
colocar os pés, para a posição de cócoras. Olhei para ver o que
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"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
mais compunha aquele banheiro, mas era só isso mesmo, palhas
secas e o buraco no chão. Não tinha cobertura, nem de palha,
fazendo com que o “suadô” fosse ainda maior. Não havia papel
higiênico, e por sorte sempre carrego meu papel higiênico (aliás
nos banheiros por lá, raramente se via este item). Mas
curiosamente em outras cidades por onde passamos, nos
banheiros, havia sempre uma pequena vasilha com um pouquinho
d’água que não era para descarga, já que tudo vai direto “para o
buraco”. Em alguns lugares daquele país, a construção dos
banheiros ou era de madeira ou de pedra ou de tijolos, e no chão
havia uma estrutura de louça para encaixar os pés (no da
UNESCO substituída pelas tábuas). Tinha portinholas, pia, e, às
vezes, até um espelhinho, onde dava para retocar meu batom
escarlate. E para que seria aquela água? Deveria ser para lavar as
mãos, ou as partes pudendas, imaginei. Porque aqui, lavamos as
mãos, mas antes, usamos o papel ou também lavamos direto com
um jato d’água essas partes (bom vocês sabem como é, né?).
Em outra ocasião comentei com o Lin, sobre a vasilha
d’água, ele também concordou que devia ser para as pessoas se
lavarem após fazerem as necessidades. Mas, retornando a cena do
banheiro da UNESCO. Lá estava eu naquela cabana velha, fiquei
imaginando aquela senhora alta, com suas roupas cor de cáqui “a
lá Indiana Jones” e seus iguais que lá trabalhavam, usando
também aquele banheiro. Ficariam eles “meio às vistas" dos
transeuntes? Eles de cócoras, a olhar o céu azul, sentido o sol na
cabeça? Não que eu seja uma pessoa “enjoadinha”, já fiz muitas
necessidades nas moitas, a céu aberto, em privadas, na estrada. Já
carreguei balde d’água para dar descargas, quebrei descargas nas
casas alheias, pedi papel higiênicos para os donos da casa, acendi
fósforo (vocês conhecem esse truque, né? Dizem que queima o
metano emitido pelas fezes, mas o melhor é jogar água sanitária, o
cheiro some rapidinho!). Claro que nada é melhor do que o
banheiro da nossa casa, onde temos total liberdade, a não ser
quando tem visitas na sala, rsrs!
Não tenho frescura em campo, durmo no chão, na rede,
como de tudo. Já comi diversos tipos de carnes: cotia, caititu, paca,
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"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
vários tipos de peixe, tomei vários tipos de chicha27, água de rio,
de filtro, de moringa, até da chuva. Comi batata doce assada, ovo
de ema, de tracajá, farofa de tanajura, ovas de peixes, frutas
silvestres e por aí vai. Tomo banho no rio, banho de chuva, de
balde com caneca, água fria ou quente, ou simplesmente passo
pano molhado no corpo, quando a água é escassa. Abro picadas no
facão, pego na enxada, faço buraco, capino, troco pneu, sei
cozinhar, também coleto plantas, faço exsicata, relatórios,
planilhas, palestras, aulas, etc. Meu único problema em campo, é
ficar sem café, ainda bem que nessa viagem eu estava no berço de
origem do café, graças a Deus não me faltou café.
Mas, fiquei ali imaginando aquela mulher branca com
quase dois metros de altura de cócoras com risco de cair no buraco
ao fazer suas necessidades, como seria? Fiquei imaginando a cena.
Não sei o que era mais bizarro, a cena imaginada ou eu naquela
cena, imaginando a cena da senhora de cócoras. Por fim, depois de
tudo terminado, lavei minhas mãos com um pouco da água que
sempre levo numa garrafinha, pois lá não tinha o galãozinho com
água. Fiz a higiene que foi possível, como se diz, é o que tem pra
hoje…voltei agradeci, e fui embora para o carro onde meus
companheiros me aguardavam.
Porém, um pouco indignada, perguntei aos etíopes que
estavam conosco, porque naquela bonita construção com a placa
da UNESCO e aquele belo jardim, porque o banheiro era de palha?
Faltou recurso para o banheiro? E as palhas estavam quase caindo!
Como fariam aquelas pessoas que trabalham lá se chovesse? Vão
sair correndo com as calças arriadas? O rapaz riu, e disse achar
engraçada minha entonação quando falei da chuva e calças
arriadas, e respondeu: Não, aquele banheiro é só para pessoas
externas, para eles, usam outro lá de dentro. E num tom meio
irônico, explanei: É mesmo?
Depois, já na estrada dentro do carro, pensando comigo
mesma, olhando a paisagem seca com seus casebres de palha
27 Chicha: bebida fermentada produzida pelos povos indígenas da América Latina. No Brasil pode
ser feita de mandioca, milho e até mesmo arroz.
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iguais às do banheiro, lembrei de outro momento onde naquele
país em certas localidades, as pessoas ficavam em imensas filas
para pegar um galão de água. Lembrei dos olhos negros me
fitando, triste e molhados, pedindo um “vintém’... lembrei daqui
da terra Brasilis, das crianças que de tanto ensacar carvão nas
carvoarias, deixam as vistas apenas o branco dos seus olhos
negros. Lembrei daquelas infantes soltas nos semáforos das nossas
ruas, as quais damos as costas, não enxergamos seus olhos negros,
azuis ou castanhos, sempre molhados, pois são elas capitães de
areia.
Volto meu pensamento para o céu azul da Etiópia que é tão
lindo quanto o da nossa terra Brasil. Vejo a paisagem seca por
natureza, olho sua gente também sofrida semelhante as cenas de
vidas secas... A nostalgia sentida era por nossa Pátria mãe gentil,
tão linda e tão castigada, mas, era também pelos grandes olhos
negros e molhados que estavam a me fitar.
Como folha solta ao vento, meu pensamento retornou para o
porquê daquele banheiro de palha. Por que ela me encaminhou
para lá? Nunca vou saber. Seria porque sou eu aqui mestiça e lá
nem isso? Seria porque era eu lá estrangeira? São tantos os
porquês...
Durante o resto da nossa permanência naquele país,
comecei a fotografar os banheiros por onde passávamos. E como
em muitos outros lugares, lá e aqui não é diferente, há um grande
desafio nas questões sanitárias, na desigualdade social, na luta
para vencer o preconceito que nos separa pela cor da pele.
Tentando fugir desses pensamentos, voltei a pensar no
galãozinho d’água, afinal para que serviria o tal galãozinho? Não
era para descarga… desconfio que fosse mesmo para lavar as
partes pudendas e as mãos após as necessidades, já que por lá,
existe o hábito de comer com as mãos, precisam estar sempre
limpas, raramente usam talheres.
Penso que o melhor é andar sempre com um rolinho de
papel higiênico, uma toalhinha e uma garrafinha com água, nunca
se sabe quando iremos nos deparar com um banheiro de palha da
UNESCO, aqui ou em qualquer parte do mundo, não é? Esses
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"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
banheiros só com paredes de palhas, um buraco no chão e uma
senhora Indiana Jones no portão.
Enquanto seguíamos viagem, as imagens bailavam na
minha mente. Eram as palhas secas ao vento, o sol causticante, os
grandes olhos negros comigo mirando as portas das “casas
grande” e as cenas de "Histórias Cruzadas" que latejavam,
latejam... Até que o soar do refrão da canção, deixou ainda mais
dolorido aquele momento:
.... “Como é que pretos, pobres e mulatos,
E quase brancos quase pretos de tão pobres são tratados,
E não importa se os olhos do mundo inteiro,
Possam estar por um momento voltados para o largo,
Onde os escravos eram castigados,
E hoje um batuque um batuque somos todos pobre”...
Se você for a festa do pelô, e se você não for,
Pense no Haiti, reze pelo Haiti,
O Haiti é aqui,
O Haiti não é aqui. (Caetano Veloso)
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"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
Encosto
Maria Christina de Mello Amorozo
O balançar das folhas de coqueiro no ar parado havia dias
prenunciava mudança. Já ia para mais de um mês que a falta de
chuva e o calor opressivo não a deixavam dormir. Banhavase toda
noite na lagoa, já quase seca, para se refrescar, mas o efeito não
durava muito.
Remexeuse na rede. Do outro lado do cômodo, Tomé
dormia a sono solto. Como é que ele consegue, com esse calor? Em
outros tempos, também era assim com ela. Agora... não sabia o que
acontecia. Alguma coisa devia estar errada. Tinha a impressão de
que um encosto, um exu, uma coisa ruim qualquer se alojara em
seu corpo. Desassossegava. Não conseguia fazer nada. Começava,
um exemplo, capinar os pés de mandioca, lhe assaltava um mal
estar, um enrijecimento do corpo, tinha que parar. O pior era o
aperto por dentro. Parecia que lhe estavam espremendo, o quê? A
cabeça, o peito, o estômago, o baixo ventre. A coisa percorria
caminhos por dentro dela, constringindo, empurrando, puxando,
judiando. Olhou para o Tomé com inveja. Não movia um músculo;
se não fosse o subir e descer da barriga, dirseia que estava morto.
Também, o pobre pegava no pesado de manhã até a noite.
O que eu estou fazendo aqui, dentro desse corpo meio
desbeiçado? Queria um corpo novo em folha, pra poder apreciar
em toda grandeza o resultado do meu trabalho de desconstrução.
Esse aqui, já estava carcomido bem antes de eu começar. Corpo de
gente pobre. Por aqui, é só isso que tem. Fazer o quê? Mas até que
dá pra divertir: desembesto pelas veias (e vou no contrafluxo!),
trombo nas paredes de um lado e de outro da barriga, ricocheteio
no fígado, subo pelo tubo da comida, quase saio pela boca, mas
volto, cutuco os pulmões e a tosse me devolve pra boca, volto pro
tubo, quase saio pelo outro lado, mas não quero sair. Já sei que não
estou sozinho. Tem mais alguém aqui, logo, logo a gente vai se
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"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
encontrar e não se larga mais. Vamos criar, criar, criar, quem sabe
quantos outros corpos os nossos rebentos não vão achar por aí? A
vida até que é boa pra nós.
Tomé, não aguento mais. Vou lá no terreiro, ver se a mãe
desanto dá um jeito em mim.
E foi. A mãedesanto examinou, assuntou bem, determinou
encosto. Minha filha, tem que fazer trabalho pro encosto sair. Vai
vir três semanas seguidas nas sessões de descarrego. E vai tomar
todo dia de manhã, em jejum, pé de mastruz amassado no pilão
com semente de mamão e hortelã, tudo misturado no leite. Você
vai ficar boa.
E não é que o encosto saiu mesmo?
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"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
Chi´ibal uj
María Teresa Pulido Silva
A la memoria del etnobotánico Dr. Javier Caballero Nieto
Bajo la noche tibia, la luna y el sol hacen el amor. La gran
luna se va tapando poco a poco y queda muy oscura la noche.
Siguen en su romance, mientras suenan los tiros angustiados de las
carabinas, para ayudar a que se separen. Dicen que, si no se les
echan los tiros, podría pasar que no viéramos el sol al día
siguiente. ¿Te imaginas? Parece ser que funcionó, pues poco a
poco se empezó a ver la luna de nuevo y al otro día hubo un
habitual chokoj k´iin, que expresa que está muy caliente el sol. Pero
antes de amanecer, como a eso de las tres de la mañana, mucha
gente, sobre todo jóvenes, salen de sus casas, van con su morral al
hombro, con sus ropajes muy limpios y abordan grandes
autobuses enviados por los dueños de los hoteles. Es la vida de
hoy para cientos de jóvenes quienes viajan dos horas hasta el hotel,
trabajan, y en la noche quizá como a eso de las 7 pm, después de
otras dos horas de viaje, regresan de nuevo a su casa ovalada y
fresca, techada con palma de xa´an. Sus familias los reciben con
chachacuá, frijol colado, waaj, pollo en escabeche, y salsa de chile
habanero. Es hora entonces de tomar un baño, platicar, ver la
novela de las 8, salir a chan pasear y prepararse para la próxima
jornada.
No son los únicos en madrugar. Los mayores, salen antes
del amanecer en su bicicleta. ¿Tu´ux ka bin? – pregunta el nieto –
“Tin bin ich kool” responde su abuelo milenario. Le dice así que
“está ido en su milpa” – está yendo a su milpa, a su roza, a donde
han de ir a sembrar, a cazar, a leñar, a enamorar, a hacer un rezo y
quizá un día a morir. Tiene su sak´a kool, pero también está
haciendo una milpa nueva. Ese día precisamente tiene planes de
quemar. Necesita que el monte que cortó hace algunos meses,
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"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
cuyas hojas y troncos ya se han secado bajo el sol, sea convertido
en cenizas para en ese momento tener un buen terreno para
sembrar su ixi´im, bu´ul, ib, iik y muchas plantas más para comer él
y su familia. Ah, por cierto, el ixi´im es el maíz, bu´ul es el frijol, los
ibes también son otra clase de frijol y pues no podía faltar el
picante o chile, llamado iik. Quemar su terreno es una de las
labores requeridas para lograr una buena milpa. Entonces, hacia la
tarde, empieza a silbar, empieza a cantar, es lo que escuché.
Aunque en realidad no es sólo esto, pues con sus silbidos llama al
dios del viento para que le ayude a que su terreno quede bien
quemado. Lo hace como lo han hecho sus antepasados por tres mil
años… invocando a su aliado el dios del viento.
Se empieza a estremecer la naturaleza con este fuego, crujen
los troncos y las ramas, y de repente suena algo fuerte como una
explosión dicen que se trata de las serpientes que estallan con el
fuego. Arde un buen rato y después se apaga. La lumbre no se
brinca porque hicieron una guardarraya para que la vegetación
que rodea a esta milpa no se queme. Pero dicen que a un señor se
le brincó la lumbre e hizo un gran quemadal o tóok. Los del pueblo
ayudaron a apagarlo.
Es noche, el nieto regresa cansado de trapear el hotel o de
ser “camarista” y arreglar habitaciones a contra reloj. Lo bueno es
que a veces los canadienses, o franceses que son los que más van
o algún gringo o quizá un nacional les deja una buena propina.
La vida diurna en el hotel es buena, mucho trabajo, pero una paga
segura. Hablan su lengua materna mientras trabajan, y a veces
tienen la suerte de conocer a alguien de otro pueblo. Una
muchacha llega esa noche a su casa a decirle a su mamá que un
muchacho de Santa Rosa o de XPujil “le habló”. Quiere decir que
el amor tocó a su puerta. La mamá le cuenta la historia de cuando
su papá “le habló” en un baile, que era donde antes se enamoraban
en ese pueblo. Y el nieto se entera que su abuelo ya quemó la
milpa y que entonces necesita de su ayuda en su día libre para ir a
sembrar la milpa juntos.
Son las seis de la mañana y suena la bocina de don José,
despertando a todo el resto del pueblo que aún esté en la hamaca,
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"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
como yo. Después de algunas tonadas guapachosas, anuncia en
dos idiomas que hay venta de tamales en la esquina del parque o
que don Genaro mató cochino. Ese día es domingo. Hay cierta
molestia porque el abuelo milenario y su hijo van a ir a la iglesia,
mientras que el resto de la familia irá al templo. A veces no es una
molestia, pero definitivamente ya no van a hacer en familia su
Cha´a Cháak o petición de lluvia a la milpa. Unos tíos también irán
al templo, otros familiares van a pak´ach waaj o tortear en la casa
del más antiguo del pueblo, pues allí todos llevan algún pedazo de
gallina cruda para cocinarlo en una inmensa olla para todos y
tortear entre todas las mujeres y hacer una gran reunión de
muchas familias. Incluso yo, que antes de llegar al pueblo no sabía
tortear, debía ir a ayudar en esta labor para la gran fiesta comunal.
Pero tengo una buena justificación de mi ignorancia: hasta llegar al
pueblo prácticamente no conocía la tortilla porque donde nací no
se acostumbra. Sin embargo, para ellos esa no fue una buena
disculpa, y en la tarde que llegué por primera vez al pueblo,
aprendí por presión social esta labor básica que toda mujer debe
saber allí.
Pero esta no es la única fiesta comunal, hay varias otras en
donde prácticamente todo el pueblo participa. Alguna vez me tocó
la suerte de estar cuando trajeron al santo desde otro pueblo. Lo
traen por entre el monte, escoltado por hombres con carabinas, que
tienen toda la actitud de defender al santo ante cualquier tipo de
enemigo natural o sobrenatural. Van en un tipo de marcha, en fila,
custodiando al santo hasta entrarlo en su iglesia. Estos hombres
semejan y creo que se inspiran en las historias de la Guerra de
Castas, pues tienen diversos cargos militares. Unos son sargentos,
hay un coronel, hay soldados, aunque todos son los mismos
hombres milperos de los que hablábamos, que durante la fiesta
toman un cargo militar. Mientras este ejército protector del santo
dedica más de una jornada para ir por él, otros hombres están
desde temprano en la iglesia haciendo los preparativos. A la
iglesia la gente debe entrar descalza, so pena de ser golpeado con
plantas espinosas. En un costado de la iglesia está un grupo de
hombres haciendo unas tortillas especiales, sólo vistas en esa
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"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
ocasión. Son tortillas muy gruesas y sólo hechas por los señores,
aunque comidas por todos. Creo que tenían ibes. A mí me supo a
arepa, pero supongo era el sesgo de mi paladar suramericano. Se
reza, se ríe, se come, se escuchan los violines y las canciones en
una lengua indígena, todo esto en la iglesia principal, la iglesia de
palma de xa´an.
Pero no les he contado algo muy importante de este pueblo,
y es su arquitectura. Podríamos hacer un cuento especial sobre la
palma de xa´an o palma de guano. Xa´an significa “el que da
sombra”. Y sí, es el que ha dado sombra a la gente de este pueblo y
de esta región durante los últimos tres mil años, como ha
investigado mi profesor XJavier a quien apodaron ka´anal o muy
alto. ¿Te imaginas que tus padres, abuelos, bisabuelos,
tatarabuelos y los tatarabuelos de los tatarabuelos hicieron su casa
con hojas de esta misma palma?, ¡ha de ser muy buena! Vaya que
sí lo es. Muchas casas de este lugar son techados con xa´an, aunque
cada vez hay más con mampostería. Sobre todo las nuevas
familias, usan otro tipo de techos. Sin embargo, todos los del
pueblo – que ya son más de 3,000 personas – tienen una, varias o
todas sus construcciones con la palma xa´an. El material de las
paredes es muy variado. Algunas veces son hechas con palos
delgados que permiten cerrar la casa, pero ver hacia afuera. Es por
eso que desde adentro de la casa puedes ver si ya llegó el autobús
que trae a los trabajadores de los hoteles. No son una costumbre
las ventanas, excepto en las nuevas viviendas que les regaló el
gobierno, que ya traen un tinte de modernidad y kilos de calor
sofocante, que más sirve de bodega o tienda que de casa. Será por
eso que no se les llama naj o casa sino vivienda.
No puedo terminar este cuento sin hablar de uno de los
sitios más fantásticos de este lugar. Allí, en medio del monte alto o
nukuch k´áax hay una grande laguna con dos cenotes adentro,
cristalina, natural, fresca y viva. Todos en el pueblo van a la laguna
a chan pasear con su nojoch familia. Allí las familias van a
refrescarse en la orilla de la laguna y descansar un poco. Es un
plan sencillo, pero muy acostumbrado. Es tan grande que la
puedes ver desde tu computador. También puedes ver la milpa de
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"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
este abuelito milenario y puedes ver el pueblo, el tóok, el nukuch
k´áax, y el sak bej o camino blanco.
A todas estas, espero que después de tantos detalles hayas
descubierto por ti mismo en qué lugar ocurrió todo esto. ¿Al
menos sabes en qué región, cierto? Esta historia ocurrió y ocurre
hoy en El Mayab, en la tierra del faisán y el venado, en las
cercanías de la Riviera Maya, en las proximidades de Cancún,
“Playa” y “Carrillo”. Este es el pueblo de Señor, Quintana Roo,
visto por los ojos de XTere, originalmente nacida en Colombia y
vuelta a nacer en Señor.
Este cuento no es tan cuento, pues ocurrió y ocurre en uno
de los lugares más lindos del mundo. ¿Sabes en qué idioma están
dichas las palabras “raras” de este cuento?... es en el maya actual
que, aclara el nieto, es muy distinto al que habla su abuelo, pues su
abuelo “sí habla la verdadera maya”. La maya en este cuento
posiblemente no esté absolutamente bien escrita, pues sólo aprendí
a chan hablarlo.
Con este cuento que no es cuento espero que cuando
vayas de vacaciones a Cancún, mires con respeto a ese camarista, a
esa persona del aseo, porque estos mayas son descendientes
directos de quienes conformaron la famosa Civilización Maya. Sí,
hablo de aquel mismo pueblo maya – famoso y glorificado – que
fue capaz de construir una civilización en la agreste Península de
Yucatán, que concibió el concepto del número cero antes que
cualquier otra civilización en la Tierra, que fue capaz de construir
un observatorio astronómico en el hoy llamado ChichénItzá y
proyectar con precisión los movimientos de los astros y calcular
los eclipses de sol y los de luna o chi´ibal uj. Todo esto lo resume un
mural en la casa de la cultura de “Carrillo”: “la zona maya no es
un museo etnográfico, es un pueblo en marcha”.
Dios bo´otik.
XTere, a 22 del 02 del 2020, en Pachuca, Hidalgo, a 20 años de
nacer en Señor y verlo crecer.
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"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
Rádio de pilha
Mario Rique Fernandes
‘Porque tudo no mundo acontece’.
(Cartola)
Certas coisas acontecem que só tempos depois a gente se dá
conta. E aconteceu uma situação dessa comigo em uma aldeia com
os índios Apurinã, na região do rio Purus, no Sul do Estado do
Amazonas, durante o meu doutorado. Uma anedota curiosa sobre
as pessoas da casa onde me hospedei, cujo valor etnográfico –
como os índios fazem para resolver questões domésticas
importantes no cotidiano , talvez mereça uma existência literária.
O caso se sucedeu na casa do cacique da aldeia, cujo nome
utilizado será fictício, em respeito à sua privacidade e a de sua
família. Na época em que me hospedei em sua casa, Osvaldo havia
se casado há poucos anos com Val. Os dois formavam um casal
muito bonito. A beleza de Val era arrebatadora. Os Apurinã são
um povo numeroso e diverso, cujos traços físicos são os mais
variados possíveis, resultante do processo de miscigenação – ou de
mistura ao longo de um século e meio de relação com os brancos
(cariús), principalmente com os bravos sertanejos nordestinos que
para lá migraram nos tempos da borracha. Os pais e avós de
Osvaldo e Val, porém, eram indígenas; seus corpos, assim, são
mais próximos da imagem idílica que temos dos corpos índios no
Brasil. A impressão era de que os dois tinham saído de um quadro
de Anita Mafaltti. Val era alta e forte, ombros largos, queixo
angulado, lábios carnudos, cabelos brilhantes negros, de olhar
penetrante, e era uma mãe brava e terna ao mesmo tempo. À
época tinham um casal de crianças o menino com quatro anos, a
menina com dois.
Como a grande maioria dos indígenas no Brasil de hoje, os
Apurinã são beneficiários de programas sociais, como o Bolsa
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"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
Família, aposentadorias, saláriomaternidade, além de trabalhos
contratuais como agentes de saúde e professores indígenas. Tais
programas, uns mais, outros menos, seja para o bem, seja para o
mal, têm influência direta na rotina das aldeias. Todos os meses,
cada núcleo familiar se organiza para ir à cidade mais próxima
receber seu salário do governo – na época era “o dinheirinho da
Dilma” e comprar o seu ranchinho mensal – sal, açúcar, café,
sabão, anzol, linhas, isqueiro, munição, lanterna, pilhas etc. Não
muito diferente dos tempos do seringal, digase. A diferença era
que as mercadorias – fundamentais para se viver na floresta,
dentro dos atuais padrões de vida , eram adquiridas nos
barracões e/ou com os barcos na beira do rio Purus, através da
troca com tudo aquilo que era produzido na aldeia – borracha,
castanha, farinha, peixe banana, caça etc. O Bolsa Família, assim
como os salários e as aposentadorias, trouxeram de certa forma
mais liberdade aos indígenas, pois já não se tem mais tanta
necessidade de vender a produção a preços irrisórios nos barcos
marreteiros, feiras e mercados da cidade.
Durante minha permanência na aldeia era necessário de vez
em quando acompanhar os “parentes” à cidade para comprar um
ranchinho e saber notícias da família e das “terras civilizadas”.
Viagens que, digase de passagem, podiam levar muitas horas
sentado em canoas – chamadas de ‘rabetas’ singrando as
infindáveis curvas e voltas das preguiçosas águas do rio Purus. De
uma dessas excursões, havia trazido para o meu anfitrião uma
cartela de pilhas grandes, a pedido seu, para ligar um rádio que ele
havia ganho da sua mãe que era aposentada. A casa do Osvaldo,
estilo padrão seringueiro, era assoalhada de madeira, acima um
metro e meio do chão, e coberta de palha. Era uma casa pequena,
para uma família pequena. Tinha um cômodo, o quarto onde o
casal dormia com as crianças, protegidos por um amplo
mosquiteiro de pano. Todas as noites eu armava minha rede e o
mosquiteiro na frente externa da casa, aberta, que servia ao mesmo
tempo como sala de estar, de jantar e de varanda. Embora o quarto
fosse um pequeno cômodo dividido por paredes de madeira, a
percepção acústica era como se não houvesse nada nos separando.
194
"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
Qualquer passo no chão, qualquer ronco, peido, suspiro, cochicho,
enfim, qualquer barulhinho no silêncio da noite era passível de se
ouvir de ambos os lados.
Mas naquela noite Osvaldo finalmente pode ligar o seu
radinho de pilha como era de costume. Na verdade não era um
radinho de pilha, desses que o meu sogro coloca ao pé da orelha,
baixinho, para dormir. Era um rádio grande, antigo. Ele havia feito
a maior propaganda desse rádio, que pegava várias estações do
Acre e do Amazonas etc. Aquela noite, após algumas tentativas de
sintonizar as ondas de rádio em meio a maior floresta tropical do
mundo, dormimos ouvindo a Rádio Nacional de Brasília. A
princípio achei estranho ouvir a rádio em uma altura considerável
na hora de dormir. Mas depois de um dia inteiro viajando pelo
Purus e mais uma hora caminhando na mata para chegar na
aldeia, adormeci ao som das histórias e músicas caipira do
programa daquela noite. Todavia, essa circunstância se repetiu
outras vezes, tanto na hora de dormir, quanto no romper da
aurora. Confesso que chegou uma hora que comecei a acordar com
raiva do rádio e do Osvaldo. Perguntava aos meus botões: qual a
razão de ligar o rádio nessas alturas às cinco da manhã? Que falta
de respeito! (rsrs).
No ano seguinte, ao retornar para o campo, reencontrei o
casal na cidade. Estavam passando um tempo na casa de uma tia.
Val estava no sofá da sala dando de mamar a um bebê recém
nascido. Ao sair da casa me lembrei do rádio. Aquele rádio,
huuum, aquele rádio no meio da floresta... deu no que pensar.
195
"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
Aprendendo com as castanheiras
Mario Rique Fernandes
A bondade em palavras cria confiança;
a bondade em pensamento cria profundidade;
a bondade em dádiva cria o amor.
LaoTsé
Há um trecho de uma entrevista do fotógrafo Sebastião
Salgado disponível no Youtube em que ele responde uma
pergunta sobre como fazia para se comunicar com povos e
comunidades mais distantes no mundo, falantes de idiomas
totalmente estranhos a nós. Reconhecido mundialmente como um
dos maiores fotógrafos documentais da atualidade, mestre na arte
de fotografar a condição humana em sua alteridade máxima – em
ambientes extremos de guerra, pobreza, fome e seca , para
Salgado, a empatia e o tempo são os principais ingredientes para
estabelecer uma comunicação compreensiva entre humanos. Trata
se de uma questão, diz, “de você compreender e as pessoas
compreenderem o desconforto desse relacionamento”, mas por
maiores que sejam as diferenças culturais, “para mim era
facilíssimo, é a minha espécie, as reações eu sei todas”.
Contudo, Salgado diz que em seu último grande projeto
fotográfico – Gênesis – teve que aprender algo diferente. Não se
tratava mais de entender e documentar Outros humanos, mas de
tentar compreender a lógica de Outras espécies. “Há uma grande
mentira que se conta”, diz na entrevista, “que somos a única
espécie racional desse planeta”, “[quando na verdade] há uma
racionalidade profunda dentro de cada espécie” (grifos meus). Em
comparação aos trabalhos anteriores, a dificuldade de se
comunicar e documentar a existência de alteridades não humanas
foi muito maior. Como capturar a dignidade de uma senhora
tartaruga gigante das ilhas Galápagos com 250 anos de idade?
196
"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
Trago à lembrança essa entrevista para contar uma
experiência semelhante que me marcou profundamente: foi um
encontro que tive com um coletivo de castanheiras amazônicas
(Bertholletia excelsa), durante meu doutorado com os índios
Apurinã, na região do rio Purus, no Sul do Estado do Amazonas.
O encontro foi marcante porque eram árvores centenárias, quiçá,
mais velhas que a tartaruga das Galápagos retratada por Salgado.
Um dos objetivos da minha pesquisa era realizar uma etnografia
sobre o extrativismo indígena da castanha, investigando a relação
dos Apurinã com os castanhais paisagens na floresta com
concentração da espécie. Estava interessado em compreender os
modos como que essas árvores e paisagens eram socializadas pelos
índios.
Era uma manhã de agosto, a verde sombra da floresta
filtrava a luz de um sol escaldante do verão amazônico. Estávamos
indo visitar o castanhal chamado ‘Pique Redondo’ da família do
seu Raimundo, o cacique da aldeia onde me hospedava. Dias antes
havíamos passado por ali voltando de uma pescaria em um dos
inúmeros igarapés que atravessam o território da aldeia. Como
estávamos com o paneiro28 e as mãos carregadas de peixes, não
houve tempo de parar para olhar as centenárias castanheiras, mas
a presença delas não me passou despercebida. Pedi ao cacique que
no dia seguinte me levasse para conhecêlas. Chegando lá,
seguimos o emaranhado de trilhas – os chamados ‘piques de
castanha’ que levam às castanheiras espalhadas pela floresta, e
que formam uma espécie de textura na terra. Durante a caminhada
íamos conversando, trocando ideias, parando para tirar fotos e
medindo o diâmetro das árvores mais grossas. Voltamos para a
aldeia, almoçamos e fui fazer a minha sesta na rede. Quando
peguei no diário para escrever algumas notas e reflexões, ainda no
calor da visita, comecei a me dar conta o que realmente tinha
acontecido ali.
Até onde alcançava a memória do Raimundo, ele constitui a
28 Paneiro é um cesto grande, de carregar coisas, trançado com cipós da floresta. Os Apurinã
costumam brincar que ele é a “mala” do índio.
197
"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
quarta geração que quebra castanha naquele castanhal – ou seja,
estamos falando de mais ou menos cem anos de história. O ‘Pique
Redondo’ fazia parte de uma antiga ‘colocação’ de um índio
seringueiro apurinã chamado Mané Artur. Depois dele, quem
passou a ocupar a colocação foi Júlio, um seringueiro sertanejo
casado com uma Apurinã, filha de seu Mulato, famoso guerreiro
do Jagunço, uma antiga aldeia Apurinã localizada no alto do
igarapé Peneri. O cunhado de Júlio, seu Agostinho Mulato, que
tinha uma colocação próxima, também quebrava castanha neste
castanhal. Nessa época, antes da demarcação da TI, havia muitas
colocações ao longo do igarapé Peneri de seringueiros, de índios e
de seringueiros brancos casados mulheres Apurinã. O avô do
Raimundo, o finado Pedro Carlos, era o patriarca de uma enorme
parentela apurinã que chegou neste igarapé, após a derrocada do
antigo Posto Indígena Marienê do Serviço de Proteção aos Índios
(SPI), nos anos 30 e 40 do século passado. Pedro Carlos nasceu no
igarapé Sepatini. Após a morte do pai, em decorrência de conflitos
com outras parentelas apurinã, saiu ‘rodando pela região’. Passou
pelo Tumiã e de lá para o rio Seruini na época do Posto Marienê,
onde ‘trabalhava como capanga do Major de Barros’. No Seruini,
encontrouse com o futuro sogro, seu Joaquim, que era na verdade
seu tio materno – irmão da mãe, também do Sepatini. No Posto
Marienê, casouse com Raimunda, filha de seu Joaquim e dona
Mariquinha. Saíram do Marienê e vieram para o Peneri abrir
colocação. Abriram em uma área mais acima do igarapé. Viveram
em quatro colocações antes de chegarem à área da aldeia onde
vivem atualmente.
Pedro Carlos casouse com as cinco filhas de seu Joaquim,
com as quais teve dezenas de filhos (na faixa de trinta a quarenta!).
Uns morreram, outros se perderam, outros foram embora, outros
permaneceram no Peneri, sendo hoje, os atuais chefes dessa
extensa família da aldeia em que me hospedava. Quando
chegaram ao local onde hoje fica a aldeia, o pai do Raimundo, o
finado Rael, um Apurinã nascido no vizinho igarapé Tacaquiri e
antigo cacique da aldeia, passou a quebrar castanha no ‘Pique
Redondo’ junto com o Júlio, de sorte que fizeram muita amizade.
198
"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
Quando Júlio foi embora para Lábrea, após a demarcação da Terra
Indígena, passou o castanhal para o compadre Rael. Raimundo
está na faixa dos seus trinta anos e desde que se entende por gente
quebra castanha ali. Depois que o seu pai morreu, há uns quinze
anos, o castanhal ficou sob a responsabilidade da sua mãe, dona
Darcy e, por conseguinte, sua família (ele, a esposa e os filhos) e a
família de seus irmãos continuam a quebrar castanha todos os
anos neste local.
Esta é mais ou menos a história do ‘Pique Redondo’, tal
como consegui montar a partir dos relatos de Raimundo e de
outras pessoas da aldeia. Certamente a memória do Raimundo seja
curta demais quando comparada à das árvores centenárias que
formavam aquele castanhal. Ali não era um canto qualquer da
floresta, aquelas árvores marcavam uma “presença” naquele lugar.
Vale lembrar que estávamos ali de visita, não estávamos ali
quebrando castanha. Pensando no tipo de relação que estava
sendo estabelecido naquela ocasião, na minha condição de um
privilegiado “turista aprendiz”, a sensação era de que o
Raimundo, sempre muito à vontade, estivesse me apresentando
parentes em uma aldeia. Aquele lugar e aquelas árvores ancestrais
eram uma extensão do seu parentesco. E o que é difícil dizer em
palavras, é que aquela “presença” que eu sentia ali estava nos
correspondendo. É surpreendente, mas sentia que estávamos
sendo observados também. Lembro que ao mirar minha câmera
para aquelas árvores imensas de quarenta, cinquenta metros de
altura, algumas chegando a oito metros de circunferência na altura
do peito, a impressão era de que elas estavam “posando para o
retrato”. Por alguns segundos veiome à mente a imagem da dona
Darcy, sua “presença” serena, calada, de gestos delicados e
bondosos. Ao longo desses últimos anos trabalhando com os
Apurinã, tive o privilégio de conhecer anciões e anciãs como dona
Darcy, que assim como aquelas castanheiras, tinham corpos e
espíritos lapidados pelo tempo de uma vida inteira habitando a
imensa floresta amazônica. Quanta memória não havia naquele
lugar, naquelas árvores? Imaginese plantando os pés (ou a cabeça)
na terra e habitando um local, o mesmo, por centenas de anos,
199
"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
coexistindo e interagindo com uma diversidade de outros
organismos vegetais e animais (humanos e não humanos), visíveis
e invisíveis. Quantas tempestades tropicais, relâmpagos, trovões,
noites escuras, estreladas, enluaradas; quantos dias ensolarados de
verão; quantas vozes, sons, aromas, aquelas castanheiras não
guardavam em seu corpomemória vegetal?
Embora trivial como trivial é estar embaixo da sombra de
uma árvore – esse passeio pelo ‘Pique Redondo’ teve algo de
revelação. Retratar essas castanheiras centenárias me afetaram.
Nos termos de Marilyn Strathern, podese dizer que foi um ´efeito
etnográfico´, ou seja, aquelas imagens fugazes que durante o
trabalho de campo são capazes de condensar em questão de
segundos toda a nossa pesquisa. A analogia dessas árvores com os
anciões e anciãs Apurinã não era apenas uma questão temporal.
Havia ali naquelas castanheiras a mesma aura de humildade e
bondade que eu sentia nas aldeias junto aos meus anfitriões e
anfitriãs. Uma sabedoria constituída no processo de habitar um
lugar, compreendido aqui no sentido mais profundo do termo, ou
seja, não apenas viver na floresta, mas da e com a floresta. Ao
compartilharem essa condição comum, e em estreita relação entre
si, humanos e castanheiras passariam a ser animados por uma
mesma vitalidade?
Deitado na minha rede naquela tarde ensolarada escrevi em
meu diário as seguintes palavras: “talvez o significado profundo
da vida dessas castanheiras seja a dádiva. A dádiva como condição
relacional e constitucional desses seres... a consubstancialização da
palavra amor”. Em uma das mais belas canções de amor da música
popular brasileira, o compositor e sambista Cartola cantava na
década de 1970: “queixome às rosas, mas que bobagem as rosas
não falam, simplesmente as rosas exalam o perfume que roubam
de ti”. Concluo esse relato dizendo que às vezes só os grandes
poetas e filósofos são capazes de expressar essas “questões de
fundo” que por vezes aparecem durante nossos trabalhos de
campo, e que nos afetam, e que nos ensinam a sermos pessoas,
quem sabe, um pouco mais sábias.
200
"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
Una curación en el Sahel
Matías PérezOjeda del Arco
“Está enferma, le duele el costado derecho y la cabeza”, me
dijo Florie con tono ansioso al verme entrar a la pequeña
habitación de una de la docena de casas y campamentos de paja
seca y ramadas que componen el caserío Belli Bambi, en la Reserva
del Ndiaël en Senegal, cerca de la frontera con Mauritania. Había
abandonado las lecciones efímeras que los niños del caserío me
daban en Pulaar sobre cómo nombrar esas numerosas espinas que
se le pegan a uno cuando transita por las arenas del Sahel, y en su
búsqueda, la encontré sentada al costado de una anciana que
vestía de violeta y que se quejaba de un dolor que le cristalizaba la
mirada. ¡Salam Aleykoum! atiné a decir en mi entrada, ¡Maleykoum
Salam! respondió su voz magullada. La anciana se encontraba
recostada sobre un colchón pequeño de espuma sobre el cuál había
una pequeña alfombra de esas que se usan para la hora de la
plegaria. Florie se encontraba al frente suyo, la anciana, con unas
débiles señales con las manos me indicó sentarme, a unos metros
al lado, en otro pequeño colchón un poco más gordo del que ella
utilizaba. La habitación, que era en verdad un oasis fresco a la una
de la tarde, tenía unos tapizados coloridos entrepuestos que, junto
a la cobertura de su única cama, resaltaban como un flash
fotográfico. Al menos un par de docenas de ollas, baldes, vasos, y
copas empolvadas se ubicaban alrededor de la cama, dando la
impresión de no haber conocido el significado del uso jamás.
Finalmente, un poster con una imagen de la Meca colgaba sobre
una de las paredes verdes de la habitación, y que a su vez
contenían algunas escrituras blancas en árabe, algo ya borradas
por las temporadas en el Sahel. Después de haberme ubicado en el
colchón, una cuarta persona llegó a la habitación, fue entonces
cuando algún sinónimo perdido de consuelo comenzó a generarse
en la cristalizada mirada de la anciana y en su rostro arado y seco,
201
"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
donde no cabían las osadías o travesuras de las arrugas infantiles.
Era una señal de desahogo, casi como aquellas agónicas palabras
de gratitud que pudiesen intentar esbozar las abatidas arenas de
esta región, cuando llegan esos escasos casi dos meses de lluvia al
año que les permiten almacenar, si es que acaso se puede, el
siguiente soplo de vida para la temporada siguiente. Quien
entraba era un anciano que llevaba unas gafas negras para el sol y
bien rayadas por el uso, un turbante blanco empolvado en la
cabeza, una túnica blanca entrada en años, uno pantalón azul algo
suelto, y un bastón delgado de madera de más de un metro de
largo, pulido finamente y con un color de la madera del pino
fresco, como si hubiese sido arrancado de la juventud de su vida.
¡Salam Aleykoum! nos dijo al entrar, ¡Maleykoum Salam!
respondimos en coro. Era un marabout, líder religioso y curandero
de estas arenas y polvos, de esos personajes misteriosos de esencia
mística y sigilosa y de caminar imperceptible. De esos seres
castigadores y sanadores a la vez, con un poder inconmensurable
que puede colocar o destituir a alguien del sillón presidencial de
un país, o bien hacer que el seleccionado de fútbol pase o no las
consecutivas etapas en una copa del mundo; era uno de esos
personajes claves que pueblan las páginas de la literatura
senegalesa, desde L’aventure Ambiguë de Cheikh Hamidou Kane a La
Greve des Bàttu de Aminata Sow Fall. El marabout se sentó detrás de
la anciana, mientras ésta se recogía y trataba de erguirse a duras
penas desde su posición inicial para evitar el dolor que la tenía
postrada en el colchón. El marabout se remangó la túnica blanca a
la altura de sus brazos, colocó los lentes oscuros a la altura de su
frente, y empezó a tocar suavemente el costado derecho de la
espalda y la parte del seno derecho de la anciana, mientras al ritmo
de una plegaria que viene de menos a más, como si uno se
imaginase el jadeo seco de algún tren cubriendo la antigua ruta
desde el lejano Bamako acercándose a Dakar, comenzó a decir
palabras prohibidas para mortales como nosotros. Al rato,
intercaló las plegarias con el chasquido de su mano derecha, en
una secuencia de cinco veces, después del último chasquido, la
mano iba a parar nuevamente sobre la rugosa piel de la anciana.
202
"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
Luego lanzaba tres escupitajos sin saliva a la zona afectada de la
anciana y cerraba con un soplido de esos que contienen la fuerza
para tumbarse algún baobab juvenil mal anclado y distraído. La
secuencia seguiría: plegarias, cinco chasquidos, tres escupitajos
secos, un soplido, todo por diez minutos. Florie y yo
permanecíamos casi sin respirar, como aislados, como si
tratásemos de ubicarnos cada uno respectivamente dentro de la
magnitud de tal episodio cósmico o del génesis de los mundos allí
en algún rincón en el Sahel, mientras la anciana se quejaba de
dolor y el marabout convertía en lluvia el clamor seco de ésta.
Luego de esos 10 minutos donde la lógica del tiempo pareció
haber perdido su razón de ser, el curandero buscó en su costado
derecho a la altura de la cintura algo que terminó siendo un
cuchillo pequeño, fino y de un mango de plástico negro, el cual lo
puso en perpendicular sobre su bastón que yacía en el piso. El
marabout repitió sus plegarias, cinco chasquidos, tres escupitajos
secos y esta vez sin soplido, hacia el cuchillo tendido. Luego la
mano derecha del marabout regresó por unos minutos para
acariciar la espalda y seno de la anciana, que parecía haberse ya
calmado del dolor inicial. Finalmente, el marabout buscó en su
cintura nuevamente lo que sería una botella de un color pálido,
que contenía un líquido transparente con aroma a hierbas
maceradas, que terminó salpicando a la parte afectada de la
anciana. Se levantó, habló muy corto algo con ella en Pulaar, y
después de darme la mano todavía mojada por la curación, se
perdió sigiloso a quién sabe dónde. Florie y yo nos levantamos, y
abandonamos la habitación, despidiéndonos de la anciana que se
203
"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
había vuelto a recostar sobre su colchón de espuma vieja, como si
estuviese lista para esperar la dureza de una siguiente temporada.
Nos había venido a buscar Fatimata, la esposa de Salif, jefe del
caserío. El arroz blanco pintado con agua de frejol estaba ya
graneado y ella, en Pulaar y con señas, nos invitaba a su casa para
almorzar. Los niños nos siguieron mientras a lo lejos todos los
hombres del caserío se dirigieron a rezar, pues eran las 14:15, hora
del Tisbaar, lo que significaba que tendríamos que esperar un rato
más para la reunión comunal que habíamos pactado con el joven
profesor de francés, haciendo de traductor y que llevaba apenas un
mes en el caserío. Sin ver rastro del marabout por el caserío, y sin
decir palabra alguna, caminamos hacia la casa de Fatimata
procesando, entendiéndonos y sintiéndonos en una historia
milenaria de un viernes en el Sahel, todo en silencio, y viendo la
sequedad del paisaje suplicando por lluvia y el dolor de la anciana,
y las manos del marabout, su bastón y su cuchillo y aquel líquido
de hierbas, todo, en uno y en mucho, como si viéramos de un
porrazo de una lluvia violenta de julio, el pasado, o quizás, el
futuro de la humanidad.
204
"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
Baresolone, Senegal: rebeldía para
alterar las Ítacas en Senegal poscolonial
Matías PérezOjeda del Arco
Florie Chazarin
Barcelona no está en Europa, está en el Sahel en Senegal, al
menos para Serguey.
Imágenes diversas de piel chamuscada por la exposición
prolongada a esa combinación letal: sol y sal; de gargantas
extinguidas lentamente por esa sed macerada en aquellas piraguas
coloridas que se lanzaron a la conquista del sueño europeo. De
embarcaciones que terminaron a la deriva, sin motor, sin capitán,
sin provisiones, y sin ese compartir de historias y voces que
acompañaron alguna vez la brisa marina. Como si fueran notas de
la Kora tocadas desde el seno de un hogar en la costa que se aleja
cada vez más; de cuerpos ahogados por centenas; sin sueños como
205
"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
equipaje; de pies lacerados en esa diáspora enrumbada por miles
de kilómetros hacia el norte africano; de murmullos que fermentan
a voz baja para no ser descubiertos por la policía marroquí,
aguardando el momento preciso bajo la niebla en lo alto del monte
Gourougou, para intentar desafiar los garfios de las cercas de La
Melilla, cachito Español en África.
Abatido por esas imágenes que cobran la forma de llantos y
quejidos de vecinos que ruegan a la nostalgia, acaso una última
visión calurosa del familiar perdido, antes de que todo se ponga
oscuro como cuando el último carbón se consume. Extenuado por
la mirada perdida de algún deportado que tuvo la ‘suerte’ de
volver a casa, Serguey nos contó que dejó su oficio como labrador
de la madera y decidió desafiar la locura de la cual fue tildado en
un inicio en la localidad donde fue a parar. Comenzó un siete de
agosto del 2007 y terminó un tres de junio del 2010, sin domingos
de descanso y trabajando incluso durante el mes de Ramadán.
Sumemos a esto las exigencias del trabajo físico que esto conlleva,
después de 70 sacos diarios en promedio, cargados con alrededor
de 80 kg de arena cada uno y recorriendo una distancia de más de
100 metros pudo lograr la conquista física de su propia Europa: el
Lago Guiers, al norte de Senegal. Serguey pudo imaginar y dibujar
una tierra productiva de 0.3 hectáreas sobre esa agua que hasta ese
entonces parecía indomable y a ese pequeño espacio le puso
‘Baresolone’, en alusión a Barcelona.
Más allá de esos años, de ese ir y venir transportando arena,
Serguey nos contó mientras miraba al horizonte y apuntaba con
sus manos hechas ahora de arena, que erguía su propia
humanidad como si se librase del dolor de esas almas que se
perdieron en el Atlántico. Buscó demostrar que esa Barcelona que
provoca llantos de familias por las noches, por la que algunos se
vuelven sujetos divididos entre el ‘aquí’ y el ‘allá’, no está en
Europa, sino en el Sahel, en casa: en Senegal. Una Barcelona que,
sin poseer la arquitectura extravagante de Gaudí, o un nutrido
supermercado Corte Inglés, o una transitada y pomposa avenida
Paseo de Gracia, se basta con una adecuada reinterpretación del
paisaje ecológico, de sus códigos más secretos, del aprender diario
206
"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
del peso y aroma de la tierra o la arena fresca, y de las caricias de
las aguas o de los caprichos de los vientos. Y así, su ‘Bareselone’ se
nutría con una ráfaga dispersa de árboles de mangos, limones, y
guayabas; con algunas parcelitas de tomates, cebollas y plátanos,
con un par de palmas datileras todavía infantiles, y finalmente, con
algún espacio para la piscicultura.
Recorriendo un camino empolvado con algunos baobabs
gobernando el paisaje, dejando la zona del Ndiaël cerca de la
frontera con Mauritania, y recordando en nuestra lenta marcha
aquél intento de la empresa SenhuileSénéthanol en producir
agricultura a gran escala a través de un proceso de adquisición de
tierras de manera dudosa sobre el territorio ancestral Peul,
‘Baresolone’ nos interpela en todo momento. En un primer plano,
Serguey y su obra irrumpen ese Plan Senegal Emergente, el
proyecto bandera del presidente Macky Sall en su primer período,
proyecto que continua en la actualidad, y que engatusa a
senegaleses con esa idea de estar llegando finalmente a una
especie de ‘despegue’, a ‘salir de’ y de ‘dejar el atraso’. La ética y
vida de esa parcela Saheliana de Serguey rompe y resquiebra con
rebeldía para nosotros esa mímica que condenaba Frantz Fanon
hace casi 60 años, posicionándose contra toda lógica moderna,
imperial, cartesiana y hoy neoliberal. Y de allí viene la ‘locura’
inicial de la que fue encasillado Serguey. ¿Quién carga arena por
tres años y la tira al agua? ¿No nos hace recordar aquellos
personajes clásicos de la literatura africana poscolonial que
optaron por trascender en una miríada de formas, aquella
modernidad/colonialidad que devoraba sus días y noches? Le Fou
en L’aventure Ambiguë (1961) de Cheikh Hamidou Kane, Fama
Doumbouya en Les soleils des Indépendances (1970) de Ahmadou
Kourouma, Magamou Seck en La Plaie (1967) de Malick Fall, o
Fadel en Los Tambores de la Memoria (2011) de Boubacar Boris
Diop. Serguey, a través de su reinterpretación y aprendizaje
ecológico del espacio, emerge desde aquellos saberes no
académicos y fomenta una crítica de un poderío enigmático, como
aquellas críticas descoloniales de artistas y pensadores
(re)imaginando África y su relacionalidad con el mundo hoy en
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"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
día. En un segundo plano, es a través de ‘Bareselone’, que también
intentamos rasgar lo que olvidamos muchas veces al atropello:
nuestra propia contribución a la negación epistémica de lo que
tenemos en casa y ese peso académico colonial de ni siquiera
intentar nuestras propias ‘Baresolone’. Esa unidimensionalidad
que impone ‘ruta’ sobre ‘rutas’. Y es en toda esa arena trasladada
al hombro en el Ndiaël, que estalla la rebeldía pura contra el
mantra de la incapacidad, aquel impuesto y cincelado
sistemáticamente en nuestros cuerpos que nos repite el no poder (y
deber) hacerlo en casa. Ese domingo, Serguey con un sombrero de
paja que le cubría el rostro, y que muchos de los naufragantes en
las fauces sufridas del Atlántico hubieran deseado tanto en esas
sus odiseas fallidas, nos mostró que basta con la osadía y rebeldía
de mover las arenas un poco, o, mejor dicho, los mapas, las Ítacas,
los órdenes de importancia, y la estima del ser mismo.
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"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
“Uma vez ela quase me come”
Mayra Patrícia Corrêa Tavares
Pescador, história ou estória sempre tem a contar, um caso,
um conto, dois dedos de prosa como costumam falar. Relatos de
suas vivências do cotidiano, dentro da canoa, casco, barco,
quaisquer embarcações que esteja, dentro do rio, igarapé, mar,
mangue, terra firme, são sempre lares de experiências a escutar,
embarcar, e a viver internamente a narrativa.
Senhor Xavier, pescador experiente, pesca desde a idade
dos dez anos, aprendeu com os mais velhos que não se deve sair
para pescaria em noites chuvosas, haja vista, o perigo a rodear, a
noite escura gera dúvidas, ciladas, armadilhas inerente da
natureza a circundar que faz qualquer um tremer só de pensar no
escuro a sua frente e o que pode ocasionar.
Ao entardecer, deitado na rede, na majestosa comunidade de Vila
Cuera, situada à margem esquerda do rio Caeté, quando Xavier foi
atraído pelo convite de seu compadre:
Compadre Xavier, hoje tem maré boa pra peixe, vamos?
Será?
Xavier convencido pelo compadre pegou seus apetrechos de pesca
e saiu pelas águas ferruginosas do rio Caeté, principal rio que a
comunidade utiliza para extrair o sustento. Ao chegarem no
destino apropriado para lançar a caiqueira, rede de pesca, a chuva
despretensiosa começa a despenharse, porém, depois de alguns
instantes, ela aparece torrencial, o que parecera como uma notícia
desagradável aos pescadores.
Compadre, que toró é esse! exclamou Xavier.
Já que estamos aqui, vamos ficar! respondeu o compadre.
Noite chuvosa, quase nada dava para enxergar, apenas ouvia a
confusão do barulho dos pingos grossos da chuva caindo sobre a
impetuosa água da maré, estava muito intensa, típica do tempo
que estavam vivenciando, o inverno. Os pescadores receosos em
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"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
continuar a pescaria naquela noite não favorável, decidiram puxar
a rede e, abeiraram, procuraram abrigo e logo, passaram a encostar
à margem do rio, até que estiasse a tempestade.
Meu compadre, é hora de arreigar, o tempo não está de
brincadeira disse Xavier.
O compadre não hesitou, acatou a ideia. Assim, ancoraram
a canoa a uma grande pedra à margem do Caeté. O senhor Xavier
e os demais pescadores da Vila sabem dos riscos que a pesca
oferece, principalmente, em noite nebulosa. Estando a algum
tempo esperando acalmar a tempestade, lembraram dos
acontecimentos ocorridos, contados e vividos por outros colegas
pescadores em contato com a natureza.
Na incerteza se chegaria a calmaria daquele tempo
ameaçador, os dois pescadores amedrontados desamarraram a
canoa na tentativa de partir. De repente, um reboliço próximo da
embarcação como quem quer naufragar. A escuridão detinha a
visão dos homens, vento impetuoso, água agitada, um banzeiro
forte que impulsionava o vai e vem da canoa e soprava um forte
odor, descrito como um pitiú que assustava os presentes. Xavier,
experiente, logo disse:
É a bicha grande que está nos mundiando, parente. Espia!
É ela, a cobra grande! Está tentando alagar a canoa e nos
dar o bote, ela quer nos engolir!
Vamos fugir parente! Ela vai alagar a canoa e nos engolir!
disse Xavier alarmado.
A cobra grande é vista por muitos pescadores que usam o
rio diariamente para pescar. Os pescadores conseguiram se
desvencilhar da criatura. Puxaram a canoa e arrumaram sair
daquele local que se tornara apavorante. Muito assustados,
inspiravam e expiravam o ar com sabor de alívio, ainda com o
corpo trêmulo, respiravam o gosto de gratidão e de narrativa a
contar aos seus colegas.
Ela quase me come! disse Xavier com aspecto
empalidecido.
A valença que conseguimos soltar a canoa daquela pedra e
fugir, a bicha já vinha com a encantaria e a gente ia ficar
210
"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
mundiados, com certeza, já era presa fácil naquela noite chuvosa e
nem seriamos encontrados pelos parentes. Comentou o compadre,
ainda com o corpo agitado.
Nós se salvamos! disse Xavier.
Eles escaparam. “Mas não é bom ir para as bandas de lá
não, da cabeceira até a boca do rio para pescar em noite de chuva.
Nessas bandas tem muita pedra e no pedral acolá mora a cobra
grande, não é todo dia que ela aparece, mas, às vezes, aparece”.
Daí em diante os pescadores repensaram a sua forma de
pescar, respeitando a natureza e o conhecimento adquirido e
repassado pelos mais velhos e passaram a escolher outros
caminhos e formas diferentes de pescar que não relasse naquele
misterioso.
211
"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
“Contratempos” de um mapeamento:
em busca das capoeiras de Seu Pedro Brás
Myrian Sá Leitão Barboza (Myroca)
Mapear paisagens, mapear histórias, mapear (com)
vivências, mapear afetos, mapear percepções: um melindroso
desafio que não se traduz apenas em plotar coordenadas
geográficas “chapadas”, horizontalizadas em uma superfície de
sulfite de poucos milímetros ou em um ecrã colorido,
“verticalizado”. Mapas são, ou deveriam ser, representações sócio
espaciais compreendidas por quem os vive, convive e revive.
Sendo sua projeção, a tarefa mais espinhosa quando sua concepção
não é realizada por quem os percebe.
Diante destes percalços, nós, uma equipe composta por
bióloga, antropólogo e barqueiros, tentamos “mapear” os
principais locais de extração de recursos naturais e de relevância
cultural para os indígenas Katukina do rio Biá (Amazonas, Brasil).
Uma tarefa pretensiosa, dada a amplitude de locais biologicamente
e culturalmente significativos, e perigosa em virtude da tarefa de
esquematização por quem não vive estes espaços, além da
preocupação com a possibilidade de usos futuros29 dessas
preciosas informações. No caso do presente projeto, o
mapeamento foi utilizado para a elaboração de um plano
preliminar territorial de manejo Katukina30, que terminou
fortalecendo as diretrizes da Política Nacional de Manejo
29 O acordo da equipe de campo com a coordenação consistia em não repassar as coordenadas
georreferenciadas nos relatórios técnicos para o financiador do projeto.
30 Povo Katukina. 2011. Plano de Manejo Territorial Katukina. Organizado por: Spinelli, Monica,
Myrian Barboza, e colaboradores et al. (OPAN). Acesso em 29 janeiro de 2020.
Disponível em: https://amazonianativa.org.br/planodegestaokatukinadoriobia/
https://acervo.socioambiental.org/acervo/documentos/planodegestaoterritorialterraindigena
riobia
212
"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
Territorial e Ambiental das Terras Indígenas (PNGATI)31.
Os lugares mapeados consistiam nos principais locais de
pesca, caça, extração de argila, fibras, cipós, óleos vegetais e frutos
da floresta para confecção de casas, redes, vassouras, vasilhas; ou
capoeiras antigas, aldeias antigas, acampamentos, roças, aldeias
atuais, dentre outros. Para além dos espaços físicos visíveis e de
fácil alcance, foram indicadas paisagens multidimensionais de
difícil alcance e visualização para nós pesquisadores, localizadas
principalmente em estratos verticais. Os Katukina citaram os locais
de moradia dos seres intangíveis – criaturas não humanas com
intencionalidade humana, como locais aéreos, subterrâneos ou
aquáticos.
Huanin wara, dono do vento, por exemplo, reside nas
tempestades de vento e geralmente é visualizado antecipando a
chegada destas tempestades. Dito isto, nos questionávamos como
poderíamos mapear a moradia de Huanin wara? Assim, diante
destes contratempos, que viraram verdadeiros “favortempos”
devido a possibilidade de reflexões instigantes, nos concentramos
nos desafios dos mapeamentos, e tentamos considerar atentamente
as alteridades e as cosmologias destes povos de tradição oral.
Era março de 2010, temporada de chuva e estávamos em
nossas “naveganças” há vários dias a caminho da aldeia Terra
Nova. Famílias Katukina de outras aldeias (Boca do Biá, Gato,
Janela, Sororoca e Bacuri) também viajavam para participar das
etapas de mapeamento. Deslocávamonos pelo barco Sena, que
apesar da terminologia, a velocidade era algo que lhe padecia.
Devido a longínqua localização da aldeia Terra Nova, cerca de
uma semana de barco desde a primeira aldeia (Boca do Biá),
muitos Katukina, principalmente os mais jovens, não conheciam
esta aldeia. Uma intrigante aventura fluvial, a começar pela junção
de diferentes famílias em uma “casa ambulante”, que mudava seu
31 Brasil (Presidência da República). 2016. “Decreto 7.747, 5 de junho de 2012. Política Nacional de
Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas (PNGATI). “ Acessado em 5 de janeiro de 2016.
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011 2014/2012/decreto/d7747.htm.
213
"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
sítio de pernoite a cada amanhecer.
Subíamos em direção à cabeceira do rio Biá. O curso do Biá
ainda se apresentava largo e profundo, porém à medida que os
dias passavam, ele se estreitava e se encurvava como a silhueta de
uma longa cobra que vai aos poucos afinando seu corpo e
movimentandose sinuosamente. Era início da tarde quando
chegamos na aldeia do Seu Surucucu. Muitas estórias e histórias
sobre Seu Surucucu permeavam o imaginário e as narrativas
Katukina das outras aldeias, de forma semelhante ao emaranhado
de canais fluviais da Amazônia: se conectam e se espalham
fluidamente até mesmo para localidades afastadas. Seu Surucucu e
sua família eram os únicos Katukina a continuar residindo na
região do alto rio Biá, porém frequentemente viajavam pelo
território.
O apelido de Seu Surucucu lhe foi atribuído devido a um
ataque de um espécime da cobra venenosa surucucu32. Este animal
possui forte veneno, podendo deixar graves sequelas ou ser letal
para alguns humanos. Como Seu Surucucu sobreviveu, e não era
facilmente encontrado, ele representa uma espécie de lenda viva
da serpente surucucu. Seu Surucucu é um homem magro, de
cabelos brancos, muito simpático e possui problemas em uma de
suas pernas em função da ação do veneno da surucucu. Ele
também se comunicava em português e sorria constantemente. Sua
face coincidentemente assemelhase ao rosto de uma cobra, a qual
é alongada e afinase da porção superior a inferior formando um
triângulo. Ele também andava arrastando uma de suas pernas,
similar ao movimento de rastejar das cobras sobre o solo.
Na aldeia Terra Nova os Katukina interagiam entre si com
muito humor. No dia seguinte, explicamos os objetivos da
atividade de mapeamento, além das etapas metodológicas de
realização. Seu Surucucu sugeriu mapearmos áreas em torno da
aldeia e principalmente áreas em direção da cabeceira do rio Biá,
como as capoeiras dessa região.
32 Na Amazônia o termo surucucu pode ser utilizado em referência às espécies de cobra Lachesis
muta e Bothrops atrox.
214
"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
As cabeceiras consistem em ambientes especiais:
representam a origem dos rios. Ao redor das cabeceiras existem
pequenos rios de água clara, denominados igarapés, que contém
abundância de plantas e animais, inclusive de mosquitos
horrendos. Nestes locais a precipitação inicia cedo, anunciando a
mudança na “vestimenta” das paisagens. Para muitos grupos
indígenas estas áreas também constituem espaços sagrados.
Infelizmente a cabeceira do rio Biá não foi incluída na delimitação
oficial do território Katukina. Já as capoeiras são ambientes
modificados, relativamente recentes, contendo vegetação em
transformação devido à abertura prévia da floresta e, assim,
apresentam forte incidência solar. As capoeiras geralmente
consistem em antigas roças ou antigos locais de moradias.
Seu Surucucu e seus familiares insistiam que deveríamos
visitar a capoeira do Senhor Pedro Brás, pois estas continham
antigas e enormes trilhas, campos e capoeiras. Nossa equipe e os
demais Katukina estávamos extremamente curiosos a respeito do
Seu Pedro e suas paisagens.
Quem poderia ser o Senhor Pedro Brás? questionávamo
nos entusiasmados.
Eu nunca tinha ouvido falar nele antes. Nenhum Katukina
das outras regiões (baixo e médio rio Biá) comentara sobre ele.
Apenas os Katukina da aldeia Terra Nova haviam informado com
muita empolgação a respeito do Seu Pedro Brás. Eu já estava
imaginando Seu Pedro como um velho senhor, forte e trabalhador,
devido aos relatos de suas enormes capoeiras.
Para realização do mapeamento nos deslocamos por meio
de duas voadeiras (lanchas) motorizadas que permitiam a
navegação nas partes mais estreitas do rio Biá. Durante quase três
horas, nossa equipe, inúmeros Katukina e logicamente Seu
Surucucu, percorríamos o Biá a procura das capoeiras de Seu
Pedro Brás. Seu Surucucu apontou a ponta de terra firme onde
localizavase a principal capoeira de Seu Pedro, descemos na beira
e percorremos uma longa trilha margeando roças antigas, até
chegarmos em um imenso campo de gramíneas. Não conseguia
compreender a finalidade de um campo tão vasto no meio da
215
"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
floresta. Aquela paisagem me perturbava.
Quem poderia ter sido capaz de transformar
drasticamente aquele ambiente?
Indagavame eufórica nos meus pensamentos. Apesar de
suas imensas e diversificadas roças, os Katukina das outras aldeias
não possuíam campos como aqueles, nada semelhante.
A cada passo ficava ainda mais intrigada a respeito desse
tal Senhor Pedro.
Repentinamente, enquanto caminhávamos, um dos rapazes
Katukina nos mostrou uma enorme estrutura redonda de ferro...
isso nos deixava ainda mais confusos. A cada passo, novas
descobertas: botas, cimentos e até maquinarias. Vestígios de
industrialização, uma paisagem misteriosa! Sentiame como uma
arqueóloga, uma investigadora tentando desvendar aquela
paisagem enigmática.
Os demais Katukina também se demonstravam surpresos,
porém visivelmente preocupados. Enquanto apontavam para os
objetos, eles aceleravam seus passos e estrondavam sonoridades
de espanto, curtas, mas repetitivas, em língua Katukina. Através
daquela expressiva vivacidade sonora e gestual, presumia que os
Katukina acreditavam que o Senhor Pedro Brás e sua família
estavam ali próximos. Inesperadamente, seus olhos e toda
expressão facial mudaram rapidamente, como uma brusca
trovoada, anunciando um forte temporal. Eles se espalhavam
rapidamente na paisagem em busca de mais materiais e pelos seus
donos. Eles gritavam euforicamente e repetitivamente pelo
SENHOR PEDRO BRÁS.
Por um momento elucidativo eu pude conectar aquelas
“gotas” de palavras vibrantes e compreendi toda aquela tormenta.
Uma verdadeira revelação sonora, uma sequência de trovões, uma
tempestade de ideias formavase naquele momento conectadas por
estrondos clareadores:
Senhor Pedro Brás...
Senhor Pedrobrás …
Senhor PeTrobrás …
Senhor PETROBRAS!!
216
"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
Depois de interligar as palavras e conectálas com os
vestígios ali encontrados, descobrimos que ali já funcionara um
campo experimental da empresa Petróleo Brasileiro S.A.
(PETROBRAS), empresa estatal brasileira de exploração, produção,
refino, comercialização e transporte de petróleo, gás natural e seus
derivados. Nas décadas de 70 e 80 a PETROBRAS havia realizado
intensas atividades de prospecção de gás natural nos municípios
de Carauari e Jutaí33, que abarcam o território Katukina. Desta
maneira, o mais intrigante e imaginável contratempo deste
mapeamento foi averiguar que parte daquela região e seus
componentes físicos (solo, minerais, gás natural, etc.) já haviam
sido esmiuçadamente mapeados para fins comerciais.
33 ISA (Instituto Socioambiental). Sem ano. Petróleo na Amazônia Brasileira. Beto Ricardo. Acesso
em
29
janeiro
de
2020.
Disponível
em:
https://documentacao.socioambiental.org/documentos/Q2D00002.pdf
217
"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
Episódios de um doutorado distante, parte I:
o emicista, o eticista, e as formigas da dona Maria Marta
Natalia Hanazaki
É o começo de uma nova década, mais um ano vem, e lá se
vão quase 20 anos desde os tempos do meu trabalho de campo do
doutorado… meu filho que tem hoje menos de 20 anos costuma
dizer que esse tipo de frase tem cara de “frase de tiozão” (ele
nasceu 18 dias depois da minha defesa de doutorado, mas esse
poderia ser um causo para outra ocasião: “como fazer o timing de
ser mãe dar certo com o timing acadêmico”). Confesso que existe
uma certa satisfação de ver o tempo passar e poder olhar as coisas
em perspectiva: alguma vantagem tem que ter, não é mesmo? Já
que os cabelos brancos e as rugas são inevitáveis.
Para mim o trabalho de campo do doutorado tem um
diferencial que o distingue de qualquer outro momento da carreira
acadêmica, pois tem aquelas características de, pela primeira vez,
mergulhar na coleta de dados, tomar decisões mais maduras (ou
não!) e pensar com mais independência acadêmica. Muitas idas a
campo, ter tempo para planejar e para aprofundar nas
investigações, coletar um volume grande de dados e depois
descobrir que de todo esse volume usamos só uma pequena parte,
mas outras partes preciosas que ficam são memórias que não vão
para a tese muito menos para os artigos. Não é à toa que, dessas
muitas idas a campo e vivências com pessoas tão incríveis que
encontramos nos caminhos, ficam lembranças únicas.
Uma das lembranças que trago dos idos tempos do campo
do doutorado é um episódio que sempre conto nas minhas aulas
de Etnobotânica e de Etnoecologia. Na minha tese de doutorado
investiguei as relações entre as pessoas e os recursos naturais para
a alimentação em três comunidades caiçaras do litoral sul do
estado de São Paulo. Em duas dessas comunidades, Pedrinhas e
São Paulo Bagre, usei um método de coleta de dados no qual eu
218
"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
precisava ir mensalmente por 3 a 4 dias para cada comunidade.
Em São Paulo Bagre eu ficava hospedada na casa da dona Maria
Marta e do seu João, casal muito querido que sempre me recebeu
de braços abertos e a quem sou muito grata. Aprendi muito com as
histórias contadas pelo seu João, e com a convivência com a dona
Maria Marta. Uma das coisas que aprendi com dona Maria eu só
fui ligar ao tal do arcabouço teórico alguns anos depois…
Um aspecto que sempre achei interessante nas discussões
teóricas da etnobiologia é o debate sobre o êmico e o ético, ou
emicista e eticista ou, em inglês, emic e etic. E que eu sempre
insisto com os alunos que esse ético (que traduzse em etic, em
inglês) é diferente do ético da ética (que traduzse em ethic, em
inglês). Esse “agázinho” que se perde na tradução do inglês para o
português (lost in translation…. isso já deu nome até para filme)
faz toda a diferença. Enfim, o êmico e o ético (esse etic sem o “h”
do ethic em inglês) derivam na verdade da linguística, das
palavras fonêmico e fonético. São palavras emprestadas como
metáforas para explicar as perspectivas internas de um sistema e
as perspectivas externas a esse sistema. Ou, como uma
representação de uma letra, “E” por exemplo, pode ser
interpretada fonemicamente de modos distintos. Basta lembrar dos
ricamente diversos sotaques de norte a sul do Brasil: todos falantes
de português, mas que interpretam o “E” com um som mais aberto
ou mais fechado, mais longo ou mais curto. Numa transcrição
fonética, seria algo como /é/, ou /ê/, ou muitas coisas entre esses
dois sons. Ou seja, internamente, dependendo do contexto, aquele
“E” vai tem um som entre aberto ou fechado, longo ou curto. Ou
vai significar permitido estacionar. Ou pertence a... Ou alguma
outra coisa.
Assim, êmico e ético mostram perspectivas diferentes para
uma mesma situação: a perspectiva do pesquisador (a pessoa
externa ao sistema, que está olhando para aquele contexto) traz
uma explicação ética, ou eticista, enquanto que a perspectiva de
quem está dentro do contexto e está olhando para a mesma
situação a partir desse contexto, traz uma explicação êmica, ou
emicista. Alguns autores acabaram ficando até meio acirrados no
219
"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
debate, por um lado defendendo que nós etnobiólogos devemos
aproximar ao máximo nossa visão eticista das explicações
emicistas, enquanto que outros dizem que isso é impossível e essa
discussão é uma bobagem, então devemos abandonála… mas
deixo os debates teóricos para o leitor, curioso etnobiólogo, ler
mais a respeito do assunto.
O que importa aqui é que, na minha humilde opinião, esse
contraste é útil para percebermos que diferentes pontos de vista,
ou diferentes explicações que revelam visões a partir de pontos
distintos, podem ser complementares e que não existe uma
explicação “mais certa” que a outra: cada interpretação funciona
no seu contexto.
Pois bem, e dona Maria Marta, com toda a sua sabedoria prática,
sem saber me deu uma lição de êmico e ético em uma tarde
calorenta de São Paulo Bagre. As casas em São Paulo Bagre não
tinham muros, e os quintais eram um misto de pequenos pomares
e hortas que gradativamente se confundiam com a vegetação de
restinga ao redor. Muitas casas tinham um pequeno galinheiro e as
galinhas eram deixadas soltas para ciscar nesse pátio arenoso, que
se juntava com a restinga, e recolhidas somente no final da tarde.
Havia pitangueiras, goiabeiras, laranjeiras, misturadas com
pequenas árvores nativas da restinga, adornadas com bromélias e
orquídeas, algumas trazidas para perto da casa por suas flores
vistosas, outras que sempre estiveram ali ou que, por um acaso ou
não, vieram colonizar essas árvores perto das casas.
Como em muitos outros dias, no meio da tarde eu já tinha
visitado as famílias que precisava e finalizado a coleta de dados do
dia. Nesses momentos tranquilos eu acompanhava a dona Maria
Marta em alguns afazeres domésticos e às vezes só ficávamos
jogando conversa fora. Dona Maria gostava muito das suas
orquídeas e naquele dia estava acontecendo algo que a deixou
apreensiva: uma pequena correição de formigas cortadeiras estava
invadindo seu jardim, fazendo caminhos por todo o pátio e
cortando folhas das plantas da dona Maria. Ela ficou apreensiva
mas não muito, pois ela sabia muito bem o que fazer! E foi bem
isso que ela me disse, “Quer ver eu dar um jeito nessas formigas
220
"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
todas??”
Sem esperar que eu respondesse, dona Maria foi até a borda
do pátio, onde o quintal começava a se misturar com a restinga, e
rapidamente voltou com um graveto comprido de madeira. Muito
segura com seus conhecimentos, empunhando o graveto, dona
Maria começou a recitar uma oração. Conforme recitava a oração,
ela desenhava cruzes na areia por onde passava o carreiro das
formigas. E não é que poucos minutos depois não havia mais
formigas cortadeiras atacando as plantas da dona Maria?!? E ela
toda orgulhosa: “Não disse que ia dar um jeito?!”
E deu mesmo. Para ela, a força da oração foi fundamental
para espantar as formigas. Para mim, pesquisadora com a mente
formatada pelos objetivos e hipóteses e a racionalidade científica,
as cruzes que ela fazia na areia estavam desagregando os
caminhos de feromônio das formigas. Para ela, uma explicação
êmica ou emicista, de quem está vendo o mundo a partir de um
ponto de vista de dentro de um sistema, totalmente imersa em um
contexto. Para mim, uma explicação eticista, de quem está vendo
aquele episódio a partir de um ponto de vista de fora daquele
sistema. Duas explicações que funcionam, uma não é melhor ou
pior que a outra. Há um paralelo também com aquilo que alimenta
nossa memória semântica e nossa memória episódica.
E um paralelo com as observações sincrônicas e diacrônicas.
Em outras palavras, com aquela característica do pesquisador e
aqui falo não só dos etnobiólogos, mas dos cientistas em geral de
observar o mundo e os fenômenos que está estudando a partir de
uma janelinha, que faz um recorte da realidade, e mais que isso, a
partir de uma fotografia tirada dessa janelinha, que faz um recorte
temporal da realidade.
Comecei a usar esse exemplo muito tempo depois nas
minhas aulas, pois demorei um pouco para assimilar essa
importante lição que a dona Maria Marta me ensinou naquela
tarde quente. Para além de me ensinar sobre as coisas mais
imediatas, ela estava me dando uma aula de teorias da
etnobiologia!
221
"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
Episódios de um doutorado distante, parte II:
seu Máximo é mesmo o máximo
Natalia Hanazaki
"People always ask me
where I'm from
and I hesitate to answer.
Why would it matter?
I'm here now."
(de Stardust, Vandebroek, Ina)
Hoje o assunto do momento é o coronavírus (escrevo esse
texto entre fevereiro e março de 2020). Esse assunto está entre as
coisas que acontecem lá do outro lado do planeta e fazem a gente
aqui ficar pensando como é, para quem está lá do outro lado do
planeta (revisando o texto na primeira semana de abril: é
assustador como já estamos vivendo no mundo inteiro o que
estava acontecendo lá do outro lado distante do mundo). Minhas
feições e meu sobrenome revelam fácil! que tenho antepassados
que vieram lá desse outro lado, e não foi um nem dois, foram os
meus quatro avós que, em determinado momento de suas vidas,
entraram em diferentes navios lá no Japão e por alguns meses
navegaram por metade dessa bola que chamamos Terra. E a
propósito, nos tempos atuais não custa lembrar que sim, é uma
bola, e não uma pizza ou uma coisa achatada como os
pensamentos de alguns por aí. Então, desde criança, essas ideias
de "como será para quem está lá do outro lado do planeta?"
sempre estiveram em algum lugar do meu imaginário.
Na Etnobiologia, ou nas etnoabordagens como um todo,
esse prefixozinho "etno" faz a gente refletir sobre muita coisa.
Sobre identidade, tradição e mudança. Refletimos sobre isso nos
contextos nos quais trabalhamos e, inevitavelmente, essas reflexões
são trazidas para dentro de si: identidade, tradição e mudança.
222
"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
Depois que comecei a me dedicar a essa área tão rica de pesquisa,
depois que li o Darcy Ribeiro dando vivas ao Povo Brasileiro,
depois que li mais um monte de autores e conforme fui
aprendendo com cada realidade tão diversa nos pedacinhos de
Brasil que tive o privilégio de vivenciar, para mim foi ficando cada
vez mais claro como é que essa identidade brasileira multifacetada
tem uma riqueza enorme na diversidade de identidades, histórias,
tradições e mudanças. Não que cada um precise se enquadrar em
uma identidade, como diz a Ina, que se encontra tão
multiculturalmente identificada no mundo. Por esses e outros
motivos, tem sido um caminho quase inevitável esse que me leva
de volta para uma identidade que veio lá do outro lado da bola,
trazida pelos meus avós.
E o trabalho de campo revela surpresas tão boas, que ficam
guardadas com muito carinho na memória da gente. Uma delas
me faz pensar de novo dessas ligações com o outro lado do
mundo. Um dia, nos tempos do doutorado, usando aquela
conhecida metodologia de amostragem chamada de boladeneve,
estávamos Nivaldo Peroni e eu buscando por agricultores caiçaras
no litoral sul de São Paulo, que cultivavam variedades de
mandioca (claro, mandioca é trabalho de campo com dados para o
Nivaldo, e quem o conhece vai saber por quê!). Quando
procuramos na literatura como caracterizar os caiçaras enquanto
um grupo, encontramos que são aquelas pessoas descendentes de
colonizadores europeus, principalmente portugueses e espanhóis,
miscigenados com indígenas, que ocupavam o litoral e com
afrodescendentes e que têm formas tradicionais de pesca e
agricultura numa região que vai do litoral sul do Rio de Janeiro ao
litoral norte do Paraná.
Muito confortáveis com essa definição, e muito confortáveis
com a metodologia boladeneve, eis que nos indicam um caiçara
japonês. "Ah, ele é japonês, mas é caiçara como nós" é o que nos
disseram mais de um entrevistado. Pois então, nos indicaram
pegar a estrada de Icapara e procurar pelo seu Máximo. Disseram
que seria fácil de encontrálo, o tal caiçara japonês. E foi bem fácil
mesmo, em uma casa perto da estrada, conhecemos seu Máximo.
223
"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
Embora ele mesmo repetisse a brincadeira dos colegas que o
indicaram, dizendo que poderia ser conhecido como seu Mínimo,
pois tinha talvez 1,50 de altura. Seu Máximo era mesmo o Máximo.
A primeira vez que nos encontramos com seu Máximo foi
em julho de 1998. Ele nos contou de sua trajetória como pescador e
agricultor e de muitas histórias do Vale do Ribeira. Típico caiçara,
lavrador e pescador. Falou das dificuldades da pesca e da
agricultura, sobre como essas dificuldades estavam relacionadas
principalmente depois da construção da barragem do Valo
Grande, que afetou quem pescava por conta do aumento no aporte
de água doce, e afetou quem plantava, por conta de ter mudado os
regimes de inundação no baixo Ribeira. E me contou também
muitas coisas sobre a história da imigração japonesa no Brasil, cuja
primeira colônia foi instalada às margens do rio Ribeira de Iguape,
num vilarejo que não existe mais.
Seu Máximo também nos contou muitas outras histórias e
compartilhou seu enorme conhecimento conosco, sobre os peixes,
os sambaquis, as variedades cultivadas nas roças, as histórias
fantásticas da região. Um dia nos deu de presente um ovo de
avestruz!
E um ano depois ele nos levou para conhecer esse local,
onde foi a primeira colônia japonesa no Brasil. Em outubro de
1999, ele nos levou de voadeira rio Ribeira acima, passando por
Bacuí, Morretinho, Barranco Branco, Lagoa Seca, Momuna e Bucuí,
onde ainda chegava o efeito da maré invadindo o Rio Ribeira pelo
Valo Grande, nas marés de lua. Então chegamos no Jipovura, lugar
onde foi essa primeira colônia de japoneses no Brasil.
O Jipovura tinha o nome de colônia Katsura, fundada em
1913. Teve relação com o primeiro tratado entre os governos do
Brasil e do Japão para incentivar a imigração, oferecendo terras
para o cultivo de arroz: dizem que 50 mil hectares de terra para
2000 famílias. Para se ter uma ideia do que é isso, é mais ou menos
o dobro da área da cidade de onde saiu um dos meus avôs no
Japão, onde eles criavam bichodaseda. Tanta terra era um grande
atrativo para muitas famílias decidirem, literalmente, atravessar
meio mundo, já que estava difícil viver da agricultura no começo
224
"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
do século lá no Japão. Hoje esse local é considerado o berço da
colonização japonesa no Brasil.
A manutenção da colônia Katsura tinha relação com uma
empresa chamada Kaigai Kogyo Kabushiki Kaisha, ou Companhia
Ultramarina de Desenvolvimento, ou KKKK. Segundo seu
Máximo, ali era também um quarentenário para os imigrantes, e
tinha escola, bar, três casas de comércio para abastecer a
vizinhança; tinha açougue, pensão e clube japonês. Moravam
japoneses e brasileiros e até a década de 1940 produziam arroz de
alta qualidade. Aparentemente a decadência dessa localidade
começou com a suspensão das atividades da KKKK com a
segunda guerra, em 1939. Para o seu Máximo, ainda havia mais
famílias morando ali até a década de 1980, quando a agricultura
começou a ficar inviável com os efeitos do Valo Grande.
Nós visitamos as ruínas do Jipovura/colônia Katsura. Em
1999 moravam ali bem poucas famílias, talvez menos de 10
pessoas. É sempre estranho visitar ruínas de lugares que já foram
habitados e que tiveram uma história vibrante no passado e, para
mim, foi estranho também por estar conhecendo parte da minha
própria história como descendente de imigrantes japoneses. Mas
sem dúvidas o mais incrível que vi ali foi a fusão cultural de
muitas influências, representada em uma tradicional prensa de um
engenho de farinha de mandioca. A prensa, com fuso e peças de
madeira, de influência ibérica e portuguesa, era feita com madeiras
nativas da mata atlântica, para processar a mandioca de tradição
indígena, com partes pintadas de vermelho e inscrições em kanji,
um dos alfabetos japoneses! Hoje olho para essa foto da prensa e
continuo curiosa com as inscrições. Sem saber, até hoje seu
Máximo incentiva a minha curiosidade para deixar de ser uma
analfabeta em japonês. Seu Máximo é mesmo o Máximo.
Antípoda. Já ouviu esse termo? Significa aqueles pontos
opostos no globo. Tipo Brasil e Japão. Acho que meus avós não
sabiam dessa palavra nem da encrenca que os esperava quando
navegaram por metade dessa bolaplaneta. Há dois anos tive a
oportunidade de ir lá para o antípoda, o outro lado da bola.
O pretexto era, também, correr a minha primeira maratona
225
"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
em Tokyo: quarenta e dois quilômetros, cento e noventa e cinco
metros; depois disso a gente se sente capaz de qualquer coisa, até
de aprender japonês! Então, com mais de 4 décadas de atraso,
comecei a estudar japonês. Afinal, dizem que a língua é uma parte
central da identidade cultural. Identidade, tradição e mudança.
Espero que assim eu consiga entender, pelas entranhas, um pouco
mais sobre esse prefixozinho "etno" que povoa essa nossa área de
pesquisa tão incrível.
226
"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
Minha primeira vez na Amazônia encantada
Norah Costa Gamarra
Ah, a primeira vez... diria que, em quase tudo na vida, é
especial. E não foi diferente. São tantos os sentimentos... Primeiro a
ansiedade e a alegria em vivenciar e ver de pertinho uma floresta
densa, rica, enorme, maravilhosa!!! Depois, tem o medo... o medo
do desconhecido, o medo dos bichos, medo da voadeira, do avião,
da chuva, da noite escura e silenciosa. Tem também aquela sede...
Sede da pesquisa! Sede por conhecer as pessoas que ali vivem,
suas historias e estórias, suas aventuras e memórias.
Essa mescla de sentimentos que tomava meu corpo e meus
pensamentos em minha primeira expedição no coração da floresta,
ali, atravessando as águas que desciam o formoso Juruá!
Contemplada
e
deslumbrada
–
como
qualquer
pesquisador/pesquisadora apaixonado(a) pela narrativa popular e
pelo conhecimento comum da natureza – estava eu. Sem saber que
poderia ainda melhorar, no meio da viagem, alcançamos um
encontro de mulheres – Oba!!! Foi ali que me senti ainda mais
conectada com aquele local. Ao fim do dia, depois de muita
discussão – talvez influenciada pelos os encontros vividos junto à
CPT em uma temporada no norte do país, senti falta da ‘cultural’ –
aquele momento para descontração e uma boa conversa! Então,
sendo um encontro de mulheres, mas com a presença de homens,
propus às garotas uma noite feminina, de conversas, sorrisos e,
quem sabe, uma dança.
Fomos nos banhar, jantar e, claro, nos juntamos para nosso
momento. Ali conheci grandes mulheres, as que tímidas
parececiam durante o dia, pela noite se mostraram brincalhonas e
também artistas! Descobri repentista, poeta, humorista e contadora
de histórias! Tem alegria maior? Ainda teve mais! Entre contos,
memórias, brincadeiras e sorrisos... txanran! Surgem os
encantados! Quem nunca ouviu falar nas histórias sobre boto? Ou
227
"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
outros seres da floresta que encantam os moradores e os que ali
visitam?
Se “quem conta um conto aumenta um ponto”, aqui, divido
com vocês algumas reticências daquela noite no Juruá.
Foi Dona Maria quem começou! Ouvidos a postos, todas
atentas, enquanto Dona Maria contavanos a história de seu irmão
e de como seu comportamento começou a mudar, dias antes do
ocorrido. Contounos que seu irmão passou a ficar mais quieto,
mais calado, introvertido, só queria ficar só. Mas também parecia
ter um certo “chamego” a mais com água. Tá, tudo bem, pescador,
ribeirinho, o irmão de Dona Maria gostava de água – sim, claro!
Mas era uma atenção especial. Sempre que estava sozinho, ele ia
pra pertinho do rio e ali ficava, deslumbrado (ou encantado?).
Alguns dias depois, estavam todos numa festa, Dona Maria,
seu irmão, a namorada do seu irmão e um grande amigo do irmão
também. Começaram então a estranhar o comportamento dele
durante a festa. Estava aéreo, se afastando sempre que podia. E foi
quando lá pras tantas da noite, ele, que a pedidos da namorada ia
comprar um chiclete, saiu correndo, correndo no trapiche, em
direção a água! Correu tão rápido que não puderam alcançálo. Ao
perceber seu sumiço, todos começaram a procurálo... uma, duas,
três, quatro, cinco da manhã e nada!
O sol que já nascia, passou a iluminar a beira da praia. Foi
então quando encontraram alguns de seus pertences. Na beira do
rio estavam seus sapatos e suas roupas, mas nenhum sinal do
irmão de Dona Maria.
Por dias a busca continuou, mas já sem muita esperança.
Até que, certo dia, o grande amigo do irmão de Dona Maria
passando no rio, encontra um boto em frente a sua voadeira. Esse
boto parecia querer conversa, chegou mais pertinho, até que o
amigo pôde ver que o boto usava o terço do irmão de Dona Maria!
Será que era ele?! O irmão de Dona Maria havia se transformado
em boto e vestia seu terço! E agora?! Por dias a visita do boto ao
amigo acontecia e, como sabido, deveria ele espetar o boto para
desfazer o feitiço. Porém, até hoje, o amigo não conseguiu alcançá
lo. Segue tentando e, enquanto isso, fica assim sua história ... com
228
"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
as lembranças do amigo, irmão, namorado, que virou boto e hoje
vive encantado nas águas brancas do Juruá.
Compartilhando com vocês esse pedacinho mágico de meu
período na Amazônia, espero instigálos a se aventurarem nesta
floresta e, assim, descobrirem por vocês muito mais.
229
"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
As plantas da minha infância:
um exercício de auto etnografia
Paula Chamy
O texto a seguir é parte de uma reflexão proposta pelo
mestre José Geraldo W. Marques em um curso de Etnoecologia
ministrado na Universidade Estadual de Campinas. Exercitar a
memória e rastrear os caminhos que poderiam desvendar as
plantas que fizeram parte da minha infância pareceu, em um
primeiro momento, uma tarefa relativamente fácil porque me
imaginei listando algumas plantas que, por algum motivo, tiveram
destaque nas minhas remotas lembranças de criança.
Não foi. Mas o mestre já sabia disso. A autoetnografia leva o
pesquisador a ter compreensões de sua pesquisa a partir da
própria experiência pessoal. Foge da impessoalidade tão almejada
pelas “ciências mesmo” e brinda a subjetividade com conexões
emocionais, espirituais, intelectuais, corporais e morais que são
expostas no trabalho de quem a utiliza. Fácil entender por que o
teórico da Etnoecologia Abrangente propôs tal exercício.
Minha ideia aqui é convidar o leitor a fazer esse exercício.
Sem dúvida vai encontrar diamantes brutos em suas memórias e
entenderá que as bases conexivas estão presentes em sua trajetória,
nos demais indivíduos, no coletivo.
Minha primeira dificuldade ao tentar fazer o exercício
proposto pelo professor José Geraldo foi delimitar o período da
infância. Sei que não existe tal necessidade, mas as lembranças que
me acompanham quando penso neste tema está vinculada a
existência dos meus dois avôs que influenciaram a maneira como
me relaciono com os elementos do mundo natural e sobrenatural.
Os anos mais remotos que consigo recuperar na memória já
vêm acompanhados de plantas e animais. Minha mãe sempre
gostou de plantas e por nossa casa em São Paulo se espalhavam
vários xaxins com samambaias de diversos tipos, vasos de avenca
230
"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
e begônias; vasinhos com violetas de diferentes cores enfeitavam
várias partes da casa e muito, muito gerânio nas jardineiras do
quintal (dizem que gerânio é planta de mãe ciumenta porque
afasta marido/mulher dos filhos).
No chão do portão frontal da casa, entre as grades do
portão de ferro havia espadasdeSãoJorge entremeadas por uma
espessa fileira de coroadeCristo, que com suas pequenas
florzinhas vermelhas enterneciam os inúmeros espinhos
pontiagudos que derramavam leite quando cortados. Como se não
bastasse, nos dias de feira livre a casa ficava bem florida porque
minha mãe trazia vários maços para colocar nos vasos da sala.
Eram principalmente rosas chá ou amarelas, palmas (que por
algum motivo não me agradavam muito), margaridas e cravos (na
época, meus preferidos).
Mas na cidade estes elementos do mundo vegetal, embora
imprimam marcas na minha memória, atuam muito mais como
seres inanimados do que como coadjuvantes da minha trajetória.
Então, para destacar a importância do reino vegetal na minha
existência, cabe uma rápida explicação das minhas origens mais
próximas.
Minha mãe nasceu no final da década de 30 em uma
cidadezinha situada no oeste do Estado de São Paulo, onde meu
avô possuía uma fazenda de café bastante produtiva em sociedade
com seu irmão mais velho e solteiro. O oeste paulista, na década
de 30 é apontado como a região mais próspera da cultura cafeeira,
suplantado em importância apenas pelo Vale do Paraíba no século
XIX. Além disso, minha avó era natural de Bananal, uma cidade
que prosperou, enriqueceu e teve até mesmo uma cédula
monetária própria devido ao desenvolvimento do cultivo de café
na região.
No início da década de 70, apesar de meus pais morarem na
cidade de São Paulo, os vínculos com o interior mantinhamse
fortes porque passávamos os meses de julho, dezembro, janeiro e
fevereiro (os meses de férias escolares) na cidade natal de minha
mãe, em companhia dos avós maternos, do tioavô e dos primos
que também iam para o campo.
231
"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
Na cidadezinha do interior, meus avós possuíam uma casa
térrea com um grande quintal de terra, que para uma criança de
cinco anos mais parecia uma floresta repleta de mistérios. A casa
está localizada na praça da cidade, atrás da igreja matriz, e mesmo
hoje, já reformada e reduzida por uma divisão testamentária,
ainda testemunha a história da família. Meus avós tinham ao todo
sete netos que perambulando, com toda a energia proporcionada
pela liberdade por eles concedida, preenchiam todos os cantos da
casa. Mas as manhãs mágicas eram aquelas em que
acompanhávamos, na carreta acoplada ao trator Ford verde, as
idas do avô e do tioavô à fazenda. São estes o espaço e o tempo
que guardam minhas mais remotas lembranças de convívio mais
íntimo com plantas e animais e que transitam entre a casa e a
fazenda dos meus avós.
O quintal na casa da praça da Matriz
O quintal da casa da praça era composto de uma parte de
cimento que terminava em um pequeno muro com portão que
dava acesso a uma grande porção de terra (e que ainda existe). No
quintal de terra tinha pé de tudo o que é tipo: mamão do tipo
caipira; limão galego; limão cravo; romã; banana; goiaba; frutado
conde (a minha preferida); manga Bourbon; manga Aden;
jabuticaba; abacate; pé de bucha (daquelas para tomar banho),
além de uma horta onde me lembro mais da mandioca, da couve e
do sem graça do chuchu. Também existiu por um tempo uma
parreira de uva rosada que cobria grande parte do quintal e um pé
de maracujá que encantava nossos olhos quando estava florido.
No meio do quintal existia um galinheiro e mais ao fundo uma
“casinha” com uma privada de concreto, que foi destruída após
sermos atacados pelos marimbondos que se instalaram no fundo
da latrina.
Toda noite, antes de dormir minha avó fazia chá de hortelã
ou de ervacidreira, cujas folhas eram colhidas no quintal. A
hortelã também era colocada no pepino com coalhada, iguaria
preparada muitas vezes na semana. Quando a irmã da vovó
passava temporadas conosco, a vedete das noites, quentes ou frias,
232
"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
era o inhame comprado na horta comunitária da igreja e que
virava sopa para comer com pão caseiro. De vez em quando meu
tioavô, sob os protestos da minha avó que achava que o quintal
ficava sujo, plantava milho entre as árvores frutíferas do quintal.
Perto do muro que separava a terra do cimento havia
algumas plantas ornamentais como as roseiras (que pereceram
simultaneamente com minha avó), dálias (as preferidas de meu
tioavô), palmadesantaRita rosada e uma planta rasteira que
chamávamos de onze horas porque abria exatamente quando o
relógio da igreja dava onze badaladas. Nos vasos que ficavam na
varanda frontal da casa recordo da existência de antúrios brancos
onde, vez por outra, achávamos um louvaadeus que
pacientemente ouvia nossos apelos para juntar as patinhas e rezar.
Joaninhas eram abundantes no quintal.
As plantas nas brincadeiras
Após os jantares íamos para a praça onde brincávamos de
estátua, balança caixão, escondeesconde, queimada, entre outras
tantas brincadeiras de criança praticadas ao ar livre. Os jardins da
praça eram divididos por caminhos de pedra dispostos em
quadrados brancos e pretos e continham, ao lado dos bancos de
cimento, arbustos de alecrim que serviam de esconderijo. Nos
jardins da praça ainda existiam roseiras, caramanchões de dama
danoite sob os quais haviam os bancos ocupados por casais de
namorados aos domingos, hibisco (que, para o horror dos adultos,
chamávamos de peidodeveia) e Mariasemvergonha. Para as
quatro netas, acredito que o milho do quintal tenha tido um
significado especial. Quando íamos para o interior levávamos
nossas bonecas adquiridas nas lojas de São Paulo. Mas tão logo
chegávamos, as coitadas logo eram abandonadas sobre as camas,
quando então, corríamos para o quintal para encontrar a espiga
com mais cabelo para ser transformada na boneca que nos
acompanharia pelo período de férias. Tinha boneca de milho de
cabelo preto, vermelho, amarelo. No corpo da espiga fazíamos
olhinhos, boca, nariz e colocávamos enfeites na roupa de folha. Em
todas as temporadas, um dia especial era selecionado para
233
"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
fazermos um concurso de bonecas onde a presença das espigas era
obrigatória. Em noites de vento o milharam parecia uma festa de
seres do além.
Na fazenda dos dois irmãos
Na estrada de terra para a fazenda existia uma grande
paineira que bifurcava o caminho. Anos depois, o asfalto a levou, o
que sem dúvida deixou a estrada desencantada. Mas do caminho,
além da árvore, recordo do que pareciam horas intermináveis para
percorrer o quilômetro e meio que nos distanciava do sítio.
Não sei como falar da Fazenda Campos Salles sem dizer um
pouco sobre os irmãos proprietários que vieram do Líbano para se
instalar na pequena cidadezinha de ruas de terra e poucos
habitantes. Meu tioavô era um homem de feições mais duras,
barrigudinho, sempre de paletó e calça caqui, chapéu Panamá e
camisa de manga longa, por mais calor que fizesse. Andava pelos
corredores da plantação de café e na praça da mesma forma:
lentamente, com passos determinados, mãos para trás e semblante
sério.
De vez em quando, com sotaque característico bronqueava
com minha mãe quando me via beijando gatos e cachorros que
teimava em levar para casa. Quando na cidade, passava a maior
parte do tempo no salão que existia na parte da frente da casa e
que servia de escritório para guardar e negociar as sacas de café.
Meu tio sentava na escrivaninha, lia revistas agrícolas (Chácaras e
quintais, por exemplo) e recebia inúmeros amigos e conhecidos
que gastavam horas de seu tempo conversando no salão, sentados
nas cadeiras de madeira ou sobre as sacas em companhia de
garrafas de café fresco.
Com mais de um metro e noventa de altura, mais romântico
e sonhador, meu avô era meigo, sem desafetos. Aos finais das
tardes sentava na varanda que dava para o quintal para observar
as aves que retornavam para seus ninhos e as saúvas que
impecavelmente enfileiradas carregavam galhos e folhas para suas
colônias. Ele não as matava. Ficava horas observando aquele
contraste entre um céu alvoroçado e um disciplinado exército em
234
"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
terra. Não precisava dizer nada para que a maioria de seus netos
não pisasse em tão distintos seres propositalmente. A exceção era
um primo alérgico à formiga que repleto de espírito de vingança
torturava as pobres saúvas queimando seus corpinhos com a
utilização de lentes de aumento sob o sol, ou arrancandolhes a
cabeça para delas fazer broches pendurados pelos ferrões.
Apaixonado por criação, meu avô chamava suas poucas
vacas pelo nome dado de modo bastante original por minha avó:
Maravilha, Lindóia, Laranjeira, Rebeca, Lindoinha, Trincheira,
Cigana... Os cavalos Tamoio e Pioneiro eram amigos de todas as
horas. Os porcos eram caipiras, geralmente de duas cores e de vez
em quando meu avô soltava os filhotes no terreiro de secagem de
grãos para que tentássemos apanhálos.
Também tinha peru, galinha, galo, milho, laranja, mexerica,
abacate, jabuticaba, mais goiaba, da branca e da vermelha, mas a
planta que marcou profundamente este tempo de tão mágicas
relações foi, sem dúvida, o café. Diferentemente dos latifúndios
monocultores impulsionados por mãodeobra escrava do Vale do
Paraíba, o cafezal da Campos Salles (que não era nenhum
latifúndio) nasceu cultivado por colonos que residiam em
pequenas casas distribuídas pelos arredores da casa principal.
Lembro bem do orgulho que meus “dois avôs” tinham da
plantação. Era um tempo em que agricultores não faziam
empréstimos no banco e conseguiam manter suas finanças em dia.
A existência de fotografias do meu avô e tioavô na
plantação de café confirma minhas lembranças. Já que o tamanho
das plantas ultrapassavam a altura de um e herdava a robustez do
outro, a mim parece impossível separálos. O café era presença
constante em nossas vidas nesse tempo. Saía ensacado em sacos de
aniagem e algumas sacas eram depositadas no salão da casa da
praça para aguardar a comercialização. Havia latas de grãos
torrados para serem moídos e trazíamos o pó para São Paulo.
Acredito que tenha nascido daí meu vício pela bebida, pela planta,
pelos grãos, pelo cheiro...
Em meados dos anos 70 meus “dois avôs” já idosos estavam
cansados e resolveram vender a fazenda. A notícia recebida em
235
"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
São Paulo fez a família toda chorar e tentar reverter o negócio, mas
tudo já estava concretizado. O cafezal deu lugar à canadeaçúcar e
os dois irmãos desapareceram quase ao mesmo tempo. Foram
apenas oito ou nove anos de convivência, um período curto, mas
que sem dúvida imprimiram suas marcas e deixaram imagens de
um espaço encantado e uma criança feliz.
236
"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
Chá pra curá o “figo”
Rafael Sá Leitão Barboza
Reserva Extrativista (RESEX) Riozinho do Anfrísio, situado
no rio (ou talvez igarapé) Riozinho do Anfrísio, afluente do rio Iriri
que desemboca no rio Xingu, Terra do Meio, Altamira, Pará. Dia
25 de julho de 2015 às 11 horas, acontecia a 12ª Reunião do
Conselho Deliberativo da RESEX na comunidade Morro do
Anfrísio. Como a comunidade é extremamente distante de
Altamira, cerca de quatro dias de deslocamento de voadeira
(lancha de alumínio com motor de popa 90 HP, no mínimo) para
subir e mais quatro dias descendo, parte dos conselheiros optou
por ir de avião monomotor, que dura uma hora e meia. O custo
benefício acabava valendo a pena, pois eram oito dias de
deslocamento mais o pagamento do piloto, muitas vezes da
embarcação, proeiro, cozinheira, alimentação e gasolina, quando o
piloto não batia o pé do motor numa pedra e o quebrava,
atrasando a viagem e gerando pelo menos oito mil “conto” de
despesa. A distância, a agenda intensa de atividades na região e a
forma de execução da reunião dificultava a frequência de reuniões.
Dessa forma as reuniões duravam cerca de três dias ininterruptos,
respeitandose o tempo e as limitações dos ribeirinhos com uma
forma diferenciada e até “carinhosa” de conduzir a reunião.
Muitos ainda seringueiros, descendentes dos soldados da
borracha, protagonistas que marcaram a época de ocupação da
região. Alguns iam uma vez ao ano para a sede do município de
Altamira e outros, eram como o seu Reginho da Boa Saúde, que
conheceu Altamira apenas após seus quarenta anos de idade.
Dado início à reunião, eu já não estava me sentindo bem,
inicialmente com uma leve ânsia de vômito e sem apetite, não
consegui almoçar e no período da tarde do primeiro dia, pedi para
que me substituíssem como presidente do conselho. No segundo
dia, percebi que a região do fígado estava um pouco inchada e
237
"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
dolorida, já era uma suspeita da origem do problema. Ao final do
terceiro dia, eu não conseguia comer praticamente nada, estava à
base de caldo de peixe, por ser leve e ter o mínimo de gordura.
Normalmente era tucunaré ou curimba fresquinhos dali mesmo do
Riozinho, sempre acompanhados de um limãozinho, para ajudar
na digestão. Aprendi desde pequeno que era excelente pingar na
comida, principalmente quando estava mal do fígado. Mesmo
diante da enfermidade, não estava tão preocupado, pois a
Chicona, moradora daquela “colocação”, sempre prestativa, me
fez um chazinho de jambu e disse que era bom para o “fígo”.
Tomei sem nem pestanejar, pois já era consumidor fiel de
fitoterápicos, inclusive da cachaça de jambu (“treme, treme,
treme”).
A reunião acabou, aquela belezura... uns contentes, outros
choramingando, outros criticando a quantidade de comida e
outros que apareciam só para almoçar. E assim, todos voltaram
para suas casas, parte desceu na voadeira, outros no monomotor,
alguns nas rabetas descendo o riozinho do Anfrísio e outros
subindo, pois na seca, só dá para passar de rabeta acima do Morro
do Anfrísio, as voadeiras não conseguem subir devido aos trechos
estreitos e rasos. E, nessas subidas, eu aproveitava as rabetas para
dar uma volta na RESEX, visitar alguns moradores, compartilhar
discussões e encaminhamentos das reuniões, ouvilos e conhecer
de perto cada vez mais o modo de vida dos extrativistas. Mas,
antes de subir, chega Chicona com umas cascas de laranjas secas
perguntando como eu estava, para fazer mais chá para mim. Sabe
aquelas cascas de laranja, descascadas por inteiro que ficam
penduradas nas madeiras da parte de dentro do telhado, por
alguns anos, cheias de poeira...? Pois é... pedi para Chicona para,
pelo menos, tirar as teias de aranha... Ela disse que aquelas casacas
também eram um ótimo remédio para o “figo”. Subi o rio com
uma garrafinha de chá de casca de laranja e jambu. Nem bebia
água, só chá.
A subida foi um pouco sofrida porque as rabetas não tem
cobertura e andam mais devagar, então é sol o dia inteiro sem
ventilação... e tome chá. O chá sempre estava quentinho, naquela
238
"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
garrafa PET debaixo do sol sobre o assoalho da rabeta. Meu
grande parceiro de viagem Miguel, estava em outra missão, então
fui com outro parceiro, o Tody, que, apesar de calado, já era um
moleque experiente na rabeta e nas curvas do Riozinho do
Anfrísio.
Primeira parada. “Colocação” Novo Paraíso, na casa do Seu
Belmiro. Pense num homem brabo, ao mesmo tempo acolhedor e
trabalhador, não tira o bigode para nada. Na casa de seu Belmiro,
eu estava começando a me preocupar com o que tinha, pois, minha
urina já estava ficando escura, quase da cor de guaraná. Após
muita prosa, ele já veio me perguntando o que eu tinha e já foi me
dando seu último frasco de Gotas do Zeca. Um medicamento
popular super conhecido na região que promete, de acordo com
seu rótulo, ser a solução para todas as “moléstias do intestino,
estômago, fígado” e outras. Agora era chá de jambu com casca de
laranja seca, suja de poeira e teia de aranha, com Gotas do Zeca, e
continuava no caldinho de peixe com limão. Assim que avistava
um limoeiro no terreiro, já ia para debaixo do “pé” para coletar os
limões e já os levava no bolso.
A segunda, terceira e outras tantas paradas ocorreram de
forma mais rápida na casa de outros moradores. Os deslocamentos
eram verdadeiros testes de sobrevivência, a viagem estava cada
vez mais cansativa, não pela rabeta, mas pelo meu estado debaixo
de um sol escaldante da Amazônia em pleno verão e tendo que
parar de casa em casa para conversar. Apesar da RESEX ser
imensa, com quase setecentos e quarenta mil hectares, poucas
famílias vivem lá, cerca de setenta famílias. Muitos colegas
brincavam que dava até para saber o nome dos cachorros.
Nona parada. “Colocação” Conceição, na casa do Manelão. Não
havia um dia sequer, quando passava por lá, que o dominó não
“corresse solto”. Dessa vez eu estava tão fraco que nem tive
vontade de jogar nem de comer pequi (pense num pequi bom o de
lá). Do jeito que eu estava, o pequi seria um veneno. Era sagrado,
pequi com farinha do Manelão. Aliás, cada morador que fazia sua
farinha sempre ostentava que era a melhor da região, mas bom
mesmo, era quando ainda estava quentinha sendo preparada no
239
"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
“forno”, independente do “fazedor”. Manelão entrou e saiu
rapidinho ali do mato e já trouxe umas cascas dizendo que seria
bom para o “figo” e logo pediu para Marieta preparar um pouco
de chá. Era casca de ipê roxo. Dessa vez o caldo engrossou: chá de
jambu com casca de laranja seca, suja de poeira e teia de aranha,
com Gotas do Zeca e chá de casca de ipê roxo... e ainda continuava
no caldo de peixe com limão.
Segui viagem rio acima com meu parceiro Tody até metade
do percurso da RESEX, na próxima parada conhecida como Boa
Saúde, na casa do seu Reginho. Homem pequenino, com um
remendo nos óculos, e de um enorme coração e profundo
conhecimento da mata. Impressionante a bagagem de seu Reginho
sobre diversos detalhes daquele ambiente tão complexo. Ele é
muito respeitado na região pela sua fama e experiência como
rezador, benzedor e conhecedor da “etnofarmacologia da floresta”
aplicada na medicina popular. Quando cheguei, foi aquela festa
que sempre faz, aquele abraço apertado e nem precisou dizer que
estava enfermo que ele já foi dizendo que eu precisava de ajuda.
Mas também, naquele estado deplorável, qualquer um poderia
identificar que eu estava mal. Disse que ia dar um jeito para que eu
ficasse bom e que se o Reginho da Boa Saúde não resolvesse,
ninguém mais resolveria, batendo forte no peito como sempre
fazia. Ele fez uma reza comigo e trouxe mais um pouco de cascas
de ipê roxo, depois preparou uma garrafa, daquelas “pitchulinha”
ou “coróte”, com uma solução alaranjada e alcoólica contendo
cascas de mururé, dizendo que eu só podia tomar uma tampinha
uma vez ao dia durante o jejum. Alertou que o remédio era muito
forte e que se tomasse mais que isso, poderia causar impotência
sexual. Foi o momento que mais prestei atenção, para não errar na
dose. Uma justificativa forte para não esquecer. Quando estamos
doentes, numa situação como eu estava, apelamos para tudo, vai
na fé. Mas... e agora? Nem água eu bebia, era só: chá de jambu com
casca de laranja seca, suja de poeira e teia de aranha, com Gotas do
Zeca e chá de casca de ipê roxo, mais ipê roxo e dessa vez
mururé.... ainda no caldo de peixe e limão, sempre no bolso,
colhido a cada parada.
240
"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
Após três dias de deslocamento até a última “colocação”,
Piranheira, na casa de Zezão, quando pensa que não... meu apetite
começou a retornar aos poucos, fui percebendo mudança na
coloração da minha urina para um tom menos escuro e senti
menos inchaço na região do fígado.... e tome chá ainda. Dessa vez
o chá de jambu havia acabado... não sabia se agradecia ou
lamentava... só sobrou a casca da laranja seca suja de poeira e teia
de aranha, com Gotas do Zeca, casca de ipê roxo e mururé, agora
com comidas mais diversas e, um limãozinho. Como a esposa de
Zezão era microscopista e técnica de enfermagem, me alertou para
fazer exame de sangue assim que retornasse para Altamira.
Retornamos para o Morro do Anfrísio, me despedi do Tody
e trabalhei durante mais uns dois dias, graças à internet provida
para a escola. Já me sentia muito melhor, com o apetite retomado,
sem dores no fígado e com a urina quase na coloração normal.
Quando pensa que não... vem Chicona com mais chá de jambu e
um monte de cascas secas de laranja, dessa vez bem lavadinhas....
eu já estava até sentindo o gosto de água novamente, sem folha
alguma, eu já estava só no mururé, mas aí vem Chicona com mais
chá para mim... tive que entrar nesses outros, mais uma vez.
Retornei para Altamira e assim que pude, fui logo fazer exame de
sangue... adivinha?! Dengue e hepatite A. Incrível!! A dengue
provavelmente me pegou na cidade antes de chegar na RESEX,
mas a hepatite, desconfio ter adquirido lá na RESEX. Lembrei bem
dos potes de água, que dificilmente são lavados, das canecas
compartilhadas e do caneco principal usado apenas para tirar água
do pote, aquele que faz “tuuummm”, quando bate na água. Esse
mesmo caneco, é usado por muitas mãos que às vezes até chega a
encostar naquela aguinha fria do fundo do pote e alguns, até
bebem direto na boca. Se foi dessa forma ou de outra, não
importa... só me restou uma dúvida: e se estivesse na cidade, será
que eu estaria curado? Em tão pouco tempo? Do diagnóstico ao
tratamento... seria um aposento!
Cada vez mais me surpreendo com a etnobiologia em
nossas vidas, desde a infância, quando aprendemos receitas de
família da medicina popular, à vida profissional... Em menos de
241
"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
sete dias reuni dengue, hepatite A, Chicona, seu Belmiro, Marieta,
seu Reginho e muito conhecimento ecológico tradicional... Quando
pensa que não... estava curado!
Por essa e mais outras... A RESEX Riozinho do Anfrísio,
junto com toda vizinhança, é um lugar o qual possuo um eterno
carinho por ter trabalhado durante três longos anos, por ter
vivenciado grandes aprendizados e ter conhecido pessoas incríveis
que (não só por isso) me fizeram tomar chá de jambu com casca de
laranja seca, suja de poeira e teia de aranha, com Gotas do Zeca e
chá de casca de ipê roxo, com mururé. E o limão, onde fica? Não
sei, só sei que é bom pro figo e foi assim que aprendi.
34 Este texto foi escrito a pedido de Shirley Djukurnã Krenak, e contou com sua orientação
espiritual, revisão e autorização para publicação.
242
"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
Jonminhot Marét Ererré
Reinaldo DuqueBrasil
Shirley Djukurnã Krenak
Quando me mudei para Governador Valadares em 2012,
comecei a estudar sobre a história e a cultura dos povos originários
do Rio Doce, que não era apenas um rio, mas uma entidade
parental denominada Watu na língua Krenak. E foi lendo o livro
Conne Pandã Rithioc Krenak, escrito por professores Krenak, que
ouvi falar pela primeira vez do Jonminhot (Jonkión):
“JONKIÓN sumiu, foi roubado. A gente não sabe onde está,
faz muito tempo, roubaram o nosso Deus! Por ele, nós tínhamos
uma religião forte, o nosso canto e tradição. Ele nos protegia
através dos MARÉT bons. Aos poucos, nós vamos sobrevivendo e
resistindo ao sofrimento, porque nós temos um sangue forte.
Estamos com ele na mente, na cabeça. Sei que ele não está aqui no
meio do nosso povo, mas está longe, olhando por nós todos.”
Já vivendo no Rio Doce, tive a felicidade de conhecer os
Krenak participando de eventos, sempre admirando sua força na
defesa de seus direitos. Nossa aproximação inicial ocorreu com a
intenção de implantar o Programa Encontro de Saberes no campus
Governador Valadares da UFJF. A ideia era criar espaços de
diálogo intercultural e formação transdisciplinar em saberes
tradicionais com a realização de cursos ministrados por mestras e
mestres indígenas, quilombolas e camponeses. Assim, construímos
uma relação de parceria em projetos de extensão e educação
intercultural do Núcleo de Agroecologia de Governador Valadares
(NAGÔ).
Após um bom tempo de articulação e planejamento,
organizamos o primeiro curso de “História e cultura do povo
Krenak” em maio de 2017, coordenado por Shirley Djukurnã
Krenak e seus irmãos Douglas e Geovani. Faltando uma semana
para o curso, Shirley sugeriu que fizéssemos uma camisa para a
243
"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
ocasião e me enviou uma imagem de Jonminhot com a legenda:
“Jonminhot – entidade sobrenatural do povo Krenak roubada na
década de 1930”. Desde então a única camisa feita pelo NAGÔ
carrega o Jonminhot no peito, e com ele a inspiração na força dos
Borum.
Logo na primeira aula, Shirley projetou a imagem do
Jonminhot e mostrou um vídeo marcante de seu pai Waldemar
Ytchotchó Krenak falando sobre sua importância para o povo
Krenak:
“Se você não tiver a ligação com o Grande Espírito, o
Grande Mestre que construiu toda essa natureza maravilhosa pra
nós, você não consegue resistir, você se curva. Nosso povo Krenak
costuma ensinar o seguinte: quando você se curva, você se entrega
ao mal, você acaba morrendo. E a pior coisa que tem é você morrer
triste. Então esse bastão de religião, que hoje nós falamos
Jonminhot na nossa língua, ele foi o bastão que chegou pra dar
alegria pro povo. Pro povo realmente não se curvar, não se
entregar, porque tinha que viver. E nesse momento fazia alegria,
fazia dança, cantava e o Jonminhot ia junto. Esse bastão de religião
ia junto com as lideranças pra tirar aquele parente que tava
querendo se curvar, se entregar à morte, para ele viver, que ele
precisaria de força para viver.”
Desde que ouvi essas palavras, quando estou esmorecido,
passando por alguma dificuldade e ameaçando me curvar, lembro
os ensinamentos do mestre Ytchotchó sobre a conexão com o
Grande Espírito e penso no Jonminhot para seguir firme na luta
com a força dos Marét. E assim, após o curso, nossa relação de
amizade e parceria se estreitou ainda mais.
Em 2018, viajamos a Belém do Pará para participar do XVI
Congresso Internacional de Etnobiologia e XII Simpósio Brasileiro
de Etnobiologia e Etnoecologia. Chegamos no dia 5 de agosto e no
dia seguinte fomos conhecer Jonminhot a convite da Shirley. Há
pouco tempo, o bastão de religião Krenak havia sido localizado no
acervo do etnólogo Curt Nimuendajú no Museu Paraense Emílio
Goeldi. Os descendentes do Velho Krenak, quem esculpiu
Jonminhot, já haviam rastreado e reencontrado o bastão de religião
244
"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
e agora sonham com seu retorno. Fiquei muito emocionado e
profundamente grato pelo convite para participar deste encontro
com uma entidade sagrada que também já fazia parte da minha
cosmovisão. Pensei em quantos Krenak nasceram e já se foram
para o mundo dos Marét sem conhecer pessoalmente Jonminhot.
Senti
uma
força
indescritível
e
uma
grande
responsabilidade a partir desta atitude de confiança, que exigiu o
máximo respeito, sinceridade e compromisso espiritual com o
povo Borum. Ao mesmo tempo, sentia uma alegria imensurável
por compartilhar este momento em família, com minha amada
companheira, Maíra, que gestava em seu ventre nosso primeiro
filho, Téo. Então, Shirley se tornou nossa comadre, madrinha do
Téo, cantando e rezando pra ele ainda na barriga. Na aldeia
Atoran dizem que ele é presente dos Marét, que germinou a partir
das sementes de abóbora e melancia que colhemos com Shirley na
roça do Douglas.
Mas isso é outra história...
Voltando à expectativa do encontro com Jonminhot, nos
preparamos no dia anterior seguindo as orientações da comadre
Shirley e na segundafeira, dia 6 de agosto, em jejum, fomos ao
museu. Chegando lá, fomos recebidos de maneira respeitosa pela
curadora, que nos fez aguardar alguns minutos enquanto a
responsável buscava e preparava Jonminhot no laboratório para o
encontro, uma vez que ele não ficava exposto, mas guardado no
acervo do setor de pesquisa etnológica do museu. Djukurnã
irradiava alegria, e um pouco de ansiedade, enquanto aguardava o
reencontro. Para o museu, Jonminhot é um patrimônio cultural
material a ser preservado, porém é tratado apenas como uma peça
guardada em acervo para fins de pesquisa, que não pode ser
manuseada e exposta. Por outro lado, para Shirley e seus parentes,
Jonminhot é um ente querido, é parte de sua identidade e
espiritualidade, é um ancião, um ancestral, uma conexão com a
memória dos antepassados. Ele não é uma peça de museu e não
deveria estar guardado. Jonminhot está vivo, assim como a cultura
Krenak, e deveria estar levando alegria ao seu povo, lembrando
sempre que não podemos nos curvar. Enquanto esperávamos,
Shirley dizia: “Jonminhot precisa tomar sol! Quando ele toma sol,
245
"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
todo o meu povo recebe essa força. E nós estamos precisando
muito...”.
Finalmente a curadora nos chamou para entrar no
laboratório onde Jonminhot estava preparado. Seguimos os passos
da comadre Djukurnã, que foi caminhando e cantando forte pelo
corredor. Meu coração bateu mais forte, arrepiei da cabeça aos pés,
e quando entramos no laboratório lá estava ele, deitado,
acondicionado em uma caixa de isopor sobre uma fria bancada de
granito. Eu e Maíra ficamos apenas observando, com a emoção à
flor da pele, com muito respeito e gratidão.
Vimos quando Shirley se aproximou e tocou o rosto de
Jonminhot, acariciandoo. Enquanto a funcionária do museu usava
jaleco e luvas, Djukurnã abraçava Jonminhot carinhosamente. A
comadre conversava com ele na língua Krenak, e entre algumas
palavras em português, ouvila dizendo: “Estou aqui, vou cantar
pra você, vou te levar pra tomar sol”. Shirley pegou Jonminhot no
colo com o amor e a ternura que uma neta abraça seu avô, como
uma verdadeira Djukurnã e seu Makiãm. Neste momento, não
contive as lágrimas e chorei de emoção.
“Vem Jonminhot, vamos tomar sol”. Shirley, então, o
carregou no colo para fora do laboratório, atravessou o corredor
rumo à área externa. Quando saímos do prédio, pisamos na grama
e a luz do sol banhou Jonminhot, vi nitidamente a alegria expressa
em seu rosto, em seu olhar. Não há dúvidas que ele está vivo!
Shirley colocou Jonminhot de pé, com seu metro e meio de altura,
embaixo de uma árvore. Acendeu seu cachimbo, conversou com
ele, rezou e cantou. Cantamos e dançamos com Jonminhot em um
momento de muita força e luz. Findo o ritual, era hora de leválo
de volta ao laboratório, onde foi guardado e retornou para o
acervo do museu. A despedida também foi emocionante, pois
apesar da tristeza de partir e ver Jonminhot voltar para a caixa,
prevaleceu a alegria pelo reencontro e o sentimento de esperança
pelo seu regresso.
Após compartilhar esta experiência com minha
companheira, meu filho e minha comadre, posso dizer que
Jonminhot e os Marét fazem parte da minha vida, dos meus
246
"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
pensamentos e do meu coração. O compromisso acadêmico e
pessoal com o povo Krenak se tornou um compromisso fraterno e
espiritual. Téo conheceu Jonminhot antes mesmo de nascer, e em
seu primeiro ano de vida dormiu várias vezes ouvindo papai
cantar a música que aprendemos naquele dia em Belém:
BORUM MINHÃM RAT PANDÃ / BORUM GUIAK KUÉ ÕM
BORUM NON GRI GUIAK / JONMINHOT MARÉT ERERRÉ
Esperamos que Jonminhot volte para o seu povo, com a
força de Guiak e dos Marét. Ererré!
247
"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
Panos coloridos lançados ao sabor
das ondas e sopros do mar!
Roberta Sá Leitão Barboza
Foi duro acordar cedo após algumas horas cansativas de
estrada e poucas horas de sono, todavia os momentos vivenciados
foram singulares, e os narro aqui em formato de causo, a você,
caro leitor. Espero que desfrute essa leitura com muito prazer!
No primeiro contato com aquele ambiente, percebi de
imediato olhares atentos e curiosos dos jovens reunidos. Nos
deslocamos até a praia, lá, o sol escaldante, típico de um verão no
litoral nordestino, esquentava nossos corpos, ao passo que o vento
se encarregava de nos refrescar. Sim, querido leitor! Antes que
você me pergunte, já adianto a você que esse mesmo vento levaria
as jangadas ainda recolhidas na beira a desfilarem em alto mar.
Enquanto isso, diferentes vozes ressoavam na praia, um certo
“bafafá” acerca da largada da regata. Naquele momento, lancei um
breve olhar em vários ângulos possíveis, mas não vi vela alguma,
contudo, de súbito um movimento se iniciou com troncos de pau
no chão trazendo uma jangada, então logo me direcionei a beira
mar.
Achei estranho, pois apenas essa jangada estava sendo
rolada em direção ao mar. Puro engano! Quando me virei no
sentido oposto ao mar, vislumbrei várias pessoas se aproximando
em torno das outras jangadas ao mesmo tempo que muitas
conversas se entrelaçavam no ar. E assim, várias jangadas foram
sendo, pouco a pouco, trazidas para a água. Muitas informações
simultaneamente, fiquei sem saber em que direção olhar, que
imagens registrar. Se fotos ou filmagem, deveria arriscar. E de
repente quase todas jangadas estavam alinhadas à beiramar, no
entanto ainda restava uma na areia. Um senhor visivelmente
desapontado, bravejava gritando: “Bora começar, já são nove
horas, por que esse diacho ainda não saiu?”. E após um pequeno
248
"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
atraso, fogos ruidosos, “peipeiboom”, lançados ao ar anunciavam
o início da regata à vela dos jangadeiros de Barra de Santo Antônio
em Alagoas.
Muita euforia e muito esforço, pois a tarefa de fazer a
jangada navegar naquelas condições de vento extremamente forte,
não era nada fácil. Tanto que as expressões dos pescadores
demonstravam grande preocupação no mesmo momento em que
desenrolavam as velas e ajeitavam a tal da bulina, palavra bastante
pronunciada naquele momento: “Ô bicho burro, solta a bulina!”.
Vários anciãos na beira discutiam entre si sobre uma jangada que
retardara demasiadamente na largada. E foi desse jeito, escutando
conversas atravessadas, rindo e me divertindo em observar de
forma mais atenta estes acontecimentos que me interessei em
relatar a você, leitor, esse causo e me deleitar nessa aventura
etnográfica.
Mas deixemos de “cunversê” e retornemos ao nosso acontecido.
Enquanto alguns riam dos atrasados, outros os chamavam de
besta, e outros solidariamente os ajudavam. Lembrome bem de
uma senhora que se lançou ao mar e empurrou a jangada com
todas suas forças. Após alguns minutos de insistência e valentia,
finalmente a jangada atrasada adentrava as ondas bravas daquele
mar, começando a cumprir o trajeto da regata. Muitas palmas
ecoaram, incentivando ainda mais os pescadores persistentes.
Que lindeza foi ver o céu azulado e o mar esverdeado por
sinal uma das cores de mar mais lindas já vistas por mim e cerca
de 24 panos de vela coloridas, esticadas e sopradas pelo vento
forte a bailarem na imensidão do Atlântico. Recordo dessa linda
cena emocionada, com os olhos admirados por tamanha beleza e a
alma encantada.
Na beira do mar crianças também assistiam aquele
espetáculo, e em seguida brincavam na areia, à medida que as
jangadas se afastavam, desfilando suas proezas alémmar. Um
senhor pescador me relatou com orgulho os 25 anos dessa tradição
comemorada no dia de Nossa Senhora da Conceição. O “zum
249
"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
zumzum” das conversas se direcionavam a quem seriam os
vencedores, enquanto estranhamente uma das jangadas retornava,
se aproximando de nós. Seu proprietário, por pressa ou
desatenção, havia esquecido uma ferramenta fundamental, o remo,
e achara mais prudente retornar e abandonar a competição. Troféu
não era seu problema, já havia conquistado 15 vezes a competição!
Lembreime que precisaria retornar ao trabalho. Os jovens
protagonistas me esperavam e fui deixando a praia, na mesma
proporção que as jangadas foram cortando as águas do mar e o
sopro do vento foi inflando suas velas, por vezes molhadas pelas
mãos habilidosas de jangadeiros que há anos conduzem de forma
meticulosa essas incríveis embarcações. Fui saindo em meio aos
murmúrios, olhos ansiosos e pés lavados pelo mar à espreita dos
vencedores da regata desse ano...
250
"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
A aula de Celina
Rumi Regina Kubo
Terceira aula da disciplina Encontro de saberes35, primeiro
de abril de 2019. Após chamadas e conversas iniciais, Celina ensaia
o começo de sua aula. Lentamente ecoa uma canção... e assim
começa sua aula. Sinto um silêncio no ar, entre os alunos, um
misto de perplexidade e inquietação silenciosa. Com postura e voz
de quem inicia um espetáculo, Celina começa a ler o texto
preparado para a aula, comentando de onde ela estará ministrando
sua aula: o seu lugar de fala noção essencial. E coloca que é
egressa da UFRGS, do departamento de Artes Dramáticas, que
cursou na década de 1990. Foi a primeira aluna negra que iniciou e
finalizou o curso. E primeira de muitas outras situações de
presença negra feminina, no teatro. E fala dessas situações, não
com o orgulho de sua conquista, mas com a melancolia de que se
trata de uma "exceção que reforça a regra". A regra da exclusão, da
desigualdade, da negação da existência do racismo. Daquela que
"não está no lugar que lhe é destinado".
Em seu textoaula, vai citando autores negros, construindo
um conjunto de referências negras que não estão nos currículos da
universidade: Conceição Evaristo, Djamila Ribeiro, Nego Bispo,
Abdias do Nascimento. Ao mesmo tempo, vai expondo os
diferentes recortes das abordagens no campo de conhecimento das
relações étnicoraciais: o debate sobre raça, etnia e território,
relações étnicoraciais e políticas públicas, e revelanos como está a
constituir seu campo de pesquisa, seu "lugar de fala". Reflete sobre
os modos de elaborar seu itinerário de pesquisa, a partir do
contraste entre a branquitude e uma negritude, do sentido de
comunidade, do coletivo, de estar junto.
35 Disciplina de graduação ART03946 Encontro de saberes, oferecida semestralmente desde 2016,
pelo departamento de Música da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, propõe a docência
compartilhada entre professores da universidade e Mestres dos Saberes Tradicionais e Populares.
251
"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
E repentinamente canta o samba enredo da Mangueira ,
numa voz límpida, vibrante e negra. E doume conta que não tinha
reparado na sua profundidade e, sobretudo, que é um roteiro de
história do Brasil.
Mangueira, tira a poeira dos porões
Ô, abre alas pros teus heróis de barracões
Dos Brasis que se faz um país de Lecis, Jamelões
São verde e rosa, as multidões
Mangueira, tira a poeira dos porões
Ô, abre alas pros teus heróis de barracões
Dos Brasis que se faz um país de Lecis, Jamelões
São verde e rosa, as multidões
Brasil, meu nego
Deixa eu te contar
A história que a história não conta
O avesso do mesmo lugar
Na luta é que a gente se encontra
Brasil, meu dengo
A Mangueira chegou
Com versos que o livro apagou
Desde 1500 tem mais invasão do que descobrimento
Tem sangue retinto pisado
Atrás do herói emoldurado
Mulheres, tamoios, mulatos
Eu quero um país que não está no retrato
Brasil, o teu nome é Dandara
E a tua cara é de Cariri
36 Samba enredo do Carnaval de 2019 da escola de samba Mangueira, do Rio de Janeiro "História
Pra Ninar Gente Grande", autoria do carnavalesco Leandro Vieira e composto por Tomaz Miranda
Mama, Marcio Bola, Ronie Oliveira e Danilo Firmino.
252
"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
Não veio do céu
Nem das mãos de Isabel
A liberdade é um dragão no mar de Aracati
Salve os caboclos de julho
Quem foi de aço nos anos de chumbo
Brasil, chegou a vez
De ouvir as Marias, Mahins, Marielles, Malês...
E lembra que há ainda muito a se fazer e nesse contexto,
convoca a todos os alunos, alunas e professores, professoras a
pensar no papel da Universidade. Finaliza dizendo: "ainda não
fizemos a lição de casa e, no entanto, estamos no século XXI".
253
"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
Escrever para rememorar
Rumi Regina Kubo
Feira mais vinte37 . Foram 20 anos. Tempo de colher... o que
foi colhido? O que plantamos.
Constato a vida transcorrida na pressa, espremida por
coisas a fazer, atendendo às pessoas que nos demandam posições,
posturas, ações. Talvez escrever possa ser um bom refúgio para
recordar e pensar sobre o que foi vivido. Recordar no sentido de
reviver alguns momentos que figuram em nossas lembranças.
Considerando também as novas gerações chegando. A
possibilidade de ouvir os anseios dessa nova geração. Vejo que
recordar se configura numa itinerância, entre acontecimentos que
encadeiam sentimentos e reflexões, que evocam outros
sentimentos e assim sucessivamente. E a partir disso, buscarmos
novos horizontes. A esperança é um fato humano por excelência.
É nesse contexto que, há algum tempo, percebo que os
momentos me encantam, justamente por sua fugacidade. E isso
fazme recordar a principal reclamação de Roberto (guardião de
sementes que esteve em nosso evento, Sbee mais 20): o descuido
que tivemos com o registro.
Neste sentido, acolhendo a reclamação de Roberto registro
momentos.
Registro um momento peculiar, que foi colhido em um
momento de apagar das luzes. Havia ocorrido o encerramento do
XI Simpósio de Etnobiologia e Etnobiologia, que ocorrera entre os
dias 22 a 25 de novembro, nas dependências da Universidade
Estadual de Feira de Santana, estando ainda prevista uma festa de
encerramento à fantasia. Mas antes disso haveria a abertura do I
Festival de Sementes Crioulas da Bahia, que era o outro evento
37 XI Simpósio Brasileiro de Etnobiologia e Etnoecologia, realizado entre os dias 22 a 26 de
novembro de 2016, em Feira de Santana.
254
"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
previsto dentro da programação geral. Este, por estar previsto em
outro local, ou seja, o Instituto Federal Baiano, foi dispersando as
pessoas. Poucos se propuseram a ir nesta abertura: Paula Chamy,
Kátia Batista, Flávio Barros, Edna Chaves, Lin Chau Ming...
Chegando ao evento, tudo estava ainda começando… As pessoas
estavam chegando: o Rubens Nodari da UFSC, Terezinha Dias do
Cenargen...
Demorava para iniciar. Começava a anoitecer. Restaram
apenas Kátia, Paula, Lin (que teria que falar na abertura) e eu. Os
demais se foram por pretenderem ir à festa ou terem outros
compromissos.
Após ainda algum tempo de espera, começava o evento,
com uma mística inicial que narrava a trajetória de um neto de
imigrantes japoneses... o que me intrigou (sendo eu de origem
japonesa)... gradativamente eram recitados traços de um
curriculum vitae biográfico. Acompanhando a leitura, finalmente
deime conta: era Kageyama. Sim, Paulo Kageyama! Grita a
menina que lia este currículo profissional e de vida. E grita a
plateia, em alto e bom tom: PRESENTE. Novamente repete a
menina: Paulo Kageyama. PRESENTE! Repetimos. Assim mais
uma vez se repete este gritosaudadehomenagem.
Mas direcionandonos a um outro mestre, voltemos à
abertura do evento. São chamados, um por um, os integrantes da
mesa de abertura. Entre estes: Lin, Terezinha, Nodari, Aurélio
Carvalho, entre outros que não conhecia. Eram todas pessoas
referência na luta pelas sementes crioulas.
Nas falas de cada um dos componentes da mesa, eram
expostas as diferentes facetas e convicções de cada pessoa que
detinha a palavra. Mas uma delas, registro aqui para que não seja
traída pela ação do tempo que tudo faz esvair.
Lin Chau Ming em sua fala enaltece o evento, seus objetivos
e o compromisso da universidade pública para com este
movimento de conservação das sementes e de seus manejadores.
E finaliza com algo que, segue sua característica de
surpreender pelo inusitado. Contanos de sua juventude de
militâncias e relembra dos movimentos que participou, dentre
255
"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
estes, pela reforma agrária. E pergunta se alguém lembra ainda do
hino, a qual ele ainda lembrava a letra. E o canta... Sublime em sua
simplicidade:
Me acompanhem!
A luta é necessária e nós vamos lutar,
Pela reforma agrária
Para nos libertar.
A luta é necessária e nós vamos lutar,
Pela reforma agrária
Para nos libertar.
Camponeses, operários, unidos,
Vão reunidos, para lutar,
Por uma reforma agrária, necessária,
Para o país se libertar!
Aí vai o refrãozinho de novo! Muito obrigado!
Facetas de um grande mestre.
256
"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
Casa Grande e Dona Umbuzeira
Shana Sampaio Sieber
Conheci Dona Umbuzeira (*) em 2017. Uma visita que eu
fiz ao Assentamento Juazeiro. Uma senhora de 69 anos, mãe de
oito filhos, três mulheres e cinco homens, e separada do marido há
mais de seis anos. Sua casa, grudada com um bar que o filho toma
conta. Ele mora na “rua”, vem só para tomar conta do bar, do seu
roçado e quintal produtivo, onde planta abóbora, feijão, milho,
cebola e coentro. O exmarido de Dona Umbuzeira é frequentador
do mesmo bar; assim como muitos homens do assentamento.
Nossa empatia foi imediata. Com pouco tempo de conversa,
ela me falou que era separada. Uma das únicas mulheres
separadas do assentamento, aliás. Mulher rural, sertaneja,
pernambucana do Pajeú, assentada em uma terra marcada pelo
imaginário da seca e da miséria, carregada por culturas patriarcais
que continuam reproduzindo as “velhas práticas” das políticas de
combate à seca e desigualdades de gênero.
Conhecemos muitas histórias de resistência e luta das
mulheres rurais no território que fizeram com que vivêssemos um
processo de conquista e posicionamento em espaços políticos de
tomada de decisão, e no próprio espaço das nossas casas, nos
quintais produtivos e roçados, e nas nossas florestas, no manejo
sustentável dos nossos recursos. Dona Umbuzeira tem uma
história marcante, generosa e apaixonada. Ela receita
medicamentos à base de plantas da caatinga para todos que
chegam por lá e para toda a sua família.
Quando a conheci, já pude identificar uma profunda
conhecedora local de plantas medicinais com muita sabedoria para
compartilhar. E por isso mesmo, é claro, voltei lá mais algumas
vezes para conversar com ela. Era angico, jurema preta,
quixabeira, umbuzeiro e catingueira e muitas outras plantas que
Dona Umbuzeira citou nos nossos encontros, me fazendo
257
"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
relembrar a época do meu mestrado, trazendo a importância
dessas plantas no reconhecimento e na valorização da
sociobiodiversidade local.
Mas a história de Dona Umbuzeira não parava por aí.
Enquanto manejadora e conhecedora de plantas medicinais, Dona
Umbuzeira se destaca no cuidado da família: cuidado que, por
muitas vezes, não é retratado, nem sequer reconhecido, como
trabalho realizado de forma simultânea no contexto do trabalho
reprodutivo.
Na minha terceira visita à casa da Dona Umbuzeira, resolvi
fazer a coleta de algumas plantas, e continuar a conversa. Descobri
que sua história foi bastante sofrida; uma história de vida e de
trabalho sobrecarregada, no continuum entre o trabalho produtivo
e reprodutivo que se expressam hoje no trabalho doméstico e de
cuidado. Cuidado com netas e netos, filhas e filhos; e ainda com os
homens consumidores do bar que seu filho administra.
Durante as três horas que passei com ela no dia da coleta, o
bar permanecia lotado. Os homens sentados em sua frente
tomando cachaça e cerveja continuaram na mesma posição desde o
momento que saímos para coletar as plantas até o momento em
que voltamos, e ainda continuamos nossa conversa na sua casa
tomando um cafezinho. Um deles entrou dentro da casa da Dona
Umbuzeira para pedir um café pra curar a ressaca... Dona
Umbuzeira cuidava do homem com todo carinho me explicando o
seu grau de parentesco.
Era uma quintafeira e eu me questionava muitas coisas
naquele momento. Dona Umbuzeira me contou que quando se
casou foi morar numa terra vizinha. Só voltou quando descobriu
que “ele” estava com outra. Essa “outra” estava morando na casa
que é dela agora, mas foi expulsa por Dona Umbuzeira que acabou
retomando a posse da própria casa.
Além do bar, a casa de Dona Umbuzeira está localizada
muito próxima a uma Igreja Evangélica. Dona Umbuzeira não é
evangélica. Ninguém da sua família é. Dona Umbuzeira me falou
que na época do Seu Padim a Igreja era católica. Foi aí que eu
conheci a história do Seu Padim. Depois que ele morreu, o ex
258
"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
marido de Dona Umbuzeira articulou com a Igreja evangélica,
mediando a “doação”. Assim, a Igreja da comunidade passou a ser
evangélica, servindo a todos do assentamento como única opção.
Seu Padim era o “dono” da fazenda e da “Casa Grande”. Pai de
um famoso político local e nacional, que chegou a assumir
diferentes cargos na Câmara Federal.
E aqui chego ao que eu imaginava ser o cerne dos meus
questionamentos quando me pergunto sobre a relação desse
político com Juazeiro (e com Dona Umbuzeira), enquanto antigo
proprietário de suas terras. Mediado por projetos ligados ao
Estado e por uma prima desse mesmo político que também tem
uma trajetória política na região , o Assentamento Juazeiro acabou
se consolidando através da redistribuição de lotes de antigos
moradores da Fazenda.
Ao lado da Igreja Evangélica, fica localizada a “Casa
Grande”. Até hoje as pessoas do assentamento se referem a ela
como tal, tendo sido a casa do Seu Padim por muitos anos, e de
muitos moradores locais, que chegaram a cogitar a sua doação
como sede da sua associação em inúmeras circunstâncias. E aqui já
se construía a base dos principais conflitos vividos pelo
assentamento.
Com o problema do desvio de recursos da associação,
ocorrido por volta de 2005, os processos associativos foram
prejudicados, configurando uma situação corrupta na relação com
os recursos públicos, que seriam destinados para aquisição de
animais e ações de infraestrutura.
Em uma terra distinguida por relações assistencialistas e
clientelistas, o futuro da “Casa Grande” já estava traçado, atuando
com base nessas mesmas relações. Dividindo o assentamento em
duas partes, a “Casa Grande” se tornou representativa dos
senhores da Fazenda, posicionados na frente do bar, na
cooperação entre os homens da comunidade. Do outro lado da
Casa Grande, assentaramse as trabalhadoras e os trabalhadores
ruais da fazenda, hoje chamados de agricultoras e agricultores
familiares que ainda trabalham na “empeleita” (conheci esse termo
por lá), seja na agricultura de outras propriedades, seja nas suas
259
"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
próprias, ou até mesmo em trabalhos como diaristas, empregadas
domésticas, pedreiras, pedreiros, e em casa!
E foi aqui que encontrei mais histórias de vida e de trabalho
de outras mulheres igualmente fortes, todas “irmãs” da Igreja
Evangélica. Dona Macambira: cega, mãe de três filhos,
trabalhadora da terra do Seu Padim. Trabalhou “pra criar”; e
trabalhou! Trabalhou numa época que as diárias dos homens eram
o dobro das diárias das mulheres, com a mesma “hora de pegada e
largada”. Dona Juá: mãe de seis filhos. Seu marido trabalhou nas
terras do Seu Padim: marido e filho. Assim como Dona
Umbuzeira, Dona Juá também adora as plantas do seu quintal.
Conhece muito mato da caatinga. E ainda tem Dona Quixabeira:
nora de Dona Juá. Uma mulher muito intensa também. O marido
também foi trabalhador da Fazenda. Até hoje ele trabalha na
“empeleita”. E Dona Quixabeira trabalha em casa. É o trabalho
doméstico e de cuidado com oito filhos que são realizados junto
com as atividades de participação política e trabalho voluntário e
religioso, que preenchem o tempo de toda a sua semana.
Conhecedora de plantas da caatinga e do manejo agroecológico,
dona quixabeira é dona da palavra, poeta! Todas elas “donas de
casa”. Dona, não pelo título concedido às senhoras de famílias
nobres, cuja abreviação é d. ou D. ou, conforme o dicionário,
mulher casada, esposa. Donas de casa mas, sobretudo,
trabalhadoras. Muito amor compartilhado nesse assentamento! E
muitos conflitos também.
A falta de reconhecimento e amadurecimento da identidade
comunitária das pessoas do Assentamento Juazeiro só
impossibilita qualquer esforço de coletividade, separandoo em
dois. Pesquisas, estudos e ações de extensão rural, competem com
as intervenções dos políticos que continuam atuando e acionando
a perspectiva do combate à seca, negociando o acesso à água sob
relações clientelistas. Mesmo com os esforços dos movimentos
sociais na direção da convivência com o semiárido, da
agroecologia e de uma perspectiva feminista, enquanto
contraponto às políticas que favoreceram historicamente a
indústria da seca, a Casa Grande perpetua a interdependência
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"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
política com base em valores patriarcais e machistas.
Dona Umbuzeira é filha do “Seu Padim” (como ela mesma
se referiu), e irmã “bastarda” de um dos políticos nordestinos mais
conhecidos do Brasil (infelizmente por uma trajetória marcada
pela sua condenação associada ao trabalho escravo). Umbuzeira se
revela como grande conhecedora de plantas medicinais e liderança
de um dos lados do assentamento: o lado da “Casa Grande”.
Apesar de sua trajetória dissidente de resistência e luta, diante de
uma madrasta que não gostava dela, de um marido machista e
aproveitador e de um meio irmão por quem ela mantinha um
sentimento rancoroso, Dona Umbuzeira afirmou que sempre
trabalhou ali na terra “pra ela mesma”. Nunca trabalhou para
outra pessoa. A terra era da família, da sua família, do Seu Padim.
Mas Dona Umbuzeira nem sequer reivindicou seus direitos, quiçá
a herança das terras do “lado” da Casa Grande, configurando a
contradição do referencial de poder, no contraste com histórias de
vidas oprimidas das trabalhadoras e trabalhadores do “outro”
lado do assentamento.
Num cenário de crise democrática e perda de direitos, a
resistência se faz no reconhecimento e na problematização dos
contextos das nossas pesquisas e práticas, começando pelas
histórias das mulheres. Histórias de “donas” de casa
invisibilizadas, que trabalham no cuidado de si, da família e da
comunidade, no reconhecimento e na valorização da nossa
sociobiodiversidade ameaçada. Agricultoras familiares e
trabalhadoras; donas do conhecimento e da sustentabilidade da
vida!
(*) Todos os nomes que aparecem no texto foram substituídos por nomes
fictícios, inclusive o do assentamento, para preservar a identidade das (os)
envolvidas (os).
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"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
Ciência da Mata
Tomaz Ribeiro Lanza
Mais um dia acordando na aldeia Nova Olinda ao som dos
Japinins. Aqui, quem separa a noite e o dia são os bichos, com seus
grunhidos, gritos e cantos. Quando é noite, os sapos e pererecas
namoram ao som de orquestras atrás da escola onde ficamos
alojados. Lá, tem um grande alagadiço, e nele, uma infinidade de
animais, entre eles o sapo do Kampo, fácil de distinguir em meio a
multidão. Essa orquestra não dura a madrugada toda, sons
variados ecoam em meio a floresta, que com seus milhares de
quilômetros, traz momentos de silêncio profundo e cantos
misteriosos.
Quando começa amanhecer a temperatura aumenta, os
carapanãs dão lugar aos piuns, a música da floresta muda:
nambus, saracuras, jacamins e guaribas anunciam a chegada do
sol. Segundo os Huni Kui, a forma com que cantam pela manhã
indica como vai ser o dia. Se vem chuva pela frente, os animais
cantam tristes, agora, se vem sol, cantam alegres e empolgados.
Esses sinais são utilizados cotidianamente pelos indígenas, e
auxiliam as famílias a decidirem as funções do dia, como trabalhar
na roça, caçar, pescar ou tirar madeira.
Aqui na floresta não precisa de relógio. O tempo é medido
pelo calor, pelos sons e sinais que a natureza dá. Observei esses
padrões por vários dias em que fiquei junto dos Kaxinawá no alto
Rio Envira no Acre. São conhecimentos complexos e refinados, que
possibilitam viver no tempo das coisas. Apesar de não ser objeto
específico da minha pesquisa de doutorado, me interessei
profundamente em entender a “ciência da mata”, como eles
mesmo dizem.
Após as reflexões e sons diários, caminhei até a casa do
Nashima para tomar um café. Atravessei uns 200 m pelo terreiro
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"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
central da aldeia passando ao lado do Shubuã (maloca central).
Nesse caminho, encontrei um consertando o telhado da casa, outro
indo caçar, crianças carregando banana e a vida acontecendo,
desde cedo nessas terras amazônicas. Há um dito popular péssimo
que diz que índio é preguiçoso, mas tenho certeza que poucos
nawa (branco) aguentariam um dia de trabalho junto deles.
Por fim cheguei a casa da família, onde estavam todos
reunidos no chão me aguardando para merendar. Tomamos café,
banana comprida cozida e ensopado de veado. “Aqui para
aguentar o dia tem que comer bem de manhã!”, disseram rindo
para mim. Após o café saímos em direção ao roçado da família do
Nashima, a uns 10 minutos caminhando dalí. Atravessamos uns
trechos de mata, onde logo fui chamado a atenção para ver um
cogumelo laranja, o Carupabinki, que possui uma chapeleta virada
para cima como se fosse um guardachuva ao contrário.
− Coloca no ouvido, professor, tenta escutar se tem um
chiado. Se tiver é que vem friagem por aí – disse o Nashima.
− Estou ouvindo sim, bem baixinho lá no fundo respondi
− Que bom. Quer dizer que vem chuva fraca! – ele finalizou.
... e seguimos andando como se nada tivesse acontecendo.
Fiquei perplexo com aquilo na cabeça, e logo perguntei a ele se
realmente funcionava. Ele respondeu que era ciência antiga, e que
usavam aquilo para prever o tempo. Achei impressionante
tamanha sabedoria e como eles utilizam a própria natureza para
tomar decisões cotidianas. A partir dali fiquei ansioso aguardando
o caminhar do dia para ver como ficaria o tempo.
Visitamos o roçado, onde ele me mostrou diversas
variedades de mandioca que plantava: paxiubão, amarelinha,
caboclinha, campa preta e outras mais. O calor estava
aumentando, e após a visita, decidimos então dar um mergulho no
rio que estava próximo e seguir para outros roçados do outro lado
do Envira.
Ao atravessar de barco encontramos Tue, Yube e Tui (o pajé
de nova Olinda), cuidando de um roçado grande em meio a mata
bruta. Nesse roçado, além de diversos tipos de mandioca, tinha
também cará, abacaxi, melancia, mamão jacaré (um tipo de mamão
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"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
todo cheio de calombo na casca cultivado por eles), taioba e um
centenário cumarú que foi deixado em pé bem no centro da área.
Perguntei porque o deixaram e logo entendi. Um casal de
araras fazia um ninho em um buraco em seu tronco, por isso não o
cortaram.
Visitei o roçado deles, coletei algumas informações para
minha pesquisa, e logo partimos para caminhar em direção a mata
para almoçar. Além de uns mamões e bananas, tínhamos também
uma farofa de carne de macaco. Após comer, ficamos ali
conversando um pouco e logo saímos para caminhar mais na
floresta.
Nas margens da trilha vi logo uma árvore de tronco liso e
gordo, como uma barriguda, toda marcada de facão, que aqui
chamam de botijão. Perguntei do que se tratava, e me disseram
que utilizavam essa árvore para estimular a chuva.
− Em tempos de seca batemos nessa árvore para ela trazer
chuva para nós professor – respondeu o Tue.
− Se sair muita seiva é que vem chuva forte. Se sair pouca é
só friagem – complementou o Yube.
− Quando queremos mandar “panema” (azar) para alguém,
escrevemos o nome da pessoa nessa árvore também professor –
complementou Tue trazendo mais uma ciência dessa árvore.
Batemos na casca e a seiva saiu fraca, ou seja, segundo eles
vinha chuva fraca pela frente. Curioso demais tudo isso, inclusive,
quando tive na RESEX Chico Mendes em XapuriAC no início do
doutorado em 2016, aprendi com os seringueiros sobre uma planta
medicinal muito poderosa, que coincidentemente era essa mesma
planta. Ao bater no tronco sai uma seiva pastosa que pode ser
usada para tratamento de infecções. Incrível como a sabedoria da
floresta é complexa, e em cada local a mata traz seus ensinamentos
para o dia a dia.
Seguimos andando e mais a frente ouvimos um grito de gavião
bem distante. Chamei a atenção sobre o animal e logo Yube me
questionou:
− Professor, o gavião ajuda Huni Kui a caçar. Ele mostra
para a gente onde se escondem os porquinhos, tatu e outros
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"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
animais.
− Caramba, que interessante, então sabem onde está a caça
pela localização do gavião? questionei
− Não professor, a gente chama o gavião e ele mostra para a
gente onde tá a caça.
− Como assim chama?
− Quer ver? – perguntou Yube em um tom sério e ao
mesmo rindo.
− Claro! – respondi ao mesmo tempo curioso e um pouco
cético.
Naquele momento pensei “eles vão zoar comigo”. Os
Kaxinawá são muito brincalhões (na leveza total, sem maldade), e
eu sendo um nawa (branco), mais ainda sou objeto das
brincadeiras.
Foi então que Yube deu um grito super alto imitando o
gavião. Tomei um susto, mas nenhum sinal do animal. Ele gritou
mais uma vez e nada. Comecei a duvidar e realmente achar que
estavam brincando comigo, quando de repente ouço um barulho
na copa de uma árvore de mulateiro ao nosso lado. Quando olhei,
me arrepiei da cabeça aos pés, pois ali estava, um gavião enorme
de corpo marrom e cabeça branca a mais ou menos 20 m de
distância da gente.
− Tá vendo professor, quando vemos que ele está perto
chamamos para ajudar na caça – Indagou o Pajé Tui
Eu sem palavras, totalmente impressionado, fiquei em
silêncio observando, e pelas risadas que eles deram, imaginem a
cara que fiquei. Para não dizer incrível, achei aquilo surreal!
Seguimos pela mata cantando, evocando os seres da floresta, e eu,
extremamente impressionado ainda com tudo aquilo. Andamos o
dia todo e em cada canto uma nova ciência, um novo sinal, uma
observação atenta de tudo que nos rodeia. Após umas 3 horas de
caminhada e inúmeros aprendizados, voltamos para a aldeia Nova
Olinda, onde estávamos alojados.
Terminei o dia exausto mas com uma sensação de
vitalidade, aprendizado e emoção gigantescas. Jamais aprenderia
isso em um livro ou sala de aula. Absolutamente incrível tamanha
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"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
sabedoria existente nessas matas. Esses povos, essas pessoas,
adquiriram um conhecimento extremamente complexo e
elaborado, muito além de qualquer ciência tradicional e cartesiana.
A ciência é feita no dia a dia, passada de pai para filho, com
o objetivo claro de auxiliar o dia a dia das famílias e possibilitar
uma convivência harmoniosa e abundante com a floresta.
Deitei em minha rede no início da noite, reflexivo e muito
grato pela vivência daquele dia. Como de praxe, acendi uma vela e
fui escrever meu diário de campo, relatando tudo que vi e aprendi
naquele dia.
Para finalizar, e embalar meu sono, veio a friagem, ou
chuva fraca, como previase ao longo dia. Incrível... as previsões
estavam certas!
Boa noite seres da mata.
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"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
“A mandioca é o pão de Deus na Terra”
Yan Victor Leal da Silva
O sol nascia e ouvia um barulho na janela. Por dentro
estava eu. Por fora, pessoa de mãos calosas, pele grossa, a voz de
quem sabe e sofre. Sua mão calejada abria a janela de lata e ecoava
o barulho que tratava de me acordar. No despertar da manhã o
moço que passara madrugada transcrevendo relatos e entrevistas,
com dificuldades de acordar, levantava da cama e logo se
aprontava. Depois de acordar, um banho para despertar e de longe
tio Tunico falava: “Não precisa de banho não! Nós vamos mexer
na terra”. Em pouco tempo eu que buscava uma etnografia já
estava pronto para cumprir o combinado feito em dia anterior.
Em minhas experiências na comunidade havia percebido
que o combinado não sai caro. Em vínculos e interações com as
pessoas percebi que não era recomendado firmar um acordo e não
cumprir. Mas o que de fato levou um pesquisador que estava
morando na comunidade a participar da capina da mandioca e
manejo da terra? Há algum tempo aprendi que estudar um povo
implica em participar de seu cotidiano de vida. É preciso estar lá,
no dizer de Geertz: “penetrar e ser penetrado por uma cultura”. E
sem saber muito sobre o outro, passando um quilo de sal junto,
numa relação de afetos, procurava uma descrição densa do
cotidiano das pessoas. Estava convencido que somente com uma
participação ativa e observante chegaria a descrever a densidade
da simplicidade.
Um café forte para iniciar os trabalhos. E como já era de
praxe acompanhado de fumo marinheiro enrolado no papel de
pão, daqueles fumos de deixar marcas na mão. Tio Tunico avistava
o céu e alertava por onde começar, dizia ele que quando o sol
apertasse era preciso estar na sombra. Durante a capina da
mandioca fomos conversando e ele dizendo que era para chegar o
“mato” ao redor da mandioca para “fortalecer o pé e a terra”.
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"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
Localizado em lote vago a plantação de tio Tunico (r)existia firme
aos níveis de urbanização daquela periferia. O plantio em lote
vago e em quintais é algo muito presente na comunidade de tio
Tunico, algo que se destaca entre aqueles moradores que
migraram de áreas rurais.
Essa experiência de capina durou meio dia de trabalho. Quando
estávamos para arrematar a empreitada, tio Tunico e eu decidimos
fazer uma pausa para novamente tomar um café e logo depois
fumar um cigarro. De forma surpreendente, a chave da casa havia
desaparecido no meio do mandiocal, quase todo roçado com seu
capim manejado. Andamos por várias vezes tentando encontrar a
chave e nada. Até que o Tio Tunico disse que faria uma oração e
encontraria. Deixando tio Tunico que já começava a reza,
desconhecida nos recintos acadêmicos, continuei procurando a
chave. De longe escutava a oração:
Salve, rainha, virgem mãe de misericórdia e vida, doçura e
esperança nossa, salve! A vós bradamo, os degredados filhos de Eva a vós
suspiramos, gemendo e chorando neste val de lágrimas. Em apoio
advogada nossa, esses vossos olhos misericordiosos a nós volvei; e depois
deste desterro amostrai Jesus.
Para minha surpresa, no meio da oração ele encontrou a
chave da casa em lugares que já tínhamos procurado. O que
aconteceu? Na explicação de tio Tunico é que a chave teria
aparecido para ele. E ao encontrála sem pestanejar disse: “agora
tenho que terminar a oração, senão da próxima vez ela não vale
nada”. E terminou sinalizando a eficácia simbólica da Salve
Rainha:
Bendito fruto do vosso ventre, ó clemente, ó piedosa, ó doce sempre
Virgem Maria. Rogai por nós, santa Mãe de Deus. Para que sejamos
dignos das promessas de Cristo para sempre, Amém!
Essa experiência que relato me fez lembrar de uma
discussão durante o XI Simpósio de Etnobiologia e Etnoecologia
sediado em Feira de Santana na Bahia (2016). Em uma
determinada mesa discutíamos o papel das cosmologias nas
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"Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia v. IV
práticas e conhecimentos das pessoas. Refletindo sobre a proposta
teórica e metodológica de Victor Manuel Toledo e Narciso Barrera
Bassols. Naquela ocasião, chegávamos a conclusão que não
podemos desconsiderar o fato de que o sistema de crenças está
integrado nas práticas dos sujeitos de pesquisa. Essa vivência me
levou a incorporar, em algumas entrevistas, perguntas sobre as
rezas e suas origens, já que me fez pensar na relação entre o cultivo
das plantas em quintais (e lotes vagos) e os momentos em que se
acionam saberes de cuidados e cosmologias que estão integradas
às práticas da vida social.
Nesses tempos de colapso é bom lembrar que é por meio da
indissociabilidade entre os sistemas de crenças, os saberes e as
práticas que, ao longo da história ambiental, os povos indígenas
construíram (e constroem) sua resistência à expansão do moderno
e hegemônico modelo capitalista de desenvolvimento urbano e
industrial. Partindo das partilhas e trabalho de campo com viés
microssocial no roçado e no lote vago com tio Tunico e por esta
compreensão de que os sistemas de crenças, práticas e
conhecimentos são parte constitutivas do modo de vida das
pessoas que compreendo a multivocalidade dos espaços de vida.
Em momentos como a capina do milho, rezas e benzeções
dos quintais, roçados e lotes vagos, onde se semeia a vida e a
diversidade, nos provocando a ir além da sistematização e
categorização das plantas. Tratase de espaços de vida manejados
não só por sistemas de pensamentos, mas também por práticas que
dizem da construção simbólica dos domínios da vida e da
memória coletiva das pessoas.
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