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Xavier, el pescador

2022, "Quando pensa que não...". Contos, crônicas e causos em Etnobiologia Vol. IV

No meio do livro, tinha uma pandemia... no meio da pandemia, tinha um livro... E assim foi! E assim tá sendo... Mas, Salve! Salve! Depois de um período tão difícil pra todxs nós, eis que estamos de volta com o Vol. IV do nosso livro Quando Pensa que Não...! A pandemia continua, mas também nossa vontade de tocar pra frente esse projeto, tentando, com afinco, transformar isso em tradição.

que recomenda um texto impessoal e hermético em termos de seguir os referenciais de um determinado campo específico e disciplinarmente delimitado. Esperamos que gostem! Boa leitura! “QUANDO PENSA QUE NÃO...” vol. IV É um convite para que todas, todos e todes leiam estes relatos, mas também inspirem­se para redigirem seus próprios relatos. No meio do livro, tinha uma pandemia... no meio da pandemia, tinha um livro... E assim foi! E assim tá sendo... Mas, Salve! Salve! Depois de um período tão difícil pra todxs nós, eis que estamos de volta com o Vol. IV do nosso livro Quando Pensa que Não...! A pandemia continua, mas também nossa vontade de tocar pra frente esse projeto, tentando, com afinco, transformar isso em tradição. Como não poderia deixar de ser, continuamos no presente volume com a proposta original que é a de “registrar, textualizar e compartilhar diversas experiências vivenciadas nas pesquisas de campo, nos arranjos de problematização ou sistematização feitos na academia”. Trata­se, portanto, mais uma oportunidade de dizer o que é indizível em publicações acadêmicas mais convencionais. Mais espaço para as subjetividades, tão inerentes em trabalhos de etnoecologia/etnobiologia, e, ao mesmo tempo, também tão pouco expressadas. Se o paradigma cientificista vigente separou a ciência e arte ao longo da história, taí uma excelente tarefa para nos imbuirmos, que é de buscar e expor o sensível na/da alma das(os) pesquisadoras e pesquisadores. Sim, pois o que a natureza humana uniu, a epistemologia não há de apartar. Esta proposta de textualização de vivências e experiências relacionadas à Etnobiologia e Etnoecologia na forma de contos, crônicas e causos, surge de uma iniciativa despretenciosa, cujo lançamento se deu em 2012, no Simpósio Brasileiro de Etnoebiologia e Etnoecologia, em Florianópolis. “QUANDO PENSA QUE NÃO...” Contos, crônicas e causos em Etnoecologia Vol. IV Organizadores Francisco José Bezerra Souto Gustavo Taboada Soldati Lin Chau Ming Reinaldo Duque­Brasil Rumi Regina Kubo Desde lá o grupo de organizadores, Franzé, Lin, Reinaldo, Tigu e mais tarde Rumi, persistem com a proposta de abrir o espaço a todas as pessoas envolvidas com trabalhos no campo da Etnobiologia e Etnoecogia, para relatarem facetas do fazer etnobiológico, não difundidos convencionalmente. Esta iniciativa, além de propiciar uma fonte de leitura prazerosa, também se constitui em uma forma de questionar os cânones da produção científica hegemonicamente aceita, Organizadores Francisco José Bezerra Souto Gustavo Taboada Soldati Lin Chau Ming Reinaldo Duque­Brasil Rumi Regina Kubo "QUANDO PENSA QUE NÃO..." Contos, crônicas e causos em Etnobiologia Vol. IV Sociedade Brasileira de Etnobiologia e Etnoecologia Porto Alegre, 2022 Publicado pela Sociedade Brasileira de Etnobiologia e Etnoecologia (SBEE) Todos os direitos reservados. Associe­se em https://www.etnobiologia.org/ © Francisco José Bezerra Souto, Gustavo Taboada Soldati, Lin Chau Ming,einaldo Duque­Brasil, Rumi Regina Kubo 1ª edição: 2022 Editora­chefe: Tatiana Mota Miranda Sociedade Brasileira de Etnobiologia e Etnoecologia Diretoria 20212022 Presidência: Flávio Bezerra Barros (UFPA) Vicepresidência: Gabriela Coelho de Souza (UFRGS) 1º secretário: Bernardo Tomchinsky (UNIFESSPA) 2º secretário: Kátia Mara Batista (ACPM) 1º tesoureiro: Nilo Leal Sander (UNEMAT) Conselheiros: Ana Paula Glingskoi Thé (UNIMONTES) Francisco José Bezerra Souto (UEFS) Érika Fernandes Pinto (ICMBio) Representantes Regionais: (SE): Maíra Borgonha (UFF) (SU): Natália Hanazaki (UFSC) (CO): Ieda Maria Bortolotto (UFMS) (NE): Edna Marina Ferreira Chaves (IFPI) (NO): Maria das Graças Pires Sablayrolles (UFPA), Moacir Haverroth (Embrapa Acre) Conselho Editorial Eraldo Medeiros Costa Neto (UEFS) – Diretor Bernardo Tomchinsky (UNIFESSPA) Carolina Joana da Silva (UNEMAT) Cláudia Nunes Santos (UFPA) Edna Maria Ferreira Chaves (IFPI) Emmanuel Duarte Almada (UEMG) Érika Fernandes Pinto (ICMBio) Flávio Bezerra Barros (UFPA) Gustavo Taboada Soldati (UFJF) Kátia Mara Batista (UNESC) Lin Chau Ming (UNESP Botucatu) Natalia Hanazaki (UFSC) Reinado Duque Brasil (UFJF) Conselho Científico Amélia Frazão Moreira (Portugal) Ana Haydeé Ladio (Argentina) Ângelo Giuseppe Chaves Alves (Brasil) Armando Medinaceli (Bolívia) Dídac Santos Fita (Espanha) Eduardo Corona Martínez (México) Francisco José Bezerra Souto (Brasil) Geilsa Santos Costa Baptista (Brasil) Lorena Dall’Ara Guimarães (Brasil) Maria Cristina Teixeira Braga Messias (Brasil) Maria das Graças Pires Sablayrolles (Brasil) Mauricio Vargas Clavijo (Colômbia) Pascale de Robert (França) Reinaldo Paiva Lucena (Brasil) Roseli Barros (Brasil) Rumi Regina Kubo (Brasil) Tania Gonzalez Rivadeneira (Equador) William Balée (Estados Unidos) Permitida a cópia total ou parcial deste documento, desde que citada a fonte. As informações apresentadas nesta obra são de exclusiva responsabilidade de seus autores/as. Ficha catalográfica Capa e fotografia: Franzé Revisão: Francisco José Bezerra Souto, Gustavo Taboada Soldati Lin Chau Ming, Reinaldo Duque­Brasil, Rumi Regina Kubo Revisão Língua Espanhola: Claudia Patricia Zuluaga Salazar, José Brenes­Andrade, José Manuel Valencia Espina, Katherine Vanessa Flórez e Shirley Rodríguez González Editoração eletrônica: Rumi Regina Kubo Software livre utilizado: Scribus Formato 16 X 23 cm, fonte Book Antiqua Papel polen 80 g Tiragem 100 exemplares APRESENTAÇÃO............................................................................9 PREFÁCIO........................................................................................11 AUTORES.........................................................................................13 Ataíde: o bicho do manguezal Alexandre de Brito Alves 32 La luz plateada del Himalaya Alonso Pérez Ojeda del Arco & Carolina Perret 36 Historias, rostros, y mates en el Chaco Santiagueño Alonso Pérez Ojeda del Arco 40 Entre balaios e quilombos Alyne Freire de Melo 45 Dois relatos de caça na Amazônia Ocidental André Luís Cote Roman 47 O corpo na Amazônia: o chamado de Dorothy Stang Andrey Henrique Figueiredo dos Santos 53 Às vezes nem é a pergunta que é errada… Anna Flavia Menezes da Silveira Lima 59 O voo da Fênix: das moléculas aos conhecimentos tradicionais Claudia Nunes Santos 62 Des­matar Dérick Lima Gomes 66 Xavier, el pescador Diego Pérez Ojeda del Arco 71 Caminhos para etnofarmacologia entre os Igbo na Nigéria Elaine Elisabetsky 75 O cúmulo do absurdo Érika Fernandes­Pinto 80 Banho Fausto Cafezeiro 86 Da selva de pedra à selva Amazônica e seus seres encantados Fernanda Carneiro Romagnoli 90 Cheguei numa bacia azul...e fui amada! Flávio Bezerra Barros 94 Por que SBEE e não SBE? Não sei! Só sei que foi assim... Francisco José Bezerra Souto 99 Quem tem medo da Ecologia Humana? Francisco José Bezerra Souto 103 “Pagar mico”. Isto é ruim ou bom para a pesquisa etnobiológiva em Educação? Geilsa Baptista 107 Salvos pelo método... Gilney Charll Santos 113 Vertigem de rebojo Gustavo Goulart Moreira Moura 116 Travessias identitárias Gustavo Taboada Soldati 118 Sete prosas para voar Gustavo Taboada Soldati 121 Esperá pra ir quando dé... igarapé! Jessé Renan Scapini Sobczak 124 Cultivando memorias: ¿Cuántas historias caben en un choclo? José Manuel Valencia Espina 126 A pernoita quilombola em Porto Trombetas Juliana Cardoso Fidelis 130 Ode aos povos das águas Larice Almeida Marinho 136 ­ Falem com o Marcão! Lin Chau Ming 138 Reta (quase) final Lin Chau Ming 144 Mais um ano sem carro Lin Chau Ming 148 Vinte! Lin Chau Ming 154 Amazônia, entre povos e floresta: o começo dessa história foi no rio Jordão Málika Simis Pilnik e Tarik Argentim 159 Da poesia a resistência Marcela Eringe Mafort 165 O “Meteoro Bípede” e o Karajá no shopping center Marcelo Nivert Schlindwein 167 Isso não vai para o relatório Márcia Regina Antunes Maciel 174 Viagem à Etiópia: O banheiro da UNESCO Márcia Regina Antunes Maciel 180 Encosto Maria Christina de Mello Amorozo 186 Chi´ibal uj María Teresa Pulido Silva 188 Rádio de pilha Mario Rique Fernandes 193 Aprendendo com as castanheiras Mario Rique Fernandes 196 Una curación en el Sahel Matías Pérez­Ojeda del Arco 201 Baresolone, Senegal: Rebeldía para alterar las Ítacas en Senegal poscolonial Matías Pérez­Ojeda del Arco & Florie Chazarin 205 “Uma vez ela quase me come” Mayra Patrícia Corrêa Tavares 209 “Contratempos” de um mapeamento: em busca das capoeiras de Seu Pedro Brás Myrian Sá Leitão Barboza (Myroca) 212 Episódios de um doutorado distante parte I ­­ o emicista, o eticista, e as formigas da dona Maria Marta Natalia Hanazaki 218 Episódios de um doutorado distante parte II ­­ seu Máximo é mesmo o máximo Natalia Hanazaki 222 Minha primeira vez na Amazônia encantada Norah Costa Gamarra227 As plantas da minha infância: um exercício de auto etnografia Paula Chamy 230 Chá pra curá o “figo” Rafael Sá Leitão Barboza 237 Jonminhot Marét Ererré Reinaldo Duque­Brasil & Shirley Djukurnã Krenak 243 Panos coloridos lançados ao sabor das ondas e sopros do mar! Roberta Sá Leitão Barboza 248 A aula de Celina Rumi Regina Kubo 251 Escrever para rememorar Rumi Regina Kubo 254 Casa Grande e Dona Umbuzeira Shana Sampaio Sieber257 Ciência da Mata Tomaz Ribeiro Lanza 262 “A mandioca é o pão de Deus na Terra” Yan Victor Leal da Silva 267 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV APRESENTAÇÃO No meio do livro, tinha uma pandemia... no meio da pandemia, tinha um livro... E assim foi! E assim tá sendo... Mas, Salve! Salve! Depois de um período tão difícil pra todxs nós, eis que estamos de volta com o Vol. IV do nosso livro Quando pensa que não...! A pandemia continua, mas também nossa vontade de tocar pra frente esse projeto. Lá se vão 10 anos do Vol. I, quando publicamos e lançamos no Simpósio Brasileiro de Etnobiologia e Etnoecologia em Florianópolis em 2012. Com muito esforço, mantivemos a “tradição” com os volumes II e III nos Simpósios em Feira de Santana (2016) e Belém (2018). E é com uma alegria e satisfação danada que lançamos o vol. IV no agora Congresso Brasileiro de Etnobiologia e Etnoecologia de Cáceres­MT. A proposta do livro continua a ser a de “registrar, textualizar e compartilhar diversas experiências vivenciadas nas pesquisas de campo, nos arranjos de problematização ou sistematização feitos na academia”. O indizível de nossas vivências, sentimentos, experiências tem mais uma oportunidade de serem transformadas em publicação, algo que não ocorre em periódicos acadêmicos mais convencionais. Um espaço importante para as subjetividades, tão comuns e inerentes em trabalhos de etnoecologia/etnobiologia, e, ao mesmo tempo, também tão poucos expressadas. A prosa e a poética, normalmente invisibilizadas na academia, compõem o estilo literário dos textos. Uma “subversão” super benvinda e já prevista por Boaventura de Sousa Santos, quando afirmou em seu já clássico Discurso Sobre as Ciências que “a criação científica no paradigma emergente assume­se como próxima da criação literária ou artística”. Sim, a Etnobiologia e 9 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV Etnoecologia aqui cumprem seu histórico papel na quebra do paradigma cartesiano, onde razão e emoção não se misturam. Talvez tenhamos aqui algumas pistas para um fazer científico descolonizado. Pratiquemos! É nisso que apostamos ao investirmos nesse tipo de publicação. Fazer, se não uma ciência melhor (nem somos tão pretensiosos), mas uma ciência diferente e talvez mais próxima aos contextos de nossos trabalhos, que transita entre povos e comunidades tradicionais, entre seres humanos e não­humanos. Se o paradigma vigente separou a ciência e arte ao longo da história, taí uma excelente tarefa para nos imbuirmos, que é de partilhar o sensível na/da alma dos pesquisadores. Sim, pois o que a natureza humana uniu, a epistemologia não há de apartar. Transdisciplinaridade é bom e nós gostamos! Tá tudo junto dentro da gente... Esperamos, portanto, que esse livro não seja apenas lido por vocês, mas refletido, incorporado... saboreado! Quem sabe a leitura lhes acrescente algo no seu fazer, no seu pensar e no seu sentir etnobiológico/etnoecológico. Quando pensa que não..., quem sabe, estaremos lendo um texto de vocês no vol. V... Sigamos! Organizadorxs 10 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV PREFÁCIO “Quando pensa que não...” já é um clássico! Não está aqui apenas para complementar nem para ficar à margem ou ser alternativo. Este livro e os volumes homônimos que o antecederam representam uma experiência em si mesma. E que experiência! Tomei conhecimento desta empreitada desde que “Quando...” (acho que já posso chamá­lo assim) era uma criancinha. Lembro, com muito gosto, de ver e ouvir pessoas queridas como Gustavo Soldati e tantas outras contando suas histórias na Universidade Católica de Pernambuco, em Recife, durante o Congresso Latino­ Americano de Etnobiologia, há mais de 10 anos. Naquela ocasião, fazia pouco tempo que “Quando...” tinha nascido. Mas, como eu ia dizendo, este e os anteriores volumes de “Quando...” constituem uma experiência em si mesma. Uma experiência de trazer à tona as experiências vividas no fazer (etno)científico nosso de cada dia, ou seja, de tornar cada vez mais visíveis e dizíveis determinadas coisas que antes eram apenas anedóticas. Uma meta­experiência, portanto. Trata­se de um trabalho de permite estabelecer pontes ou conexões, de modo a superar aquela dicotomia destacada e criticada por Paulo Freire em sua obra Pedagogia do Oprimido: a dicotomia entre o “saber de experiência feito” e o “saber de experiência narrada ou transmitida”. Considero bastante oportuno e digno de nota o fato de que este livro é chancelado pela Sociedade Brasileira de Etnobiologia e Etnoecologia, entidade representativa de (etno)cientistas da qual faço parte, com muito gosto, na condição de sócio fundador. Neste esforço, as experiências de jovens iniciantes juntam­se àquelas de outras pessoas que já acumularam várias décadas de 11 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV trabalho no campo das etnociências. Algumas dessas histórias são narradas por membros de povos tradicionais em coautoria com cientistas mais, digamos, acadêmicos. Esses aspectos reforçam, salvo engano meu, aquela dimensão de meta­experiência a que me referi anteriormente. Uma conexão de experiências! Com este livro, que privilegia memórias, podemos, quem sabe, “arrancar alegria ao futuro”, como queria Maiakóvski, o Poeta da Revolução. É dessa alegria arrancada ao futuro que precisamos neste exato momento, para superar a ameaça do neofascismo que nos assombra e ceifa vidas. E agora, preciso terminar este prefácio, pois que se não já seria ele um “causo” ... E vou terminá­lo justamente com o trecho final da “Ordem no dois ao exército das artes”, escrita por Maiakóvski e traduzida por Haroldo de Campos: “Perdidos em disputas monótonas, buscamos o sentido secreto, quando um clamor sacode os objetos: ‘Dai­nos novas formas!’ Não há mais tolos boquiabertos, esperando a palavra do ‘mestre’. Dai­nos, camaradas, uma arte nova – nova – que arranque a República da escória.” Quando pensa que não... estamos fazendo novas artes! Viva “Quando ...” ! Angelo Giuseppe Chaves Alves Departamento de Biologia Universidade Federal Rural de Pernambuco 12 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV AUTORES Alexandre de Brito Alves Olá, meu nome é Alexandre de Brito Alves, mas para os familiares mais próximos (pai, mãe e irmãs) Aleixo é o como me denominam. Gosto muito de futebol, apesar de não mais jogar. Deixei o esporte na adolescência e fiquei um pouco gordinho...coisas da vida moderna. Quanto a minha formação, em 2009 comecei a estudar Letras com Habilitação em Língua Inglesa na Universidade Federal do Pará, porém um ano depois estava no curso de História, que foi ofertado pela mesma instituição na cidade de Bragança, onde eu residia à época. À frente veio o Mestrado em Sociologia na UFPA e atualmente adentrei ao Doutorado também em Sociologia, na mesma instituição. Atualmente ministro aula de História na rede pública, tentando mostrar aos jovens a importância de se estudar o passado e o presente. alexandrehistoria2010@yahoo.com.br Alonso Pérez Ojeda del Arco Lima, Perú. Ingeniero forestal con más de 10 años de experiencia de trabajo e investigación con pueblos indígenas de la Amazonía peruana en el manejo de recursos naturales, saberes tradicionales y medios de subsistencia, gestión territorial integral y gobernanza comunitaria. Es miembro activo de la Sociedad Internacional de Etnobiología. Ha viajado por los cinco continentes. Vive en los bosques de neblina de Perú junto a su pareja, y su pequeño hijo Tane, cuyo nombre refiere al Dios del bosque y de las aves. alonso.perez.ojedadelarco@gmail.com Alyne Freire De Melo Possui Licenciatura Plena em Ciências Biológicas pela Universidade Estadual do Piauí, Mestrado em Agronomia pela Universidade Federal 13 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV do Piauí, atualmente faz doutorado em Desenvolvimento e Meio Ambiente na mesma IES. Trabalha (ou dá trabalho) com Etnobiologia em comunidades quilombolas no interior do Maranhão. alynefmelo@yahoo.com.br André Luís Cote Roman Estudei Agronomia em Viçosa, Minas Gerais – setembro passado, quase trinta anos depois de minha formatura, resolvi dar uma volta por lá, acho que para matar a saudade e agradecer/reverenciar o lugar onde, na juventude, vivenciei situações que acabaram por me dar um pouco de casca grossa para as peripécias futuras. Depois me mudei para Belém em busca de novidades geográficas, culturais, outros acepipes do banquete da vida, e de algum campo de estudo mais condizente comigo: encontrei a Etnobotânica. Por meio dela morei em outras cidades amazônicas, conheci tantas pessoas, professores, colegas de turma, ribeirinhos, seringueiros, pescadores litorâneos, vigilantes de campus universitários – companheiros de café nas madrugadas de estudos... Reverencio tudo isso, e reverencio, de coração, este espaço de compatilhamento de tantas outras vivências. coteroman@yahoo.com.br Andrey Henrique Figueiredo dos Santos Papa Xibé, e tomo açaí com açúcar (sem banana, pfv). E jacaré não anda na rua em Belém! Bom, dizem quem eu sou Geógrafo. Como teimoso que sou, fui continuar os estudos em um programa de pós­graduação em desenvolvimento rural. Agora me encontro nessa... lendo o povo da fenomenologia existencial (né fácil não viu! Ô povo para escrever difícil. Égua!). Mas tenho um sonho de ser agrônomo, artista visual e psicólogo. É muito querer para uma vida. Mas com calma, a gente chega lá! Nas horas vagas, sou amante de literatura marginal e de futebol (torço para o maior do Norte, Paysandu!). Qualquer coisa, podem mandar E­mail esculachando a crônica escrita por mim. Agradeço às professoras da transamazônica, que me salvaram de uma vida sem ladeiras! andreyyhenrique@hotmail.com 14 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV Anna Flavia Menezes da Silveira Lima Anna Flavia, vinte e um anos de muita ansiedade e 'agoniação'. Filha de Iansã (sim, com todas as características), devota de Iemanjá e protegida por Exú (muito forte, inclusive). Completamente apaixonada por Antropologia, Etnoecologia e Pedagogia (sinceramente?! não me vejo fazendo algo que não envolva essas áreas). Gosto de conversar com qualquer pessoa, gosto de ouvir as pessoas falarem sobre o que elas gostam e também gosto muito de falar. Atualmente me sinto confortável com o que eu trabalho (já disse acima né) e embora o mundo diga que não vale a pena continuar, que não é importante… eu acho que é, eu acho que vale. annaflaviamenezesl@gmail.com Carolina Perret Chaco, Argentina. Ingeniera química y artista. Vive y trabaja en la Amazonia peruana. Es responsable de monitoreo hídrico para la ONG Instituto del Bien Común (IBC), donde actualmente trabaja para identificar el impacto de las intervenciones del programa sobre los servicios ecosistémicos. Amante de la naturaleza y la vida sencilla, vive aprovechando los pequeños momentos junto a sua familia. carolinaperret@gmail.com Claudia Nunes Santos Filha de corajosos sergipanos que migraram para a “terra da garoa”, nasci em uma madrugada fria de janeiro. Após décadas de vida estudantil em instituições públicas, sou hoje o fruto de sonhos sonhados e vividos. Também dos sonhos esquecidos, das realizações inesperadas, dos encontros desejados e dos desencontros sofridos. Itinerante por atavismo, vivi em diferentes lugares pelos quais sinto pertencimento, pois minha territorialidade é simbólica. Recentemente, retornei para Sergipe, onde estou Professora na Universidade Federal. Academicamente, interessada nas relações entre humanos e outros animais. Artisticamente, querendo me encontrar entre a tecelagem e a dança. Espiritualmente, buscando me libertar da perambulação. claudianunes.bio@gmail.com 15 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV Dérick Lima Gomes Alguém que ama jogar, assistir e discutir sobre futebol. Apreciador de literatura, música e outras formas de arte. Geógrafo, cuja graduação rendeu quatro dos melhores anos vividos de 27, além de amigos queridíssimos e outras tantas alegrias. Mestre em Agriculturas Familiares e Desenvolvimento Sustentável pela Universidade Federal daqui, o Pará. Um rapaz feliz por estar realizando um de seus vários sonhos: atuar como docente na Universidade do Estado do Pará, onde fez a graduação e com quem vive, desde então, uma relação de amor e aprendizado. dericklima16@hotmail.com Dianny Cuadrado Pachón Nasci em 25 de maio de 1992, em Bogotá, Colômbia. Fiz graduação na Faculdade de Ciências e Educação da Universidad Distrital Francisco José de Caldas (UDFJC), no programa de Biologia (Licenciatura). Atualmente sou estudante do programa de Pós­graduação em Biologia Vegetal da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) na linha de pesquisa: ecologia, conservação e uso dos recursos vegetais. Tenho experiência na área de Biologia Geral, com ênfase em Botânica e Etnobotânica. diannyqa@hotmail.com Diego Pérez Ojeda del Arco Mestrando em Antropologia Social pelo Programa de Pós­Graduação em Antropologia da Universidade Federal do Pará (PPGA/UFPA), estudante peruano bacharel em Antropologia pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Interessado nos estudos relacionados à Antropologia da Amazônia, em especial no que diz respeito às teorias de etnicidade, populações tradicionais e grandes projetos desenvolvimentistas. Atualmente faz parte do Grupo de Estudos Amazônicos (GEAM/UFF). diegoperezojedadelarco@gmail.com Elaine Elisabetsky Filha científica orgulhosa do Prof. Ivan Izquierdo, meu orientador de IC e Doutorado (1981) na Escola Paulista de Medicina. Foi ele que me ensinou 16 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV a fazer ciência, complementando o excelente curso de biomedicina voltado exatamente para formar professorxs e pesquisadorxs nas áreas de medicina. Doutora desempregada tive que optar por estudar na França (bolsa Pos Doc do governo Francês) ou ir para Belém do Pará (CNPq, Programa de Fixação de Pessoal Científico na Amazônia). As repostas (positivas) das duas bolsas sairam no mesmo dia... Para desespero de muitos fui para a UFPA e iniciei minha carreira na Etnofarmaco. Sempre associada à área de psicofarmaco e neurociências, coordenei o laboratório de Etnofarmacologia na UFPa de 1981 a 1991 e na UFRGS de 1991­2017. Tive o prazer de conviver com, ensinar e formar muitos alunxs, dos de pós gratificação a maioria hoje Professorxs Universitárixs. Hoje docente convidada, continuo trabalhando com prazer em pesquisa e pós graduação .... ainda que mais do que gostaria. elaine.elisabetsky@gmail.com Érika Fernandes­Pinto Bióloga de formação e etnobióloga de coração. Doutora em Psicossociologia e Ecologia Social, trabalha há mais de 20 anos na área socioambiental, buscando a convergência das políticas de conservação com os direitos de povos tradicionais e o resgate dos valores culturais da natureza. Idealizadora do projeto Sítios Naturais Sagrados do Brasil, busca promover o reconhecimento, a proteção e a valorização desses lugares e das tradições a eles relacionadas. Peregrina por lugares encantados vivenciando encontros com a sua magia e a sabedoria de seus guardiões. Compartilha suas histórias no blog https://snsbrasil.blogspot.com/ erika.icmbio@gmail.com Fausto Cafezeiro Geógrafo de formação, revisor de textos em muitos momentos, professor como ofício, escritor para não morrer de tédio. Invento histórias, desde criança, por exercício arbitrário e indisciplinado. O prazer de inventar pessoas, coisas, momentos. A magia de brincar com os fatos, de encantar as coisas bobas, corriqueiras, sem importância. As normas da língua, dos formatos de redação científica, dos manuais de revistas e periódicos, todos eles fingem: a paixão, o belo, o verdadeiro, residem principalmente 17 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV nas metáforas, nas interpretações fugidias da experiência. Sempre há mais a contar do que os relatórios, relatos e notícias podem registrar. O inesperado, o espontâneo, aquilo que deixa sem palavras, é isso o que tento escrever. faustogc@hotmail.com Fernanda Carneiro Romagnoli Nasci em São Paulo, capital, em 1985. Me formei em bacharelado e licenciatura em Biologia. Na graduação, me interessei pela conservação ambiental e comecei a perceber que sem abordar as questões humanas, a natureza não poderia ser conservada. Cursei mestrado em Biologia de Água Doce e Pesca Interior no Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA) e desde então passei a me dedicar totalmente às diversas formas de relação homem­natureza, com especial foco na etnobiologia e na educação ambiental. Cursei doutorado em Desenvolvimento Socioambiental no Núcleo de Altos Estudos Amazônicos (NAEA) da Universidade Federal do Pará (UFPA) e, atualmente, sou professora da Universidade Federal Rural da Amazônia (UFRA), no campus Capitão Poço, localizado na região nordeste paraense. fcarneiroromagmoli@gmail.com Flávio Bezerra Barros Nasci em Recife, cidade linda e de uma diversidade cultural apaixonante. Sou filho de Seu José e Dona Lúcia, figuras muito importantes na minha vida. Ele era um paraibano dos bons; ela, pernambucana danada. Adoro natureza, aventuras, conhecer lugares, pessoas e me encantar com cada experiência vivida. Moro em Belém do Pará, cidade pulsante, cheia de surpresas e sabores inesquecíveis. Sou professor na Universidade Federal do Pará. Tenho uma família linda e muito amada. Gracias a Pachamama por este presente do universo. Cecinha é minha companheira de todas as horas, meu amor, minha amiga e mãe do meu filho Thomaz, que é a maior alegria do pai...ele é um gato e um artista plástico de mão­cheia!!! Faz parte dessa trama uma tal de Luluca, uma vira­latinha linda e muito, mas muito, amorosa...Viva Xangô!!! flaviobb@ufpa.br 18 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV Florie Chazarin Interessada na justiça social e ambiental, procurando compreender mais abertamente sobre as diferenças e semelhanças, passadas e futuras, das populações. Geógrafa social que atualmente mora em Angola. floriechaz@gmail.com Francisco José Bezerra Souto (Franzé) Muita coisa mudou desde o último vol. III... Continuo também conhecido como Francisco José Bezerra Souto, tenho agora 54 anos (com corpinho de nem mais sei quanto), potiguar exilado na Bahia (espontaneamente, mas também saudoso), pai de Cauê, Gabriel e agora também de Beatriz (joinhas raras de 14, 05 e 02 anos, respectivamente), esposo de Lalá (grande amor, grande amor), professor/pesquisador/mestre/doutor (blá, blá, blá, blá..., “grande coisa”!), jardineiro (sem muito tempo e doido pra ser agricultor!), surfista (Huuuum... será ainda?), fotógrafo (meio afastado, mas de olhar atento), ex­corredor (ainda volto!), leitor (quase inveterado!), fã de música boa (inveterado!), aprendiz de Ukulelê (falta decorar as notas)... Bem, por vezes, desconfortável nesse mundo, mas doido pra aprender a “transvê­lo” (graças a Manoel de Barros). franze.uefs@gmail.com Geilsa Baptista Baiana, sonhadora, inquieta, divertida e criativa por natureza. Professora da UEFS, mãe, esposa, tia, filha, amiga. Ama, estuda e vive a vida. Ensinando a ensinar, conhece muitas pessoas, com as quais interage, emociona e se emociona, ajuda e é ajudada, protege, conhece, brinca, sorri, se aborrece, perdoa, descreve e escreve. Nas horas vagas, viaja, se recolhe, contempla, pinta, costura, borda, arruma, desarruma, inventa, tenta. Uma metamorfose ambulante, cheia de criatividade, lealdade, amizade e desejos de um mundo melhor. geilsabaptista@gmail.com Gilney Charll Santos É Doutor em Etnobiologia e Conservação da Natureza pela UFRPE e 19 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV Professor do IFPE – Campus Belo Jardim, onde atua na área de Biologia geral. Tem especial interesse em entender os fatores que modulam as relações entre pessoas e natureza, na interface processos ecológicos e evolutivos. Em adição, é Pernambucano, recifense que adora sorrir, viajar, conhecer novas paisagens, culturas, povos e conversar com as pessoas. Também adora estar perto da família e dos amigos, seja jogando conversa fora, refletindo sobre as coisas da vida ou contando piadas. Acha melhor ainda, quando esses momentos são acompanhados de uma boa música e de uma cerveja bem gelada. gilneycharll@hotmail.com Gustavo Goulart Moreira Moura "Não direi: Que a biografia me sufoca e amordaça Vida consumida se acumula, Se represa e vira cisterna de água morta. As linhas que a biografia armem ou não armem Não valem uma flâmula de lágrimas que passeiam rápidas" gustavomoura@ufpa.br Gustavo Taboada Soldati O codinome Tigu segue incessantemente me perseguindo pelas bandas que a vida me leva, “pra ver se um dia descanso feliz”. Mineiro clandestino e de coração segue vagabundo. Sobrevivi ao retorno de Saturno, mas não à vida acadêmica. Voltei pra zona, para a Zona das Matas ausentes, onde creio ser professor da Universidade Federal de Juiz de Fora. Viu seu time ser campeão. Pai de Luizinho e companheiro de Susana. gtsoldati@gmail.com Jessé Renan Scapini Sobczak Possui graduação em Ciências Biológicas pela Universidade Santa Úrsula (2006), e mestrado em Ecologia na Universidade Regional do Alto Uruguai e das Missões (URI – Campus Erechim, 2010). Ao término ministrou aula na rede pública, sendo professor substituto na Universidade Federal de Santa Maria ­ Campus Palmeira das Missões 20 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV (2012­2013). Iniciou o doutorado no programa de Sistema Costeiros e Oceânicos da Universidade Federal do Paraná (2014) e, antes de concluir, assumiu concurso no Instituto Federal do Tocantins (2015), permanecendo até 2019. Foi redistribuído e, atualmente, é professor do Instituto Federal do Rio Grande do Sul, Campus Vacaria. Têm experiência e trabalhos publicados na área de ensino de ciências, limnologia, etnobiologia e etnoecologia, com ênfase em pescadores artesanais. jesserenan@yahoo.com.br José Manuel Valencia Espina Engenheiro em Conservação de Recursos Naturais (Licenciado e Bacharel) pela Universidade Austral do Chile. Mestre em Desenvolvimento Rural pelo Programa de Pós­graduação em Desenvolvimento Rural da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PGDR/UFRGS). Atualmente trabalha na World Wildlife Fund (WWF­ Chile) no Programa de Pesquerías Sustentables, coordenando e desenvolvendo projetos socioambientais nos ecossistemas costeiros­ marinhos junto a povos e comunidades tradicionais no Chile. josevalenciaespina@gmail.com Juliana Cardoso Fidelis Desde que deixei em Santarém/Pará, onde nasci e cresci, estou a descobrir que essa cidade de belas praias e de ceú azul nunca me deixou completamente. O tom turquesa de seu principal rio, o Tapajós, está sempre presente em meus dias, conquistando ao longo desses 7 anos de viagem e estudo mundo a fora, a posição de minha cor e desejo favorito. Sou Juliana Cardoso Fidelis, filha do rio Tapajós, a filha que não tarda, mas que retorna continuamente. Tenho 25 anos e tenho por mãe dona Pituca e por vó a dona Zoca, conhecedoras das plantas e dos peixes amazônicos e de seus respectivos tempos de fartura. Além de santarena sou pesquisadora/mestra em antropologia e sociologia/e aluna de doutorado na Unicamp/SP. Gosto de pintar nas horas vagas, além de fotografar e viajar por todos os lugares, apesar de não permanecer no 21 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV mesmo lugar por muito tempo. Acredito que seja de rio ser corrente e estar passando, nesse sentido descrevo em fluxo, em processo, aprendi com isso a viver o momento e de alguma forma eternizá­lo. julianaacardosofideliss@gmail.com Larice Almeida Marinho Nascida às margens do Rio Tapajós, com berços interculturais, cresci entre as raízes indígenas e os céus forasteiros. A origem da minha família se mesclou aos ímpetos do meu amago e tornei­me parte do mundo. Viajei com asas mecânicas e pés descalços pela maior extensão de terra que consegui até o dia de hoje. Se há algo a dizer sobre quem sou é isto: sou de todo lugar, sou – em suma – um pequeno raio de luz caminhando pela terra. Meu propósito é clarear o caminho e seguir andando, descobrindo, experimentando. Meu nome vem da espécie Larix decidua do gênero Larix, de coníferas pertencentes à família pinaceae. Como filha da terra, escrevo sobre meu lugar e tempo. lariceamarinho@gmail.com Lin Chau Ming Cursei Engenharia Agronômica pela ESALQ – USP, em Piracicaba, SP, e antes de me formar me enveredei pelo interior do Brasil para conhecer comunidades tradicionais e seus modos de vida. Formado, fui trabalhar com famílias de agricultores familiares em Adrianópolis, PR, pela EMATER. Depois de quase 10 anos, entrei na carreira universitária, ministrando aulas de Botânica na Universidade Federal do Paraná e depois na UNESP – Botucatu, onde estou até hoje, ministrando aulas de Horticultura e Etnobotânica. Paixão juvenil pela Amazônia me fez procurar (e encontrar!) trabalhos com comunidades indígenas e tradicionais, para onde sempre vou, junto com alunos e outros professores. Adoro o que faço! Ah, fui presidente da SBEE durante duas gestões e me orgulho disso também. linming2809@gmail.com Málika Simis Pilnik Olá! Sou Málika Simis Pilnik, bióloga (UNESP/Botucatu) e mestra em botânica tropical (INPA). Vivo no estado do Acre desde 2017, vim para 22 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV pesquisar e trabalhar com temas relacionados à sociobiodiversidade da Amazônia brasileira. Desenvolvo atividades junto aos indígenas do povo Huni Kuĩ (Kaxinawá), principalmente nos seguintes temas: etnobotânica, agroecologia, segurança e soberania alimentar e nutricional, práticas alimentares tradicionais e conservação e manejo dos recursos naturais. Acredito que esta publicação seja imprescindível para a divulgação de vivências registradas em diários de campo – nossos fiéis amigos, mais ainda quando do isolamento geográfico e comunicativo. Sou grata pela oportunidade. mali.simis1202@gmail.com Marcela Eringe Mafort Professora de Educação Básica da Secretaria de Estado de Educação de Minas Gerais, Mestre em Ensino pela Universidade Federal Fluminense, licenciada em Ciências Biológicas pela Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro. Atuando em Linhas de Pesquisa nas áreas de Ensino, Educação Ambiental, Ecologia e Etnobiologia. mafortmarcela@gmail.com Marcelo Nivert Schlindwein É natural de Brusque, SC, com graduação na UFSC, morando por alguns anos entre os “Manezinhos” da Lagoa da Conceição e do Ribeirão da Ilha. Cursou o mestrado e doutorado com em zoologia, na Unesp de Rio Claro. Desde deste período começou a se interessar pela Etnobiologia, com principal interesse pela Etnozoologia. Através do curso de formação de professores (PARCELADAS UNEMAT), onde teve contato com várias etnias indígenas, como os Karajá e os Tapirapé. Participou de dois cursos de agronomia para assentados da reforma agrária (INCRA­PRONERA), participando de projetos que envolviam o manejo da biodiversidade por ribeirinhos e quilombolas. Durante quase duas décadas fez viagens de Campo ao Parque Estadual da Ilha do Cardoso (PESC), em Cananéia, onde pode conviver com a cultura caiçara. Na UFSCAR ministrou na graduação a disciplina de Etnoecologia. Em todos os lugares que foi professor não perdeu a chance de tocar violão para a lua, mesmo ela reclamando ou não... mnivert@ufscar.br 23 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV Márcia Regina Antunes Maciel Bióloga, formada pela Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS), Mestre em Ecologia da Biodiversidade pela Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT)/Cuiabá, MT. Doutora em Agronomia/Etnobotânica pela Universidade Estadual Paulista/Campus de Botucatu, SP, (UNESP). Com raízes caboclas fruto da mestiçagem brasileira que se perde no tempo, fui criada entre os santos católicos e os batuques dos terreiros da Umbanda. Depois de “ciganamente” rodar pela estrada da vida, casar, ter filhos, descasar, ser avó, não imaginava que ao buscar os diplomas, reencontraria as benzedeiras, o sagrado adormecido, o maracá da Jurema. De lá prá cá, tenho me movimentado, ora atuando em consultorias ambientais, principalmente com povos indígenas, ou ministrando aulas em academias. E a vida segue no planeta Gaia. marciamacielmt@hotmail.com Maria Christina de Mello Amorozo Por boa parte da vida, fui bióloga, com alguns conhecimentos antropológicos, professora universitária e pesquisadora na Universidade Estadual Paulista (UNESP), além de uma pessoa como tantas outras. A carreira acadêmica terminou, ficou a pessoa, querendo aprender novas possibilidades – escrever contos, moldar o barro em potes e tigelas, plantar mudas de árvores. mcm.amorozo@gmail.com María Teresa Pulido Silva Nací en “la nevera” (Bogotá). Mis padres, Lucila y Santiago, eran colombianos de pura cepa. Crecí en una familia maravillosa, con mis dos hermanos del alma. A Gonza lo recordaré y extrañaré hasta el día que lo vuelva a encontrar en una esfera aun desconocida para mí. Mientras tanto vives en mi corazón y en mi ser. Tengo y atesoro el cariño de Susana. Me hice etnobotánica después de múltiples visitas a conocer las plantas de las amigas de mi mamá y de las narraciones de mis tíos sobre la vida en la selva. Años después llegué a la Península de Yucatán a desarrollar mi estudio doctoral con el etnobotánico Javier Caballero. 24 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV Ahora me desempeño como profesor investigador en la Universidad Autónoma del Estado de Hidalgo. Hidalgo es uno de los estados más pequeños de México, que tiene la magia que una tercera parte de su población es indígena. Este crisol cultural es un lugar propicio para una etnobotánica. Te pongo mis correos mtpulido@yahoo.com y mtpulido@gmail.com pues me encantaría recibir tus palabras. Concluyo recordando que mi apellido Silva, tan popular también en el Brasil, viene del latín y significa selva, floresta. ¿será tanta exuberancia y verdor mi destino?. Mario Rique Fernandes Sou paulistano desterrado, filho de paraibanos, sangue nordestino, viajante e migrante, meu nome é rio que flui pro mar, e mar que volta a ser rio. Vivo atualmente na Amazônia, cidade da Pedra Pintada, Itacoatiara é seu nome, onde vegeta embaixo do chão uma Cobra enrolada. No norte me tornei pai de Bento e Maria (my life), e cumpri minha sina de virar doutor em antropologia. “Minha vida é andar por esse país pra ver se um dia descanso feliz”. Atualmente pesquisador, em devir professor, pra mais que professor, sonho em ser um dia educador. E poder ser tocado e tocar o coração das pessoas para a natureza que queremos preservar, conservar e aprimorar. Natureza que somos e com a qual precisamos aprender a dialogar – através da arte, da ciência, da filosofia e da espiritualidade. Isso é o que me movimenta e o que me faz continuar no desafio maior de conservar a vida em solidariedade e sincronia com o nosso planeta. riquemario@gmail.com Matías Pérez­Ojeda del Arco Interessado na transmissão de conhecimentos ecológicos tradicionais e a descolonialidade que emerge das praticas de luta da ruralidade na Amazônia e África, e na defesa dos territórios ancestrais contra os avanços das políticas neoliberais. Com uma (de)formação acadêmica em sociologia rural e ciências florestais nos Países Baixos e no Peru, atualmente mora em Angola. matias841@gmail.com 25 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV Mayra Patrícia Corrêa Tavares Praiana, filha de pescador. Sempre adorei ouvir as histórias contadas pelo meu pai e experientes, se era verídico ou não, o fato é que cresci respeitando os causos e contos da minha região amazônica. Já dizia um sábio professor na graduação, “uma mentira contada diversas vezes poderá virar uma grande de uma verdade”. Não hesitei em pensar que ele tinha razão. Mas quando me reporto a infância, as prosas que me contavam, prefiro acreditar que são histórias com “h”. Sou licenciada em Letras, Língua Portuguesa pela Universidade Federal do Pará, pós­ graduada em Ciências Ambientais e Desenvolvimento na Amazônia pelo Instituto Federal do Pará. Acredito que estes ajudaram­me a entender e a compreender o valor do modo de vida do lugar em que vivi os oito primeiros anos. Lugar composto de conhecimentos e valores advindo de uma herança sociocultural. mayrapatriciaport@gmail.com Myrian Sá Leitão Barboza Miroca foi o carinhoso apelido agraciado por meu painho e inicialmente restrito a família sexteto Trololó. Só que os ventos nordestinos esvoaçaram longe e espalharam a graça pelas caudalosas águas amazônicas... Agora, Miroca é inté pronunciada por alguns que fazem graça da "suposta" intimidade, mas NÃO se preocupe não! Se conquistar na simpatia, poderá versar Miroca com todo respeito e alegria. Natural de Ohlinda cidade!, criada na muvuca da aurora Recifense, agora navega nas correntezas amazônicas. De fato, uma Pernamparaense Parabucana! Amante de frevo e guitarrada, cavalo marinho, côco e carimbozada, angoleira sim sinhora! Cuidado, num se confunda não, é gêmea de feitiço e de profissão! miramiroca@gmail.com Natalia Hanazaki Nascida em São Paulo, capital, perto do Bixiga mano, ali perto da Nove de Julho, capisci? Descendente de japoneses (sansei, 3a geração no Brasil), ecóloga de formação de graduação, ecóloga de formação de mestrado, ecóloga de formação de doutorado e, apesar dessa aparente 26 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV convicção disciplinar, sempre buscando as fronteiras interdisciplinares da ecologia. Desde 2002 morando em Florianópolis, professora da UFSC, cientista e pesquisadora interessada nessa fascinante interface entre as pessoas e a biodiversidade. Mãe do Pedro e do André. Maratonista, triatleta, violoncelista bem meia­boca. Na eterna busca pela identidade, tradição e mudança. hanazaki@gmail.com Norah Costa Gamarra Mãe de Miguelito, sagitariana e latina americana, é natural de Alagoas e com origem boliviana. Carrega da cultura de seus ancestrais o encanto pelas comunidades detentoras de conhecimento e práticas tradicionais. É formada em Biologia pela Universidade Federal de Alagoas, Mestre e doutoranda em Biodiversidade e Conservação. Atualmente desenvolve pesquisas sobre a pesca artesanal, junto a pescadoras e pescadores do litoral alagoano, e sobre formas de gestão de Unidades de Conservação. Fora do âmbito acadêmico, se dedica à maternidade, aprecia a vida junto ao mar e às rodas de capoeira. norah.gamarra@gmail.com Paula Chamy Biofílica extrema, frustrada por não ter ficado com a medicina veterinária, por não poder viver submersa nos oceanos (baleia ou sereia, qualquer uma estaria valendo) e por ser de uma espécie que faz tantas crueldades com as demais. Mas, por outro lado, feliz por ter conhecido tanta gente maravilhosa nas Etnos. Vegetariana há milênios, orquidófila, fotógrafa, bordadeira, amazona, tudo no mais profundo amadorismo. Viajante, caminhante, andarilha, fazendo travessias pelo mundo para ver ser entendo um pouco dele algum dia, ou noite, porque, afinal, como disse Mário Quintana, viajar é trocar a roupa da alma e a minha gosta de muito de trocar de indumentária. paula.chamy@gmail.com Rafael Sá Leitão Barboza Biólogo, fugiu da seca do nordeste para a Amazônia em 2007, foi apresentado à etnobiologia, mudou­se para Santarém para trabalhar com 27 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV comunidades ribeirinhas pelo IPAM, foi gestor da RESEX Riozinho do Anfrísio pelo ICMBio. E depois de muita água, durante alguns anos, voltou para a seca porque ficou com saudade da colega de turma, casou e hoje é pai de Mateus. Agora tá estudando pra ser dotô em biodiversidade na UFRPE. rafabarboza@gmail.com Reinaldo Duque­Brasil é mineiro de BH com raízes espalhadas pelas Minas e pelos Gerais. Apaixonado pelos sertões, tornou­se biólogo e doutor em Botânica pela UFV. Trabalha como professor da UFJF, onde coordena o Núcleo de Agroecologia de Governador Valadares (NAGÔ) e vê na Etnoecologia a esperança de incentivar a solidariedade entre as pessoas e o respeito à natureza. Acredita que nossas ferramentas acadêmicas de ensino, pesquisa e extensão tem o dever de contribuir com a luta pelos direitos dos povos originários, comunidades tradicionais e demais grupos historicamente marginalizados. Papai do Téo, viajante nato, antifascista, poeta de prosa fiada, curte a diversidade, a poeira da estrada e qualquer música que toque a alma. reinaldo.duque@ufjf.br Roberta Sá Leitão Barboza Me identifico como uma pernamparamapaense pai d´égua, criada no cuscuz com bode e abduzida pelo peixe no tucupi com suco de bacuri. Tanto gosto de dançar maracatu e marabaixo, como carimbó, coco de roda e uma boa guitarrada. Mãe de Iara, rainha das águas, e da Maria Flor, minha Fulôzinha arretada! Atualmente moro na perola do Caeté, cidade Bragança no Estado do Pará, onde atuo como professora da Universidade Federal do Pará. Em casa sou contadora de histórias; na rua muitos causos gosto de ouvir e algumas rimas costumam sair... betabarboza@gmail.com Rumi Regina Kubo Gaúcha de nascença, nipônica de origem, brasileira de coração. Filha de agricultores, bióloga, antropóloga e artista plástica, atua hoje junto ao Programa de Desenvolvimento Rural (PGDR) e no Departamento de 28 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV Economia e Relações Internacionais (DERI) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. rumikubo2002@gmail.com Shana Sampaio Sieber Sou mulher, mãe de duas filhas nascidas no sertão pernambucano, Flora e Cora. Pesquisadora, extensionista e educadora, com uma trajetória interdisciplinar originária das Ciências Florestais, que amadurece nas Ciências Sociais. No doutorado, a convivência com o semiárido extrapolou as minhas práticas acadêmicas e de campo, num processo de (con)vivência com a realidade do semiárido e construção de conhecimento e identidade, mudando a minha forma de ver e viver (n)o mundo, diante de histórias de vidas marcadas por relações de gênero desiguais e sobrecarregadas jornadas de trabalho. Atuando junto ao Dadá: grupo de Estudos, Pesquisa e Extensão sobre relações de gênero, sexualidade e saúde e ao NEPPAS: Núcleo de Estudos e Práticas Agroecológicas do Semiárido, minhas práticas agora problematizam essas questões, buscando envolver as mulheres nos processos construídos. Atualmente estou no meu segundo doutorado na UNICAMP/FEAGRI, tecendo os fragmentos dessa história, entre rupturas e continuidades, descobrindo modos de conhecimentos. shanasieber@yahoo.com.br Shirley Djukurnã Krenak Pertence ao povo Krenak do Vale do Rio Doce, MG. Formada em Jornalismo, publicidade e propaganda, atua na defesa dos direitos indígenas e dos rios sagrados contra a mineração. É escritora e educadora indígena, com livros publicados: “A onça protetora” e “Cartilha Krenak Ererré”, atuando em parceria com escolas públicas e privadas da região. É coordenadora pedagógica do projeto Pluriversidade do Watu desenvolvido em parceria com Núcleo de Agroecologia da UFJF em Governador Valadares. Desenvolve trabalhos terapêuticos ancestrais voltados para o despertar do ser humano para a cura pela Mãe terra. krenak31@hotmail.com 29 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV Tarik Argentim Olá! Sou Tarik Argentim, bacharel em Direito (PUC­SP), advogado popular e indigenista especializado na Fundação Nacional do Índio – FUNAI. Me mudei para o estado do Acre em 2017 para trabalhar, contribuir e aprender com a sociobiodiversidade da Amazônia brasileira. Atuo diretamente com membros e comunidades de diversas terras indígenas no Vale do Juruá. Desenvolvo atividades sobretudo nas temáticas de políticas públicas, gestão ambiental e territorial, etnodesenvolvimento e agroecologia, conservação e manejo dos recursos naturais, entre outras questões relacionadas aos direitos dos povos indígenas. Creio que a presente publicação colabora com a troca de experiências entre todos aqueles que desempenham atividades de campo nos rincões do Brasil. Agradeço pela oportunidade. tarik.escmod@gmail.com Tomaz Ribeiro Lanza Apaixonado pela vida, pela diversidade humana e pelas plantas sou agrônomo e educador por formação. Pesquisador na área de etnobotânica, agricultura tropical e sistemas agroflorestais. Mestre em fitotecnia pela UFRRJ e doutorando em agronomia, pela UNESP, em trabalho na TI Kaxinawá de Nova Olinda – AC. ao longo dos últimos anos atuando junto a empresas e organizações na área de consultoria em agricultura e meio ambiente, com atividades de assistência técnica, extensão rural, identificação botânica, recuperação de áreas degradadas e agricultura tropical. tomazlanza@gmail.com Yan Victor Leal da Silva Nascido e criado nas margens do Assentamento Dom Orione, primeira ocupação do MST na Região Metropolitana de Belo Horizonte, Minas Gerais. É membro colaborador do grupo Kaipora – Laboratório de Estudos Bioculturais da UEMG. Atualmente é Doutorando do Programa de Pós­Graduação em Desenvolvimento Social da UNIMONTES. É educador popular, comunista e no ano de 2020 começa um trabalho como Professor do Assentamento Estrela do Norte ­ MST, Montes Claros ­ MG. 30 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV yanvicctor@gmail.com 31 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV Ataíde: o bicho do manguezal 1 Alexandre de Brito Alves O manguezal é um lugar que resguarda muitos perigos, todos da Vila de Bacuriteua sabiam disto. Porém, o senhor Pedro Paulo, um experiente trabalhador de quarenta e oito anos e trinta, emprenhado nas raízes pontiagudas das Rhizophora mangle e da Laguncularia racemosa já não se importava com as intemperes que poderia encontrar. A vizinhança o orientava a ter cuidado com as visagens do meio ambiente como o Ataíde e o Curupira, por exemplo. Ao ouvir sobre elas respondia sem dar importância. ­ Não há nada além de homens e lama no manguezal. Em 19 de maio de 2010 ele organizou uma ida ao manguezal. Tratou de convidar Pedrosa, Renato e Daniel. Encontrou os três juntos, assistindo (à TV) uma partida de futebol na casa de Dona Laura, a proprietária do bar “Ressaca Boa”. ­ Moçada, vamos lá pegar essas 80 cambadas2 ? ­ Será Paulo ?... Respondeu Renato, meio inseguro. ­ É, vamos. ­ Quando? Redarguiu Pedrosa. ­ Amanhã, preparem seus materiais. Já tem uma compra acertada com um marreteiro daqui, a gente vai vender ao mesmo nossa produção. Temos que fazer 80 cambadas de caranguejos, vendemos por 480 reais e dividimos o dinheiro. O que vocês acham? Os três convidados se entreolharam, todos acostumados com essa atividade. Aceitaram de pronto. ­ Então tá; amanhã iremos a partir da parada 17 da PA­458 (estrada que corta parte do manguezal), quando o ônibus vier, a gente vai, disse Pedro, em tom animado. 1 Este conto é um relato de um pescador artesanal residente na cidade de Bragança­PA, contado durante minhas pesquisas de Graduação e de Mestrado, entre os anos de 2010 e 2017. 2 Correspondem a 14 caranguejos amarrados a um fio. 32 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV Noutro dia, às seis da matina, os três estavam prontos. Pegaram o ônibus e chegaram meia hora depois na ponte do Furo Grande; alugaram a canoa do senhor Cassiano e partiram para dentro do manguezal. Naquele dia a labuta foi árdua e praticamente não conseguiram capturar caranguejo. Daniel, o mais cansado entre todos, colocou a mão à cintura, respirando com os seguintes dizeres: ­ É pessoal, o caranguejo está difícil de ser encontrado, portanto, eu acho que é melhor a gente voltar. Paulo, por outro lado, divergiu: ­ Não! Vamos ficar! Né pessoal? Pedrosa e Renato, também muito cansados, se entreolharam, e não responderam nada. É claro que os dois estavam querendo retornar, porque eram 3 da tarde e a maré estava subindo. Em pouco tempo todo o manguezal estaria cheio, e, daquela forma, os passos humanos seriam dificultados pelo atoleiro. Eram conhecidas por todos as histórias de pessoas que haviam morrido naquele ambiente. Mas, contrariamente, à vontade da maioria, Paulo convenceu a todos de que noutro dia encontrariam mais caranguejos. Sua mente não deixava de projetar que os amigos não caminharam o suficiente, de que noutro dia tudo ocorreria bem. ­ Onde vamos ficar, Paulo? perguntou Daniel, com a face fechada. ­ Meu caro, vamos andar só uns 500 metros daqui para o rancho do Manoel Cavalo. Ao chegar lá, dormiremos até de manhã. O rancho é uma espécie de moradia, feita de madeira e coberta de folhas, seus lados são abertos, embora existam também aqueles que são fechados, totalmente. Serve para os trabalhadores dormirem e/ou descansarem no manguezal. Chegaram ao rancho almejado. O local tinha apenas uma panela velha e umas duas colheres. Os amigos se organizaram para passar a noite. Combinaram de não dormir todos 33 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV simultaneamente a fim de evitar perigos. Assim, enquanto três dormiam, um ficava observando o local. Então a noite veio. Consumadas nove horas, todos ainda estavam acordados. Daniel, bastante conversador, começou a contar estórias de assombrações. A especulação de que no manguezal existe um bicho grande, feio e muito fedorento deixava Pedrosa e Renato vidrados, enquanto isso, Paulo não dava atenção, permanecia com seu enorme cigarro à boca e ajustando uma pequena fogueira para que a fumaça afastasse as carapanãs e os maruins, insetos que tempesteavam o manguezal, e infernizavam a vida dos trabalhadores. Em meio às conversas, os três adormeceram e Paulo permaneceu acordado. ­ Vou dormir também, não quero saber de bicho! Então deitou e o sono lhe encontrou. Passadas umas quatro horas após a soneira, Paulo abriu o olho, após escutar um forte barulho no meio da floresta. Observara suas proximidades e notara os companheiros aos roncos. Mais uma vez, o sono pegou o velho coletor de caranguejo. Novamente Paulo acordou em plena madrugada, entretanto, não mais pelo barulho de árvores quebrando, a situação agora era terrível. Ao abrir os olhos ele conseguiu enxergar o rancho a 50 metros de distância, ainda conseguia detectar o pequeno fogo quase apagando. Seu tronco, assim como as pernas estavam sobre o controle de algo, algo grande e muito forte que o carregava adentro do manguezal. O horrendo cheiro da coisa penetrou rapidamente sua narina e, por um segundo, lembrou­se do Ataíde (o bicho do manguezal). Com os braços soltos às costas barrentas da coisa, ele então resolveu que deveria reagir rapidamente, porque estava sendo conduzido ao interior da floresta, e se não resistisse poderia morrer nas piores situações. Paulo, então, com toda a força, virou o corpo à frente e tentou aplicar uma gravata na criatura, que reagiu apertando­o com mais força. Paulo gritou com toda a força de seu pulmão. O grito acordou Daniel que, ao abrir os olhos, não viu mais o companheiro. Enquanto os gritos continuavam. 34 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV ­ Paulooooooooo! gritou desesperado Daniel, acordando os outros. ­ Levantam­se, Ataíde está matando Paulo! Os outros, rapidamente, despertaram e se apossaram das facas que carregam, em desespero, saíram correndo ao som reverberado. Depois de percorrerem alguns metros, viram o sujeito lutando contra uma criatura de uns dois metros de altura, tão peluda que não dava para ver a fisionomia do Ser na escuridão, parecia que Paulo lutava contra sua própria sombra na noite. Não se sabia à maneira, mas Paulo conseguiu escapar dos braços do Ataíde e lutava intensamente contra este. ­ Deixa­o seu maldito! Deixa, nós vamos te mandá ao inverno, seu Diabo. E, assim, os três partiram para cima do bicho, munidos de suas facas e outros instrumentos cortantes. Paulo conseguiu se desvencilhar da criatura. Atracou o corpo barrento com toda a força, entretanto, o bicho era muito forte e o jogou ao chão, estava tentando asfixiá­lo, com os braços que parecem galhos de árvores. Nosso personagem já estava ofegante quando os amigos, gritando, se aproximaram. Ao ver os homens se lançarem dispostos a matar ou morrer, a criatura correu, e sumiu no matagal. Paulo escapou. Acordando logo, por um terrível grito no meio do manguezal. 35 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV La luz plateada del Himalaya Alonso Pérez Ojeda del Arco Carolina Perret Desde que tenemos uso de razón, siempre nos atrajeron las montañas de nieve. Tal vez, porque no las teníamos cerca, en Lima, Perú, o en Chaco, Argentina, nuestros lugares de origen, o tal vez, por estímulos visuales a temprana edad como el libro titulado Tin Tin en el Tibet que alguna vez Alonso atesoró de pequeño. Con el correr de los años, independientemente, y como pareja, fuimos alimentando esos cantos odiseicos, estimulados posteriormente con películas como Himalaya de Eric Valli, o libros míticos como: La senda de las nubes blancas, de Anagarika Govinda o, El leopardo de las nieves, de Peter Mathiessen. Lo cierto es que las montañas de nieve siempre permanecieron en nuestro imaginario – y en el del ser humano ­ como lugares salvajes, silentes, inalcanzables. Habíamos llegado a Kathmandú, Nepal, luego de un congreso de la Sociedad Internacional de Etnobiología ­ ISE, llevado a cabo en el reino de Bután. Siempre creímos que este tipo de eventos, además de permitir el intercambio de ideas y conceptos en nuestras respectivas disciplinas e investigaciones, abren una oportunidad para conocer otras miradas, otras gentes y culturas, y es allí donde radica la verdadera experiencia de los mismos, incluso más allá del plano académico. Luego de varios días en la capital nepalí, ubicada en un valle cerca de los 1400 msnm, creíamos, y sentíamos, que debíamos mirar desde más arriba. El calor agobiante y la lluvia sin fin del monzón nos invitaban a ir más allá de las nubes. Es así que decidimos hacer una caminata alrededor de una de las cadenas de montañas más altas del planeta: los Annapurnas, que con más de ocho mil metros se ubica en el corazón del Himalaya nepalí. No fue difícil convencernos; además de las nieves eternas y la 36 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV diversidad en naturaleza y cultura, que anhelábamos contrastar con la memoria de nuestros Andes peruano­argentinos, la idea de que veríamos, por arriba de los cuatro mil metros, a los míticos yaks (Bos mutus), una especie de vaca peluda, típicamente ilustrada en postales o documentales que se hacen sobre estas alturas, bastó para no dudar desde los primeros planteamientos, y emprender el recorrido. Y sin más, partimos. Un bus destartalado nos llevó a Besisahar, desde donde empezamos la caminata. Cada día nos levantábamos al alba y desayunábamos sin prisa, mientras repasábamos el mapa. Estábamos solos, sin guía, y sin porteadores. El camino, sin embargo, estaba muy bien señalizado y serpenteaba atravesando pequeños pueblitos y monasterios que parecían perdidos en el tiempo. Nuestro itinerario fue, generalmente, caminar por las mañanas y llegar alrededor del mediodía al pueblito donde pasábamos la noche. De esta manera descansábamos por las tardes, recorríamos los pueblos y sus monasterios; e intercambiábamos palabras con la gente local, si el idioma neutral, inglés en este caso, lo permitía. En los desayunos, confiábamos en el tsampa, alimento energético y altamente nutritivo preparado a base de harina de cebada y otras gramíneas locales, además de leche de yak, y en el que, curiosamente, encontramos cierta similitud a la Mashica de los Andes peruanos, harina que se elabora comúnmente sobre la base de cebada tostada y molida. Por las noches, la dieta consistía en platos como el dal bhat, un guiso de arroz y lentejas, momos, una especie de masa cocida y rellena con diferentes ingredientes, y de vez en cuando algo de carne o queso de yak. Por las tardes, casi religiosamente, releíamos ­ intercambiando turnos ­ un viejo libro del Leopardo de las nieves, de Peter Matthiesen. Un libro que habla de su viaje, allá en los años 70s, en el contexto de una expedición para fotografiar a la cabra azul (Pseudois nayaur) y el leopardo de las nieves (Panthera uncia); además de una búsqueda personal, espiritual, interna, en el corazón de las nieves perpetuas. Curiosamente en una 37 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV oportunidad, siguiendo a nuestro audaz narrador, y cuando subíamos una pendiente para fotografiar yaks, terminamos encontrándonos con un grupo de cabras azules. Una bendición de la naturaleza. Caminamos por valles donde la marihuana crece de manera silvestre y libre en los caminos ­de ahí su nombre Cannabis indica­, así como crece la cantuta (Cantua buxifolia) en la sierra peruana, o el chaguar (Bromelia hieronymien) en el Chaco argentino. Caminamos por pueblos que parecen escribir su presente en un pasado de varios siglos atrás. Lugares donde el OM MANI PADME HUM, famoso mantra budista tibetano, reza en las piedras talladas colocadas en los ríos para que el agua lleve por su cauce el mensaje. Reza también en las ruedas de oración, esas que están colocadas por filas y en muros, para que los caminantes las giren, siempre en sentido horario, poniendo en potencia sus plegarias. Caminamos por pueblos donde las banderas de oración ­ esas típicas banderitas de colores que nos transportan inmediatamente al Himalaya­ flamean a cielo turquesa, llevando también por el viento, el mensaje de sus mantras. Finalmente, ese sueño insatisfecho de montañas terminó llevándonos por uno de los lugares más ignotos que pudimos caminar, haciendo más de 130 kilómetros y cruzando un pase de altura, el Thorong­La, a 5416 msnm. Luego de esos días y noches, de estar rodeados de seis miles, siete miles y ocho miles, montañas que soñamos desde niños, y que solíamos dibujar con un lápiz carboncillo en los cuadernos de la escuela. Luego de caminar por senderos y pueblos que abrazaban el cielo; y recibir y devolver cordialmente un Namasté como saludo, terminamos tomando una serie de buses o colectivos que, haciendo los transbordos respectivos, debido a las secuelas del monzón, nos dejaron a tiro de unas horas hacia la frontera con India. Casi como culmina un viaje, así terminamos de leer, un día antes de despedirnos de las nieves imperiales, el libro Leopardo de las nieves. Era de tarde, casi de noche, y el viento subía feroz por el valle del Kali Gandaki. Nos habíamos refugiado en un hospedaje 38 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV de nombre Yak Donald´s, y al que la famosa cadena de comida rápida le hubiese puesto denuncia por copia de logo, y ultraje de concepto. Agotados, descansando y recordando lo caminado, tomábamos té Masala, un té con leche y especias que se volvió nuestro favorito. Al norte se dibujaban los inicios del legendario Reino de Mustang, y un poco más allá, la meseta del Tibet. Un pastor de cabras regresaba trayendo consigo a su rebaño, un grupo de adultos mayores rezaba, una por una, las 108 cuencas de sus rosarios o malas budistas, y nosotros girábamos una de las pequeñas rueditas de oración que portábamos como recuerdo. OM MANI PADME HUM. Terminamos de leer el libro, y nos despedíamos de los Annapurnas, bajo la luz plateada del Himalaya. 39 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV Historias, rostros, y mates en el Chaco Santiagueño Alonso Pérez Ojeda del Arco Los siguientes relatos forman parte de un viaje en bicicleta que el autor hizo durante 4 meses por las zonas rurales del altiplano boliviano y el Chaco argentino en el marco del Proyecto “Amazonía para el mundo”. Su objetivo fue realizar charlas y diálogos con escuelas e instituciones respecto a la diversidad cultural y biológica de la Amazonía, así como incentivar la toma de conciencia respecto a las amenazas que se ciernen sobre ella. El método, quizás no el más convencional, se cimentó en el simple hecho de que viajando en bicicleta se puede estar más cerca de la gente y de la realidad circundante. I Desperté recordando las noches azules de Bolivia. Los pronósticos del friaje sobre Santiago del Estero, Argentina, habían sido ciertos. Había pernoctado en la localidad de Quimilí, en las instalaciones del Movimiento Campesino de Santiago del Estero –MOCASE, una agrupación de más de 20 años de lucha que busca la defensa del territorio, la reivindicación a los campesinos sin tierra frente a los grandes capitales de la soya y las grandes transnacionales fagocitarias del modelo capitalista. Por intermedio de los compañeros del MOCASE había decidido visitar una de las comunidades donde trabajaban. Es así que tomé la ruta hacia la Colonia Lote 38, a una hora en bicicleta, primero por un camino afirmado, y luego por un sendero angosto que iba paralelo a un canal de agua. Doña Leticia, una mujer mayor curtida por el sol, me recibió con los brazos abiertos. La acompañaban Carlos y un niño llamado Walter, quienes venían apoyándola en las faenas por aquellos días. Su finca era un típico rancho santiagueño; un corral de cabras, árboles para leña, 40 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV colectores de lluvia, un horno de barro y ladrillos, entre otras cosas. Pasamos la mañana alimentando a las cabras, contando las que no habían regresado a dormir la noche anterior, aplicando cal a las patas de los animales, y juntando algo de leña para el almuerzo. De un momento a otro, mientras cebaba unos mates, Leticia nos pidió a Walter y a mí que traigamos un cabrito para beneficiarlo. Traigan a ese guachito que a su madre se la comió un puma la vez pasada, dijo señalándolo y sellando el destino del pequeño. Carlos, que impávido había estado afilando un par de cuchillos, procedió a ultimarlo y sacarle la piel con una gran destreza. Tienes que dejar que toda la sangre salga, de lo contrario la carne quedará oscura. Antes el cuero se vendía, ahora no hay mercado. Si lo quieres vender nunca le saques toda la grasa de lo contrario va a pesar poco… las tripas para afuera, es lo primero que se malogra. Me bombardeaba de consejos dado el interés con el que lo observaba. Un par de horas más tarde, reunidos ya en la mesa compartiendo el animal preparado junto con panes en su horno de barro, Leticia se dirigió hacia mí y dijo: Muchacho, esto que vez, es por lo que luchamos ¡Soberanía alimentaria! Yo lo crié, yo lo maté, yo lo cociné. Sé de dónde viene lo que está en mi plato. En ese momento, sus palabras fueron potencias que circulaban en el aire. Me contó del olvido hacia los campesinos, de la expropiación de las tierras, de la banalización de sus ideas por parte de las autoridades, de sus luchas, y de otras luchas. Era ya de tarde cuando el viento venía cada vez más frío haciendo presagiar nuevamente una noche de estrellas, tan diáfana como gélida. Me despedí de todos y en especial de Leticia con un gran abrazo. Marché ligero, pero con la cabeza repleta de historias. Las palabras de Leticia me acompañaron hasta la central del MOCASE donde encontré refugio contra el frío. Aún de noche, ya acostado, seguí pensando en ella, en la fuerza de sus palabras, la lucidez de sus ideas, y en su lucha sin descanso. 41 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV II Desde el primer momento que hablé con Don Carlón, supe que era un hombre forjado en el campo. Tenía una mirada profunda, de esas que lo han visto todo, en sus manos se dejaban ver las marcas de la vida diaria con el monte. Oírlo hablar era un placer y, pese a su edad, conservaba una vitalidad que ni los algarrobos (Prosopis nigra) del Chaco tienen. Había llegado yo a su rancho ubicado en el Paraje Santa Rosa, a 7km de Quimilí, en horas de la siesta. Lo encontré ensillando su caballo a punto de salir a buscar sus cabras al monte. Hola chango, sentate. Antes de que le preguntara como sabía dónde estaban, se anticipó: Hay viento norte, las cabras siguen al viento… Yo cuido a mis animales. Vos podés ir cortando un poco de chala. Allí está el maíz para las aves. Se marchó. Regresó y pasamos la tarde tomando mate, conversando, y terminando algunas faenas en el rancho. Llegó la noche y, a la luz de un brasero, empezó a descifrarme muchos secretos del monte chaqueño. Nos remontamos a la época de los ferrocarriles y a la triste historia de los árboles de quebracho. Respecto a los primeros, Eduardo Galeano escribiría con razón, que lejos de ser el motor de la comunicación de las distintas provincias del interior, las vías férreas eran arterias que unían los centros de producción y materias primas con los puertos que enviaban todo al viejo mundo, dejando nada en el nuestro. Por otro lado, al igual que en la Amazonía con el caucho (Hevea brasiliensis), a fines del siglo 19 y las primeras décadas del siglo 20, los árboles de quebracho colorado fueron víctimas del más irracional exterminio. La variedad santiagueña (Schinopsis lorentzii) fue diezmada para hacer durmientes de ferrocarril. La variedad chaqueña (Schinopsis balansae) por su parte, fue codiciada por sus cualidades imputrescibles y alto contenido de taninos por la industria de la curtiembre. Eduardo Rosenzvaig escribiría en su 42 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV libro Etnias y arboles del Gran Chaco: Nadie quería hachar los árboles de quebracho. Su dureza representaba una tarea inhumana. Por si fuera poco, además de esa mítica dureza, el árbol producía una dermitis severa por el contacto con la piel. Con el canto de las hachas, durante esa época no solo se diezmó el monte chaqueño, sino también a las poblaciones aborígenes, muchas de ellas esclavizadas a vivir cortando quebrachos durante generaciones. Antes abundaban, yo incluso trabajé en la madera ¿Vos sabes qué hacer cuando te agarra el quebracho colorado? Si al árbol no le agradas, ahí mismo te empieza a picar y enronchar el cuerpo. A mí no me hace daño, pero he visto… A mi señora le agarró. Tenes que hacer una tortilla con ceniza y llevarlo al pie del árbol. Dejarle ahicito y luego te vas, pero sin voltear a verlo. ¡No tenes que darte vuelta! Recordaba Don Carlón. Sin duda, el árbol de quebracho sigue vigente en la memoria colectiva de la gente, y esto se manifiesta, en las creencias y el atesoramiento de otros tiempos. La temperatura había bajado y ya empezaba a helar afuera. Un gato negro, al pie del brasero, nos hacía compañía. Don Carlón se acomodaba una venda que tenía en la mano producto de una quemadura. ¿Y vos queres ir a sacar algodón al Chaco?, preguntó curioso. Si, me gustaría aprender de la cosecha, contesté. Le había contado mi intención de entrar a sacar algodón con los cosecheros, así, conocería el oficio. Durante el viaje había procurado acercarme a los trabajos diarios de la gente, algo que me permitía vivenciar de cerca sus modos de vida, y claro está, hacer algunos pesos extra. Y si chango. No es fácil. Tenes que laburar todo el día. Duele la espalda y los dedos de la mano te sangran… te pagan por kilos y ahora que está helando no es bueno. El algodón pierde peso. Selló el tema, preocupándome. Pasó un rato y siguió contándome historias mientras comíamos bizcochitos de grasa, hasta que, se levantó de su silla y encendió la radio, y en silencio escuchamos el programa de su sobrino Darío en la FM del Monte. La música chacarera fue llegando y, de manera sublime, con el cansancio, el ferrocarril del sueño me condujo, gracias a Don Carlón, al monte chaqueño 43 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV donde el recuerdo de los majestuosos quebrachos descansa. III A media mañana, un viejo hombre ceba su mate. El sabor de la hierba tibia le recuerda a su mujer. Sus alpargatas, trajinadas, dejan ver sus pies que transitan el otoño de una vida construida bajo las espinas del monte chaqueño. Sus ojos, casi apagados, reverberan la luz de la brasa donde se calienta una tetera tan anciana como él. Es un domingo cualquiera, y como si fueran recuerdos que brotan de la memoria, hace cuenta de sus pendientes: alimentar a los pollos con maíz, sacar chala para el buey, extraer agua del aljibe para consolar a su caballo sediento de sombra, y vender un par de algarrobos convertidos ya en madera anochecida. Ya por la tarde, luego de la siesta, y agobiado por el calor, el anciano sale a su patio y se sienta a acariciar a su gato. Su vista se pierde en un amasijo de ramas del árbol de itín (Prosopis kuntzei) que olvidó cortar para despejar el camino. Duda por un instante, pero sigue allí, con la mirada impertérrita. De un bolso, saca algunos copos de algodón, los acaricia, son de la cosecha anterior. El color blanco en sus manos le recuerda el cabello de su mujer. A lo lejos, nubes negras murmuran truenos. Hay viento norte –ese que solo sabe de días calurosos­ pero no le da importancia. Ensilla su caballo, vuelve a mirar las ramas del itín, y maldice. Tranca su puerta, y se marcha con dirección al rancho de su compadre. Su radio está averiada, y hoy juega su Boca Juniors querido. 44 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV Entre balaios e quilombos Alyne Freire de Melo Ouvi dizer que quem conta um conto, aumenta um ponto...Então resolvi contar, essa história histórica, que se passou há muito tempo, ainda passa e não se sabe até quando passará. Quando se pensa que não, ainda tem quem lembre dele, simplesmente tem um povo lá pras “bandas” do Jenipapo, nas Caxias do Maranhão que não esquece jamais. Um velho Manuel, que poderia ser Chico ou Antôin ou qualquer outro caboco que só quer uma vida digna, longe dos tempos da escravidão. A Lei Áurea foi assinada, faz tempo, mas muita coisa não mudou...O pobre negro virou favelado ou quilombola e as amarras que o matavam no passado; ainda que invisíveis agora, continuam a matar. Mas o povo de outras bandas o chama de carambolo, que nada mais é que um calango feio, e que ainda diz sim pra tudo. O Negro Cosme, aquele que achava que negro poderia ser “gente livre” também, chamava sua luta de “Guerra da Lei da Liberdade Republicana”. Foi líder da Balaiada, rebelião ocorrida no Maranhão e Piauí entre 1838 a 1841. Ele lutava contra a escravidão, castigos morais e físicos, a pobreza e todo tipo de abusos físicos e morais sofridos pelos pobres e especialmente “os negros escravos e os escravos negros” no século XIX. Depois da libertação veio a escravidão social... aquela que dói mais que os açoites e chibatadas. Por isso “meus amigos” digo pra vocês: Quando fizer besteira só não fale que fez nas coxas... Porque as coxas que fizeram telhados de senhores do passado; são as mesmas que continuam a fazer. E hoje, para muitos, esse tal de negro Cosme é considerado herói da revolta da Balaida com direito a estátua e tudo... Virou plataforma de estudo... Mas nem a escola das bandas que ele passou leva o nome dele... O tal de Manuel, que poderia ser Raimundo, que lute... E lute mesmo porque quilombola bom, é 45 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV aquele calado no quilombo, comendo o que não tem e esperando o que não vai chegar. Só sei que ele foi enforcado, simplesmente porque juntou um monte grande de negros para lutar por uma vida digna, só que nessa grande “brincadeira” ele ameaçou o “sossego público” do Maranhão... E por isso morreu pra nunca mais voltar. As marcas desse passado ainda estão nas bandas de lá; na Gameleira ainda tem uma senzala... Aí chega em Cana Brava das moças e se acha um cruzeiro do tempo da escravidão. Pra lá tem até um cacimbão, que servia para matar a sede dos irmãos negros que por lá passavam; Só que hoje tudo tem dono, porque a terra é do dono e tudo que tem lá também. A única coisa que eu sei disso tudo, é que nem eu mesma sei; até quando o negro, pobre e quilombola vai aguentar. Como cantou Zé Ramalho, Êh, ô, ô, vida de gado. Povo marcado. Êh, povo feliz! Assim o quilombola ainda vive sem nem pão e nem circo... Mais calango bom... Só balança a cabeça porque nasceu assim e assim viverá. 46 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV Dois relatos de caça na Amazônia Ocidental André Luís Cote Roman À Dânya Regina Proêmio Há mais de duas décadas na região amazônica, tornei­me morador de várias cidades, algumas paraenses, outras acreanas. Entre as do Pará, vou me despedindo, enquanto traço essas lembranças, da cidade minerária de Itaituba; já vivi na vizinha Santarém – de tipologia pesqueira – e na portuária Belém, terra natal de milha filha, nascida com pseudônimo de escritora. No Acre, passei alguns anos em Rio Branco – cidade onde construí amizade com gente tão diversa e especial, como são diversos e especiais os povoados e paisagens existentes nesse setentrião do país – e alguns meses em Assis Brasil: cidadadezinha, também com nome de escritor, tríplice fronteira, terra dos “Manchineri” e “Jaminawa”, e tablado das duas histórias que se seguem. Antes de expô­las, cabe um comentário sobre um belíssimo escrito de Euclides da Cunha, o qual folheei há muitos anos (por ora não consegui resgatá­lo), e do qual retive meras reminiscências, todas elas reportando a discriminações geográficas, levantadas pelo autor, entre as porções leste e oeste da região amazônica, especialmente no que tange à sua hidrografia. O que restou do texto em minha memória (por certo, de forma imprecisa) é o fato de a Amazônia Ocidental encerrar grandes interflúvios, com seus rios ‘paralelos’ (estava escrito desse jeito?), muita floresta no meio, sem aquela exuberante ‘interconectividade fluvial’ (Euclides, me perdoe!), exibida pelos grandes rios dos estados do Pará e do Amazonas. Se isso ocorre, faculta­se, para fins de contextualização dos relatos esboçados abaixo, pressupor os inúmeros causos de pesca ainda por serem registrados no âmbito da Amazônia Oriental e os inúmeros causos de caça ainda por 47 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV serem escritos no âmbito da Amazônia Ocidental, mesmo os inusitados demais, a exemplo destes que, às pressas, consegui alinhavar. 1 A caça é a caça e as circunstâncias: que suerte! Em Rio Branco, após malograda tentativa de encontrar trabalho, aproveitei a providencial possibilidade de ganhar algum dinheiro como assessor do Secretário de Agricultura e Meio Ambiente de Assis Brasil, para a execução de um projeto de cunho ambiental, envolvendo outros municípios próximos, além desse que na ocasião me contratava, sede para tal projeto. Assis Brasil logo me encantou pela rusticidade, pelo colorido indígena na pequena praça e vielas da cidade, pela curiosa Bolpebra – localidade boliviana com quatrocentos habitantes e seu pequeno comércio à margem do rio Acre; pela presença da singela ponte de Integração Brasil­Peru, por onde eu passava, em minhas caminhadas à tarde, rumo à localidade de Iñapari. Através desta ponte eu ganhava, diariamente, um país inteiro para atravessar, fascinante pela floresta, pela cordilheira dos Andes, pelo Pacífico. Mas obviamente não prosseguia, voltava para tomar meu banho, comer um lanche num dos quiosques da pracinha, e descansar no sossego do meu quarto, no hotel do Seu Bebé. O café da manhã, tomava­o no supermercado da cidade, onde uma funcionária do estabelecimento, senhora peruana, volta e meia me perguntava sorridente se eu já tinha me aventurado pelo seu país, visitado Cusco, Arequipa ou passeando no Lago Titicaca. Até que um dia, apareci no seu trabalho para comprar um pouco de soles, pois intentava conhecer a próxima cidade, além da existente na fronteira: “já é um começo, balbuciei”. “Sí, es el punto de partida para descubrir otros lugares hermosos...”, animou­me a acolhedora mulher. Início de tarde de sábado ensolarado, latinha de cerveja na mão, adentro­me a um táxi­lotação para entranhar­me por cinquenta quilômetros até o distrito de Ibéria, departamento de 48 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV Madre de Dios, província de Tahuamanu. O clima no carro era descontraído, motorista brincalhão, e quando espantei, já estava acomodado em uma cadeira, na calçada de um armazém da cidade, feliz da vida, com um litrão de cerveja escura aos pés, e um saquinho de plátanos deshidratados nas mãos. Bebia com calma, e respondia derretido às saudações das pessoas, curiosamente educadas, que passavam por mim, crianças ou gente de idade, feito uma senhorinha com vestes andinas, ainda habitante de minhas recordações: “buenas tardes señor”. Depois desse pequeno pacto com a cidade, fui dar uma olhadinha rápida numa feira, onde intrigou­me ver moças e senhoras de compleição indígena usando véus roxos, e outros trajes exóticos. Também as casas, de arquitetura simples, mas de aspecto todo particular, me davam a sensação de me encontrar não na Amazônia, mas em algum lugarejo rural asiático. Sem tardar muito, o tempo fechou, ouvi trovões, e fiquei com medo de pegar chuva e não conseguir chegar com calma a Assis Brasil, onde à noite iria a um piseiro com amigos. Saí então pela rua em busca de condução para regressar a Iñapari. Logo encontrei uma, justamente à procura de mais um indivíduo para completar a lotação. De novo, sobrou­me o banco ao lado do motorista, desta vez peguei um mal­humorado, a cara do temporal que se armava. Dirigir sob a tensão do céu escuro – pejado de uma torrente fabulosa de água prestes a desabar sobre um carrinho velho, cheio de gente, à alta velocidade, ocupado em desviar de pessoas e animais de criação que apareciam pelo caminho, numa estrada precária de chão batido – tudo isso exige cuidado, atenção, parcimônia com simpatias, etc. Contudo, eu e, pressenti, também os passageiros da parte de trás do automóvel, notamos uma concentração ainda assim invulgar por parte do senhor do volante, extraordinária mesmo ao contexto conhecido. Em um determinado momento da nossa curta viagem ousei puxar assunto com o chofer, na linguagem da minha saudosa avó, disparando uma pergunta fácil de responder com monossílabo, e já sabendo que a resposta seria positiva: “já estamos no domínio 49 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV de Assis Brasil”? E ele quase grita, seco: “claro!” Um pouco mais para frente, mandei outra, a qual não deu tempo de ele responder, pois os de trás precipitaram (claaro!), presumivelmente para poupá­lo de aborrecimento inútil. Cerca de uns vinte minutos depois, atento ao caminho, pelo enlevo à paisagem que se descortinava à nossa frente, avistei um animal silvestre de pequeno porte iniciando sua travessia, a uma certa distância do carro. Resolvi não falar nada, resignei­me como um caso perdido, uma poesia, em forma de bicho, a menos no mundo: ele iria esmagá­lo. No entanto, o carro começou a conter velocidade e passei a contar com a bondade inata a todo ser humano frente à delicadeza de um inofensivo agouti. Relaxei, mas em menos de um segundo ouvi a batida. “Matou?”! Perguntei angustiado. “Claaaro!”, responderam todos, inclusive o motorista. Ele deu ré, chegou onde o pequeno roedor se encontrava, desceu do veículo (segui­o, curioso), abriu o bagageiro poeirento e arremessou o corpo inerte do animalzinho para o seu interior. Com o “atraso de nascença” que me cabe, não pude evitar de levar na orelha o estrondoso e derradeiro claaaaro! da excursão, agora só do chofer. É que depois de remoer um pouco o acontecido, enquanto o silêncio continuava a rugir entre a gente, concluí que o abrandamento da velocidade do carro foi para não estragar a carne do animal pelo esmagamento. Nosso protagonista estava caçando! Estava caçando, arrisco a dizer, desde que partimos do encantador pueblo de Iberia. Quis confirmar isso, escolhendo a dedo as palavras, e obtive a viciada resposta. No dia seguinte, fui tomar meu desjejum no supermercado, uma leve dor de cabeça, ressaca do piseiro, e encontro a senhora peruana, minha ‘assessora para assuntos turísticos no Peru’, conforme eu costumava brincar. Contei os meus encantos com a cidadezinha, aproveitei para fazer algumas perguntas sobre certas coisas que observara por lá, quando lembrei de comentar o episódio do nosso retorno a Assis Brasil. Ao chegar na parte onde digo que ‘avistei um animal de pequeno porte iniciando sua travessia a curta distância do carro...’, ela, boquiaberta, deixa escapar um comovido e poético que suerte! 50 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV 2 A caça é a caça e as circunstâncias: que azar! Pouco antes de deixar Assis Brasil, cometi uma imprudência que poderia ter me custado caro. Retornando de Iñapari de uma das minhas caminhadas, resolvi encurtar trecho, tomando uma rota indígena próxima à Ponte de Integração Brasil­ Peru. Achei que conseguiria chegar em Assis antes de escurecer, mas no meio do trajeto já não podia enxergar nada. Míope, lentes dos óculos engorduradas, cego, ia tentando me guiar pelo tato dos pés com o solo da estreita trilha, levemente demarcada pelo uso dos nativos. Num determinado ponto do percurso, um bando de queixadas, suponho, se assustou comigo emitindo um amedrontado “grunhido”. Felizmente fugiram. Ouvi um barulho de água, devem ter desembestado rumo a algum banhado próximo, talvez não tivessem filhotes no bando. Não vi nada, mas se eu fosse atacado, não teria o que fazer. Nessas caminhadas, não era raro eu estar acompanhado de outros ‘esportistas’: uma colega do Ibama, o próprio secretário do meio ambiente com quem eu trabalhava, ou algum pesquisador, geralmente de Rio Branco, convidado a ministrar cursos ou proferir palestras sobre questões ambientais para o projeto que justificava a minha presença por lá. Havia uma outra pessoa que de tempos em tempos eu observava, de andar solto mas determinado, fazendo esse trajeto. Digo, não o trajeto dos índios, mas o convencional, o da BR­317, por vezes movimentado de carros, aquele que liga, por meio da Ponte da Integração, Iñapari a Assis Brasil. Refiro­me a um vendedor ambulante de bijuterias delicadas, fabricadas com fibras vegetais, linhas, pedrinhas raras: unanimidade entre todas a mulheres do planeta, inclusas algumas jaminawa, dispostas a levar muitas peças da produção deste caminhador, ‘gratuitamente’ – na nossa lógica e linguajar –, conforme presenciei certa vez na pracinha em frente ao hotel onde eu morava. 51 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV Igualmente artistas, as índias, naquela ocasião, se mostravam irredutíveis em levar aquelas joias. E me compadeci daquela figura, metade do rosto tatuada, longa e fina trança na barbicha, cabelos compridos amarrados em coque, repetindo, quase chorando, às mulheres sensíveis à arte, nem tanto ao artista, o apelo: “mas é o meu trabalho... meu trabalho... trabalho... trabalho!”. Uma semana depois, pela janela da Secretaria do Meio Ambiente, tento localizar de onde vem um choro longo, doído, sem interrupção. Vejo que são índias, algumas com aquelas características “tipoias” carregando bebê, a lamentar a morte de algum ente querido, segundo me explicaram. Alguns minutos mais, outra mulher, o mesmo choro, depois outra, e outra. Já esquecido da última manifestação de luto, vem o “choro”, aparentado aos anteriores: na persistência em que se dava, na agudeza, na modulação e no impulso de comiseração que provocara em mim os murmúrios antecedentes. Pesar por um país que não existe mais? Cheguei mesmo a pensar tratar­se de mais uma desconsolada mulher, mas não era. Era um carro de boi, com suas rodas rangentes, trazendo produtos agrícolas e o artista: uma das pernas atada com faixas mal­acabadas, seguindo de carona, acompanhado por duas ou três crianças indígenas. Estava ele voltando da ‘trilha dos índios’, onde meses antes tive a sorte de não ter sido acometido pelos porcos selvagens. Durante o decurso que esteve por aquela rota, deparou­se com um animal encouraçado – uma iguaria – um tatu. Procurou instrumento improvisado para abatê­lo e, não havendo o tempo com que dispunha para elaborar seus graciosos adornos, com medo de lhe escapar a presa, usou o instrumento do seu próprio corpo, porém o chute foi em falso. Machucou­se. Que azar, meu amigo! Que azar, meus amigos! 52 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV O corpo na Amazônia: o chamado de Dorothy Stang Andrey Henrique Figueiredo dos Santos As linhas a seguir são relatadas a partir da experiência vivida na carne, à beira da Transamazônica paraense, mais precisamente no Projeto de Desenvolvimento Sustentável (PDS) Esperança, município de Anapu, sudoeste do Pará. Local em que Dorothy Stang desenvolveu seus projetos de luta e onde seu corpo tombou, sendo brutalmente assassinada no dia 12 de fevereiro de 2005. Sua morte foi encomendada por fazendeiros da região. Era minha primeira vez em Anapu. O convite veio do querido Wallace Pantoja (amigo da vida), então, combinamos para que a travessia ocorresse em julho de 2018, mas sinceramente, eu não sabia o que esperar da viagem. Tentei me preparar psicologicamente e fisicamente, pois sabia que seria intenso. No total éramos quatro: Wallace, Dieyson, Gustavo e eu, dois em cada moto, Gustavo e Dieyson na época moravam em Anapu, e sabiam manobrar as motos nas vicinais3 , como ninguém. Aquelas ladeiras das vicinais me impactaram de uma forma inexplicável, a beleza maior são seus caminhos sinuosos. Até hoje quando reflito sobre à beira da Transamazônica, imagino as vicinais como corpos deitados sobre a floresta. Ao entrar no PDS Esperança, me perguntei quem foi Dorothy Stang? Dorothy Mae Stang, nascida em 31 de junho de 1931, em Dayton no Estado de Ohio, Estados Unidos, chegou ao Brasil na década de 1960, era missionária da Congregação das Irmãs de Notre Dame de Namur, fazia parte da Comissão Pastoral da Terra (CPT), e da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Sua prática esteve baseada nos princípios dessa releitura do evangelho junto aos pobres, inspirada na Teologia da Libertação. Inclusive, as pessoas que a conheciam, me relatavam 3 Do latim: “vizinhança”. Longos ramais. Prefiro chamar vicinal, pois é como os sujeitos que moram “à beira da faixa” (nas vicinais da transamazônica) as chamam. 53 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV que ela possuía um grande poder de organização e articulação política. Dorothy descobriu, em conjunto com os agricultores, a existência do Plano de Desenvolvimento Sustentável (PDS), que foi elaborado pelo governo do FHC. Portanto, ela descobriu em algum lugar engavetado esse projeto e a partir da luta organizada fizeram o governo executá­lo. Além disso, Dorothy mapeou lotes no qual os Contratos de alienação de terras públicas (CATPS) estavam vencidos e sabia que poderia reivindicá­lo junto à justiça para que essas terras fossem destinadas à reforma agrária. “Andava com estes mapas sempre em sua sacola de pano”. Infelizmente, depois de 14 anos de investigação esses mapas sumiram, misteriosamente, da bolsa que usava no dia de seu assassinato. Vale ressaltar que esse objeto estava sob domínio policial. Tudo era registrado por ela em forma de escrito e denunciado na delegacia, Ibama, MPF e estadual. Infelizmente, casos como esse, em regiões de conflitos fundiários são muito sensíveis, fazem com que ocorram confrontos assimétricos onde os “tubarões” não brincam em serviço. Tempos depois me perguntei novamente quem era a Dorothy Stang? Que dimensões do pensar o espaço emergem (no presente mesmo) dessa mulher? Por que a gente não inverte a lógica em vez de categorizá­la como liderança camponesa ou religiosa? Quem era essa mulher que tinha vontades, desejos e frustrações? Que vivia em um ambiente hostil, onde enfrentava predominantemente um público masculino nos espaços decisórios, e como essas histórias de vida bagunçam certas categorias sobre a Amazônia e revelam outras? Quero convidá­los para uma reflexão existencial sobre o corpo da Dorothy. Algo que me marcou intensamente foi um diálogo que tive com uma família em direção ao PDS Esperança. A frase foi de um agricultor que conhecia a Dorothy: “Ela andava tudo por aí sem medo, com uma televisão pequena no ombro mostrando a história da região para os colonos”. Quem era essa mulher que andava? O que ela sentia? O que ela pensava? Que lutas ela enfrentava pelo andar? Portanto, começa a se desenhar uma geografia. 54 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV Que tal pensarmos nesse corpo, mas não somente o corpo da Dorothy, mas de outras pessoas que fizeram e fazem parte do processo dessa realidade precária da Transamazônica? Esse corpo como uma ausência, o corpo interditado que se espalha nas entranças porque é sempre uma fuga, um escapismo, sempre um contornamento de algo incontornável, por isso as vicinais vão se formando. A vicinal é uma ambiência que é produzida no contornamento dessas interdições, desse corpo que é fraturado, do corpo que precisa ir além, pois não é permitido! Então, esse corpo ocupa os espaços, ele vai atrás, ele cansa, ele cai, ele tem que lutar mesmo na dor, tendo sempre dificuldades de passagem. É interessante refletir como a Dorothy se ambientalizou nas vicinais de Anapu e como o seu corpo significou e significa para as pessoas que ali estão, tal qual emociona e marca a trajetória de luta na região e vice­versa. Portanto, a carne no mundo não é somente esse ambiente, mas, sim, de que forma o corpo sente e faz sentir esse ambiente. O que essas pessoas são enquanto vidas? Enquanto existência concreta? Enquanto “eu e a cerca”? Ou então sobre “a mulher que andava tudo por aí sem medo”. Estou falando da dimensão da caminhada, do corpo, do cansaço, da emboscada. Chegou o momento de conhecer o memorial que fizeram para ela dentro do PDS Esperança, onde ocorreu o assassinato. Avistei de longe a cruz pintada de azul com o seu nome em preto e dois pés de cacau entre a cruz... Na verdade, não consigo descrever o que eu senti no momento. Talvez, todas as definições sejam medíocres demais para isso. Apenas o choro, e o abraço do meu amigo Wallace, e o silêncio em respeito... Aquele memorial é um elã de unidade de uma luta que transcende a própria ideia de questão agrária, mas que a engloba também. É justamente essa imagética de alguém que tomba, mas ela enquanto carne é como a gente. Ao lado do memorial, adentrando a floresta, encontra­se uma homenagem feita em uma placa no meio de uma árvore com a seguinte frase: “In­memorian aos mártires que tombaram na luta pela preservação e reforma agrária na Amazônia. Anapu, 26 de maio de 2009”. Linda homenagem! Porém, a placa está cheia de 55 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV marcas de bala. Ninguém sabe quem fez aquilo, porém, suspeitamos quem seja... Se começasse uma luta feroz novamente no PDS, o primeiro lugar a ser defendido seria o memorial da Dorothy e ao mesmo tempo, seria o lugar com mais tentativa de destruição (no ano de 2018, uma amiga pesquisadora estava em trabalho de campo dentro do PDS Esperança, e me contou que pistoleiros entraram no assentamento na tentativa de arrancar a cruz do memorial). É por isso que estar lá, o memorial e na árvore ao lado, a placa em homenagem aos mártires cheia de marca de bala. Penso que as pessoas que atiraram na placa querem dizer que não aceitam ela, tentam difamá­la, e ao mesmo tempo, as pessoas fazem a romaria da floresta todo ano, caminhando 55 quilômetros de distância em vários dias em homenagem a ela. Ou seja, essa mulher que lutava contra pecuaristas, fazendeiros, grileiros, garimpeiros, em prol da reforma agrária e preservação da floresta e ao morrer praticamente vira uma santa. O que é a romaria da floresta4, senão uma homenagem a uma santa, uma mártir. Sobre a ida ao PDS Esperança e a visitação ao memorial e a placa em homenagem aos mártires que tombaram nessa luta, gostaria de compartilhar com vocês três pontos nesse movimento experimental à beira da Transamazônica: 1º) O meu corpo cansou e sentiu as ladeiras das vicinais de forma intensa. Agora imaginem as famílias que fazem esses trajetos todos os dias com a produção na costa (seja no verão ou inverno). Isso dá uma dimensão diferente dos gargalos do processo, de como essas famílias se deslocam para o centro urbano, ou se a moto falha no meio da vicinal? Como aconteceu com a moto de um sujeito que ajudamos a consertar na volta. E se não tiver ninguém para ajudar, como é que faz? Esse corpo cansa, ele não é uma máquina, ele não é um número. Nossos artigos tendem a transformá­lo em tabelas, quadros, invalidando essa historicidade do corpo. 4 Manifestação política e religiosa que ocorre desde 2006 no município de Anapu­PA, em homenagem à vida, ao sonho e à missão religiosa da missionária Dorothy Stang. 56 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV 2º) A outra questão é, como eu fui atraído nas caminhadas "aqui e ali", mergulhando fundo na lógica das experimentações, sentir mudanças de atmosferas, mudanças de sensações. E essa mudança de atmosfera é o resultado de uma luta, senão o PDS Esperança se tornaria o que ao arredor dele se tornou; pasto para o gado passar. Presenciar isso, de certa forma, foi um assédio na paisagem, o assentamento sendo cercado por fazendas... Acredito que os nossos corpos sentiram a importância daquele lugar. A gente sentiu o frescor de estar ali, a paz de estar ali, uma floresta calorosa e aconchegante, fresca enquanto ar, e a beleza de registrar uma fotografia em específico que agora se encontra em meu quarto (quem sabe os próximos volumes do “quando pensa que não...” permitam inseri­las ao decorrer da escrita) parecia que eu estava em um santuário e isso é importante não perder de vista, como o exercício da caminhada diz muito sobre as lutas, e conectado ao exercício da caminhada, essa fala: “ela caminhava tudo por ai sem medo (...). E no fundo, penso que a Dorothy poderia ser morta a qualquer momento naquele ambiente. Na verdade, seus escritos descobertos após sua morte ratificam isso. As ameaças eram constantes contra sua vida. A escolha de permanecer... Acho que isso diz muito sobre ela. Na manhã do dia 11 de fevereiro de 2005, antes de sair da zona urbana de Anapu em direção ao PDS, Dorothy fez algumas ligações para conhecidos e o tom da conversa foi de um jeito diferente, conforme alguns relatos. Ela sabia, no fundo, que não voltaria viva de lá. Não sei como, mas, ela sabia. 3º) Como é que, de alguma maneira ou de outra, o fato de estar ali de frente para o memorial dela, me conecta com pessoas, memórias, trajetórias, histórias, objetivos e projetos. Conecta­me com a Dorothy Stang, sem que eu a conheça efetivamente. Penso que tenha uma dimensão de intuição que emergiu naquele momento, o emocional e, portanto, subjetivo. Fico pensando como aquele ambiente do PDS ganha densidade para mim, e o que é aquilo? Aquilo é um local onde um corpo caiu, no sentido mais precarizado da descrição seria isso, mas não para mim. O local onde ela tombou é simbólico e emocional, que entra e preenche os 57 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV espaços de uma densidade tão grande, que eles se tornam grandes pela própria luta. E nessa realidade movediça, no meio da Amazônia que a Dorothy nos ensina novas formas de existir e estar no mundo, onde o ser humano é o possível artista da sua própria vida. Sementes de cacau foram lançadas! Dorothy existe! 58 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV Às vezes nem é a pergunta que é errada… Anna Flavia Menezes da Silveira Lima Eu sempre gostei de fazer muitas perguntas porque saber tudo e conseguir entender e falar sobre tudo faz o meu ego leonino se sentir privilegiado por informações passadas pra mim e guardadas na minha cabeça. Além de fazer perguntas, sempre que posso eu tô ouvindo a conversa alheia, principalmente se envolver idosos e crianças. Perguntar e ouvir a resposta ou simplesmente ouvir, me dá uma gama de conteúdo, às vezes desnecessário, às vezes legal, às vezes eu nem lembro o que. Meu primeiro contato, envolvendo a universidade, com as perguntas e as respostas alheias ou passar um tempo ouvindo o outro foi em uma viagem para Cachoeira que eu fiz em 2018. Foi uma viagem de campo da aula de Etnobiologia e Etnoecologia. A gente tinha que escolher um lugar da feira local para entrevistar as pessoas sobre a vida delas, sobre como elas trabalhavam e etc. Nesse dia, eu lembro que o trio (eu e mais dois colegas) resolvemos nos separar para procurar e decidir em qual lugar faríamos as entrevistas. Resolvemos ficar com o Mercado de Peixes. Pré­definimos algumas perguntas como “qual seu nome?”, “quantos anos tem?”, “trabalha aqui há quanto tempo?” e tal, só que conversar com gente é um caminho que te leva pra tantos cantos que as perguntas feitas antes acabam não valendo de nada. Três entrevistados mexeram comigo nesse dia: dois homens e uma mulher. Eu dei bom dia, nos apresentei e a moça nem olhou pra mim. Cada pergunta que a gente fazia, ela batia no peixe antes de responder, como se descontasse no peixe o fato de não poder nos bater. Num momento eu disse “senhora?”, ela me olhou dura, bateu o peixe na mesa e continuou atendendo os clientes. Eu quase chorei, mas ri bastante depois. Os dois rapazes: um mais velho e um mais novo. O mais 59 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV velho entrou no Mercado e foi logo falar com a gente, contou como aprendeu a pescar, que pescava com os filhos e ensinava pra eles e eu “quantos filhos o senhor tem?” e ele riu, dizendo “muitos, muitos”. A verdade é que eu nem lembro muita coisa porque só conseguia prestar atenção no jeito engraçado que ele se movia e ficava feliz falando sobre si. O rapaz mais novo vendia siri. Eu, depois de dois anos na universidade, cursando biologia, cheguei toda contente pra falar com ele e disse “nossa, moço, você vende caranguejo, né? como você faz pra pegar eles?”. O moço levantou a cabeça e disse “não, isso aqui é siri”. “Mas como assim é siri?", eu disse. Ele riu, se endireitou como se fosse um sabe­tudo e disse “moça, olha a perna de trás dele. Tá vendo? É siri mesmo.”. Ele pegou e me mostrou as pernas do bichinho e eu “é, realmente é siri em moço”, mas não fazia ideia se era ou não siri. Depois eu perguntei “e vem cá, como você faz pra pegar ele?” e o moço, rindo: “eu não sei não, você não vai saber”. Quando voltei, eu só conseguia lembrar da risada dos homens e do desconforto da mulher. Era como se uns ficassem felizes com as perguntas, se sentissem maravilhosos em responder e outros não tivessem tempo pra’quela “besteira”. Ou seja, eu adorei entrevistar as pessoas e ouvir elas falando (ou não falando!). Por ter amado minha primeira experiência, de fato, e gostar de perguntar e de ouvir, me encantei pela Etnoecologia. Quando meu orientador disse que eu poderia trabalhar entrevistando as pessoas, eu pensei “ai, meu Exú, é tudo que eu mais quero e é o que mais vai me deixar feliz na vida”. Nem esperei ele terminar de me explicar e já fui logo dizendo que queria fazer isso mesmo. Decidimos sobre o meu projeto e, depois de muito pensar, fui conhecer as pessoas que fariam parte do meu trabalho. Fui pro bairro Tapera II (ou Aeroporto, ou Matinha, ou Mantiba, ou Banca… tantos nomes que não sei qual usar) pra conversar com as moças. Cheguei lá na casa de uma delas e ela foi logo me pedindo desculpas pela casa bagunçada e mandando eu entrar. Me deu várias frutas pra comer e me disse que estava fazendo um feijão, pra eu esperar e comer também. Eu disse que 60 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV tudo bem. Perguntei se, enquanto o feijão cozinhava, eu poderia conversar com ela sobre o quintal dela e ela disse que “tá beleza” (KKKKK amei uma senhora de 70 anos falando beleza e fazendo o gesto de legal com a mão). Perguntei o nome dela, a idade e algumas outras coisas. Então eu fiz a seguinte pergunta: "mas a senhora tem quintal?” e ela olhou pra mim, com o ar mais debochado que conseguiu expressar, e riu “MAS É ÓBVIO! EU MORO NA ROÇA! ISSO AQUI TUDO É MEU QUINTAL. ALI, ALI, ALI. TUDO ISSO AQUI!”. Conversamos a tarde toda, ganhei mudas de plantas, comi o feijão e ouvi ainda que "Homem não leva ninguém pra lugar nenhum, o que leva é ser médica e cuidar de gente". É tão maravilhoso você sentir o conforto das pessoas pra te contar as coisas, rir com (muitas vezes de) você. Não importa se você pergunta certo, se você pergunta errado ou se você nem pergunta… o que realmente importa é o quanto você está disposto a ouvir qualquer coisa que a pessoa tenha a te dizer. E, além de saber muito sobre muitas coisas pela visão dos outros, meu ego leonino continua em alta e feliz em saber o que sei do que me ensinaram e contaram. Às vezes nem é a pergunta, às vezes é o jeito que você ouve que importa. 61 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV O voo da Fênix: das moléculas aos conhecimentos tradicionais Claudia Nunes Santos No volume 3 (pág. 122) desta coleção, narrei, brevemente, como trilhei o “caminho do meio” entre mucuras5 e indígenas na Reserva de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá6. Continuo aqui esse exercício autoetnográfico7, revolvendo e articulando memórias, encontros e desencontros, afetos e subjetividades. Ao tempo em que confesso a violência cognitiva sofrida enquanto construía minha identidade científica, revelo o meu modo de (re)significar o mundo acadêmico por meio da resistência intelectual. Almejo que o compartilhamento das minhas vivências (e sofrências) acadêmicas sirva como facilitador da interação com pessoas dos diversos campos em que transito. Atendendo, assim, à minha finalidade de intensificar o diálogo, sem querer eliminar as diferenças, mas realçá­las. Rever minha trajetória e seus desdobramentos, além de materializar a consciência do meu lugar na academia, possibilitou­me uma desafiadora perspectiva da direção não linear que os meus conceitos, ideias, percepções e representações me trouxeram, levando­me a vislumbrar a necessária e inadiável religação dos saberes. A opção pela Biologia foi em si uma contingência social, pois não havia (no final da década de 80) o curso desejado em Aracaju. Meus pais, vindos da região sergipana do baixo São Francisco, não dispunham de recursos financeiros, para que eu 5 Nome dado na Amazônia aos pequenos mamíferos escansoriais (transitam pelo solo e estratos arbóreos intermediários) ou arborícolas pertencentes à Ordem Didelphimorphia. 6 Unidade de conservação localizada entre os Rios Japurá e Solimões, na Amazônia ocidental. 7 Na autoetnografia, o pesquisador deixa de ser um observador passivo e passa a expor sua face mais humana e vulnerável (GERGER, M.M. e GERGER, K.J. "Qualitative Inquiry: Tensions and Transformations". The Handbook of Qualitative Research. 1025­1046, 2000). 62 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV pudesse cursar Psicologia em outro Estado. Assim, ingressei, em 1987, no Bacharelado em Ciências Biológicas da Universidade Federal de Sergipe (UFS). O fragmentador sistema de créditos vigente na universidade pós­ditadura militar, não impediu minhas frequentes incursões às prateleiras de Psicologia, Sociologia e Antropologia da biblioteca, em busca da compreensão da cognição. Também não me impossibilitou cursar créditos eletivos em disciplinas das Ciências Humanas. Bem como de empreender atividades políticas e culturais, através da militância estudantil. Como estudante de Biologia, realizei estágio no Projeto Tartarugas Marinhas (TAMAR), na Reserva Biológica de Santa Isabel, localizada no município de Pirambu, litoral norte sergipano. Durante o convívio com as famílias de pescadores, nasceu a minha inquietação quanto à finalidade da construção do conhecimento acadêmico, e à utilidade desse conhecimento para a transformação da condição humana no planeta. Essa angústia cresceu ao longo do percurso acadêmico que me trouxe até aqui. E ainda hoje, contextualizando os saberes para a compreensão dos problemas, cada vez mais globais e interdependentes, questiono: como romper com a opressora formalidade regulamentada das, já seculares, instituições de ensino e pesquisa? No afã de avançar no entendimento da capacidade cognitiva, optei por estudar mamíferos, os animais cuja formação hipocampal8 tornou­os capazes de armazenar informações, viabilizando, o que se conceitua como memória e aprendizado. Para tanto, não poupei esforços em enveredar por ambientes naturais, capturando as “inteligentes criaturas peludas”. Percorri os fragmentos que nos restam de mata atlântica em Sergipe (Crato, Serra de Itabaiana, área de influência do Polo cloroquímico), e posteriormente nos meandros dos rios amazônicos (Japurá, Amazonas/Solimões, Xingu). Sempre distribuindo estrategicamente armadilhas para capturar vivos os pequenos mamíferos habitantes desses lugares, onde se implantava o “mito moderno da natureza intocada”9, como regulamentava o Sistema 8 Parte do sistema límbico do cérebro de mamíferos, responsável pelas emoções e comportamentos sociais. 63 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV Nacional de Unidades de Conservação (SNUC). Acontece que, nestes lugares, habitavam também humanos que “tocavam” a natureza local com base em seus conhecimentos milenares (indígenas, quilombolas, afro­indígenas, ciganos) e nas suas práticas sustentáveis (pequenos agricultores, ribeirinhos, pescadores, extrativistas, pequenos comerciantes). Enquanto a Ciência me oferecia técnicas de captura, métodos para observar e mensurar as características moleculares da diversidade animal, eu me deslumbrava com a diversidade humana em realidades que não eram comumente narradas nas descrições da “área de estudo” dos livros e artigos científicos. Foram muitos fragmentos gênicos isolados e amplificados, a partir das amostras de tecido coletadas nos animais capturados; muitas sequências nucleotídicas analisadas e umas tantas hipóteses filogenéticas inferidas... ao tempo em que as histórias de vida, os saberes dos povos e comunidades tradicionais inflamavam a “bela plumagem vermelha” que eu encobrira com títulos acadêmicos obtidos por força das circunstâncias. Só me restou “juntar os ramos de canela, sálvia e mirra”10 ... O eco, em diferentes linguagens, vindo de povos das florestas, do mar, das estrelas, chegavam ao “monte de cinzas” em que eu jazia inerte e transmutada. E “quando pensa que não” ... as cinzas tomam forma novamente, pousando em um novo lugar ­ Montes Claros, Minas Gerais, onde acontecia o X Simpósio Brasileiro de Etnobiologia e Etnoecologia. Minhas primeiras observações sobre as conexões entre humanos e animais não humanos foram expostas, e novas conexões acadêmicas construídas. A ressignificação do fazer acadêmico foi também um bálsamo para romper o silenciamento identitário dos meus ascendentes (história para outra crônica). Neste pouso revigorante, encontrei pessoas pesquisadoras que me 9 Segundo Carlos Diegues é a ideologia preservacionista baseada na visão do homem como necessariamente destruidor da natureza, subjacente nos programas de criação de áreas protegidas dos sécs. XIX­XX. 10 Alusões à lenda da ave mitológica, Fênix, que possuía plumagem vermelho incandescente. 64 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV acolheram e incentivaram a permanecer Etnobióloga. Dentre estas, o atuante Etnobiólogo Eraldo Medeiros Costa Neto (Professor Pleno no Departamento de Ciências Biológicas da Universidade Estadual de Feira de Santana), passou de principal referência teórico­metodológica a “Guru” acadêmico. Com toda a força e beleza que a palavra “Guru” representa para mim. Quando convivi, na Índia, com Hindus no Asham11 Dayananda Saraswati, em Rishikesh (mais história para contar), aprendi que “quando o discípulo está pronto, o Guru aparece”. Eraldo apareceu e me fez acreditar que eu, finalmente, estava pronta para transpor as pedras do caminho com as asas de uma existência feliz. Preparava um ninho de ervas (canela, sálvia e mirra) onde seria incinerada pelo sol quando chegasse a hora de “morrer”. E renascia das próprias cinzas, sendo considerada um símbolo da imortalidade e do renascimento espiritual. 11 Deriva do termo sânscrito aashraya, que significa “proteção”, sendo usado atualmente para designar uma comunidade formada com o intuito de promover a evolução espiritual dos seus membros, frequentemente orientado por um místico ou líder religioso. 65 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV Des­matar Dérick Lima Gomes Sempre achei maravilhoso estudar as realidades de comunidades rurais, embora saiba que o real, além de maravilhoso, pode ser incrivelmente triste e terrível. Pouco tempo atrás recebi feliz o convite para participar de uma pesquisa sobre as catadoras de mangaba de Sergipe, onde muitas mulheres catam e vendem mangaba para sustentar suas famílias – hoje cada vez mais com a ajuda dos maridos, vítimas do desemprego que aumenta no campo e na cidade. Elas, que são sobretudo mulheres pobres e negras, têm lutado pelo livre acesso a áreas onde há gerações extraem a fruta, já que donos de sítios e empresários as têm cercado, desmatado ou cobrado pela coleta, além de às vezes ameaçarem de morte as que não obedecem às regras impostas. Na Amazônia, onde nasci e resido, as ameaças de morte são frequentes, e a própria morte, mais do que a vida, é o principal motivo pelo qual a região é retratada no noticiário internacional, com assassinatos de lideranças, indígenas ou da própria natureza. Apesar disso, nunca consegui encarar com naturalidade o fato de alguém saber que pode morrer a qualquer momento, seja aqui ou em Sergipe. Talvez a ameaça seja um blefe, uma forma de coagir ações indesejadas, talvez não. E assim a angústia da dúvida atinge não só o ameaçado, mas pais, parceiro, filhos e amigos. Quando concretizada, também mata uma parte de cada um deles; alguns não ressuscitam nunca. Talvez pensando nisso, muitas catadoras deixaram de coletar nos sítios cercados. Outras só os adentram depois de pagar as taxas cobradas por seus donos. Algumas mulheres, as mais dependentes da mangaba, continuam a coleta apesar das proibições, provavelmente porque as ameaças de morte são menos assustadoras do que o risco de morrer de fome. Para estas, a maior 66 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV tristeza, ou desonra, talvez não sejam as ameaças dos proprietários, ou que eles lhes chamem de ladras, mas o fato de precisarem viver agora com a raiva e o desprezo das companheiras que com muita dificuldade pagam pela permissão para catar. Ainda em Sergipe, uma novidade. Nunca tivera a chance de conhecer comunidades tradicionais que vivem no meio urbano, até visitar uma das últimas áreas com mangaba de Aracaju. Ali, há várias décadas, algumas pessoas coletam essa e outras frutas em um terreno da Aeronáutica, próximo ao aeroporto da capital. Elas conseguiram a permissão diretamente de um oficial da instituição, e desde então passaram a catar sem maiores problemas. Tudo mudou quando a Aeronáutica doou o espaço para a Prefeitura, e com as promessas desta de construir casas populares, a área foi ocupada por pessoas sem moradia. Durante a ocupação, várias mangabeiras e outras árvores foram destruídas, e a previsão é que o último resquício também seja. A principal liderança dos catadores de Aracaju, como todos do bairro aparentam saber, foi ameaçada de morte mais de uma vez por pessoas da ocupação. Uma delas aconteceu enquanto se preparava para conceder uma entrevista para um jornal televisivo local, o que assustou o próprio repórter. O ambiente hostil do lugar, uma ilha de conservação cercada por um oceano de desmatamento, e ruas sem saneamento básico, porém, contrasta com a serenidade desse homem que luta não só para que as mangabeiras permaneçam em pé, mas também, assim me pareceu, encara a possibilidade da morte como mais uma entre outras tantas possibilidades da vida, como a de conseguir com que não sejam expulsos dali. Só pude entender melhor, embora não com naturalidade, pessoas que enfrentam situações semelhantes depois de conversar com mais duas catadoras. A primeira me contou como seu pai adoeceu à medida que as árvores estavam sendo derrubadas, e a consciência do catador sobre seu mal­estar resultar disso. Ele e a sua família sempre viveram com a ajuda e a companhia das mangabeiras, por isso, quem o conheceu pensou que não havia 67 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV como ser diferente: a morte das árvores e a do homem significava uma só, afinal, o que é o homem se não a natureza que adquire consciência de si própria12? Mas o maior exemplo de que o ato de des­matar pode ser uma das formas mais cruéis de assassinato, e cuja ameaça também machuca como se fosse direcionada a um ente querido, talvez tenha sido oferecido pela segunda catadora, a mãe da liderança jurada de morte, ao comentar sobre a possível derrubada das frutíferas: “acho que aí vai ser que nem quando morre uma pessoa da família, que a gente fica com aquele peso no coração”. 12 Há mais de um século Élisée Reclus lembrava o que hoje a maioria finge esquecer. 68 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV Sensações e raciocínio Dianny Brigiette Cuadrado Pachón Sentir e pensar duas palavras que envolvem razão e coração. Seres sentipensantes (Eduardo Galeano nos resgatou), somos todos? Ou às vezes poucos? Nosso dia a dia e nossas decisões levam muito disso, pensar sentindo e sentir pensando. Hoje, faço parte de uma história que pensa em construir memória, lembrar costumes, resgatar práticas, semear esperança e claro, colher, colher legumes, grãos, ervas, tubérculos; colher saúde, colher bem­estar, colher soberania, colher agroecologia. Sentir para plantar? Sidrolândia, um município no meio do estado de Mato Grosso do Sul, onde mulheres, homens e crianças convivem e fazem parte de um grande e expressivo número de migrantes/assentados rurais. Eu, uma migrante urbana, falante da segunda língua materna mais falada do mundo, de pele mestiça, olhos achinados e traços indígenas, sentir para pensar? Todos migrantes, participando, conversando embaixo das mangueiras, ou qualquer outra árvore de boa sombra, tereré do lado nos hidratando, aos comuns 38 °C; muitas perguntas, muitas respostas, muitos pensamentos? Muitos sorrisos, muitos sentimentos? Nasci e cresci em uma cidade capital, onde por motivos óbvios o dia a dia é muito agitado. Junto aos agricultores familiares, senti outra realidade, ouvi histórias de sobrevivência, acampando na beira da estrada e compartilhando o camping com as cobras. Ouvi memórias familiares, onde orgulhosamente um homem me contava como, quando era criança, morava em uma ilha e só conversava com mais duas famílias. Também ouvi sobre as luas e os ventos importantes, nova para tudo o que pega brisa de fora e minguante para o que segura o passo do caminhante. E claro, falamos muito sobre as sementes, as sementes geracionais, as 69 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV sementes da vida, as sementes de casa, as sementes da família, sentir para viver? Sentipensar a etnobotânica parece ser intrínseco, indagamos sobre as práticas, registramos os quefazeres, acompanhamos as cotidianidades e vivemos de a pouco como os outros seres. Pensamos para sentir? Acredito que em boa parte, sim. 70 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV Xavier, el pescador Diego Pérez Ojeda del Arco Después de casi una semana de viaje en aquel barco, que a los pocos se iba convirtiendo en nuestro hogar, arribábamos por fin a nuestros últimos destinos. Las tres últimas comunidades quilombolas do Baixo Amazonas del municipio de Santarém/PA que nos tocaban visitar, ya se podían divisar a lo lejos desde dentro de la embarcación con la que lentamente nos acercábamos a tierra firme. Aquel territorio que se extendía ante nuestros ojos nos mostraba tímidamente el sendero que habría que recorrer para poder llegar hasta ellas. El acceso no fue fácil, nuestro barco inclusive no pudo llegar hasta la orilla, puesto que el pequeño puerto de la comunidad a donde nos dirigíamos se encontraba completamente inundado por las lluvias. Febrero es un mes en que el llamado inverno amazónico comienza a mostrarse más implacable, y las fuertes tempestades, que ya nos habían hecho probar de su furia a mitad de una unánime noche en medio del imponente Amazonas, hacían con que el nivel del agua subiera de forma considerable en toda la región. Finalmente pudimos arribar à beira do rio gracias a la pequeña lancha de apoyo con la que contábamos, y una vez allí, después de poder compartir un poco con la gente del lugar, rápidamente nos dimos cuenta de que los problemas que nos fueron relatados eran exactamente los mismos que habíamos podido escuchar en todas las otras comunidades visitadas. La falta de titulación del territorio por parte del Estado era sin duda la carencia máxima. Casi diez años habían pasado desde que fueron realizados los estudios necesarios para la titulación de los territorios colectivos, pero nada concreto había sucedido hasta el momento. Ni sombra de aquel bendito título que quizás algún día llegará, quien sabe solo después de que toda esperanza se haya 71 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV extinguido. La falta de una simple firma en Brasília hacía con que la espera y el sufrimiento de cientos de familias se prolongase indefinidamente. Esto sin mencionar a todos aquellos que ya habían partido, a los que se les tuvo que enterrar en una tierra que hasta en el último aliento de sus vidas nunca les perteneció. Es realmente increíble poder evidenciar frente a nuestros ojos como se sufre y se lucha tanto por la tenencia de la tierra en este país. Como la falta de una reforma agraria seria, que tome en cuenta no solo el área de la vivienda y el área de cultivo, y sí la propiedad colectiva de las comunidades en su conjunto (lo cual hoy en día podría parecer más una utopía que una realidad a ser concretizada), todavía hace arder esa herida abierta de injusticia que solo aumenta cada día que pasa. Y los problemas se incrementan, pues afloran los conflictos incluso entre las mismas comunidades quilombolas vecinas que pelean por algún pedazo de tierra que ni título de propiedad oficial tiene todavía. Del mismo modo, poblaciones quilombolas e indígenas no dan su brazo a torcer en la lucha por algunos metros de territorio que consideran suyo, cada quien basándose en su respectiva memoria ancestral. Todo por causa de tener y asegurar un lugar en el mundo en el que se pueda trabajar, crear y vivir. Y finalmente, está el problema de siempre, el de toda la vida, el problema de y con los hacendados; con los dueños de grandes extensiones de tierra sobrepuestas con territorios quilombolas e indígenas de uso colectivo. Si bien es cierto que en teoría estos fazendeiros serían indemnizados por el gobierno una vez emitido oficialmente el título de pose de las comunidades quilombolas, ellos saben mejor que nadie sobre las debilidades del poder estatal y se resisten a salir de esas tierras comunitarias. De esta forma, pueden continuar impulsando la cosecha de monocultivos a gran escala, seguir con la extracción ilegal de madera, así como también con la crianza del ganado bufalino que no respeta cosecha alguna. Ellos continúan cercando y cercando el territorio y los sueños de las comunidades tradicionales, dejándolas muchas veces prensadas contra el rio, sin tener hacia 72 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV donde avanzar, hacia donde escapar, cada vez más arrinconadas por la indiferencia del aparato estatal, y más recientemente por el agronegócio, que se confunde con este último, avanzando desenfrenadamente sobre cuerpos y territorios vivos. Una vez terminada nuestra visita a esas tres últimas comunidades quilombolas, las que por momentos nos mostraron parte de la todavía existente y desbordante Miseria del mundo, emprendimos el retorno, aun con nuestras cabezas intentando procesar la cruda realidad a la que habíamos sido expuestos. Sin poder pensar en otra cosa, solo pudimos despertar de esa especie de estado de trance en la que nos encontrábamos al percatarnos de lo complicado que iría a ser nuestra salida. Pasaba que el barquero que nos acompañaba, junto con nuestra lancha de apoyo, se encontraba a kilómetros de distancia, no pudiendo escuchar a nuestros llamados; tampoco había señal de celular, lo que tornaba imposible cualquier tipo de comunicación. Para nuestra suerte, al lado del puerto inundado al que habíamos llegado, encontramos a un joven pescador de no más de 30 años. Su nombre era Xavier, y se encontraba terminando de trasladar a unos chanchos hacia su comunidad, trabajo que realizaba para poder llevar algunos reais a la mesa de su hogar. Era sin duda un claro representante del campesinado más pobre de la región, que, ante la falta de un terreno mínimamente digno, tenía que realizar toda serie de trabajos para poder subsistir. Conversamos con él y se ofreció a ayudarnos, llevándonos así en su pequeña lancha hasta el barco que nos transportaba, eso sin antes no dejar de disculparse repetidas veces por el olor de orines y estiércol impregnado en su embarcación, el cual había sido dejado por los chanchos que se encontraba transportando. Pude conversar brevemente con él en el trascurso del corto viaje. Me contó que cuando su compañera vio llegar a lo lejos a nuestro barco, esta le dijo, desesperada, que retirase inmediatamente las redes de pesca que habían colocado más temprano en el lago, pensando que nosotros éramos funcionarios del IBAMA, el instituto brasilero del medio ambiente que, entre otras cosas, regula la pesca predatoria. Xavier me contó que le dijo 73 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV firmemente a su compañera que no lo haría, que no iba a retirar nada de ahí, y que, si el IBAMA venía, les iba a decir que él y su familia necesitaban comer, y que él no iba a robar. Finalmente, le pregunte cuál era su opinión sobre los conflictos internos que existían entre las propias comunidades quilombolas de la región, sobre los conflictos que ellos tenían con las comunidades indígenas vecinas, y sobre los conflictos que todos estos tenían con los fazendeiros. Yo sinceramente solo quería saber qué era lo que él sentía ante tantos problemas, ante tanta confusión, ante tanta injusticia. Xavier, mirando hacia el final del lago como buscando una respuesta a mí, y solo ahora me doy cuenta, inútil pregunta, simplemente, y sin dejar de mirar perdidamente el horizonte, me respondió: "O ser humano é um bicho muito louco..., às vezes eu prefiro trabalhar com porcos". (...) 74 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV Caminhos para etnofarmacologia entre os Igbo na Nigéria Elaine Elisabetsky A África e seus mistérios foram objetos de livros infanto­ juvenis da minha geração. O fascínio, fantasioso ou não, permanece. Nos caminhos pelos quais a Etno me levou tive o prazer de conhecer e conviver profissionalmente com o Prof. Maurice Iwu, um fitoquímico da etnia Igbo. Cientista da mais alta categoria, politicamente engajado na conservação da sociobiodiversidade e no desenvolvimento de produtos não madeireiros a partir de conhecimentos tradicionais, especialmente medicamentos. Professor em Nsukka (Nigéria), coordena o Biodiversity Conservation Program (BDCP). A Nigéria moderna é composta de mais de 250 grupos étnicos agrupados sob a tutela da Inglaterra. Como o processo imperialista (assim como em outras partes do mundo) manipulou e atropelou as diferenças culturais e os territórios originais persistem até hoje tensões políticas entre os grupos, e entre cada grupo e o governo federal. Ainda que a língua oficial do país seja inglês, os Igbo, Hausa, Yoruba e Fulani, entre outras etnias mantêm seu idioma vivo e largamente utilizado. Em 1993 fui convidada a participar da coleta de informações etnofarmacológicas para a empresa estadunidense Shaman Pharmaceuticals (Califórnia, EUA), cuja estratégia científica fundamentava­se no conhecimento tradicional dos povos como base para o desenvolvimento de novas drogas. Em sua rede de consultores, havia fitoquímicos e etnobotânicos de vários países, incluindo nomes de peso como Norman Farnsworth (Chicago, entre outras coisas, criador da base NAPRALERT), Richard E. Schultes (Harvard, considerado o pai da etnbotânica) e Koji Nakanishi (Columbia University, considerado por muitos um dos maiores fitoquímicos da história). Adotando códigos de ética em consonância com a convenção de biodiversidade (da qual os EUA não são signatários), a empresa criou e mantem a Healing 75 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV Forest Conservancy como braço da firma para repartição de benefícios13. Como resultado dessa estratégia científica, o medicamento Mytesi® foi aprovado pela Food and Drug Administration dos EUA (FDA) como a primeira droga botânica oral consistindo de uma entidade molecular nova (new molecular entity: NME), indicada para aliviar os sintomas de diarreia não infecciosa em pacientes portadores de HIV/AIDS em terapia com antirretrovirais. O ingrediente ativo é Crofelemer, uma proantocianidina complexa isolada e purificada do látex de Croton lechleri (Sangre de Drago), amplamente usado no Peru para vários fins, incluindo diarreia. Maurice desejava minha participação num congresso que iria presidir em Nusukku e negociou com a Shaman: a empresa custeava minha participação no congresso e em troca eu poderia fazer parte da expedição etnofarmacológica entre os Igbo (grupo ao qual Maurice pertence). Da expedição fizeram parte, o Dr. Thomas Carlson, então, médico e funcionário da Shaman (hoje professor na UCLA Berkeley), um professor da Universidade especialista em pólen (do qual infelizmente não me recordo o nome), A. Ozioko curador do herbário da Universidade de Nsukka, e Cosmos N. Obijiofor funcionário do BDCP. Para mim pareceu que era tudo de bom: iria conhecer a Nigéria, participaria do congresso e aplicaria meus conhecimentos etnofarmacológicos no mundo real do desenvolvimento de drogas a partir de conhecimento tradicional. De quebra receberia por meus préstimos à Shaman. Os Igbo têm embebido em sua tradição cultural o apreço por uma relação equilibrada com o meio ambiente. Totens, tabus e outras regras proibitivas são expressões de valores sociológicos e religiosos que refletem e reforçam o intuito de proteger os recursos ambientais, e a implementação de maneiras não destrutivas de 13 Trata­se de uma corporação diferenciada na medida que busca reconhecer a origem do conhecimento e promover a justa repartição dos benefícios. A descrição do manejo sustentável de C. lecheri com comunidades da Amazônia Peruana ilustra o modus operandis da companhia, tal como descrito por Steven King em diversas publicações. 76 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV explorar os recursos locais. O povo Igbo é dividido em pequenos reinados e cada comunidade tem seu próprio chefe e governo. As decisões comunitárias incluem os chefes da aldeia, seus assessores, agentes de saúde tradicionais e os mais velhos, respeitados por sua sabedoria adquirida com a experiência. A participação efetiva da comunidade é essencial, já que por vezes as necessidades individuais são sacrificadas em prol do bem da comunidade, e no caso de uma dada comunidade em prol do bem do grupo Igbo. Já conhecia a companhia e o método de ‘etnofarmaco’ desenvolvido pela Shaman para trabalho de campo, uma vez que, assim como o Dr. Iwu, eu também fazíamos parte do grupo de consultores da Shaman. O interesse maior era por antivirais, mas havia outras áreas de interesse. Me comuniquei com eles, e com Maurice sobre o congresso, mas pouco estudei a Nigéria ou os Igbo. Tudo isso seria logo após o Carnaval e o verão me ocupou de outra forma. O Congresso era em Nsukka, a uns 600 km de Lagos, onde chegava o voo. Mal acostumada, achei que ao chegar o resto estaria resolvido pelos que me convidaram e que me esperariam no aeroporto. Ledo engano. Dei­me conta das dificuldades ao perceber que antes de conseguir chegar ao saguão de chegada com a mochila (carregada com roupa para este congresso em Nsukka, e para outro no Oregon, USA, ao qual eu iria direto da Nigéria, além da roupa para o trabalho de campo) e o equipamento fotográfico (acumulado por anos, à época uma bolsa com câmera, lentes, baterias e apetrechos de limpeza) já tinha sido abordada 3 vezes com vistas a propina. No saguão me dou conta que não há ninguém. Espero, e nada acontece. Vou até um balcão de informação onde dizem que tenho de embarcar em outro aeroporto (o doméstico). As gurias solidárias me fazem desistir da ideia de ir de ônibus, argumentando que pode levar qualquer coisa entre 18 horas e três dias. E com a não tão velada informação de que eu poderia não chegar com vida. Ficam apavoradas que não haja ninguém por mim. E decidem chamar um táxi de confiança para me levar ao outro aeroporto. Me asseguram que uma vez lá arranjar passagem não seria problema. 77 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV Chega o táxi. Um carro cujo modelo não lembro, mas tipo um “galochão”14 amplo. As meninas explicam onde vou, me dizem quanto vai custar e me tranquilizam. Esse motorista, um senhor que elas conhecem, vai me deixar onde preciso ir. O carro começa a andar e, finalmente, dou uma relaxada; seja como for sigo adiante para o congresso, onde também encontrarei o pessoal da expedição. Logo em seguida começo a ouvir berros vários, acompanhados com dedos em riste apontando para o carro: “it is on fire”, “fire”, “it is on fire”. Quando consigo entender o marcante sotaque nigeriano percebo as labaredas saindo do capô do motor! Quero descer! Mas não quero deixar minha mochilona, com roupas para quase dois meses, nem meu caro e único equipamento fotográfico. Meio em pânico, peço ao motorista que pare o carro para eu descer. Ele, calmamente, faz um lânguido gesto com a mão e diz: “keep calm, the wind will take care of it”. Com um misto de horror e fascínio entendo finalmente que todo dia ou toda hora que ele liga o motor sai fogo, mas a estratégia de ficar calmo e andar para fazer vento e apagar o fogo parece plenamente adequada. Desisto e fico. Chego no aeroporto que era pequeno, bastante cheio, e parecido com uma feira. Mulheres elegantes com roupas coloridas, feitas de tecidos lindos, amarrados simplesmente, turbantes e colares vistosos. Homens em roupas tradicionais também muito coloridas, em geral uma calça larga e uma túnica até o meio das coxas. O falar alto. Os sorrisos abertos e muito brancos. Uma festa! Logo alguém me manda para um banco, onde encontro outra estrangeira branca. Não era um lugar específico, não havia mais nada que nos ligasse, mas fomos como que classificadas no mesmo arquivo e acabamos nos ajudando olhando as bagagens enquanto uma ou outra resolvia questões variadas. Consigo a passagem. Cada vez que se ouvia o anúncio de partida de avião todos se 14 Aprendi depois que os carros na Nigéria, pelo menos naquela época, eram em sua grande maioria meio arredondados, sem formas bem definidas devido aos inúmeros reparos artesanais na lataria. 78 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV movimentavam. Muitas vezes, saiam uns quantos ao mesmo tempo, ou pelo menos essa me parecia a lógica. Quando se passava pela única porta de embarque, deparávamo­nos com vários aviões de porte pequeno ou médio estacionados e cada um descobria a que aeronave deveria se dirigir. Filas de gente colorida indo para cá e para lá. Confesso que me senti insegura quanto ao estado de manutenção dos equipamentos aeroportuários. Aterrissei em Nsukka, e cheguei ao hotel onde o congresso acontecia. Ficaram felizes e surpresos de me ver. Alguma confusão com a data em que eu chegaria, explicava a ausência de apoio em Lagos. Encontro Maurice (que é chamado para esclarecer minha afiliação ao congresso, quarto e que tais) e, já no auditório assistindo a abertura do evento, Tom Carlson sentado ao lado do Darrell Posey. Ato contínuo, Posey propõe que troquemos a próxima palestra pela piscina. Aos poucos fui sendo tomada pela emoção de estar entre amigos, viva, bem faceira na piscina com uma bebidinha celebrando os caminhos para onde a ethnofarmaco me levou até então e continuava me levando. A expedição? Fica para outra história15. 15 Agradeço ao Lin Chau Ming pelo incentivo para que eu escrevesse esse texto e ao Roberto Regensteiner pela edição e sugestões. 79 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV O cúmulo do absurdo Érika Fernandes­Pinto Há alguns anos, descobri um tema novo de pesquisa e me apaixonei por ele – os sítios naturais sagrados. São montanhas, cavernas, cachoeiras, rios, lagos, árvores e outros elementos da natureza que têm um significado simbólico especial para povos indígenas e tradicionais, religiões ou linhas espiritualistas e a sociedade em geral. Lugares encantados, espalhados por todo o mundo, reconhecidos por culturas antigas e atuais, com histórias fascinantes recheadas de mistérios, magia e milagres. Movida pelo desejo de me aprofundar na temática, enveredei a fazer um doutorado sobre o assunto, mal sabendo que iniciava uma verdadeira jornada iniciática, que iria resultar em profundas transformações pessoais. Uma saga que me levou a muitas viagens, tanto exteriores como interiores. Em uma dessas aventuras aportei no meio do Oceano Pacífico, no lugar tido como o mais longínquo de qualquer outro do planeta – o Havaí. Inevitavelmente associado ao ideário de “paraíso selvagem”, se esse arquipélago fica “no meio do nada” ou “no centro de tudo”, depende da perspectiva do interlocutor. Fui participar de uma conferência e visitar dois Kahunas (xamãs havaianos) que conheci uns anos antes ­ Glenn Kila, carinhosamente chamado de Uncle Glenn, e seu sobrinho e aprendiz Chris Oliveira. Eles são uns dos últimos guardiões de conhecimentos ancestrais dos clãs nativos de Oahu, povo quase dizimado quando o território foi conquistado pelos guerreiros da ilha vizinha, liderados por um rei de nome Kamehameha I, o Grande, que contou com uma “ajudinha” de armas modernas cedidas por colonizadores europeus. Um processo que ficou conhecido como “a unificação do Havaí”, mas que nas letras miúdas representou o extermínio de muitos clãs que habitavam o arquipélago originalmente. 80 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV O Havaí é realmente tão bonito quanto a sua fama. Parece que foi montado como cenário para a gravação de algum filme – praias de areias brancas com coqueirais rodeadas por um mar azul turquesa, costões rochosos com ondas gigantescas, montanhas verdejantes com lindas cachoeiras de águas cristalinas, flores e aves coloridas e exóticas, o sol quase sempre brilhando no céu e muitos, muitos arcos­íris, às vezes três ao mesmo tempo. Um jardim de maravilhas, cenográfico e também meio “erótico”. Segundo nossos “personal Kahunas”, as paisagens têm vida e são interpretadas como partes do corpo, incluindo falos, vaginas e seios. As montanhas têm gênero, são masculinas ou femininas, também têm nome, personalidade e seus caprichos. Quando os raios de sol penetram em um determinado vale, por exemplo, ocorre tipo uma cópula cósmica, que fecunda a terra e gera a chuva que traz a fertilidade. A força da criação está por toda parte e as belas paisagens escondem inúmeros lugares sagrados que preservam o equilíbrio do planeta e assumem funções diversificadas. Tem lugares para celebrar a vida e para celebrar a morte, para honrar os ancestrais, para se purificar, para se refugiar, para pedir perdão, para enterrar os ossos daqueles que passaram dessa para melhor e para guardar os belly button (umbigos) dos que acabaram de chegar. Na minha estada tive oportunidade de visitar vários deles, acompanhada do meu filho e de um amigo querido, com nossos guardiões altamente especializados que mostraram um lado do Havaí que não se encontra nos guias de turismo. Em uma formação rochosa próxima ao mar, acessada depois de uma longa caminhada, tivemos uma cerimônia de batismo. Pegando nossas oferendas, Uncle Glenn invocou o poder espiritual do lugar – chamado de mana – e suas divindades – pedindo proteção e que fossemos recebidos como filhos na grande família havaiana. Mesmo sem entender o significado das palavras e dos cantos entoados em um dialeto antigo, senti a força e a beleza do que estava ali acontecendo. A cerimônia foi finalizada com o tradicional rito do Aloha, que envolve encostar testas e narizes e 81 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV compartilhar da mesma respiração – o sopro da vida – um gesto de comunhão e fraternidade. Uncle Glenn pediu, então, que escolhêssemos uma pedra do lugar para levar como lembrança daquele momento especial. Perguntei se isso não era um sacrilégio, como ocorre em certos lugares sagrados, dos quais não se deve levar nada. Mas ele garantiu que não, explicando que as pedras carregam o DNA do seu local de origem e que esse intercâmbio energético era benéfico. Alguns dias depois, sem o Uncle Glenn, fomos conhecer a Big Island e o famoso Parque Nacional dos Vulcões, onde está o Kilauea, morada da deusa Pelehonuamea – ou apenas Pele, para os íntimos – uma das referências mais importantes do grande panteão de divindades da mitologia havaiana. Como as ilhas foram criadas pela lava dos vulcões, Pele é considerada “aquela que molda a terra sagrada”, a deusa do fogo. Algo parecido com a nossa Yansã, porém mais temperamental e, em algumas situações, violenta, pois poder e destruição andam juntos. A lenda de Pele – em suas múltiplas versões – é uma das mais conhecidas do Havaí. Filha de um rei, teria nascido no Taiti, onde seu temperamento ardente e indiscrições com o marido da irmã a colocaram em problemas. Banida por seu pai, viajou até as ilhas havaianas em uma canoa, onde reinou soberana. Mas pouco tempo depois, sua irmã chegou e a atacou. Pele conseguiu se recuperar dos ferimentos e fugiu para outras ilhas, onde cavou várias fossas gigantes, incluindo as que agora formam a cratera de Diamond Head, em Oahu, e o vulcão Haleakala, em Maui. No entanto, foi encontrada pela irmã, que a assassinou. Morta em corpo, seu espírito transformou­se em Akua, a sagrada personificação de um elemento da natureza (no caso, o fogo), enquanto sua rival se transformou na deusa das neves, passando a morar no vulcão extinto Mauna Kea, conformando dois territórios sagrados distintos na Big Island. Para os havaianos, Pele exerce uma notável influência cultural e presença contemporâneas. Mesmo que a antiga religião tenha sido banida oficialmente em 1819, ela emergiu como um símbolo de resiliência, adaptabilidade e poder da cultura 82 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV originária das ilhas, sendo reverenciada em inúmeros cantos tradicionais. Ela representa não apenas os aspectos físicos das ilhas havaianas, mas também a paixão ardente da sua cultura. Pele controla os fluxos de lava e cabe não a irritar. Seus rompantes tanto criam como destroem a vida, formando novos vulcões que entram em erupção, cobrem a terra com lava e iniciam o ciclo novamente. O vulcão Kilauea é um dos mais ativos do mundo e entra em erupção regularmente. Quando se torna mais intenso do que o habitual, coloca as comunidades vizinhas em perigo. Em maio de 2018, por exemplo, várias tiveram que ser evacuadas. Os moradores fazem oferendas de flores e folhas de Ti (uma planta nativa sagrada) como recurso para apaziguar a deusa. As rochas que se formam do resfriamento da lava e geram a nova terra são chamadas de Kipuka e consideradas filhos de Pele. Os locais onde o fluxo de lava extravasa no mar, além de conformar um espetáculo de rara beleza, são sagrados. E conta­se que Pele lança sua ira implacavelmente sobre aqueles que os profanam. Ao visitar um desses sítios, seguimos todo o protocolo recomendado pelo Uncle Glenn – limpar os pés para retirar impurezas antes de entrar no espaço sagrado, nos apresentar falando nosso nome completo e origem, invocar os ancestrais e guardiões do lugar para pedir permissão e agradecer aos espíritos. Da mesma forma, para sair, também pedimos permissão e perdão por qualquer falta que possamos ter cometido. Lembrando da nossa experiência do batismo, pedi licença para levar umas pedrinhas, que guardei cuidadosamente na minha mochila e que me acompanharam de volta ao Brasil. Um tempo depois, pesquisando informações na internet, encontrei uma notícia que comentava sobre a quantidade de pacotes que a administração do Parque Nacional dos Vulcões recebia de pessoas que mandavam de volta pedras levadas por elas do Havaí, alegando terem sido afetadas pela Pele´s curse (maldição de Pele). Os relatos incluíam acometimento por infortúnios, má sorte, perdas e calamidades. Acreditando seriamente terem se tornado alvo de forças vingativas, pediam que 83 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV as pedras fossem devolvidas ao local de origem, com desculpas à deusa do vulcão. Coincidência ou não, lembrei que na semana em que cheguei de lá faleceu minha tia avó, na semana seguinte o meu chefe e na sequência o meu tio avô. Era só o que me faltava! Ir para o Havaí e voltar de lá com uma maldição da deusa do vulcão!!! Como logo eu, “especialista” em sítios sagrados, fui cometer uma gafe dessa? Era o cúmulo do absurdo! Alguns dizem que a tal maldição foi uma invenção de guardas­parques que queriam desencorajar os visitantes dessa prática, mas Uncle Glenn, a quem recorri, me garantiu que ela tinha base na cultura ancestral. Ainda que eu estivesse pronta para correr para o aeroporto e pegar o primeiro voo de volta ao Havaí, ele me orientou sobre como me “redimir” com a deusa do vulcão e devolver as pedras colocando­as no mar aqui mesmo no Brasil, pedindo que voltassem para casa. Era mais prático do que atravessar meio mundo, mas não tão fácil, já que eu morava em Brasília, a mais de mil quilômetros do oceano mais próximo. Viajei então para Curitiba e de lá segui até o litoral, onde fiz uma breve cerimônia reproduzindo a ritualística e as palavras conforme Uncle Glenn me orientou. Como as pedras iriam se deslocar de Paranaguá, no Oceano Atlântico, até o Havaí, no Oceano Pacífico, permanece um mistério para mim, mas Uncle Glenn disse para não me preocupar, que as pedras sabiam o caminho. Quisera eu ter essa sabedoria, de não importa onde estiver saber o trajeto de voltar para casa! Essa história me mostrou que há uma outra dimensão de códigos que devemos levar em consideração no trabalho de campo. Para além dos naturais e culturais, os espirituais, ditados não pelas pessoas, mas pelas entidades que habitam no mundus imaginalis – aquele espaço visionário intermediário entre a dimensão sensível e visível e o inefável transcendente. Aprendi, com meus cicerones havaianos, que é por meio da contemplação silenciosa da natureza que recebemos as melhores aulas sobre as leis e princípios que regulam a vida e governam o 84 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV universo. Algo resumido de forma muito simples no valor ancestral de Malama´aina – de que nos importando e cuidando da terra, a terra cuida de nós. Que o espírito havaiano possa nos contagiar e inspirar o profundo e reverente amor por todas as formas de vida e o respeito a todas as culturas. Mahalo nui loa! (Muito obrigada) 85 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV Banho Fausto Cafezeiro Enxáguo a nascente e lavo a porra toda Pra maresia combinar com o meu rio, viu? Minha lagoa engolindo a sua boca Eu vou pingar em quem até já me cuspiu, viu? (Elza Soares. Banho) Como pode ser a própria imagem fatal? Jamais consegui entender. Meu legado filosófico não ensina isso. O mito de Narciso que vocês contam e recontam desde o tempo de meus primeiros descendentes tem concepções muito estranhas. Primeiro, como pode um ser tão belo não amar? Como pode sua beleza o tornar tão vil e arrogante a ponto de desprezar o sentimento de outrem por si? Que espécie de beleza é essa dos gregos? É a forma física o que faz alguém belo? Onde está o belo nas coisas, na alegria de viver, no cultivar das belas coisas? Em algum lugar pode estar, no mito de Narciso não. Os especialistas vão me chamar de inculta. Vão dizer que não domino perfeitamente o conceito de beleza segundo os gregos. Pode ser. Mas não por isso que vou deixar de enunciar­me. Sou eu mesma a beleza. Sou a responsável pelo encanto do belo. Sou eu quem fertiliza o chão para que vida cresça. Sou eu a água doce dos rios, das cascatas, das nascentes, das cacimbas. Sou eu as águas do ventre e do nascimento onde vivem os bebês, meus protegidos preferidos. Sou eu aquela que se banha se olhando, admirando­me e vendo­me. Sou a dona dos espelhos que tiram os loucos do estado de loucura. Sou a que se banha, em um dos atos mais bonitos do candomblé, expressão dos meus ensinamentos ancestrais, criada por meus filhos brasileiros. Alguns deles dizem, inclusive, que fui eu quem a criou. De certa forma até foi. Fui eu, grafada, 86 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV movimentada, corporificada pelos meus descendentes. No meu banho, me lavo, num ato imenso de prazer e de êxtase. Lavo minha própria beleza. Ensino, lavando, algo que jamais os colonizadores castradores poderiam conceber: o amor pela beleza do próprio corpo. Todo ser tem sua beleza. Todo corpo é belo. O banho é, então, o cultivo da beleza. A verdadeira beleza, a beleza do mundo, das coisas, dos seres. Lavo minhas pulseiras. As de ouro, as de cobre, as de prata. O que são os adornos senão um sinal do amor à beleza do corpo? O corpo enfeitado merece brilho, merece resplandecer, merece ser contemplado e vivido. Com o movimento das águas, embalos os meus bebês, os filhos de toda a beleza roubada a seus pais pela diáspora. Dou a eles o sono, a calma, a paz e a certeza de que brilharão. E vocês, os ocidentais, matam meus bebês com armas e balas. Matam aqueles em quem eu derramei minhas águas. E para não me chamarem de narcisista, lanço mais um de meus segredos: sou Iyalodê, a Mãe­Senhora da Sociedade. Sou eu quem zela para que a sociedade viva bem. Sou a dona do bem­viver, sou a responsável para que os meus vivam o belo e o bom. Sou a beleza da vida social, guardiã civilizatória dos costumes. Vocês não amam a beleza. Meus espelhos sempre foram as águas, tão límpidas e tão sagradas que mostram a exuberância de meus filhos. Em certo momento, confesso que senti certa ojeriza a espelhos. Eles foram trocados por árvores. Em troca da destruição, da morte da Mãe­ Mata, deu­se a seres que viviam em harmonia o espelho narcísico. Tiveram a ousadia de entregar o olhar sobre a própria imagem em troca da destruição, como quem diz “ou sua beleza ou sua vida”. Só isso já é destruição. Por isso, espelhos não me agradaram. Foram os meus descendentes que me refizeram gostar deles. Os espelhos lhes mostravam sua beleza, algo de que eram alienados. Punham suas joias no espelho. Maquiavam­se. Minhas filhas me deram muito orgulho ao criar as irmandades, plenas de sua beleza e cheias de joias. Elas mesmas começaram a me dar espelhos de presente. E resolvi dançar com eles na Bahia, enquanto me banhava. Assim, reafirmei a posse sobre os espelhos, objetos meus, armas para perpetuar meu legado. O espelho de vocês 87 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV adoeceu aos meus, através de um processo que vocês, ocidentais, operam apesar de não o saberem explicar em sua totalidade. Vocês operam sem conhecer o processo, os meus conhecem o processo e não o operam. Dele são alienados. Os mitos são verdade. Eles têm o poder de fazer com que as coisas ajam sobre o mundo. Depois do mito de Narciso, todos os seus espelhos tornam­se amaldiçoados. Isto não ocorre por um poder mágico guardado nem pela invocação de frases, como o mundo fosse um grande caldeirão de uma bruxa velha e voluntariosa. Isto ocorre porque, por mais que não se fale dele, o mito continua existindo. Ele sempre explica algo. Ele ajuda a fazer as coisas acontecerem daquele jeito narrado. Meu povo o sabe, mas isso não o livrou de nada. Vocês, julgando os legados meu e dos outros deuses como crendice, superstição ou ignorância, não aprenderam que criaram uma armadilha para vocês. Se o soubessem, vocês mesmos estariam libertos desta maldição: a da imagem que seduz, enlouquece, apaixona. Narciso ensinou vocês a se olharem e se acharem lindos, e acreditar que o mundo gira em torno de uma beleza falsa. Uma beleza da aparência. Uma beleza do que se é por fora. Além disso, quando vocês desorientaram meus descendentes a ter referências brancas, os puseram numa armadilha ainda mais cruel: a de procurar imagens brancas. A de se apaixonarem por uma imagem que jamais verão como sua por mais que queiram ou se esforcem. Só é possível chegar ao belo vendo coisas belas. O olho que mostra o belo também é meu domínio. Esse é o adoecimento dos meus filhos na sociedade de vocês. Insatisfeitos em fazer deles coisas, insatisfeitos de inventar um sistema a hierarquizá­los, e insatisfeitos em tirarem­nos da minha terra, vocês os enlouqueceram. Vocês os fizeram sofrer, os fizeram estranhar a própria imagem. Meus filhos odiaram­se ao perseguir uma forma, um corpo, os traços que não eram os deles. Fiz, então, dos meus espelhos armas. Trago de volta a realeza perdida de meu povo. Arma com que os curo e que uso para evitar a morte da minha própria existência e a dos meus. Arma lavada 88 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV em meu banho epistêmico, que traz de volta a bela imagem do que se é. Eu como os meus, todos somos frutos da bela imagem do que se é. Apaixonando­nos por nós, amamos a todos nós, e por isso sou Iyalodê. Vocês são os que matam as minhas crianças a bala e os que enlouquecem meu povo com espelhos amaldiçoados. Mas maldições são laváveis. Sou eu mesma quem as lava. Se os espelhos de vocês foram ferramentas de dizimação, física e simbólica, os meus são armas de guerra, prontos a devolver a natureza nossa aos meus. 89 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV Da selva de pedra à selva amazônica e seus seres encantados Fernanda Carneiro Romagnoli Como uma legítima paulistana, cresci sendo uma “menina de prédio”, aquela que empinava pipa de sacola de supermercado na janela do terceiro andar e que brincava no playground cimentado. Nas aventuras imaginárias com meus amigos, explorávamos cavernas existentes embaixo de escadas, fazíamos treinamentos de sobrevivência na selva no escorregador e enfrentávamos dias no oceano em pequenos botes para chegar ao Japão, sem sair do mesmo lugar. Foram tantas aventuras! Mesmo com esse espírito aventureiro, a correria de São Paulo, o ônibus diário, a concretude da vida moderna dificultavam meu voo em ares mais puros. Quem diria que, ao terminar o Ensino Médio, eu iria optar pela graduação em Biologia! E, por uma das ironias do destino, quem diria que, ao terminar a graduação, eu seria aprovada para cursar o mestrado no estado do Amazonas, o que mudaria para sempre minha vida! Morando em Manaus, comecei a viver aventuras parecidas com as da minha imaginação de criança: fazer focagem de jacarés no escuro entre as árvores da floresta alagada, ouvir esturro de onça por perto sem enxergá­la, entre muitas outras.... E além do contato com a vida natural em si, a vida na Amazônia me trouxe o contato com os seres encantados da floresta. Minha pesquisa de mestrado envolvia botos­vermelhos, animais conhecidos por serem “misteriosos”, “sedutores” e até “mágicos”. Em uma pequena cidade às margens do Rio Negro, Novo Airão, em frente ao maior arquipélago de ilhas fluviais do mundo ­ as Anavilhanas ­ conversei com muitos moradores locais e pude conhecer melhor o que os botos representam para muitos amazônidas. Muitas vezes as pessoas estranhavam ­ eu, loira, olhos claros, com sotaque paulistano, perguntando sobre botos. 90 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV Não raro achavam que eu trabalhava para o IBAMA ou que estava colhendo informações sobre crimes para denunciar. Embora exista um conflito entre pescadores e botos na Amazônia ao disputar pelos mesmos peixes, muitas pessoas reconhecem a existência de um tipo de boto encantado, que pode seduzir mulheres mas que, acima de tudo, é protetor das águas. Ao começar minha conversa, procurava fazer as perguntas previstas na minha entrevista. Porém, ao falar sobre botos, todas as pessoas com quem conversava, começavam a me contar histórias sobre os botos encantados. Ao me sentar em um banco na calçada para uma conversa, um senhor narrou que seu amigo trabalhou como vigia de uma base de um órgão ambiental que ficava no meio do rio, sem casas ou outras pessoas por perto. Este amigo pescava usando bomba, mesmo sabendo dos danos ambientais que poderia causar. Certa noite, dormindo sozinho na base, ouviu alguém batendo na porta. Era tarde da noite e ele estava no meio do rio, não ouviu barulho de nenhuma embarcação chegando, fosse rabeta ou voadeira. Abriu a porta. Era um homem muito distinto, vestido de branco e que usava um chapéu. Este homem olhou em seus olhos e lhe falou firmemente para que nunca mais pescasse usando bomba. Virou­se e mergulhou no rio. Era um dos botos encantados lhe fazendo uma advertência para proteger os cardumes e o rio. O tal vigia nunca mais pescou com bomba. Na mesma cidade, uma mulher de uns 40 anos se sentou para responder a minha entrevista e me contou que seu pai, quando jovem, era pescador e pescava demais, usando malhadeira e retirando muito peixe dos rios. Certa vez, pescando próximo a uma ilha, ele e seu colega encostaram a embarcação e pararam para descansar. Pouco depois, viram um “cardume” de botos chegando perto de onde eles estavam. Os botos subiram em terra e se transformaram em cavalos que corriam velozmente, assustando os homens. Eles também entenderam o recado: não poderiam mais pescar de forma predatória. Ainda andando por Novo Airão, parei em uma casa onde havia uma espécie de oficina. Um senhor bem velhinho veio me 91 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV atender. Sentou­se e conversou comigo, respondendo minhas perguntas e me contando suas vivências. Me contou sobre seus dias de caça e que já havia encontrado com a matinta várias vezes. Certa vez, a matinta apareceu de repente e exigiu fumo para que fosse embora. “Foi o jeito dar o fumo pra ela...” Em seguida, me perguntou: “você acredita que eu já vi a matinta?”. Naquele momento, eu não sabia o que responder. Não queria parecer uma pessoa cética ou dar a impressão de que não estava acreditando no que me contava. Meu impulso foi responder “eu nunca passei uma noite no meio da floresta, então, não posso duvidar do que não vivi”. Anos depois realizei pesquisa em uma comunidade no meio do Rio Amazonas, próxima a Santarém, Pará: a Água Preta. Neste momento, meu trabalho como etnobióloga já havia amadurecido e passei a priorizar o tempo de conversa com as pessoas. Já não levava roteiros preparados, apenas ideias gerais do que queria conversar. Assim, as conversas se tornavam mais longas e a riqueza das histórias maior. Neste local, muitas pessoas contaram sobre os botos assobiando enquanto rodeavam as casas. Saíam das águas e se transfiguravam em homens, especialmente em época de festa e nas casas onde havia moças. Os botos “faziam medo” noites inteiras com aquele assobio, e o chefe da família, muitas vezes, chegava a atirar com a espingarda para espantá­los, que, rapidamente, voltavam para a água. Contaram sobre botos que andavam nas trilhas e fugiam quando alguém focava com a lanterna. Contaram sobre um boto que ficava sentado no banco da igreja. Em uma das casas, um senhor idoso me contou sobre a cobra grande. A comunidade Água Preta fica em uma região do Rio Amazonas onde o rio é recortado. Anualmente, há queda de barrancos e sedimentação de terras, mudando a configuração do rio. Como o rio muda demais, o senhor afirmou que só poderia ser a cobra grande quem fazia isso. Afinal, quem mais teria o poder de aumentar a profundidade e a largura do rio? Além disso, em dias de tempestade, ele ouvia o estrondo feito pela cobra grande. E quando isso acontecia, podia ter certeza de que o rio tinha 92 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV afundado mais. As pesquisas no interior da Amazônia me mostraram que, para os Amazônidas, especialmente aqueles que vivem mais próximos aos rios e florestas, a relação com a natureza é muito mais complexa do que a maioria das pessoas modernas de São Paulo pode imaginar. Árvores, animais, ecossistemas são mais do que isso, são história, espiritualidade, elo das pessoas com as próprias pessoas. Nas selvas de pedra, muita gente busca isso em igrejas, na arte ou em outros meios, mas na floresta, tudo é tão mais acessível. É intrínseco ao ser humano da floresta! 93 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV Cheguei numa bacia azul...e fui amada!16 Flávio Bezerra Barros Era um típico domingo de julho de 2017, em Belém do Pará. Na paisagem amazônica se via mangueiras, jardins e samaumeiras gigantes. O sol brilhava intensamente e o calor agitava a todos e todas. A Praça da República estava repleta de transeuntes, comerciantes, crianças, e toda a sorte de gente a andar de um lado pra outro visitando as barraquinhas que vendem os mais diversos tipos de produtos, inclusive comidas e bebidas. Típicos bombons do Pará, também havia. Visitar a feirinha da República nesta metrópole amazônica é um programa tradicional de domingo. Era possível observar pessoas passeando com seus animais de estimação, e também famílias e amigos a espalhar suas toalhas no chão a fim de preparar um singelo piquenique. Amanheci muito contente neste dia, pois na noite anterior havia sonhado que este domingo seria o meu dia D. Sonhei que encontraria pessoas muito especiais e que uma amizade nasceria a partir desse encontro. Achei estranho terem me carregado numa bacia azul junto com a minha irmã, pois apesar de querer conhecer uma praça desde sempre, nunca lá tínhamos ido, nem tampouco sabíamos para onde estavam a nos conduzir. No percurso de nossa casa até esse tal lugar, ficávamos a pensar: para onde estão nos levando? O que vão fazer conosco nesta bacia azul? Quando chegamos, constatamos que o tal lugar era mesmo a praça. Eu apaguei, passei mal com o calor e o percurso da viagem. O que aconteceu daí em diante, infelizmente não lembro. Me deu assim uma zonzeira, uma dor de cabeça, um passamento, não sei explicar. Quando acordei estava num lugar diferente, com pessoas não­familiares. Minha irmã já não estava comigo e senti imensa saudade dela. Fiquei a pensar para onde a teriam carregado. Achei estranha aquela casa sem quintal, nem árvores, 16 Uma homenagem a Luluca. 94 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV nem terra para eu brincar, correr, embolar pelo chão. O cheiro não era o mesmo cheiro que eu estava familiarizada. Fiquei triste, quieta, mas o que mais me doía era terem me separado da minha irmã. O tempo foi passando e eu não conseguia recordar o que teria de fato se sucedido naquele bendito domingo de julho. Como minha memória não trouxe as respostas que eu buscava, fui vivendo e aprendendo a conviver com aquelas pessoas novas, com vozes desconhecidas, costumes muito particulares. Tenho recordação que eles cuidavam muito bem de mim, me davam comida, eram carinhosos, me colocavam no colo, ensinaram­me coisas muito bacanas para minha vida. Deram­me um nome. Fui crescendo, crescendo, e quando me dei conta, percebi o quanto eu era importante neste novo lar que, apesar de não ser como eu gostaria, era repleto de harmonia, amor e carinho para comigo. No começo de tudo eu considerava eles (Fábio, Marcela e Thales) meio preconceituosos, porque achavam que eu era uma coisa, mas eu era outra. De vez em quando me investigavam, pegavam nas minhas pernas, apertavam minha cabeça, espiavam meu sinal alvo como leite por debaixo do meu peito...Por causa do meu jeito estranho e quieto, essas pessoinhas até imaginaram que eu era doente (logo julgaram: ela vê mal, ouve com dificuldade, anda de maneira cambaleante) e até me levaram pro médico. Foi hilário, pois ele, o médico, logo sentenciou: ela não está doente, goza de boa saúde! Na verdade, eu apenas era infante ainda e estava me desenvolvendo. Flagrei inclusive a Marcela ligando para sua irmã descrevendo estas características de adoecimento e pedindo conselhos. Eu pensei: tudo bobagem! Depois percebi que os vizinhos deles não gostavam de mim e fiquei hiper triste quando dona Francisca me chamou de preta e feia, colocando pra fora seu racismo. Entretanto, numa certa ocasião, após este episódio, ouvi os donos da casa conversando e criticando a beata racista, demonstrando assim cuidado comigo, e se preocupando com as injúrias proferidas contra mim. Neste dia me senti bastante orgulhosa! Minha vida foi seguindo, a saudade de minha irmã foi 95 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV aumentando e, apesar dessa ausência, nunca perdi a esperança de reencontrá­la viva e feliz. Uma das coisas que eu mais gostava era tomar banho com a Marcela, que sempre reservava um xampu muito cheiroso. Eu também tinha uma toalha e a cama era bem aconchegante. Quando ela dizia “vamos tomar banho?”, eu corria em disparada para esse banho, pois adorava. Com relação à comida, não era muito afeita, pois achava que aquilo não era comida digna: repetia demais, cheirava esquisito...até que um dia resolveram diversificar depois de meus constantes protestos de fome, e eu fiquei bem agradecida. Hoje como coisinhas bem gostosas e sou gulosa. Assumo mesmo que gosto de comer, e muito. Com o passar do tempo, nossa relação de amizade foi crescendo e se fortalecendo, os laços de afeto iam ficando cada vez mais intensos. Eu sempre fazia festinha quando Fábio chegava à noite do trabalho e ele me abraçava, dizia palavras carinhosas comigo e correspondia às minhas expressões de amizade verdadeira. Uma vez até ouvi ele dizer que nunca tinha me visto de cara feia, emburrada ou guardando rancor, como seus parentes fazem de vez em quando. Adoro ouvir esses elogios. Lembro que nessa jornada da vida, ele até gritou comigo e me deu uma palmadinha, pois eu fazia algumas besteiras, como falar alto e dar cabo de coisas importantes da casa. Ele dizia assim: para de falar alto para não incomodar a vizinhança. Eu demonstrava resignação naquele momento, ficava meio entristecida, mas logo entendia que isso fazia parte da sua incapacidade de me compreender, de conhecer as profundezas do meu universo particular e logo o sentimento de tristeza cessava e tudo voltava ao normal. A vida foi seguindo e nossa relação foi só se estreitando. Até os dias atuais eu gosto muito de ficar perto do Fábio, deitada por onde ele estiver...é tanto carinho que tenho por essa criatura que, até quando ele vai pro banheiro, eu vou atrás, e nem me importo com os cheiros estranhos que aparecem nessa parte da casa quando nós dois estamos por lá. Uma das coisas que mais gostamos de fazer juntos é passear a noitinha na Praça da República. Lá eu posso me encontrar com meus colegas e trocar ideias interessantes. Rola paquera, fofocas, brincadeiras e até 96 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV visitas não bem­vindas. Volto pra casa quase sempre cansada, esbaforida. Contudo, uma das coisas que mais me alegra é saber que o Fábio aprende comigo, me escuta, me observa, mesmo não entendendo muito bem minha maneira distinta de se comunicar. Vejo que ele me olha nos olhos, e eu encaro ele. Percebo claramente seu esforço. Consigo até imaginar o que ele pensa de mim...ouvi outro dia ele contando que eu tenho capacidade de ver o que ninguém vê. E é verdade. Às vezes eu falo alto, fico arrepiada, com olhar fixo para um lugar. É porque estou vendo algo estranho, estrangeiro e invisível aos olhos dos meus companheiros de lar, e eu preciso agir no sentido de afastar aquela força metafísica. Tudo vai se apaziguando e eu me acalmo. Gosto também quando o Fábio se agacha para falar comigo olhando bem dentro dos meus olhos, demonstrando respeito. Mas teve um momento de minha vida que eu passei um perrengue medonho. Isso foi em janeiro de 2018, quando eles três, Fábio, Marcela e Thales viajaram e não me levaram. Ouvia eles articulando tudo escondido de mim. Não queriam que eu conhecesse o plano deles, mas eu percebia, sentia tudo o que estava acontecendo. Quando o momento chegou, eles me levaram para um lugar distante e lá me deixaram. A despedida foi dureza, para eles e para mim também. Havia comida, parentes meus distantes para brincar e trocar ideias, mas eu sentia falta do Fábio, Marcela e Thales. O tempo passava e nada deles irem me buscar, até que um certo dia me apanharam e tudo voltou ao normal, apesar da ferida que se fez na minha perna e nunca contei para eles o que havia ocorrido por lá: eles não entenderiam mesmo. Quando entramos no carro, foi só alegria. O tempo foi passando e vocês não sabem o que aconteceu. Fábio e Marcela me levaram pra praça num daqueles domingos e sabe quem a gente encontrou? Verônica, a minha irmã. Ela estava grande, bonitona, sadia, e bem danada. Ela era diferente de mim, pois enquanto eu tinha uma personalidade calma, Verônica era bastante ativa. Só sei que o Fábio combinou com a Isadora (a mãe da Verônica) de a gente se encontrar de vez em quando, o que foi possível duas vezes. Fui 97 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV levada para a casa da minha irmã e lá pudemos colocar a conversa em dia, falar de nossas vidas, de nossas casas, das pessoas com as quais a gente convivia. Ficamos muito animadas e brincamos muito, corremos juntas, dormimos coladas uma na outra e para minha surpresa Verônica me contou tudo o que havia acontecido naquele domingo na Praça da República. É que o Cristiano tinha nos tirado de nossa mãe e resolvido nos dar para alguém. Ele nos colocou naquela bacia azul e foi lá na praça que ele deu a gente, disse Verônica. Eu fui pra casa da Isadora e você, Luluca, foi pra casa desse pessoal, continuou Verônica. Depois lembrei que alguns de nossos irmãos morreram. Nós somos sobreviventes nessa história. Verônica continuou contando: quando o Cristiano nos deu, ele disse que a gente era um tipo de gente, mas erámos outro tipo de gente. É por isso que seus donos se questionavam. Não era culpa deles, não. Você tinha que continuar crescendo para eles saberem que você não era o que tinham dito, mas guardava relação de alguma forma. Eu imaginava naquele dia como você estaria e em qual lugar e pensava que você imaginava o mesmo. Só que você, ao chegar à praça, ficou muito abalada e desmaiou e eu, não. O que importa é que você está bem, feliz e encontrou pessoas incríveis, que aprendem a ser humanos melhores a partir dessa relação de aprendizagem e afeto, demonstrando que quando se está aberto a experiências, não existe fronteira entre nós, disse Verônica a Luluca. 98 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV Por que SBEE e não SBE? Não sei! Só sei que foi assim... Francisco José Bezerra Souto Eu sempre gostei muito de História. Acho que desde menino na escola, creio. Hoje, mesmo dando aula na área de Zoologia, Etnoecologia e Ecologia Humana, sempre que possível utilizo a História para contextualizar um determinado assunto ou conhecimento no tempo. Pra isso, uso muito a justificativa do prof. Sebastião Pimentel Franco (UFES) quando diz que “com a História entende­se o passado, compreende­se o presente e faz­se projeções para o futuro”. Acho importante nos localizarmos na escala dos tempos. Até pra que entendamos um pouco, como bem cantava Cazuza,“por que que a gente é assim?” Vou fazer aqui, então, um exercício de memória. Vou voltar ao ano de 1996, quando em Feira de Santana­BA foi realizado o I Simpósio de Etnobiologia e Etnoecologia. Vão­se aí perto de 24 anos. Talvez, você que esteja lendo esse texto nem tinha nascido ainda (nóis é antigo, mas nóis é jovem, tá?)! Ou talvez você que esteja lendo, assim como eu, estava participando daquele histórico evento (tu é antigo, mas é jovem, né?). Lógico que cada um que esteve lá tem suas lembranças, suas vivências, sua visão dos fatos, que podem (e devem) ser até diferentes das minhas. Não tenho, portanto, a pretensão de contar “a história da SBEE”, mas apenas minha visão nela e dela naquele distante evento. E foi um “senhor” evento! Por ser o primeiro, lógico, mas também pela constelação de grandes nomes da Etnobiologia e Etnoecologia que dele participou. Estavam lá Brent Berlin, Victor Toledo, Darrel Posey, Elaine Elisabetsky, Zé Geraldo, Márcio Campos, Ordep Serra, Alpina Begossi, Nivaldo Nordi, entre outras estrelas que não lembro agora. Estavam também algumas figuras ainda neófitas na época, mas que hoje são grandes nomes de nossa SBEE, tais como Ângelo Giuseppe (UFRPE), José Mourão (UEPB), 99 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV Eraldo Costa Neto (UEFS), Fábio Bandeira (UEFS), Ulysses Albuquerque (UFPE), Nivaldo Peroni (UFSC), Natália Hanazaki (UFSC), Rumi Kubo (UFRGS), Gabriela de Souza (UFRGS), Lin Chau Ming (UFSC), Cristiane Seixas (Unicamp), sem esquecer de nosso querido e saudoso Guy Nishida (Little Japa). Foi uma verdadeira festa! Eu não aproveitei mais dela porque não tinha conhecimento suficiente de Etno e nem muita noção da dimensão da importância daqueles nomes que a gente assistia falando nos auditórios ou trombando nos corredores! Pra vocês terem uma ideia, nem tiete eu consegui ser! Não tirei foto com ninguém! Minto! Tirei uma foto clássica de Ângelo com Posey que sei que ele guarda com muito carinho! Me arrependo muito disso! Hoje, eu tiraria fotos com muitxs delxs! Lembro­me que fiz um mini­curso com Victor Toledo, uma das figuras mais importantes da epistemologia da Etnoecologia. Seja pelo espanhol rápido, seja pela sua abordagem, não entendi muita coisa. Ainda assim, pude dizer que fiz um curso com Toledo! Aliás, um idioma comum no Simpósio era o português com fortes sotaques estrangeiros. Nesse sentido, creio que poucos lembram (com exceção de Ângelo), uma palestra de Brent Berlin, o papa da Etnotaxonomia, heroicamente tentando falar português. Num determinado momento, buscando desesperadamente encontrar uma palavra no seu vocabulário, sem sucesso saiu com essa: “Aaaaaah!!! My brain está queimada!”. Parou um pouquinho, pensou e completou “queimada ou queimado?”. Rimos muito da cena na hora! Sim, mas deixe eu ir logo pra parte que se refere ao título desse texto. Próximo ao final do evento, tivemos uma assembleia na qual seria criada a nossa Sociedade. Surgiu um dilema inusitado: qual nome teria? Sociedade Brasileira de Etnobiologia, seguindo a tendência da já criada Sociedade Internacional de Etnobiologia? Ou seria Sociedade Brasileira de Etnoecologia, termo utilizado por Toledo que incluiria a Etnobiologia, explicitado em seu clássico trabalho “What is Ethnoecology?” ? Falou­se muito naquele momento, mas não se chegava a um consenso... Eis que, com toda sua falta de noção e conhecimento, 100 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV vai Franzé, pede a palavra e sugere pra coordenação da mesa que fosse discutido os conceitos de Etnobiologia e Etnoecologia, até pra que as pessoas tivessem mais clareza do que significava cada coisa, ajudando assim a encontrar o melhor nome. Como resposta da mesa, foi dito: “Não é necessário, pois essa é uma questão já totalmente ultrapassada”. Quem me falou isso? Não digo aqui nem f...orçando!!!! Cara, fiquei com muita vergonha na hora! Explicitei minha ignorância pra todo mundo e fiquei com a desagradável impressão que só eu não sabia daquilo. Calado estava, calado fiquei. Ali... murcho, murcho! Seguiu­se a assembleia e ficou meio que acertado que o nome da sociedade seria Sociedade Brasileira de Etnobiologia. Nisso, inesperadamente, o prof. Marcio D´Olne Campos (Unicamp), como eu disse anteriormente, uma das estrelas do evento, falou: “Então, não poderei fazer parte dessa Sociedade, pois trabalho com Etnoastronomia! E isso não se encaixa na Etnobiologia!” Pronto!!!! Criou­se um vespeiro danado no auditório, pois ninguém concebia que ele não fizesse parte dessa nova sociedade que ali nascia. A partir daí, desenrolou­se uma discussão histórica sobre o que era de fato Etnobiologia e Etnoecologia, suas características, epistemologias, tendo como debatedores as maiores autoridades do assunto do Brasil e do mundo! Cara! Era isso que eu tinha sugerido! Juro! Lembro demais que depois comentei isso um pouco indignado com o amigo Nivaldo Nordi e ele me disse: “É, você fez a sugestão certa pra pessoa errada...”. Bem, guardada a minha insignificante indignação, foi um verdadeiro show de discussão! Brilhante mesmo! Ao final, optou por um nome híbrido que levasse tanto em conta o critério utilizado pela Sociedade Internacional (International Society of Ethnobiology), como a abordagem, pode se dizer inovadora à época, de Victor Toledo. Foi criada naquele momento, portanto a Sociedade Brasileira de Etnobiologia e Etnoecologia, a nossa SBEE! Restou um pequeno dilema de natureza fonética. Seria pronunciada “Sbii” , lembrando o “bee” da abelha em inglês; ou “Sbéé”, do berro do bode, tão característico daqui de Feira de 101 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV Santana e do Nordeste. O bode venceu a abelha anglo­saxônica, mas ainda há controvérsias pra alguns... Como eu disse lá em cima, muito provavelmente, outras pessoas terão visões, opiniões ou lembranças distintas do que foi esse momento crucial da história de nossa SBEE. É como dizia aquela maravilhosa música dos Beatles (Fixing a Hole), “And it really doesn't matter if I'm wrong I'm right. Where I belong I'm right” (Realmente não me importo se estou certo ou estou errado. Onde me enquadro, estou certo). Ou, pra não fugir do popular, o velho ditado “quem conta um conto, aumenta um ponto” também me ajuda. É isso... Olhar pra trás é um pouco fazer história. Estando presente é vivê­la. E eu estava ali, ao lado dela. E, por graça do destino (ou do bom senso do grande Márcio Campos), me senti como se ela tivesse também ali... do meu lado. 102 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV Quem tem medo da Ecologia Humana? Francisco José Bezerra Souto Eu tenho! Melhor, eu tinha...Calma aí, vou explicar. Venho trabalhando com Etnoecologia já há bom tempo, inclusive ministrando cursos e disciplinas. Ainda que tenha acumulado uma certa bagagem, nunca ficou muito claro pra mim qual a diferença entre Etnoecologia e Ecologia Humana. E olhe que sempre fui chegado nas epistemologias! Quando alguém me perguntava isso, eu sempre saía com a resposta: “tem gente que acha que é a mesma coisa... Tem gente que acha que é diferente... Eu acho que é a mesma coisa, só que é diferente”. Piada besta, mas que servia pra me safar dessa pergunta saia justa. Brincadeiras à parte, sem problemas, eu sempre assumia que não sabia. Mas o destino é um danado! Prega peças na gente. Há dois semestres atrás, nosso ilustre Governador do Estado da Bahia, atropelando o Regimento das Universidades Estaduais baianas, aprovou na surdina, uma medida que nos obrigava a ter uma carga horária maior em sala de aula. De uma hora pra outra, foi um corre­corre geral de gente buscando disciplinas pra ministrar. E eu, que não tive jeito, entrei nessa correria. Já ministrava Etnozoologia e Metazoários e fiquei desesperado, pois nem tempo teria para montar uma nova disciplina optativa. Fui no Colegiado do curso e as disciplinas que constavam no currículo e que eram um pouco do meu perfil, já tinham sido assumidas por colegas. Restaram apenas duas: Mecânica Hidrostática de Espaçonaves Siderais I (brincadeira! Não era isso, mas era algo tão estranho quanto) e… Ecologia Humana! Disciplina criada e ministrada por Zé Geraldo (José Geraldo Marques), que após sua aposentadoria, foi assumida por Eraldo (Eraldo de M. Costa Neto), mas que não estava sendo ofertada no momento. Juro, cheguei a pensar em assumir a tal Espaçonave... na esperança de que ninguém se matriculasse nela. O coordenador me disse que os alunos adoram 103 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV disciplinas esquisitas e que as chances de aparecer alguém querendo fazer era razoável. E aí eu teria mesmo que estudar Espaçonaves, algo total e literalmente fora do meu universo! Tive que pegar a danada Ecologia Humana! Você pode estar pensando que isso era bobagem minha. Que não tinha nada demais em assumir uma disciplina correlata. Você está pensando isso porque não é um virginiano que precisa de tudo bem esquematizadinho e organizadinho pra se sentir confortável. Além de eu não dominar o assunto, não ter muitos livros da área e de ser de uma disciplina que não foi criada por mim, as aulas começariam dali há um mês! Estresse total! E agora? O que fazer? Corri pra pedir ajuda para os universitários! Pros professores universitários, melhor dizendo. Olhe, se tem uma coisa que na vida acadêmica eu fiz bem foi amigos! E eles não me faltaram nessa hora! Por Zap e por e­mails saí perturbando meio mundo de gente, pedindo arrego! Arrego, significa aqui textos slides e vídeos sobre o tema, pois muitos deles já tinham tido e têm experiências em ministrar Ecologia Humana. Perturbei Mourão (José da Silva Mourão/UEPB), Ângelo (Ângelo Giuseppe Chaves Alves/UFRPE), Nivaldo (Nivaldo Nordi/ex­ UFSC), Tigu (Gustavo Soldati/UFJF), Nivaldo Peroni (UFSC), Natália (Natália Hanazaki/UFSC) e Eraldo (Eraldo Medeiros Costa Neto/UEFS). Todos me mandaram vários textos e slides, o que deveria ter me tranquilizado... Mas não foi isso que aconteceu. Cada um deles tinha sua visão, metodologia, abordagem particular da Ecologia Humana. Lá vai eu ter que trabalhar esse calhamaço de informações, junto com os livros que comprei correndo, faltando duas semanas pra começar as aulas! Quero aqui lembrar que um virginiano é um ser totalmente avesso à insegurança. Só quem é, sabe! Pirei do cabeção! Mas encarei! Pra início de conversa, tive que fazer um apanhado dos conceitos disponíveis de Ecologia Humana, até para definir melhor como seria a minha abordagem. Pra minha surpresa, descobri que existem inúmeros desses e com elementos e 104 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV critérios também bem distintos. Depois de estudá­los e de me espantar com a abrangência do tema, resolvi criar o meu próprio conceito, mas que não tive coragem ainda de publicá­lo. Seria algo como “o estudo interdisciplinar entre tudo e uma caralhada de coisas!” Juro que teve gente que gostou! Aperreios à parte, tive que exercitar o que talvez seja o meu maior talento acadêmico: sistematizar informações... e foi ótimo! À medida que fui fazendo isso e me inteirando das coisas, parece que o fio do novelo foi se desenrolando. E com isso, o virginiano foi se acalmando e, pasmem, curtindo! A abrangência do assunto que tanto assustou no início, virou elemento pra se usar nas aulas reportagens (da BBC à Folha), filmes (de Dança com Lobos ao O Sal da Terra), documentários (O Povo Brasileiro a Vento Forte), músicas (de Tom Zé à Bjork) programas de tv (de Greg News a Greg News mesmo!). Muito legal! Queria muito que essa fosse uma disciplina diferente do contexto pedagógico, no geral, meio careta do nosso curso... e isso facilitava. A ponte com a Etnoecologia teve como base uma das definições que eu sempre usei nas aulas, que foi a de Johnson de 1974, a qual diz que Etnobiologia é “uma abordagem diferente para a ecologia humana que extrai seus objetivos e métodos da etnociência”. Confesso que, pelo meu desconhecimento, essa definição nunca fez muito sentido, mas se mostrou reveladora. Adorei esse conforto epistemológico! Juntei a fome com a vontade de comer e, a partir daí, deslanchei! Ajudou muito também o fato da disciplina ser optativa (tem seu apelo pros alunos), não ter chamada (vem quem quer) e nem prova (mas tem avaliação, tá?), ser dada no próprio Laboratório de Etnobiologia e Etnoecologia (LETNO), amplo, claro e agradável, com ar condicionado, em torno de uma mesona de granito onde posso deixar minha térmica e cuia de chimarrão e conversar, discutir descontraidamente com a moçada. Lógico, não fiquei livre dos bocejos do pessoal (tem coisa que é chata mesmo, né?), mas posso muito bem dizer que o brilho nos olhos deles é mais frequente, o que, aliás, me alimenta de sobremaneira. É lógico 105 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV também que eu me divirto bem mais do que eles. Mas nem poderia ser diferente, pois pra eles é só um semestre de aulas, pra mim tem a ver com opção de vida. Gostei tanto que, quando a justiça nos deu ganho de causa em relação à atitude inescrupulosa de nosso “querido” governador (olho nele, pois tá doidinho pra ser presidente!), deixei de ministrar Etnozoologia e fiquei com Ecologia Humana! Pois é, a rapadura não é mole, mas... cara, tem se mostrado muito, muito doce! 106 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV “Pagar mico”. Isto é ruim ou bom para a pesquisa etnobiológica em Educação? Geilsa Baptista Certa vez, buscando na internet a origem do "pagar mico, me esbarrei com um texto da revista Super Interessante, o qual nos conta que a origem desta expressão está num jogo infantil lançado na década de 1950, chamado e “Jogo do Mico”. As cartas são compostas por imagens de animais macho e fêmea. Os jogadores precisam encontrar os pares. O mico é o único animal que não forma um par e o jogador que termina com a carta do mico deve “pagar o mico”. Imediatamente percebi que essa explicação estava relacionada com aquilo que eu achava que era, ou seja, falar algo inadequadamente, provocar alguma situação que causa vergonha, humilhação... E, de repente, me peguei em altas gargalhadas, lembrando dos micos que já paguei nas minhas pesquisas com a etnobiologia! Como não disponho de muito espaço, darei foco nas partes que considero mais relevantes e, ao final, responderei a pergunta: Pagar mico, isto é bom ou ruim para a pesquisa etnobiológica? No final da minha graduação em Licenciatura em Ciências Biológicas na Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS), quando tive os primeiros contatos com a etnobiologia, entendi que muitos aspectos precisam ser considerados para a realização de uma pesquisa etnobiológica, entre elas: 1º) Escutar atentamente o sujeito participante, despindo­se dos próprios preconceitos como forma de melhor compreender a sua lógica; e 2º) Nunca desprezar aquilo que o outro diz, ainda que nos pareça um absurdo. Isto era e ainda é muito importante para mim, mas hoje vejo que estava faltando algo! Certa vez, acompanhei um professor da UEFS numa visita com foco etnobiológico junto à comunidade indígena Pankararé, Bahia. Eles não tinham escolas e isto me chamou a atenção, 107 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV especialmente porque nos falavam com riqueza de detalhes acerca dos aspectos biológicos e ecológicos do seu entorno! Além disto, era nítida a alegria nos seus rostos quando interagiam conosco, que chegamos ali sedentos para aprender com eles! E foi por essa “sede de aprender” que mergulhei nas minhas emoções e quando estava sentada com uma senhora indígena e seus amigos provando uma melancia, eu lhe perguntei: ­ Como a senhora tira o caroço da melancia para que possa comer? A senhora caiu em profunda gargalhada e, apontando o dedo em minha direção disse: ­ Olha gente, que engraçado, ela chama a semente de caroço! Não é caroço moça! É semente! Todos ficaram rindo de mim e, obviamente, eu também, mas por dentro estava muito envergonhada, dialogando comigo mesma a razão de eu pensar que aquela senhora não sabia o significado de semente e a razão de eu não perguntar primeiro como ela nomeava aquela estrutura. Saibam, ali eu paguei o meu primeiro mico, demonstrando subestimar o outro, embora eu soubesse que não foi esta a minha intenção. A vida seguiu, e logo comecei atuar como professora de biologia numa escola pública do estado da Bahia que atende jovens agricultores. Segui com a etnobiologia, um campo acadêmico que despertou em mim um grande desejo de investigar como esses jovens concebem os seres vivos e fenômenos biológicos, porque penso ser importante ensinar biologia de maneira dialógica. Por esta razão, busquei realizar entrevistas com os estudantes nas suas realidades culturais e, numa dessas, quando combinei uma visita à casa de um estudante para investigar como ele e sua família cultivam o milho, novamente, paguei um mico! Ao chegar na casa do rapaz, sua mãe me recebeu pedindo para aguardá­lo na sala. Fiquei ali sentada por uns vinte minutos quando, de repente, ele saiu vestido de paletó e gravata. Não consegui conter o meu espanto e disse­lhe: ­ Oh, por que se arrumou tanto? Não precisava, poderia 108 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV ficar vestido como sempre fica, estaria bem! E o estudante, demonstrando não ter gostado do que eu lhe disse, falou seriamente: ­ Professora, a gente é da roça, mas sabe que ser entrevistado por pessoas que sabem mais precisa estar arrumado e preparado! Confesso que fiquei muito mal, especialmente pela minha pergunta e o fato de ele ter demonstrado que eu sabia mais que ele! E comecei a me questionar: Para que eu falei aquilo? Teria sido melhor escutá­lo, sem nada dizer com relação a sua roupa? O estudante se sentou ao meu lado e percebi que ele estava com muita vergonha! Talvez porque deu o melhor de si para me receber e, como podem imaginar, a conversa não fluía. Então, resolvi contornar a situação agindo como se nada tivesse acontecido e deu certo, pois iniciamos e terminamos a entrevista tranquilamente e com uma riqueza de saberes que me foi revelada por aquele jovem agricultor! O tempo passou e em 2005 ­ durante as minhas leituras da pesquisa de mestrado acerca das contribuições da etnobiologia para o ensino e aprendizagem em ciências, pelo Programa de Pós­ Graduação em Ensino, Filosofia e História das Ciências (UFBA e UEFS) ­ encontrei um argumento da socióloga Renate Brigitte Viertler, de 2002: o “... pesquisador que, enquanto ele mesmo, igualmente um ser humano, não poderia escapar aos ditames culturais de sua própria origem social. Estudar culturalmente um “outro” indivíduo, grupo ou população, significa também, tornar­ se mais consciente de si mesmo enquanto postura e forma de vivenciar o mundo...”. Este argumento me ajudou compreender melhor as minhas ações diante da realidade investigada, de que preciso me submeter a um deslocamento cultural, que seja consciente. Isto se concretiza nas salas de aula, quando me pego num monólogo e, automaticamente, ligo o meu “pisca e alerta”, sinalizando que eu preciso escutar primeiro, e daí fluir nosso “bate papo”. Achava que bastaria relacionar de forma consciente os meus pensamentos e a linguagem utilizada para expressá­los, até que 109 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV um dia, já não mais atuando como professora na escola, mas somente na universidade, quando pensava que não, lá estava eu pagando mais um mico! Tudo aconteceu em 2018, durante uma saída de campo com uma turma da Licenciatura em Ciências Biológicas da UEFS, quando visitamos uma comunidade quilombola localizada próximo a Baia de Todos os Santos. Através de entrevistas com os moradores, que vivem da pesca e da mariscagem, os licenciandos deveriam investigar os saberes locais e elaborar recursos e sequências didáticas para a promoção do diálogo intercultural nas aulas de ciências e biologia das escolas da região de Feira de Santana, Bahia. Ao me aproximar de uma dessas entrevistas, percebi que o nosso informante estava situado exatamente na parte do manguezal onde uma fábrica lançava os seus dejetos. Fiquei muito impressionada, pois percebi o ambiente poluído e o pescador estava, no que eu considerei, sem nenhuma proteção contra os possíveis malefícios do ambiente para a sua saúde. Assim, sem lembrar dos micos que paguei no passado, perguntei ao informante: ­ O senhor não acha que corre risco para a tua saúde estar aqui nesta parte onde tem os resíduos da fábrica? Aquele homem estava de cabeça baixa mostrando aos meus orientandos a morfologia de um caranguejo e, de repente, olhou nos meus olhos e disse: ­ A senhora veio de Feira de Santana aqui, certo? Eu lhe respondi positivamente que sim e ele continuou: ­ Certamente deve ter corrido algum risco, mas veio porque precisa, né? Eu lhe respondi que sim e ele falou: ­ Pois é, assim somos nós, sabemos que todos os dias temos perigo. Muitos aqui têm doença de pele, de respiração, mas continua porque precisa professora! Eu concordei com o que ele disse e depois fiz silêncio, deixando­o continuar com a sua explicação, porém, estava constrangida e, novamente, me fiz questionamentos acerca da 110 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV minha relação com o pesquisado: O que a minha pergunta significou? Por que voltei a fazer uma pergunta que partia apenas da minha emoção diante do observado? Tenho aproveitado esses questionamentos para pensar na investigação etnobiológica envolvendo também as salas de aula, ensino e formação dos professores. Vivemos tempos e espaços onde o capitalismo e o cientificismo a ele atrelado marginaliza as comunidades locais, especialmente nas escolas, que poderiam auxiliar os jovens na ampliação das suas visões de mundo e participações ativas nas sociedades, mas isto não acontece! Os professores, não conseguem desvincular o imperialismo científico das suas práticas... Isto seria um problema decorrente da cultura escolar e/ou da formação inicial e continuada? Tenho várias respostas, mas nenhuma delas é única e aplicável em todos os casos, e penso que nenhum pesquisador as tem. O que posso afirmar, concordando com Viertler, é que é preciso mais consciência de si mesmo no encontro com o outro e sua cultura, porém, não tenho como perder de vista que, como um ser humano, tenho emoções que podem interferir nas minhas ações como pesquisadora. Podemos transparecer as nossas emoções sem refletir acerca da conveniência disto, tal qual aconteceu comigo quando paguei os micos que vos conto aqui. Muitos professores e pesquisadores operam dentro de uma lógica etnocêntrica em que foram formados e se formam, e para que mudanças aconteçam é preciso reflexões sobre e nas próprias ações, como dizia Donald Shon na década de 1980. Essas reflexões certamente nos ajudarão na conscientização, porém vejo que não é tão fácil deixar de fora o eu emocional! Talvez a formação do pesquisador precise incluir abordagens do campo da psicologia, como da Inteligência Emocional proposta pelo psicólogo Howard Gardner na década de 1980, a qual argumenta que podemos desenvolver a capacidade de reconhecer e avaliar as nossas emoções, conseguindo lidar com as suas influências nos nossos pensamentos e linguagens. Creio que isto é possível através de compartilhamentos entre os nossos pares e por um período prolongado. 111 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV Respondendo o questionamento que intitula este texto, digo que sim, “pagar mico” é bom para a pesquisa etnobiológica, desde que acompanhado de reflexões acerca dos próprios pensamentos e emoções que fluem das relações com os outros e suas culturas. Na condição de pesquisador(a), não podemos esquecer do universo cultural do outro e nem do nosso próprio universo, que envolve nossas percepções, pensamentos e emoções! Tenho conseguido oferecer a mim mesma, aos professores e futuros professores de biologia momentos de reflexões acerca do que pode significar ser professor e pesquisador no campo da etnobiologia. Fazemos nossas rodas de conversa, quando compartilhamos nossas experiências, sentimentos e emoções sobre isso construímos nossos significados. Os micos que paguei nas minhas pesquisas já foram contados nas minhas salas de aula e no Grupo de Investigações em Ensino de Ciências (GIEEC­UEFS) que coordeno, e foram tantos os comentários, risos e conclusões, que prefiro deixar para um outro momento, num outro causo! 112 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV Salvos pelo método... Gilney Charll Santos Foi em um daqueles dias corridos de trabalho de campo que tudo aconteceu. Mas antes de contar o ocorrido, permita­me que o deixe a par de como era uma das minhas atividades no interior da Floresta Nacional do Araripe Apodi (FLONA Araripe), sul do Ceará, no tempo em que ainda fazia mestrado. Para fazer um estudo quantitativo da remoção natural de diásporos de pequi (Caryocar coriaceum Wittm.), várias estacas (paus) de aproximadamente 160 cm eram fincadas ao redor de pequizeiros adultos reprodutivos. Além disso, um detalhe você precisa saber: para facilitar a localização dessas estacas em campo, as suas “cabeças” (extremidades superiores) eram pintadas de vermelho. Pronto, esse pequeno relato do procedimento metodológico será suficiente para que entenda o desfecho dessa história. Na FLONA Araripe, a rotina já fazia parte da minha vida. Acordava cedo, tomava o café da manhã, vestia a roupa de campo e me mandava para o mato, sempre na companhia do mateiro e de um amigo de laboratório e parceiro de campo. Entretanto, em um certo dia, já nas últimas campanhas, eu e o meu parceiro decidimos dispensar o mateiro, pois concordamos que já sabíamos percorrer sozinhos as áreas de estudo e, além disso, ainda poderíamos economizar com o valor da diária dispensada. Sem muitos recursos para financiar a pesquisa, infelizmente algo bastante comum aqui no Brasil, achamos que essa seria uma boa decisão. Nas áreas de estudo, permanecíamos o dia inteiro, exceto nos dias em que eu precisava voltar ao Recife de avião, e o único voo era no meio da tarde, por volta das 15:00h. Nesses dias, as atividades costumavam ir até às 12:00h, para dar tempo de voltar ao alojamento, arrumar as coisas e seguir até o aeroporto da cidade de Juazeiro do Norte, que ficara a cerca de 1h de carro do 113 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV alojamento, no interior da floresta. Entretanto, foi exatamente em um desses dias que passamos por um baita de um “perrengue”, que após o ocorrido foi motivo de muita reflexão e gargalhadas. Estava cumprindo mais um dia de trabalho de campo, em uma área/parcela de Cerradão de 1 ha, quando, de repente, o meu parceiro de campo, achando­se o grande conhecedor daquela área, resolveu fazer o monitoramento por um caminho diferente do habitual, com a finalidade de ganhar tempo. Acabei indo na dele, afinal não seria nada mau ter mais tempo para se organizar para a viagem que estava por vir. Assim, simplesmente o acompanhei em silêncio por dentro da mata, que ia se “fechando” na medida que caminhávamos. Achei que não tinha como nos perder, pois já havíamos visitado aquela área tantas vezes que isso seria algo improvável de ocorrer. Só que para o nosso desespero, a princípio silencioso, aconteceu. Não esqueça que esse era um daqueles dias que eu precisava voltar ao Recife de avião. Então, imagine o que se passava pela minha cabeça. No mínimo, que iria haver o meu “no­ show” no aeroporto. Depois de já termos caminhado uns 20 minutos, o meu companheiro de campo olhou para mim com os olhos arregalados, e com a voz presa, em um tom angustiante, falou: ­ Meu amigo, a gente se perdeu!? Serenamente, para não o deixar ainda mais aperreado do que já estava, falei: ­ Te aperreia não que vamos sair dessa. Na verdade, eu estava fazendo um esforço danado para manter­ me calmo e não transparecer que estava tão aperreado quanto ele. Porém, naquela hora, alguém tinha que manter a calma, não é mesmo? Passados uns 40 minutos de caminhada em círculo e nada de encontrar a saída, preocupado com o horário do voo e ao mesmo tempo com a nossa segurança, atinei para algo: pedi para que o meu parceiro, bem mais leve do que eu, subisse em uma árvore e tentasse avistar pelo menos uma das estacas fincadas na área de estudo. Estava convicto de que se encontrássemos uma daquelas estacas conseguiríamos voltar para a parcela e encontrar 114 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV a saída. Para aumentar ainda mais a nossa aflição, a primeira tentativa foi sem sucesso. Caminhamos mais um pouco, a fim de encontrar uma árvore mais alta e encontramos. Agora, na segunda tentativa, com alegria, o meu amigo soltou a voz: ­ Tá acolá! Tô vendo a cabeça vermelha do pau! Que alívio, leitor! O meu parceiro permaneceu em cima da árvore e guiou­me, no grito, até o local onde estava o bendito pau. Chegando lá, também no grito, guiei o meu amigo até mim. No momento do reencontro, houve muita comemoração e, com mais de uma hora de atraso, o trabalho daquele dia foi concluído. Acredite, foram minutos que pareceram uma eternidade. Após o ocorrido, seguimos às pressas ao aeroporto. No trajeto, refletimos bastante sobre os erros que cometemos e chegamos às seguintes conclusões: 1. Em uma pesquisa no interior de uma floresta, é preferível não tentar economizar com a dispensa do mateiro; 2. Na ausência do mateiro, mesmo conhecendo a área de estudo, é melhor não tentar encurtar caminhos, mas sim fazer o velho “feijão com arroz”, ou seja, seguir pelas trilhas sempre percorridas. Essas lições eu levei para o meu doutorado, que também foi realizado na FLONA Araripe, e os erros aqui cometidos jamais foram repetidos. Ainda no trajeto até o aeroporto, também encaramos a situação que acabara de acontecer com uma pitada de humor. Agora, com o sorriso estampado no rosto, o meu amigo e parceiro de campo dizia: ­ Rapaz, mas veja que legal! Fomos salvos pelo método, um pau da cabeça vermelha. Não conseguia parar de sorrir, diante dessa fala! Ah, sobre o voo? Sim, deu para embarcar! 115 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV Vertigem de rebojo Gustavo Goulart Moreira Moura Uma foto, uma linda foto... esparramado num “trapiche” tentava reproduzir ao infinito aquele instante em que, entre dois caícos, tombava um arco­íris ao oceano nascido de duas nuvens que se destacavam no céu. Ambas refletiam o sol, como dois olhos de sóis, que insistia em permanecer atrás de uma delas quando na arcada deveria se aninhar. Na arcada um céu com as tintas do poente da tempestade que acabara de passar... preto, roxo, rosa, laranja, amarelo e até azul... um espectro de cores conviviam no céu como eu jamais vira. Eu, me embebia nas cores... desconcertado, inquieto, em infernos causados por tanta beleza; as águas do Saco do Arraial, Lagoa dos Patos, também, mas calma, serena... como se fizesse parte de tudo aquilo: do céu agigantado na planície arenosa, do continente logo às suas margens e do oceano numa outra margem que se sucedia a tatear a maior praia do mundo... Transbordando de alegria por conseguir tornar possível a partilha do momento, fui compartilhar, mais tarde, já noite, mesmo que pelo visor da máquina digital. Adultos e crianças ilhéus se aninhavam para ver e revê­la... menos uma velhinha que, serena, como se ressonasse as águas da Lagoa, seguia sentada na outra ponta da mesa da cozinha: “Já vou aí lhe mostrar, D. Nilza...”; “Tá bom”, respondeu ela com um leve erguer de mão e balanço de cabeça. Desvanecido o grupo, levei a máquina a deslizar por cima da mesa até que chegamos à outra ponta: “Lindo, não é, D. Nilza?”; “Ah, é, isso é as nuvem do céu bebendo água do oceano”. Cambaleante, me sentei, e olhava no fundo dos olhos azuis da velha a pensar como tudo aquilo, de repente, ficara­me estranho. D. Nilza pertencia a uma família e a uma comunidade da Ilha dos Marinheiros, Porto do Rei, que eu convivia mais do que as outras, era mais próxima ao meu campo de ordenação que a 116 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV comunidade da Coréia, comunidade de estudo, que eu, até aquele momento, quase não tinha ido, portanto, o cotidiano me pertencia ainda menos. 117 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV Travessias identitárias Gustavo Taboada Soldati Sempre gostei bastante da “galera da clorofila”. Quando criança, adorava aguar o jardim e sentia que elas ficavam muito felizes. Na graduação, tempo de experimentações, tentei “viver de luz”. Uma professora me questionou irritada “desde quando tu tem cloroplasto? Nem parece que estuda Biologia”. Transitei por alguns laboratórios de Botânica até entender que, apesar de minha paixão, me faltava algo para ser completamente feliz. A proximidade com agricultores e assentados pela reforma agrária me fez entender que faltava “homens” e “mulheres”. Faltavam pessoas. Descobri (apenas isso) uma tal de Etnobotânica e fui brincar nos quintais do mundo... Durante a minha primeira experiência, conheci o Seu Fábio. Agricultor rústico que, além da lida na terra, tratava de fazer longas ripas de eucalipto. Ao comprimentá­lo, impressionaram­me as suas mãos. Marcadas pelas atividades diárias, eram notavelmente grosseiras, ásperas, rijas. Falo das mãos apenas para introduzir os seus pés, aquilo sim me espantou. Seu Fábio nunca tinha vestido um calçado, apenas um par emprestado em seu casamento, me disse. Transitava pelas farpas de sua marcenaria com muita destreza. Empolgado com o papo bom, marquei com ele a minha primeira turnê guiada! Sim, imaginem a minha felicidade. Caminharíamos pelo fragmento florestal no sábado de manhã. Foi uma super produção. Calça, bota, perneira, camisa comprida, colete cheio de bolsos, chapéu, facão. Lista livre e gravador, na época aquele de fita cassete que a gente registrava entrevista em cima da outra. Acha pouco? Ainda tinha os aparatos botânicos, saco de coleta, podão, tesoura de poda. Não conseguiria descrever como eu me sentia realizado, me sentia como um verdadeiro biólogo. A primeira coisa que fiz ao avistar Seu Fábio foi, evidentemente, reparar os seus “pés”. Buscava um calçado, 118 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV afinal, andaríamos no meio do mato. “Bom dia, Seu Fábio, vamos subir para a mata?” Hermeneuticamente pensando, minha pergunta significava “já cheguei, agora já pode colocar o sapato para partirmos”. Ele respondeu sereno, “vamos sim”. Desconcertado, falei meia dúzia de palavras e perguntei novamente, “vamos subir para a mata?” Novamente, “vamos sim”. Hermeneuticamente pensando, a resposta dele dizia “a hora que você quiser”. Imaturo, não agüentei e perguntei “mas o senhor não vai calçar nenhum sapato?” “Meu filho, nem calçado eu tenho”. Os pés que não eram pés de Seu Fabio fizeram a minha primeira transição, exorcizar o biólogo jonesiano. O primeiro passo havia sido dado. Se eu tivesse que caminhar junto aos agricultores e agricultoras deveria romper com alguns preceitos. Mais tarde, nas andanças pelo norte de Minas, acompanhado do grande companheiro Reinaldo, conheci os vazanteiros do São Francisco. Aprendemos sobre a agricultura de vazante, sobre a arte da pesca. Conversamos sobre a diversidade agrícola e soberania, uso do espaço e luta pelo território. Mas algo me incomodava. À beira do rio, em solo mineiro, avistava a Bahia. Depois de um tempo calado, perguntei ao vazanteiro que me acompanhava, “tu é mineiro ou tu é baiano?” Acho que as minhas experiências pernambucanas tendenciaram a pergunta. “Eu não sou mineiro e nem bahiano, eu sou do rio. O rio é que me define”, me disse. Hermes deixara de acreditar no pão de queijo e no acarajé para conhecer a terceira margem roseana. Mais um passo na transição. Identidade é autodefinição, auto reconhecimento. Sou eu quem constrói o meu lugar de fala. Meu batismo foi dado pelo mesmo Reinaldo, tempo depois. Estávamos numa reunião com algumas lideranças tradicionais. Acompanhávamos uma discussão sobre estratégias. Ao saber de nós, calejado de vivenciar conflitos e lutar pelo livre acesso à biodiversidade e ao território, uma das principais lideranças geraizeira disse “nós não gostamos de biólogos”. Tentando mediar, disseram “mas eles são biólogos do bem”. “É..., mas a gente não gosta de biólogo”, retrucou irredutível. Eu já sabia que biólogos não gostam de gente, mas entendi naquele momento que 119 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV as gentes também não gostam dos biólogos. Não posso esconder que a afirmação me incomodou por demais, muito mesmo. Apesar dos erros, fizemos uma opção política de caminhar com os povos tradicionais. Nossa história, ainda que curta, indica este direcionamento, acredito. Sempre há um silêncio que antecede grandes revoluções. Reinaldo, disse em altura moderada, suficiente para a sua voz ser escutada, “eu não sou biólogo, sou etnobiólogo”. Nunca um rompimento epistêmico me fez tanto sentido. Toda essa prosa gerou o questionamento que ora ou outra se atreve a me provocar. Qual é o “meu território”, ou seja, qual é o meu “lugar de fala”, a partir do qual eu tenha certo respaldo histórico e político para sustentar posicionamentos? Numa sociedade de correlações de força esse entendimento é necessário, tanto que em todos os espaços populares de avaliação, construção de análises de conjuntura e definição de estratégias sempre há o momento para as falas dos territórios. Numa dessas experiências, uma liderança campesina pernambucana me perguntou “como está lá no teu território?” e fui enviado a diversos “lugares”. A própria essência do “fazer etnobiológico” tornava essa resposta difícil para mim. O romantismo de nossa prática me despertava o desejo de “ser um agricultor”, a aproximação com quilombolas, tradicionais e indígenas me dava a esperança de “ser um pouco eles”. Entendo que sou um cientista, apesar da pequena, mas considerável biodiversidade que embeleza meu jardim. Um cientista que optou por dispor o seu conhecimento àqueles que não fazem parte do processo de desenvolvimento ou não são a prioridade. Àqueles que estão à margem das escolhas da sociedade capitalista. Que a academia é um espaço de disputa e que dita a “verdade” nunca foi segredo para mim, mas a certeza de que esse é o meu território confesso que é recente. Foi uma dura ruptura, confesso. Não posso e nem quero falar “pelos” meus parceiros, prefiro falar “com” eles. Pode ser que no próximo volume esse entendimento dicotômico que demanda um limite, um limiar, seja desfeito, mas isso faz parte da travessia. 120 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV Sete prosas para voar Gustavo Taboada Soldati Certa vez, numa banda da Serra, Dodô nos contou que estava injuriada porque a vaca não estava produzindo leite. Todo dia de manhã, quando ia para a ordenha não tirava nada. Era o desespero acordar sem tomar um pingado. “Mas eu vou descobrir o que está acontecendo, deve ter um bicho mamando na minha vaca”, comentou. Dodô acordou mais cedo, noite ainda escura, e foi caminhando silenciosamente até o curral. “Ocês num vão acreditar, quando liguei a lanterna vi uma cobra mamando todo o leite!” Pouco tempo depois, já em outra banda da Serra, comentei “diz que tem cobra que bebe leite na teta da vaca” e um apanhador retrucou “tem mesmo, eu já vi dessas também”. * Sem querer, cheguei a uma carvoaria. “Bão?” “Bão...”, respondeu o carvoeiro. Assuntei o que tinha que assuntar, aprendi, sem pretensão, um pouco sobre o ofício, os nomes dos buracos da caldeira. Lembro que o mais próximo ao chão era o tatu. “Mas a lida é bastante difícil, não é?”, perguntei. “Moço, difícil demais e faz mal pra saúde. Certa vez estava ruim, tossindo demais. Fui procurar um médico na cidade. Expliquei para ele que eu trabalhava no carvão, estava sentindo falta de ar e que acreditava que era a fumaça. Ele me perguntou quais plantas eu fazia carvão, eu respondi que era de pereiro, angico, pau preto. O dotô disse que era para eu não me preocupar porque era tudo páu medicinal. O dotô disse que a fumaça era medicinal, fazia mal e curava depois”. * “Além de todo esse conhecimento que o senhor nos ensinou, das plantas da roça, dos quintais, nós também estamos estudando os ‘pratos típicos’ da região. Cada lugar tem um prato típico, num é mesmo? Para o senhor, qual é o prato típico daqui?” “Como assim, menina?” Em resposta, gesticulando e com um tom de voz mais empolgante, “qual que o prato que vocês mais comem 121 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV aqui!?” “Uai, nos comê é com esses prato normal, esses prato de vidro mesmo...” * O que diriam os quintais...? Um dia aprendi que “quintal” é “onde as galinhas andam”. Assustei quando descobri que os vazanteiros não criam quintais. “Porque?” “Uai, meu filho, num adianta nós plantá pé de fruta nenhuma aqui, quando é época da cheia, o rio leva tudo...” Depois de uma reflexão, seguiu “é, mas o mesmo rio que leva é o rio que traz. Aqui aparece planta que nós nunca havia visto...” Essa dinâmica temporal também me foi explicada num assentamento recém conquistado. “Carrapicho picão é bom pra dor de barriga...” “Onde o senhor consegue o carrapicho picão?” “Eles ainda não chegaram... vão chegar” “Como assim?” “É que nós acabô de abrir esse quintal. O carrapicho picão ainda vai chegar. Tem umas plantas que anda onde nós anda, mas elas demoram a chegar...” * Conversávamos na pequena e quente sala sob o olhar da Santa. Meus olhos transitavam entre a minha interlocutora e o quadro. Túnica vermelha, um ramo verde na mão esquerda e um prato com dois olhos na outra. “Quem é?”, eu desconhecia a imagem que me hipnotizava. “É Santa Luzia, sou devota. Meu filho ia para a escola e ficava com muita dor de cabeça, não conseguia estudar. Chorava muito, era um desespero. Ele queria estudar, mas não conseguia. Depois de muita peleja, conseguimos saber que ele tinha um problema na visão. A gente tinha que comprar uns óculos, mas não tinha dinheiro, só conseguimos por causa do Bolsa Família”. “Vocês recebem o Bolsa Família?” “Sim” “E quanto que é?” “Sessenta e dois reais! Isso porque eu tenho dois filhos”. * Tínhamos passados bons momentos de aprendizado no quintal do “Seu Porfí...o”. Liderança local, era “Seu Porfí...o” para cá, “Seu Porfí...o” para lá... Mas eu ainda não tinha entendido o nome perfeitamente. Nas andanças pelo quilombo... “Ó, a Senhora 122 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV é irmã do “Seu Porfí...o”, que coisa boa! A gente acabou de entrevistar ele, mas a gente não entendeu bem o nome dele. Seria bom colocar o nome certinho dele aqui na folha. O nome dele é “Seu PorfíRio” ou “Seu PorfiLio”? Ela olhou assustada e descrente com uma pergunta tão sem sentido e respondeu contundente, sem hesitar e com um tom de normalidade: “Uai, é Porfííí....oooo”. * Discutíamos o direito de uso da biodiversidade e as violações que a atual legislação sobre este tema trouxe aos tradicionais. Depois de fazer uma análise muito profunda, a raizeira conclui “eles [as empresas, a academia e o governo] nos chamam de ‘detentores’ do conhecimento, como se os nossos saberes fossem coisas a serem portadas. Nós, povos tradicionais, somos ‘guardiões’, nunca detentores”. O sentido também muda quando discutimos a agrobiodiversidades. O companheiro ressalta “as sementes crioulas não são um ‘patrimônio da humanidade’, mas patrimônio dos agricultores à serviço da humanidade”. 123 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV Esperá pra ir quando dé... igarapé! Jessé Renan Scapini Sobczak Acordamos cedo. Chegamos na noite anterior pra aproveitar bem o outro dia... e acordamos cedo! Tomamos café, bem tranquilos, conversando, assistindo os primeiros noticiários da TV e olhando o tempo, ou melhor, saber se estava ‘limpo’. Ah, até o momento estava apenas eu e o Adriano no aguardo do restante do pessoal. Logo mais chegaria a Cris, que havia ido buscar o carro da instituição e junto com ela vinha a Priscila (que trabalhava junto no mesmo laboratório) e também o Lima (outro colaborador). Tínhamos como propósito realizar visitas às comunidades de pescadores da região e apresentar um projeto... Chegaram! Todos estavam ali, equipamentos, mantimentos e pé na estrada. Não demorou muito e aquele céu parcialmente ‘limpo’ começou a se fechar e os primeiros pingos de chuva já podiam ser vistos no retrovisor e o parabrisa começou a fazer seu serviço. Aquele "pé na estrada" de asfalto encontrou o chão pela frente, agora já não tão seco devido a chuva; nos aproximamos do povoado. Estavam nos aguardando, mesmo diante de tamanha chuva, que naquela hora ‘engrossou’, mais pessoas estavam se reunindo no local combinado. Tirando o pequeno atraso, tudo correu bem! Encerrando, fomos convidados por um dos presentes a ir em sua casa que ficava na outra esquina – e a chuva continuava – entramos na casa e nos deparamos com a humildade das pessoas ali presentes, com água beirando a canela, e agraciados com um bolo, suco e aquele cafezinho. A prosa poderia se estender mais, no entanto tínhamos que dar continuidade nas visitas às outras comunidades. Saímos cheio de histórias e barriga cheia. Retornamos pelo mesmo caminho para cidade mais próxima, e depois pegamos outro caminho... A Cris já tinha estado 124 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV nesses lugares antes, assim como a Priscila, mas era novidade pra mim, assim como pros outros. A paisagem exuberante, alguns morros e vegetação fechada, sem movimento de outros automóveis... até encontrarmos um igarapé. Num primeiro momento cogitamos passar, analisamos melhor, escutamos um senhor que estava de moto do outro lado que disse que o melhor seria aguardar umas 4 horas... Levamos em consideração o que ele disse, mas mesmo assim ficamos vendo alguma forma de passar – até porque tínhamos marcado a reunião e estávamos sem sinal de telefone para avisar. Ficamos naquela de não saber o que fazer, quando não se tem muito o que fazer... até que Adriano comenta, fumando um palheiro, reiterando aquilo que o senhor havia dito: “Esperá pra ir quando dé!”. E quando reparamos, o igarapé... quando reparamos, estávamos todos nós com palheiros e discutindo várias questões do projeto que estava se iniciando e, por incrível que pareça, não teríamos um tempo como aquele para uma ‘reunião’. Proveitoso, não programado e descontraído... essas foram aquelas horas que se passaram até que o igarapé baixasse para passarmos. Já havia se formado uma pequena fila de carros, pequena mesmo... e mesmo que a reunião tivesse sido perdida, ainda tínhamos que dar uma satisfação da demora em chegar, quando na verdade todos lá já sabiam... igarapé! 125 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV Cultivando memorias: ¿Cuántas historias caben en un choclo? José Manuel Valencia Espina A veces, total o parcialmente, uno se siente dueño de la verdad, dada cierta acumulación de conocimientos y experiencias sobre un determinado tema. Sea este un proceso químico, un hecho histórico, la biología de un animal o cualquier otra cosa, algunos de nosotros tendemos a pensar que conocemos todo o casi todo sobre aquello. Incluso, y sin ánimos de grandeza, nos sentimos con el poder y el deber de transmitir estos conocimientos. Mi caso no difiere mucho de esta lógica. Me sentía un gran conocedor de una planta en particular: el choclo. Conocido como maíz en gran parte del mundo, en Latinoamérica recibe diferentes nombres populares como elote en México, mazorca en Colombia, jojote en Venezuela y choclo en casi todos los demás países, incluido Chile, mi país de origen. Fue aquí, en su zona central, en donde trabajé durante 5 temporadas estivales en la polinización del maíz. Básicamente, nuestro trabajo era el que hacen las abejas y otros animales: transportar el polen al lugar adecuado de la planta para que germine y produzca frutos y semillas. Una vez terminado el año curricular y, acompañado de mis hermanos y un grupo de amigos, salíamos de la casa de nuestras familias por varias semanas a trabajar de “temporeros”. De lunes a lunes, de sol a sol y sin recibir siquiera protector solar, trabajábamos en medio de los infinitos y contaminados campos de cultivo. Digo contaminados porque cuando entré a la universidad, comprendí por qué a veces, posterior a la aplicación de “ciertos productos”, varios de nosotros presentábamos mareos y dolores de cabeza. Entendí lo que eran los agrotóxicos, los monocultivos y algunas consecuencias que enferman a la naturaleza como, por ejemplo, la sequía y el cáncer. También me hizo sentido porque nuestro trabajo era el de imitar la función que cumplen las abejas, 126 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV el viento y otros seres vivos. Desde una óptica diferente, pero también ligada a la universidad, tuve la oportunidad y el privilegio de conocer a un grupo de personas que constantemente me enseñan a desaprender y luego volver a aprender. Entre casualidades y causalidades, comencé a visitar una aldea indígena perteneciente al pueblo Mbyá­Guarani, en el sur de Brasil. Fue aquí en donde descubrí otras formas de entendimiento de aquello que yo ya daba por sabido. Comprendí y me situé en un espacio donde la lógica de la vida tiene otros ritmos y expresiones, desconocidos para mí hasta entonces. En fin, tuve el privilegio de adentrarme en un mundo que canta, palpita y vive una resistencia histórica, al igual que varios otros mundos de saberes. Fue aquí, en la Tekoá Pindó Mirim, en donde conocí otro mundo de saberes y relaciones, con y desde la naturaleza. Y es aquí también donde sigo aprendiendo sobre los choclos. Entre el humo del fuego y del tabaco, aprendí que el origen del maíz es Mesoamericano y que los Mbyá­Guarani lo cultivan hace cientos de anos. El avaxi no es solo una planta nutritiva, sino que también es un alimento sagrado que convoca una importancia medicinal, cultural y espiritual de los Mbyá Guarani. Fue en estas tierras y gracias a estas personas que me acogieron de forma tan sencilla y sincera, que aprendí que el avaxi no tan solo nutre el cuerpo, sino que también el espíritu. En la aldea lo he comido cocido, asado, como harina, incluso bebiéndolo como jugo. Varios son los platos que las mujeres Mbyá Guarani cocinan, como el mbojapé, una receta preparada con harina de maíz y agua, cocinada en las cenizas del fuego. Fuego que además de ser imprescindible y vital en la vida del pueblo Mbyá Guarani, también es sagrado, como los choclos. En una tarde de primavera, durante el tiempo en que el maíz emerge de la tierra y comienza a crecer en altura, acompañé y trabajé junto a la aldea en los cultivos de maíz. Tal y como se representa la diversidad de la propia vida, junto a los choclos también estaban presentes otras especies, como la mandioca, el maní o las sandias. Mientras arrancábamos las plantas no 127 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV deseadas, les comenté brevemente mis aventuras con el maíz, desde historias familiares, hasta las largas jornadas de trabajo. Fui desentrañando algunas memorias que llevaban más de 10 años guardadas en mi baúl de los recuerdos. Entre risas y bromas, comencé a contarles todo lo que yo sabía sobre cuidados y particularidades de los choclos. Durante varios minutos intenté comunicar todo lo que algún día había aprendido. Desde la distancia óptima para plantar, pasando por el tipo de suelo y el significado químico del color de sus hojas, atiborré de información a mis colegas de labores. Llegado un momento, uno de los indígenas me interrumpió y me pregunto qué sabía yo – que tanto se supone que sabía – sobre la reproducción del maíz. Dadas mis ganas de seguir comunicándome, recité como loro varios de los tecnicismos que aprendí tanto en el trabajo como en la universidad. Comenté cómo la polinización era un servicio ecositemico fundamental, la importancia del viento, y varias otras informaciones que, al parecer, sólo a mí me hacían sentido. Hablé sobre madurez sexual, polen, tubos polínicos, polinización cruzada, estigmas, pistilos, panojas, entre varios otros. A la vez que hablaba, una voz en mi cabeza se preguntaba si aquella explicación hacía sentido para ellos, como hacía para mí. Mientras esto acontecía, todos me escuchaban atentos, intercalando su atención con algunas risas. Unos minutos después, el cacique de la aldea, que desmalezaba como uno más entre todas y todos, se acerca y me dice: “¿Entonces es así como los juruá ven y entienden del maíz?”. (Los juruás somos todos los no indígenas). “Ustedes son expertos en complejizar algunas cosas que para nosotros son sencillas. Para nosotros el maíz también se reproduce gracias al viento…es el viento quien escoge quién se casa con quién…los maíces se casan entre ellos con la ayuda del viento y así producen sus frutos”. No era la primera vez que Arnildo, el cacique de la aldea, me estimulaba e incitaba a (re)pensar ciertas creencias que muchas veces y sin cuestionarnos, damos por hecho. En ese momento, la invitación y el llamado son claros: descolonizar nuestras mentes y abrir nuestros corazones y imaginarios. 128 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV Entre matrimonios y polinización cruzada, hay un elemento en común que traspasa todo tipo de lógica asociada a los choclos, me refiero al agua. Reproducción simbólica de la vida en nuestro planeta, el agua también es la frontera más extensa de países como Chile y Brasil. Se estima que son necesarios 70 litros de agua para que una planta de maíz pueda desarrollarse plenamente. Pero, ¿Será que todos quienes cultivan choclos tienen la misma posibilidad de acceso a este otrora bien común? Mi memoria me recuerda que el acceso, la cantidad y la abundancia de agua que los choclos monocultivados tenían es totalmente diferente a la nula o escasa capacidad de riego que tienen los indígenas. Probablemente si ellos tuviesen acceso a las tierras que les fueron despojadas, y en donde el agua no fuese una limitante, las cosechas serian bastante más abundantes de lo que son. Pero, la realidad es otra. El lugar que les fue asignado hace más de 20 años es un puñado de hectáreas, que antes de su llegada, era ocupado por plantaciones forestales de eucalipto. Un lugar en donde abundaba la infertilidad y la tierra seca, ellos y ellas, en base al empuje y a la convicción de sus ideas, se las han ingeniado para reforestar y darle vida al que ahora es su espacio, su aldea. El contexto actual en el que viven muchas familias indígenas está marcado por inseguridades alimenticias, nutricionales, hídricas y energéticas. Esta cruda realidad es parte de una violencia estructural que los pueblos originarios vienen sufriendo y combatiendo hace combatiendo hace cientos de años. Pese a este genocidio, algunas historias siguen siendo contadas y vividas por sus protagonistas. Según Ailton Krenak, historiador y filósofo indígena, una de las mejores maneras para atrasar el fin del mundo es poder seguir contando historias, principalmente aquellas que nos muestran la riqueza y diversidad de estos mundos existentes, a veces olvidados, perseguidos, silenciados, pero que aun así, continúan (re)existiendo y contándolas. Esta es apenas una más de los cientos de historias que se siguen contando en Latinoamérica. Por mi parte, yo me sigo preguntando: ¿Cuántas historias y memorias caben en un choclo? 129 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV A pernoita quilombola em Porto Trombetas Juliana Cardoso Fidelis Quando fazia campo no fim do dia 12 de maio de 2018, acompanhei seis dos oito coordenadores das comunidades que formam o Território Quilombola Alto Trombetas II e que saíam do porto de Oriximiná, no Oeste do estado do Pará, a bordo do Comandante de Curuçá em direção ao Alto rio Trombetas. A pequena embarcação estava carregada de alimentos retirados da sede da Associação das comunidades Remanescente de Quilombo de Oriximiná (Arqmo), os quais haviam sido enviados por empresários de Belém em troca da isenção de impostos devidos ao governo do estado. No barco, os quilombolas amontoaram em pilhas os fardos de arroz, feijão, macarrão e farinha. As pilhas de alimentos foram identificadas e agrupadas pelos integrantes da coordenação executiva da Associação das Comunidades Remanescentes de Quilombo do Alto Trombetas II (ACRQAT) e não poderiam ser realojadas após essa separação cuidadosa, cujo objetivo era facilitar o posterior desembarque em cada comunidade do território. Assim, no Comandante de Curuçá, a locomoção estava difícil e a subida, pesada. Embora os tripulantes contassem histórias para animar o percurso a montante do rio Trombetas, o maior da região, passando por várias comunidades ribeirinhas e quilombolas. Parte deles já havia baixado o rio juntamente com outros comunitários que, aproveitando a carona, adiantaram atividades na cidade. Para mim, a subida era especialmente cansativa, porque já estava há mais de dez dias em campo e o percurso até a cidade já havia sido feito algumas vezes durante a luz do dia. Marquinho, um dos homens de confiança no território, estava na função de capitão da embarcação, substituindo André, que a conduzira quando estivemos próximos às comunidades do baixo curso do rio. Assim, seguindo as precauções do comandante interino Marquinho, a rede na qual eu 130 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV dormia estava atada próximo ao teto da embarcação, a salvo de qualquer acidente que pudesse ser provocado por um banzeiro forte que jogasse água no meu caderno de campo ou no meu computador, comprometendo, assim, o equipamento que costumava ser solicitado pelos quilombolas nas reuniões da associação em que eu estivesse presente. Todos, cansados pela subida demorada, encontraram uma maneira de se acomodar para conversar “sobre as coisas do território” e sobre os “causos” que já haviam presenciado em outras viagens, subindo e baixando o rio Trombetas. Em meio às brincadeiras para passar o tempo, questionei sobre a navegabilidade do rio durante a noite, já que seu curso ora é mais largo, ora mais estreito, seguindo sempre um corredor de água negra de onde se vislumbra a floresta verde de grandes dimensões. Da pequena embarcação, a água é vista de perto, e a floresta é nitidamente visível, ao contrário do que ocorre quando viajamos nos barcos de linha que partem de Santarém. A luz do sol dava lugar à escuridão, mas Marquinho era guiado por André, conhecido na região por ser “consertador” experiente e exímio navegador. Eu estava receosa diante das seguidas “batidas” da embarcação na água. Fazia dias que não utilizava um banheiro, então comecei a lavar as pernas e os braços nas ondas que se formavam quando batiam nas paredes da embarcação. Já estávamos próximos à Floresta Nacional Saracá Taquera e à Reserva Biológica do Rio Trombetas. Navegando um pouco mais, vejo uma cena, no sentido empregado por Vincent Crapanzano. Encontrava­me sentada na lateral do barco e próxima à cabine de navegação, precisamente entre a água e o chão de madeira quando percebi que dois faróis se aproximavam, a cerca de 30 metros da embarcação. Eles iluminavam a margem do rio, próximo da mata, e traziam à minha memória as histórias contadas por meus familiares que viveram durante muitos anos em comunidades, transitando e dependendo do rio para praticamente tudo. A água do rio se agitava, batia sucessivamente na embarcação e todos estavam em silêncio. Eu segui com os olhos aquela luz que chamava atenção na medida em que se aproximava e me fazia pensar no que minha avó materna sempre contou, de todas as 131 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV vezes que precisou atracar o barco de pesca de meu avô quando avistavam no rio os olhos da Cobra Grande, senhora guardiã das águas, mãe de todos os encantados. Sempre existiu um grande respeito e temor em volta das histórias de pescaria na região de Santarém, lugar onde nasci e cresci, então, naquele momento, associei a cena à existência/presença da cobra. Entrei na cabine de navegação, onde se encontravam os experientes navegadores daquele rio e questionei, da forma mais polida que podia, sobre a real necessidade de seguir com o barco àquela altura da noite, diante do agito das águas, indo ao encontro daqueles olhos dos quais já ouvira muito falar. Além de mim, ninguém mais havia feito tal associação, mesmo sendo o rio Erepecuru conhecido pelas histórias de encantados, dentre eles a própria cobra grande, figura mítica que costuma viver nos fundos das águas e costuma aparecer aos pescadores. Os homens procuravam atar suas redes ou se deitavam na proa da embarcação, enquanto Marquinhos e André pareciam se divertir com as minhas perguntas e seguiam tranquilos subindo o percurso. Aquela imagem talvez tenha sido motivada por minha angústia por estar quebrando ali um contrato moral de navegação, pois já passava das onze horas da noite e, o horário me parecia impróprio para realizar tal tarefa. Ainda rindo da situação, Marquinhos, que sabia por onde navegava, afirmou que não havia cobra e sim mineração; e os faróis, que para mim eram olhos da cobra, não passavam de dois sinalizadores que, à noite, direcionam os navios até o porto de abastecimento de bauxita em Porto Trombetas (PTR). O potencial narrativo da cena por mim formada fora negado, diluindo­se diante dos meus olhos. Estávamos entrando na “área da mineração”, onde eu já estivera por tantas vezes. Passando por mais alguns sinalizadores, finalmente chegamos à Company Town (Cidade Companhia). Sob o calor inclemente do mês de maio, típico da virada do inverno para o verão, vi do porto pequenas embarcações que chegavam e saíam de PTR com “trabalhadores das minas”, vindos de comunidades não tão próximas, que recorrentemente ocupam vagas nos empregos temporários na Mineração Rio do Norte. Naquela noite, o “Comandante de Curuçá” também atracou no 132 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV porto para que a tripulação descansasse até a manhã seguinte. No entanto, quando atracamos, a gente que dormia nos barcos tratou de compartilhar informações sobre assuntos variados, desde o número de fichas do ambulatório até o recrutamento para novos postos de trabalho, tomando o espaço como ponto de comunicação e socialização no Alto Trombetas. O porto conta com uma boa estrutura de pavimentação, segurança e limpeza, constituindo um espaço importante na dinâmica local, como me disse José Pinto, feirante e comunitário do território: “No porto se faz o mais necessário, lá se faz qualquer negócio e qualquer conhecido chega”. É nele que se troca favor, se compra e se vende mercadorias primordiais para o dia a dia dos moradores locais como a gasolina, o diesel e alimentos “da cidade”, industrializados. Dali é fácil avistar a bauxita explorada sendo escoada no interior de navios tipo Panamax, por meio de uma grande estrutura de ferro de cor vermelha. Do lado oposto a essa estrutura, se encontram pequenos alojamentos flutuantes feitos para os empregados contratados por prestadoras de serviços e uma estreita passarela onde lanchas e barcos vindos da região atracam, com passageiros e cargas. Em terra estão a sede administrativa do ICMBio, a feira de venda de produtores rurais e extrativistas, um pequeno ambulatório ligado à estrutura da feira, duas sedes administrativas de cooperativas quilombolas, agências de bancos privados, pequenos comércios, ponto de táxi, bar, lanchonete/restaurante, escritórios de advocacia/contabilidade, além da guarita que controla a entrada e saída de pessoas no interior da company town. Ali, na beira do rio, foi o local onde pernoitei pela primeira vez junto com comunitários do território Alto Trombetas II. Assim como nós, havia grupos que dormiam em pequenas embarcações que, como compreendi posteriormente, funcionam como acampamentos/moradia de empregados temporários da MRN. Muitas vezes, essas embarcações onde se “dorme, se banha e se come”, acabam servindo de suporte logístico para quem passa dias esperando atendimento médico no ambulatório da feirinha ou no hospital da mineração. Nesses barcos é comum encontrar feirantes e algumas famílias em 133 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV “baixada” para Oriximiná, mostrando as facetas do trânsito em torno da company town. Era a quinta vez que eu estava em temporada de campo, subindo e baixando o rio Trombetas. Nunca havia dormido no porto. Posso dizer que pernoitar não é uma tarefa corriqueira, é preciso motivos para isso, uma finalidade, pois como relatou Deuzilene, filha de Marquinho: “ninguém pernoita no porto porque gosta”. Naquela ocasião, Marquinho, o articulador da ACRQAT e homem respeitado na região, chamou atenção para a embarcação atracada ao nosso lado. Tratava­se de um barco que alojava trabalhadores da comunidade Jamari, contratados temporariamente. No mesmo barco estavam esposa, filha e dois netos de Marquinho, que aproveitaram a subida de final de semana dos homens às comunidades para baixar com eles e pernoitar em PTR. Segundo elas, no porto encontrariam com Marquinho para pagar a estadia na embarcação com um pouco da gasolina conquistada na “parceria” entre a MRN e a ACRQAT, que possibilitara a busca dos alimentos em Oriximiná. Assim, dividindo espaço, cobertores e até redes na embarcação de pequeno porte, estavam trabalhadores, crianças e mulheres, dentre elas uma grávida. Enquanto os primeiros articulavam uma forma estratégica de permanecer no trabalho, acampando no porto para garantir o emprego, os demais arranjavam uma forma de acessar atendimentos e consultas médicas sem precisar enfrentar mais viagens, dificultadas por falta de recursos e meios de troca para permanência no porto. Quem tivesse conhecidos e parentes mais próximos vivendo no TQ vizinho Boa Vista, ou na comunidade do Moura, conseguia “dar seu jeito de passar os dias”, como explicou Deuzilene. Ela havia “baixado” com moradores da comunidade Jamari, que estavam trabalhando nas minas, e explicou que a quem não contava com tal suporte de acolhimento restava pagar ou negociar aluguéis de casas na Ilha do Ajudante, situada logo à frente de PTR , ou permanecer nos acampamentos às margens da cidade­empresa, pernoitando nas embarcações atracadas. Por morarem, acamparem no porto, viverem de aluguéis em um espaço fora do empreendimento, os quilombolas são também 134 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV conhecidos como a gente do “beiradão”, que não deveria estar na company town e se aglomera, literalmente, nas margens (do rio). Ali, trabalhadores, feirantes e pessoas em busca de consultas médicas construíam e articulavam, em tempo real, estratégias distintas para entrar na cidade fechada, esperando de “barco em barco, à sorte do porto”, o melhor meio de fazê­lo. Esse é um retrato comum no dia a dia de quem pernoita para conseguir adentrar a cidade da mineração e a sua estrutura, acionando redes de troca e reciprocidade para não voltar para casa sem conseguir seu intento... e “tentar seus direito”. Compartilhando os dias com os quilombolas aprendi que pernoitar possui um significado maior que julgara possuir, significa mais que a espera, mais que a dormida. Pernoitar é estar de barco em barco, à sorte do porto. 135 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV Ode aos povos das águas Larice Almeida Marinho A ilha que leva o nome do Santo oferece mais do que dias regados a sol e águas refletindo tons de vida. O seu nome, apesar de homenagear o Santo, não possui apegos às tradições paroquiais. Na verdade, aqui a vida assumiu seu próprio ritmo. Os caminhos de seu cotidiano são fluídos e em nada se parecem com a linearidade do pensamento forasteiro. Os rios norteiam a maior parte das “estradas”, quer seja com seus nomes ou braços, braços que abraçam forte as ribanceiras. É mais do que um abraço. É o firmar constante de toda a história que esse lugar guarda, com todos os processos fisicos e de alma, com os quais se pode contar. A pedogênese narra temporalidades tanto expedientes, como o subir e descer das águas, quanto duradouras, como as formações da Ilha. O barro que está em todo lugar, permite ver que a água é a vida que flui e influi em tudo. A água é parte do ser, que já se orienta em função dessa fluidez constante. Singularmente, a várzea é feita de patamares. E cada um deles possui variações, gradientes de suas intercorrências. O verde é soberano, mas há verdes dentre verdes e cada um deles representa um conjunto vivente. Com a relva aquática contrastando­se com o barro, surgem as barreiras espelhadas, que se estendem notavelmente pelos rios à medida que caminhamos pela estrada que é o Rio Amazonas. Uma pintura constante que não sibila. As pessoas vivem em torno de outro tom, mais escuro, desenhado através das copas das árvores frutíferas, árvores como os ‘muricizais’. Conforme a paisagem se torna mais densa, encontramos casas, roças e muitos sorrisos. A vida não tem, em sua forma mais simples, fronteiras. Com uma beleza multiforme, a várzea evoca sentidos, através da vastidão de seus cheiros, texturas e sabores. 136 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV Os pássaros andam sempre, à depender da espécie, em bando, bem como as pessoas. A caça/pesca do pirarucu também acontece coletivamente. Cada um partilha da força que tem para a comunidade, todos os dias, para festejar suas existências, suas lutas e a comida, que se respeitada, dá sempre e com prazer. 137 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV ­ Falem com o Marcão! Lin Chau Ming Era o primeiro congresso de Botânica que participaria, com apresentação de trabalho na forma de resumo. Goiânia, no Estado de Goiás, em 1991. A participação em congressos científicos é sempre importante para diferentes coisas, como divulgar os resultados de algum trabalho realizado, mas o meu objetivo principal era conhecer e entrar em contato com pessoas que trabalhassem com plantas medicinais, foco de meu trabalho como extensionista rural da Emater – Paraná, e que era também uma demanda que surgia das famílias dos agricultores familiares do município onde eu trabalhava, Rio Branco do Sul, na região metropolitana de Curitiba. Num intervalo de sessões, li, num pequeno cartaz escrito à mão em um papel sulfite, um convite que me chamou a atenção. Haveria uma reunião para os interessados em trabalhar na Amazônia, indicando também o dia, horário e local. Nossa! Pensei, é uma chance para eu satisfazer um grande desejo, o de ir novamente para lá e poder fazer alguma pesquisa na região, naquela floresta. Já havia ido a Manaus e a Marabá, no final da minha graduação em Agronomia, e conhecido um pouco da floresta e os habitantes amazônicos, tendo me encantado com tudo. Ter a chance de poder retornar àquela região seria fantástico. Anotei as informações, extasiado. Em geral, imaginei, convites desse tipo, e divulgados em congresso de Botânica, onde há a presença de milhares de estudantes e profissionais que trabalham com plantas, certamente atingiriam o interesse de muitas pessoas, então achava que haveria muitos interessados e candidatos para esse convite. Iria mesmo assim para a reunião, na expectativa de ver o que um novato como eu, poderia conseguir. Dia marcado, fui com uma pequena antecedência ao local 138 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV do encontro, gosto de chegar cedo aos compromissos. Havia apenas duas pessoas. Talvez tivesse me enganado de sala. Que nada! Perguntando àquelas duas pessoas, a mulher, Profa. Nívea Fernandes, respondeu que a reunião era ali mesmo, não tinha entrado em local errado. Apresentou­me ao homem que estava com ela, Douglas Daly, botânico do Jardim Botânico de Nova York. Mas como? Cadê os interessados? Fiquei perguntando a mim mesmo. Depois de alguns minutos, chegaram mais duas pessoas. E não chegou mais ninguém, sendo então iniciada a reunião. Era o convênio que o Jardim Botânico de Nova York havia celebrado com a Universidade Federal do Acre para projetos de pesquisa botânica naquele Estado. A profa. Nívea e o Dr. Douglas estavam divulgando o convênio em busca de interessados. Acharam apenas 3, para minha alegria, pois haveria menos “competidores”. Explicados os objetivos, os critérios e os procedimentos, cada um dos candidatos presentes deveria escrever um projeto e encaminhar para as duas instituições. Estava sempre acompanhando os noticiários ambientais e políticos no Brasil (e no mundo) e me animava propor um trabalho com plantas medicinais na Reserva Extrativista Chico Mendes, unidade de conservação recém formada pelo Governo Federal, fruto da luta realizada por seringueiros acreanos, liderados pelo Chico Mendes, pela garantia da posse de terra aos seringueiros e conservação das florestas. O líder seringueiro havia sido assassinado alguns anos antes e a Reserva Extrativista recebera o nome em sua homenagem. Foi o que fiz. Escrevi o projeto, enviei para os dois responsáveis, e em poucas semanas, recebi o sinal verde da aprovação. Minha alegria foi indescritível! Chance de retornar à Amazônia e agora poder trabalhar com os seringueiros em locais onde a floresta era muito bem conservada. Segui os ritos oficiais e constava deles, a necessidade de ter autorização da entidade que representasse aquela categoria de trabalhadores, o Conselho Nacional dos Seringueiros (CNS), formado em 1985, durante o 1º Encontro Nacional de Seringueiros, realizado na Universidade de Brasília, englobando também outros 139 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV extrativistas, na luta pela defesa da floresta e reforma agrária na Amazônia, como contraponto a uma instituição do Governo, o Conselho Nacional da Borracha, que fazia as normativas para a produção e comercialização da borracha. Para surpresa minha, o CNS havia negado a autorização. Não sabia o porquê. Nem a Profa. Nívea e tampouco Douglas Daly. Ela já havia tentado conseguir uma explicação, sem sucesso. Por telefone, ela sugere, como última alternativa, a minha ida a Rio Branco, onde ficava a sede da entidade, para uma discussão direta com seus representantes. Separei um pouco do dinheiro de minha bolsa de mestrado e comprei a passagem aérea à capital acreana. Fui recebido pessoalmente pelo presidente do CNS, Júlio Barbosa, seringueiro morador do Seringal Dois Irmãos, em Xapuri, parte integrante da RESEX Chico Mendes. Participou de vários empates com Chico Mendes. Empates são reunião de seringueiros e seringueiras que se organizam e vão ao encontro dos locais onde estão sendo feitas as derrubadas, no sentido de impedir, empatar, a derrubada. Naquela ocasião ele estava em uma posição de destaque na luta dos seringueiros por programas de políticas públicas para o desenvolvimento das diferentes RESEX’s que haviam sido formadas na Amazônia, em seus planos de manejo. Estava acompanhado por dois técnicos, um deles engenheiro florestal e outra, uma engenheira agrônoma, Andrea Alechandre, hoje professora de Agronomia na UFAC. As justificativas para a negativa dada pelo CNS consistiam em alguns itens: 1. Meu projeto seria sobre plantas medicinais, uma temática sensível nas questões de potencial exploração econômica e patente por parte de indústria farmacêutica; 2. Seria feito na RESEX Chico Mendes, local de recente mobilização dos seringueiros e estava sob os olhares constantes da mídia do Brasil e do mundo; 3. O projeto seria financiado por uma instituição estrangeira, americana, o Jardim Botânico de Nova York; 4. Eu não era nativo do Brasil, apesar de naturalizado. Conclusão do CNS: a preocupação de eu ser um “biopirata” era grande, e eu poderia enviar os materiais coletados na RESEX para os Estados Unidos e de lá para as indústrias farmacêuticas 140 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV interessadas, e seria mais um caso de biopirataria, com sérios prejuízos para os seringueiros e ao Brasil, então, o projeto não seria autorizado. Claro que a tudo isso contra­argumentei, um por um, item por item. O projeto dava garantia de segurança e soberania para o Brasil e para as comunidades. Destaquei vários pontos que tocavam diretamente nessas questões, mesmo antes da regulamentação feita pelo Governo Brasileiro em 2001, aliás, devo ter sido um dos primeiros a fazer isso no Brasil. Propus um contrato assinado entre as partes; reconhecia o direito que os seringueiros tinham dos conhecimentos tradicionais sobre essas plantas; garantia que o projeto não tinha objetivos econômicos; propunha contrapartidas acordadas pelas partes; permitiria o acompanhamento e participação de um seringueiro durante todo o meu trabalho de campo, designado pelo CNS; publicaria um livro com os resultados do projeto, escrito em co­ autoria com seringueiros e que seria uma forma de comprovar a propriedade intelectual dos seringueiros sobre os conhecimentos tradicionais, e o livro seria distribuído gratuitamente nas comunidades da RESEX Chico Mendes; as minhas coletas seriam em número mínimo necessário (6 duplicatas) e haveria o envio de apenas duas duplicatas ao Jardim Botânico de Nova York, o restante permaneceria no Brasil. E as duas que seriam enviadas ao exterior passariam por um “spray” de produtos tóxicos, para dificultar a identificação dos componentes químicos da planta em eventual extração não autorizada. Também não queria colocar meu nome, minha reputação profissional em jogo, mas os técnicos e o presidente do CNS foram irredutíveis. A mim não havia outra alternativa senão agradecer a oportunidade pela reunião e voltar a Botucatu, mas num instante final em minha memória veio a lembrança de outro evento ocorrido com acreanos uns anos atrás. O ano era de 1987, eu ainda trabalhava na Emater­Paraná e havia ajudado a fundar a Associação dos Funcionários da Emater­ Paraná, e havia também organizado a formação da FASER, a 141 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV Federação das Associações de Servidores das Emateres. Naquele ano, em Curitiba ocorreu o 1º Congresso da FASER, quando fui eleito presidente dessa entidade. Era um período difícil, pois o Governo Sarney realizava a Operação Desmonte, com a extinção de diversos órgãos públicos federais, dentre eles, a EMBRATER, em Brasília, que organizava as políticas de assistência técnica e extensão rural (ATER) no Brasil e repassava os recursos para as Emateres nos Estados. Diante disso, e com a grande possibilidade de haver o fim dos recursos federais para ATER nos Estados, cada associação se mobilizou, realizando discussões e manifestações contra essa proposta do Governo Federal. Fui a diversas dessas manifestações em todo o Brasil, incluindo no Acre. Muitas representações dos funcionários sofreram represálias por conta dessas movimentações, por contrariar interesses dos dirigentes das Emateres, dentre elas a Associação dos Funcionários da Emater­ Acre (ASSEA), cuja diretoria foi sumariamente demitida pela empresa. Marcos Inácio Fernandes, presidente da ASSEA, sociólogo, acreano filho de seringueiros, tinha o apelido de Marcão por ser bem alto, e em conversa comigo durante o congresso em Curitiba, me perguntou se a FASER poderia custear as despesas do advogado que iria defender os funcionários demitidos em audiência judicial em Porto Velho, Rondônia. “Claro que podemos” respondi. Semanas depois, soube que os funcionários haviam vencido a causa, sendo readmitidos. Marcos Fernandes foi nomeado anos depois presidente da Emater­Acre, numa reviravolta política naquele Estado, com a ascensão do PT ao poder no Acre, ficando por alguns anos no trabalho de fortalecer os trabalhos de ATER, antes de entrar por concurso público, como professor da UFAC, na área de Sociologia. Então, ao me despedir, disse a meus interlocutores: ­ Falem com o Marcão! Semanas depois recebo ligação da profa. Nívea, dizendo que o CNS havia aprovado o meu projeto. Júbilo total. Um projeto de pesquisa acadêmica aprovado por uma experiência política, como nunca imaginaria, me permitiu iniciar os trabalhos na 142 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV RESEX Chico Mendes. Não sei se é a melhor das alternativas, mas demonstrou que também podem ser situações interligadas, mesmo sem saber. 143 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV Reta (quase) final Lin Chau Ming Na vida tudo tem seu final, depois de um começo. Final de um trabalho, após seu início, final de uma noite, após o entardecer, final de um dia, de uma semana. Final de um ano, final de uma festa, de um jogo de cartas ou de futebol. Final de um curso, final de uma obra, de um projeto, tudo deve ter um final. Final de uma amizade, de um namoro, após a empolgação com o novo amor, até final de um casamento, bem mais comum atualmente. Final da infância, de risada fácil, alegre e ingênua, da adolescência, querendo ser donos de nossos próprios narizes, sem períodos rigorosamente definidos, mas chegam. E tem também, finalmente (desculpem o português) o final da vida, este, inexorável. Nas nossas vidas, alguns planejam as coisas, fazem tudo certinho, passo a passo, outros nem tanto, deixam a vida lhes levar. Cada um tem sua característica, uns gostam das coisas mais organizadas, outros aceitam um pouco mais o livre acontecer. Afinal, não temos domínio de tudo. Mas temos que aceitar tudo que aconteceu e seus resultados, é nossa vida. Estou chegando a mais um final em minha vida. Creio ter feito bastante coisas durante os quase 59 anos de minha singela existência. Diverti­me muito em muitas delas, fiquei triste em outras e em tantas outras fiquei satisfeito, resultado legal, atividade realizada, missão cumprida. Como já disse, tentei planejar algumas delas, com sucesso. Significa que estabeleci atividades com alguma antecedência, segui o que me determinei, fiz tudo certinho e terminou, cem por cento. Em outras, as coisas iam acontecendo, iam e vinham, como ondas do mar, muitas vezes sem saber para onde iam, eu as acompanhava a seu sabor. Se me arrependi de algo durante esse período? Claro que sim, às vezes tomamos decisões erradas, fruto de inexperiência ou de análise intempestiva. Mas creio que no total, na média, fiz as coisas certas. 144 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV Sim, desta vez estou planejando esse final. Sei que podem e devem acontecer coisas que não estarão no “script”, mas vou tentar. Estou planejando o final de minhas atividades profissionais como professor universitário. Dediquei­me intensamente a elas, tenho certeza. Já vou cumprir o que determina a lei de aposentadoria, mesmo com a fase de transição que pode ser alterada pelo Governo (em tempo, Fora, Temer! Diretas, já!). E já estou fazendo uma transição, com duas características principais: a transição para uma vida mais rural e a minha transição de atividades na Faculdade de Ciências Agronômicas. Fiz minha mudança definitiva neste ano para o sítio que adquiri há cinco anos. Saí da cidade e estou gostando bastante do novo local e do novo estilo de vida. Acordo bem cedo e antes de ir para o trabalho na universidade, ainda dá tempo de fazer algumas coisas por lá, corriqueiras, como ver a horta, as galinhas e outras aves que crio, comer alguma fruta colhida no pé, dentre tantas outras coisas que satisfazem a alma. Nos finais de semanas tenho mais tempo para fazer o que um sítio demanda, tem trabalho todos os dias. Assim que me aposentar, serei agricultor em tempo integral, acho que falta essa atividade para eu completar um círculo virtuoso de um agrônomo que foi extensionista, professor, pesquisador e, agora, produtor rural. Aplicar na prática tudo que aprendi e vivenciei. Decidi também não mais orientar estudantes de doutorado desde o ano passado e orientar neste ano os últimos mestrandos no programa de pós­graduação em Horticultura, onde estou vinculado há 20 anos. Dos alunos de graduação, a posição é a mesma. Acho que mantive relações acadêmicas com muitos deles nesse período e agora devo diminuir o ritmo, finalizando as últimas orientações vigentes. Essa também é a situação com relação às disciplinas que ministro. Vou também finalizar os últimos projetos de pesquisa que coordeno, não vou enviar mais nenhum outro, pois em geral eles têm duração de pelo menos 2 anos. Assim termino tudo com mais calma, sem o costumeiro estresse que eles sempre me causam. 145 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV Essa transição teve uma novidade: tive meu pedido de bolsa de estágio sênior no exterior aprovado pela CAPES, um tipo de pós doutorado para os pesquisadores mais experientes. Passarei um ano em Nova York (de novo!), trabalhando com plantas alimentícias utilizadas por comunidades indígenas multiétnicas do Alto Rio Uaupés, Amazonas, a partir de julho deste ano, no Jardim Botânico de Nova York, onde se localiza o herbário com a maior coleção de plantas amazônicas do mundo, vejam só. E a biblioteca com maior acervo de livros/documentos sobre Botânica/Horticultura reunidos em um único local dos Estados Unidos. Essa viagem estava, por assim dizer, não propriamente programada, apesar de eu ter tomado a iniciativa de enviar o pedido. Mandei meio que por mandar apenas, no ano passado... Não estava muito animado, porque já tinha decidido me aposentar no ano que vem, mas já que foi aprovado (e sei que a concorrência é muito grande e a situação de financiamentos para pesquisa do Governo Federal está complicada), decidir ir. Já assinei o contrato, estou nas tratativas de finalizar os documentos para o visto, compra das passagens, seguro viagem, aluguel de apartamento por lá, organização do plano de atividades e outras coisas pertinentes a esse período no exterior. Está me tomando um tempo adicional, principalmente porque tenho que resolver ainda várias pendências (quase eternas) por aqui, de relatórios e prestação de contas de projetos, além de acertar a situação dos meus atuais orientados/estagiários e das aulas. Isso sem contar as pendências de casa, familiares. Retornarei em julho de 2018 e como terei compromisso de ficar na UNESP por mais o mesmo período que fiquei fora do Brasil (é o que estipula a norma de bolsa da CAPES), poderei me aposentar em julho de 2019, o que pretendo fazer. Assim, espero ter cumprido mais um final em minha vida e poder iniciar outro começo, com outras finalidades e características, como agricultor orgânico/agroecológico e também me dedicando mais à família (que deixei meio abandonada, sem a devida atenção, o que 146 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV lamento muito hoje) e às muitas coisas mais simples de nossas vidas. Abraços a todos e até a volta. PS: Escrevi esta crônica em maio de 2017 e agora, deixei a vida me levar, e mesmo aposentado, fui selecionado num edital para professor visitante sênior no Programa de Pós­Graduação em Agroecossistemas da Universidade Federal de Santa Catarina, onde ficarei de por dois anos, a partir de agosto de 2019 adiando, um pouquinho, o que havia planejado. Florianópolis, janeiro de 2020. 147 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV Mais um ano sem carro Lin Chau Ming Algumas árvores já começam a ter suas folhas caindo ao chão. Ainda é verão, mas o outono já se avizinha, os dias são mais frescos. Incrível como as estações de ano por aqui são bem marcadas, cada uma com características próprias e definidas, apesar das mudanças que o aquecimento global tem provocado recentemente, dizem os cientistas. A maioria das árvores continua com folhas verdes, mas algumas já começam a amarelar. Em Ginkgo biloba isso é mais facilmente percebido nessa época; em pouco tempo todas as folhas ficarão amarelas e logo depois a copa ficará sem folha nenhuma, num belo espetáculo da natureza. As folhas de crabapple apresentam manchas mais escuras causadas por algum fungo oportunista, ficam espalhadas nos gramados dos parques e também ao longo das calçadas cimentadas perto do Jardim Botânico. Essas árvores produzem mini­maçãs, que maduras, vermelhinhas, são consumidas por pássaros ávidos por comida nesse tempo de início de escassez alimentar para os animais silvestres. Eu também as como, são saborosas, pego um punhado delas e saio comendo, creio que não farão muita falta aos animais, há outras opções por perto. Uma bicicleta totalmente pintada de branco, acorrentada em um poste, mostra o local onde um ciclista foi atropelado por algum veículo e faleceu. Paro por curiosidade e respeito, sei o que essa situação representa. O guidão está um pouco torto e se vê nele um pequeno ramalhete de flores de plástico e uma placa indicando a data fatídica. Não há nome grafado em nenhum local, talvez fosse um desconhecido, mas creio que foi em respeito ao morto. Por aqui há ciclovias em toda a cidade, bem estruturadas, uma excelente opção para a mobilidade urbana, mas mesmo assim, acidentes acontecem, pois o número de veículos aumenta consideravelmente a cada ano e os motoristas parecem não ter o 148 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV mesmo cuidado ao volante. O uso de celulares enquanto dirigem é uma das principais causa de acidentes motivados por motoristas, igual a qualquer lugar no mundo. Um esquilo sai saltitando, com uma pequena noz de Quercus entre os dentes. Encontra um local no gramado perto do carvalho que forneceu o fruto e cavoca um pequeno buraco onde deposita a noz. É para guardar e poder comer depois. Sempre admirei esses pequenos animais, são ágeis, rápidos e inteligentes. Se acostumaram com a presença humana em seus territórios e é sempre divertido oferecer um pouco de comida a eles. Se aproximam devagarinho, meio ressabiados, afinal, sabem que somos predadores, instinto ainda impera em seus cérebros. No Brasil não é comum encontrar seus parentes sul­americanos nas praças. Porque será? O lixo deixado nas calçadas e nas ruas destoa bastante da propalada civilidade desse país desenvolvido, dando um ar mais realista a esse país multi­étnico. Realmente me causa indignação o consumismo exacerbado por aqui. Joga­se tudo no lixo, ou nas ruas. Pessoalmente, utilizaria alguma parte desse descarte, aliás, tenho usado sim, como as mobílias que encontrei e estou usando agora no apartamento onde moro. Outras pessoas também coletam e reciclam os materiais descartáveis. Algumas delas as vejo diariamente, pegando garrafas pet e latinhas de refrigerante ou cerveja e levando­as para alguns locais que recebem esses produtos e em troca oferecem cinco centavos por unidade reciclada, estimulando essa parte da cadeia produtiva. Lixo, sim, vale dinheiro. O ponto de ônibus está cheio, deve estar atrasado. Finalmente, chegou, ainda bem, já estava sentindo um pouco de frio, o vento veio devagar, mas ficou, e eu não trouxe uma roupa mais quente. As pessoas se sentam, cansadas, final de expediente para uma maioria, retorno para casa, descanso merecido. É um veículo novíssimo, com bancos de plásticos azuis e os corrimões amarelo­ouro presos ao teto e a luz bem intensa. O ar condicionado está ligado, deixando o ambiente ainda mais frio. Sento­me bem debaixo de uma grade onde o fluxo de ar frio é mais 149 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV forte, causando um pouco de desconforto, mas nada que não se possa suportar por algum tempo. Um dos cartazes internos mostra uma poesia chamada Um Nome, de Ada Limón, e eu me atrevo a fazer uma tradução livre dela, em prosa, falando sobre quando Eva caminhava entre os animais, no início da criação, e ia lhes dando nomes, um por um: rouxinol, falcão de ombros vermelhos, caranguejo violinista, gamo... E que depois poderíamos imaginá­la voltando, querendo que eles respondessem; e olhando em seus olhos, sussurava: dê um nome para mim, dê um nome para mim. Uma pequena e singela poesia, em uma iniciativa chamada Poesia em Movimento, da Sociedade de Poesia da América e da Autoridade Metropolitana de Transportes; legal, vale a pena lê­la no original e refletir, enquanto a viagem continua. Uma jovem mãe tenta conter os ânimos de um par de filhos, que faz bagunça nos bancos, cada um com um pirulito na boca. Correm para longe do alcance da mãe e voltam, gritando sem parar e dando gargalhadas sonoras. Consegue, não sem antes ter dado uns pitos mais fortes neles. Energia à flor da pele, gastam­na em qualquer oportunidade. As aulas acabaram de começar por aqui. Aqueles meninos, decerto, não conseguiram gastar toda a energia durante o período na escola. Como será na casa deles? A mãe vai ter que ter atenção redobrada e muita paciência. Não há correria para sair do ônibus, as portas se abrem e o motorista que dirigia sem estresse, espera, aparentemente bem calmo, os passageiros descerem naquele ponto. Uma senhora com um andador demorou um pouco mais, mas não se percebe nervosismo entre os passageiros que ainda não saíram, todos aguardam a idosa poder, por conta própria, descer do coletivo. Um sistema hidráulico comandado pelo motorista faz abaixar o degrau junto com uma rampa, permitindo a mobilidade daquela senhora. Nesse processo, um apito avisa intermitentemente, até sua finalização. Fui o último a descer, tranquilo. Parte da calçada por ando agora foi refeita recentemente. Vejo o cimento com cor mais clara. Diferentemente das calçadas no Brasil, as daqui não são feitas como “casca de ovo”, ou seja, com 150 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV apenas uma camada bem fina. São feitas com uma camada bem grossa de concreto, assim duram muito mais tempo e tem um acabamento mais caprichado, pois os contornos dos recortes das calçadas é alisado, ficam mais bonitos. Mas já podem ser observadas muitas manchas pretas em cima delas: são chicletes pisoteados, cuspidos pelo povo e que vão ficando no chão, enfeiando o lugar. Realmente, isso poderia ser evitado. A maioria das calçadas possui árvores plantadas. E elas são plantadas em espaço bem maior do que no Brasil; espaços retangulares não cimentados com aproximadamente 5 x 10 pés são destinados a cada árvore e não apenas um quadradinho de 50 x 50 cm. Assim, crescem melhor e há maior área de drenagem nas vias públicas. As mudas plantadas são bem maiores sobrevivência é bem maior depois de alguns anos. O Departamento de Parques de Nova York coloca uma placa de alumínio em cada muda plantada, com seu nome popular e científico e informações sobre como cuidar dela, além de um site, um QRcodee um telefone (301) para obter mais informações sobre a espécie plantada. É um programa chamado Histree, uma corruptela bem interessante. Isso sim, coisa de primeiro mundo. Li que a cidade tem mais de 600 mil árvores plantadas nas ruas, não contando as nos parques e praças; acho que é um número até pequeno pois dá pouco mais de uma 0,06 árvores por habitante. Mas a cidade continua plantando, fácil é observar plantas novas nas calçadas. Qual é o número na cidade de São Paulo? E Botucatu? Não sei, alguém poderia verificar isso. Na deli da esquina, um grupo de dominicanos fala bem alto. Normal para esse povo caribenho, sempre alegre. Uma comunidade de lá habita essa parte do Bronx onde moro, muito numerosa. Pouco mais adiante, outro grupo dança ao som de uma salsa. Alguns aos pares, outros não, dançam em grupo ou isoladamente. Não, não é Despacito, hit do momento por aqui também. Não sei o nome da música, pois não acompanho esse tipo de tendência musical. Mas são bem animadas, reconheço. Cheiro de pollo al horno preenche o ambiente, bem característico, complementando a cultura local. Falando em cheiro, mais alguns quarteirões depois, 151 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV algumas pessoas conversam junto a uma caixa dos Correios americanos. Jovens, usam tênis, calções e camisetas, se preparando para um jogo ou exercício na praça Claremont, que fica bem perto. E o cheiro de weed (em inglês local, mas pode ter outro significado, desta vez agronômico) ou marijuana (em espanhol, mas usada e entendida em várias partes do mundo) é inconfundível. Passo sem dar bola, é muito comum na cidade, mesmo proibida. Mas não gosto de seu cheiro, é desagradável para mim. Sua legalização já foi aprovada em alguns Estados americanos, para uso terapêutico ou auto­consumo. Um casal passeia com um chihuahua, essa raça mexicana muito comum por aqui. Esse tem cor marrom escuro e manchas claras no peito, nas patas e na ponta do rabo.Cãozinho esperto, corre e fica cheirando todos os lugares por onde passa. Não late para pessoas que passam ao lado, deve ter sido adestrado para isso, pois em geral os representantes dessa raça são bem nervosos, se estressando com pessoas ou animais que se aproximam deles. O passeio ativa as reações fisiológicas do pequeno animal, que se apronta para fazer cocô. Curbyourdog, é um aviso comum nas calçadas da cidade, indicando a necessidade de limpar as fezes de seus animais, sob pena de uma multa de 100 dólares. O casal espera seu pet terminar o serviço e recolhem em um saco plástico, enquanto o animalzinho continua se afasta do local. Mesmo com essa lei, por aqui há muitos locais onde é preciso prestar atenção para não levar materiais com cheiro desagradável debaixo das solas dos sapatos. Finalmente, chego em casa. Caminhei por cerca de vinte minutos, um pequeno exercício, feito devagar. Subo os degraus da entrada do prédio que tem o padrão daqui, de tijolinhos à vista e com as escadas de incêndio de ferro na parte externa. A cidade ainda está bem acordada. Mas eu me protejo do seu corre­corre descansando um pouco, antes do jantar e do banho. O dia foi realmente cansativo, muita coisa aconteceu. Foi assim um pouco de um dia de minha vida por aqui, em mais um ano sem carro. PS: crônica escrita no verão de 2018, durante a realização de estágio 152 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV sênior no exterior, no Jardim Botânico de Nova York, pesquisando as coletas botânicas das plantas alimentícias utilizadas por comunidades indígenas multiétnicas do Alto Rio Uaupés, Amazonas. 153 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV Vinte! Lin Chau Ming Deitado confortavelmente em sua rede de algodão, feito por sua esposa, Carlos18, ancião mais idoso da aldeia Suruí­Paiter, descansava após o almoço na tarde quente e úmida na região ocidental da Amazônia brasileira, no município de Cacoal, Rondônia. Sua idade foi calculada em 90 anos, por medida antropométrica feita por funcionários da Funai, mas poderia haver diferença, para mais ou para menos, dadas as imprecisões desse método. Sua baixa estatura e o corpo mais atarracado poderiam estar fora dos padrões das medidas utilizadas. Os Suruí­Paiter são falantes de uma variação do Tupi, diferente do falado por seus parentes da região sul­sudeste do Brasil e do nheengatu amazônico. Tiveram os primeiros contatos com a sociedade não­indígena nos anos 1960, quando o avanço da fronteira agrícola, promovida pelo Governo Militar, alcançou seu território ancestral. Em 07 de Setembro de 1969 foi feito o contato oficial e essa data serviu de motivo para dar nome à Terra Indígena de seu povo, T.I. 07 de Setembro. Sua rede estava armada, junto com outras de sua família, em uma construção feita de esteios de madeira coberta com folha de babaçu e ficava ao lado de algumas casas da aldeia, para descanso, cozinha e convívio social de membros da família. Dois de seus filhos também descansavam em redes. Eu estava sentado em um toco de árvore que servia como um banco. Os Suruí­Paiter mais idosos apresentavam em suas faces uma tatuagem feita com jenipapo, dois traços retilíneos que cortavam a face da ponta de uma orelha a outra. Além disso, furavam o lábio inferior para 18 Todos os nomes deste texto são fictícios. 154 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV inserir uma peça fina, tipo uma agulha, feita de resina vegetal. Carlos e sua esposa apresentavam as marcas dessas duas tradições. Essas características foram eliminadas com o contato, juntamente com suas crenças religiosas originais. Não há mais pajés ativos em toda a terra indígena, e as religiões de cunho católico e cristão dominam todas as aldeias do Território. Conservam ainda o hábito da caça e do plantio de roçados tradicionais, este último quase desaparecendo, dada a preponderância do plantio café e banana, ambos para venda fora das aldeias. Ao lado dessa construção, duas de suas netas lavavam os pratos e panelas utilizados no almoço. A vinda da luz elétrica promoveu uma mudança em alguns dos hábitos tradicionais. Não se vai mais ao rio (ou apenas em algumas poucas ocasiões) lavar pratos e roupas ou tomar banho, dadas as facilidades que a água de poço artesiano, instalado em vários locais da aldeia, promoveram recentemente. Há uma casinha com um chuveiro frio e uma torneira em uma bancada de madeira, que serve de estrutura para lavar utensílios domésticos ou roupas. Ah, e água gelada, guardada em garrafas pet na geladeira de uma das casas, é essencial para o novo estilo de vida deles. Um periquito fazia zoada solitária, preso que estava em uma pequena gaiola, talvez chamando pelos seus, que não respondiam naquele momento. Um casal de araras responde, no alto, num voo atravessando a aldeia, mas não serve para o periquito, são parentes distantes. Cachorros da raça de caça americana deitavam próximos a seus donos, sonolentos, o mesmo ocorrendo com o único gato da aldeia, numa convivência amistosa. Galinhas passavam de quando em quando por perto, ciscando à procura de insetos ou minhocas. Naquele ambiente tranquilo, fiz uma rápida conta mental e concluí que Carlos teria 41 anos quando do primeiro contato com os não­índios. Disseram que ele foi o primeiro de seu povo a ver um avião e ter ido contar essa história para sua aldeia, e que boa parte dela não acreditou nele, pois como imaginar que algo, além 155 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV de pássaros, poderiam voar tão alto? Quanta história (e outras) ele tem para contar. Que transformações radicais aconteceram desde que passaram a ter contato com a sociedade moderna. Bastante lúcido e olhar elétrico, não demonstrava a idade que tinha. Estava curioso para saber suas experiências de vida antes do contato. Apenas tranquilidade na vida na floresta? Seguramente não, muitas coisas mais agitadas aconteceram, sim. Mas não tão violentas quanto as que seu povo está enfrentando agora, como a mineração de diamante, desmatamento, invasão da Terra Indígena, pastagens e tantas outras violações em seus direitos. Aproveitei e pus­me a conversar com ele. No meio da conversa, um assunto me veio à mente e que talvez não tenha sido estudado por nenhum antropólogo. Aliás, penso que talvez deva ter havido tal estudo, mas não tive a chance ainda de pesquisar. Estava meio receoso em perguntar, mas tomei um pouco de coragem e fui adiante. Queria saber sobre guerra entre os grupos indígenas da região no passado não muito distante. Disse­me que as guerras eram feitas para garantir maior área em seus territórios para caça e pesca, além de melhores terras para o cultivo de suas plantas. E também lugares sagrados tinham que ser protegidos da cobiça alheia. Garantiu­me que as guerras não eram feitas para pegar mulheres e crianças para adoção, pois os cinco clãs existentes, suas regras sobre casamento intergrupos, o sistema patrilinear adotado, e o bom número de pessoas de sua etnia, garantiam um adequado equilíbrio populacional. Mas guerreavam. E na guerra, em seu sentido literal, há uma consequência clara. Morte! Morte dos guerreiros das partes envolvidas na contenda. Olhei mais fixamente para o ancião, peguei um fôlego, respirei mais fundo, e perguntei: ­ O senhor já matou algum índio quando era mais jovem? Imediatamente, não demonstrando surpresa com minha pergunta, se acomodou na rede, mudou de posição, agora sentado nela, e de frente para mim, estendeu suas duas mãos com as 156 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV palmas abertas e as colocou perto de seus dois pés, com as pernas esticadas. ­ Quantos? ­ indaguei, não entendendo o que ele queria me dizer com o gestual. Repetiu o movimento, com maior ênfase nos dedos das mãos e colocando­os mais perto dos dedos dos pés. ­ Vinte! ­ disse João, seu filho, que acompanhava a conversa, olhando pra gente, mesmo deitado na rede. Com mais calma, pude então concluir pelo número mostrado com os membros de seu corpo. Como não tinha percebido isso antes? Mesmo tendo aprendido o português já com certa idade, Carlos entendia e falava­o fluentemente, junto com a língua materna, esta com mais fluidez e desenvoltura. Não pude entender porque usou a linguagem dos gestos, a linguagem corporal. Explicou depois que as vítimas foram os Zoró e os Nhambiquara, etnias que vivem na região e que atualmente têm seus territórios confrontantes com os dos Suruí. Hoje, apesar das desavenças históricas anteriores, convivem em paz. ­ Quais armas usava? ­ perguntei. ­ Flechas e borduna, respondeu com um pequeno sorriso, mostrando alegria pelas ações passadas. Não conseguia imaginar uma pessoa de corpo pequeno manejando a borduna para golpear os adversários. Seria uma luta de corpo­a­corpo, com certeza. Ganhei do filho dele uma dessas armas de guerra, hoje fabricadas para adorno. Feitas com a parte mais externa e dura do estipe de pupunha silvestre, não tem mais do que 70 cm de comprimento. Tem sua parte de cima afiada e uma cabeça com formato lanceolado, com três incisões em cada um dos lados, que aparentemente serviriam para quebrar mais facilmente alguma parte do corpo do adversário escolhido. Mesmo adotando tática de tocaia, atacando apenas quando estivesse bem próximo do outro, a borduna exigiria técnicas de ataque mais sofisticadas, dada a necessidade de golpear a curta distância. Situação que o uso do arco e flecha não exigiria, posto poder atingir o adversário à distância, mas necessitando de 157 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV habilidade e precisão no manuseio dessa outra arma de guerra, agora de caça ou ainda produzida como adorno. Mas como atingir a flecha no adversário no meio da floresta, com tantos obstáculos no meio do caminho? Árvores o esconderiam do inimigo na floresta, mas também protegeria o lado oposto do ataque. De novo, o estabelecimento de técnicas especiais de caça, atirar sem ser notado, sem fazer barulho. O arco também é feito de pupunha, com o encordoamento feito de fibras de tucum. As flechas são feitas de uma taquara fina, com penas de arara em uma das pontas (a que se conecta com a corda), para dar uma aerodinâmica adequada durante o seu percurso aéreo, e na outra ponta, diferentes formatos e materiais, dependendo do tipo de caça, uns mais penetrantes e outros mais contundentes. Carlos é um dos que ainda dominam as técnicas no fabrico dos arcos e flechas. Fiquei pensando: Será que também dependia do tipo de pessoa a ser atingida, nas épocas quando ainda havia guerra? Não perguntei, e também não fiz outras perguntas relativas a esse tema, segurei um pouco o meu ímpeto, pois imaginava estar entrando em assunto com potencial conflituoso ou mesmo tabu (atualmente), apesar do sorriso que havia notado no ancião. Precaução, uma atitude sempre presente nos trabalhos de campo. Mas vai ser assunto de conversa na próxima oportunidade em que estiver com ele, acho que não haverá problema, já estaremos mais próximos e à vontade para conversar sobre isso. E vai ser em breve. 158 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV Amazônia, entre povos e floresta: o começo dessa história foi no rio Jordão Málika Simis Pilnik e Tarik Argentim O tempo era de chuva: janeiro de 2018. Partimos de Cruzeiro do Sul rumo ao Jordão, no vale do Juruá, estado do Acre, para estabelecer o primeiro contato in loco com as famílias que participariam da pesquisa de mestrado. Dentre os motes dessa jornada, buscávamos estabelecer uma relação de confiança a fim de obter a anuência e o consentimento das lideranças e demais membros das comunidades quanto ao trabalho pretendido junto ao povo Huni Kuĩ. Nativo das aldeias da Terra Indígena Kaxinawá do Baixo Rio Jordão, localizada no sudoeste da Amazônia brasileira, o grupo que pretendíamos trabalhar vive em um dos locais mais isolados do país – haja vista a ausência de estradas e a carência de meios de comunicação que conectem a região ao restante do território nacional. Suas terras pertencem a um município novo, criado em 1992, sob as bases da antiga “Vila Jordão”. Até hoje, os mais velhos dizem “vamos à vila”. Para chegar ao local, fora preciso se locomover por três diferentes modais de transporte. Primeiro tomamos um ônibus de Cruzeiro do Sul/AC, que percorreu os últimos e esburacados trechos da BR 364, por aproximadamente seis horas, até atingir a cidade de Tarauacá/AC. Dali fomos, pelas alturas, sentido Jordão, através de uma aeronave monomotor (popularmente conhecida como “teco teco”, que, diga­se de passagem, faz um barulho arretado e dá um medo danado!). Finalmente subimos nas pequenas embarcações (verdadeiras canoas rústicas com os regionais motores de rabeta) para ganhar o rio Jordão até o esperado destino: as aldeias. Os indígenas narram que, antigamente, costumavam construir canoas de madeira guariúba. Desciam e subiam pelos 159 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV rios de “varejão”, utilizando o caule da cana­brava (abundante nas matas ciliares pioneiras) como uma espécie de remo. Contam que demoravam cerca de duas semanas só para chegar à Tarauacá/AC. Um contraste enorme, se levarmos em conta que, atualmente, é possível alcançar o mesmo local em menos de uma hora, por via aérea. “Ah, hoje a vida é muito mais fácil!”. Impreterivelmente, para dois amantes da floresta, a melhor parte do deslocamento foi a viagem de canoa. Sobre as águas brancas, castanhas, que serpenteiam, incansáveis, as verdes matas, avistávamos desde plantas herbáceas, como helicônias, capebas, pobre­velhos; até árvores frondosas e imponentes, como samaúmas, angelins e cumarus. Em seus galhos, comum é avistar a morada de aves japiim, conhecidos pelos indígenas por txanas, as quais fazem seus ninhos “dependurados” como belos lustres que adornam os seres em pé da floresta. A chegada à aldeia do povo Kaxinawá (Huni Kuĩ, como se autodenominam) foi motivo de alegria e agitação. Fomos muito bem recebidos, com cantos, sopros em buzinas (confeccionadas com taboca e rabo de tatu), e, para felicidade de todos, abundância de comida. Aqueles que não tinham algo especial para oferecer – como carnes de caça, peixes e/ou frutos sazonais – sempre serviam ao menos macaxeira ou banana cozida, acompanhados de coloridos mundubim (o popular amendoim). Os primeiros dias na floresta são desafiadores. De início, enfrentamos a lida diária com os insetos, entre piuns, meruins, carapanãs, além dos temíveis mucuins. As chuvas repentinas nos alertavam: é preciso estar atento e cuidar para "não derrapar nos caminhos de tatu". Na mata, a cautela deve ser redobrada. Um olho no solo: para não pisar em espinhos de tucum, tropeçar em paus caídos, atropelar correições de formigas, entrar em buracos e se machucar com as tucandeiras; e o outro na linha do horizonte, desviando dos obstáculos das varações: desde enormes teias de aranhas, passando por certos animais peçonhentos, aos conspícuos espinhos do murmuru. Tivemos a oportunidade de conhecer todas as aldeias da Terra Indígena Kaxinawá do Baixo Rio Jordão. Guiados pelo Txai 160 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV Bane Duabake, filho do reconhecido líder indígena Getúlio Sales Kaxinawá, em cada uma das comunidades fazíamos reuniões com os moradores. Explicávamos o trabalho a ser desenvolvido e, aquele que dominava melhor o português, traduzia para os demais. Conversavam um momento na língua nativa (hãtxa­kuĩ) e, em seguida, observado pelo silêncio dos demais, o porta­voz nos dava o veredito. Ao chegarmos na terra indígena, fomos direto à aldeia Nova Empresa. É a comunidade com a menor população da TI, sete famílias e cerca de 60 pessoas. Trata­se do lugar em que reside Lucas Sales Kaxinawá, um dos principais interlocutores da pesquisa. Lá participamos de tradicionais pescarias com tingui – um arbusto, cujas folhas são coletadas pelas mulheres e pisadas pelos homens até virarem bolões que são arremessados nos igarapés. Tivemos a oportunidade de experienciar todo o processo. Após alguns segundos, pudemos observar que os peixes começam a bulhar na superfície da água – graças a um conhecimento originário que provoca paralisia temporária no sistema nervoso dos seres das águas. Além desta, pudemos vivenciar diversas outras atividades corriqueiras do modo de vida Huni Kuĩ: colheita de legumes do roçado; confecção de cestos de fibras de palmeiras; tecelagem meticulosa em tear manual – desde a colheita e fiação artesanal do algodão, até a obra final (bolsas, coletes, faixas, cachecóis, etc.); e, não menos importante, o aguardado preparo da “caiçuma­forte” (chamada de masato, em hãtxa­kuĩ). Esta experiência foi, digamos, visceral. Logo após a refeição, já realmente satisfeitos da comida farta, Ayani, a matriarca, apontou: “agora vamos fazer o masato!”. Uma bebida fermentada à base de macaxeira, produzida exclusivamente por mulheres. Nos afastamos dos homens e em roda sentamos. A macaxeira cozida no centro e, ao lado, uma bacia para a massa salivar. A matriarca começou a mastigar um pedaço, enquanto suas filhas olhavam para a novata e riam (talvez alegrando­se em reconhecer o choque cultural encarado pela iniciante). Então, quase que sem coragem para enfrentar mais comida 161 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV pela frente, um pedaço foi abocanhado. “Masque até quase engolir e cuspa no vaso”! Seguiu­se à instrução, como boa aprendiz. A primeira vez é estranho, pois há o impulso de engolir; nada que com a prática não se acostume. Ficamos mastigando e cuspindo por aproximadamente uma hora, quando Ayani disse chega e tampou com um pano a bacia. A bebida ficaria pronta após dois a três dias, tempo necessário para a fermentação. Este processo peculiar trata­se de uma tecnologia de conhecimento de determinados povos indígenas amazônicos, os quais perceberam, através da experiência, que a bebida fermentava com maior intensidade na presença da saliva. Ainda na aldeia Nova Empresa, tivemos outra experiência especial: a participação em um “feitio” de nixipae (ayahuasca), justo na data de aniversário da autora. Baita presente! Na tradição dos Kaxinawá, as mulheres coletam as folhas da kawa e os homens maceram o caule do cipó huni. Depois, esses vegetais são colocados em grandes panelas para juntos trabalharem no fogo durante horas. Participamos apenas dois dias de um esforço que dura até semanas, mas pudemos perceber o extremo labor e dedicação necessários para a produção desta sagrada bebida que nos conduz pelo universo dos espíritos da floresta. A segunda aldeia que visitamos é chamada de Nova Cachoeira. Lá, conhecemos a dona Maria Jarlene, da família Maia, mãe de dez filhos e avó de quatro crianças. Afrodescendente, filha de antigos seringueiros oriundos do Nordeste, casou­se com o agente agroflorestal indígena desta comunidade e vive há vinte anos entre os Huni Kuĩ. Compreende tudo na língua nativa, se pinta de jenipapo e urucum, usa os adornos tradicionais, porém disse, ela mesma, não saber falar o hãtxa­kuĩ. Nessa realidade de rincão amazônico, acabou por desenvolver outras formas de comunicação. Este caso mereceria um intrigante estudo antropológico, mais ainda considerando que ela é a única não indígena deste grupo familiar. Depois, seguimos para a aldeia Morada Nova. Era chegada a época de colheita do mundubim, geralmente cultivado nas praias do rio Jordão. Todas as moradias estavam com as cumeeiras 162 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV repletas de vagens amarradas em pares (técnica típica de armazenamento compartilhada pelos membros desse povo). Olhávamos para o teto das casas e não havia nenhum centímetro que não fosse preenchido com a leguminosa. Algo único de se ver! Os Huni Kuĩ são exímios plantadores de amendoim, e possuem sete variedades que diferem em cores, sabores, texturas e tamanhos. Subimos um pouco mais pelo rio e visitamos a aldeia Astro Luminoso. Trata­se de uma comunidade relativamente nova. Caminhamos pela mata com os jovens e nos deparamos com um pé de “biorana” carregadíssimo. No solo, haviam diversos frutos. É uma das espécies do gênero Pouteria (Sapotaceae) que produz um dos maiores frutos que já vimos! Provamos. A polpa é suculenta, de sabor excelente, adocicado e refrescante. Comemos um bocado. No entanto, os meninos não nos avisaram que era recomendado apreciar acompanhado da ingestão de água, devido a abundância de látex que a espécie possui. Após cerca de 30 minutos, quando já estávamos de volta em uma das moradias, começamos a sentir dor de barriga. O Ixã, garoto de dez anos de idade, disse saber como aliviar a dor. Pegou uma rolha, queimou e passou o calor em nossas barrigas. Enquanto isso, sua irmã Maspã cantava uma música, que, segundo ela, servia para melhorar problemas estomacais. E não é que deu certo? Já no final da viagem, deslocamo­nos, a jusante, para as aldeias localizadas mais próximas do município do Jordão, a saber: Novo Lugar e São Joaquim “Centro de Memória”. Nelas vivem os indígenas mais anciãos que tivemos a possibilidade de conhecer. Nos contaram diversos causos sobre: o tempo das malocas, anterior ao contato com não indígenas; o tempo das correrias, período de fuga e extrema violência contra os povos nativos para a exploração da Hevea brasiliensis pelos colonizadores; o tempo do cativeiro, quando foram escravizados pelos patrões seringalistas para trabalharem exclusivamente no “corte da seringa”; e, finalmente, o tempo dos direitos, representado pela demarcação dos territórios e pela liberdade de poderem ser diferentes do entorno, o que 163 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV contribuiu com o fortalecimento do modo de vida tradicional. Na canoa, de volta para a casa, os dois viajantes se entreolharam com uma mesma sensação: missão cumprida. Não somente pelo consentimento das comunidades para o desenvolvimento do projeto de pesquisa; mas, sobretudo, por terem conhecido uma realidade tão viva e ancestral, contraditoriamente invisibilizada no restante do Brasil. O coração estava pleno, embora a mente inquieta para superar os desafios apresentados. Tais vivências nos fizeram, inclusive, refletir e compreender melhor um dos papéis da própria Etnobiologia: trabalhar pela valorização dos conhecimentos locais/tradicionais/autóctones/indígenas, na luta pelo reconhecimento daqueles que permanecem vivendo, aprendendo e conhecendo com a natureza que genuinamente somos. 164 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV Da poesia a resistência Marcela Eringe Mafort De um rio de águas aparentemente vistosas, erguem­se os olhos que diante dos meus são poesia. Rostos e peles queimadas do sol, mãos calejadas e em parte das vezes machucadas pelo suor do ganha pão do dia­a­dia. Na silhueta do Rio Pomba, um dos afluentes mais importantes da bacia do Rio Paraíba do Sul, o pescador vai fazendo o seu tracejado... Vindo à memória recordações de um rio que há tempos não se vê mais... Como diz o velho pescador, “tinha muito peixe nesse rio, tinha vida e tinha sustento”. Com olhos de quem tenta imaginar tanta riqueza, observo somente o que restou do que disseram ser o progresso. O ciclo do café, o “licor negro”, os empreendimentos hidrelétricos... O tal progresso de quem? Pouco sobrou das matas ciliares, seu leito majestoso se encolhe cada vez mais. Peixes que antes eram vistos aos montes, hoje estão vivos somente no passado dos mais antigos. As redes e tarrafas que antes eram sinônimos de fartura, hoje somente representam resistência e luta. Meu olhar segue seus olhares... O que dizer diante do vazio? Neste instante o silêncio já fala... Procuro manter meu equilíbrio e a neutralidade que a ciência me exige, mas confesso que do outro lado dessa linha imaginária, meu lado humano fica em ruínas! Sigo os trabalhos de campo vendo a poesia nos olhos marejados dos pescadores que ainda resistem. Armam suas redes, batem suas tarrafas, cortam o rio de fora a fora somente no instinto, à procura de voltar ao seu lar com o sustento da família. Lutam pela cultura que ainda viva, percorrem suas veias. Com o sorriso, não mais tão largo, porém que insiste mesmo nesses tempos difíceis a aparecer, fazem da fé sua morada contra a desistência. A única coisa que o pescador do Pomba quer, é ver o seu rio 165 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV como antes, como um dia acompanhados de seus amigos ou entes queridos conheceram e aprenderam a sobreviver dele. Esperam que suas vozes sejam escutadas, seus gritos respeitados e que seus filhos e netos possam ver o que seus olhos viram um dia... Um Rio Pomba rico, abundante e sagrado para aqueles que vivem dele! No fim, como pesquisadora, digo que ser uma etnobióloga muita das vezes é sentir na pele a aspereza da vida e fazer dela não mais um templo de solidão... É demonstrar por meio da ciência, relatos e desabafos de povos e populações silenciadas. Fazer dos momentos de poesia da profissão um grito de luta e resistência. 166 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV O “Meteoro Bípede” e o Karajá no shopping center Marcelo Nivert Schlindwein Às margens do belo Rio Araguaia um índio Karajá arpoa de maneira precisa um grande pirarucu. O grande peixe mítico, que habita as lagoas da planície criada pelo grande rio, foi atingido ao romper a lâmina d´água quando subiu para respirar. Sem perceber que aquele seria o seu último movimento de ir à superfície como soberano absoluto daquela lagoa. Bem protegido por uma couraça de escamas escuras e avermelhadas e quase duzentos e cinquenta quilos faziam do grande peixe praticamente imune ao ataque de qualquer inimigo natural. Apenas um primata recém­chegado com seu arpão de ponta de ferro modificara a condição imemorial de “rei” do lago. Durante milhares e milhares de anos seus antepassados tinham habitado naquele ambiente, sem a presença da ágil canoa de madeira, habilmente manobrada pelo solitário humano. Os bàdolèkè18 gigantes já tinham sumido e, mesmo os “médios” como este que acaba de ser arpoado, já tinham praticamente desaparecido de todo o Médio e Alto Araguaia. O jovem guerreiro sabia a razão do desaparecimento dos pirarucus. Atualmente muito poucos índios ainda pescavam usando apenas o velho barco tradicional, feito de um único tronco. Usando o largo remo tradicional decorado e finamente adornado com a pintura individual de cada pescador. Já não existiam os antigos arpões feitos de osso e apenas as canoas feitas de um único tronco que desafiassem com igualdade de condições o gigante do rio. A maioria hoje em dia prefere a comodidade do barco a motor com casco de metal. Além disto, não se captura mais o grande peixe para os rituais do Aruanã ou para o consumo da aldeia, mas grande parte do que é pescado é vendido ou trocado por mercadorias na cidade. As mantas salgadas de pirarucu são muito 18 Nome dado pelos Karajá ao homem branco 167 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV procuradas. O gigante do rio tem o azar de seu um dos peixes mais saborosos que a evolução criou. Uma manta de vinte quilos pode render um bom dinheiro, que vale muito açúcar, arroz, ou mesmo ser trocada diretamente por aguardente, a água de fogo dos tori19 , e, também gasolina para os motores e balas para as espingardas calibre 22. Depois da alegria de ter arpoado o grande peixe, o Karajá sente uma profunda tristeza. Olhando as escamas do grande peixe brilhando sobre o sol lembra das coisas que estudou fora da aldeia. Ele estudou em universidade tori, e viajou para a terra dos brancos, em um lugar que ironicamente se chamava Barra dos Bugres. Por cinco anos estudou em uma universidade que o branco criou para os índios. Lá se encantou estudando os mistérios da física e da (etno)astronomia com o professor Carlos Argüello. Mas também viu gente falar da floresta sem ter pertencimento e envolvimento com ela. Viu a arrogância do branco e a certeza quase cega de suas teorias ecológicas misturadas em discurso vago e cosmético, algo que denominavam de sustentabilidade. Vestiu­se e comeu comida de branco e viu como uma caixa luminosa chamada televisão praticamente comandava a maior parte da vida deles. Viajou até a cidade grande, sofreu o calor sufocante de Cuiabá. Algo que nem no dia mais quente com sol a pino em um cerrado descampado depois de queimado por um incêndio podia produzir. Foi no lugar que percebeu ser o maior templo tori. Não era uma igreja, mais sim aquilo que chamam de shopping center. Um lugar que ao contrário do calor que parecia derreter o asfalto, fazia um frio que lhe doeu a alma. Em um primeiro momento se maravilhou com as coisas que os brancos criaram. Suas máquinas, adereços e infinitas bugigangas. Mas logo se cansou daquela velocidade para nada, daquele brilho sem conteúdo e, daquele importar imenso apenas com as coisas. Percebeu que naquele mundo muito pouco valiam as pessoas. Horrorizou­se com o modo como tratavam os anciões, que na sua aldeia eram o símbolo da sabedoria, uma experiência a 19 Nome dado pelos Karajá ao homem branco. 168 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV ser venerada e preservada. Não conseguia entender como deixavam que crianças ficassem abandonadas, que não pudessem brincar livres. Que tivessem que pedir esmolas nos semáforos... Sentiu falta de estar quase nu na floresta. Daquilo que estava fazendo naquele momento. Estar no meio de um lago capturando um grande pirarucu. Mas ao ver o animal abatido, com suas escamas avermelhadas brilhando ao sol, sentiu como se tudo aquilo fosse uma espécie de final do mundo. Como se tudo terminasse junto como o último respiro dado na superfície do lago pelo grande peixe. No pequeno assentamento de cerca de 600 pessoas, que apenas por motivos políticos teima­se a se chamar de cidade20 , um menino corre quase desesperado atrás de uma galinha, ao lado do indiferente e caudaloso Rio Araguaia. Na outra margem se pode ver as praias de areia branca que começam a se formar na Ilha do Bananal. As outras crianças, a maioria netas dos pioneiros maranhenses que cruzaram o deserto do Gurupi para criar gado de retiro21 , observam espantadas. Criadas no local, não entendem o porque daquele menino da cidade grande correr tão empolgado atrás de uma mera galinha, criada sem dono na beira do rio, muito espertas para escapar dos oportunistas jacarés­açus. O menino era filho de um dos professores que durante uma semana ministrava disciplina em curso de formação de professores em nível superior22. Apesar de o pai ser um professor de História com larga experiência no interior do Brasil, o menino havia sido criado em 20 A localidade tinha o nome de Mato Verde, e foi rebatizada em homenagem ao “desbravador” e colonizador do local. Ao retirar a aldeia de índios que havia no melhor local, a “cidade” passou a ter o nome acronímico, a mistura do nome do “coronel” e de sua filha. 21 Sistema de criação de gado extensivo que usa a propriedade comum de um campo geral. Solta­se o gado durante a seca para recolhê­los aos retiros no princípio da cheia. A posse do gado era dada pela marcação das fêmeas e a venda dos novilhos e a marcação dos bezerros escolhidos para o novo ciclo de seca/cheia. 22 Projeto Licenciaturas Plenas Parcelada, uma parceira da Universidade do Estado do Mato Grosso com várias universidades, principalmente do sudeste do Brasil. O projeto pretendia levar formação 169 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV um ambiente completamente citadino, na cidade de Campinas em São Paulo. Crescera sem praticamente nenhum contato com natureza, basicamente restrita aos documentários na televisão e as visitas aos zoológicos. Para alguém criado nestas condições, uma galinha solta na rua era a personificação do mundo selvagem, ainda mais na imensidão da paisagem das margens do Araguaia. Para o menino da cidade também era difícil entender que aquelas crianças que brincavam com latas velhas, pedaços de madeira e carinhos feitos de latas de querosene! Não tinham videogames e nem mesmo uma mísera bola de futebol de verdade. E como podiam ficar soltas na rua sem horários e sem quem as vigiasse? Como podiam mergulhar de galhos altos da piranheira23 sem a vigilância e mesmo proibição dos adultos? Como não tinham medo dos jacarés­açus, das cobras, das aranhas e das formigas lava­pé? E o pior, onde estava o shopping para fornecer as coisas básicas necessárias para a sobrevivência? Para esta criança campineira era como se aquelas outras crianças pertencessem a uma outra espécie. Todos os humanos são igualmente humanos enquanto espécie em todas as dimensões. O que nos separa basicamente é o modo que interagimos com o ambiente em relação a nosso desenvolvimento tecnológico. A cultura nos faz indivíduos únicos e determina nossa pegada ecológica. Quando mais tecnocrática a sociedade se conforma, mas antropocêntrica ela tende a se tornar. A biodiversidade é condicionada a um ponto de vista utilitário em relação a nossa espécie24 . O Homo sapiens desenvolveu, ao longo superior a locais remotos sem acesso a universidades e foi fortemente estruturado a partir das experiências pedagógicas inovadoras que partiram da Prelazia de São Félix do Araguaia. Um dos seus principais apoiadores foi o bispo Pedro Casaldáliga. Este projeto foi muito atuante nos anos 90 do século XX. 23 Piranhea trifoliata: árvore comum nas barrancas do Rio Araguaia. De seu tronco se faz canoas e seus frutos servem de alimento para peixes. 24 Ver Schlindwein, M.N. Rivera, D.N. Um indivíduo de uma espécie silvestre é mais importante que um indivíduo de uma espécie domesticada? In: Ética Socioambiental. (1a. ed.) São Paulo: Editora Manole, 2019, p. 396­432. 170 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV de sua evolução cultural, ferramentas e as tecnociências como elementos que não tem equivalentes nas espécies conhecidas neste planeta, modificando radicalmente o modo como usamos a biodiversidade. Nossa atual sociedade tecnocrática impõe uma pressão de extinção sobre outras espécies que poderíamos caracterizar os humanos como o equivalente de “meteoros bípedes”. Basta permanecer um tempo distante da nossa sociedade de consumo, por exemplo acompanhar o jovem Karajá em uma pescaria, para perceber como é estranha esta verdadeira compulsão que assalta uma parte significativa da Humanidade. Ao deixarmos a condição de caçadores­coletores, para agricultores/pastores e, posteriormente para urbanóides/tecno/dependentes nos livramos do peso da produção direta de nosso sustento. Os urbanóides são de certa forma cleptoparasitas de quem produz o alimento e energia. Talvez parte do nosso desenfreado consumo hedonista venha da tentativa de justificar pela posse de bens e ornamentos a nossa inutilidade ecológica. A posse de determinados objetos nada mais seria a busca de status que justifica sermos mantidos pelo sistema. Consumir é justificar ser o abutre que bica Prometeu. E este está a beira de um precipício que pode levar à extinção. Nos últimos duzentos anos este componente consumista veio acoplado a algo mais perigoso. Além do discurso antropocêntrico se implementa um perigoso discurso etnocêntrico, onde ter acesso e possuir determinados recursos indicavam uma inerente superioridade sobre as outras etnias e culturas. O darwinismo social e a eugenia deram bases científicas às limpezas étnicas, que agora podiam ser aplicadas cientificamente em todo o mundo, justificando o colonialismo na América, Ásia, Oceania e África. Agora não era mais a fé, mas a ciência que preconizava a inegável superioridade da cultura invasora sobre as nativas. A evolução cultural tinha como ápice a civilização ocidental e a eliminação da cultura considerada inferior eram favas contadas neste processo. Este imperialismo cultural foi determinante para a perda de biodiversidade em todas as suas dimensões. Pois ao suprimir as etnias nativas e sua cultura 171 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV extinguiu também práticas milenares de manejo que estas culturas tinham nos seus ambientes. Práticas que em alguns casos eram as responsáveis pela manutenção de uma alta diversidade local. A “erosão” cultural é, definitivamente, uma das significativas causadoras da erosão da biodiversidade! Nosso impacto sobre as espécies equivalentes à queda de um asteroide ou outro fenômeno de mega extinção é parte da equação da nossa “conquista” do planeta. Mas existe um importante componente a ser analisado em relação ao modo em que manejamos os recursos naturais. Diferente do Karajá, a maior parte da energia e os recursos naturais que consumimos não está diretamente relacionado a sobrevivência dos indivíduos, mas necessidades ligadas à nossa evolução cultural e a grande quantidade supérfluos da assim denominada sociedade tecnocrática. Esta é uma das razões de sermos metaforicamente comparáveis a um desastre ambiental astronômico, que denominamos como os “meteoros bípedes”. Hoje cerca de 75% da superfície terrestre da terra tem algum tipo de impacto direto da ação humana e todo o planeta sofre impacto indireto em função dos poluentes e dos gases do efeito estufa. O quanto deste impacto poderia ser atuado apenas repensando nossos padrões de consumo? Isto vale para o que comemos, vestimos, como nos locomovemos e nos divertimos. Nosso consumo, muito além de nossas necessidades ecológicas, pode justificar ética e mesmo evolutivamente o desaparecimento de tantas espécies? Quando comparamos o H. sapiens com qualquer outra espécie de vertebrado de grande porte observamos que apenas aquelas que de algum modo se associaram a nossa espécie tiveram sua distribuição aumentada a partir do surgimento dos humanos modernos. Os estudos mostram todas as espécies de grandes vertebrados que não se associaram com nossa espécie quando não foram simplesmente dizimadas pela caça e destruição do ambiente em que viviam, ou tiveram suas distribuições bastante diminuídas. O Karajá, portador de uma sabedoria ancestral, tem seus hábitos moldados pelo ambiente. Já nossa sociedade tecnocrática tenta moldar o ambiente à sua própria imagem e semelhança. Será 172 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV que o mundo deve virar um grande Shopping Center e perder toda infinita riqueza e beleza da biodiversidade? Não se propõe aqui que meteoro bípede simplesmente volte ao passado e denegue seus avanços tecnológicos, mas que nossa sociedade possa aprender com as populações tradicionais as lições de gerações de convivência e manejo antes que o meteoro caia nas nossas próprias cabeças. 173 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV Isso não vai para o relatório Márcia Regina Antunes Maciel Tenho minhas raízes e vivência na religião de Umbanda, sendo neta de benzedeira, trago também na cara e no corpo a cor da mestiçagem cabocla da maioria dos nascidos nessa terra Brasil. Após o período de dutoramento, comecei a trabalhar em consultoria ambiental, especializando em questões indígenas, e, sempre que parto para algum trabalho, vou ao terreiro buscar proteção. Lembro que estava fazendo um trabalho para um órgão indigenista, no estado de Rondônia, no qual compunha uma equipe formada por uma bióloga, no caso eu, um engenheiro florestal, agrônomo, pedagogo e o coordenador, que claro, era um antropólogo, gente boa, experiente, das antigas, com certa humildade raro de se achar no meio da Antropologia. Vou preservar os nomes. Para otimizar uma das etapas do trabalho de campo, formou­se duas equipes. Ficando eu, o agrônomo e o pedagogo em uma, e os demais na outra. Tratava­se da elaboração de um plano de salva guarda para um povo indígena. Entre outras situações, a complexidade desse trabalho se dava, pois, a região era e, é, de grande conflito envolvia madeireiros, garimpeiros, missões, povos indígenas etc., etc.... A cada vinte ou trinta dias, voltávamos para casa e depois retornávamos para o campo, isso durou cerca de um ano e meio. A região é historicamente complexa, lá brota o ouro, o diamante, tem a floresta rica em madeira, atiçando ainda mais a cobiça humana, levando ao espólio desvairado da mãe natureza. Os locais de exploração dos minérios parecem formigueiros de tanta gente, doenças, bebidas, drogas, e uma água/lama de mercúrio e outras coisas que circulam dia e noite. Nas andanças por lá, vez por outras nos deparávamos com pistoleiros, muambeiros (nacionais e estrangeiros), gente corrupta; políticos, e, tristemente havia também boas pessoas em busca do 174 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV pão de cada dia. E no meio disso tudo, estavam os indígenas abandonados pelo poder. Após um período de descanso, e às vésperas do retorno para a área indígena, fui no terreiro fazer meu canjerê25, falei com a entidade que lá estava, que era o caboclo26 Seu Sete Flechas. Disse que estava retornando para um lugar onde iria trabalhar, e as estradas não estavam boas, pedi proteção para que tudo corresse bem. O caboclo pediu umas ervas e com baforadas do seu charuto me benzeu com as ervas. Depois disse assim: “minha filha, lá não será fácil, aconteceu algo triste lá. A mata lá chora de tristeza, a terra lá sangra para fazer brilhar os olhos dos gananciosos... e aqueles que moram lá, sofrem também. Mas, minha filha precisa ir, vai, é seu ganha pão, seu trabalho. Caboclo vai ajudar”. Eu a tudo ouvia e agradecia. E continuou as instruções: “Quando minha filha chegar lá, vão botar vocês numa choupana. Minha filha vai fazer assim, assim..., leva esse fumaçadô [charuto]”. Ele apagou o charuto e me deu. Agradecida fui para casa e no outro dia parti para a Amazônia. Chegando na cidade onde era o ponto de encontro, encontrei meus colegas de equipe, e no tempo certo, partimos para área. Desta vez percorreríamos sete aldeias floresta adentro, por estradas ruins (lama, buracos, troncos caídos). Por azar, na segunda aldeia, meu dente que era parafusado, caiu, mas continuei assim mesmo ora com dente ora sem dente, pois desparafusava e eu tentava recolocá­lo no lugar, pois não tinha como voltar à cidade e arrumar. Já lá pela quarta aldeia, os indígenas nos receberam no início amistosamente, mas havia algo estranho no ar, descarregamos a comida e estávamos nos acomodando. De repente, começaram a falar no idioma materno, logo tomaram a chave do carro, e disseram: “vocês estão presos aqui... e não tem conversa, vamos prender vocês”. Um dos rapazes 25 Canjerê: Ritual de proteção.. 26 Caboclos: são uma linha de trabalho de entidades de Umbanda, que se apresentam como indígenas nos médiuns incorporados. 175 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV da equipe tentou argumentar, mas logo foi silenciado por um jovem que se armou de um arco e flecha dizendo que não queriam conversa, queriam a presença da FUNAI, e do pessoal da saúde. Um arrepio percorreu meu corpo, lembrei do caboclo ­ bem que o caboclo avisou! Silêncio total da nossa parte, enquanto isso, agora já mais de vinte pessoas, falavam e bradavam em sua língua, sabe­ se lá o que conversavam. Disseram que deveríamos ficar ali até que decidissem o que fariam conosco. Conversamos entre nós e não sabíamos ao certo o que fazer. Eu disse para mantermos a calma, afinal estamos aqui porque eles nos chamaram, não éramos invasores, não tínhamos feito nada de errado. Ficamos na casa. Passaram­se cerca de duas horas. Resolvemos fazer um lanche, assamos um pão e um bolo para tomarmos um café, pois se fosse morrer, que antes tomasse um café bem quente! Tomando o café, voltou a lembrança do Caboclo Seu Sete Flechas, vixii! estava tudo acontecendo como ele falou. Resolvi andar pela casinha de madeira, e, ao entrar em um dos quartos, percebi que era como o caboclo havia descrito. Valei­me Nossa Senhora! Outro arrepio percorreu meu corpo! Lembrei do charuto e da vela, que estavam comigo. Chamei a equipe e disse: olha gente, isso que vou dizer e fazer não vai para o relatório. Estamos numa situação delicada aqui. Um colega falou, sim sabemos disso, a coisa pode ficar feia. Retomei a palavra e narrei o que o Caboclo havia falado dias atrás. Ouviram atentamente, outro colega mais aflito, disse, então vamos começar logo a reza. O que foi mesmo que ele disse para fazer? Não sou adepto de nada, mas agora, tá valendo tudo. Então respondi: o caboclo disse que quando estivéssemos presos, é para eu fazer uma "coisa". E um colega perguntou: O que? O que? Um despacho? Eu disse, mais ou menos... risos para descontrair. É sério gente, peço para fazermos uma corrente positiva de pensamentos bons, emitindo muito amor, buscando a proteção da Mãe Natureza. Eles falaram: tudo bem, vamos vai dar tudo certo. Enquanto preparo as “coisas”, um dos colegas disse ir de vez em quando em uns batuques, e, para minha surpresa falou: “vai na fé e Saravá, que Oxóssi esteja 176 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV conosco”. Peguei um pratinho e fósforo, fui para o quarto e achei o cantinho mencionado por Seu Sete Flechas. Lá coloquei a vela acendi para o índio dono daquele lugar... depois o charuto... dei as baforadas para o ar, mentalizei a energia dos caboclos da Mata Virgem, o Caboclo Seu Sete Flecha e a Cabocla Jurema. Pedi ao Orixá das matas, Oxóssi, proteção para todos ali, para que tudo fosse acalmado e esclarecido. Fiz uma oração e mentalizei amor e paz para todas as pessoas que lá estavam. Nos acalmamos e ficamos no aguardo. Passados uns vinte minutos, chegou uma comissão de índios e nos levaram para o local onde estavam reunidos. Quando chegamos lá, havia mais ou menos umas 80 pessoas, algumas pintadas com urucum e jenipapo, outros com grandes arcos e flecha e outros com bordunas. Nos posicionaram a frente do grupo. Fizeram algumas perguntas, mas não nos deixavam responder. E a cada momento, um deles falava, e falava, e falava... isso demorou mais ou menos umas três horas. Já cansada, sentei no chão, estava com sede e fome, todos nós estávamos, não deu tempo de comer o pão, somente o gole de café. Mas nesse momento, o melhor que se tem a fazer, é ouvir, pois tudo o que querem é desabafar. Isso aprendi com os servidores da FUNAI, aqueles das antigas que já passaram poucas e boas no trabalho de indigenismo. Já estávamos ali há quase quatro horas e parecia que tudo caminhava para o final. Eles iriam nos levar de volta para a casinha, nos deixariam lá presos até aparecer alguém da FUNAI ou da Saúde. E, num ímpeto, pedi a palavra dizendo que gostaria de responder as perguntas. Então, o cacique desconfiado autorizou minha fala. Em pensamento pedi iluminação e sabedoria a Deus, aos Orixás, aos guias, aos anjos e santos do céu, ao panteão todo. Aos poucos fui respondendo os questionamentos, explicando o motivo da nossa ida até a aldeia. Também oportunizaram aos demais membros da equipe falar. Dissemos quem éramos, onde morávamos, porque estávamos ali, etc. Entre outras informações, mostrei literalmente a 177 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV eles parte do nosso sacrifício para fazer aquele trabalho a pedido deles mesmos. Eu estava sem um dente (aquele parafusado), que havia caído em outra aldeia. Abri a boca e mostrei­lhes o buraco na boca, pois optei por não ir até a cidade arrumar para cumprir o compromisso assumido com eles. Relatei que o colega pedagogo, toda noite gemia de dores na coluna, e mesmo assim, cada um estava cumprindo com o compromisso. Foi então que, após meu discurso, sensibilizando a todos, o colega pedagogo completou: “enquanto vocês estavam aqui reunidos, juntos nós fizemos um lanche, eu fiz o pão, ela fez o bolo e ele fez o café. Cada um fez uma parte. E o que vocês acham? É melhor nós comermos sozinhos esse lanche, ou convidarmos vocês para dividirmos esse alimento?” E um coro respondeu: “é bom dividir”. E ele finalizou; é assim gente, nosso trabalho aqui é ouvir vocês sobre os problemas, e juntos tentar achar uma solução para o que vocês estão passando aqui. Vocês pediram para que fosse feito esse estudo, foi feito uma seleção, e nós estamos aqui para isso, para sermos a caneta de vocês. Foi quando uma das lideranças tomou a palavra e explicou: “sim, nós sabemos disso e pedimos desculpas, mas, o que aconteceu aqui na aldeia, foi muito triste. Já tem um mês que uma das nossas crianças passou mal, ficou com febre alta, muito doente. E estava tudo alagado, a ponte tá lá caída, já pedimos e nada, ninguém arrumou. Ficamos ilhados, não tinha como sair, ninguém veio, a criança morreu nos braços da mãe. Nós chora muito. Nós estamos aqui sem ajuda do governo, da saúde, sem nada. Nossos velhos estão doentes, as crianças, todos nós doente. Depois descobrimos que vocês não era da saúde, aí nos queria alguém da saúde aqui. Mas depois descobrimos que vocês viriam mesmo, que nós tinha pedido, isso é verdade. Então nós pedimos ajuda pra vocês agora”. Àquela altura, eu já me debulhava em lágrimas, pois quando ele narrou a morte da criança, algumas pessoas caíram no choro e eu junto chorei. E continuou: nós vamos autorizar vocês fazerem o trabalho de vocês. E nós queremos ajuda também, nossa saúde tá precária”. Dissemos que faríamos o possível para que fossem ouvidos, 178 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV que aquilo constaria nos documentos, e o que estivesse ao nosso alcance, faríamos. Mas, no fundo sabíamos que éramos impotentes, pois o poder público ainda hoje tem descaso com as questões indígenas. Nos dias seguintes, fizemos nosso trabalho, saímos com as informações e tudo consta lá no relatório técnico, fizemos um documento, protocolamos nas instâncias cabíveis, mas sentíamos que seria só mais um caso do descaso, e assim tristemente o foi. Ao partirmos daquela aldeia, tive a impressão de ver à beira da estrada um pequeno curumim com um cocarzinho reluzente, agitando suas mãozinhas de infante, e com suas asas angelicais, parecia flutuar no ar. Desapareceu na mata verde, agora repousará nos braços da cabocla Jurema..., não sente mais febre, estará cercado pelos querubins de Oxóssi que cantam assim: “Ele é pequeninho, mora no Humaitá, sua madrinha é Yara seu padrinho é Oxalá”. Mas, isso não foi para o relatório, nem as velas, nem o charuto e nem as lágrimas... PS. Oxóssi: divindade das religiões de matriz africanas, orixá, que representa o conhecimento e as florestas. Normalmente, representado pela figura de um homem que tem em suas mãos um arco e flecha, considerado uma espécie de guardião e caçador. Na Umbanda é também o “Rei dos caboclos índios”. 179 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV Viagem à Etiópia: o banheiro da UNESCO Márcia Regina Antunes Maciel Tempos atrás fiz uma viagem à África, região da Etiópia, junto com o professor Lin Chau Ming e nosso objetivo, foi conhecer a agricultura tradicional desenvolvida naquele país. Durante nossa viagem, tivemos diversos momentos, uns emocionantes, outros alegres, e também alguns um pouco mais tristonhos. E um desses momentos tristes, era quando nos deparávamos com os grandes olhos negros das crianças que vendiam “souvenir” em locais turísticos. A mim chamava a atenção, além da situação dessas crianças, descalças, mal nutridas, roupas surradas, também a maneira tão quieta como nos ofereciam os produtos, ou apenas estendiam as mãozinhas em um pedido silencioso. Como era penetrante aqueles olhos grandes, olhos negros e molhados. Também senti a quase ausência das instituições que tantas campanhas mundiais fizeram contra a fome e a miséria, etc. e tal, afinal, ainda hoje, quando se fala em África, pensamos logo na canção "We Are The World”, ao menos para nós quarentões, foi algo marcante naquele tempo. Lá na Etiópia, existe também a miséria, é um país em reconstrução, saído de um pós­guerra. Falta água em vários lugares, a energia oscila, e, de duas a três vezes por dia, tem apagão, e muitas outras mazelas inerentes aos países que durante sua história sofreram agressões ao seu modo de vida, cultura, ou foram expropriados das suas riquezas. E mesmo assim, lá como aqui, tem gente que ri, dança, mulheres que vão ao salão, pessoas vendendo frutas nas ruas, têm as igrejas católicas ortodoxas lotadas de fiéis, orações nas mesquitas, carros transitando. Há um colorido nas ruas feito pelas frutas e vestimentas das pessoas, principalmente nos mercadões e feiras livres onde o comércio fervilha, vendem de um tudo. É aquele vai e vem, com aquele 180 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV aroma delicioso de comida de rua misturado às flores, ervas e plantas, e a vida segue. Em um desses momentos de folga, fomos visitar as ruínas do castelo da Rainha de Sabá (a pronúncia correta é: Shabat), e, segundo eles, os etíopes, ela teria vivido um “affair” com o Rei Salomão, e, conforme alguns historiadores, os dois teriam tido um filho. Daí a linhagem salomônica e sabaítica ter certa importância política e cultural lembrada até hoje pelas pessoas de lá, explicou um guia turístico. Andando pelo local, precisei ir ao banheiro, e, ao buscar por informação, indicaram uma casa logo mais à frente. Notei que a construção era diferente das demais. Era feita de tijolos e concreto, uma construção imponente se comparada com as outras, que eram de outros materiais, ou eram de barro ou de palha, e às vezes havia uma lona preta por cima reforçando o telhado também de palha. Nessa construção diferenciada, tinha bebedouro com torneiras e água gelada, uma pequena área, um belo jardim, tudo cercado por uma mureta, e um portão de ferro. Havia uma placa indicando pertencer aquele espaço à UNESCO. Enquanto o Lin e nossos acompanhantes olhavam os artesanatos, me dirigi até o local, e chamei por alguém: Helou? Helou? De repente, saiu de lá de dentro uma senhora já de meia idade, alta, magra, branca de olhos azuis, com aquelas roupas que parecia ter saído de um dos filmes do Indiana Jones. Ela me atendeu com olhar fechado. Eu, como toda pessoa brasileira, abri logo um sorriso e fui logo cumprimentando­a: Olá, boa tarde, tudo bem? Estendendo­lhe a mão. A mulher (sem pegar na minha mão, e, como dizemos aqui: me deixou no vácuo), disse num tom frio contrastando com a quentura do local: O que você quer? E eu, depois de recolher minha mão e de desmanchar o sorriso, educadamente disse: por favor, eu poderia usar o banheiro? E, ela olhou­me de cima a baixo, e com um gesto, indicou­me uma direção, dizendo: Para lá. Caminhei para lá. Chegando ao local indicado, vi três paredes feitas de palha secas. Entrei naquele banheiro, e a latrina era um buraco no chão, com duas tábuas para colocar os pés, para a posição de cócoras. Olhei para ver o que 181 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV mais compunha aquele banheiro, mas era só isso mesmo, palhas secas e o buraco no chão. Não tinha cobertura, nem de palha, fazendo com que o “suadô” fosse ainda maior. Não havia papel higiênico, e por sorte sempre carrego meu papel higiênico (aliás nos banheiros por lá, raramente se via este item). Mas curiosamente em outras cidades por onde passamos, nos banheiros, havia sempre uma pequena vasilha com um pouquinho d’água que não era para descarga, já que tudo vai direto “para o buraco”. Em alguns lugares daquele país, a construção dos banheiros ou era de madeira ou de pedra ou de tijolos, e no chão havia uma estrutura de louça para encaixar os pés (no da UNESCO substituída pelas tábuas). Tinha portinholas, pia, e, às vezes, até um espelhinho, onde dava para retocar meu batom escarlate. E para que seria aquela água? Deveria ser para lavar as mãos, ou as partes pudendas, imaginei. Porque aqui, lavamos as mãos, mas antes, usamos o papel ou também lavamos direto com um jato d’água essas partes (bom vocês sabem como é, né?). Em outra ocasião comentei com o Lin, sobre a vasilha d’água, ele também concordou que devia ser para as pessoas se lavarem após fazerem as necessidades. Mas, retornando a cena do banheiro da UNESCO. Lá estava eu naquela cabana velha, fiquei imaginando aquela senhora alta, com suas roupas cor de cáqui “a lá Indiana Jones” e seus iguais que lá trabalhavam, usando também aquele banheiro. Ficariam eles “meio às vistas" dos transeuntes? Eles de cócoras, a olhar o céu azul, sentido o sol na cabeça? Não que eu seja uma pessoa “enjoadinha”, já fiz muitas necessidades nas moitas, a céu aberto, em privadas, na estrada. Já carreguei balde d’água para dar descargas, quebrei descargas nas casas alheias, pedi papel higiênicos para os donos da casa, acendi fósforo (vocês conhecem esse truque, né? Dizem que queima o metano emitido pelas fezes, mas o melhor é jogar água sanitária, o cheiro some rapidinho!). Claro que nada é melhor do que o banheiro da nossa casa, onde temos total liberdade, a não ser quando tem visitas na sala, rsrs! Não tenho frescura em campo, durmo no chão, na rede, como de tudo. Já comi diversos tipos de carnes: cotia, caititu, paca, 182 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV vários tipos de peixe, tomei vários tipos de chicha27, água de rio, de filtro, de moringa, até da chuva. Comi batata doce assada, ovo de ema, de tracajá, farofa de tanajura, ovas de peixes, frutas silvestres e por aí vai. Tomo banho no rio, banho de chuva, de balde com caneca, água fria ou quente, ou simplesmente passo pano molhado no corpo, quando a água é escassa. Abro picadas no facão, pego na enxada, faço buraco, capino, troco pneu, sei cozinhar, também coleto plantas, faço exsicata, relatórios, planilhas, palestras, aulas, etc. Meu único problema em campo, é ficar sem café, ainda bem que nessa viagem eu estava no berço de origem do café, graças a Deus não me faltou café. Mas, fiquei ali imaginando aquela mulher branca com quase dois metros de altura de cócoras com risco de cair no buraco ao fazer suas necessidades, como seria? Fiquei imaginando a cena. Não sei o que era mais bizarro, a cena imaginada ou eu naquela cena, imaginando a cena da senhora de cócoras. Por fim, depois de tudo terminado, lavei minhas mãos com um pouco da água que sempre levo numa garrafinha, pois lá não tinha o galãozinho com água. Fiz a higiene que foi possível, como se diz, é o que tem pra hoje…voltei agradeci, e fui embora para o carro onde meus companheiros me aguardavam. Porém, um pouco indignada, perguntei aos etíopes que estavam conosco, porque naquela bonita construção com a placa da UNESCO e aquele belo jardim, porque o banheiro era de palha? Faltou recurso para o banheiro? E as palhas estavam quase caindo! Como fariam aquelas pessoas que trabalham lá se chovesse? Vão sair correndo com as calças arriadas? O rapaz riu, e disse achar engraçada minha entonação quando falei da chuva e calças arriadas, e respondeu: Não, aquele banheiro é só para pessoas externas, para eles, usam outro lá de dentro. E num tom meio irônico, explanei: É mesmo? Depois, já na estrada dentro do carro, pensando comigo mesma, olhando a paisagem seca com seus casebres de palha 27 Chicha: bebida fermentada produzida pelos povos indígenas da América Latina. No Brasil pode ser feita de mandioca, milho e até mesmo arroz. 183 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV iguais às do banheiro, lembrei de outro momento onde naquele país em certas localidades, as pessoas ficavam em imensas filas para pegar um galão de água. Lembrei dos olhos negros me fitando, triste e molhados, pedindo um “vintém’... lembrei daqui da terra Brasilis, das crianças que de tanto ensacar carvão nas carvoarias, deixam as vistas apenas o branco dos seus olhos negros. Lembrei daquelas infantes soltas nos semáforos das nossas ruas, as quais damos as costas, não enxergamos seus olhos negros, azuis ou castanhos, sempre molhados, pois são elas capitães de areia. Volto meu pensamento para o céu azul da Etiópia que é tão lindo quanto o da nossa terra Brasil. Vejo a paisagem seca por natureza, olho sua gente também sofrida semelhante as cenas de vidas secas... A nostalgia sentida era por nossa Pátria mãe gentil, tão linda e tão castigada, mas, era também pelos grandes olhos negros e molhados que estavam a me fitar. Como folha solta ao vento, meu pensamento retornou para o porquê daquele banheiro de palha. Por que ela me encaminhou para lá? Nunca vou saber. Seria porque sou eu aqui mestiça e lá nem isso? Seria porque era eu lá estrangeira? São tantos os porquês... Durante o resto da nossa permanência naquele país, comecei a fotografar os banheiros por onde passávamos. E como em muitos outros lugares, lá e aqui não é diferente, há um grande desafio nas questões sanitárias, na desigualdade social, na luta para vencer o preconceito que nos separa pela cor da pele. Tentando fugir desses pensamentos, voltei a pensar no galãozinho d’água, afinal para que serviria o tal galãozinho? Não era para descarga… desconfio que fosse mesmo para lavar as partes pudendas e as mãos após as necessidades, já que por lá, existe o hábito de comer com as mãos, precisam estar sempre limpas, raramente usam talheres. Penso que o melhor é andar sempre com um rolinho de papel higiênico, uma toalhinha e uma garrafinha com água, nunca se sabe quando iremos nos deparar com um banheiro de palha da UNESCO, aqui ou em qualquer parte do mundo, não é? Esses 184 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV banheiros só com paredes de palhas, um buraco no chão e uma senhora Indiana Jones no portão. Enquanto seguíamos viagem, as imagens bailavam na minha mente. Eram as palhas secas ao vento, o sol causticante, os grandes olhos negros comigo mirando as portas das “casas grande” e as cenas de "Histórias Cruzadas" que latejavam, latejam... Até que o soar do refrão da canção, deixou ainda mais dolorido aquele momento: .... “Como é que pretos, pobres e mulatos, E quase brancos quase pretos de tão pobres são tratados, E não importa se os olhos do mundo inteiro, Possam estar por um momento voltados para o largo, Onde os escravos eram castigados, E hoje um batuque um batuque somos todos pobre”... Se você for a festa do pelô, e se você não for, Pense no Haiti, reze pelo Haiti, O Haiti é aqui, O Haiti não é aqui. (Caetano Veloso) 185 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV Encosto Maria Christina de Mello Amorozo O balançar das folhas de coqueiro no ar parado havia dias prenunciava mudança. Já ia para mais de um mês que a falta de chuva e o calor opressivo não a deixavam dormir. Banhava­se toda noite na lagoa, já quase seca, para se refrescar, mas o efeito não durava muito. Remexeu­se na rede. Do outro lado do cômodo, Tomé dormia a sono solto. Como é que ele consegue, com esse calor? Em outros tempos, também era assim com ela. Agora... não sabia o que acontecia. Alguma coisa devia estar errada. Tinha a impressão de que um encosto, um exu, uma coisa ruim qualquer se alojara em seu corpo. Desassossegava. Não conseguia fazer nada. Começava, um exemplo, capinar os pés de mandioca, lhe assaltava um mal­ estar, um enrijecimento do corpo, tinha que parar. O pior era o aperto por dentro. Parecia que lhe estavam espremendo, o quê? A cabeça, o peito, o estômago, o baixo ventre. A coisa percorria caminhos por dentro dela, constringindo, empurrando, puxando, judiando. Olhou para o Tomé com inveja. Não movia um músculo; se não fosse o subir e descer da barriga, dir­se­ia que estava morto. Também, o pobre pegava no pesado de manhã até a noite. O que eu estou fazendo aqui, dentro desse corpo meio desbeiçado? Queria um corpo novo em folha, pra poder apreciar em toda grandeza o resultado do meu trabalho de desconstrução. Esse aqui, já estava carcomido bem antes de eu começar. Corpo de gente pobre. Por aqui, é só isso que tem. Fazer o quê? Mas até que dá pra divertir: desembesto pelas veias (e vou no contra­fluxo!), trombo nas paredes de um lado e de outro da barriga, ricocheteio no fígado, subo pelo tubo da comida, quase saio pela boca, mas volto, cutuco os pulmões e a tosse me devolve pra boca, volto pro tubo, quase saio pelo outro lado, mas não quero sair. Já sei que não estou sozinho. Tem mais alguém aqui, logo, logo a gente vai se 186 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV encontrar e não se larga mais. Vamos criar, criar, criar, quem sabe quantos outros corpos os nossos rebentos não vão achar por aí? A vida até que é boa pra nós. Tomé, não aguento mais. Vou lá no terreiro, ver se a mãe­ de­santo dá um jeito em mim. E foi. A mãe­de­santo examinou, assuntou bem, determinou encosto. Minha filha, tem que fazer trabalho pro encosto sair. Vai vir três semanas seguidas nas sessões de descarrego. E vai tomar todo dia de manhã, em jejum, pé de mastruz amassado no pilão com semente de mamão e hortelã, tudo misturado no leite. Você vai ficar boa. E não é que o encosto saiu mesmo? 187 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV Chi´ibal uj María Teresa Pulido Silva A la memoria del etnobotánico Dr. Javier Caballero Nieto Bajo la noche tibia, la luna y el sol hacen el amor. La gran luna se va tapando poco a poco y queda muy oscura la noche. Siguen en su romance, mientras suenan los tiros angustiados de las carabinas, para ayudar a que se separen. Dicen que, si no se les echan los tiros, podría pasar que no viéramos el sol al día siguiente. ¿Te imaginas? Parece ser que funcionó, pues poco a poco se empezó a ver la luna de nuevo y al otro día hubo un habitual chokoj k´iin, que expresa que está muy caliente el sol. Pero antes de amanecer, como a eso de las tres de la mañana, mucha gente, sobre todo jóvenes, salen de sus casas, van con su morral al hombro, con sus ropajes muy limpios y abordan grandes autobuses enviados por los dueños de los hoteles. Es la vida de hoy para cientos de jóvenes quienes viajan dos horas hasta el hotel, trabajan, y en la noche quizá como a eso de las 7 pm, después de otras dos horas de viaje, regresan de nuevo a su casa ovalada y fresca, techada con palma de xa´an. Sus familias los reciben con chachacuá, frijol colado, waaj, pollo en escabeche, y salsa de chile habanero. Es hora entonces de tomar un baño, platicar, ver la novela de las 8, salir a chan pasear y prepararse para la próxima jornada. No son los únicos en madrugar. Los mayores, salen antes del amanecer en su bicicleta. ¿Tu´ux ka bin? – pregunta el nieto – “Tin bin ich kool”­ responde su abuelo milenario. Le dice así que “está ido en su milpa” – está yendo a su milpa, a su roza, a donde han de ir a sembrar, a cazar, a leñar, a enamorar, a hacer un rezo y quizá un día a morir. Tiene su sak´a kool, pero también está haciendo una milpa nueva. Ese día precisamente tiene planes de quemar. Necesita que el monte que cortó hace algunos meses, 188 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV cuyas hojas y troncos ya se han secado bajo el sol, sea convertido en cenizas para en ese momento tener un buen terreno para sembrar su ixi´im, bu´ul, ib, iik y muchas plantas más para comer él y su familia. Ah, por cierto, el ixi´im es el maíz, bu´ul es el frijol, los ibes también son otra clase de frijol y pues no podía faltar el picante o chile, llamado iik. Quemar su terreno es una de las labores requeridas para lograr una buena milpa. Entonces, hacia la tarde, empieza a silbar, empieza a cantar, es lo que escuché. Aunque en realidad no es sólo esto, pues con sus silbidos llama al dios del viento para que le ayude a que su terreno quede bien quemado. Lo hace como lo han hecho sus antepasados por tres mil años… invocando a su aliado el dios del viento. Se empieza a estremecer la naturaleza con este fuego, crujen los troncos y las ramas, y de repente suena algo fuerte ­ como una explosión ­ dicen que se trata de las serpientes que estallan con el fuego. Arde un buen rato y después se apaga. La lumbre no se brinca porque hicieron una guardarraya para que la vegetación que rodea a esta milpa no se queme. Pero dicen que a un señor se le brincó la lumbre e hizo un gran quemadal o tóok. Los del pueblo ayudaron a apagarlo. Es noche, el nieto regresa cansado de trapear el hotel o de ser “camarista” y arreglar habitaciones a contra reloj. Lo bueno es que a veces los canadienses, o franceses ­ que son los que más van ­ o algún gringo o quizá un nacional les deja una buena propina. La vida diurna en el hotel es buena, mucho trabajo, pero una paga segura. Hablan su lengua materna mientras trabajan, y a veces tienen la suerte de conocer a alguien de otro pueblo. Una muchacha llega esa noche a su casa a decirle a su mamá que un muchacho de Santa Rosa o de X­Pujil “le habló”. Quiere decir que el amor tocó a su puerta. La mamá le cuenta la historia de cuando su papá “le habló” en un baile, que era donde antes se enamoraban en ese pueblo. Y el nieto se entera que su abuelo ya quemó la milpa y que entonces necesita de su ayuda en su día libre para ir a sembrar la milpa juntos. Son las seis de la mañana y suena la bocina de don José, despertando a todo el resto del pueblo que aún esté en la hamaca, 189 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV como yo. Después de algunas tonadas guapachosas, anuncia en dos idiomas que hay venta de tamales en la esquina del parque o que don Genaro mató cochino. Ese día es domingo. Hay cierta molestia porque el abuelo milenario y su hijo van a ir a la iglesia, mientras que el resto de la familia irá al templo. A veces no es una molestia, pero definitivamente ya no van a hacer en familia su Cha´a Cháak o petición de lluvia a la milpa. Unos tíos también irán al templo, otros familiares van a pak´ach waaj o tortear en la casa del más antiguo del pueblo, pues allí todos llevan algún pedazo de gallina cruda para cocinarlo en una inmensa olla para todos y tortear entre todas las mujeres y hacer una gran reunión de muchas familias. Incluso yo, que antes de llegar al pueblo no sabía tortear, debía ir a ayudar en esta labor para la gran fiesta comunal. Pero tengo una buena justificación de mi ignorancia: hasta llegar al pueblo prácticamente no conocía la tortilla porque donde nací no se acostumbra. Sin embargo, para ellos esa no fue una buena disculpa, y en la tarde que llegué por primera vez al pueblo, aprendí por presión social esta labor básica que toda mujer debe saber allí. Pero esta no es la única fiesta comunal, hay varias otras en donde prácticamente todo el pueblo participa. Alguna vez me tocó la suerte de estar cuando trajeron al santo desde otro pueblo. Lo traen por entre el monte, escoltado por hombres con carabinas, que tienen toda la actitud de defender al santo ante cualquier tipo de enemigo natural o sobrenatural. Van en un tipo de marcha, en fila, custodiando al santo hasta entrarlo en su iglesia. Estos hombres semejan y creo que se inspiran en las historias de la Guerra de Castas, pues tienen diversos cargos militares. Unos son sargentos, hay un coronel, hay soldados, aunque todos son los mismos hombres milperos de los que hablábamos, que durante la fiesta toman un cargo militar. Mientras este ejército protector del santo dedica más de una jornada para ir por él, otros hombres están desde temprano en la iglesia haciendo los preparativos. A la iglesia la gente debe entrar descalza, so pena de ser golpeado con plantas espinosas. En un costado de la iglesia está un grupo de hombres haciendo unas tortillas especiales, sólo vistas en esa 190 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV ocasión. Son tortillas muy gruesas y sólo hechas por los señores, aunque comidas por todos. Creo que tenían ibes. A mí me supo a arepa, pero supongo era el sesgo de mi paladar suramericano. Se reza, se ríe, se come, se escuchan los violines y las canciones en una lengua indígena, todo esto en la iglesia principal, la iglesia de palma de xa´an. Pero no les he contado algo muy importante de este pueblo, y es su arquitectura. Podríamos hacer un cuento especial sobre la palma de xa´an o palma de guano. Xa´an significa “el que da sombra”. Y sí, es el que ha dado sombra a la gente de este pueblo y de esta región durante los últimos tres mil años, como ha investigado mi profesor X­Javier a quien apodaron ka´anal o muy alto. ¿Te imaginas que tus padres, abuelos, bisabuelos, tatarabuelos y los tatarabuelos de los tatarabuelos hicieron su casa con hojas de esta misma palma?, ¡ha de ser muy buena! Vaya que sí lo es. Muchas casas de este lugar son techados con xa´an, aunque cada vez hay más con mampostería. Sobre todo las nuevas familias, usan otro tipo de techos. Sin embargo, todos los del pueblo – que ya son más de 3,000 personas – tienen una, varias o todas sus construcciones con la palma xa´an. El material de las paredes es muy variado. Algunas veces son hechas con palos delgados que permiten cerrar la casa, pero ver hacia afuera. Es por eso que desde adentro de la casa puedes ver si ya llegó el autobús que trae a los trabajadores de los hoteles. No son una costumbre las ventanas, excepto en las nuevas viviendas que les regaló el gobierno, que ya traen un tinte de modernidad y kilos de calor sofocante, que más sirve de bodega o tienda que de casa. Será por eso que no se les llama naj o casa sino vivienda. No puedo terminar este cuento sin hablar de uno de los sitios más fantásticos de este lugar. Allí, en medio del monte alto o nukuch k´áax hay una grande laguna con dos cenotes adentro, cristalina, natural, fresca y viva. Todos en el pueblo van a la laguna a chan pasear con su nojoch familia. Allí las familias van a refrescarse en la orilla de la laguna y descansar un poco. Es un plan sencillo, pero muy acostumbrado. Es tan grande que la puedes ver desde tu computador. También puedes ver la milpa de 191 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV este abuelito milenario y puedes ver el pueblo, el tóok, el nukuch k´áax, y el sak bej o camino blanco. A todas estas, espero que después de tantos detalles hayas descubierto por ti mismo en qué lugar ocurrió todo esto. ¿Al menos sabes en qué región, cierto? Esta historia ocurrió y ocurre hoy en El Mayab, en la tierra del faisán y el venado, en las cercanías de la Riviera Maya, en las proximidades de Cancún, “Playa” y “Carrillo”. Este es el pueblo de Señor, Quintana Roo, visto por los ojos de X­Tere, originalmente nacida en Colombia y vuelta a nacer en Señor. Este cuento no es tan cuento, pues ocurrió y ocurre en uno de los lugares más lindos del mundo. ¿Sabes en qué idioma están dichas las palabras “raras” de este cuento?... es en el maya actual que, aclara el nieto, es muy distinto al que habla su abuelo, pues su abuelo “sí habla la verdadera maya”. La maya en este cuento posiblemente no esté absolutamente bien escrita, pues sólo aprendí a chan hablarlo. Con este cuento ­ que no es cuento ­ espero que cuando vayas de vacaciones a Cancún, mires con respeto a ese camarista, a esa persona del aseo, porque estos mayas son descendientes directos de quienes conformaron la famosa Civilización Maya. Sí, hablo de aquel mismo pueblo maya – famoso y glorificado – que fue capaz de construir una civilización en la agreste Península de Yucatán, que concibió el concepto del número cero antes que cualquier otra civilización en la Tierra, que fue capaz de construir un observatorio astronómico en el hoy llamado Chichén­Itzá y proyectar con precisión los movimientos de los astros y calcular los eclipses de sol y los de luna o chi´ibal uj. Todo esto lo resume un mural en la casa de la cultura de “Carrillo”: “la zona maya no es un museo etnográfico, es un pueblo en marcha”. Dios bo´otik. X­Tere, a 22 del 02 del 2020, en Pachuca, Hidalgo, a 20 años de nacer en Señor y verlo crecer. 192 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV Rádio de pilha Mario Rique Fernandes ‘Porque tudo no mundo acontece’. (Cartola) Certas coisas acontecem que só tempos depois a gente se dá conta. E aconteceu uma situação dessa comigo em uma aldeia com os índios Apurinã, na região do rio Purus, no Sul do Estado do Amazonas, durante o meu doutorado. Uma anedota curiosa sobre as pessoas da casa onde me hospedei, cujo valor etnográfico – como os índios fazem para resolver questões domésticas importantes no cotidiano ­, talvez mereça uma existência literária. O caso se sucedeu na casa do cacique da aldeia, cujo nome utilizado será fictício, em respeito à sua privacidade e a de sua família. Na época em que me hospedei em sua casa, Osvaldo havia se casado há poucos anos com Val. Os dois formavam um casal muito bonito. A beleza de Val era arrebatadora. Os Apurinã são um povo numeroso e diverso, cujos traços físicos são os mais variados possíveis, resultante do processo de miscigenação – ou de mistura ­ ao longo de um século e meio de relação com os brancos (cariús), principalmente com os bravos sertanejos nordestinos que para lá migraram nos tempos da borracha. Os pais e avós de Osvaldo e Val, porém, eram indígenas; seus corpos, assim, são mais próximos da imagem idílica que temos dos corpos índios no Brasil. A impressão era de que os dois tinham saído de um quadro de Anita Mafaltti. Val era alta e forte, ombros largos, queixo angulado, lábios carnudos, cabelos brilhantes negros, de olhar penetrante, e era uma mãe brava e terna ao mesmo tempo. À época tinham um casal de crianças ­ o menino com quatro anos, a menina com dois. Como a grande maioria dos indígenas no Brasil de hoje, os Apurinã são beneficiários de programas sociais, como o Bolsa 193 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV Família, aposentadorias, salário­maternidade, além de trabalhos contratuais como agentes de saúde e professores indígenas. Tais programas, uns mais, outros menos, seja para o bem, seja para o mal, têm influência direta na rotina das aldeias. Todos os meses, cada núcleo familiar se organiza para ir à cidade mais próxima receber seu salário do governo – na época era “o dinheirinho da Dilma” ­ e comprar o seu ranchinho mensal – sal, açúcar, café, sabão, anzol, linhas, isqueiro, munição, lanterna, pilhas etc. Não muito diferente dos tempos do seringal, diga­se. A diferença era que as mercadorias – fundamentais para se viver na floresta, dentro dos atuais padrões de vida ­, eram adquiridas nos barracões e/ou com os barcos na beira do rio Purus, através da troca com tudo aquilo que era produzido na aldeia – borracha, castanha, farinha, peixe banana, caça etc. O Bolsa Família, assim como os salários e as aposentadorias, trouxeram de certa forma mais liberdade aos indígenas, pois já não se tem mais tanta necessidade de vender a produção a preços irrisórios nos barcos marreteiros, feiras e mercados da cidade. Durante minha permanência na aldeia era necessário de vez em quando acompanhar os “parentes” à cidade para comprar um ranchinho e saber notícias da família e das “terras civilizadas”. Viagens que, diga­se de passagem, podiam levar muitas horas sentado em canoas – chamadas de ‘rabetas’ ­ singrando as infindáveis curvas e voltas das preguiçosas águas do rio Purus. De uma dessas excursões, havia trazido para o meu anfitrião uma cartela de pilhas grandes, a pedido seu, para ligar um rádio que ele havia ganho da sua mãe ­ que era aposentada. A casa do Osvaldo, estilo padrão seringueiro, era assoalhada de madeira, acima um metro e meio do chão, e coberta de palha. Era uma casa pequena, para uma família pequena. Tinha um cômodo, o quarto onde o casal dormia com as crianças, protegidos por um amplo mosquiteiro de pano. Todas as noites eu armava minha rede e o mosquiteiro na frente externa da casa, aberta, que servia ao mesmo tempo como sala de estar, de jantar e de varanda. Embora o quarto fosse um pequeno cômodo dividido por paredes de madeira, a percepção acústica era como se não houvesse nada nos separando. 194 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV Qualquer passo no chão, qualquer ronco, peido, suspiro, cochicho, enfim, qualquer barulhinho no silêncio da noite era passível de se ouvir de ambos os lados. Mas naquela noite Osvaldo finalmente pode ligar o seu radinho de pilha como era de costume. Na verdade não era um radinho de pilha, desses que o meu sogro coloca ao pé da orelha, baixinho, para dormir. Era um rádio grande, antigo. Ele havia feito a maior propaganda desse rádio, que pegava várias estações do Acre e do Amazonas etc. Aquela noite, após algumas tentativas de sintonizar as ondas de rádio em meio a maior floresta tropical do mundo, dormimos ouvindo a Rádio Nacional de Brasília. A princípio achei estranho ouvir a rádio em uma altura considerável na hora de dormir. Mas depois de um dia inteiro viajando pelo Purus e mais uma hora caminhando na mata para chegar na aldeia, adormeci ao som das histórias e músicas caipira do programa daquela noite. Todavia, essa circunstância se repetiu outras vezes, tanto na hora de dormir, quanto no romper da aurora. Confesso que chegou uma hora que comecei a acordar com raiva do rádio e do Osvaldo. Perguntava aos meus botões: qual a razão de ligar o rádio nessas alturas às cinco da manhã? Que falta de respeito! (rsrs). No ano seguinte, ao retornar para o campo, reencontrei o casal na cidade. Estavam passando um tempo na casa de uma tia. Val estava no sofá da sala dando de mamar a um bebê recém­ nascido. Ao sair da casa me lembrei do rádio. Aquele rádio, huuum, aquele rádio no meio da floresta... deu no que pensar. 195 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV Aprendendo com as castanheiras Mario Rique Fernandes A bondade em palavras cria confiança; a bondade em pensamento cria profundidade; a bondade em dádiva cria o amor. Lao­Tsé Há um trecho de uma entrevista do fotógrafo Sebastião Salgado disponível no Youtube em que ele responde uma pergunta sobre como fazia para se comunicar com povos e comunidades mais distantes no mundo, falantes de idiomas totalmente estranhos a nós. Reconhecido mundialmente como um dos maiores fotógrafos documentais da atualidade, mestre na arte de fotografar a condição humana em sua alteridade máxima – em ambientes extremos de guerra, pobreza, fome e seca ­, para Salgado, a empatia e o tempo são os principais ingredientes para estabelecer uma comunicação compreensiva entre humanos. Trata­ se de uma questão, diz, “de você compreender e as pessoas compreenderem o desconforto desse relacionamento”, mas por maiores que sejam as diferenças culturais, “para mim era facilíssimo, é a minha espécie, as reações eu sei todas”. Contudo, Salgado diz que em seu último grande projeto fotográfico – Gênesis – teve que aprender algo diferente. Não se tratava mais de entender e documentar Outros humanos, mas de tentar compreender a lógica de Outras espécies. “Há uma grande mentira que se conta”, diz na entrevista, “que somos a única espécie racional desse planeta”, “[quando na verdade] há uma racionalidade profunda dentro de cada espécie” (grifos meus). Em comparação aos trabalhos anteriores, a dificuldade de se comunicar e documentar a existência de alteridades não humanas foi muito maior. Como capturar a dignidade de uma senhora tartaruga gigante das ilhas Galápagos com 250 anos de idade? 196 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV Trago à lembrança essa entrevista para contar uma experiência semelhante que me marcou profundamente: foi um encontro que tive com um coletivo de castanheiras amazônicas (Bertholletia excelsa), durante meu doutorado com os índios Apurinã, na região do rio Purus, no Sul do Estado do Amazonas. O encontro foi marcante porque eram árvores centenárias, quiçá, mais velhas que a tartaruga das Galápagos retratada por Salgado. Um dos objetivos da minha pesquisa era realizar uma etnografia sobre o extrativismo indígena da castanha, investigando a relação dos Apurinã com os castanhais ­ paisagens na floresta com concentração da espécie. Estava interessado em compreender os modos como que essas árvores e paisagens eram socializadas pelos índios. Era uma manhã de agosto, a verde sombra da floresta filtrava a luz de um sol escaldante do verão amazônico. Estávamos indo visitar o castanhal chamado ‘Pique Redondo’ da família do seu Raimundo, o cacique da aldeia onde me hospedava. Dias antes havíamos passado por ali voltando de uma pescaria em um dos inúmeros igarapés que atravessam o território da aldeia. Como estávamos com o paneiro28 e as mãos carregadas de peixes, não houve tempo de parar para olhar as centenárias castanheiras, mas a presença delas não me passou despercebida. Pedi ao cacique que no dia seguinte me levasse para conhecê­las. Chegando lá, seguimos o emaranhado de trilhas – os chamados ‘piques de castanha’ ­ que levam às castanheiras espalhadas pela floresta, e que formam uma espécie de textura na terra. Durante a caminhada íamos conversando, trocando ideias, parando para tirar fotos e medindo o diâmetro das árvores mais grossas. Voltamos para a aldeia, almoçamos e fui fazer a minha sesta na rede. Quando peguei no diário para escrever algumas notas e reflexões, ainda no calor da visita, comecei a me dar conta o que realmente tinha acontecido ali. Até onde alcançava a memória do Raimundo, ele constitui a 28 Paneiro é um cesto grande, de carregar coisas, trançado com cipós da floresta. Os Apurinã costumam brincar que ele é a “mala” do índio. 197 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV quarta geração que quebra castanha naquele castanhal – ou seja, estamos falando de mais ou menos cem anos de história. O ‘Pique Redondo’ fazia parte de uma antiga ‘colocação’ de um índio seringueiro apurinã chamado Mané Artur. Depois dele, quem passou a ocupar a colocação foi Júlio, um seringueiro sertanejo casado com uma Apurinã, filha de seu Mulato, famoso guerreiro do Jagunço, uma antiga aldeia Apurinã localizada no alto do igarapé Peneri. O cunhado de Júlio, seu Agostinho Mulato, que tinha uma colocação próxima, também quebrava castanha neste castanhal. Nessa época, antes da demarcação da TI, havia muitas colocações ao longo do igarapé Peneri de seringueiros, de índios e de seringueiros brancos casados mulheres Apurinã. O avô do Raimundo, o finado Pedro Carlos, era o patriarca de uma enorme parentela apurinã que chegou neste igarapé, após a derrocada do antigo Posto Indígena Marienê do Serviço de Proteção aos Índios (SPI), nos anos 30 e 40 do século passado. Pedro Carlos nasceu no igarapé Sepatini. Após a morte do pai, em decorrência de conflitos com outras parentelas apurinã, saiu ‘rodando pela região’. Passou pelo Tumiã e de lá para o rio Seruini na época do Posto Marienê, onde ‘trabalhava como capanga do Major de Barros’. No Seruini, encontrou­se com o futuro sogro, seu Joaquim, que era na verdade seu tio materno – irmão da mãe, também do Sepatini. No Posto Marienê, casou­se com Raimunda, filha de seu Joaquim e dona Mariquinha. Saíram do Marienê e vieram para o Peneri abrir colocação. Abriram em uma área mais acima do igarapé. Viveram em quatro colocações antes de chegarem à área da aldeia onde vivem atualmente. Pedro Carlos casou­se com as cinco filhas de seu Joaquim, com as quais teve dezenas de filhos (na faixa de trinta a quarenta!). Uns morreram, outros se perderam, outros foram embora, outros permaneceram no Peneri, sendo hoje, os atuais chefes dessa extensa família da aldeia em que me hospedava. Quando chegaram ao local onde hoje fica a aldeia, o pai do Raimundo, o finado Rael, um Apurinã nascido no vizinho igarapé Tacaquiri e antigo cacique da aldeia, passou a quebrar castanha no ‘Pique Redondo’ junto com o Júlio, de sorte que fizeram muita amizade. 198 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV Quando Júlio foi embora para Lábrea, após a demarcação da Terra Indígena, passou o castanhal para o compadre Rael. Raimundo está na faixa dos seus trinta anos e desde que se entende por gente quebra castanha ali. Depois que o seu pai morreu, há uns quinze anos, o castanhal ficou sob a responsabilidade da sua mãe, dona Darcy e, por conseguinte, sua família (ele, a esposa e os filhos) e a família de seus irmãos continuam a quebrar castanha todos os anos neste local. Esta é mais ou menos a história do ‘Pique Redondo’, tal como consegui montar a partir dos relatos de Raimundo e de outras pessoas da aldeia. Certamente a memória do Raimundo seja curta demais quando comparada à das árvores centenárias que formavam aquele castanhal. Ali não era um canto qualquer da floresta, aquelas árvores marcavam uma “presença” naquele lugar. Vale lembrar que estávamos ali de visita, não estávamos ali quebrando castanha. Pensando no tipo de relação que estava sendo estabelecido naquela ocasião, na minha condição de um privilegiado “turista aprendiz”, a sensação era de que o Raimundo, sempre muito à vontade, estivesse me apresentando parentes em uma aldeia. Aquele lugar e aquelas árvores ancestrais eram uma extensão do seu parentesco. E o que é difícil dizer em palavras, é que aquela “presença” que eu sentia ali estava nos correspondendo. É surpreendente, mas sentia que estávamos sendo observados também. Lembro que ao mirar minha câmera para aquelas árvores imensas de quarenta, cinquenta metros de altura, algumas chegando a oito metros de circunferência na altura do peito, a impressão era de que elas estavam “posando para o retrato”. Por alguns segundos veio­me à mente a imagem da dona Darcy, sua “presença” serena, calada, de gestos delicados e bondosos. Ao longo desses últimos anos trabalhando com os Apurinã, tive o privilégio de conhecer anciões e anciãs como dona Darcy, que assim como aquelas castanheiras, tinham corpos e espíritos lapidados pelo tempo de uma vida inteira habitando a imensa floresta amazônica. Quanta memória não havia naquele lugar, naquelas árvores? Imagine­se plantando os pés (ou a cabeça) na terra e habitando um local, o mesmo, por centenas de anos, 199 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV coexistindo e interagindo com uma diversidade de outros organismos vegetais e animais (humanos e não humanos), visíveis e invisíveis. Quantas tempestades tropicais, relâmpagos, trovões, noites escuras, estreladas, enluaradas; quantos dias ensolarados de verão; quantas vozes, sons, aromas, aquelas castanheiras não guardavam em seu corpo­memória vegetal? Embora trivial ­ como trivial é estar embaixo da sombra de uma árvore – esse passeio pelo ‘Pique Redondo’ teve algo de revelação. Retratar essas castanheiras centenárias me afetaram. Nos termos de Marilyn Strathern, pode­se dizer que foi um ´efeito etnográfico´, ou seja, aquelas imagens fugazes que durante o trabalho de campo são capazes de condensar em questão de segundos toda a nossa pesquisa. A analogia dessas árvores com os anciões e anciãs Apurinã não era apenas uma questão temporal. Havia ali naquelas castanheiras a mesma aura de humildade e bondade que eu sentia nas aldeias junto aos meus anfitriões e anfitriãs. Uma sabedoria constituída no processo de habitar um lugar, compreendido aqui no sentido mais profundo do termo, ou seja, não apenas viver na floresta, mas da e com a floresta. Ao compartilharem essa condição comum, e em estreita relação entre si, humanos e castanheiras passariam a ser animados por uma mesma vitalidade? Deitado na minha rede naquela tarde ensolarada escrevi em meu diário as seguintes palavras: “talvez o significado profundo da vida dessas castanheiras seja a dádiva. A dádiva como condição relacional e constitucional desses seres... a consubstancialização da palavra amor”. Em uma das mais belas canções de amor da música popular brasileira, o compositor e sambista Cartola cantava na década de 1970: “queixo­me às rosas, mas que bobagem as rosas não falam, simplesmente as rosas exalam o perfume que roubam de ti”. Concluo esse relato dizendo que às vezes só os grandes poetas e filósofos são capazes de expressar essas “questões de fundo” que por vezes aparecem durante nossos trabalhos de campo, e que nos afetam, e que nos ensinam a sermos pessoas, quem sabe, um pouco mais sábias. 200 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV Una curación en el Sahel Matías Pérez­Ojeda del Arco “Está enferma, le duele el costado derecho y la cabeza”, me dijo Florie con tono ansioso al verme entrar a la pequeña habitación de una de la docena de casas y campamentos de paja seca y ramadas que componen el caserío Belli Bambi, en la Reserva del Ndiaël en Senegal, cerca de la frontera con Mauritania. Había abandonado las lecciones efímeras que los niños del caserío me daban en Pulaar sobre cómo nombrar esas numerosas espinas que se le pegan a uno cuando transita por las arenas del Sahel, y en su búsqueda, la encontré sentada al costado de una anciana que vestía de violeta y que se quejaba de un dolor que le cristalizaba la mirada. ¡Salam Aleykoum! atiné a decir en mi entrada, ¡Maleykoum Salam! respondió su voz magullada. La anciana se encontraba recostada sobre un colchón pequeño de espuma sobre el cuál había una pequeña alfombra de esas que se usan para la hora de la plegaria. Florie se encontraba al frente suyo, la anciana, con unas débiles señales con las manos me indicó sentarme, a unos metros al lado, en otro pequeño colchón un poco más gordo del que ella utilizaba. La habitación, que era en verdad un oasis fresco a la una de la tarde, tenía unos tapizados coloridos entrepuestos que, junto a la cobertura de su única cama, resaltaban como un flash fotográfico. Al menos un par de docenas de ollas, baldes, vasos, y copas empolvadas se ubicaban alrededor de la cama, dando la impresión de no haber conocido el significado del uso jamás. Finalmente, un poster con una imagen de la Meca colgaba sobre una de las paredes verdes de la habitación, y que a su vez contenían algunas escrituras blancas en árabe, algo ya borradas por las temporadas en el Sahel. Después de haberme ubicado en el colchón, una cuarta persona llegó a la habitación, fue entonces cuando algún sinónimo perdido de consuelo comenzó a generarse en la cristalizada mirada de la anciana y en su rostro arado y seco, 201 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV donde no cabían las osadías o travesuras de las arrugas infantiles. Era una señal de desahogo, casi como aquellas agónicas palabras de gratitud que pudiesen intentar esbozar las abatidas arenas de esta región, cuando llegan esos escasos casi dos meses de lluvia al año que les permiten almacenar, si es que acaso se puede, el siguiente soplo de vida para la temporada siguiente. Quien entraba era un anciano que llevaba unas gafas negras para el sol y bien rayadas por el uso, un turbante blanco empolvado en la cabeza, una túnica blanca entrada en años, uno pantalón azul algo suelto, y un bastón delgado de madera de más de un metro de largo, pulido finamente y con un color de la madera del pino fresco, como si hubiese sido arrancado de la juventud de su vida. ¡Salam Aleykoum! nos dijo al entrar, ¡Maleykoum Salam! respondimos en coro. Era un marabout, líder religioso y curandero de estas arenas y polvos, de esos personajes misteriosos de esencia mística y sigilosa y de caminar imperceptible. De esos seres castigadores y sanadores a la vez, con un poder inconmensurable que puede colocar o destituir a alguien del sillón presidencial de un país, o bien hacer que el seleccionado de fútbol pase o no las consecutivas etapas en una copa del mundo; era uno de esos personajes claves que pueblan las páginas de la literatura senegalesa, desde L’aventure Ambiguë de Cheikh Hamidou Kane a La Greve des Bàttu de Aminata Sow Fall. El marabout se sentó detrás de la anciana, mientras ésta se recogía y trataba de erguirse a duras penas desde su posición inicial para evitar el dolor que la tenía postrada en el colchón. El marabout se remangó la túnica blanca a la altura de sus brazos, colocó los lentes oscuros a la altura de su frente, y empezó a tocar suavemente el costado derecho de la espalda y la parte del seno derecho de la anciana, mientras al ritmo de una plegaria que viene de menos a más, como si uno se imaginase el jadeo seco de algún tren cubriendo la antigua ruta desde el lejano Bamako acercándose a Dakar, comenzó a decir palabras prohibidas para mortales como nosotros. Al rato, intercaló las plegarias con el chasquido de su mano derecha, en una secuencia de cinco veces, después del último chasquido, la mano iba a parar nuevamente sobre la rugosa piel de la anciana. 202 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV Luego lanzaba tres escupitajos sin saliva a la zona afectada de la anciana y cerraba con un soplido de esos que contienen la fuerza para tumbarse algún baobab juvenil mal anclado y distraído. La secuencia seguiría: plegarias, cinco chasquidos, tres escupitajos secos, un soplido, todo por diez minutos. Florie y yo permanecíamos casi sin respirar, como aislados, como si tratásemos de ubicarnos cada uno respectivamente dentro de la magnitud de tal episodio cósmico o del génesis de los mundos allí en algún rincón en el Sahel, mientras la anciana se quejaba de dolor y el marabout convertía en lluvia el clamor seco de ésta. Luego de esos 10 minutos donde la lógica del tiempo pareció haber perdido su razón de ser, el curandero buscó en su costado derecho a la altura de la cintura algo que terminó siendo un cuchillo pequeño, fino y de un mango de plástico negro, el cual lo puso en perpendicular sobre su bastón que yacía en el piso. El marabout repitió sus plegarias, cinco chasquidos, tres escupitajos secos y esta vez sin soplido, hacia el cuchillo tendido. Luego la mano derecha del marabout regresó por unos minutos para acariciar la espalda y seno de la anciana, que parecía haberse ya calmado del dolor inicial. Finalmente, el marabout buscó en su cintura nuevamente lo que sería una botella de un color pálido, que contenía un líquido transparente con aroma a hierbas maceradas, que terminó salpicando a la parte afectada de la anciana. Se levantó, habló muy corto algo con ella en Pulaar, y después de darme la mano todavía mojada por la curación, se perdió sigiloso a quién sabe dónde. Florie y yo nos levantamos, y abandonamos la habitación, despidiéndonos de la anciana que se 203 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV había vuelto a recostar sobre su colchón de espuma vieja, como si estuviese lista para esperar la dureza de una siguiente temporada. Nos había venido a buscar Fatimata, la esposa de Salif, jefe del caserío. El arroz blanco pintado con agua de frejol estaba ya graneado y ella, en Pulaar y con señas, nos invitaba a su casa para almorzar. Los niños nos siguieron mientras a lo lejos todos los hombres del caserío se dirigieron a rezar, pues eran las 14:15, hora del Tisbaar, lo que significaba que tendríamos que esperar un rato más para la reunión comunal que habíamos pactado con el joven profesor de francés, haciendo de traductor y que llevaba apenas un mes en el caserío. Sin ver rastro del marabout por el caserío, y sin decir palabra alguna, caminamos hacia la casa de Fatimata procesando, entendiéndonos y sintiéndonos en una historia milenaria de un viernes en el Sahel, todo en silencio, y viendo la sequedad del paisaje suplicando por lluvia y el dolor de la anciana, y las manos del marabout, su bastón y su cuchillo y aquel líquido de hierbas, todo, en uno y en mucho, como si viéramos de un porrazo de una lluvia violenta de julio, el pasado, o quizás, el futuro de la humanidad. 204 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV Baresolone, Senegal: rebeldía para alterar las Ítacas en Senegal poscolonial Matías Pérez­Ojeda del Arco Florie Chazarin Barcelona no está en Europa, está en el Sahel en Senegal, al menos para Serguey. Imágenes diversas de piel chamuscada por la exposición prolongada a esa combinación letal: sol y sal; de gargantas extinguidas lentamente por esa sed macerada en aquellas piraguas coloridas que se lanzaron a la conquista del sueño europeo. De embarcaciones que terminaron a la deriva, sin motor, sin capitán, sin provisiones, y sin ese compartir de historias y voces que acompañaron alguna vez la brisa marina. Como si fueran notas de la Kora tocadas desde el seno de un hogar en la costa que se aleja cada vez más; de cuerpos ahogados por centenas; sin sueños como 205 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV equipaje; de pies lacerados en esa diáspora enrumbada por miles de kilómetros hacia el norte africano; de murmullos que fermentan a voz baja para no ser descubiertos por la policía marroquí, aguardando el momento preciso bajo la niebla en lo alto del monte Gourougou, para intentar desafiar los garfios de las cercas de La Melilla, cachito Español en África. Abatido por esas imágenes que cobran la forma de llantos y quejidos de vecinos que ruegan a la nostalgia, acaso una última visión calurosa del familiar perdido, antes de que todo se ponga oscuro como cuando el último carbón se consume. Extenuado por la mirada perdida de algún deportado que tuvo la ‘suerte’ de volver a casa, Serguey nos contó que dejó su oficio como labrador de la madera y decidió desafiar la locura de la cual fue tildado en un inicio en la localidad donde fue a parar. Comenzó un siete de agosto del 2007 y terminó un tres de junio del 2010, sin domingos de descanso y trabajando incluso durante el mes de Ramadán. Sumemos a esto las exigencias del trabajo físico que esto conlleva, después de 70 sacos diarios en promedio, cargados con alrededor de 80 kg de arena cada uno y recorriendo una distancia de más de 100 metros pudo lograr la conquista física de su propia Europa: el Lago Guiers, al norte de Senegal. Serguey pudo imaginar y dibujar una tierra productiva de 0.3 hectáreas sobre esa agua que hasta ese entonces parecía indomable y a ese pequeño espacio le puso ‘Baresolone’, en alusión a Barcelona. Más allá de esos años, de ese ir y venir transportando arena, Serguey nos contó mientras miraba al horizonte y apuntaba con sus manos hechas ahora de arena, que erguía su propia humanidad como si se librase del dolor de esas almas que se perdieron en el Atlántico. Buscó demostrar que esa Barcelona que provoca llantos de familias por las noches, por la que algunos se vuelven sujetos divididos entre el ‘aquí’ y el ‘allá’, no está en Europa, sino en el Sahel, en casa: en Senegal. Una Barcelona que, sin poseer la arquitectura extravagante de Gaudí, o un nutrido supermercado Corte Inglés, o una transitada y pomposa avenida Paseo de Gracia, se basta con una adecuada reinterpretación del paisaje ecológico, de sus códigos más secretos, del aprender diario 206 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV del peso y aroma de la tierra o la arena fresca, y de las caricias de las aguas o de los caprichos de los vientos. Y así, su ‘Bareselone’ se nutría con una ráfaga dispersa de árboles de mangos, limones, y guayabas; con algunas parcelitas de tomates, cebollas y plátanos, con un par de palmas datileras todavía infantiles, y finalmente, con algún espacio para la piscicultura. Recorriendo un camino empolvado con algunos baobabs gobernando el paisaje, dejando la zona del Ndiaël cerca de la frontera con Mauritania, y recordando en nuestra lenta marcha aquél intento de la empresa Senhuile­Sénéthanol en producir agricultura a gran escala a través de un proceso de adquisición de tierras de manera dudosa sobre el territorio ancestral Peul, ‘Baresolone’ nos interpela en todo momento. En un primer plano, Serguey y su obra irrumpen ese Plan Senegal Emergente, el proyecto bandera del presidente Macky Sall en su primer período, proyecto que continua en la actualidad, y que engatusa a senegaleses con esa idea de estar llegando finalmente a una especie de ‘despegue’, a ‘salir de’ y de ‘dejar el atraso’. La ética y vida de esa parcela Saheliana de Serguey rompe y resquiebra con rebeldía para nosotros esa mímica que condenaba Frantz Fanon hace casi 60 años, posicionándose contra toda lógica moderna, imperial, cartesiana y hoy neoliberal. Y de allí viene la ‘locura’ inicial de la que fue encasillado Serguey. ¿Quién carga arena por tres años y la tira al agua? ¿No nos hace recordar aquellos personajes clásicos de la literatura africana poscolonial que optaron por trascender en una miríada de formas, aquella modernidad/colonialidad que devoraba sus días y noches? Le Fou en L’aventure Ambiguë (1961) de Cheikh Hamidou Kane, Fama Doumbouya en Les soleils des Indépendances (1970) de Ahmadou Kourouma, Magamou Seck en La Plaie (1967) de Malick Fall, o Fadel en Los Tambores de la Memoria (2011) de Boubacar Boris Diop. Serguey, a través de su reinterpretación y aprendizaje ecológico del espacio, emerge desde aquellos saberes no académicos y fomenta una crítica de un poderío enigmático, como aquellas críticas descoloniales de artistas y pensadores (re)imaginando África y su relacionalidad con el mundo hoy en 207 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV día. En un segundo plano, es a través de ‘Bareselone’, que también intentamos rasgar lo que olvidamos muchas veces al atropello: nuestra propia contribución a la negación epistémica de lo que tenemos en casa y ese peso académico colonial de ni siquiera intentar nuestras propias ‘Baresolone’. Esa unidimensionalidad que impone ‘ruta’ sobre ‘rutas’. Y es en toda esa arena trasladada al hombro en el Ndiaël, que estalla la rebeldía pura contra el mantra de la incapacidad, aquel impuesto y cincelado sistemáticamente en nuestros cuerpos que nos repite el no poder (y deber) hacerlo en casa. Ese domingo, Serguey con un sombrero de paja que le cubría el rostro, y que muchos de los naufragantes en las fauces sufridas del Atlántico hubieran deseado tanto en esas sus odiseas fallidas, nos mostró que basta con la osadía y rebeldía de mover las arenas un poco, o, mejor dicho, los mapas, las Ítacas, los órdenes de importancia, y la estima del ser mismo. 208 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV “Uma vez ela quase me come” Mayra Patrícia Corrêa Tavares Pescador, história ou estória sempre tem a contar, um caso, um conto, dois dedos de prosa como costumam falar. Relatos de suas vivências do cotidiano, dentro da canoa, casco, barco, quaisquer embarcações que esteja, dentro do rio, igarapé, mar, mangue, terra firme, são sempre lares de experiências a escutar, embarcar, e a viver internamente a narrativa. Senhor Xavier, pescador experiente, pesca desde a idade dos dez anos, aprendeu com os mais velhos que não se deve sair para pescaria em noites chuvosas, haja vista, o perigo a rodear, a noite escura gera dúvidas, ciladas, armadilhas inerente da natureza a circundar que faz qualquer um tremer só de pensar no escuro a sua frente e o que pode ocasionar. Ao entardecer, deitado na rede, na majestosa comunidade de Vila­ Cuera, situada à margem esquerda do rio Caeté, quando Xavier foi atraído pelo convite de seu compadre: ­ Compadre Xavier, hoje tem maré boa pra peixe, vamos? ­ Será? Xavier convencido pelo compadre pegou seus apetrechos de pesca e saiu pelas águas ferruginosas do rio Caeté, principal rio que a comunidade utiliza para extrair o sustento. Ao chegarem no destino apropriado para lançar a caiqueira, rede de pesca, a chuva despretensiosa começa a despenhar­se, porém, depois de alguns instantes, ela aparece torrencial, o que parecera como uma notícia desagradável aos pescadores. ­ Compadre, que toró é esse! ­ exclamou Xavier. ­ Já que estamos aqui, vamos ficar! ­ respondeu o compadre. Noite chuvosa, quase nada dava para enxergar, apenas ouvia a confusão do barulho dos pingos grossos da chuva caindo sobre a impetuosa água da maré, estava muito intensa, típica do tempo que estavam vivenciando, o inverno. Os pescadores receosos em 209 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV continuar a pescaria naquela noite não favorável, decidiram puxar a rede e, abeiraram, procuraram abrigo e logo, passaram a encostar à margem do rio, até que estiasse a tempestade. ­ Meu compadre, é hora de arreigar, o tempo não está de brincadeira ­ disse Xavier. O compadre não hesitou, acatou a ideia. Assim, ancoraram a canoa a uma grande pedra à margem do Caeté. O senhor Xavier e os demais pescadores da Vila sabem dos riscos que a pesca oferece, principalmente, em noite nebulosa. Estando a algum tempo esperando acalmar a tempestade, lembraram dos acontecimentos ocorridos, contados e vividos por outros colegas pescadores em contato com a natureza. Na incerteza se chegaria a calmaria daquele tempo ameaçador, os dois pescadores amedrontados desamarraram a canoa na tentativa de partir. De repente, um reboliço próximo da embarcação como quem quer naufragar. A escuridão detinha a visão dos homens, vento impetuoso, água agitada, um banzeiro forte que impulsionava o vai e vem da canoa e soprava um forte odor, descrito como um pitiú que assustava os presentes. Xavier, experiente, logo disse: ­ É a bicha grande que está nos mundiando, parente. Espia! ­ É ela, a cobra grande! Está tentando alagar a canoa e nos dar o bote, ela quer nos engolir! ­ Vamos fugir parente! Ela vai alagar a canoa e nos engolir! ­ disse Xavier alarmado. A cobra grande é vista por muitos pescadores que usam o rio diariamente para pescar. Os pescadores conseguiram se desvencilhar da criatura. Puxaram a canoa e arrumaram sair daquele local que se tornara apavorante. Muito assustados, inspiravam e expiravam o ar com sabor de alívio, ainda com o corpo trêmulo, respiravam o gosto de gratidão e de narrativa a contar aos seus colegas. ­ Ela quase me come! ­ disse Xavier com aspecto empalidecido. ­ A valença que conseguimos soltar a canoa daquela pedra e fugir, a bicha já vinha com a encantaria e a gente ia ficar 210 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV mundiados, com certeza, já era presa fácil naquela noite chuvosa e nem seriamos encontrados pelos parentes. Comentou o compadre, ainda com o corpo agitado. ­ Nós se salvamos! ­ disse Xavier. Eles escaparam. “Mas não é bom ir para as bandas de lá não, da cabeceira até a boca do rio para pescar em noite de chuva. Nessas bandas tem muita pedra e no pedral acolá mora a cobra grande, não é todo dia que ela aparece, mas, às vezes, aparece”. Daí em diante os pescadores repensaram a sua forma de pescar, respeitando a natureza e o conhecimento adquirido e repassado pelos mais velhos e passaram a escolher outros caminhos e formas diferentes de pescar que não relasse naquele misterioso. 211 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV “Contratempos” de um mapeamento: em busca das capoeiras de Seu Pedro Brás Myrian Sá Leitão Barboza (Myroca) Mapear paisagens, mapear histórias, mapear (com) vivências, mapear afetos, mapear percepções: um melindroso desafio que não se traduz apenas em plotar coordenadas geográficas “chapadas”, horizontalizadas em uma superfície de sulfite de poucos milímetros ou em um ecrã colorido, “verticalizado”. Mapas são, ou deveriam ser, representações sócio­ espaciais compreendidas por quem os vive, convive e revive. Sendo sua projeção, a tarefa mais espinhosa quando sua concepção não é realizada por quem os percebe. Diante destes percalços, nós, uma equipe composta por bióloga, antropólogo e barqueiros, tentamos “mapear” os principais locais de extração de recursos naturais e de relevância cultural para os indígenas Katukina do rio Biá (Amazonas, Brasil). Uma tarefa pretensiosa, dada a amplitude de locais biologicamente e culturalmente significativos, e perigosa em virtude da tarefa de esquematização por quem não vive estes espaços, além da preocupação com a possibilidade de usos futuros29 dessas preciosas informações. No caso do presente projeto, o mapeamento foi utilizado para a elaboração de um plano preliminar territorial de manejo Katukina30, que terminou fortalecendo as diretrizes da Política Nacional de Manejo 29 O acordo da equipe de campo com a coordenação consistia em não repassar as coordenadas georreferenciadas nos relatórios técnicos para o financiador do projeto. 30 Povo Katukina. 2011. Plano de Manejo Territorial Katukina. Organizado por: Spinelli, Monica, Myrian Barboza, e colaboradores et al. (OPAN). Acesso em 29 janeiro de 2020. Disponível em: https://amazonianativa.org.br/plano­de­gestao­katukina­do­rio­bia/ https://acervo.socioambiental.org/acervo/documentos/plano­de­gestao­territorial­terra­indigena­ rio­bia 212 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV Territorial e Ambiental das Terras Indígenas (PNGATI)31. Os lugares mapeados consistiam nos principais locais de pesca, caça, extração de argila, fibras, cipós, óleos vegetais e frutos da floresta para confecção de casas, redes, vassouras, vasilhas; ou capoeiras antigas, aldeias antigas, acampamentos, roças, aldeias atuais, dentre outros. Para além dos espaços físicos visíveis e de fácil alcance, foram indicadas paisagens multidimensionais de difícil alcance e visualização para nós pesquisadores, localizadas principalmente em estratos verticais. Os Katukina citaram os locais de moradia dos seres intangíveis – criaturas não humanas com intencionalidade humana­, como locais aéreos, subterrâneos ou aquáticos. Huanin wara, dono do vento, por exemplo, reside nas tempestades de vento e geralmente é visualizado antecipando a chegada destas tempestades. Dito isto, nos questionávamos como poderíamos mapear a moradia de Huanin wara? Assim, diante destes contratempos, que viraram verdadeiros “favortempos” devido a possibilidade de reflexões instigantes, nos concentramos nos desafios dos mapeamentos, e tentamos considerar atentamente as alteridades e as cosmologias destes povos de tradição oral. Era março de 2010, temporada de chuva e estávamos em nossas “naveganças” há vários dias a caminho da aldeia Terra Nova. Famílias Katukina de outras aldeias (Boca do Biá, Gato, Janela, Sororoca e Bacuri) também viajavam para participar das etapas de mapeamento. Deslocávamo­nos pelo barco Sena, que apesar da terminologia, a velocidade era algo que lhe padecia. Devido a longínqua localização da aldeia Terra Nova, cerca de uma semana de barco desde a primeira aldeia (Boca do Biá), muitos Katukina, principalmente os mais jovens, não conheciam esta aldeia. Uma intrigante aventura fluvial, a começar pela junção de diferentes famílias em uma “casa ambulante”, que mudava seu 31 Brasil (Presidência da República). 2016. “Decreto 7.747, 5 de junho de 2012. Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas (PNGATI). “ Acessado em 5 de janeiro de 2016. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011­ 2014/2012/decreto/d7747.htm. 213 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV sítio de pernoite a cada amanhecer. Subíamos em direção à cabeceira do rio Biá. O curso do Biá ainda se apresentava largo e profundo, porém à medida que os dias passavam, ele se estreitava e se encurvava como a silhueta de uma longa cobra que vai aos poucos afinando seu corpo e movimentando­se sinuosamente. Era início da tarde quando chegamos na aldeia do Seu Surucucu. Muitas estórias e histórias sobre Seu Surucucu permeavam o imaginário e as narrativas Katukina das outras aldeias, de forma semelhante ao emaranhado de canais fluviais da Amazônia: se conectam e se espalham fluidamente até mesmo para localidades afastadas. Seu Surucucu e sua família eram os únicos Katukina a continuar residindo na região do alto rio Biá, porém frequentemente viajavam pelo território. O apelido de Seu Surucucu lhe foi atribuído devido a um ataque de um espécime da cobra venenosa surucucu32. Este animal possui forte veneno, podendo deixar graves sequelas ou ser letal para alguns humanos. Como Seu Surucucu sobreviveu, e não era facilmente encontrado, ele representa uma espécie de lenda viva da serpente surucucu. Seu Surucucu é um homem magro, de cabelos brancos, muito simpático e possui problemas em uma de suas pernas em função da ação do veneno da surucucu. Ele também se comunicava em português e sorria constantemente. Sua face coincidentemente assemelha­se ao rosto de uma cobra, a qual é alongada e afina­se da porção superior a inferior formando um triângulo. Ele também andava arrastando uma de suas pernas, similar ao movimento de rastejar das cobras sobre o solo. Na aldeia Terra Nova os Katukina interagiam entre si com muito humor. No dia seguinte, explicamos os objetivos da atividade de mapeamento, além das etapas metodológicas de realização. Seu Surucucu sugeriu mapearmos áreas em torno da aldeia e principalmente áreas em direção da cabeceira do rio Biá, como as capoeiras dessa região. 32 Na Amazônia o termo surucucu pode ser utilizado em referência às espécies de cobra Lachesis muta e Bothrops atrox. 214 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV As cabeceiras consistem em ambientes especiais: representam a origem dos rios. Ao redor das cabeceiras existem pequenos rios de água clara, denominados igarapés, que contém abundância de plantas e animais, inclusive de mosquitos horrendos. Nestes locais a precipitação inicia cedo, anunciando a mudança na “vestimenta” das paisagens. Para muitos grupos indígenas estas áreas também constituem espaços sagrados. Infelizmente a cabeceira do rio Biá não foi incluída na delimitação oficial do território Katukina. Já as capoeiras são ambientes modificados, relativamente recentes, contendo vegetação em transformação devido à abertura prévia da floresta e, assim, apresentam forte incidência solar. As capoeiras geralmente consistem em antigas roças ou antigos locais de moradias. Seu Surucucu e seus familiares insistiam que deveríamos visitar a capoeira do Senhor Pedro Brás, pois estas continham antigas e enormes trilhas, campos e capoeiras. Nossa equipe e os demais Katukina estávamos extremamente curiosos a respeito do Seu Pedro e suas paisagens. ­ Quem poderia ser o Senhor Pedro Brás? ­ questionávamo­ nos entusiasmados. Eu nunca tinha ouvido falar nele antes. Nenhum Katukina das outras regiões (baixo e médio rio Biá) comentara sobre ele. Apenas os Katukina da aldeia Terra Nova haviam informado com muita empolgação a respeito do Seu Pedro Brás. Eu já estava imaginando Seu Pedro como um velho senhor, forte e trabalhador, devido aos relatos de suas enormes capoeiras. Para realização do mapeamento nos deslocamos por meio de duas voadeiras (lanchas) motorizadas que permitiam a navegação nas partes mais estreitas do rio Biá. Durante quase três horas, nossa equipe, inúmeros Katukina e logicamente Seu Surucucu, percorríamos o Biá a procura das capoeiras de Seu Pedro Brás. Seu Surucucu apontou a ponta de terra firme onde localizava­se a principal capoeira de Seu Pedro, descemos na beira e percorremos uma longa trilha margeando roças antigas, até chegarmos em um imenso campo de gramíneas. Não conseguia compreender a finalidade de um campo tão vasto no meio da 215 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV floresta. Aquela paisagem me perturbava. ­ Quem poderia ter sido capaz de transformar drasticamente aquele ambiente? Indagava­me eufórica nos meus pensamentos. Apesar de suas imensas e diversificadas roças, os Katukina das outras aldeias não possuíam campos como aqueles, nada semelhante. A cada passo ficava ainda mais intrigada a respeito desse tal Senhor Pedro. Repentinamente, enquanto caminhávamos, um dos rapazes Katukina nos mostrou uma enorme estrutura redonda de ferro... isso nos deixava ainda mais confusos. A cada passo, novas descobertas: botas, cimentos e até maquinarias. Vestígios de industrialização, uma paisagem misteriosa! Sentia­me como uma arqueóloga, uma investigadora tentando desvendar aquela paisagem enigmática. Os demais Katukina também se demonstravam surpresos, porém visivelmente preocupados. Enquanto apontavam para os objetos, eles aceleravam seus passos e estrondavam sonoridades de espanto, curtas, mas repetitivas, em língua Katukina. Através daquela expressiva vivacidade sonora e gestual, presumia que os Katukina acreditavam que o Senhor Pedro Brás e sua família estavam ali próximos. Inesperadamente, seus olhos e toda expressão facial mudaram rapidamente, como uma brusca trovoada, anunciando um forte temporal. Eles se espalhavam rapidamente na paisagem em busca de mais materiais e pelos seus donos. Eles gritavam euforicamente e repetitivamente pelo SENHOR PEDRO BRÁS. Por um momento elucidativo eu pude conectar aquelas “gotas” de palavras vibrantes e compreendi toda aquela tormenta. Uma verdadeira revelação sonora, uma sequência de trovões, uma tempestade de ideias formava­se naquele momento conectadas por estrondos clareadores: Senhor Pedro Brás... Senhor Pedrobrás … Senhor PeTrobrás … Senhor PETROBRAS!! 216 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV Depois de interligar as palavras e conectá­las com os vestígios ali encontrados, descobrimos que ali já funcionara um campo experimental da empresa Petróleo Brasileiro S.A. (PETROBRAS), empresa estatal brasileira de exploração, produção, refino, comercialização e transporte de petróleo, gás natural e seus derivados. Nas décadas de 70 e 80 a PETROBRAS havia realizado intensas atividades de prospecção de gás natural nos municípios de Carauari e Jutaí33, que abarcam o território Katukina. Desta maneira, o mais intrigante e imaginável contratempo deste mapeamento foi averiguar que parte daquela região e seus componentes físicos (solo, minerais, gás natural, etc.) já haviam sido esmiuçadamente mapeados para fins comerciais. 33 ISA (Instituto Socioambiental). Sem ano. Petróleo na Amazônia Brasileira. Beto Ricardo. Acesso em 29 janeiro de 2020. Disponível em: https://documentacao.socioambiental.org/documentos/Q2D00002.pdf 217 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV Episódios de um doutorado distante, parte I: o emicista, o eticista, e as formigas da dona Maria Marta Natalia Hanazaki É o começo de uma nova década, mais um ano vem, e lá se vão quase 20 anos desde os tempos do meu trabalho de campo do doutorado… meu filho que tem hoje menos de 20 anos costuma dizer que esse tipo de frase tem cara de “frase de tiozão” (ele nasceu 18 dias depois da minha defesa de doutorado, mas esse poderia ser um causo para outra ocasião: “como fazer o timing de ser mãe dar certo com o timing acadêmico”). Confesso que existe uma certa satisfação de ver o tempo passar e poder olhar as coisas em perspectiva: alguma vantagem tem que ter, não é mesmo? Já que os cabelos brancos e as rugas são inevitáveis. Para mim o trabalho de campo do doutorado tem um diferencial que o distingue de qualquer outro momento da carreira acadêmica, pois tem aquelas características de, pela primeira vez, mergulhar na coleta de dados, tomar decisões mais maduras (ou não!) e pensar com mais independência acadêmica. Muitas idas a campo, ter tempo para planejar e para aprofundar nas investigações, coletar um volume grande de dados ­­ e depois descobrir que de todo esse volume usamos só uma pequena parte, mas outras partes preciosas que ficam são memórias que não vão para a tese muito menos para os artigos. Não é à toa que, dessas muitas idas a campo e vivências com pessoas tão incríveis que encontramos nos caminhos, ficam lembranças únicas. Uma das lembranças que trago dos idos tempos do campo do doutorado é um episódio que sempre conto nas minhas aulas de Etnobotânica e de Etnoecologia. Na minha tese de doutorado investiguei as relações entre as pessoas e os recursos naturais para a alimentação em três comunidades caiçaras do litoral sul do estado de São Paulo. Em duas dessas comunidades, Pedrinhas e São Paulo Bagre, usei um método de coleta de dados no qual eu 218 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV precisava ir mensalmente por 3 a 4 dias para cada comunidade. Em São Paulo Bagre eu ficava hospedada na casa da dona Maria Marta e do seu João, casal muito querido que sempre me recebeu de braços abertos e a quem sou muito grata. Aprendi muito com as histórias contadas pelo seu João, e com a convivência com a dona Maria Marta. Uma das coisas que aprendi com dona Maria eu só fui ligar ao tal do arcabouço teórico alguns anos depois… Um aspecto que sempre achei interessante nas discussões teóricas da etnobiologia é o debate sobre o êmico e o ético, ou emicista e eticista ou, em inglês, emic e etic. E que eu sempre insisto com os alunos que esse ético (que traduz­se em etic, em inglês) é diferente do ético da ética (que traduz­se em ethic, em inglês). Esse “agázinho” que se perde na tradução do inglês para o português (lost in translation…. isso já deu nome até para filme) faz toda a diferença. Enfim, o êmico e o ético (esse etic sem o “h” do ethic em inglês) derivam na verdade da linguística, das palavras fonêmico e fonético. São palavras emprestadas como metáforas para explicar as perspectivas internas de um sistema e as perspectivas externas a esse sistema. Ou, como uma representação de uma letra, “E” por exemplo, pode ser interpretada fonemicamente de modos distintos. Basta lembrar dos ricamente diversos sotaques de norte a sul do Brasil: todos falantes de português, mas que interpretam o “E” com um som mais aberto ou mais fechado, mais longo ou mais curto. Numa transcrição fonética, seria algo como /é/, ou /ê/, ou muitas coisas entre esses dois sons. Ou seja, internamente, dependendo do contexto, aquele “E” vai tem um som entre aberto ou fechado, longo ou curto. Ou vai significar permitido estacionar. Ou pertence a... Ou alguma outra coisa. Assim, êmico e ético mostram perspectivas diferentes para uma mesma situação: a perspectiva do pesquisador (a pessoa externa ao sistema, que está olhando para aquele contexto) traz uma explicação ética, ou eticista, enquanto que a perspectiva de quem está dentro do contexto e está olhando para a mesma situação a partir desse contexto, traz uma explicação êmica, ou emicista. Alguns autores acabaram ficando até meio acirrados no 219 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV debate, por um lado defendendo que nós etnobiólogos devemos aproximar ao máximo nossa visão eticista das explicações emicistas, enquanto que outros dizem que isso é impossível e essa discussão é uma bobagem, então devemos abandoná­la… mas deixo os debates teóricos para o leitor, curioso etnobiólogo, ler mais a respeito do assunto. O que importa aqui é que, na minha humilde opinião, esse contraste é útil para percebermos que diferentes pontos de vista, ou diferentes explicações que revelam visões a partir de pontos distintos, podem ser complementares e que não existe uma explicação “mais certa” que a outra: cada interpretação funciona no seu contexto. Pois bem, e dona Maria Marta, com toda a sua sabedoria prática, sem saber me deu uma lição de êmico e ético em uma tarde calorenta de São Paulo Bagre. As casas em São Paulo Bagre não tinham muros, e os quintais eram um misto de pequenos pomares e hortas que gradativamente se confundiam com a vegetação de restinga ao redor. Muitas casas tinham um pequeno galinheiro e as galinhas eram deixadas soltas para ciscar nesse pátio arenoso, que se juntava com a restinga, e recolhidas somente no final da tarde. Havia pitangueiras, goiabeiras, laranjeiras, misturadas com pequenas árvores nativas da restinga, adornadas com bromélias e orquídeas, algumas trazidas para perto da casa por suas flores vistosas, outras que sempre estiveram ali ou que, por um acaso ou não, vieram colonizar essas árvores perto das casas. Como em muitos outros dias, no meio da tarde eu já tinha visitado as famílias que precisava e finalizado a coleta de dados do dia. Nesses momentos tranquilos eu acompanhava a dona Maria Marta em alguns afazeres domésticos e às vezes só ficávamos jogando conversa fora. Dona Maria gostava muito das suas orquídeas e naquele dia estava acontecendo algo que a deixou apreensiva: uma pequena correição de formigas cortadeiras estava invadindo seu jardim, fazendo caminhos por todo o pátio e cortando folhas das plantas da dona Maria. Ela ficou apreensiva mas não muito, pois ela sabia muito bem o que fazer! E foi bem isso que ela me disse, “Quer ver eu dar um jeito nessas formigas 220 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV todas??” Sem esperar que eu respondesse, dona Maria foi até a borda do pátio, onde o quintal começava a se misturar com a restinga, e rapidamente voltou com um graveto comprido de madeira. Muito segura com seus conhecimentos, empunhando o graveto, dona Maria começou a recitar uma oração. Conforme recitava a oração, ela desenhava cruzes na areia por onde passava o carreiro das formigas. E não é que poucos minutos depois não havia mais formigas cortadeiras atacando as plantas da dona Maria?!? E ela toda orgulhosa: “Não disse que ia dar um jeito?!” E deu mesmo. Para ela, a força da oração foi fundamental para espantar as formigas. Para mim, pesquisadora com a mente formatada pelos objetivos e hipóteses e a racionalidade científica, as cruzes que ela fazia na areia estavam desagregando os caminhos de feromônio das formigas. Para ela, uma explicação êmica ou emicista, de quem está vendo o mundo a partir de um ponto de vista de dentro de um sistema, totalmente imersa em um contexto. Para mim, uma explicação eticista, de quem está vendo aquele episódio a partir de um ponto de vista de fora daquele sistema. Duas explicações que funcionam, uma não é melhor ou pior que a outra. Há um paralelo também com aquilo que alimenta nossa memória semântica e nossa memória episódica. E um paralelo com as observações sincrônicas e diacrônicas. Em outras palavras, com aquela característica do pesquisador ­ e aqui falo não só dos etnobiólogos, mas dos cientistas em geral ­ de observar o mundo e os fenômenos que está estudando a partir de uma janelinha, que faz um recorte da realidade, e mais que isso, a partir de uma fotografia tirada dessa janelinha, que faz um recorte temporal da realidade. Comecei a usar esse exemplo muito tempo depois nas minhas aulas, pois demorei um pouco para assimilar essa importante lição que a dona Maria Marta me ensinou naquela tarde quente. Para além de me ensinar sobre as coisas mais imediatas, ela estava me dando uma aula de teorias da etnobiologia! 221 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV Episódios de um doutorado distante, parte II: seu Máximo é mesmo o máximo Natalia Hanazaki "People always ask me where I'm from and I hesitate to answer. Why would it matter? I'm here now." (de Stardust, Vandebroek, Ina) Hoje o assunto do momento é o coronavírus (escrevo esse texto entre fevereiro e março de 2020). Esse assunto está entre as coisas que acontecem lá do outro lado do planeta e fazem a gente aqui ficar pensando como é, para quem está lá do outro lado do planeta (revisando o texto na primeira semana de abril: é assustador como já estamos vivendo no mundo inteiro o que estava acontecendo lá do outro lado distante do mundo). Minhas feições e meu sobrenome revelam ­ fácil! ­ que tenho antepassados que vieram lá desse outro lado, e não foi um nem dois, foram os meus quatro avós que, em determinado momento de suas vidas, entraram em diferentes navios lá no Japão e por alguns meses navegaram por metade dessa bola que chamamos Terra. E a propósito, nos tempos atuais não custa lembrar que sim, é uma bola, e não uma pizza ou uma coisa achatada como os pensamentos de alguns por aí. Então, desde criança, essas ideias de "como será para quem está lá do outro lado do planeta?" sempre estiveram em algum lugar do meu imaginário. Na Etnobiologia, ou nas etnoabordagens como um todo, esse prefixozinho "etno" faz a gente refletir sobre muita coisa. Sobre identidade, tradição e mudança. Refletimos sobre isso nos contextos nos quais trabalhamos e, inevitavelmente, essas reflexões são trazidas para dentro de si: identidade, tradição e mudança. 222 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV Depois que comecei a me dedicar a essa área tão rica de pesquisa, depois que li o Darcy Ribeiro dando vivas ao Povo Brasileiro, depois que li mais um monte de autores e conforme fui aprendendo com cada realidade tão diversa nos pedacinhos de Brasil que tive o privilégio de vivenciar, para mim foi ficando cada vez mais claro como é que essa identidade brasileira multifacetada tem uma riqueza enorme na diversidade de identidades, histórias, tradições e mudanças. Não que cada um precise se enquadrar em uma identidade, como diz a Ina, que se encontra tão multiculturalmente identificada no mundo. Por esses e outros motivos, tem sido um caminho quase inevitável esse que me leva de volta para uma identidade que veio lá do outro lado da bola, trazida pelos meus avós. E o trabalho de campo revela surpresas tão boas, que ficam guardadas com muito carinho na memória da gente. Uma delas me faz pensar de novo dessas ligações com o outro lado do mundo. Um dia, nos tempos do doutorado, usando aquela conhecida metodologia de amostragem chamada de bola­de­neve, estávamos Nivaldo Peroni e eu buscando por agricultores caiçaras no litoral sul de São Paulo, que cultivavam variedades de mandioca (claro, mandioca é trabalho de campo com dados para o Nivaldo, e quem o conhece vai saber por quê!). Quando procuramos na literatura como caracterizar os caiçaras enquanto um grupo, encontramos que são aquelas pessoas descendentes de colonizadores europeus, principalmente portugueses e espanhóis, miscigenados com indígenas, que ocupavam o litoral e com afrodescendentes e que têm formas tradicionais de pesca e agricultura numa região que vai do litoral sul do Rio de Janeiro ao litoral norte do Paraná. Muito confortáveis com essa definição, e muito confortáveis com a metodologia bola­de­neve, eis que nos indicam um caiçara­ japonês. "Ah, ele é japonês, mas é caiçara como nós" ­ é o que nos disseram mais de um entrevistado. Pois então, nos indicaram pegar a estrada de Icapara e procurar pelo seu Máximo. Disseram que seria fácil de encontrá­lo, o tal caiçara japonês. E foi bem fácil mesmo, em uma casa perto da estrada, conhecemos seu Máximo. 223 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV Embora ele mesmo repetisse a brincadeira dos colegas que o indicaram, dizendo que poderia ser conhecido como seu Mínimo, pois tinha talvez 1,50 de altura. Seu Máximo era mesmo o Máximo. A primeira vez que nos encontramos com seu Máximo foi em julho de 1998. Ele nos contou de sua trajetória como pescador e agricultor e de muitas histórias do Vale do Ribeira. Típico caiçara, lavrador e pescador. Falou das dificuldades da pesca e da agricultura, sobre como essas dificuldades estavam relacionadas principalmente depois da construção da barragem do Valo Grande, que afetou quem pescava por conta do aumento no aporte de água doce, e afetou quem plantava, por conta de ter mudado os regimes de inundação no baixo Ribeira. E me contou também muitas coisas sobre a história da imigração japonesa no Brasil, cuja primeira colônia foi instalada às margens do rio Ribeira de Iguape, num vilarejo que não existe mais. Seu Máximo também nos contou muitas outras histórias e compartilhou seu enorme conhecimento conosco, sobre os peixes, os sambaquis, as variedades cultivadas nas roças, as histórias fantásticas da região. Um dia nos deu de presente um ovo de avestruz! E um ano depois ele nos levou para conhecer esse local, onde foi a primeira colônia japonesa no Brasil. Em outubro de 1999, ele nos levou de voadeira rio Ribeira acima, passando por Bacuí, Morretinho, Barranco Branco, Lagoa Seca, Momuna e Bucuí, onde ainda chegava o efeito da maré invadindo o Rio Ribeira pelo Valo Grande, nas marés de lua. Então chegamos no Jipovura, lugar onde foi essa primeira colônia de japoneses no Brasil. O Jipovura tinha o nome de colônia Katsura, fundada em 1913. Teve relação com o primeiro tratado entre os governos do Brasil e do Japão para incentivar a imigração, oferecendo terras para o cultivo de arroz: dizem que 50 mil hectares de terra para 2000 famílias. Para se ter uma ideia do que é isso, é mais ou menos o dobro da área da cidade de onde saiu um dos meus avôs no Japão, onde eles criavam bicho­da­seda. Tanta terra era um grande atrativo para muitas famílias decidirem, literalmente, atravessar meio mundo, já que estava difícil viver da agricultura no começo 224 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV do século lá no Japão. Hoje esse local é considerado o berço da colonização japonesa no Brasil. A manutenção da colônia Katsura tinha relação com uma empresa chamada Kaigai Kogyo Kabushiki Kaisha, ou Companhia Ultramarina de Desenvolvimento, ou KKKK. Segundo seu Máximo, ali era também um quarentenário para os imigrantes, e tinha escola, bar, três casas de comércio para abastecer a vizinhança; tinha açougue, pensão e clube japonês. Moravam japoneses e brasileiros e até a década de 1940 produziam arroz de alta qualidade. Aparentemente a decadência dessa localidade começou com a suspensão das atividades da KKKK com a segunda guerra, em 1939. Para o seu Máximo, ainda havia mais famílias morando ali até a década de 1980, quando a agricultura começou a ficar inviável com os efeitos do Valo Grande. Nós visitamos as ruínas do Jipovura/colônia Katsura. Em 1999 moravam ali bem poucas famílias, talvez menos de 10 pessoas. É sempre estranho visitar ruínas de lugares que já foram habitados e que tiveram uma história vibrante no passado e, para mim, foi estranho também por estar conhecendo parte da minha própria história como descendente de imigrantes japoneses. Mas sem dúvidas o mais incrível que vi ali foi a fusão cultural de muitas influências, representada em uma tradicional prensa de um engenho de farinha de mandioca. A prensa, com fuso e peças de madeira, de influência ibérica e portuguesa, era feita com madeiras nativas da mata atlântica, para processar a mandioca de tradição indígena, com partes pintadas de vermelho e inscrições em kanji, um dos alfabetos japoneses! Hoje olho para essa foto da prensa e continuo curiosa com as inscrições. Sem saber, até hoje seu Máximo incentiva a minha curiosidade para deixar de ser uma analfabeta em japonês. Seu Máximo é mesmo o Máximo. Antípoda. Já ouviu esse termo? Significa aqueles pontos opostos no globo. Tipo Brasil e Japão. Acho que meus avós não sabiam dessa palavra nem da encrenca que os esperava quando navegaram por metade dessa bola­planeta. Há dois anos tive a oportunidade de ir lá para o antípoda, o outro lado da bola. O pretexto era, também, correr a minha primeira maratona 225 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV em Tokyo: quarenta e dois quilômetros, cento e noventa e cinco metros; depois disso a gente se sente capaz de qualquer coisa, até de aprender japonês! Então, com mais de 4 décadas de atraso, comecei a estudar japonês. Afinal, dizem que a língua é uma parte central da identidade cultural. Identidade, tradição e mudança. Espero que assim eu consiga entender, pelas entranhas, um pouco mais sobre esse prefixozinho "etno" que povoa essa nossa área de pesquisa tão incrível. 226 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV Minha primeira vez na Amazônia encantada Norah Costa Gamarra Ah, a primeira vez... diria que, em quase tudo na vida, é especial. E não foi diferente. São tantos os sentimentos... Primeiro a ansiedade e a alegria em vivenciar e ver de pertinho uma floresta densa, rica, enorme, maravilhosa!!! Depois, tem o medo... o medo do desconhecido, o medo dos bichos, medo da voadeira, do avião, da chuva, da noite escura e silenciosa. Tem também aquela sede... Sede da pesquisa! Sede por conhecer as pessoas que ali vivem, suas historias e estórias, suas aventuras e memórias. Essa mescla de sentimentos que tomava meu corpo e meus pensamentos em minha primeira expedição no coração da floresta, ali, atravessando as águas que desciam o formoso Juruá! Contemplada e deslumbrada – como qualquer pesquisador/pesquisadora apaixonado(a) pela narrativa popular e pelo conhecimento comum da natureza – estava eu. Sem saber que poderia ainda melhorar, no meio da viagem, alcançamos um encontro de mulheres – Oba!!! Foi ali que me senti ainda mais conectada com aquele local. Ao fim do dia, depois de muita discussão – talvez influenciada pelos os encontros vividos junto à CPT em uma temporada no norte do país, senti falta da ‘cultural’ – aquele momento para descontração e uma boa conversa! Então, sendo um encontro de mulheres, mas com a presença de homens, propus às garotas uma noite feminina, de conversas, sorrisos e, quem sabe, uma dança. Fomos nos banhar, jantar e, claro, nos juntamos para nosso momento. Ali conheci grandes mulheres, as que tímidas parececiam durante o dia, pela noite se mostraram brincalhonas e também artistas! Descobri repentista, poeta, humorista e contadora de histórias! Tem alegria maior? Ainda teve mais! Entre contos, memórias, brincadeiras e sorrisos... txanran! Surgem os encantados! Quem nunca ouviu falar nas histórias sobre boto? Ou 227 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV outros seres da floresta que encantam os moradores e os que ali visitam? Se “quem conta um conto aumenta um ponto”, aqui, divido com vocês algumas reticências daquela noite no Juruá. Foi Dona Maria quem começou! Ouvidos a postos, todas atentas, enquanto Dona Maria contava­nos a história de seu irmão e de como seu comportamento começou a mudar, dias antes do ocorrido. Contou­nos que seu irmão passou a ficar mais quieto, mais calado, introvertido, só queria ficar só. Mas também parecia ter um certo “chamego” a mais com água. Tá, tudo bem, pescador, ribeirinho, o irmão de Dona Maria gostava de água – sim, claro! Mas era uma atenção especial. Sempre que estava sozinho, ele ia pra pertinho do rio e ali ficava, deslumbrado (ou encantado?). Alguns dias depois, estavam todos numa festa, Dona Maria, seu irmão, a namorada do seu irmão e um grande amigo do irmão também. Começaram então a estranhar o comportamento dele durante a festa. Estava aéreo, se afastando sempre que podia. E foi quando lá pras tantas da noite, ele, que a pedidos da namorada ia comprar um chiclete, saiu correndo, correndo no trapiche, em direção a água! Correu tão rápido que não puderam alcançá­lo. Ao perceber seu sumiço, todos começaram a procurá­lo... uma, duas, três, quatro, cinco da manhã e nada! O sol que já nascia, passou a iluminar a beira da praia. Foi então quando encontraram alguns de seus pertences. Na beira do rio estavam seus sapatos e suas roupas, mas nenhum sinal do irmão de Dona Maria. Por dias a busca continuou, mas já sem muita esperança. Até que, certo dia, o grande amigo do irmão de Dona Maria passando no rio, encontra um boto em frente a sua voadeira. Esse boto parecia querer conversa, chegou mais pertinho, até que o amigo pôde ver que o boto usava o terço do irmão de Dona Maria! Será que era ele?! O irmão de Dona Maria havia se transformado em boto e vestia seu terço! E agora?! Por dias a visita do boto ao amigo acontecia e, como sabido, deveria ele espetar o boto para desfazer o feitiço. Porém, até hoje, o amigo não conseguiu alcançá­ lo. Segue tentando e, enquanto isso, fica assim sua história ... com 228 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV as lembranças do amigo, irmão, namorado, que virou boto e hoje vive encantado nas águas brancas do Juruá. Compartilhando com vocês esse pedacinho mágico de meu período na Amazônia, espero instigá­los a se aventurarem nesta floresta e, assim, descobrirem por vocês muito mais. 229 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV As plantas da minha infância: um exercício de auto etnografia Paula Chamy O texto a seguir é parte de uma reflexão proposta pelo mestre José Geraldo W. Marques em um curso de Etnoecologia ministrado na Universidade Estadual de Campinas. Exercitar a memória e rastrear os caminhos que poderiam desvendar as plantas que fizeram parte da minha infância pareceu, em um primeiro momento, uma tarefa relativamente fácil porque me imaginei listando algumas plantas que, por algum motivo, tiveram destaque nas minhas remotas lembranças de criança. Não foi. Mas o mestre já sabia disso. A autoetnografia leva o pesquisador a ter compreensões de sua pesquisa a partir da própria experiência pessoal. Foge da impessoalidade tão almejada pelas “ciências mesmo” e brinda a subjetividade com conexões emocionais, espirituais, intelectuais, corporais e morais que são expostas no trabalho de quem a utiliza. Fácil entender por que o teórico da Etnoecologia Abrangente propôs tal exercício. Minha ideia aqui é convidar o leitor a fazer esse exercício. Sem dúvida vai encontrar diamantes brutos em suas memórias e entenderá que as bases conexivas estão presentes em sua trajetória, nos demais indivíduos, no coletivo. Minha primeira dificuldade ao tentar fazer o exercício proposto pelo professor José Geraldo foi delimitar o período da infância. Sei que não existe tal necessidade, mas as lembranças que me acompanham quando penso neste tema está vinculada a existência dos meus dois avôs que influenciaram a maneira como me relaciono com os elementos do mundo natural e sobrenatural. Os anos mais remotos que consigo recuperar na memória já vêm acompanhados de plantas e animais. Minha mãe sempre gostou de plantas e por nossa casa em São Paulo se espalhavam vários xaxins com samambaias de diversos tipos, vasos de avenca 230 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV e begônias; vasinhos com violetas de diferentes cores enfeitavam várias partes da casa e muito, muito gerânio nas jardineiras do quintal (dizem que gerânio é planta de mãe ciumenta porque afasta marido/mulher dos filhos). No chão do portão frontal da casa, entre as grades do portão de ferro havia espadas­de­São­Jorge entremeadas por uma espessa fileira de coroa­de­Cristo, que com suas pequenas florzinhas vermelhas enterneciam os inúmeros espinhos pontiagudos que derramavam leite quando cortados. Como se não bastasse, nos dias de feira livre a casa ficava bem florida porque minha mãe trazia vários maços para colocar nos vasos da sala. Eram principalmente rosas chá ou amarelas, palmas (que por algum motivo não me agradavam muito), margaridas e cravos (na época, meus preferidos). Mas na cidade estes elementos do mundo vegetal, embora imprimam marcas na minha memória, atuam muito mais como seres inanimados do que como coadjuvantes da minha trajetória. Então, para destacar a importância do reino vegetal na minha existência, cabe uma rápida explicação das minhas origens mais próximas. Minha mãe nasceu no final da década de 30 em uma cidadezinha situada no oeste do Estado de São Paulo, onde meu avô possuía uma fazenda de café bastante produtiva em sociedade com seu irmão mais velho e solteiro. O oeste paulista, na década de 30 é apontado como a região mais próspera da cultura cafeeira, suplantado em importância apenas pelo Vale do Paraíba no século XIX. Além disso, minha avó era natural de Bananal, uma cidade que prosperou, enriqueceu e teve até mesmo uma cédula monetária própria devido ao desenvolvimento do cultivo de café na região. No início da década de 70, apesar de meus pais morarem na cidade de São Paulo, os vínculos com o interior mantinham­se fortes porque passávamos os meses de julho, dezembro, janeiro e fevereiro (os meses de férias escolares) na cidade natal de minha mãe, em companhia dos avós maternos, do tio­avô e dos primos que também iam para o campo. 231 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV Na cidadezinha do interior, meus avós possuíam uma casa térrea com um grande quintal de terra, que para uma criança de cinco anos mais parecia uma floresta repleta de mistérios. A casa está localizada na praça da cidade, atrás da igreja matriz, e mesmo hoje, já reformada e reduzida por uma divisão testamentária, ainda testemunha a história da família. Meus avós tinham ao todo sete netos que perambulando, com toda a energia proporcionada pela liberdade por eles concedida, preenchiam todos os cantos da casa. Mas as manhãs mágicas eram aquelas em que acompanhávamos, na carreta acoplada ao trator Ford verde, as idas do avô e do tio­avô à fazenda. São estes o espaço e o tempo que guardam minhas mais remotas lembranças de convívio mais íntimo com plantas e animais e que transitam entre a casa e a fazenda dos meus avós. O quintal na casa da praça da Matriz O quintal da casa da praça era composto de uma parte de cimento que terminava em um pequeno muro com portão que dava acesso a uma grande porção de terra (e que ainda existe). No quintal de terra tinha pé de tudo o que é tipo: mamão do tipo caipira; limão galego; limão cravo; romã; banana; goiaba; fruta­do­ conde (a minha preferida); manga Bourbon; manga Aden; jabuticaba; abacate; pé de bucha (daquelas para tomar banho), além de uma horta onde me lembro mais da mandioca, da couve e do sem graça do chuchu. Também existiu por um tempo uma parreira de uva rosada que cobria grande parte do quintal e um pé de maracujá que encantava nossos olhos quando estava florido. No meio do quintal existia um galinheiro e mais ao fundo uma “casinha” com uma privada de concreto, que foi destruída após sermos atacados pelos marimbondos que se instalaram no fundo da latrina. Toda noite, antes de dormir minha avó fazia chá de hortelã ou de erva­cidreira, cujas folhas eram colhidas no quintal. A hortelã também era colocada no pepino com coalhada, iguaria preparada muitas vezes na semana. Quando a irmã da vovó passava temporadas conosco, a vedete das noites, quentes ou frias, 232 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV era o inhame comprado na horta comunitária da igreja e que virava sopa para comer com pão caseiro. De vez em quando meu tio­avô, sob os protestos da minha avó que achava que o quintal ficava sujo, plantava milho entre as árvores frutíferas do quintal. Perto do muro que separava a terra do cimento havia algumas plantas ornamentais como as roseiras (que pereceram simultaneamente com minha avó), dálias (as preferidas de meu tio­avô), palma­de­santa­Rita rosada e uma planta rasteira que chamávamos de onze horas porque abria exatamente quando o relógio da igreja dava onze badaladas. Nos vasos que ficavam na varanda frontal da casa recordo da existência de antúrios brancos onde, vez por outra, achávamos um louva­a­deus que pacientemente ouvia nossos apelos para juntar as patinhas e rezar. Joaninhas eram abundantes no quintal. As plantas nas brincadeiras Após os jantares íamos para a praça onde brincávamos de estátua, balança caixão, esconde­esconde, queimada, entre outras tantas brincadeiras de criança praticadas ao ar livre. Os jardins da praça eram divididos por caminhos de pedra dispostos em quadrados brancos e pretos e continham, ao lado dos bancos de cimento, arbustos de alecrim que serviam de esconderijo. Nos jardins da praça ainda existiam roseiras, caramanchões de dama­ da­noite sob os quais haviam os bancos ocupados por casais de namorados aos domingos, hibisco (que, para o horror dos adultos, chamávamos de peido­de­veia) e Maria­sem­vergonha. Para as quatro netas, acredito que o milho do quintal tenha tido um significado especial. Quando íamos para o interior levávamos nossas bonecas adquiridas nas lojas de São Paulo. Mas tão logo chegávamos, as coitadas logo eram abandonadas sobre as camas, quando então, corríamos para o quintal para encontrar a espiga com mais cabelo para ser transformada na boneca que nos acompanharia pelo período de férias. Tinha boneca de milho de cabelo preto, vermelho, amarelo. No corpo da espiga fazíamos olhinhos, boca, nariz e colocávamos enfeites na roupa de folha. Em todas as temporadas, um dia especial era selecionado para 233 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV fazermos um concurso de bonecas onde a presença das espigas era obrigatória. Em noites de vento o milharam parecia uma festa de seres do além. Na fazenda dos dois irmãos Na estrada de terra para a fazenda existia uma grande paineira que bifurcava o caminho. Anos depois, o asfalto a levou, o que sem dúvida deixou a estrada desencantada. Mas do caminho, além da árvore, recordo do que pareciam horas intermináveis para percorrer o quilômetro e meio que nos distanciava do sítio. Não sei como falar da Fazenda Campos Salles sem dizer um pouco sobre os irmãos proprietários que vieram do Líbano para se instalar na pequena cidadezinha de ruas de terra e poucos habitantes. Meu tio­avô era um homem de feições mais duras, barrigudinho, sempre de paletó e calça caqui, chapéu Panamá e camisa de manga longa, por mais calor que fizesse. Andava pelos corredores da plantação de café e na praça da mesma forma: lentamente, com passos determinados, mãos para trás e semblante sério. De vez em quando, com sotaque característico bronqueava com minha mãe quando me via beijando gatos e cachorros que teimava em levar para casa. Quando na cidade, passava a maior parte do tempo no salão que existia na parte da frente da casa e que servia de escritório para guardar e negociar as sacas de café. Meu tio sentava na escrivaninha, lia revistas agrícolas (Chácaras e quintais, por exemplo) e recebia inúmeros amigos e conhecidos que gastavam horas de seu tempo conversando no salão, sentados nas cadeiras de madeira ou sobre as sacas em companhia de garrafas de café fresco. Com mais de um metro e noventa de altura, mais romântico e sonhador, meu avô era meigo, sem desafetos. Aos finais das tardes sentava na varanda que dava para o quintal para observar as aves que retornavam para seus ninhos e as saúvas que impecavelmente enfileiradas carregavam galhos e folhas para suas colônias. Ele não as matava. Ficava horas observando aquele contraste entre um céu alvoroçado e um disciplinado exército em 234 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV terra. Não precisava dizer nada para que a maioria de seus netos não pisasse em tão distintos seres propositalmente. A exceção era um primo alérgico à formiga que repleto de espírito de vingança torturava as pobres saúvas queimando seus corpinhos com a utilização de lentes de aumento sob o sol, ou arrancando­lhes a cabeça para delas fazer broches pendurados pelos ferrões. Apaixonado por criação, meu avô chamava suas poucas vacas pelo nome dado de modo bastante original por minha avó: Maravilha, Lindóia, Laranjeira, Rebeca, Lindoinha, Trincheira, Cigana... Os cavalos Tamoio e Pioneiro eram amigos de todas as horas. Os porcos eram caipiras, geralmente de duas cores e de vez em quando meu avô soltava os filhotes no terreiro de secagem de grãos para que tentássemos apanhá­los. Também tinha peru, galinha, galo, milho, laranja, mexerica, abacate, jabuticaba, mais goiaba, da branca e da vermelha, mas a planta que marcou profundamente este tempo de tão mágicas relações foi, sem dúvida, o café. Diferentemente dos latifúndios monocultores impulsionados por mão­de­obra escrava do Vale do Paraíba, o cafezal da Campos Salles (que não era nenhum latifúndio) nasceu cultivado por colonos que residiam em pequenas casas distribuídas pelos arredores da casa principal. Lembro bem do orgulho que meus “dois avôs” tinham da plantação. Era um tempo em que agricultores não faziam empréstimos no banco e conseguiam manter suas finanças em dia. A existência de fotografias do meu avô e tio­avô na plantação de café confirma minhas lembranças. Já que o tamanho das plantas ultrapassavam a altura de um e herdava a robustez do outro, a mim parece impossível separá­los. O café era presença constante em nossas vidas nesse tempo. Saía ensacado em sacos de aniagem e algumas sacas eram depositadas no salão da casa da praça para aguardar a comercialização. Havia latas de grãos torrados para serem moídos e trazíamos o pó para São Paulo. Acredito que tenha nascido daí meu vício pela bebida, pela planta, pelos grãos, pelo cheiro... Em meados dos anos 70 meus “dois avôs” já idosos estavam cansados e resolveram vender a fazenda. A notícia recebida em 235 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV São Paulo fez a família toda chorar e tentar reverter o negócio, mas tudo já estava concretizado. O cafezal deu lugar à cana­de­açúcar e os dois irmãos desapareceram quase ao mesmo tempo. Foram apenas oito ou nove anos de convivência, um período curto, mas que sem dúvida imprimiram suas marcas e deixaram imagens de um espaço encantado e uma criança feliz. 236 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV Chá pra curá o “figo” Rafael Sá Leitão Barboza Reserva Extrativista (RESEX) Riozinho do Anfrísio, situado no rio (ou talvez igarapé) Riozinho do Anfrísio, afluente do rio Iriri que desemboca no rio Xingu, Terra do Meio, Altamira, Pará. Dia 25 de julho de 2015 às 11 horas, acontecia a 12ª Reunião do Conselho Deliberativo da RESEX na comunidade Morro do Anfrísio. Como a comunidade é extremamente distante de Altamira, cerca de quatro dias de deslocamento de voadeira (lancha de alumínio com motor de popa 90 HP, no mínimo) para subir e mais quatro dias descendo, parte dos conselheiros optou por ir de avião monomotor, que dura uma hora e meia. O custo benefício acabava valendo a pena, pois eram oito dias de deslocamento mais o pagamento do piloto, muitas vezes da embarcação, proeiro, cozinheira, alimentação e gasolina, quando o piloto não batia o pé do motor numa pedra e o quebrava, atrasando a viagem e gerando pelo menos oito mil “conto” de despesa. A distância, a agenda intensa de atividades na região e a forma de execução da reunião dificultava a frequência de reuniões. Dessa forma as reuniões duravam cerca de três dias ininterruptos, respeitando­se o tempo e as limitações dos ribeirinhos com uma forma diferenciada e até “carinhosa” de conduzir a reunião. Muitos ainda seringueiros, descendentes dos soldados da borracha, protagonistas que marcaram a época de ocupação da região. Alguns iam uma vez ao ano para a sede do município de Altamira e outros, eram como o seu Reginho da Boa Saúde, que conheceu Altamira apenas após seus quarenta anos de idade. Dado início à reunião, eu já não estava me sentindo bem, inicialmente com uma leve ânsia de vômito e sem apetite, não consegui almoçar e no período da tarde do primeiro dia, pedi para que me substituíssem como presidente do conselho. No segundo dia, percebi que a região do fígado estava um pouco inchada e 237 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV dolorida, já era uma suspeita da origem do problema. Ao final do terceiro dia, eu não conseguia comer praticamente nada, estava à base de caldo de peixe, por ser leve e ter o mínimo de gordura. Normalmente era tucunaré ou curimba fresquinhos dali mesmo do Riozinho, sempre acompanhados de um limãozinho, para ajudar na digestão. Aprendi desde pequeno que era excelente pingar na comida, principalmente quando estava mal do fígado. Mesmo diante da enfermidade, não estava tão preocupado, pois a Chicona, moradora daquela “colocação”, sempre prestativa, me fez um chazinho de jambu e disse que era bom para o “fígo”. Tomei sem nem pestanejar, pois já era consumidor fiel de fitoterápicos, inclusive da cachaça de jambu (“treme, treme, treme”). A reunião acabou, aquela belezura... uns contentes, outros choramingando, outros criticando a quantidade de comida e outros que apareciam só para almoçar. E assim, todos voltaram para suas casas, parte desceu na voadeira, outros no monomotor, alguns nas rabetas descendo o riozinho do Anfrísio e outros subindo, pois na seca, só dá para passar de rabeta acima do Morro do Anfrísio, as voadeiras não conseguem subir devido aos trechos estreitos e rasos. E, nessas subidas, eu aproveitava as rabetas para dar uma volta na RESEX, visitar alguns moradores, compartilhar discussões e encaminhamentos das reuniões, ouvi­los e conhecer de perto cada vez mais o modo de vida dos extrativistas. Mas, antes de subir, chega Chicona com umas cascas de laranjas secas perguntando como eu estava, para fazer mais chá para mim. Sabe aquelas cascas de laranja, descascadas por inteiro que ficam penduradas nas madeiras da parte de dentro do telhado, por alguns anos, cheias de poeira...? Pois é... pedi para Chicona para, pelo menos, tirar as teias de aranha... Ela disse que aquelas casacas também eram um ótimo remédio para o “figo”. Subi o rio com uma garrafinha de chá de casca de laranja e jambu. Nem bebia água, só chá. A subida foi um pouco sofrida porque as rabetas não tem cobertura e andam mais devagar, então é sol o dia inteiro sem ventilação... e tome chá. O chá sempre estava quentinho, naquela 238 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV garrafa PET debaixo do sol sobre o assoalho da rabeta. Meu grande parceiro de viagem Miguel, estava em outra missão, então fui com outro parceiro, o Tody, que, apesar de calado, já era um moleque experiente na rabeta e nas curvas do Riozinho do Anfrísio. Primeira parada. “Colocação” Novo Paraíso, na casa do Seu Belmiro. Pense num homem brabo, ao mesmo tempo acolhedor e trabalhador, não tira o bigode para nada. Na casa de seu Belmiro, eu estava começando a me preocupar com o que tinha, pois, minha urina já estava ficando escura, quase da cor de guaraná. Após muita prosa, ele já veio me perguntando o que eu tinha e já foi me dando seu último frasco de Gotas do Zeca. Um medicamento popular super conhecido na região que promete, de acordo com seu rótulo, ser a solução para todas as “moléstias do intestino, estômago, fígado” e outras. Agora era chá de jambu com casca de laranja seca, suja de poeira e teia de aranha, com Gotas do Zeca, e continuava no caldinho de peixe com limão. Assim que avistava um limoeiro no terreiro, já ia para debaixo do “pé” para coletar os limões e já os levava no bolso. A segunda, terceira e outras tantas paradas ocorreram de forma mais rápida na casa de outros moradores. Os deslocamentos eram verdadeiros testes de sobrevivência, a viagem estava cada vez mais cansativa, não pela rabeta, mas pelo meu estado debaixo de um sol escaldante da Amazônia em pleno verão e tendo que parar de casa em casa para conversar. Apesar da RESEX ser imensa, com quase setecentos e quarenta mil hectares, poucas famílias vivem lá, cerca de setenta famílias. Muitos colegas brincavam que dava até para saber o nome dos cachorros. Nona parada. “Colocação” Conceição, na casa do Manelão. Não havia um dia sequer, quando passava por lá, que o dominó não “corresse solto”. Dessa vez eu estava tão fraco que nem tive vontade de jogar nem de comer pequi (pense num pequi bom o de lá). Do jeito que eu estava, o pequi seria um veneno. Era sagrado, pequi com farinha do Manelão. Aliás, cada morador que fazia sua farinha sempre ostentava que era a melhor da região, mas bom mesmo, era quando ainda estava quentinha sendo preparada no 239 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV “forno”, independente do “fazedor”. Manelão entrou e saiu rapidinho ali do mato e já trouxe umas cascas dizendo que seria bom para o “figo” e logo pediu para Marieta preparar um pouco de chá. Era casca de ipê roxo. Dessa vez o caldo engrossou: chá de jambu com casca de laranja seca, suja de poeira e teia de aranha, com Gotas do Zeca e chá de casca de ipê roxo... e ainda continuava no caldo de peixe com limão. Segui viagem rio acima com meu parceiro Tody até metade do percurso da RESEX, na próxima parada conhecida como Boa Saúde, na casa do seu Reginho. Homem pequenino, com um remendo nos óculos, e de um enorme coração e profundo conhecimento da mata. Impressionante a bagagem de seu Reginho sobre diversos detalhes daquele ambiente tão complexo. Ele é muito respeitado na região pela sua fama e experiência como rezador, benzedor e conhecedor da “etnofarmacologia da floresta” aplicada na medicina popular. Quando cheguei, foi aquela festa que sempre faz, aquele abraço apertado e nem precisou dizer que estava enfermo que ele já foi dizendo que eu precisava de ajuda. Mas também, naquele estado deplorável, qualquer um poderia identificar que eu estava mal. Disse que ia dar um jeito para que eu ficasse bom e que se o Reginho da Boa Saúde não resolvesse, ninguém mais resolveria, batendo forte no peito como sempre fazia. Ele fez uma reza comigo e trouxe mais um pouco de cascas de ipê roxo, depois preparou uma garrafa, daquelas “pitchulinha” ou “coróte”, com uma solução alaranjada e alcoólica contendo cascas de mururé, dizendo que eu só podia tomar uma tampinha uma vez ao dia durante o jejum. Alertou que o remédio era muito forte e que se tomasse mais que isso, poderia causar impotência sexual. Foi o momento que mais prestei atenção, para não errar na dose. Uma justificativa forte para não esquecer. Quando estamos doentes, numa situação como eu estava, apelamos para tudo, vai na fé. Mas... e agora? Nem água eu bebia, era só: chá de jambu com casca de laranja seca, suja de poeira e teia de aranha, com Gotas do Zeca e chá de casca de ipê roxo, mais ipê roxo e dessa vez mururé.... ainda no caldo de peixe e limão, sempre no bolso, colhido a cada parada. 240 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV Após três dias de deslocamento até a última “colocação”, Piranheira, na casa de Zezão, quando pensa que não... meu apetite começou a retornar aos poucos, fui percebendo mudança na coloração da minha urina para um tom menos escuro e senti menos inchaço na região do fígado.... e tome chá ainda. Dessa vez o chá de jambu havia acabado... não sabia se agradecia ou lamentava... só sobrou a casca da laranja seca suja de poeira e teia de aranha, com Gotas do Zeca, casca de ipê roxo e mururé, agora com comidas mais diversas e, um limãozinho. Como a esposa de Zezão era microscopista e técnica de enfermagem, me alertou para fazer exame de sangue assim que retornasse para Altamira. Retornamos para o Morro do Anfrísio, me despedi do Tody e trabalhei durante mais uns dois dias, graças à internet provida para a escola. Já me sentia muito melhor, com o apetite retomado, sem dores no fígado e com a urina quase na coloração normal. Quando pensa que não... vem Chicona com mais chá de jambu e um monte de cascas secas de laranja, dessa vez bem lavadinhas.... eu já estava até sentindo o gosto de água novamente, sem folha alguma, eu já estava só no mururé, mas aí vem Chicona com mais chá para mim... tive que entrar nesses outros, mais uma vez. Retornei para Altamira e assim que pude, fui logo fazer exame de sangue... adivinha?! Dengue e hepatite A. Incrível!! A dengue provavelmente me pegou na cidade antes de chegar na RESEX, mas a hepatite, desconfio ter adquirido lá na RESEX. Lembrei bem dos potes de água, que dificilmente são lavados, das canecas compartilhadas e do caneco principal usado apenas para tirar água do pote, aquele que faz “tuuummm”, quando bate na água. Esse mesmo caneco, é usado por muitas mãos que às vezes até chega a encostar naquela aguinha fria do fundo do pote e alguns, até bebem direto na boca. Se foi dessa forma ou de outra, não importa... só me restou uma dúvida: e se estivesse na cidade, será que eu estaria curado? Em tão pouco tempo? Do diagnóstico ao tratamento... seria um aposento! Cada vez mais me surpreendo com a etnobiologia em nossas vidas, desde a infância, quando aprendemos receitas de família da medicina popular, à vida profissional... Em menos de 241 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV sete dias reuni dengue, hepatite A, Chicona, seu Belmiro, Marieta, seu Reginho e muito conhecimento ecológico tradicional... Quando pensa que não... estava curado! Por essa e mais outras... A RESEX Riozinho do Anfrísio, junto com toda vizinhança, é um lugar o qual possuo um eterno carinho por ter trabalhado durante três longos anos, por ter vivenciado grandes aprendizados e ter conhecido pessoas incríveis que (não só por isso) me fizeram tomar chá de jambu com casca de laranja seca, suja de poeira e teia de aranha, com Gotas do Zeca e chá de casca de ipê roxo, com mururé. E o limão, onde fica? Não sei, só sei que é bom pro figo e foi assim que aprendi. 34 Este texto foi escrito a pedido de Shirley Djukurnã Krenak, e contou com sua orientação espiritual, revisão e autorização para publicação. 242 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV Jonminhot Marét Ererré Reinaldo Duque­Brasil Shirley Djukurnã Krenak Quando me mudei para Governador Valadares em 2012, comecei a estudar sobre a história e a cultura dos povos originários do Rio Doce, que não era apenas um rio, mas uma entidade parental denominada Watu na língua Krenak. E foi lendo o livro Conne Pandã Rithioc Krenak, escrito por professores Krenak, que ouvi falar pela primeira vez do Jonminhot (Jonkión): “JONKIÓN sumiu, foi roubado. A gente não sabe onde está, faz muito tempo, roubaram o nosso Deus! Por ele, nós tínhamos uma religião forte, o nosso canto e tradição. Ele nos protegia através dos MARÉT bons. Aos poucos, nós vamos sobrevivendo e resistindo ao sofrimento, porque nós temos um sangue forte. Estamos com ele na mente, na cabeça. Sei que ele não está aqui no meio do nosso povo, mas está longe, olhando por nós todos.” Já vivendo no Rio Doce, tive a felicidade de conhecer os Krenak participando de eventos, sempre admirando sua força na defesa de seus direitos. Nossa aproximação inicial ocorreu com a intenção de implantar o Programa Encontro de Saberes no campus Governador Valadares da UFJF. A ideia era criar espaços de diálogo intercultural e formação transdisciplinar em saberes tradicionais com a realização de cursos ministrados por mestras e mestres indígenas, quilombolas e camponeses. Assim, construímos uma relação de parceria em projetos de extensão e educação intercultural do Núcleo de Agroecologia de Governador Valadares (NAGÔ). Após um bom tempo de articulação e planejamento, organizamos o primeiro curso de “História e cultura do povo Krenak” em maio de 2017, coordenado por Shirley Djukurnã Krenak e seus irmãos Douglas e Geovani. Faltando uma semana para o curso, Shirley sugeriu que fizéssemos uma camisa para a 243 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV ocasião e me enviou uma imagem de Jonminhot com a legenda: “Jonminhot – entidade sobrenatural do povo Krenak roubada na década de 1930”. Desde então a única camisa feita pelo NAGÔ carrega o Jonminhot no peito, e com ele a inspiração na força dos Borum. Logo na primeira aula, Shirley projetou a imagem do Jonminhot e mostrou um vídeo marcante de seu pai Waldemar Ytchotchó Krenak falando sobre sua importância para o povo Krenak: “Se você não tiver a ligação com o Grande Espírito, o Grande Mestre que construiu toda essa natureza maravilhosa pra nós, você não consegue resistir, você se curva. Nosso povo Krenak costuma ensinar o seguinte: quando você se curva, você se entrega ao mal, você acaba morrendo. E a pior coisa que tem é você morrer triste. Então esse bastão de religião, que hoje nós falamos Jonminhot na nossa língua, ele foi o bastão que chegou pra dar alegria pro povo. Pro povo realmente não se curvar, não se entregar, porque tinha que viver. E nesse momento fazia alegria, fazia dança, cantava e o Jonminhot ia junto. Esse bastão de religião ia junto com as lideranças pra tirar aquele parente que tava querendo se curvar, se entregar à morte, para ele viver, que ele precisaria de força para viver.” Desde que ouvi essas palavras, quando estou esmorecido, passando por alguma dificuldade e ameaçando me curvar, lembro os ensinamentos do mestre Ytchotchó sobre a conexão com o Grande Espírito e penso no Jonminhot para seguir firme na luta com a força dos Marét. E assim, após o curso, nossa relação de amizade e parceria se estreitou ainda mais. Em 2018, viajamos a Belém do Pará para participar do XVI Congresso Internacional de Etnobiologia e XII Simpósio Brasileiro de Etnobiologia e Etnoecologia. Chegamos no dia 5 de agosto e no dia seguinte fomos conhecer Jonminhot a convite da Shirley. Há pouco tempo, o bastão de religião Krenak havia sido localizado no acervo do etnólogo Curt Nimuendajú no Museu Paraense Emílio Goeldi. Os descendentes do Velho Krenak, quem esculpiu Jonminhot, já haviam rastreado e reencontrado o bastão de religião 244 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV e agora sonham com seu retorno. Fiquei muito emocionado e profundamente grato pelo convite para participar deste encontro com uma entidade sagrada que também já fazia parte da minha cosmovisão. Pensei em quantos Krenak nasceram e já se foram para o mundo dos Marét sem conhecer pessoalmente Jonminhot. Senti uma força indescritível e uma grande responsabilidade a partir desta atitude de confiança, que exigiu o máximo respeito, sinceridade e compromisso espiritual com o povo Borum. Ao mesmo tempo, sentia uma alegria imensurável por compartilhar este momento em família, com minha amada companheira, Maíra, que gestava em seu ventre nosso primeiro filho, Téo. Então, Shirley se tornou nossa comadre, madrinha do Téo, cantando e rezando pra ele ainda na barriga. Na aldeia Atoran dizem que ele é presente dos Marét, que germinou a partir das sementes de abóbora e melancia que colhemos com Shirley na roça do Douglas. Mas isso é outra história... Voltando à expectativa do encontro com Jonminhot, nos preparamos no dia anterior seguindo as orientações da comadre Shirley e na segunda­feira, dia 6 de agosto, em jejum, fomos ao museu. Chegando lá, fomos recebidos de maneira respeitosa pela curadora, que nos fez aguardar alguns minutos enquanto a responsável buscava e preparava Jonminhot no laboratório para o encontro, uma vez que ele não ficava exposto, mas guardado no acervo do setor de pesquisa etnológica do museu. Djukurnã irradiava alegria, e um pouco de ansiedade, enquanto aguardava o reencontro. Para o museu, Jonminhot é um patrimônio cultural material a ser preservado, porém é tratado apenas como uma peça guardada em acervo para fins de pesquisa, que não pode ser manuseada e exposta. Por outro lado, para Shirley e seus parentes, Jonminhot é um ente querido, é parte de sua identidade e espiritualidade, é um ancião, um ancestral, uma conexão com a memória dos antepassados. Ele não é uma peça de museu e não deveria estar guardado. Jonminhot está vivo, assim como a cultura Krenak, e deveria estar levando alegria ao seu povo, lembrando sempre que não podemos nos curvar. Enquanto esperávamos, Shirley dizia: “Jonminhot precisa tomar sol! Quando ele toma sol, 245 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV todo o meu povo recebe essa força. E nós estamos precisando muito...”. Finalmente a curadora nos chamou para entrar no laboratório onde Jonminhot estava preparado. Seguimos os passos da comadre Djukurnã, que foi caminhando e cantando forte pelo corredor. Meu coração bateu mais forte, arrepiei da cabeça aos pés, e quando entramos no laboratório lá estava ele, deitado, acondicionado em uma caixa de isopor sobre uma fria bancada de granito. Eu e Maíra ficamos apenas observando, com a emoção à flor da pele, com muito respeito e gratidão. Vimos quando Shirley se aproximou e tocou o rosto de Jonminhot, acariciando­o. Enquanto a funcionária do museu usava jaleco e luvas, Djukurnã abraçava Jonminhot carinhosamente. A comadre conversava com ele na língua Krenak, e entre algumas palavras em português, ouvi­la dizendo: “Estou aqui, vou cantar pra você, vou te levar pra tomar sol”. Shirley pegou Jonminhot no colo com o amor e a ternura que uma neta abraça seu avô, como uma verdadeira Djukurnã e seu Makiãm. Neste momento, não contive as lágrimas e chorei de emoção. “Vem Jonminhot, vamos tomar sol”. Shirley, então, o carregou no colo para fora do laboratório, atravessou o corredor rumo à área externa. Quando saímos do prédio, pisamos na grama e a luz do sol banhou Jonminhot, vi nitidamente a alegria expressa em seu rosto, em seu olhar. Não há dúvidas que ele está vivo! Shirley colocou Jonminhot de pé, com seu metro e meio de altura, embaixo de uma árvore. Acendeu seu cachimbo, conversou com ele, rezou e cantou. Cantamos e dançamos com Jonminhot em um momento de muita força e luz. Findo o ritual, era hora de levá­lo de volta ao laboratório, onde foi guardado e retornou para o acervo do museu. A despedida também foi emocionante, pois apesar da tristeza de partir e ver Jonminhot voltar para a caixa, prevaleceu a alegria pelo reencontro e o sentimento de esperança pelo seu regresso. Após compartilhar esta experiência com minha companheira, meu filho e minha comadre, posso dizer que Jonminhot e os Marét fazem parte da minha vida, dos meus 246 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV pensamentos e do meu coração. O compromisso acadêmico e pessoal com o povo Krenak se tornou um compromisso fraterno e espiritual. Téo conheceu Jonminhot antes mesmo de nascer, e em seu primeiro ano de vida dormiu várias vezes ouvindo papai cantar a música que aprendemos naquele dia em Belém: BORUM MINHÃM RAT PANDÃ / BORUM GUIAK KUÉ ÕM BORUM NON GRI GUIAK / JONMINHOT MARÉT ERERRÉ Esperamos que Jonminhot volte para o seu povo, com a força de Guiak e dos Marét. Ererré! 247 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV Panos coloridos lançados ao sabor das ondas e sopros do mar! Roberta Sá Leitão Barboza Foi duro acordar cedo após algumas horas cansativas de estrada e poucas horas de sono, todavia os momentos vivenciados foram singulares, e os narro aqui em formato de causo, a você, caro leitor. Espero que desfrute essa leitura com muito prazer! No primeiro contato com aquele ambiente, percebi de imediato olhares atentos e curiosos dos jovens reunidos. Nos deslocamos até a praia, lá, o sol escaldante, típico de um verão no litoral nordestino, esquentava nossos corpos, ao passo que o vento se encarregava de nos refrescar. Sim, querido leitor! Antes que você me pergunte, já adianto a você que esse mesmo vento levaria as jangadas ainda recolhidas na beira a desfilarem em alto mar. Enquanto isso, diferentes vozes ressoavam na praia, um certo “bafafá” acerca da largada da regata. Naquele momento, lancei um breve olhar em vários ângulos possíveis, mas não vi vela alguma, contudo, de súbito um movimento se iniciou com troncos de pau no chão trazendo uma jangada, então logo me direcionei a beira­ mar. Achei estranho, pois apenas essa jangada estava sendo rolada em direção ao mar. Puro engano! Quando me virei no sentido oposto ao mar, vislumbrei várias pessoas se aproximando em torno das outras jangadas ao mesmo tempo que muitas conversas se entrelaçavam no ar. E assim, várias jangadas foram sendo, pouco a pouco, trazidas para a água. Muitas informações simultaneamente, fiquei sem saber em que direção olhar, que imagens registrar. Se fotos ou filmagem, deveria arriscar. E de repente quase todas jangadas estavam alinhadas à beira­mar, no entanto ainda restava uma na areia. Um senhor visivelmente desapontado, bravejava gritando: “Bora começar, já são nove horas, por que esse diacho ainda não saiu?”. E após um pequeno 248 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV atraso, fogos ruidosos, “pei­pei­boom”, lançados ao ar anunciavam o início da regata à vela dos jangadeiros de Barra de Santo Antônio em Alagoas. Muita euforia e muito esforço, pois a tarefa de fazer a jangada navegar naquelas condições de vento extremamente forte, não era nada fácil. Tanto que as expressões dos pescadores demonstravam grande preocupação no mesmo momento em que desenrolavam as velas e ajeitavam a tal da bulina, palavra bastante pronunciada naquele momento: “Ô bicho burro, solta a bulina!”. Vários anciãos na beira discutiam entre si sobre uma jangada que retardara demasiadamente na largada. E foi desse jeito, escutando conversas atravessadas, rindo e me divertindo em observar de forma mais atenta estes acontecimentos que me interessei em relatar a você, leitor, esse causo e me deleitar nessa aventura etnográfica. Mas deixemos de “cunversê” e retornemos ao nosso acontecido. Enquanto alguns riam dos atrasados, outros os chamavam de besta, e outros solidariamente os ajudavam. Lembro­me bem de uma senhora que se lançou ao mar e empurrou a jangada com todas suas forças. Após alguns minutos de insistência e valentia, finalmente a jangada atrasada adentrava as ondas bravas daquele mar, começando a cumprir o trajeto da regata. Muitas palmas ecoaram, incentivando ainda mais os pescadores persistentes. Que lindeza foi ver o céu azulado e o mar esverdeado ­ por sinal uma das cores de mar mais lindas já vistas por mim ­ e cerca de 24 panos de vela coloridas, esticadas e sopradas pelo vento forte a bailarem na imensidão do Atlântico. Recordo dessa linda cena emocionada, com os olhos admirados por tamanha beleza e a alma encantada. Na beira do mar crianças também assistiam aquele espetáculo, e em seguida brincavam na areia, à medida que as jangadas se afastavam, desfilando suas proezas além­mar. Um senhor pescador me relatou com orgulho os 25 anos dessa tradição comemorada no dia de Nossa Senhora da Conceição. O “zum­ 249 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV zum­zum” das conversas se direcionavam a quem seriam os vencedores, enquanto estranhamente uma das jangadas retornava, se aproximando de nós. Seu proprietário, por pressa ou desatenção, havia esquecido uma ferramenta fundamental, o remo, e achara mais prudente retornar e abandonar a competição. Troféu não era seu problema, já havia conquistado 15 vezes a competição! Lembrei­me que precisaria retornar ao trabalho. Os jovens protagonistas me esperavam e fui deixando a praia, na mesma proporção que as jangadas foram cortando as águas do mar e o sopro do vento foi inflando suas velas, por vezes molhadas pelas mãos habilidosas de jangadeiros que há anos conduzem de forma meticulosa essas incríveis embarcações. Fui saindo em meio aos murmúrios, olhos ansiosos e pés lavados pelo mar à espreita dos vencedores da regata desse ano... 250 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV A aula de Celina Rumi Regina Kubo Terceira aula da disciplina Encontro de saberes35, primeiro de abril de 2019. Após chamadas e conversas iniciais, Celina ensaia o começo de sua aula. Lentamente ecoa uma canção... e assim começa sua aula. Sinto um silêncio no ar, entre os alunos, um misto de perplexidade e inquietação silenciosa. Com postura e voz de quem inicia um espetáculo, Celina começa a ler o texto preparado para a aula, comentando de onde ela estará ministrando sua aula: o seu lugar de fala ­ noção essencial. E coloca que é egressa da UFRGS, do departamento de Artes Dramáticas, que cursou na década de 1990. Foi a primeira aluna negra que iniciou e finalizou o curso. E primeira de muitas outras situações de presença negra feminina, no teatro. E fala dessas situações, não com o orgulho de sua conquista, mas com a melancolia de que se trata de uma "exceção que reforça a regra". A regra da exclusão, da desigualdade, da negação da existência do racismo. Daquela que "não está no lugar que lhe é destinado". Em seu texto­aula, vai citando autores negros, construindo um conjunto de referências negras que não estão nos currículos da universidade: Conceição Evaristo, Djamila Ribeiro, Nego Bispo, Abdias do Nascimento. Ao mesmo tempo, vai expondo os diferentes recortes das abordagens no campo de conhecimento das relações étnico­raciais: o debate sobre raça, etnia e território, relações étnico­raciais e políticas públicas, e revela­nos como está a constituir seu campo de pesquisa, seu "lugar de fala". Reflete sobre os modos de elaborar seu itinerário de pesquisa, a partir do contraste entre a branquitude e uma negritude, do sentido de comunidade, do coletivo, de estar junto. 35 Disciplina de graduação ART03946 ­ Encontro de saberes, oferecida semestralmente desde 2016, pelo departamento de Música da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, propõe a docência compartilhada entre professores da universidade e Mestres dos Saberes Tradicionais e Populares. 251 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV E repentinamente canta o samba enredo da Mangueira , numa voz límpida, vibrante e negra. E dou­me conta que não tinha reparado na sua profundidade e, sobretudo, que é um roteiro de história do Brasil. Mangueira, tira a poeira dos porões Ô, abre alas pros teus heróis de barracões Dos Brasis que se faz um país de Lecis, Jamelões São verde e rosa, as multidões Mangueira, tira a poeira dos porões Ô, abre alas pros teus heróis de barracões Dos Brasis que se faz um país de Lecis, Jamelões São verde e rosa, as multidões Brasil, meu nego Deixa eu te contar A história que a história não conta O avesso do mesmo lugar Na luta é que a gente se encontra Brasil, meu dengo A Mangueira chegou Com versos que o livro apagou Desde 1500 tem mais invasão do que descobrimento Tem sangue retinto pisado Atrás do herói emoldurado Mulheres, tamoios, mulatos Eu quero um país que não está no retrato Brasil, o teu nome é Dandara E a tua cara é de Cariri 36 Samba enredo do Carnaval de 2019 da escola de samba Mangueira, do Rio de Janeiro "História Pra Ninar Gente Grande", autoria do carnavalesco Leandro Vieira e composto por Tomaz Miranda Mama, Marcio Bola, Ronie Oliveira e Danilo Firmino. 252 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV Não veio do céu Nem das mãos de Isabel A liberdade é um dragão no mar de Aracati Salve os caboclos de julho Quem foi de aço nos anos de chumbo Brasil, chegou a vez De ouvir as Marias, Mahins, Marielles, Malês... E lembra que há ainda muito a se fazer e nesse contexto, convoca a todos os alunos, alunas e professores, professoras a pensar no papel da Universidade. Finaliza dizendo: "ainda não fizemos a lição de casa e, no entanto, estamos no século XXI". 253 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV Escrever para rememorar Rumi Regina Kubo Feira mais vinte37 . Foram 20 anos. Tempo de colher... o que foi colhido? O que plantamos. Constato a vida transcorrida na pressa, espremida por coisas a fazer, atendendo às pessoas que nos demandam posições, posturas, ações. Talvez escrever possa ser um bom refúgio para recordar e pensar sobre o que foi vivido. Recordar no sentido de reviver alguns momentos que figuram em nossas lembranças. Considerando também as novas gerações chegando. A possibilidade de ouvir os anseios dessa nova geração. Vejo que recordar se configura numa itinerância, entre acontecimentos que encadeiam sentimentos e reflexões, que evocam outros sentimentos e assim sucessivamente. E a partir disso, buscarmos novos horizontes. A esperança é um fato humano por excelência. É nesse contexto que, há algum tempo, percebo que os momentos me encantam, justamente por sua fugacidade. E isso faz­me recordar a principal reclamação de Roberto (guardião de sementes que esteve em nosso evento, Sbee mais 20): o descuido que tivemos com o registro. Neste sentido, acolhendo a reclamação de Roberto registro momentos. Registro um momento peculiar, que foi colhido em um momento de apagar das luzes. Havia ocorrido o encerramento do XI Simpósio de Etnobiologia e Etnobiologia, que ocorrera entre os dias 22 a 25 de novembro, nas dependências da Universidade Estadual de Feira de Santana, estando ainda prevista uma festa de encerramento à fantasia. Mas antes disso haveria a abertura do I Festival de Sementes Crioulas da Bahia, que era o outro evento 37 XI Simpósio Brasileiro de Etnobiologia e Etnoecologia, realizado entre os dias 22 a 26 de novembro de 2016, em Feira de Santana. 254 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV previsto dentro da programação geral. Este, por estar previsto em outro local, ou seja, o Instituto Federal Baiano, foi dispersando as pessoas. Poucos se propuseram a ir nesta abertura: Paula Chamy, Kátia Batista, Flávio Barros, Edna Chaves, Lin Chau Ming... Chegando ao evento, tudo estava ainda começando… As pessoas estavam chegando: o Rubens Nodari da UFSC, Terezinha Dias do Cenargen... Demorava para iniciar. Começava a anoitecer. Restaram apenas Kátia, Paula, Lin (que teria que falar na abertura) e eu. Os demais se foram por pretenderem ir à festa ou terem outros compromissos. Após ainda algum tempo de espera, começava o evento, com uma mística inicial que narrava a trajetória de um neto de imigrantes japoneses... o que me intrigou (sendo eu de origem japonesa)... gradativamente eram recitados traços de um curriculum vitae biográfico. Acompanhando a leitura, finalmente dei­me conta: era Kageyama. Sim, Paulo Kageyama! Grita a menina que lia este currículo profissional e de vida. E grita a plateia, em alto e bom tom: PRESENTE. Novamente repete a menina: Paulo Kageyama. PRESENTE! Repetimos. Assim mais uma vez se repete este grito­saudade­homenagem. Mas direcionando­nos a um outro mestre, voltemos à abertura do evento. São chamados, um por um, os integrantes da mesa de abertura. Entre estes: Lin, Terezinha, Nodari, Aurélio Carvalho, entre outros que não conhecia. Eram todas pessoas­ referência na luta pelas sementes crioulas. Nas falas de cada um dos componentes da mesa, eram expostas as diferentes facetas e convicções de cada pessoa que detinha a palavra. Mas uma delas, registro aqui para que não seja traída pela ação do tempo que tudo faz esvair. Lin Chau Ming em sua fala enaltece o evento, seus objetivos e o compromisso da universidade pública para com este movimento de conservação das sementes e de seus manejadores. E finaliza com algo que, segue sua característica de surpreender pelo inusitado. Conta­nos de sua juventude de militâncias e relembra dos movimentos que participou, dentre 255 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV estes, pela reforma agrária. E pergunta se alguém lembra ainda do hino, a qual ele ainda lembrava a letra. E o canta... Sublime em sua simplicidade: ­ Me acompanhem! A luta é necessária e nós vamos lutar, Pela reforma agrária Para nos libertar. A luta é necessária e nós vamos lutar, Pela reforma agrária Para nos libertar. Camponeses, operários, unidos, Vão reunidos, para lutar, Por uma reforma agrária, necessária, Para o país se libertar! ­ Aí vai o refrãozinho de novo! Muito obrigado! Facetas de um grande mestre. 256 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV Casa Grande e Dona Umbuzeira Shana Sampaio Sieber Conheci Dona Umbuzeira (*) em 2017. Uma visita que eu fiz ao Assentamento Juazeiro. Uma senhora de 69 anos, mãe de oito filhos, três mulheres e cinco homens, e separada do marido há mais de seis anos. Sua casa, grudada com um bar que o filho toma conta. Ele mora na “rua”, vem só para tomar conta do bar, do seu roçado e quintal produtivo, onde planta abóbora, feijão, milho, cebola e coentro. O ex­marido de Dona Umbuzeira é frequentador do mesmo bar; assim como muitos homens do assentamento. Nossa empatia foi imediata. Com pouco tempo de conversa, ela me falou que era separada. Uma das únicas mulheres separadas do assentamento, aliás. Mulher rural, sertaneja, pernambucana do Pajeú, assentada em uma terra marcada pelo imaginário da seca e da miséria, carregada por culturas patriarcais que continuam reproduzindo as “velhas práticas” das políticas de combate à seca e desigualdades de gênero. Conhecemos muitas histórias de resistência e luta das mulheres rurais no território que fizeram com que vivêssemos um processo de conquista e posicionamento em espaços políticos de tomada de decisão, e no próprio espaço das nossas casas, nos quintais produtivos e roçados, e nas nossas florestas, no manejo sustentável dos nossos recursos. Dona Umbuzeira tem uma história marcante, generosa e apaixonada. Ela receita medicamentos à base de plantas da caatinga para todos que chegam por lá e para toda a sua família. Quando a conheci, já pude identificar uma profunda conhecedora local de plantas medicinais com muita sabedoria para compartilhar. E por isso mesmo, é claro, voltei lá mais algumas vezes para conversar com ela. Era angico, jurema preta, quixabeira, umbuzeiro e catingueira e muitas outras plantas que Dona Umbuzeira citou nos nossos encontros, me fazendo 257 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV relembrar a época do meu mestrado, trazendo a importância dessas plantas no reconhecimento e na valorização da sociobiodiversidade local. Mas a história de Dona Umbuzeira não parava por aí. Enquanto manejadora e conhecedora de plantas medicinais, Dona Umbuzeira se destaca no cuidado da família: cuidado que, por muitas vezes, não é retratado, nem sequer reconhecido, como trabalho realizado de forma simultânea no contexto do trabalho reprodutivo. Na minha terceira visita à casa da Dona Umbuzeira, resolvi fazer a coleta de algumas plantas, e continuar a conversa. Descobri que sua história foi bastante sofrida; uma história de vida e de trabalho sobrecarregada, no continuum entre o trabalho produtivo e reprodutivo que se expressam hoje no trabalho doméstico e de cuidado. Cuidado com netas e netos, filhas e filhos; e ainda com os homens consumidores do bar que seu filho administra. Durante as três horas que passei com ela no dia da coleta, o bar permanecia lotado. Os homens sentados em sua frente tomando cachaça e cerveja continuaram na mesma posição desde o momento que saímos para coletar as plantas até o momento em que voltamos, e ainda continuamos nossa conversa na sua casa tomando um cafezinho. Um deles entrou dentro da casa da Dona Umbuzeira para pedir um café pra curar a ressaca... Dona Umbuzeira cuidava do homem com todo carinho me explicando o seu grau de parentesco. Era uma quinta­feira e eu me questionava muitas coisas naquele momento. Dona Umbuzeira me contou que quando se casou foi morar numa terra vizinha. Só voltou quando descobriu que “ele” estava com outra. Essa “outra” estava morando na casa que é dela agora, mas foi expulsa por Dona Umbuzeira que acabou retomando a posse da própria casa. Além do bar, a casa de Dona Umbuzeira está localizada muito próxima a uma Igreja Evangélica. Dona Umbuzeira não é evangélica. Ninguém da sua família é. Dona Umbuzeira me falou que na época do Seu Padim a Igreja era católica. Foi aí que eu conheci a história do Seu Padim. Depois que ele morreu, o ex­ 258 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV marido de Dona Umbuzeira articulou com a Igreja evangélica, mediando a “doação”. Assim, a Igreja da comunidade passou a ser evangélica, servindo a todos do assentamento como única opção. Seu Padim era o “dono” da fazenda e da “Casa Grande”. Pai de um famoso político local e nacional, que chegou a assumir diferentes cargos na Câmara Federal. E aqui chego ao que eu imaginava ser o cerne dos meus questionamentos quando me pergunto sobre a relação desse político com Juazeiro (e com Dona Umbuzeira), enquanto antigo proprietário de suas terras. Mediado por projetos ligados ao Estado e por uma prima desse mesmo político ­ que também tem uma trajetória política na região ­, o Assentamento Juazeiro acabou se consolidando através da redistribuição de lotes de antigos moradores da Fazenda. Ao lado da Igreja Evangélica, fica localizada a “Casa Grande”. Até hoje as pessoas do assentamento se referem a ela como tal, tendo sido a casa do Seu Padim por muitos anos, e de muitos moradores locais, que chegaram a cogitar a sua doação como sede da sua associação em inúmeras circunstâncias. E aqui já se construía a base dos principais conflitos vividos pelo assentamento. Com o problema do desvio de recursos da associação, ocorrido por volta de 2005, os processos associativos foram prejudicados, configurando uma situação corrupta na relação com os recursos públicos, que seriam destinados para aquisição de animais e ações de infraestrutura. Em uma terra distinguida por relações assistencialistas e clientelistas, o futuro da “Casa Grande” já estava traçado, atuando com base nessas mesmas relações. Dividindo o assentamento em duas partes, a “Casa Grande” se tornou representativa dos senhores da Fazenda, posicionados na frente do bar, na cooperação entre os homens da comunidade. Do outro lado da Casa Grande, assentaram­se as trabalhadoras e os trabalhadores ruais da fazenda, hoje chamados de agricultoras e agricultores familiares que ainda trabalham na “empeleita” (conheci esse termo por lá), seja na agricultura de outras propriedades, seja nas suas 259 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV próprias, ou até mesmo em trabalhos como diaristas, empregadas domésticas, pedreiras, pedreiros, e em casa! E foi aqui que encontrei mais histórias de vida e de trabalho de outras mulheres igualmente fortes, todas “irmãs” da Igreja Evangélica. Dona Macambira: cega, mãe de três filhos, trabalhadora da terra do Seu Padim. Trabalhou “pra criar”; e trabalhou! Trabalhou numa época que as diárias dos homens eram o dobro das diárias das mulheres, com a mesma “hora de pegada e largada”. Dona Juá: mãe de seis filhos. Seu marido trabalhou nas terras do Seu Padim: marido e filho. Assim como Dona Umbuzeira, Dona Juá também adora as plantas do seu quintal. Conhece muito mato da caatinga. E ainda tem Dona Quixabeira: nora de Dona Juá. Uma mulher muito intensa também. O marido também foi trabalhador da Fazenda. Até hoje ele trabalha na “empeleita”. E Dona Quixabeira trabalha em casa. É o trabalho doméstico e de cuidado com oito filhos que são realizados junto com as atividades de participação política e trabalho voluntário e religioso, que preenchem o tempo de toda a sua semana. Conhecedora de plantas da caatinga e do manejo agroecológico, dona quixabeira é dona da palavra, poeta! Todas elas “donas de casa”. Dona, não pelo título concedido às senhoras de famílias nobres, cuja abreviação é d. ou D. ou, conforme o dicionário, mulher casada, esposa. Donas de casa mas, sobretudo, trabalhadoras. Muito amor compartilhado nesse assentamento! E muitos conflitos também. A falta de reconhecimento e amadurecimento da identidade comunitária das pessoas do Assentamento Juazeiro só impossibilita qualquer esforço de coletividade, separando­o em dois. Pesquisas, estudos e ações de extensão rural, competem com as intervenções dos políticos que continuam atuando e acionando a perspectiva do combate à seca, negociando o acesso à água sob relações clientelistas. Mesmo com os esforços dos movimentos sociais na direção da convivência com o semiárido, da agroecologia e de uma perspectiva feminista, enquanto contraponto às políticas que favoreceram historicamente a indústria da seca, a Casa Grande perpetua a interdependência 260 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV política com base em valores patriarcais e machistas. Dona Umbuzeira é filha do “Seu Padim” (como ela mesma se referiu), e irmã “bastarda” de um dos políticos nordestinos mais conhecidos do Brasil (infelizmente por uma trajetória marcada pela sua condenação associada ao trabalho escravo). Umbuzeira se revela como grande conhecedora de plantas medicinais e liderança de um dos lados do assentamento: o lado da “Casa Grande”. Apesar de sua trajetória dissidente de resistência e luta, diante de uma madrasta que não gostava dela, de um marido machista e aproveitador e de um meio irmão por quem ela mantinha um sentimento rancoroso, Dona Umbuzeira afirmou que sempre trabalhou ali na terra “pra ela mesma”. Nunca trabalhou para outra pessoa. A terra era da família, da sua família, do Seu Padim. Mas Dona Umbuzeira nem sequer reivindicou seus direitos, quiçá a herança das terras do “lado” da Casa Grande, configurando a contradição do referencial de poder, no contraste com histórias de vidas oprimidas das trabalhadoras e trabalhadores do “outro” lado do assentamento. Num cenário de crise democrática e perda de direitos, a resistência se faz no reconhecimento e na problematização dos contextos das nossas pesquisas e práticas, começando pelas histórias das mulheres. Histórias de “donas” de casa invisibilizadas, que trabalham no cuidado de si, da família e da comunidade, no reconhecimento e na valorização da nossa sociobiodiversidade ameaçada. Agricultoras familiares e trabalhadoras; donas do conhecimento e da sustentabilidade da vida! (*) Todos os nomes que aparecem no texto foram substituídos por nomes fictícios, inclusive o do assentamento, para preservar a identidade das (os) envolvidas (os). 261 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV Ciência da Mata Tomaz Ribeiro Lanza Mais um dia acordando na aldeia Nova Olinda ao som dos Japinins. Aqui, quem separa a noite e o dia são os bichos, com seus grunhidos, gritos e cantos. Quando é noite, os sapos e pererecas namoram ao som de orquestras atrás da escola onde ficamos alojados. Lá, tem um grande alagadiço, e nele, uma infinidade de animais, entre eles o sapo do Kampo, fácil de distinguir em meio a multidão. Essa orquestra não dura a madrugada toda, sons variados ecoam em meio a floresta, que com seus milhares de quilômetros, traz momentos de silêncio profundo e cantos misteriosos. Quando começa amanhecer a temperatura aumenta, os carapanãs dão lugar aos piuns, a música da floresta muda: nambus, saracuras, jacamins e guaribas anunciam a chegada do sol. Segundo os Huni Kui, a forma com que cantam pela manhã indica como vai ser o dia. Se vem chuva pela frente, os animais cantam tristes, agora, se vem sol, cantam alegres e empolgados. Esses sinais são utilizados cotidianamente pelos indígenas, e auxiliam as famílias a decidirem as funções do dia, como trabalhar na roça, caçar, pescar ou tirar madeira. Aqui na floresta não precisa de relógio. O tempo é medido pelo calor, pelos sons e sinais que a natureza dá. Observei esses padrões por vários dias em que fiquei junto dos Kaxinawá no alto Rio Envira no Acre. São conhecimentos complexos e refinados, que possibilitam viver no tempo das coisas. Apesar de não ser objeto específico da minha pesquisa de doutorado, me interessei profundamente em entender a “ciência da mata”, como eles mesmo dizem. Após as reflexões e sons diários, caminhei até a casa do Nashima para tomar um café. Atravessei uns 200 m pelo terreiro 262 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV central da aldeia passando ao lado do Shubuã (maloca central). Nesse caminho, encontrei um consertando o telhado da casa, outro indo caçar, crianças carregando banana e a vida acontecendo, desde cedo nessas terras amazônicas. Há um dito popular péssimo que diz que índio é preguiçoso, mas tenho certeza que poucos nawa (branco) aguentariam um dia de trabalho junto deles. Por fim cheguei a casa da família, onde estavam todos reunidos no chão me aguardando para merendar. Tomamos café, banana comprida cozida e ensopado de veado. “Aqui para aguentar o dia tem que comer bem de manhã!”, disseram rindo para mim. Após o café saímos em direção ao roçado da família do Nashima, a uns 10 minutos caminhando dalí. Atravessamos uns trechos de mata, onde logo fui chamado a atenção para ver um cogumelo laranja, o Carupabinki, que possui uma chapeleta virada para cima como se fosse um guarda­chuva ao contrário. − Coloca no ouvido, professor, tenta escutar se tem um chiado. Se tiver é que vem friagem por aí – disse o Nashima. − Estou ouvindo sim, bem baixinho lá no fundo ­ respondi − Que bom. Quer dizer que vem chuva fraca! – ele finalizou. ... e seguimos andando como se nada tivesse acontecendo. Fiquei perplexo com aquilo na cabeça, e logo perguntei a ele se realmente funcionava. Ele respondeu que era ciência antiga, e que usavam aquilo para prever o tempo. Achei impressionante tamanha sabedoria e como eles utilizam a própria natureza para tomar decisões cotidianas. A partir dali fiquei ansioso aguardando o caminhar do dia para ver como ficaria o tempo. Visitamos o roçado, onde ele me mostrou diversas variedades de mandioca que plantava: paxiubão, amarelinha, caboclinha, campa preta e outras mais. O calor estava aumentando, e após a visita, decidimos então dar um mergulho no rio que estava próximo e seguir para outros roçados do outro lado do Envira. Ao atravessar de barco encontramos Tue, Yube e Tui (o pajé de nova Olinda), cuidando de um roçado grande em meio a mata bruta. Nesse roçado, além de diversos tipos de mandioca, tinha também cará, abacaxi, melancia, mamão jacaré (um tipo de mamão 263 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV todo cheio de calombo na casca cultivado por eles), taioba e um centenário cumarú que foi deixado em pé bem no centro da área. Perguntei porque o deixaram e logo entendi. Um casal de araras fazia um ninho em um buraco em seu tronco, por isso não o cortaram. Visitei o roçado deles, coletei algumas informações para minha pesquisa, e logo partimos para caminhar em direção a mata para almoçar. Além de uns mamões e bananas, tínhamos também uma farofa de carne de macaco. Após comer, ficamos ali conversando um pouco e logo saímos para caminhar mais na floresta. Nas margens da trilha vi logo uma árvore de tronco liso e gordo, como uma barriguda, toda marcada de facão, que aqui chamam de botijão. Perguntei do que se tratava, e me disseram que utilizavam essa árvore para estimular a chuva. − Em tempos de seca batemos nessa árvore para ela trazer chuva para nós professor – respondeu o Tue. − Se sair muita seiva é que vem chuva forte. Se sair pouca é só friagem – complementou o Yube. − Quando queremos mandar “panema” (azar) para alguém, escrevemos o nome da pessoa nessa árvore também professor – complementou Tue trazendo mais uma ciência dessa árvore. Batemos na casca e a seiva saiu fraca, ou seja, segundo eles vinha chuva fraca pela frente. Curioso demais tudo isso, inclusive, quando tive na RESEX Chico Mendes em Xapuri­AC no início do doutorado em 2016, aprendi com os seringueiros sobre uma planta medicinal muito poderosa, que coincidentemente era essa mesma planta. Ao bater no tronco sai uma seiva pastosa que pode ser usada para tratamento de infecções. Incrível como a sabedoria da floresta é complexa, e em cada local a mata traz seus ensinamentos para o dia a dia. Seguimos andando e mais a frente ouvimos um grito de gavião bem distante. Chamei a atenção sobre o animal e logo Yube me questionou: − Professor, o gavião ajuda Huni Kui a caçar. Ele mostra para a gente onde se escondem os porquinhos, tatu e outros 264 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV animais. − Caramba, que interessante, então sabem onde está a caça pela localização do gavião? ­ questionei − Não professor, a gente chama o gavião e ele mostra para a gente onde tá a caça. − Como assim chama? − Quer ver? – perguntou Yube em um tom sério e ao mesmo rindo. − Claro! – respondi ao mesmo tempo curioso e um pouco cético. Naquele momento pensei “eles vão zoar comigo”. Os Kaxinawá são muito brincalhões (na leveza total, sem maldade), e eu sendo um nawa (branco), mais ainda sou objeto das brincadeiras. Foi então que Yube deu um grito super alto imitando o gavião. Tomei um susto, mas nenhum sinal do animal. Ele gritou mais uma vez e nada. Comecei a duvidar e realmente achar que estavam brincando comigo, quando de repente ouço um barulho na copa de uma árvore de mulateiro ao nosso lado. Quando olhei, me arrepiei da cabeça aos pés, pois ali estava, um gavião enorme de corpo marrom e cabeça branca a mais ou menos 20 m de distância da gente. − Tá vendo professor, quando vemos que ele está perto chamamos para ajudar na caça – Indagou o Pajé Tui Eu sem palavras, totalmente impressionado, fiquei em silêncio observando, e pelas risadas que eles deram, imaginem a cara que fiquei. Para não dizer incrível, achei aquilo surreal! Seguimos pela mata cantando, evocando os seres da floresta, e eu, extremamente impressionado ainda com tudo aquilo. Andamos o dia todo e em cada canto uma nova ciência, um novo sinal, uma observação atenta de tudo que nos rodeia. Após umas 3 horas de caminhada e inúmeros aprendizados, voltamos para a aldeia Nova Olinda, onde estávamos alojados. Terminei o dia exausto mas com uma sensação de vitalidade, aprendizado e emoção gigantescas. Jamais aprenderia isso em um livro ou sala de aula. Absolutamente incrível tamanha 265 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV sabedoria existente nessas matas. Esses povos, essas pessoas, adquiriram um conhecimento extremamente complexo e elaborado, muito além de qualquer ciência tradicional e cartesiana. A ciência é feita no dia a dia, passada de pai para filho, com o objetivo claro de auxiliar o dia a dia das famílias e possibilitar uma convivência harmoniosa e abundante com a floresta. Deitei em minha rede no início da noite, reflexivo e muito grato pela vivência daquele dia. Como de praxe, acendi uma vela e fui escrever meu diário de campo, relatando tudo que vi e aprendi naquele dia. Para finalizar, e embalar meu sono, veio a friagem, ou chuva fraca, como previa­se ao longo dia. Incrível... as previsões estavam certas! Boa noite seres da mata. 266 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV “A mandioca é o pão de Deus na Terra” Yan Victor Leal da Silva O sol nascia e ouvia um barulho na janela. Por dentro estava eu. Por fora, pessoa de mãos calosas, pele grossa, a voz de quem sabe e sofre. Sua mão calejada abria a janela de lata e ecoava o barulho que tratava de me acordar. No despertar da manhã o moço que passara madrugada transcrevendo relatos e entrevistas, com dificuldades de acordar, levantava da cama e logo se aprontava. Depois de acordar, um banho para despertar e de longe tio Tunico falava: “Não precisa de banho não! Nós vamos mexer na terra”. Em pouco tempo eu que buscava uma etnografia já estava pronto para cumprir o combinado feito em dia anterior. Em minhas experiências na comunidade havia percebido que o combinado não sai caro. Em vínculos e interações com as pessoas percebi que não era recomendado firmar um acordo e não cumprir. Mas o que de fato levou um pesquisador que estava morando na comunidade a participar da capina da mandioca e manejo da terra? Há algum tempo aprendi que estudar um povo implica em participar de seu cotidiano de vida. É preciso estar lá, no dizer de Geertz: “penetrar e ser penetrado por uma cultura”. E sem saber muito sobre o outro, passando um quilo de sal junto, numa relação de afetos, procurava uma descrição densa do cotidiano das pessoas. Estava convencido que somente com uma participação ativa e observante chegaria a descrever a densidade da simplicidade. Um café forte para iniciar os trabalhos. E como já era de praxe acompanhado de fumo marinheiro enrolado no papel de pão, daqueles fumos de deixar marcas na mão. Tio Tunico avistava o céu e alertava por onde começar, dizia ele que quando o sol apertasse era preciso estar na sombra. Durante a capina da mandioca fomos conversando e ele dizendo que era para chegar o “mato” ao redor da mandioca para “fortalecer o pé e a terra”. 267 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV Localizado em lote vago a plantação de tio Tunico (r)existia firme aos níveis de urbanização daquela periferia. O plantio em lote vago e em quintais é algo muito presente na comunidade de tio Tunico, algo que se destaca entre aqueles moradores que migraram de áreas rurais. Essa experiência de capina durou meio dia de trabalho. Quando estávamos para arrematar a empreitada, tio Tunico e eu decidimos fazer uma pausa para novamente tomar um café e logo depois fumar um cigarro. De forma surpreendente, a chave da casa havia desaparecido no meio do mandiocal, quase todo roçado com seu capim manejado. Andamos por várias vezes tentando encontrar a chave e nada. Até que o Tio Tunico disse que faria uma oração e encontraria. Deixando tio Tunico que já começava a reza, desconhecida nos recintos acadêmicos, continuei procurando a chave. De longe escutava a oração: Salve, rainha, virgem mãe de misericórdia e vida, doçura e esperança nossa, salve! A vós bradamo, os degredados filhos de Eva a vós suspiramos, gemendo e chorando neste val de lágrimas. Em apoio advogada nossa, esses vossos olhos misericordiosos a nós volvei; e depois deste desterro amostrai Jesus. Para minha surpresa, no meio da oração ele encontrou a chave da casa em lugares que já tínhamos procurado. O que aconteceu? Na explicação de tio Tunico é que a chave teria aparecido para ele. E ao encontrá­la sem pestanejar disse: “agora tenho que terminar a oração, senão da próxima vez ela não vale nada”. E terminou sinalizando a eficácia simbólica da Salve Rainha: Bendito fruto do vosso ventre, ó clemente, ó piedosa, ó doce sempre Virgem Maria. Rogai por nós, santa Mãe de Deus. Para que sejamos dignos das promessas de Cristo para sempre, Amém! Essa experiência que relato me fez lembrar de uma discussão durante o XI Simpósio de Etnobiologia e Etnoecologia sediado em Feira de Santana na Bahia (2016). Em uma determinada mesa discutíamos o papel das cosmologias nas 268 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV práticas e conhecimentos das pessoas. Refletindo sobre a proposta teórica e metodológica de Victor Manuel Toledo e Narciso Barrera­ Bassols. Naquela ocasião, chegávamos a conclusão que não podemos desconsiderar o fato de que o sistema de crenças está integrado nas práticas dos sujeitos de pesquisa. Essa vivência me levou a incorporar, em algumas entrevistas, perguntas sobre as rezas e suas origens, já que me fez pensar na relação entre o cultivo das plantas em quintais (e lotes vagos) e os momentos em que se acionam saberes de cuidados e cosmologias que estão integradas às práticas da vida social. Nesses tempos de colapso é bom lembrar que é por meio da indissociabilidade entre os sistemas de crenças, os saberes e as práticas que, ao longo da história ambiental, os povos indígenas construíram (e constroem) sua resistência à expansão do moderno e hegemônico modelo capitalista de desenvolvimento urbano e industrial. Partindo das partilhas e trabalho de campo ­ com viés microssocial ­ no roçado e no lote vago com tio Tunico e por esta compreensão de que os sistemas de crenças, práticas e conhecimentos são parte constitutivas do modo de vida das pessoas que compreendo a multivocalidade dos espaços de vida. Em momentos como a capina do milho, rezas e benzeções dos quintais, roçados e lotes vagos, onde se semeia a vida e a diversidade, nos provocando a ir além da sistematização e categorização das plantas. Trata­se de espaços de vida manejados não só por sistemas de pensamentos, mas também por práticas que dizem da construção simbólica dos domínios da vida e da memória coletiva das pessoas. 269 "Quando pensa que não..." Contos, crónicas e causos em Etnobiologia ­ v. IV 270