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Segunda consideracao intempestiva

Nietzsche

Friedrich Nietzsche c o n eXb e s CONEXÕES é uma coleção dirigida por Maria Cristina Franco Ferraz e apresenta as seguintes publicações: A DÚVIDA • Vilém FUtsser ANTONIN ARTAUD - O artesão do corpo sem órgãos a Daniel Lins PLATÃO - As artimanhas do fingimento * Maria Cristina Franco Ferraz NOSSO SÉCULO XXI - Notas sobre arte, técnica e poderes • Jantr.e Caiafa DIFERENÇA E NEGAÇÃO NA POESIA DE FERNANDO PESSOA m José CU PARA U M A POLÍTICA DA AMIZADE - Areridt, Derrida, Foucault m Francisco Ortega ENTRE CUIDADO E SABER DE SI - Sobre Foucault e a psicanálise * Joel Birmai: ALEGRIA: A FORÇA MAIOR D Clement Rosset CREPÚSCULO DOS ÍDOLOS - Ou como filosofar com o martelo M Friedrich SEGUNDA CONSIDERAÇÃO INTEMPESTIVA Da utilidade e desvantagem da história para a vida Nietzsche VERTIGENS POS-MODERNAS - Configurações institucionais contemporâneas a Luís Carlos Frídmnn NIETZSCHE - Metafísica e niilismo • Martin Heidegger MAL DE ARQUIVO - Uma impressão freudiana • Jacquet Derrida TRÊS TEMPOS SOBRE A HISTÓRIA DA LOUCURA • Jacques Derrida c Michel Foucault No CÍRCULO CÍNICO - Ou por que negar a psicanálise aos canalhas a Ricardo David Goldenberg FILOSOFIA TRADUÇÃO Marco Antônio Casanova DA CAIXA PRETA - Ensaios para uma futura filosofia da fotografia • Vilém Flusser NOVE VARIAÇÕES SOBRE TEMAS O HOMEM NIETZSCHIANOS a Maria Cristina Franco Ferraz PÓS-ORGÂNICO - Corpo, subjetividade e tecnologias digitais u Paula Sibilia Os ABISMOS DA SUSPEITA - Nietzsche e o perspectivismo • Silvia Pimenta Velloso Rocha A EXPERIÊNCIA DO FORA - Blanchet, Foucault e Deleuze a Tatiana Salem Levy SEGUNDA CONSIDERAÇÃO INTEMPESTIVA - Da utilidade e desvantagem da história para a vida • Friedrich Nietzsche RELUME Rio D U M A R A de Janeiro 2003 con eXp e s — Título Original: Unzeitgemässe Betrachtungen - Zweites Stük: Vom Nutzen und Nachtheil der Historie für das Leben DTV/De Gruyter (Die Geburt der Tragödie - Kritische Siudienausgabe Herausgegeben von Giorgio Colli und Mazzino Montinari) - KSA Volume 4. © Copyright 2003 Direitos da tradução cedidos para DUMARÁ DISTRIBUIDORA DE PUBLICAÇÕES LTDA. Travessa Juraci, 37 - Penha Circular 21020-220 - Rio de Janeiro, RJ Tel.: (21) 2564 6869 - Fax: (21) 2590 0135 E-mail: relume@relumedumara.com.br Die Herausgabe diesses Werkes wurde aus Mitteln des Goethe-Instituts Inter Nationes gefördert Este trabalho foi publicado com o apoio do Instituto Goethe Inter Nationes Revisão técnica da tradução Ernâni Chaves 1 Revisão Gustavo Bernardo Editoração Dilmo Milheiros 2 Capa Simone Villas-Boas CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte. Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ. N581s Nietzsche, Friedrich Wilhelm, 1844-1900 Segunda consideração intempestiva : da utilidade e desvantagem da história para a vida / Friedrich Nietzsche ; tradução Marco Antônio Casanova. - Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2003 - (Conexões; 20) Tradução de: Unzeitgemässe Betrachtungen - Zweites Stük : Vom Nutzen und Nachtheil der Historie für das Leben ISBN 85-7316-329-1 1. Filosofia alemã, 2. História - Estudo e ensino. 1. Título. II. Série. 03-1554 resto, me é odioso tudo o que simplesmente me instrui, sem aumentar ou imediatamente vivificar a minha atividade." Estas são palavras de Goethe, com as quais, sempre com um expressamente/corajoso ceterutn censeo, podemos começar nossas considerações sobre o valor e a falta de valor da história. Nestas considerações, deve ser em verdade apresentado, porque instrução sem vivificação, o saber no qual a atividade adormece; a história tomada como um precioso supérfluo e luxo do conhecimento deveriam ser, segundo as palavras de Goethe, verdadeiramente odiosos para nós - na medida em que ainda nos falta o mais necessário e porque o supérfluo é o inimigo do necessário. Certamente precisamos da história,, mas não como o passeante mimado no jardim do saber, por mais que este olhe certamente com desprezo para as nossas carências e penúrias rudes e sem graça. Isto significa: precisamos dela para a vida e para a ação, não para o abandono confortável da vida ou da ação ou mesmo para o embelezamento da vida egoísta e da ação covarde e ruim. Somente na medida em que a história serve à vida queremos servi-la. Mas há um grau que impulsiona a história e a avalia, onde a vida definha e se degrada: um fenômeno que, por mais doloroso que seja, se descobre justamente agora, em meio aos sintomas mais peculiares de nosso tempo. CDD 193 CDU 1(43) Todos os direitos reservados. A reprodução não-autorizada desta publicação, por qualquer meio, seja ela total ou parcial, constitui violação da Lei p.° 5.988. 6 FRIEDRICH NIETZSCHE Esforcei-me em descrever um sentimento que me tem, com freqüência, atormentado suficientemente; vingar-meei dele, abandonando-o à esfera pública. Talvez alguém, por meio de uma tal descrição, seja provocado a declarar-me que de fato também conhece este sentimento, mas que eu não o senti de maneira suficientemente pura e originária, que não o expressei de modo algum com a devida segurança e maturidade da experiência. Talvez seja assim com um ou com outro; no entanto, a maioria me dirá que este seria um sentimento completamente perverso, nada natural,, detestável e simplesmente inadmissível, que com ele me mostrei indigno de um direcionamento tão poderoso do tempo histórico, tal como este, sabemos, deve ser percebido há duas gerações e sobretudo entre os alemães. Em todo caso, porém, o fato de me aventurar na descrição da natureza de meu sentimento dgve antes favorecer do que ferir o bom decoro geral, urna vez que darei a muitos a oportunidade de render homenagens a um direcionamento tal como o acima mencionado. Para mim, contudo, é bem provável que conquiste algo ainda mais valioso do que o bom decoro geral - ser publicamente instruído e alcançar uma posição correta sobre a nossa época. Esta consideração também é intempestiva porque tento compreender aqui, pela primeira vez, algo de que a época está com razão orgulhosa - sua formação histórica como prejuízo, rompimento e deficiência da época - porque até mesmo acredito que padecemos todos de uma ardente febre histórica e ao menos devíamos reconhecer que padecemos dela. Todavia, se Goethe disse com toda razão que com nossas virtudes também cultivamos, ao mesmo tempo, nossos erros, e se, como todo mundo sabe, uma virtude hipertrofiada - tal como me parece ser o sentido histórico de nosso tempo - pode se tornar tão boa para a degradação de um povo quanto um vício hipertrofiado, então deixem3 SEGUNDA CONSIDERAÇÃO INTEMPESTIVA 7 me fazer isso pelo menos uma vez. Também não deve ser silenciado, para me aliviar, que as experiências que me incitaram aqueles sentimentos torturantes foram extraídas, na maioria das vezes, de mim mesmo e de outros, o foram apenas por comparação; e que eu, apenas eu, enquanto pupilo de tempos mais antigos, especialmente dos gregos, cheguei, além de mim, como um filho da época atual, a experiências tão intempestivas. De qualquer modo, não há mais nada que precise conceder a mim mesmo em virtude de minha profissão como filólogo clássico: pois não saberia que sentido teria a filologia clássica em nossa época senão o de atuar nela de maneira intempestiva - ou seja, contra o tempo, e com isso, no tempo e, esperemos, em favor de um tempo vindouro. 1. Considera o rebanho que passa ao teu lado pastando: ele não sabe o que é ontem e o que é hoje; ele saltita de lá para cá, come, descansa, digere, saltita de novo; e assim de manhã até a noite, dia após dia; ligado de maneira fugaz com seu prazer e desprazer à própria estaca do instante, e, por isto, nem melancólico nem enfadado. Ver isto desgosta duramente o homern porque ele se vangloria de sua humanidade frente ao animal, embora olhe invejoso para a sua felicidade - pois o homem quer apenas isso, viver como o animal, sem melancolia, sem dor; e o quer entretanto em vão, porque não quer como o animal. O homem pergunta mesmo um dia ao animal: por que não me falas sobre tua felicidade e apenas me observas? O animal quer também responder e falar, isso se deve ao fato de que sempre esquece o que queria dizer, mas também já esqueceu esta resposta e silencia: de tal modo que o homem se admira disso. Todavia, o homem também se admira de si mesmo por 8 FRIEDRICH NIETZSCHE não poder aprender a esquecer e por sempre se ver novamente preso ao que passou: por mais longe e rápido que ele corra, a corrente corre junto. É um milagre: o instante em um átimo está aí, em um átimo já passou, antes um nada, depois um nada, retorna entretanto ainda como um fantasma e perturba a tranqüilidade de um instante posterior. Incessantemente uma folha se destaca da roldana do tempo, cai e é carregada pelo vento - e, de repente, é trazida de volta para o colo do homem. Então, o homem diz: "eu me lembro", e inveja o animal que imediatamente esquece e vê todo instante realmente morrer imerso em névoa e noite e extinguir-se para sempre. Assim, o animal vive a-historicamente: ele passa pelo presente como um número, sem que reste uma estranha quebra. Ele não sabe se disfarçar, não esconde nada e aparece a todo momento plenamente como o que é, ou seja, não pode ser outra coisa senão sincero. O homem, ao contrário, contrapõe-se ao grande e cada vez maior peso do que passou: este peso o oprime ou o inclina para o seu lado, incomodando os seus passos como um fardo invisível e obscuro que ele pode por vezes aparentemente negar e que, no convívio com seus iguais, nega corri prazer: para lhes despertar inveja. Por isso o aflige, como se pensasse em um paraíso perdido, ver o gado pastando, ou, em uma proximidade mais familiar, a criança que ainda não tem nada a negar de passado e brinca entre os gradis do j: passado e do futuro em uma bem-aventurada cegueira. E, no entanto, é preciso que sua brincadeira seja perturbada: cedo demais a criança é arrancada ao esquecimento. Então ela aprende a entender a expressão "foi", a senha através da qual a luta, o sofrimento e o enfado se aproximam do homem para lembrá-lo o que é no fundo a sua existência um imperfectum que nunca pode ser acabado. Se a morte traz por fim o ansiado esquecer, então ela extingue ao mesmo tempo o presente e a existência, imprimindo, com isto, 9 SEGUNDA CONSIDERAÇÃO INTEMPESTIVA o selo sobre aquele conhecimento de que a existência é apenas um ininterrupto ter sido, uma coisa que vive de se negar e de se consumir, de se autocontradizer. Se uma felicidade, um anseio por uma nova felicidade é, em certo sentido, o que mantém o vivente preso à vida e continua impelindo-o para ela, então talvez nenhum filósofo tenha mais razão do que o cínico: pois a felicidade do animal, como a do cínico perfeito, é a prova viva da razão do cinismo. A mínima felicidade, contanto que seja ininterrupta e faça feliz, é incomparavelmente maior do que a maior felicidade que só venha episodicamente., como capricho, como um incidente desvairado, entre puro desprazer, desejo e privação. No entanto, em meio à menor como em meio à maior felicidade é sempre uma coisa que torna a felicidade o que ela é: o poder-esquecer ou, dito de maneirartnais erudita, a faculdade de sentir a-hisloricamente durante a sua duração. Quem pode se instalar no limiar do instante, esquecendo todo passado, quem não consegue firmar pé em um ponto como uma divindade da vitória sem vertigem e sem. medo, nunca saberá o que é felicidade, e ainda pior: nunca fará algo que torne os outros felizes. Pensem no exemplo mais extremo, um homem que não possuísse de modo algum a força de esquecer e que estivesse condenado a ver por toda parte um vir-a-ser: tal homem não acredita mais em seu próprio ser, não acredita mais em si, vê tudo desmanchar-se em pontos móveis e se perde nesta torrente do vir-a-ser: como o leal discípulo de Heráclito, quase não se atreverá mais a levantar o dedo.' A todo agir liga-se um esquecer: assim como a vida de tudo o que é orgânico diz respeito não apenas à luz, mas também à obscuridade. Um homem que quisesse sempre sentir apenas historicamente seria semelhante ao que se obrigasse a abster-se de dormir ou ao animal que tivesse de viver apenas de ruminação e de ruminação sempre repetida. Portanto: é possível viver 1 10 FRIEDRICH NIETZSCHE quase sem lembrança, sim, e viver feliz assim, como o mostra o animal; mas é absolutamente impossível viver, em geral, sem esquecimento. Ou, para explicar-me ainda mais facilmente sobre meu tema: há um grau de insónia, de ruminação, de sentido histórico, no qual o vivente se degrada e por fim sucumbe, seja ele um homem, um povo ou uma cultura. Para determinar este grau e, através dele, então, o limite, no interior do qual o que passou precisa ser esquecido, caso ele não deva se tornar o coveiro do presente, seria preciso saber exatamente qual é o tamanho da força plástica de um homem, de um povo, de uma cultura; penso esta força crescendo singularmente a partir de si mesma, transformando e incorporando o que é estranho e passado, curando feridas, restabelecendo o perdido, reconstituindo por si mesma as formas partidas. Há homens que possuem tão pouco esta força que, em uma única vivência, em uma única dor, freqüentemente mesmo em uma única e sutil injustiça, se esvaem incuravelmente em sangue como que através de um pequenino corte; por outro lado, há homens nos quais os mais terríveis e horripilantes acontecimentos da vida e mesmo os atos de sua própria maldade afetam tão pouco que os levam em meio deles ou logo em seguida a um suporta vel bem-estar e a uma espécie de consciência tranqüila. Quanto mais a natureza mais íntima de um homem tem raízes fortes, tanto mais ele estará em condições de dominar e de se apropriar também do passado; e se se pensasse a natureza mais poderosa e mais descomunal, ela se faria reconhecer no fato de que não haveria para ela absolutamente nenhum limite do sentido histórico que possibilitasse a sua ação de maneira sufocante e nociva; aquele homem traria todo o passado para junto de si, o seu próprio passado e o que dele estivesse mais distante, incorporaria a si e como que o transformaria em sangue. O que uma tal natureza não subjuga, ela sabe esquecer; esse homem não existe SECUNDA CONSIDERAÇÃO INTEMPESTIVA 11 mais, o horizonte está fechado e completo, e nada consegue fazei lembrar que para além deste horizonte há ainda homens, paixões, doutrinas, metas. E isto é uma lei universal; cada vivente só pode tornar-se saudável, forte e frutífero no interior de um horizonte; se ele é incapaz de traçar um horizonte em torno de si, e, em contrapartida, se ele pensa demasiado em si mesmo para incluir no interior do próprio olhar um olhar estranho, então definha e decai lenta ou precipitadamente em seu ocaso oportuno. A serenidade, a boa consciência, a ação feliz, a confiança no que está por vir tudo isto depende, tanto nos indivíduos como no povo, de que haja uma linha separando o que é claro, alcançável com o olhar, do obscuro e impossível de ser esclarecido; que se saiba mesmo tão bem esquecer no tempo certo quanto lembrar no tempo certo; que se pressinta com um poderoso instinto quando é necessário sentir de modo histórico, quando de modo a-hisíórico, Esta é justamente a sentença que o leitor está convidado a considerar: o histórico e o a-histórico são na mesma medida necessários para a saúde de um indivíduo, um povo e uma cultura. De início, há aqui uma observação que cada um pode fazer: a sensação e o saber históricos de um homem podem ser muito limitados, seu horizonte tão estreito quanto o de um habitante de um vale nos Alpes; em cada juízo pode residir uma injustiça, em cada experiência o erro de supor ter sido o primeiro a vivenciá-la - e, apesar de toda injustiça e de todo erro, ele se encontra aí com uma saúde e um vigor insuperáveis, alegrando qualquer olho; enquanto isso, bem ao seu lado, um homem muito mais justoe erudito adoece e sucumbe justamente porque as linhas de seu horizonte se deslocam sempre de novo, inquietas, porque ele não se desembaraça da rede muito frágil de suas justiças e verdades e novamente se volta em direção a um forte querer e desejar. Em contrapartida, vemos o animal que é total- 12 FRIEDRICH NIETZSCHE mente a-histórico e quase mora no interior de um horizonte pontual - no entanto, vive em urna certa felicidade, ao menos sem enfado e sem disfarces. Portanto, podemos ter a capacidade de sentir a-historicamente, de perseverarmos em direção ao mais importante e originário, uma vez que aí reside o fundamento sobre o qual pode crescer algo reto, saudável e grandioso, algo verdadeiramente humano. O a-histórico é similar a uma atmosfera que nos envolve e na qual a vida se produz sozinha, para desaparecer uma vez mais com a aniquilação desta atmosfera. É verdade: somente pelo fato de o homem limitar esse elemento a-histórico pensando, refletindo, comparando, separando e concluindo; somente pelo fato de surgir no interior dessa névoa que nos circunda um feixe de luz muito claro, relampejante, ou seja, somente pela capacidade de usar o que passou em prol da vida e de fazer história uma vez mais a partir do que aconteceu, o homem se torna homem. No entanto, em um excesso de história, o homem deixa novamente de ser homem, e, sem aquele invólucro do a-histórico, nunca teria começado e jamais teria ousado começar. Onde encontramos feitos que puderam ser empreendidos pelo homem sem antes imiscuir-se naquela névoa espessa do a-histórico? Ou, para deixar as imagens de lado e passar à ilustração através de exemplos: imagine-se um homem mobilizado e impelido por uma paixão violenta por uma mulher ou por um grande pensamento - como o seu mundo se transforma para ele! Olhando para trás, ele se sente cego; escutando o que se passa ao seu redor, percebe o estranho como um som surdo e desprovido de significação; o que em geral percebe, ele jamais tinha percebido assim antes; tão sensivelmente próximo, colorido, ressonante, iluminado, como se ele o apreendesse ao mesmo tempo com todos os sentidos. Todas as suas avaliações se transformaram e se desvalorizaram; tantas coisas ele não está mais em condições de avaliar, porque quase SEGUNDA CONSIDERAÇÃO INTEMPESTIVA 13 não pode mais senti-las: ele se pergunta se não fora por tanto tempo senão o bobo de palavras e opiniões alheias; ele se espanta que sua memória gire incansavelmente em círculos e esteja fraca e cansada para dar quiçá um único salto para fora deste círculo. Este é o estado mais injusto do mundo, estreito, ingrato frente ao que passou, cego para os perigos, surdo em relação às advertências, um pequeno e vivo redemoinho em um mar morto de noite e esquecimento: e, contudo, este estado - a-histórico, contra-histórico de ponta a ponta - é o ventre não apenas de um feito injusto, mas muito mais de todo e qualquer feito reto; e nenhum artista alcançará a sua pintura, nenhum general a sua vitória, nenhum povo a sua liberdade, sem ter antes desejado e almejado vivenciar cada uma delas em meio a um tal estado. Como o homem de ação, segundo a expressão de Goethe, é sempre desprovido de consciência, ele também é desprovido de saber, esquece a maior parte das coisas para fazer uma apenas, é injusto com o que se encontra atrás dele e só conhece um direito, o direito daquilo que deve vir a ser agora. Assim, todo homem de ação ama infinitamente mais o seu feito do que este merecia ser amado: e os melhores feitos acontecem em meio a uma tal superabundância de amor que, mesmo se o seu valor fosse incalculavelmente grande também em outros aspectos, em todo caso eles ainda deveriam ser indignos deste amor. 5 Se alguém estivesse em condições de inalar e respirar em inúmeros casos esta atmosfera a-histórica na qual surgiram todos os grandes acontecimentos históricos, então talvez lhe fosse possível, enquanto um ser cognoscente, elevar-se a um ponto de vista supra-histórico, tal como Niebuhr o descreveu certa vez como um resultado possível das considerações históricas. "Para uma coisa ao menos", disse ele, "a história, clara e detalhadamente concebida, é útil: para que se perceba também o quanto os maiores e mais eleva- 14 FRIEDRICH NIETZSCHE dos espíritos de nossa espécie humana não sabem o quão casualmente seus olhos assumiram a forma através da qual eles vêem e exigem de cada um com violência que veia; violentamente, em verdade, porque a intensidade de sua consciência é excepcionalmente grande. Quem não compreendeu e percebeu isto de maneira correta em muitos casos é subjugado pela manifestação de um espírito poderoso que insere em uma forma dada a mais elevada passionalidade." Denominaríamos como supra-histórico um tal ponto de vista, porque alguém que o assume não poderia mais se sentir de maneira nenhuma seduzido para continuar vivendo e colaborando com o trabalho da história, uma vez que reconheceria a condição de todo acontecimento, aquela cegueira e injustiça na alma do agente; aquele alguém estaria curado do risco de tomar a partir de então a história exageradamente a sério, pois aprenderia com cada herííem, a cada vivência entre gregos ou turcos, em uma hora do século um ou do século dezenove, a responder à pergunta como e para que se viveu. Quem perguntar a seus conhecidos se eles desejariam atravessar uma vez mais os últimos dez ou vinte anos de suas vidas perceberá, com facilidade, qual deles está preparado para aquele ponto de vista supra-histórico: com certeza, todos responderão "não!", mas eles irão fundamentar diversamente este "não!". Uns taivez por se consolarem com um "mas os próximos vinte anos serão melhores"; eles são aqueles de quem David Hume fala de maneira jocosa: 6 And from the àrtgs oflife hope to receive, What thefirst sprightly running could rwt give. 7 Nós os denominaremos os homens históricos; o olhar para o passado os impele para o futuro, acende a sua coragem para manter-se por mais tempo em vida, inflama a es- SEGUNDA CONSIDERAÇÃO INTEMPESTIVA 15 perança de que a justiça ainda está por vir, de que a felicidade está sentada por detrás da montanha para a qual estão se dirigindo. Estes homens históricos acreditam que o sentido da existência se iluminará no decorrer de um processo. Assim, apenas por isto, eles só olham para trás a fim de, em meio à consideração do processo até aqui, compreender o presente e aprender a desejar o futuro impetuosamente; eles não sabem o quão a-historicamente eles pensam e agem apesar de toda a sua história, e como mesmo a sua ocupação com a história não se encontra a serviço do conhecimento puro, mas sim da vida. Mas aquela pergunta, cuja primeira resposta acabamos de ouvir, também pode ser respondida de uma outra forma. Com certeza, urna vez mais com um "não!", mas com um não diversamente fundamentado. Com um não do homem supra-histórico, que não vê a cura no processo e para o qual o mundo em cada instante singular está pronto e acabado. O que poderiam dez anos ensinar que os últimos dez não tenham já ensinado? Então, se o sentido da doutrina é felicidade ou resignação, virtude ou expiação, neste caso os homens supra-históricos nunca estiveram de acordo uns com os outros; no entanto, diante de todos os tipos de consideração histórica do passado, eles chegam à plena unanimidade quanto ao princípio: o passado e o presente são um e o mesmo, isto é, em toda a multiplicidade tipicamente iguais: enquanto onipresença de tipos imperecíveis, dá-se inerte a composição de um valor igualmente imperecível e eternamente igual em sua significação. Como às centenas de línguas diversas correspondem as mesmas necessidades típicas e fixas dos homens de tal modo que quem as compreendesse não conseguiria aprender nada de novo em todas as línguas, assim também o pensador supra-histórico esclarece para si mesmo toda a história dos povos e dos indivíduos a partir dela 16 FRIEDEJCH NIETZSCHE SEGUNDA CONSIDERAÇÃO INTEMPESTIVA 17 mesma, decifrando como um visionário o sentido originário dos diferentes hieróglifos e paulatinamente se afasta cansado até mesmo dos sinais que sempre afluem novamente: pois, em meio à profusão infinita do que acontece, como não chegaria à saturação e à sobressaturação, sim, mesmo ao nojo?!? De modo que, por fim, talvez o mais ousado esteja pronto para dizer, com Giacomo Leopardi, ao seu coração: Um fenômeno histórico, conhecido pura e completamente e dissolvido em um fenômeno do conhecimento, está morto para aquele que o conheceu: pois ele reconheceu nele a ilusão, a injustiça, a paixão cega e em geral todo o horizonte profano envolto em obscuridade daquele fenômeno, e, ao mesmo tempo, justamente aí o seu poder histórico. Para o que detém o saber, este poder tornou-se agora impotente - mas talvez ainda não para o vivente. "Nada vive que digno Fosse de tuas emoções, e nenhum suspiro merece a terra. Dor e tédio são nosso ser e sórdido é o mundo - nada além disto. Aquieta-te." Pensada como ciência pura e tornada soberana, a história seria uma espécie de conclusão da vida e de balanço final para a humanidade. A cultura histórica só é efetivamente algo salutar e frutífero para o futuro em conseqüência de uma nova e poderosa corrente de vida, do vir a ser de uma nova cultura, por exemplo; portanto, só se ela é dominada e conduzida por uma força mais elevada e não quando ela mesma domina e conduz. Mas deixemos o homem supra-histórico com o seu nojo e a sua sabedoria: hoje queremos muito mais nos alegrar uma vez de todo o coração com a nossa ignorância e nos desejar um bom dia como homens de ação e de progresso, como os adoradores do processo. Gostaria que a nossa avaliação da história fosse apenas um preconceito ocidental, contanto que venhamos, no mínimo, a progredir no interior deste preconceito e não fiquemos parados! Contanto que aprendamos cada vez melhor exatamente isto: a impulsionar a história a serviço da vidai Neste caso, confessaríamos com prazer aos homens supra-históricos que eles possuem mais sabedoria do que nós, desde que estejamos certos de possuir mais vida do que eles: pois assim nossa ignorância terá de qualquer modo mais futuro do que a sua sabedoria. E para que não subsista absolutamente nenhuma dúvida quanto ao sentido desta contradição entre vida e sabedoria, quero utilizar em meu auxílio um antigo procedimento testado e aprovado e apresentar diretamente algumas teses. A 1 vistoria, uma vez que se encontra a serviço da vida, se encontra a serviço de um poder a-histórico, e por isto jamais, nesta hierarquia, poderá e deverá se tornar ciência pura, mais ou menos como o é a matemática. Mas a pergunta "até que grau a vida necessita em geral do auxílio da história?" é uma das perguntas e preocupações mais elevadas no que concerne à saúde de um homem, de um povo, de uma cultura. Pois, em meio a um certo excesso de história, a vida desmorona e se degenera, e, por fim, através desta degeneração, o mesmo se repete com. a própria história. 2. Mas que a vida necessite da história precisa ser tão claramente concebido quanto a formulação que precisará ser posteriormente demonstrada - que um. excesso de história prejudica o vivente. A história é pertinente ao vivente em três aspectos: ela lhe é pertinente conforme ele age e aspira, 18 FRIEDRICH NIETZSCHE preserva e venera, sofre e carece de libertação. A esta tripla ligação correspondem três espécies de história, uma vez que é permitido diferenciar entre uma espécie monumental: uma espécie antiquária e uma espécie crítica de história. A história diz respeito antes de tudo ao homem ativo e poderoso, ao homem que luta em uma grande batalha e que precisa de modelos, mestres, consoladores e que não permite que ele se encontre entre seus contemporâneos e no seu presente. É desta forma que ela parecia a Schiller: pois, como dizia Goethe, nosso tempo é tão ruim que o poeta não encontra mais na vida humana à sua volta nenhuma natureza utilizável. Para retomar os que agem, Polybio, por exemplo, denomina a história política como preparação correta para o governo de um Estado e a mestra mais primorosa que, por intermédio da lembrança dos infortúnios alheios, nos exorta a suportar firmemente as oscilações da sorte. Quem aprendeu a reconhecer aí o sentido da história deve ficar aborrecido de ver os viajantes curiosos ou os micrologistas desagradáveis tentando escalar as pirâmides de grandes eras do passado; lá onde ele encontra a inspiração para imitar e fazer melhor, não deseja se deparar com o passeante que, ávido por distração ou excitação, vagueia como se estivesse entre os tesouros pictóricos acumulados em uma galeria. Para que o homem de ação não se desanime e sinta nojo em meio aos passeantes fracos e sern esperança, em meio aos seus contemporâneos que aparentemente agem, mas que em verdade permanecem apenas agitados e irrequietos, ele olha para trás e interrompe o curso até sua meta, a fim de respirar pelo menos uma vez. Mas sua meta é uma felicidade qualquer, talvez não a sua própria e sim, freqüentemente, a de um povo ou a da humanidade como um todo; ele foge da resignação e utiliza a história como um meio contra a resignação. Na maioria das vezes não há o aceno de nenhum pagamento a não ser a fama, ou 8 9 SEGUNDA CONSIDERAÇÃO INTEMPESTIVA 19 seja, a candidatura a urn lugar de honra no templo da história onde ele mesmo pode ser uma vez mais mestre, consolador e admoestador. Pois o seu lema é: aquilo que uma vez conseguiu expandir e preencher mais belamente o conceito "homem", também precisa estar sempre presente para possibilitar isso. Que os grandes momentos na luta dos indivíduos formem uma corrente, que como uma cadeia de montanhas liguem a espécie humana através dos milênios, que, para mim, o fato de o ápice de um momento já há muito passado ainda esteja vivo, claro e grandioso - este é o pensamento fundamental da crença em uma humanidade, pensamento que se expressa pela exigência de uma história monumental. Mas justamente nesta exigência de que o grandioso deve ser eterno inflama-se a luta mais terrível. Pois todo o resto que vive grita "não"! O monumental não deve surgir - esta é a solução contrária. O hábito embrutecido, o pequeno e baixo preenchendo todos os recantos do mundo, fumegando em torno de tudo o que é grandioso como o ar pesado da terra, se lança como obstáculo, enganando, reprimindo, sufocando o caminho que o grande tem de percorrer até a imortalidade. Este caminho, no entanto, con: duz através de cérebros humanos! Através dos cérebros de animais temerosos e de vida curta que sempre emergem uma vez mais para as mesmas penúrias e só afastam de si, com esforço, a degradação por um curto espaço de tempo. Pois eles só querem a princípio uma coisa: viver a qualquer preço. Quem poderia suspeitar neles esta difícil corrida de tochas característica da história monumental, onde apenas o que é grande sobrevive! E, contudo, sempre despertam novamente alguns que se sentem tão felizes considerando a grandeza passada e fortalecidos através de sua contemplação. Tudo se lhes dá como se a vida humana fosse uma coisa maravilhosa e como se os frutos mais belos desta planta amarga soubessem que alguém antes caminhou orgulhoso 20 FRIEDRICH NIETZSCHE e forte por esta existencia, um outro meditativo, um terceiro misericordioso e solícito - mas todos deixando uma doutrina atrás de si mesmos, a daquele que vive mais belamente, que não respeita a existencia. Enquanto o homem vulgar assume o espaço de tempo da existência de maneira tão acabrunhada, séria e ávida, aqueles homens sabiam, em seu caminho para a imortalidade e para a história monumental, trazer para a existência um riso olímpico ou ao menos um escárnio sublime; freqüentemente eles entraram com ironia em seus túmulos - pois o que havia neles a enterrar! Somente o que sempre os oprimira como escória, resíduo, vaidade, animalidade e o que agora cai no esquecimento, muito depois de eles o terem abandonado ao seu desprezo. Mas uma coisa irá viver, o monograma de sua essência mais íntima, uma obra, um feito, uma rara iluminação, uma criação: ela viverá porque a posteridade não pode prescindir dela. Nesta forma mais transfigurada, a fama é algo mais do que a parte mais deliciosa de nosso amor-próprio, tal como Schopenhauer a denominou, ela é crença no companheirismo e na continuidade do que há de grandioso em todos os tempos, ela é um protesto contra a mudança das gerações e a perecibilidade. Através de que se mostra útil para o homem do presente a consideração monumental do passado, a ocupação com o que há de clássico e de raro nos tempos mais antigos? Ele deduz daí que a grandeza, que já existiu, foi, em todo caso, possível uma vez, e, por isto mesmo, com certeza, será algum dia possível novamente; ele segue, com mais coragem, o seu caminho, pois agora suprimiu-se do seu horizonte a dúvida que o acometia em horas de fraqueza, a de que ele estivesse talvez querendo o impossível. Admitindo-se que alguém acreditasse não serem necessários mais do que uma centena de homens produtivos, educados em um novo espírito e atuantes, para dar um fim neste tipo de educação SEGUNDA CONSIDERAÇÃO INTEMPESTIVA 21 que hoje se tornou moda na Alemanha, o quanto não o fortaleceria saber que a cultura da Renascença se elevou por sobre os ombros de uma tal multidão de cem homens. E, contudo - para aprender com o mesmo exemplo imediatamente uma coisa nova - o quão inexata, fluida e pendente seria essa comparação! O quanto da diversidade precisa ser desconsiderado aí para que a comparação possa produzir aquele efeito fortalecedor, o quão violentamente a individualidade do passado deve se encaixar em uma forma universal e o quanto todos os seus ângulos e linhas acentuados precisam ser destruídos em favor da concordância! No fundo, aliás, o que foi possível uma vez só se poderia produzir uma segunda vez como possível, se os pitagóricos tivessem razão ern acreditar que uma mesma constelação dos corpos celestes também se deveria repetir, igualmente, sobre a terra, e isto até os eventos singulares e diminutos: de modo que sempre e de novo, quando as estreias estivessem em uma certa posição umas em relação às outras, um estóico se ligaria a um epicurista para matar César e novamente em uma outra relação Colombo descobriria a América. Somente se a terra sempre começasse a cada vez de novo sua peça teatral a partir do quinto ato, somente se estivesse assegurado que o mesmo complexo de motivos, o mesmo deus ex machina, a mesma catástrofe se repetiria em determinados intervalos, oj>_oderosq teria o direito de cobiçar a história monumental em sua plena veracidade icônica, isto é, cada fato em sua peculiaridade e unicidade exatamente formada: provavelmente, portanto, não antes de os astrônomos terem se tornado uma vez mais astrólogos. Até aí a história monumental não precisará utilizar aquela plena veracidade: ela sempre aproximará o desigual, generalizando-o e, por fim, equiparando-o; ela sempre enfraquecerá novamente a diversidade dos motivos e ensejos a fim de apresentar o çffectus monumental como modelo e digno de 22 FRIEDRICH NIETZSCHE imitação, à custa das causae: de maneira que se poderia denominar este efeito, uma vez que ele abstrai o máximo possível das causas, com um pouco de exagero, como urna coletânea dos "efeitos em si", como acontecimentos que se tornam efeito para todos os tempos. O que é celebrado nas festas populares, em comemorações religiosas ou de guerra, é propriamente um tal "efeito em si": é ele que não deixa dormir os ambiciosos, que se encontra para os empreendedores como um amuleto junto ao coração, mas não o conexas verdadeiramente histórico entre causa e efeito, que, completamente conhecido, apenas demonstraria que jamais poderia acontecer algo inteiramente igual em meio ao jogo de dados do futuro e do acaso. Enquanto a alma da historiografía residir nos grandes estímulos que um homem poderoso retira dela, enquanto o passado precisar ser descrito como digno de imitação, como imitável e como possível uma segunda vez, aquela alma estará em todo caso correndo o risco de se tornar algo distorcido, embelezado e, com isto, próximo da livre invenção poética; sim, há tempos que não conseguem estabelecer distinção nenhuma entre um passado monumental e uma ficção mítica: pois de um mundo podem ser extraídos exa; tamente os mesmos estímulos que do outro. Se a considerai ção monumental do passado governa sobre os outros tipos I de consideração, ou seja, sobre o tipo antiquário e o tipo [ crítico, então o passado mesmo é prejudicado: grandes segmentos do passado são esquecidos, desprezados e fluem como uma torrente cinzenta ininterrupta, de modo que apenas fatos singulares adornados se alçam por sobre o fluxo como ilhas: nas raras pessoas que se tornam em geral visíveis salta aos olhos algo não natural e estranho, semelhante ao quadril de ouro que os discípulos de Pitágoras supunham ter visto em seu mestre. A história monumental ilude por meio de analogias: através de similitudes sedutoras, ela SECUNDA CONSIDERAÇÃO INTEMPESTIVA 23 impele os corajosos à temeridade, os entusiasmados ao fanatismo. E se imaginarmos esta história nas mãos e cabeças de egoístas talentosos e de salafrários exaltados, então impérios podem ser destruídos, príncipes assassinados, guer>ras e revoluções podem ser provocadas e a quantidade de "efeitos em si" históricos, isto é, de efeitos sem uma causa suficiente, aumenta de novo. Mas é o bastante lembrarmos os danos que a história monumental pode causar entre os homens de poder e de ação, sejam eles bons ou maus: que efeito ela não provoca, porém, quando os impotentes e os indolentes se apoderam e se servem dela! Tomemos o exemplo mais simples e mais freqüente. Imaginem-se as naturezas não-artísticas e as artisticamente fracas, blindadas e armadas pela história monumental dos artistas: contra quem elas agora vão apontar as suas armas?!? Contra seus arquiinimigos, os espíritos artísticos fortes, ou seja, contra os únicos realmente capazes de aprender de uma forma verdadeira a partir daquela história, isto é, em nome ^da vida, e de transformar o que foi aprendido em uma práxis elevada. Então, o caminho é vedado e o ar, obscurecido, quando se dança idolátrica e zelosamente em volta de um monumento semiconcebido de algum grande passado, como se se quisesse dizer: "Vede, esta é a arte verdadeira e efetiva: o que vos importa os que vêm a ser e os que querem!" Esta chusma dançante aparentemente possui até mesmo o privilégio do "bom gosto": pois o criador sempre se encontrou em desvantagem frente ao que apenas fica olhando e não coloca ele mesmo as mãos na massa; exatamente como em todos os tempos o homem politizado das tabernas sempre foi mais inteligente, mais justo e prudente do que o es-tadista que efetivamente governa. Todavia, se quisermos transpor o referendo popular e a maioria numérica para o domínio da arte e obrigar o artista a se autodefender ante o foro dos que não fazem absolutamente nada em termos 24 FRIEDRICK NIETZSCHE estéticos, então pode-se ter certeza de antemão de que ele será condenado: não apesar de, mas justamente porque seu juiz proclamou, festivamente, o cânone da arte monumental, ou seja, segundo o esclarecimento dado, o cânone da arte que em todos os tempos "produziu efeito": na medida em que para o juiz toda e qualquer arte que, por ser contemporânea, ainda não é monumental, parece-lhe em primeiro lugar desnecessária, em segundo, desprovida da pura inclinação e, em terceiro, desprovida mesmo da autoridade da história. Em contrapartida, seu instinto lhe revela que a arte poderia ser aniquilada pela arte: o monumental não deve ressurgir jamais; e, para isso utiliza a autoridade que o monumental tem a partir do passado. Assim, os juízes são conhecedores de arte porque gostariam de pôr de lado a arte em geral; assim, se comportam como médicos de quem copiaram, no fundo, o posto de envenenadores; assim, eles cunham o seu paladar e o seu gosto, a fim de esclarecer a partir de seus mimos porque rejeitam, teimosamente, os alimentos artísticos mais nutritivos que lhes são oferecidos. Pois eles não querem que o grande surja: seu meio para isto é dizer: "Vede, o grande já está aí!" Em verdade, o grande que já está aí lhes importa tão pouco quanto o grande que surge: sua vida dá provas disto. A história monumental é um traje mascarado, no qual seu ódio contra o que é poderoso e grande em seu tempo se faz passar por uma admiração saciada pelo que há de grande e poderoso nos tempos passados. Envoltos neste disfarce, eles invertem o sentido próprio daquele tipo de consideração histórica e o transformam em seu contrário; quer eles o saibam claramente ou não, agem em todo caso desta forma, como se o seu lema fosse: deixem os mortos enterrarem os vivos. Todas as três espécies de história existentes só encontram plenamente o que lhes cabe em um único solo e sob um único clima: em qualquer outra condição a história se SEGUNDA CONSIDERAÇÃO INTEMPESTIVA 25 transforma em uma excrescência deserrificadora. Se o homem que quer criar algo grandioso precisa efetivamente do passado, então ele se apodera dele por intermédio da história monumental; em contrapartida, quem quer fincar pé no familiar e na veneração do antigo cuida do passado como o historiador antiquário; e somente aquele que tem o peito oprimido por uma necessidade atual e que quer a qualquer preço se livrar do peso em suas costas carece de urna história crítica, isto é, de uma história que julga e condena. Alguns infortúnios são causados pela transplantação impensada destas árvores: o crítico sem necessidade, o antiquário sem piedade, o conhecedor do grande sem o poder do grande, são tais árvores alienadas de seu solo materno natural e, por isto, degeneradas. 3. Assim, a história pertence em segundo lugar ao que preserva e venera, àquele que olha para trás com fidelidade e amor para o lugar de onde veio e onde se criou; por intermédio desta piedade, ele como que paga pouco a pouco, agradecido por sua existência. Conforme cuida, com mão muito precavida, do que ainda existe de antigo, busca preservar as condições sob as quais surgiu para aqueles que virão depois dele - e assim ele serve à vida. A posse dos bens de seus ancestrais altera o seu significado no interior de uma tal alma: pois esta alma é muito mais possuída por eles. O diminuto e circunscrito, o esfacelado e obsoleto mantêm sua própria dignidade e inviolabilidade pelo fato de a alma preservadora e veneradora do homem antiquário se transportar para estas coisas e preparar aí um ninho pátrio. A história de sua cidade transforma-se, para ele, nà história de si mesmo; ele compreende os muros, seu portão elevado, suas regras e regulamentos, as festas populares