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DOI: 10.18468/letras.2016v6n1.p29-43 Pasolini ensaísta: um estranho numa terra hostil Cláudia Tavares Alves1 Resumo: A contribuição de Pier Paolo Pasolini em jornais italianos de grande circulação será entendida, nesse artigo, como uma forma de atuação política e intelectual. A intenção é refletir sobre o papel que o escritor assume ao se dispor a pensar criticamente determinados questões culturais relacionadas à sociedade italiana. A partir desse ponto inicial, buscaremos mostrar como o autor se reconhece como um estranho em exílio nessa sociedade. Palavras-chave: Pier Paolo Pasolini; Intelectual; Jornalismo Italiano. Abstract: Pier Paolo Pasolini’s contribution to big Italian newspapers will be understood in this article as a way of political and intellectual acting. The main intention is to think about the role that the writer assumes when he begins to analyze critically the cultural issues related to the Italian society. From this point, we will try to show how the author recognizes himself as a stranger exiled in this society. Keywords: Pier Paolo Pasolini; Intellectual; Italian Journalism. Relacionando misantropia e crítica social, com o objetivo de refletir sobre o papel dos intelectuais na sociedade moderna, o crítico italiano Alfonso Berardinelli fez a seguinte observação: A verdade não é um bem social. Quem ama demais a verdade não está disposto à conversação, não consegue encontrar uma linguagem compreensível na sociedade. E se refugia na meditação solitária, no monólogo, naquele “lugar isolado” onde se refugia Alceste (BERARDINELLI, 2011, p. 51)2. O autoexílio de Alceste3 soa como uma medida extrema para alguém que não compreende o mundo nem o ser humano enquanto 1 Doutoranda em Teoria e História Literária na Universidade Estadual de Campinas. Endereço eletrônico: clautalves@gmail.com. Este artigo é resultado da pesquisa de Mestrado “O ensaísmo corsário de Pier Paolo Pasolini”, financiada pela FAPESP. 2 As traduções apresentadas ao longo desse artigo serão sempre nossas, se não mencionada uma versão publicada. 3 Alceste, personagem principal da peça O misantropo, de Molière, recusase a aceitar as hipocrisias e convenções sociais da França do século XVII e por isso escolhe se autoexilar da sociedade. Cf. Molière. O tartufo; O misantropo. Trad. Jenny Klabin Segall. São Paulo: Martins Fontes, 2005 (2ª ed.). https://periodicos.unifap.br/index.php/letras Macapá, v. 6, n. 1, 1º semestre, 2016. 29 ser social, e que por isso prefere isolar-se desse mundo ao invés de se sujeitar a ele. Só alguém que ama demais a verdade seria capaz de utilizar essa saída, afinal não há conversação, troca de ideias, linguagem compreensível entre quem conhece (ou acredita conhecer) totalmente a verdade e o restante dos homens. Nesse sentido, o que Berardinelli parece nos querer dizer é que é preciso amar menos a verdade para conseguir estabelecer comunicação entre os homens, evitando-se dessa forma a meditação solitária, o monólogo, o exílio social. Busca-se então uma definição de misantropia, que, para Berardinelli, mais do que aversão ao homem, é “crítica social (e aqui não importa o agente), é visão negativa de todos os comportamentos que fazem do ser humano um animal social” (BERARDINELLI, 2011, p. 49). Logo, misantropo é aquele que tem sobre a sociedade uma visão sempre crítica e negativa, “no momento em que a nega e a afasta de si” (BERARDINELLI, 2011, p. 57). Ou seja, nessa relação dúbia de refutar e se manter longe da sociedade, mas ao mesmo tempo mantê-la sob um olhar crítico e querer compreendê-la, o misantropo pode ser o intelectual que não conhece a verdade, mas que quer conhecê-la, pois a busca pela verdade que lhe sugere um mecanismo de descoberta do mundo. Em última instância, é preciso que o misantropo compreenda esse processo para reconhecer que ele não conhece, de fato, a verdade e que nesse sentido é bom não conhecê-la, pois só assim ele é capaz de conseguir se comunicar e ser ouvido – de não cair em total solidão. Essa discussão envolvendo misantropia e intelectualidade antecede os comentários e análises do crítico em relação a Pier Paolo Pasolini, já que não há dúvidas para Berardinelli de que o extrovertido escritor faz parte dessa gama de intelectuais misantropos que, em busca de uma verdade social, por vezes caem no abismo da incomunicabilidade. No caso do autor italiano, sua misantropia residia em sua recusa a aceitar o modo de vida burguês. https://periodicos.unifap.br/index.php/letras Macapá, v. 6, n. 1, 1º semestre, 2016. 30 Sua capacidade de olhar criticamente a sociedade italiana moderna como um ciclo de mutações sociais e culturais teria causado seu isolamento da convivência burguesa: Pasolini se transformou em nosso mais implacável e clamoroso crítico da sociedade modernizada, uma sociedade compacta como uma figura geométrica, uma máquina feita para destruir o passado e expulsar toda uma tradição cultural (...) Seus escritos descrevem uma sociedade culturalmente neototalitária. (BERARDINELLI, 2011, pp. 70-71). O crítico se mostra interessado em compreender como Pasolini, segundo sua própria verdade, construiu em seus escritos uma “sociedade culturalmente neototalitária”, tornando-se assim um dos críticos mais polêmicos da Itália dos anos 1970. Do ponto de vista de Pasolini, é toda uma tradição cultural que está em jogo nessa automatização do mundo em “figura geométrica” e máquina de destruição. Entende-se então por neototalitarismo uma retomada do momento repressor vivido nos tempos do fascismo, nas primeiras décadas do século XX: seria como se ele se repetisse a partir da década de 1960 devido aos avanços econômicos ocorridos no país, oprimindo manifestações culturais diversas. Em mais de um momento de sua obra, Berardinelli reflete sobre a importância de Pasolini enquanto crítico da sociedade italiana. No livro Autoritratto italiano: un dossier letterario 1945-1998 (1988), por exemplo, o autor coloca o ensaio “Acculturazione e acculturazione”4 em uma posição central entre outros textos críticos reunidos para expor pensamentos sobre o desenvolvimento da Itália no pós-guerra. Pasolini (colocado no centro dessa antologia) falou da passagem de um fascismo a outro; pior porque invisível, mais 4 Ensaio publicado no jornal italiano Corriere della Sera, em 9 de dezembro de 1973, com o título original “Sfida ai dirigenti della televisione” (PASOLINI, 2001, p. 290). Posteriormente, integrou o livro Scritti corsari (1975). Esclarecemos que, a partir desse momento, sempre que citarmos trechos de ensaios de Scritti corsari, utilizaremos a edição recolhida no volume completo Saggi sulla politica e sulla società (2001). https://periodicos.unifap.br/index.php/letras Macapá, v. 6, n. 1, 1º semestre, 2016. 31 “totalitário”, que pela primeira vez anula a Itália secular, transforma o corpo, o aspecto físico do cenário italiano e de quem o habita, submete à antropologia de nossa sociedade elementos totalmente novos (BERARDINELLI, 1998, p. 16). A escolha do crítico em inserir um texto de Pasolini no centro de sua antologia reflete a importância do escritor italiano por perceber determinados aspectos da sociedade italiana que precisariam ser estudados e analisados. Entende-se que esses aspectos já haviam sido explorados por outros estudiosos da sociologia, da economia etc., mas o mérito de Pasolini seria ter olhado para esses fenômenos de uma outra forma, colocando-os em seus textos sob uma nova perspectiva – o fim de uma certa tradição, a transformação física dos corpos. O escritor esquematiza nesse caso a substituição de um antigo fascismo político por outro tipo de fascismo ainda mais totalitário – mais perigoso por ser invisível, mais violento por ter sido capaz de alterar o aspecto físico das pessoas, mais cruel por desaparecer com manifestações socioculturais tradicionais. Por isso, esse texto se mostra central em um livro que pretende montar um dossiê literário italiano de 1945 a 1998: ele evidencia a maneira particular que Pasolini desenvolveu para tratar de questões pertinentes à sociedade e às suas mutações durante os anos seguintes à guerra. Aprofundando nossa análise no ensaio em questão, observamos de que maneira Pasolini relata um novo fascismo motivado por imposições do Centro. Esse novo padrão social atinge as periferias com enorme brutalidade, o que o torna muito pior do que o primeiro fascismo. Compreende-se Centro como referência à força hegemônica da burguesia que amplia sua ocupação de espaços com o fortalecimento da economia capitalista, de modo que seus valores políticos e culturais também se sobrepõem aos dos grupos sociais periféricos a ela. Pasolini começa a construir um raciocínio peculiar de como um novo padrão cultural, redutor e exclusivista, foi, dentro de poucos anos, ganhando terreno à medida que crescia a adesão ao modelo https://periodicos.unifap.br/index.php/letras Macapá, v. 6, n. 1, 1º semestre, 2016. 32 capitalista. Dando continuidade a essa maneira de pensar, as diferenças das periferias, que antes possuíam uma maneira própria de se organizar e se expressar, tendem a se igualar cada vez mais às imposições culturais do Centro e por isso desaparecer, culminando em um processo de aculturação. Elas poderão ser, no máximo, “toleradas”, mas não mais reconhecidas como uma cultura autônoma. Ou seja, esse novo poder, nomeado como neocapitalismo ou neofascismo ou, ainda, hedonismo capitalista, não deixaria mais espaço a outras formas de expressão cultural como as periféricas, havendo apenas uma concessão para elas existirem. Isso leva o autor a afirmar que “a ‘tolerância’ da ideologia hedonista desejada pelo novo poder é a pior das repressões da história humana” (PASOLINI, 2001, p. 290). Na verdade, o autor parece denunciar acima de tudo que o verdadeiro perigo desses modelos não é pregar simplesmente o consumismo, mas colocá-lo como única opção possível. Isto é, não basta que esse novo poder exista, é preciso que a sociedade como um todo o veja como se essa fosse a única ideologia que deva existir, em detrimento de todas as outras. A conclusão a que se chega é devastadora: O fascismo, eu gostaria de repetir, não foi substancialmente responsável nem ao menos por arranhar a alma do povo italiano; o novo fascismo, através de seus novos meios de comunição e de informação (especialmente a televisão) não apenas a arranhou, como a lacerou, a violentou, a sujou para sempre... (PASOLINI, 2001, p. 293). O novo fascismo aparece metaforizado como um animal faminto em caça que não se contentaria em apenas arranhar sua presa. É preciso dilacerar, violar. Essa violência, que reflete como essas mudanças reconhecidas por Pasolini atingem a sociedade italiana, é tanta que não há qualquer positividade em suas palavras: é a destruição total, a contaminação sem antídoto. Em seu discurso, diferentemente do fascismo histórico que, apesar de muitas perdas, https://periodicos.unifap.br/index.php/letras Macapá, v. 6, n. 1, 1º semestre, 2016. 33 foi sobretudo uma violência física que conseguiu ser superada, o novo fascismo é uma mutação da consciência dos indivíduos e por isso sem volta, é para sempre. As palavras de Pasolini assustam um leitor desprevenido. O escritor é implacável em sua argumentação, de forma que saímos de seu ensaio carregados por uma tomada de consciência dilacerante. Porém, em um segundo momento, ao voltarmos para o texto, desconfiamos do tom apocalíptico do escritor e conseguimos repensar suas afirmações categóricas e suas generalizações, pois há perguntas que o ensaísta deixa sem resposta, ou antes, nem chega a fazê-las a si mesmo. Somos nós, leitores de seus ensaios, que temos que concluir esse exercício de interpretação e análise. O que podemos observar de maneira clara é que, quando escreve “Acculturazione e acculturazione”, em dezembro de 1973, Pasolini se encontra em um período muito específico na elaboração de sua obra. Naquele momento, seu ensaísmo jornalístico se intensifica e seus textos de intervenção se tornam centrais na constituição de sua figura de homem público. O escritor, que já iniciara sua produção para periódicos há anos, se mostra cada vez mais interessado e empenhado em analisar a sociedade italiana sob certos aspectos econômicos, políticos, culturais e sociais, utilizando um tom extremamente crítico e combativo e meios de comunicação mais abrangentes. Sua obra, todavia, não ficará reduzida a essa atividade; a produção do poeta, cineasta e romancista continuará intensa, mas seu reconhecido tom apocalíptico, de intervenção social explícita, ganha força nesse contexto de crítica à sociedade. Nesse processo de entender os mecanismos de desenvolvimento do modelo capitalista burguês na sociedade italiana e denunciá-los, Pasolini continuará a utilizar sua produção como meio de combate. Sua escrita em periódicos de grande circulação funcionará como uma tentativa de desvendar o que chama de “revolução antropológica”. https://periodicos.unifap.br/index.php/letras Macapá, v. 6, n. 1, 1º semestre, 2016. 34 Esse termo, cunhado e utilizado em vários momentos 5 pelo escritor, designa o contexto de mutação dos valores existentes na Itália em vários âmbitos. Em primeiro lugar, o autor entende que esses novos valores ainda não foram “nomeados”, pois por enquanto são existenciais, são apenas vividos pelos italianos. Em segundo lugar, a consolidação dessas mudanças nas classes médias deve ser entendida como uma revolução – do tipo antropológica – por alterar seus antigos valores tradicionais e católicos: As classes médias mudaram radicalmente – diria antropologicamente: seus valores positivos não são mais os valores sanfedistas e clericais, mas são os valores (ainda vividos existencialmente e não “nomeados”) da ideologia hedonista do consumo e da consequente tolerância modernística de tipo americano. Foi o mesmo Poter – através do “desenvolvimento” de produção de bens supérfluos, da imposição da ânsia pelo consumo, da moda, da informação (sobretudo, de maneira imponente, da televisão) – que criou tais valores, arremessando cinicamente ao mar os valores tradicionais e a própria Igreja, da qual era símbolo (PASOLINI, 2001, p. 308). Observamos que para desenhar esse novo momento social, o escritor procura demonstrar como a nova forma de poder, não mais sujeita à igreja católica como era antigamente, está agora ligada a uma nova religião: o “hedonismo de consumo”. O suposto desenvolvimento econômico – e alienante – está materializado, por exemplo, na produção de mercadorias supérfluas e na indústria da moda, o que corroboraria que essa nova forma de consciência baseia-se na “história da burguesia”, a qual elege o consumismo como sua principal prioridade. A partir desse esclarecimento, condena-se sobretudo o “genocídio cultural”, ou seja, a violenta padronização cultural que esse novo modelo econômico impõe, por exemplo, por meio do Conferir, por exemplo, “Studio sulla rivoluzione antropologica in Italia” (PASOLINI, 2001, p. 307) e “Ampliamento del ‘bozzetto’ sulla rivoluzione antropologica in Italia” (PASOLINI, 2001, p. 325), ambos publicados em Scritti corsari. 5 https://periodicos.unifap.br/index.php/letras Macapá, v. 6, n. 1, 1º semestre, 2016. 35 desaparecimento da cultura camponesa, cooptada pelos ideais burgueses: “A Itália camponesa e paleoindustrial desmoronou, se desfez, não existe mais, e em seu lugar há um vazio que provavelmente espera para ser preenchido por uma completa burguetização” (PASOLINI, 2001, pp. 308-309). A variedade cultural italiana, sugerida pelas figuras do camponês e do paleoindustrial, estaria em via de desaparição devido à força do novo capitalismo, do triunfo do mundo da mercadoria que instiga o consumo de bens como uma atividade primordial. Diante disso, todos os italianos se transformariam em aspirantes a viver e a corroborar os valores da burguesia. Para responder à violência dessa constatação, Pasolini escolhe o termo “genocídio” para designá-la. Faz-se referência a um tipo de genocídio ideológico, considerando-o tão ou mais grave que um genocídio físico por exterminar valores ao invés de corpos. A supressão das liberdades culturais das massas, do ponto de vista do autor, seria mais grave do que fuzilamentos e carnificinas ocorridos no início do século, pois alteraria para sempre um certo modo de vida. Essa é também a orientação, como já observado no ensaio “Acculturazione e acculturazione”, quando se acusa a existência de um novo fascismo em comparação ao velho fascismo. O velho fascismo, na busca por estabelecer um ideal de homem italiano, fazia distinções sociais por meio de um discurso retórico humanístico, enquanto que o novo fascismo tenderia a igualá-las de maneira pragmática. Ou seja, aquilo que o antigo fascismo buscava fazer por meio de argumentações retóricas ainda humanistas, o novo conseguiria realizar por meio de uma nova retórica, não mais humanista, porém em conformidade com um modelo americanizado de economia – e de vida, enfim. Aqueles que ousassem ser diferentes, isto é, resistir de alguma forma ao padrão de consumo e de comportamento designados pelo neocapitalismo, seriam apenas incorporados ao https://periodicos.unifap.br/index.php/letras Macapá, v. 6, n. 1, 1º semestre, 2016. 36 sistema por uma “falsa tolerância”, afinal “não possuir um automóvel e não fazer parte de um casal, onde todos ‘devem’ ter um automóvel e ‘devem’ ser um casal (bifronte monstro consumístico) não pode ser considerada se não uma grande desgraça, uma intolerável frustração” (PASOLINI, 2001, p. 484). Com esses termos Pasolini conclui que não há um verdadeiro progresso na desenvolvimento Itália durante ocorrido esse está período, preso a pois amarras qualquer puramente econômicas, a acumulações materiais e a liberdades consentidas. No ensaio “Sviluppo e progresso”6, o ensaísta contrapõe tais termos buscando compreender o que ocorre e o que se esperaria que ocorresse no país após uma revolução tecnológica: “o ‘progresso’ é portanto uma noção ideal (social e política), enquanto o ‘desenvolvimento’ é um fato pragmático e econômico” (PASOLINI, 2001, p. 456). Para o autor, o verdadeiro progresso só existiria se ele ocorresse em outras esferas além da econômica. A existência de indústrias diversas, de tecnologias avançadas e de meios de produção em massa está claramente longe do progresso ideal concebido por Pasolini. No mundo descrito, a formação política e social dos italianos de 1970, esperada pelo escritor, é substituída por valores que giram ao redor da ideia americanizada do consumo de mercadorias. Ou seja, a modernização econômica dos meios de produção gerou o desenvolvimento da Itália, mas não seu progresso. * Pensar sobre esse homem de cultura refletindo o tempo presente nos coloca outras indagações, tal como: qual seria a função de um intelectual enquanto figura pública no mundo contemporâneo? Se partirmos do pressuposto de que Pasolini é um pensador da sociedade italiana que se propõe a escrever ensaios 6 Texto inédito em Scritti corsari (PASOLINI, 2001, p. 455). https://periodicos.unifap.br/index.php/letras Macapá, v. 6, n. 1, 1º semestre, 2016. 37 para um grande jornal, precisamos entender primeiramente qual é seu objetivo enquanto homem público. O crítico literário Jean Starobinski, falando sobre o ensaísmo de Michel de Montaigne e sua concepção de serviço público, diz que Gostaria que os homens de nosso tempo se lembrassem da injunção de Montaigne: é preciso tomar partido, aplicando a intenção... tanto minha palavra como minha lealdade são, como o restante, peças deste corpo comum: sua melhor realização é o serviço público; tenho isto como pressuposto. (...) Eis aí, pronunciadas em voz alta, lições de engajamento, de resistência civil, de tolerância. O desafio maior, aqui, não é a verdade do autorretrato: é a obrigação cívica e o dever de humanidade (STAROBINSKI, 2011, p. 20). Starobinski defende que a obra do provável precursor do ensaísmo seria mais do que um autorretrato7, pois seria uma ação de “resistência civil”, um ato cívico. Em primeiro lugar, isso coloca em evidência uma concepção inicial de intelectual escritor: existe o pressuposto de que a melhor maneira de utilizar suas palavras é no âmbito público. Em segundo lugar, podemos pensar que os ensaios, apesar de terem como pano de fundo análises pessoais, por vezes até pautadas em experiências próprias, são textos críticos que se destinam a um leitor “público”. Transpondo essas questões para a produção pasoliniana, Bellocchio observa que, na realidade, o ensaísta italiano está em conflito entre a esfera privada e a coletiva. Acerca da atuação política do escritor, por exemplo, o crítico reconhece uma contradição da concepção pessoal de Pasolini sobre política, a qual está relacionada à sua vocação natural de ser um líder político, em oposição a sua intervenção coletiva na sociedade que por vezes nega essa vocação: Essa discussão é fomentada pelo polêmico prefácio “Ao Leitor” que Montaigne escreve para sua obra Os ensaios. Nele o autor afirma que seu livro não tem “outro fim além do doméstico e privado” e que é ele mesmo “a matéria do [seu] livro” e que por isso não deve ser lido por ninguém que não seus parentes e amigos (MONTAIGNE, 2010, p. 37). 7 https://periodicos.unifap.br/index.php/letras Macapá, v. 6, n. 1, 1º semestre, 2016. 38 Sentir-se, como era, um líder, um guia, significava para ele a emersão de responsabilidades coletivas, ético-pedagógicas, enfim, políticas. O paradoxo é que essa vocação desperta com uma igualmente forte e profunda aversão à política. Uma contradição insanável, que permanecerá até o fim, e que determina a peculiaridade de sua figura pública e de suas incursões, por outro lado ininterruptas, no campo da política (PASOLINI, 2001, p. XVII). Parece que questionar o contexto mundano que o cerca é uma ação intrínseca à existência do ensaísta e que constitui aquela sua “necessidade ‘cívica’ de intervir na luta miúda e cotidiana” (PASOLINI, 1982, p. 35). Em uma entrevista a Jean Duflot, declara que sua contestação é “um modo de ser, como um dado ontológico” e que “ela está aí, ela existe enquanto tal. Seu valor mais certo é o de existir. É portanto sua primeira justificativa” (DUFLOT, 1983, p. 71). Nesse sentido, o “distanciamento das coisas” e “descompromisso” são duas características de sua natureza que Pasolini quer a todo custo negar (DUFLOT, 1982, p. 35). Por isso, levando essa discussão para o questionamento sobre qual o papel de um intelectual na sociedade, afirma que este “tem o dever de exercer sua função crítica sobre práticas políticas globais, de ‘destotalizar’, senão, que intelectual seria ele?” (DUFLOT, 1983, p. 159). Isto é, acredita-se que contestar a realidade é parte integrante de sua natureza e que essa contestação deve ser levada para o campo político como uma primazia para alguém que se considera um intelectual. Mesmo enquanto artista é preciso manter essa linha de atuação e romper com o óbvio vigente: Se um fazedor de versos, de romances, de filmes encontrar solidariedade, conivência ou compreensão na sociedade em que atua, não se trata de um autor. Um autor não pode deixar de ser um estranho numa terra hostil (PASOLINI APUD LAHUD, 1993, p. 137). Esse tipo de atitude contestatória, por outro lado, não foi muitas vezes compreendida tão naturalmente. O crítico Gianni Scalia, logo após a morte de Pasolini, reconhece que o escritor não https://periodicos.unifap.br/index.php/letras Macapá, v. 6, n. 1, 1º semestre, 2016. 39 foi entendido por muitos críticos que o julgavam como um personagem provocador. Para ele, seria preciso antes entender que Pasolini buscava ser ajudado em sua busca por “tentativas de explicação” e “decifração dos sintomas”: Pasolini foi interpretado, julgado, classificado, comemorado. Mas não foi compreendido. E ele, ao contrário, pedia para ser compreendido, ou melhor, em suas palavras, “ajudado” na “busca pelos porquês” da condição presente, social, política, cultural, moral; ajudado nas “tentativas de explicação”, como as chamava, isto é, na decifração dos sintomas. Eram, ao mesmo tempo, perguntas e busca por respostas (MORAVIA ET AL., 1978, pp. 108-109). Seus ensaios corsários seriam simultaneamente “perguntas e uma busca por respostas”, ou antes, “tentativas de explicação”, ao invés de verdades irrevogáveis. Pensando em Pasolini como um homem público, essa seria sua meta ao escrever textos críticos: buscar explicações, mesmo que não definitivas, para os “sintomas” que identificava na sociedade. O problema é que quando Pasolini se coloca publicamente como quem julga a sociedade, recai sobre ele, inevitavelmente, o peso de ser uma autoridade, e é esse peso que ele tentou evitar mesmo sendo um homem público reconhecido por toda a Itália. Para Duflot, diz que: Ora, sempre me esforcei por ignorar que sou igualmente uma figura “pública”, com os deveres que isto implica. Sempre me conduzi o pior possível, ou seja, como eu queria. Mas foi mais forte do que eu: uma espécie de autoridade abominável que me atribuem, se preciso mesmo controvertida, investiu-me de repente, apropriando-se de toda a minha vida (...) (DUFLOT, 1983, pp. 7-8). Ainda na década de 1960, no texto de abertura de sua coluna “Il Caos”, há uma reflexão sobre ser uma pessoa pública e a autoridade que isso implica. Retomando o porquê de escrever uma coluna no jornal, faz uma ressalva: https://periodicos.unifap.br/index.php/letras Macapá, v. 6, n. 1, 1º semestre, 2016. 40 Sei vagamente que minha obra, literária e cinematográfica, me coloca – quase profissionalmente – no rol das pessoas públicas. Pois bem: o problema é que me recuso a me comportar como pessoa pública. Se conquistei alguma autoridade, imerecidamente, através daquela minha obra, estou aqui para colocá-la inteiramente em discussão: como, de resto, sempre fiz (PASOLINI, 1982, p. 36). Observamos que em mais de um momento o escritor expôs em seu discurso uma intenção de querer ser apenas uma pessoa como qualquer outra. Mas é ele quem também reconhece que sua condição de homem público lhe coloca algumas questões com as quais, mesmo não querendo, é preciso lidar. Por mais que Pasolini se defenda dessa condição e se recuse a ser uma pessoa pública, escrever para jornais e não se tornar uma figura de autoridade é algo pouco provável. Além disso, ele já era um escritor e cineasta reconhecido na Itália por seus livros e filmes. Dessa forma, sua maneira de conviver com isso é colocando em questão, sempre que possível, sua função de autoridade, de intelectual. No limite, o que nos interessa é entender que a intenção de Pasolini é construir um discurso que possa defender uma verdade. Quando escreve o famoso “eu sei”, publicado como “Il romanzo delle stragi”8, o escritor parece relativizar essa questão quando se auto afirma como um intelectual capaz de “imaginar tudo o que não se sabe”. O ensaio, que começa com grandes pretensões de fazer revelações inéditas, caminha para essa intenção de, na verdade, dizer não o que se sabe, mas o que se pode imaginar: Eu sei os nomes dos responsáveis pelo que tem sido chamado de “golpe” (e que na realidade é uma série de “golpes” instituída como sistema de proteção do poder. (...) Eu sei. Mas não tenho provas. Não tenho nem sequer indícios. Eu sei porque sou um intelectual, um escritor que tenta acompanhar tudo o que acontece, conhecer tudo o que se escreve a respeito, imaginar tudo o que não se sabe ou que se cala; que articula fatos mesmo distantes, que reúne os cacos desorganizados e fragmentários de todo um quadro político 8 Publicado em 14 de novembro de 1974 no Corriere della Sera com o título “Che cos’è questo golpe?” (PASOLINI, 2001, p. 362). https://periodicos.unifap.br/index.php/letras Macapá, v. 6, n. 1, 1º semestre, 2016. 41 coerente, que restabelece a lógica ali onde parecem reinar a arbitrariedade, a loucura e o mistério (PASOLINI, 2015, pp. 249251). Falando sobre sua experiência de leitura desse texto, Franco Ferrucci comenta a desilusão que foi chegar ao meio do artigo e perceber que, na realidade, Pasolini não sabia todos aqueles nomes que ele prometia dizer. O crítico constata que havia no escritor uma “esperança já arcaica, segundo a qual o intelectual deve saber das coisas, como o filósofo, o xamã ou o profeta” (FERRUCCI, 1980-81, p. 17). Porém, é possível reconhecer que, mesmo não sabendo, existe ali um gesto crítico do texto, a reflexão intelectual proposta pela discussão sobre o que um intelectual deve ou não saber. Para o crítico e biógrafo Enzo Golino, a figura política de Pasolini exige uma precisão nesse sentido. O crítico afirma que “Pasolini não possuía tanto ideias políticas completamente formuladas, mas sim uma imaginação política muito criativa”. Utilizando um pensamento de Lionel Trilling que assume que o destino dos intelectuais é político e que é preciso insistir que política é imaginação e inteligência, o crítico conclui que “Pasolini mostrou, além do natural, também um talento político onde imaginação e inteligência – no sentido indicado por Trilling – encontraram um extraordinário ponto de fusão” (GOLINO, 1980-81, p. 22). Nesse sentido acreditamos que o corsarismo de Pasolini visava não apresentar uma conceituação definitiva do momento vivido na Itália, mas despertar, por meio de sua “imaginação política” de intelectual desajustado na sociedade em que vivia, uma reflexão em seus leitores. Finalmente, é o estudioso Gianni Scalia que defende que suspeitemos sempre de Pasolini, desconfiando de suas verdades e integrando o debate proposto em seus ensaios. Segundo o escritor, devemos ser “provocadores com esse provocador” para “não retonar à perfeita e direta navegação este corsário” (SCALIA, 1978, p. 69). https://periodicos.unifap.br/index.php/letras Macapá, v. 6, n. 1, 1º semestre, 2016. 42 Referências bibliográficas BERARDINELLI, Alfonso. Autorittrato italiano. Roma: Donzelli Editore, 1998. _______. Che intellettuale sei? Roma: Nottetempo, 2011. DUFLOT, Jean. Pier Paolo Pasolini: as últimas palavras do herege. Entrevistas com Jean Duflot. Trad. Luiz Nazário. São Paulo: Editora Brasiliense, 1983. FERRUCCI, Franco. Il J’accuse di Pasolini. Italian Quarterly, XXI-XXII, n. 82-83, 1980-1981. GOLINO, Enzo. Gli scritti politici di Pasolini. Italian Quarterly, XXI-XXII, n. 82-83, 1980-1981. MONTAIGNE. Os ensaios: uma seleção. Trad. Rosa Freire D’Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. MORAVIA, A.; Nicolini, R.; Siciliano, E.; Roncaglia, A. et al., Per conoscere Pasolini. Roma: Bulzoni & Teatro Tenda Editori, 1978. 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