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ELISÂNGELA MARCHETI
KELLY CRISTINA
LUCIANA MAIA
NOEMY DE FARIAS
SUZANNE MENDONÇA
VANESSA BARROS
FICÇÃO E HISTÓRIA
Trabalho apresentado junto à
disciplina de Literatura Brasileira
XV ministrada pela Professora
Doutora Flávia Amparo.
UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
INSTITUTO DE LETRAS
NITEROI, 31 DE MAIO DE 2011
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SUMÁRIO
PÁGINA
INTRODUÇÃO
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DESENVOLVIMENTO
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Romance
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Crônica
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Conto
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CONCLUSÃO
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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INTRODUÇÃO
O presente trabalho visa destacar os conceitos de ficção e história segundo a análise de obras
do escritor Machado de Assis, abordando contextos sociais, políticos que permearam a sociedade
brasileira no século XIX e como se dão as inserções dos mesmos no corpus literário escolhido.
Com a vastidão de escritos, propomos diferentes diálogos entre os conceitos acima referidos a
partir de três vertentes escolhidas: Romance, Crônica e Conto. As diversas leituras que serão
realizadas têm o objetivo de direcionar o leitor no aprofundamento da disciplina de Literatura
Brasileira em seu mais reconhecido referencial.
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DESENVOLVIMENTO
Romance
Contexto histórico
Para a análise dos escritos de Machado utilizados nesse trabalho, é necessário um estudo
histórico acerca dos momentos importantes da História brasileira, que acontecem na mesma
época em que o enredo de Esaú e Jacó se desenrola. Para fazermos este recorte do passado, é
imprescindível iniciarmos pela Guerra do Paraguai (1864-1870).
Na metade do século XIX o Brasil está sendo governado sob um regime monárquico,
por D. Pedro II. A Guerra do Paraguai foi um período importante da história brasileira, pois a
presença do Exército foi fundamental para a queda do Império. Estimulada pela Inglaterra, a
guerra aconteceu entre o Paraguai, Brasil, Argentina e Uruguai - estes três últimos formavam
a Tríplice Aliança e combatiam com a política expansionista nacionalista do ditador paraguaio
Solano López. A nação paraguaia vivia em bons tempos econômicos, porém sua política não
aceitava importações de países estrangeiros, o que não era tolerado pelo governo inglês que
não poderia expandir mais ainda sua economia. Assim, a Inglaterra articulou este conflito
levando outros países da América Latina a se sentirem ameaçados com a pretensão
expansionista paraguaia.
A guerra chega ao fim com a morte do ditador paraguaio e a única nação que lucrou foi
a Inglaterra. O Brasil saiu com uma extensa dívida externa devido a empréstimos com a
Inglaterra. Já o Exército brasileiro, do ponto de vista político, saiu fortalecido e consciente de
sua importância nacional. Representando a classe média, os oficiais se contrapunham à
aristocracia e o governo imperial, pois sempre foram marginalizados e sujeitos ao descaso das
autoridades civis. Além disso, durante a guerra o Exército contou com a participação de
muitos negros que lutaram ao lado de soldados, defendendo o abolicionismo e o
republicanismo.
É importante destacar a economia do Brasil neste período, ou seja, a segunda metade do
século XIX. São muitas as transformações que ocorrem e alteram o processo político
nacional. A modernização e o conseqüente crescimento das cidades foram importantes para o
crescimento intelectual e a difusão das idéias políticas. Além disso, o café torna-se produto
principal de exportação, e São Paulo torna-se o principal centro econômico do país.
Entretanto, a expansão da lavoura cafeeira esbarra na Lei Eusébio de Queirós, aprovada em
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1850, que proíbe o tráfico negreiro. O fim do tráfico foi uma exigência da Inglaterra para
ampliar seu mercado consumidor, uma vez que mais da metade da população brasileira era
composta de negros escravos. Esperava-se que, com a extinção do tráfico, logo chegaria o
término da escravidão. O trabalho assalariado se fez presente nas fazendas da nova
aristocracia paulista, o que substituía o trabalho escravo. E, necessariamente, este grupo
enfraqueceria a base dos grupos que apoiavam a Monarquia, uma vez que a aristocracia
cafeeira defendia a abolição da escravidão e fim do Império como forma de aspirar uma maior
modernização no país.
Diante de todas estas questões, tendo em vista tantas mudanças no país, e o governo
imperial não atendendo às aspirações das diferentes camadas sociais, vê-se claramente o
início da queda do regime monárquico.
Em meio a muita mobilização social a campanhas abolicionistas, em 1871 é promulgada
a Lei do Ventre Livre, em que o negro nascido no Brasil a partir desta lei é considerado livre.
Entretanto, não adiantava de nada a situação do negro, uma vez que, sendo menor, o filho
deveria ficar sob a tutela do dono de sua mãe até os oito anos e, após esta idade, o dono
poderia trocá-lo por indenização ou usufruir de seus trabalhos até os vinte e um anos. Ou seja,
a liberdade não existia de fato. Houve também outra lei que não foi nem um pouco eficiente, a
chamada Lei dos Sexagenários, em que se concedia liberdade aos escravos com mais de
sessenta e cinco anos, sendo que o índice médio de vida de um negro estava em torno de trinta
anos.
Finalmente, a escravidão é abolida com a Lei Áurea, no dia 13 de maio de 1888.
Assinada pela Princesa Isabel, a lei é sancionada enquanto D. Pedro II está em viagem.
Assim, o Brasil foi o último país independente do continente americano a abolir a escravidão.
Já no dia 15 de novembro de 1889, o regime republicano é instaurado quando um grupo
de militares do Exército, tendo Marechal Deodoro da Fonseca na liderança, dá um golpe de
estado, depondo o imperador e o presidente do Conselho de Ministros do Império, o Visconde
de Ouro Preto.
Possíveis leituras em Esaú e Jacó
O Romance retrata especificamente o período compreendido entre regime monárquico,
império, e o surgimento da república – levando em conta o teor denso dos aspectos políticos
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e as revoluções do século XIX em efervescência. Contudo a alusão bíblica já na nomeação da
obra “Esaú e Jacó”, desvirtua curiosamente, em primeira instância, o leitor dessas ocorrências.
É possível, então, prever – já que o destino dos principais personagens está nas
entrelinhas de um oráculo – uma breve interrogação no rosto desse leitor ao passar
rapidamente os olhos pelas páginas do livro e notar que foram necessários 121 capítulos para
o desenrolar da história de, não necessariamente do período bíblico, dois irmãos, já que
estamos falando de Machado e de seu fazer intertextual incansável.
“(...) Ao revelar tão obviamente sua própria tenuidade o enredo focaliza a atenção do
leitor menos na mensagem e mais no veículo do singnificante, em vez do significado.(...)”
(GLEDSON, p.162, 1986). As leituras que serão feitas a partir daqui a respeito dos
personagens, especificamente, somente tornaram-se possíveis por prévias análises do docente
responsável pelo encaminhamento da disciplina em outras obras, por aprofundamento em
leituras paralelas e por referências inseridas na própria obra.
Comecemos então por relatar fatos imprescindíveis para a análise. O romance inicia de
fato com a subida das irmãs Natividade e Perpétua ao morro do Castelo no propósito de
visitar Bárbara, mais conhecida como a cabocla, ou ainda o oráculo, responsável por revelar
acontecimentos futuros - no caso de Natividade sobre seus rebentos. Uma primeira referência
a ser destacada é esse processo de subida e descida a que Machado dedica o capítulo II do
livro. O processo de elevação alcança seu ápice no encontro místico com o oráculo e na
descida é perceptível a influência desse evento no comportamento de Natividade – de
incontida felicidade a personagem entrega a um mendigo uma esmola exorbitante para a
época: dois mil réis. Esse processo de subir a montanha encontra-se também no primeiro livro
de poesia do autor Crisálidas sob o nome de “No alto”.
Curioso é o entrelaçamento que Machado realiza, não só aqui como em outras
passagens que serão mencionadas, com o nome dado aos personagens. Natividade, a mãe, é o
nome primeiramente mencionado, mas seu real nome de batismo – capítulo primeiro – era
Maria. Perpétua, sua irmã, viúva – o marido, tenente de artilharia, morreu em combate na
guerra do Paraguai – e sem filhos é aquela que perdura fielmente em sua fé. Não por acaso é a
nomeadora dos gêmeos Paulo e Pedro. Não esquecendo ainda do pai, Agostinho José dos
Santos – absolutamente afirmador do teor sagrado na família.
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“(...) Vindo para o Rio de Janeiro, por ocasião da febre das ações (1855), dizem que
revelou grandes qualidades para ganhar dinheiro depressa. Ganhou logo muito e, fê-lo
perder a outros. Casou em 1859 com esta Natividade, que ia então nos vinte anos e não tinha
dinheiro, mas era bela e amava apaixonadamente. A Fortuna os abençoou com a riqueza. (...)
ele gastava largo e dava muitas esmolas.(...)” (ASSIS, p.23, 1982).
Um breve traço da ironia de Machado quanto ao cristianismo e ao judaísmo em
conexões diretas na personalidade de Santos: “(...) era uma criatura tirada da coxa de Abraão,
como diziam aqueles bons judeus, que a gente queimou mais tarde, e agora empresta
generosamente o seu dinheiro às companhias e às nações.” (ASSIS, p.26, 1982)
Voltemos, assim, à mescla desses elementos divinos em conexão absoluta com a
figura mística do oráculo.
“(...) O mistério estava nos olhos. Estes eram opacos, não sempre nem tanto que não
fossem também lúcidos e agudos(...) tão compridos e tão aguçados que entravam pela gente
abaixo, revolviam o coração e tornavam cá fora, prontos para nova entrada e outro
revolvimento(...) (ASSIS,p.13, 1982).
Tal conexão já nos havia sido demonstrada na obra Dom Casmurro quanto à família
de Bentinho. É importante ressaltar que em outra passagem do livro, Santos, sabendo da
consulta da esposa à cabocla, intenta recorrer a uma consulta espírita na tentativa de descobrir
o sexo das crianças – uma vez que os cônjuges não chegavam a um comum acordo.
A escolha dos nomes revela, dessa maneira, a posição elevada de Perpétua, produzida
sob o efeito de divinização durante sua oração - rezou o Credo durante a missa - resultando
no resgate dos apóstolos São Pedro e São Paulo na figura dos dois indivíduos. Tem- se então
que no dia 7 de abril de 1870 – datado na cultura brasileira como da abdicação de Dom Pedro
I – nascem os gêmeos da família Santos. Não só há esse jogo entre o misticismo e a
religiosidade como parte da construção da história desses indivíduos, como há a influência
dos futuros cargos que serão por eles assumidos na construção daquele período brasileiro. Já
temos então que para Machado, ficção e história não são rompimentos, são complementos e
extensões uma da outra.
Falemos agora dos personagens principais da obra. Esclarecido anteriormente que o
processo de escolha dos nomes parte de um processo de divinização de Perpétua, é possível
considerar a obra como o diálogo entre ficção e história através das inúmeras ironias dispostas
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por Machado ao longo do texto. O título do livro remete à história bíblica de dois irmãos
gêmeos chamados Esaú e Jacó, cujos pais são Isaque – descendente do patriarca Abraão - e
Rebeca – parente distante do patriarca. Estabelecendo um breve resumo do acontecimento
bíblico: um servo do patriarca é mandado a terras de seus parentes uma vez que aquele não
queria que o filho tomasse para si mulher de outra nação. O servo encontra a jovem perto de
um poço e por um sinal divino leva a jovem escolhida até Isaque e ambos são dados em
matrimônio. Rebeca, que antes era estéril, agora se encontra no período de gestação de não
apenas duas crianças, mas de duas nações.
“(...) E o Senhor lhe disse: Duas nações há no teu ventre, e dois povos se dividirão
das tuas entranhas, e um povo será mais forte do que o outro povo, e o maior servirá o
menor.(...)”.(Mateus 25:23).
Machado não propõe ao leitor, que, aliás, é parte do próprio livro - haja vista tantas
interferências do narrador para com ele - a reescritura bíblica. Propõe o diálogo entre outras
crenças, em contexto social e político diferenciado, em intertextualidades enriquecedoras
(principalmente através de suas ironias indispensáveis).
Considerando que nos antepassados a bênção era reservada aos primogênitos, é fato
que Esaú seria o favorecido na família. Chegando certa vez cansado da caça, Esaú renuncia ao
irmão sua bênção em troca de um prato de lentilhas. O acontecimento é reforçado com a
aproximação da morte de Isaque e a consequente passagem de toda a herança por parte do pai
a Jacó – disfarçado com as roupas de Esaú, peles e ainda auxiliado pela mãe. Jacó foi
considerado mentiroso pelo pai e teve de fugir para não ser morto pelo irmão. O que se passa
com Paulo e Pedro é diferenciado, uma vez que ambos representam dois diferentes ideais do
governo num mesmo patamar e tornam-se cada vez mais similares enquanto crescem.
Contudo a figura da mãe é um destaque importante aqui, assim como no contexto bíblico, na
passagem que será vista mais adiante com “A luta dos retratos” (Capítulo XXVI).
Prosseguindo então com a análise no Capítulo XVIII – “De como vieram crescendo”.
“Paulo era mais agressivo, Pedro mais dissimulado(...) Não digo com isto que um e
outro dos gêmeos não soubessem agredir e dissimular; a diferença é que cada um sabia
melhor o seu gosto, cousa tão óbvia que custa escrever.(...) Ao cabo, a mentira é alguma vez
meia virtude(...)”.
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O papel da mentira fica perceptível aqui com a presença, não aleatória, do apóstolo
Pedro que mesmo tendo afirmado a Jesus amá-lo por três vezes o negou três vezes também.
“(...) Disse-lhe Jesus: Em verdade te digo que , nesta mesma noite, antes que o galo
cante três vezes me negarás.(...) Ora, Pedro estava assentado fora, no pátio; e aproximandose dele uma criada disse: tu também estavas com Jesus, o Galileu. Mas ele negou diante de
todos, dizendo: não sei o que dizes.” (Mateus 26: 34, 69 e 70).
Considerando ainda o diálogo sobre a mentira dos meninos à mãe temos o seguinte
diálogo sobre o furto de um relógio da mãe:
“(...) Não sabendo mais que razão dessem, um deles, creio que Pedro, resolveu acusar
o irmão: - Foi ele mamãe! – Eu? Redarguiu Paulo. Foi ele mamãe, ele é que não disse nada.
– Foi você! – Foi você! Não minta! Mentiroso é ele!(...) (ASSIS, p.55, 1982).
Quanto a Paulo, ainda considerando as personalidades, é definido como agressivo. É
possível aludir tal caráter ao do apóstolo Paulo, já que no período em que a expansão do
Cristianismo extrapolou os limites de Jerusalém, Saulo – o fariseu( judeu e, também romano),
como era mais conhecido, antes da conversão – perseguia violentamente os corruptores da lei
judaica. Portanto é possível estabelecer mais um paralelo entre o conteúdo cristão e o judaico
dentro da obra.
Outra passagem que reafirma esse aspecto é o Capítulo XV – “Teste David cum
Sibylla”. O diálogo acontece entre Aires, Santos e o espírita Plácido na intenção de
compreender os muitos conflitos entre os irmãos.
“(...) O doutor foi à estante e tirou uma bíblia, encadernada em couro, com grandes
fechos de metal. Abriu a Epístola de São Paulo aos Gálatas, e leu a passagem do capítulo II
versículo 11, em que o apóstolo conta que, indo a Antioquia, onde estava São Pedro,
“resistiu-lhe na cara.”(...) Sem contar que este número onze do versículo, composto de dous
algarismos iguais, 1 e 1, é um número gêmeo, não lhe parece? – Justamente. E mais: o
capítulo é o segundo, isto é, dous, que é o próprio número dos irmãos gêmeos(...)”.(ASSIS,
p.48,1982)
Há ainda uma passagem a mais que mostra de maneira satírica os interesses de cada
irmão na política, suas desavenças e a clara intervenção da mãe nos conflitos sobreposta pelo
sutil desejo de competição preexistente: “A luta dos retratos” – Capítulo XXVI”
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“ (...) Mamãe, Paulo é mau. Se mamãe ouvisse os horrores que ele solta pela boca
fora(...);ainda não lhe tirei um olho... – Meu filho, não fales assim, é teu irmão. – Pois que
não se meta comigo(...) Como eu rezava por alma de Luís XVI, ele, para machucar-me bem,
rezava a Robespierre (...) Eu sempre lhe dei alguns cascudos... – Ai está! – Mas é que ele é
que me dava primeiro, porque eu punha orelhas de burro em Robespierre...Então, eu havia
de apanhar calado? – Nem calado, nem falando. – Então como? Apanhar sempre, não
é?(...)Afinal que têm vocês com um sujeito mau que morreu há tantos anos? – É o que eu
digo, mas ele não se emenda. – Pedro! Sossegue, ouça-me. – Mamãe sempre é contra mim. –
Não sou contra nenhum, sou por ambos, ambos são meus filhos.(...)Você será médico, disse
Natividade a Pedro, e você advogado. Quero ver quem faz as melhores curas, e ganha as
piores demandas.(...)”(ASSIS, p.73, 1982)
Prosseguindo com o aprofundamento nos personagens, temos uma figura intermediária
dos conflitos a pedidos de Natividade. Aparece no Capítulo XII – “Esse Aires” – sob a figura
de Conselheiro, segundo ele mesmo diz, nomeado pelo próprio imperador. Aires procura
mediar os conflitos de maneira muito perspicaz: é bom ouvinte, propõe soluções imediatas e
nunca discorda. Sua presença prevalece desde a preocupação da mãe com as rixas dos
meninos a partir de uma “inclinação” que o conselheiro tem por ela - e a qual não procura
esconder – até a morte de Flora. Não casou-se e não teve filhos. No Capítulo XLII, contudo,
não deixa escapar que poderia ser “Uma Hipótese” que Pedro e Paulo fossem seus filhos. Mas
qualquer dúvida sobre a infidelidade de Natividade é deixada de lado através de muitas
metaforizações do autor:
“(...) Ela, aos 40 anos, era a mesma senhora verde, com a mesmíssima alma
azul(...)Era a isenção, era o ter atravessado a vida intacta e pura. O cabo das Tormentas
converteu-se em cabo da Boa Esperança e ela venceu a primeira e a segunda mocidade, sem
que os ventos lhe derribassem a nau, nem as ondas a engolissem(...) A memória trazia-lhe o
sabor do perigo do passado. Eis aqui a terra encoberta, os dous filhos nados, criados e
amados da fortuna.” (ASSIS, p.59,1982)
Aires, para cada reflexão a que se propõe, a cada comportamento que lhe intriga, a
cada dado que não escapa de sua memória está no “Memorial”, inúmeras vezes citado nessa
obra. Está indicado pelo autor que
“Memorial de Aires” apresenta ligações com esse
romance, assim como todas as obras de Machado se correlacionam de alguma maneira. Já foi
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visto que Quincas Borba realiza sua interferência em Memórias Póstumas de Brás Cubas.
Correlações da parte de Machado não precisam ser necessariamente a olho nu.
Aires por vezes caminha só, por vezes encontra-se com Flora e Dona Cláudia, na
maioria das vezes ameniza conflitos entre Paulo e Pedro por conta dos sentimentos existentes
e relacionados à Flora. Após certo tempo observando os meninos, fica encarregado de
resolver a situação do triângulo amoroso que se estabelece em grande parte do romance, seja
pelas afrontas dos irmãos nas personificações do Império e do Estado, seja nos sentimentos
compartilhados entre Flora e Pedro, na maior parte do tempo, e também na eterna indecisão
de Flora quanto a quem escolher para si. Sabe-se que tanto tentou que de fato não alcançou a
resposta.
Aires é o responsável por todo o andamento da história, permite ao leitor adentrar ao
panorama social da época e particulariza cada fato contraditório ou cada intervenção e
posicionamento que provoca. Nem mesmo o confeiteiro Custódio consegue dissociar-se da
figura desse nobre Conselheiro do imperador.
A partir do capítulo XXX ocorre a entrada da “Gente Batista”. Essa família acaba por
aproximar-se bastante da família Santos e assim estreitam-se as relações entre todos os
componentes, especialmente entre os gêmeos e a filha de Batista.
“(...) homem de quarenta e tantos anos, advogado do cível, ex-presidente de província
e membro do partido conservador(...)Era alto, e o ar sossegado dava um bom aspecto de
governo. Só lhe faltava ação, mas a mulher podia inpirar-lhe; nunca deixou de consultá-la
nas crises de presidência.(...)
A esposa, Dona Cláudia, interferia arduamente nos negócios do marido como boa
entendedora de assuntos políticos, atenciosa ao cargo de presidência do marido e, portanto,
personificação do demônio na vida de Batista. Entende-se que não há decisão que se tome e
que não passe pelo crivo da mulher. A melhor referência à personalidade de Dona Cláudia,
não desmerecendo suas constantes andanças na rua do Ouvidor na procura de sanar suas
compulsividades consumistas, é a citação bíblica da tentação de Jesus quando esse caminhava
pelo deserto.
“(...) Vai-te Satanás; porque escrito está: Ao Senhor teu Deus adorarás, e a ele
servirás.” Então seguiu como na Escritura: “Então o deixou o Diabo; e eis que chegaram os
anjos e o serviram”.
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Nesse momento oportuno, inclua-se a “flor”: Flora. A donzela é a autêntica moça
prendada e de boas origens que desperta os sentidos de ambos os irmãos. Como está dito na
própria obra, cada um poderia seguir o curso de sua vida, escolher moças para casar, ter
filhos, porém nada mais desafiador para dois gêmeos do que ser um deles o escolhido por tal
flor, propor as melhores anedotas, os melhores passeios pela rua do Ouvidor, as melhores
valsas, seja no Baile da ilha Fiscal – ultima grande festa realizada no rio de Janeiro, antes da
Proclamação da República - seja num simples jantar de família. A competição só encerra
quando a flor desabrocha.
Flora é caracterizada pelo narrador como “esquisitona” pela súbita tendência de ir da
alegria ao tédio rapidamente, fato que deixava Paulo bastante desconfortável e abismado.
Tinha a tendência de pensar no nada, de dizer nada e de expressar muita coisa através de cada
nada que pronunciava. Flora não deixa de representar em Esaú e Jacó a lacuna que Bento
representava em Dom Casmurro quanto às suas indecisões, falta de percepção ou de atitude.
“(...) A voz que falou à Flora saiu da boca do velho Aires, que se fora sentar ao pé
dela e lhe perguntara: Em que é que está pensando? Em nada, respondeu Flora.(...)Dona
Cláudia não lhe viu a palidez, nem sentiu as mãos frias, continuou a falar do caso e do
futuro, até que Flora, querendo sentar-se quase caiu. A mãe acudiu-lhe: Que é? Que tens? –
Nada mamãe, não é nada.(...)Flora passava do prazer ao tédio, e Paulo não entendia essa
alternação de sentimentos.(...)A ação do estudante de direito devia ser arredar-lhe a mão,
encará-la de perto, mais de perto, totalmente perto, e repetir a pergunta por um modo em que
a eloqüência do gesto dispensasse a fala. Se tal ideia teve, não saiu cá fora. Nem ela lhe
consentia mais tempo que o da pergunta: - Que é que tem? – Nada respondeu Flora.(...)”
(ASSIS, p.125-152, 1982)
O fato a ser destacado é a reciprocidade com que se davam os sentimentos de Flora
para com os rapazes, nem de mais nem de menos. Não havia uma escolha definitiva por parte
da donzela. Se Paulo ausentava-se Pedro lhe supria a falta e vice-versa. A situação perdurava
sem nenhuma expectativa de resposta a pelo menos um dos gêmeos e Aires acabou por
sugerir que estipulassem a ela três meses para tal anúncio. Contudo, em uma “Grande Noite”,
sentada à janela, Flora sonhava acordada com os pretendentes e seus cortejos. Acredita-se
num prenúncio da morte da donzela pelo tom com que o narrador vai descrevendo o aspecto
da situação, a qual remete-se a uma outra, já vista em Memórias Póstumas.
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“(...) Flora incurável também, se não preferes a definição de inexplicável, que lhe deu
Aires, a graciosa Flora teve naquela noite a sua insônia. Mas foi um tanto culpa sua. Em vez
de se deitar quietinha e dormir com os anos, achou melhor velar com um dos dous deles e
gastar uma parte da noite à janela ou sentada a recordar e a pensar, a cortejar e a
completar, metida no roupão de linho, com os cabelos atados para dormir.(...)
O fato de sentar-se a janela com a intenção de esclarecer suas indecisões e conflitos
interiores pode assemelhar-se ao momento em que Brás Cubas está a pensar também sobre o
emplasto, sobre a cura para todos os males da humanidade e para arejar as idéias abre as
janelas e fica a contemplar o outro lado. Há aqui uma semelhança na tentativa de encontrar
sossego na própria existência, ou na indecisão, como no caso de Flora. Não demorou muito e
a donzela faleceu antes mesmo de decidir sobre seus sentimentos.
Um personagem que completa a ficção com fatos da realidade é Custódio, o
confeiteiro que presencia a queda do Império e a tomada do poder pelos militares na
instituição da República. A alegoria utilizada por Machado para enfatizar o acontecimento é a
tabuleta daquele estabelecimento: “Confeitaria do Império”. Primeiramente Custódio consulta
o conselheiro sobre trocar a tabuleta por uma nova ou não. Aires o aconselha que sim e num
período não muito extenso ameaçam-no quanto a recolocar a tabuleta. Custódio conclui que o
nome da tabuleta deve ser mudado e numa medida desesperada volta a consultar Aires. Vai-se
então um capítulo entre “Confeitaria da República”, “Confeitaria do Catete”, Confeitaria do
Governo” e outras mais. Custódio conclui que para isso é preciso pensar bastante.
“(...) Não acertou dessa vez. Custódio atravessou a rua, sem parar nem olhar para
trás, e enfiou pela confeitaria dentro com todo o seu desespero.”
A ficção ressalta-se, sobretudo, quando dos muitos fatos históricos colocados como
ápice e fundamentação da narrativa são quebrados pelo diálogo do narrador ao leitor em
diversas passagens. Então se compreende que a fronteira torna-se tênue, passa de campo
isolado a campo compartilhado. Em se tratando de Machado, ficção só se constrói com
história e história com ficção.
“(...) Leitor, não é muito que percebas a causa daquela expressão e destes dedos
abotoados.(...)Não senhora minha, não pus a pena na mão , à espreita do que me viessem
sugerindo. Se quer compor o livro, aqui tem a pena, aqui tem papel, aqui tem um admirador;
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mas se quer ler somente, deixe-ser estar quieta, vá de linha em linha; dou-lhe que boceje
entre dous capítulos, mas espere o resto, tenha confiança no relator destas aventuras.(...)
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Crônica
Crônica é uma palavra que vem do grego “chronikós” e significa “relativo ao tempo”.
Deriva de “chrónos” que por sua vez deu origem ao latim “chronica”. Diante disso, pode se
associar a crônica com o relato histórico, porém é importante ressaltar que tal gênero literário
pode perfeitamente ser escrito hoje se referindo às épocas passadas.
No início do século XIX a crônica pertencia inexoravelmente ao domínio jornalístico e
era chamada de folhetim. Na ocasião, sua localização na estrutura do jornal era no rodapé e os
assuntos já eram tratados criticamente, e com humor. Durante sua evolução, passou a compor
espaço na Literatura quando os assuntos – em geral efêmeros – eram retratados com
preocupações estéticas como a estilística, a astúcia no desenvolvimento das ideias até para
criticar personalidades.
Na segunda metade do século XIX, Machado de Assis solidificou o conceito de
crônica como a interpretamos atualmente ao relatar sua concepção de folhetim e folhetinista:
“O folhetim nasceu do jornal, e o folhetinista por conseqüência do jornalista. Este é a fusão
do fútil com o útil. O folhetinista na sociedade é como o colibri na esfera vegetal: salta,
esvoaça, brinca, espaneja-se sobre todos os caules suculentos e seivas vigorosas. Todo o
mundo lhe pertence; até mesmo a política.”
Tais colocações devem-se ao fato de que o autor cria que o folhetim acomodara-se às
conveniências das atmosferas locais, já que mesmo que os jornalistas reflitam nos
folhetinistas sua seriedade e vigor, estes mantêm concomitantemente a tais características, o
devaneio e a leviandade, pois os folhetinistas são o próprio capital.
Machado escreveu mais de 700 crônicas entre 1859 e 1900. Muitas foram assinadas
por pseudônimos como, por exemplo, em “O espelho”, “O futuro” e “Gazeta de notícias”.
Em todas as crônicas destila sua ironia ao mesmo tempo piedosa e descrente, fruto de suas
observações realizadas em vários círculos sociais como teatro, ruas, debates políticos e até
pregões na bolsa.
Nessa época, havia um predomínio no âmbito social e literário no que concerne à
cultura e a obra francesa, o que o fez confessar que “escrever folhetins e ficar brasileiro é na
verdade muito difícil”.
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Machado de Assis é contemporâneo de três acontecimentos histórico-sociais do Brasil:
a queda da monarquia; a abolição da escravatura e o advento da República. Destacam-se três
crônicas referentes a tais fatos: “Balas de estalo” (1883-1886); “Bons dias” (1888-1889) e
“A semana” (1892-1900).
O crítico Roberto Schwarz observou que Machado se deu conta de que as injustiças
devido à estabilidade de das relações de base no país, ou seja, uma sociedade estamental,
configuraram algo ridículo nas datas magnas que designam mudanças em nossa política. Por
isso, o escritor fixou a irrelevância dessas datas como sendo nosso ritmo histórico. A partir de
então, criou uma visão complexa das relações sociais e do andamento histórico, somada a
questões filosóficas, que corroborou sua capacidade de apurar a cada nova obra sua brilhante
escrita.
Crônica - Balas de Estalo (4 de julho de 1883)
Nesta crônica,publicada na coluna “Balas de Estado”, temos uma irônica lista de
regras para um bom comportamento dos passageiros nos (até então) modernos bondes. Este
transporte era mais um dos progressos que passaram a configurar a cidade do Rio de Janeiro,
cidade que foi um microcosmo para o escritor problematizar todas as representações de suas
obras.
O bonde elétrico que surgiu em 1892 tornou-se um grande tema das crônicas
machadianas, pois causou uma revolução na cidade, construindo a geografia humana da
mesma. Outro motivo relevante constata-se nas relações que passaram a fazer parte do
cotidiano de homens e mulheres de várias idades e comportamentos sociais, que, na ausência
de um padrão de comportamento estabelecido, não seguiam uma disciplina de convívio para
este tipo de situação. Havia nesse transporte uma hierarquia de classes dividindo o mesmo
espaço.
O bonde expressava essa nova sociedade, que outrora fora representada pelas
cocheiras e o exército de escravos.
Observa-se na crônica que o autor critica o que esse progresso representado pelo
bonde elétrico trará para essa sociedade “democrática” que engatinha nas estradas de ferro
financiadas pelos ingleses neste processo capitalista: a exclusão de uns para a ascensão de
outros
17
4 de julho de 1883
Ocorreu-me compor umas certas regras para uso dos que freqüentam bondes. O
desenvolvimento que tem tido entre nós esse meio de locomoção, essencialmente
democrático, exige que ele não seja deixado ao puro capricho dos passageiros. Não posso dar
aqui mais do que alguns extratos do meu trabalho; basta saber que tem nada menos de setenta
artigos. Vão apenas dez.
ART. I
Dos encatarroados
Os encatarroados podem entrar nos bondes com a condição de não tossirem mais de
três vezes dentro de uma hora, e no caso de pigarro, quatro.
Quando a tosse for tão teimosa, que não permita esta limitação, os encatarroados têm
dois alvitres: - ou irem a pé, que é bom exercício, ou meterem-se na cama. Também podem ir
tossir para o diabo que os carregue.
Os encatarroados que estiverem nas extremidades dos bancos, devem escarrar para o
lado da rua, em vez de o fazerem no próprio bonde, salvo caso de aposta, preceito religioso ou
maçônico, vocação, etc., etc.
ART.II
Da posição das pernas
As pernas devem trazer-se de modo que não constranjam os passageiros do mesmo
banco. Não se proíbem formalmente as pernas abertas, mas com a condição de pagar os outros
lugares, e fazê-los ocupar por meninas pobres e viúvas desvalidas, mediante uma pequena
gratificação.
ART.III
Da leitura dos jornais
Cada vez que um passageiro abrir a folha que estiver lendo, terá o cuidado de não
roçar as ventas dos vizinhos, nem levar-lhes os chapéus. Também não é bonito encostá-los no
passageiro da frente.
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ART.IV
Dos quebra-queixos
É permitido o uso dos quebra-queixos em duas circunstâncias: - a primeira quando não
for ninguém no bonde, e a segunda ao descer.
ART. V
Dos amoladores
Toda a pessoa que sentir necessidade de contar os seus negócios íntimos, sem interesse
para ninguém, deve primeiro indagar do passageiro escolhido para uma tal confidência, se ele
é assaz cristão e resignado. No caso afirmativo, perguntar-lhe-á se prefere a narração ou uma
descarga de pontapés. Sendo provável que ele prefira os pontapés, a pessoa deve
imediatamente pespegá-los. No caso, aliás, extraordinário e quase absurdo, de que o
passageiro prefira a narração, o proponente deve fazê-la minuciosamente, carregando muito
mais nas circunstâncias mais triviais, repisando as coisas, de modo que o paciente jure aos
seus deuses não cair em outra.
ART. VI
Dos perdigotos
Reserva-se o banco da frente para a emissão dos perdigotos, salvo nas ocasiões em que
a chuva obriga a mudar a posição do banco. Também podem emitir-se plataforma de trás,
indo o passageiro ao pé do condutor, e a cara voltada para a rua.
ART.VI
Das conversas
Quando duas pessoas, sentadas a distância, quiserem dizer alguma coisa em voz alta,
terão o cuidado de não gastar mais de quinze ou vinte palavras, e, em todo caso, sem alusões
maliciosas, principalmente se houver senhoras.
ART.VIII
Das pessoas com morrinha
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As pessoas que tiverem morrinha podem participar dos bondes indiretamente: ficando
na calçada, e vendo-os passar de um lado para outro. Será melhor que morem em rua por onde
eles passem, porque então podem vê-los mesmo da janela.
ART. IX
Da passagem às senhoras
Quando alguma senhora entrar, o passageiro da ponta deve levantar-se e dar passagem,
não só porque é incômodo para ele ficar sentado, apertando as pernas, como porque é uma
grande má criação.
ART. X
Do pagamento
Quando o passageiro estiver ao pé de um conhecido, e, ao vir o condutor receber as
passagens, notar que o conhecido procura o dinheiro com certa vagareza ou dificuldade, deve
imediatamente pagar por ele: é evidente que, se ele quisesse pagar, teria tirado o dinheiro mais
depressa.
Pelos ideais, pela abolição, pelas crônicas
O autor de Brás Cubas e Quincas Borba relata em suas crônicas o momento da queda
do governo João Alfredo, da formação do governo do liberal Visconde de Ouro Preto e ainda
sobre a abolição da escravatura.
Machado iniciou sua série, quando se tornou inevitável o fim da escravidão. A
primeira crônica de 5 de Abril de 1888, relata o discurso proferido no Beethoven, onde o
ministro da justiça Antônio Ferreira Viana, deixa escapar a notícia da abolição da escravidão
sem indenização aos proprietários. Tal discurso de Ferreira Viana foi importante, porque
representava a antecipação da própria Lei Áurea de 13 de maio.
Machado escreveu suas crônicas com uma combinação de paixão e pessimismo, que
as tornaram extraordinárias. Esse conflito interno era resolvido por um senso de humor quase
infalível. A abertura e a conclusão das crônicas (“Bons dias”!- “Boas noites”!) objetivava a
ênfase sobre a cortesia e as boas maneiras do cronista. Embora, algumas crônicas
expressassem certo desafio em relação ao leitor, colocando-o diante de um problema quase
sem solução.
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A crônica de 11 de maio de 1888, foi publicada dois dias antes da emancipação.
Machado procurava encontrar razões que justificassem a real intenção do abolicionismo.
Também, não acreditava no socialismo como um movimento utópico.
O autor queria mostrar através da crônica, que a abolição é relativa, pois libertava os
escravos de uma situação de submissão dos fracos aos fortes. “ A abolição não é um
movimento da escuridão para a luz, mas a simples passagem de um relacionamento
econômico e social opressivo para o outro”.
Na crônica de 19 de maio, seis dias depois da Abolição, Machado relata a mesma
situação, mas de um ponto de vista mais particular, abordando questões mais individuais do
que sociais.
Na crônica de 17 de maio, Machado aborda a Abolição como um processo político;
utilizando-se de um estilo ironicamente bíblico. A escolha dos ministros na crônica afasta o
principal assunto,que era a abordagem da abolição não como um ato de generosidade, mas
como uma questão inevitável de se resolver.
Para machado, essa atitude com relação à escravidão, temperada pela liberdade,
legalidade e humildade, representava um contraste total com a atitude brasileira. Pois,
machado tinha o objetivo de mostrar os acontecimentos que confirmavam que a aprovação da
lei não era o suficiente para acabar com a escravidão. Porque os efeitos da escravidão eram
extremamente profundos para serem “abolidos” por uma lei.
As opiniões de Machado acerca dos eventos de maio de 1888 eram inteiramente
céticas. As primeiras duas séries de (5e12 de Abril de 1888) referem-se a chegada do mesmo
governo João Alfredo com seu programa agora declarado de abolição sem indenização.
A crônica de 27 de abril foi escrita em torno de uma preocupação de Machado, que era
o destino final dos libertos. Depois de escrever de forma irônica a euforia de alguns escravos
libertos ao partido liberal, o autor muda aparentemente o seu relato através de uma pergunta
surpreendente:-” A quantos de maio nasceu Porto Alegre?”.Depois refere-se a uma antiga lei
(7 de fevereiro de 1824). Que dava o direito de ter três criados “internos” para pessoas de
primeira consideração e um para pessoas de status “secundário”. Mas como machado tinha o
olhar atendo observou que, se a lei fosse reinstituída, todos iriam requerer o direito a três
escravos na casa, concedendo emprego aos libertos que não tinham o interesse de trabalhar na
agricultura.
A crônica de 26 de junho de 1888 aborda o assunto da indenização, que na época
estava em todos os jornais como uma questão candente, proposta, pelas mesmas pessoas que
colocavam-se contra à abolição. Machado em suas crônicas e nos seus romances, não
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denotava a menor simpatia para com os imprevidentes e fazendeiros cobiçosos, que sofreram
com as perdas resultantes do fim da escravidão. Por isso, ridicularizava todos aqueles que
queriam levar o governo a reconhecer a “injustiça” praticada contra eles. E também, a
importação de trabalhadores adequadamente obedientes e racialmente inferiores, como relata
uma crônica de 10 de novembro de 1888.
Mediante aos argumentos podemos observar, que Machado não era um combatente da
batalha abolicionista. Mas era partidário da abolição; porém não se considerava no sentido
militante e apostolar do termo. Por causa disso, em suas obras não há nenhuma referência
reformista imediata a favor da abolição. Entretanto, ele condena e combate a escravidão
indiretamente.
Antônio Conselheiro e Canudos na crônica machadiana
“A crônica e a história têm em comum a temática temporal e, talvez, por aí fique o
ponto convergente. A história carrega além da erudição a certeza calcada nos dados
precisos, que, a serviço do suporte documental, trazem consistência aos seus textos. Já a
crônica, no extremo oposto, procura a acessibilidade de sua leitura, uma leitura para todos
entenderem, advinda de um discurso livre e leve, haja vista seu primeiro veículo, o jornal ou
a revista — bem diferente dos alentados tomos que guardam a História.”
É exatamente com essa liberdade de discurso que Machado de Assis escreveu suas
crônicas. E para dar continuidade à discussão a respeito de História e Ficção na obra de
Machado que trazemos duas das crônicas publicadas por ele no jornal Gazeta de Notícias na
coluna dominical A Semana.
Machado viveu em um tempo marcado por acontecimentos históricos decisivos para o
futuro do país: abolição da escravatura, transição do Império para República e, podemos
citar também, a Guerra de Canudos que aconteceu na Bahia de 07 de novembro de 1896 a
05 de outubro de 1897. Mas a polêmica sobre o líder de tal guerra começou anos antes, e lá
estava Machado registrando-a quando o líder religioso já se instalara às margens do rio
Vaza-Barris havia onze meses. Entretanto, o período mais turbulento da trajetória de
Conselheiro ainda estava por acontecer. Seria preciso esperar dois anos para que a
comunidade do Belo Monte se tornasse notícia nos jornais.
Em 22 de julho de 1894, dois anos antes, escreveu Machado:
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Telegrama da Bahia refere que o Conselheiro está em Canudos com 2.000 homens
(dois mil homens) perfeitamente armados. Que Conselheiro? O Conselheiro. Não lhe ponhas
nome algum, que é sair da poesia e do mistério. É o Conselheiro, um homem, dizem que
fanático, levando consigo a toda a parte aqueles dois mil legionários. Pelas últimas notícias
tinha já mandado um contingente a Alagoinhas. Temem-se no Pombal e outros lugares os seus
assaltos.
Jornais recentes afirmam também que os célebres clavinoteiros de Belmonte têm
fugido, em turmas, para o sul, atravessando a comarca de Porto Seguro. Essa outra horda, para
empregar o termo do profano vulgo que odeio, não obedece ao mesmo chefe. Tem outro ou
mais de um, entre eles o que responde ao nome de Cara de Graxa. Jornais e telegramas dizem
dos clavinoteiros e dos sequazes do Conselheiro que são criminosos; nem outra palavra pode
sair de cérebros alinhados, registrados, qualificados, cérebros eleitores e contribuintes. Para
nós, artistas, é a renascença, é um raio de sol que, através da chuva miúda e aborrecida, vem
dourar-nos a janela e a alma. É a poesia que nos levanta do meio da prosa chilra e dura deste
fim de século. Nos climas ásperos, a árvore que o inverno despiu, é novamente enfolhada pela
primavera, essa eterna florista que aprendeu não sei onde e não esquece o que lhe ensinaram.
A arte é a árvore despida; eis que lhe rebentam folhas novas e verdes.
Sim, meus amigos. Os dois mil homens do Conselheiro, que vão de vila em vila, assim
como os clavinoteiros de Belmonte, que se metem pelo sertão, comendo o que arrebatam,
acampando em vez de morar, levando moças naturalmente, moças cativas, chorosas e belas,
são os piratas dos poetas de 1830. Poetas de 1894, aí tendes matéria nova e fecunda. Recordai
vossos pais; cantai, como Hugo, a canção dos piratas:
En mer,
les hardis
écumeurs!
Nous allions
de Fez
à Catane...
Entrai pela Espanha, é ainda a terra da imaginação de Hugo, esse homem de todas as
pátrias; puxai pela memória, ouvireis Espronceda dizer outra canção de pirata, um que desafia
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a ordem e a lei, como o nosso Conselheiro. Ide a Veneza; aí Byron recita os versos do
Corsário no regaço da bela Guiccioli. Tornai à nossa América, onde Gonçalves Dias também
cantou o seu pirata. Tudo pirata. O romantismo é a pirataria, é o banditismo, é a aventura do
salteador que estripa um homem e morre por uma dama.
Crede-me, esse Conselheiro que está em Canudos com os seus dois mil homens, não é
o que dizem telegramas e papéis públicos. Imaginai uma legião de aventureiros galantes,
audazes, sem ofício nem benefício, que detestam o calendário, os relógios, os impostos, as
reverências, tudo o que obriga, alinha e apruma. São homens fartos desta vida social e pacata,
os mesmos dias, as mesmas caras, os mesmos acontecimentos, os mesmos delitos, as mesmas
virtudes. Não podem crer que o mundo seja uma secretaria de Estado, com o seu livro do
ponto, hora de entrada e de saída, e desconto por faltas. O próprio amor é regulado por lei; os
consórcios celebram-se por um regulamento em casa do pretor, e por um ritual na casa de
Deus, tudo com a etiqueta dos carros e casacas, palavras simbólicas, gestos de convenção.
Nem a morte escapa à regulamentação universal; o finado há de ter velas e responsos, um
caixão fechado, um carro que o leve, uma sepultura numerada, como a casa em que viveu...
Não, por Satanás! Os partidários do Conselheiro lembraram-se dos piratas românticos,
sacudiram as sandálias à porta da civilização e saíram à vida livre.
A vida livre, para evitar a morte igualmente livre, precisa comer, e daí alguns possíveis
assaltos. Assim também o amor livre. Eles não irão às vilas pedir moças em casamento.
Suponho que se casam a cavalo, levando as noivas à garupa, enquanto as mães ficam
soluçando e gritando à porta das casas ou à beira dos rios. As esposas do Conselheiro, essas
são raptadas em verso, naturalmente:
Sa Altense aime les primeurs,
Nous vous ferons mahométane...
Maometana ou outra coisa, pois nada sabemos da religião desses, nem dos
clavinoteiros, a verdade é que todas elas se afeiçoarão ao regime, se regime se pode chamar a
vida errática. Também há estrelas erráticas, dirão elas, para se consolarem. Que outra coisa
podemos supor de tamanho número de gente? Olhai que tudo cresce, que os exércitos de hoje
não são já os dos tempos românticos, nem as armas, nem os legisladores, nem os
contribuintes, nada. Quando tudo cresce, não se há de exigir que os aventureiros de Canudos,
Alagoinhas e Belmonte contem ainda aquele exíguo número de piratas da cantiga:
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Dans la galère capitane,
Nous étions quatre-vingts rameurs,
mas mil, dois mil, no mínimo. Do mesmo modo, ó poetas, devemos compor versos
extraordinários e rimas inauditas. Fora com as cantigas de pouco fôlego. Vamos fazê-las de
mil estrofes, com estribilho de cinqüenta versos, e versos compridos, dois decassílabos atados
por um alexandrino e uma redondilha. Pélion sobre Ossa, versos de Adamastor, versos de
Encélado. Rimemos o Atlântico com o Pacífico, a via-láctea com as arejas do mar, ambições
com malogros, empréstimos com calotes, tudo ao som das polcas que temos visto compor,
vender e dançar só no Rio de Janeiro. Ó vertigem das vertigens!
Há uma desconfiança por parte do cronista em relação o que dizem os mensageiros
que estão na Bahia. Ele repudia os adjetivos usados para nomear o Conselheiro e seus
homens e critica os reponsáveis pelas notícias, chamando-os de pessoas influenciadas por
interesses políticos, alinhadas a classe dominante.E vê poesia na atitude de Conselheiro e
seus homens, uma oportunidade de romper com a mesmice do século e alimentar a arte, o
fazer artístico. Compara os clavinoteiros com piratas que querem viver livres onde suas
ações são o grito de liberdade( mais tarde, a crônica será nomeada e publicada como
“Canção de pirata”, fazendo alusão à canção dos piratas de Hugo, e chama por nomes do
romantismo, como Byron para louvar a valentia de desafiar a ordem e a lei. Diz que o
romantismo é com a pirataria: mata, faz locuras pelo amor de uma dama).
Mas o que é importante observar é a forma com que Machado trata literariamente de
um fato histórico, onde as notícias vindas pelos enviados da imprensa, por serem as únicas,
apresentavam negativamente o acontecimento, influenciando a opinião pública. Machado
posiciona-se com um olhar crítico, não se deixando influenciar com o que ouvia.
Discordando, Machado aproveita para usar de sua ironia e perspicácia a fim de criticar a
política e a sociedade.
Em 31 de janeiro de 1897, agora com a Guerra de Canudos já acontecendo, Machado
publica outra crônica usando o tema( antes, ele havia publicado outras duas:em 13 de
setembro de 1896 e outra em 27 de dezembro do mesmo ano):
Os direitos da imaginação e da poesia hão de sempre achar inimiga uma sociedade
industrial e burguesa. Em nome deles protesto contra a perseguição que se está fazendo à
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gente de Antônio Conselheiro. Este homem fundou uma seita a que se não sabe o nome nem
a doutrina. Já este mistério é poesia. Contam-se muitas anedotas, diz-se que o chefe manda
matar gente, e ainda agora fez assassinar famílias numerosas porque o não queriam
acompanhar. É uma repetição do crê ou morre; mas a vocação de Maomé era conhecida. De
Antônio Conselheiro ignoramos se teve alguma entrevista com o anjo Gabriel, se escreveu
algum livro, nem sequer se sabe escrever. Não se lhe conhecem discursos. Diz-se que tem
consigo milhares de fanáticos. Também eu o disse aqui, há dois ou três anos, quando eles
não passavam de mil e tantos. Se na última batalha é certo haverem morrido novecentos
deles e o resto não se despega de tal apóstolo, é que algum vínculo moral e fortíssimo os
prende até à morte. Que vínculo é esse?
No tempo em que falei aqui destes fanáticos, existia no mesmo sertão da Bahia o
bando dos clavinoteiros. O nome de clavinoteiros dá antes ideia de salteadores que de
religiosos; mas se no Koran está escrito que ‘o alfanje é a chave do céu e do inferno’, bem
pode ser que o clavinote seja a gazua, e para entrar no céu tanto importará uma como outra;
a questão é entrar. Não obstante, tenho para mim que esse bando desapareceu de todo; parte
estará dando origem a desfalques em cofres públicos ou particulares, parte à volta das urnas
eleitorais. O certo é que ninguém mais falou dele. De Antônio Conselheiro e seus fanáticos
nunca se fez silêncio absoluto. Poucos acreditavam, muitos riam, quase todos passavam
adiante, porque os jornais são numerosos e a viagem dos bondes é curta; casos há, como os
de Santa Teresa, em que é curtíssima. Mas, em suma, falava-se deles. Eram matéria de
crônicas sem motivo.
Entre as anedotas que se contam de Antônio Conselheiro, figura a de se dar ele por
uma encarnação de Cristo, acudir ao nome do Bom Jesus e haver eleito doze confidentes
principais, número igual ao dos apóstolos. O correspondente da Gazeta de Notícias mandou
ontem notícias telegráficas, cheias de interesse, que toda gente leu, e por isso não as ponho
aqui; mas, em primeiro lugar, escreve da capital da Bahia, e, depois, não se funda em
testemunhas de vista, mas de outiva; deu-se honesta pressa em mandar as novas para cá, tão
minuciosas e graves, que chamaram naturalmente a atenção pública. Outras folhas também
as deram; mas serão todas verdadeiras? Eis a questão. O número dos sequazes do
Conselheiro sobe já a dez mil, não contando os lavradores e comerciantes que o ajudam com
gêneros e dinheiros.
Dado que tudo seja exato, não basta para conhecer uma doutrina. Diz-se que é um
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místico, mas é tão fácil supô-lo que não adianta nada dizê-lo. Nenhum jornal mandou
ninguém aos Canudos. Um repórter paciente e sagaz, meio fotógrafo ou desenhista, para
trazer as feições do Conselheiro e dos principais subchefes, podia ir ao centro da seita nova
e colher a verdade inteira sobre ela. Seria uma proeza americana. Seria uma empresa quase
igual à remoção do Bendegó, que devemos ao esforço e direção de um patrício tenaz. Uma
comissão não poderia ir; as comissões geralmente divergem logo na data da primeira
conferência, e é duvidoso que esta desembarcasse na Bahia sem três opiniões (pelo menos)
acerca do Juazeiro.
Não se sabendo a verdadeira doutrina da seita, resta-nos a imaginação para descobrila e a poesia para floreá-la. Estas têm direitos anteriores a toda organização civil e política.
A imaginação de Eva fê-la escutar sem nojo um animal tão imundo como a cobra, e a poesia
de Adão é que o levou a amar aquela tonta que lhe fez perder o paraíso terrestre.
Que vínculo é esse, repito, que prende tão fortemente os fanáticos ao Conselheiro?
Imaginação, cavalo de asas, sacode as crinas e dispara por aí fora; o espaço é infinito. Tu,
poesia, trepa-lhe aos flancos, que o espaço, além de infinito, é azul. Ide, voai, em busca da
estrela de ouro que se esconde além, e mostrai-nos em que é que consiste a doutrina deste
homem. Não vos fieis no telegrama da Gazeta, que diz estarem com ele quatro classes de
fanáticos, e só uma delas sincera. Primeiro que tudo, quase não há grupo a que se não
agregue certo número de homens interessados e empulhadores; e, se vos contentais com
uma velha chapa, a perfeição não é deste mundo. Depois, se há crentes verdadeiros, é que
acreditam em alguma cousa. Essa cousa é que é o mistério. Tão atrativa é ela que um
homem, não suspeito de conselheirista, foi com a senhora visitar o apóstolo, deixando-lhe
de esmola quinhentos mil-réis, e ela quatrocentos mil. Esta notícia é sintomática. Se um pai
de família, capitalista ou fazendeiro, pega em si e na esposa e vai dar pelas próprias mãos
algum auxílio pecuniário ao Conselheiro, que já possui uns cem contos de réis, é que a
palavra deste passa além das fileiras de combate.
Não trato, porém, de conselheiristas ou não-conselheiristas; trato do conselheirismo, e
por causa dele é que protesto e torno a protestar contra a perseguição que se está fazendo à
seita. Vamos perder um assunto vago, remoto, fecundo e pavoroso. Aquele homem que
reforça as trincheiras envenenando os rios, é um Maomé forrado de um Borgia. Vede que
acaba de despir o burel e o bastão pelas armas; a imagem do bastão e do burel dá-lhe um
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caráter hierático. Enfim, deve exercer uma fascinação grande para incutir a sua doutrina em
uns e a esperança de riqueza em outros. Chego a imaginar que o elegem para a câmara dos
deputados, e que ele aí chega, como aquele francês muçulmano, que ora figura na câmara de
Paris, com turbante e burnu. Estou a ver entrar o Conselheiro, deixando o bastão onde
outros deixam o guarda-chuva e sentando o burel onde outros pousam as calças. Estou a vêlo erguer-se e propor indenização para os seus dez mil homens dos Canudos...
A perseguição faz-nos perder isto; acabará por derribar o apóstolo, destruir a seita e
matar os fanáticos. A paz tornará ao sertão, e com ela a monotonia. A monotonia virá
também à nossa alma. Que nos ficará depois da vitória da lei? A nossa memória, flor de
quarenta e oito horas, não terá para regalo a água fresca da poesia e da imaginação, pois
seria profaná-las com desastres elétricos de Santa Teresa, roubos, contrabandos e outras
anedotas sucedidas nas quintas-feiras para se esquecerem nos sábados.
A deconfiança do que dizem os correpondendes dos jornais continua, mas agora,
Machado volta-se a indagar sobre os laços que predem os seguidores ao Conselheiro.Ele
atesta que Antônio Conselheiro possui um grande poder de fascínio sobre as pessoas e, outra
vez irônico, alude a uma possível candidatura do Conselheiro, com a garantia de vitória.Ele,
então, entrega à poesia a missão de encontrar a explicação para tão forte vínculo dos
fanáticos com o líder religioso.
A imagem do Conselheiro está relacionada ao místico. A imagem do profeta, do
messias que orienta o povo, conduzindo-o ao paraíso eterno está presente em nosso
imaginário como nação de raízes cristãs. Com base nisso surge uma outra indagação na
crônica de Machado. O porque da perseguição ao grupo religioso ser maior e merecer mais
destaque do que um grupo de assaltantes, existente na Bahia no mesmo tempo do grupo de
Canudos, de quem não se sabe o paradeiro ou se continuam dando desfalques em cofres
públicos ou trabalhando em urnas eleitorais. Por que um grupo de fanáticos religiosos de
quem não se conhece a doutrina apresenta maior periculosidade do que um grupo de
corruptos que atentam contra a sociedade?
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Conto
O Segredo do Bonzo
O Segredo do Bonzo é um conto que tem como tema principal a idéia de “que uma coisa pode
existir na opinião, sem existir na realidade, e existir na realidade, sem existir na opinião, a conclusão é
que das duas existências paralelas a única necessária é a da opinião, não a da realidade, que é apenas
conveniente”.
Assim, Machado discute a diferença entre história e ficção. A história que é tida como realidade
é feita de opinião, é construída não necessariamente baseada apenas na realidade. A ficção pode ser
mais verdadeira do que os fatos reais, pois se ela for verdadeira na opinião, será tida como verdade e
influenciará na sociedade mais do que fatos reais que não são conhecidos ou que não são acreditados.
Tanto a história como a ficção são baseadas na realidade com a subjetividade do individuo que a
conta.
Já na escolha do gênero literário, Machado utiliza um gênero que se preocupa mais com o efeito
em que sua escrita irá causa no leitor, do que em convencê-lo de que sua história realmente aconteceu.
O conto não é datado, como é característico do gênero conto, que não é relacionado há uma época
específica e nem se preocupa com essas marcações de verossimilhança. Os contos normalmente são
um ponto de reflexão, uma lição, uma idéia.
Na fala de Patimau: “... e, se por aventado tão sublime verdade, fosse necessário aceitar a morte,
ele aceitaria ali mesmo, tão certo que a ciência valia mais do que a vida e seus deleites”, há o desejo de
nomeada dito mais importante que a própria vida e, além disso, é uma estratégia para convencer quem
o ouvia de que ele acreditava tanto em sua verdade que morreria por ela. Esta idéia é reforçada por
esta fala de Pomada: “... nada chegaria a valer sem a existência de outros homens que me vissem e
honrassem...”. Sendo a opinião mais importante que a realidade, a nomeada pode ser alcançada apenas
pelo poder de convencimento do indivíduo, sem necessidade de se dar o trabalho de fazer algo grande
realmente.
No conto, Fernão Mendes, alterando o “jornal” da cidade para incluir suas alparcas, é um ótimo
exemplo da manipulação que é feita em lugares de forte influência na opinião pública, como é o
jornal. Ou seja, a história e o que conhecemos como realidade são manipuladas e, conseqüentemente, a
opinião pública também. O conto faz uma crítica à maneira como as massas são facilmente
manipuladas, também demonstrada pela persuasão de várias pessoas por Patimau e por Languru, que
anunciavam uma descoberta sem sentido, mas que convenciam o povo. Neste trecho fica bem claro o
valor que a opinião tem na sociedade em comparação a realidade.
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Ao final do conto, os narizes doentes de boa parte da população são substituídos por narizes
metafísicos, comprovando mais uma vez o pensamento de Machado de que a única realidade
necessária é da opinião. Afinal, apesar das pessoas não terem narizes materiais, elas acreditavam tanto
que ele estava lá, que “continuaram a prover-se dos mesmos lenços de assoar”.
Concluindo, a idéia de Machado neste conto se reafirma como a história é uma loureira e cada
povo tem seu mito.
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CONCLUSÃO
Convém, primeiramente, ressaltar que a partir dos vários acontecimentos históricos da
época, Machado revigora as opiniões, as críticas, as imagens corriqueiras em diversificado
material literário atemporal.
Não deixando de lado as infinitas leituras que insere, resgata e desperta o desejo pela
pesquisa, instiga o leitor com inferências ou referências com as quais se preocupa em
acrescentar e, finalmente, aguça o senso de percepção com as metaforizações e analogias
diversas.
Machado de Assis dialoga incessantemente em toda a sua obra, não por ser um autor
de ficção mas por prolongar a ficção à história. Por prolongá-la à história de qualquer leitor.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
- ALMEIDA, João Ferreira de. A Bíblia Sagrada. Sociedade Bíblica do Brasil. Distrito
Federal, 1969.
- ASSIS, Machado de. Obra Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar 1994. vol. II.
- ASSIS, Machado de. - “Crônicas Balas de estalo (4 de julho de 1883).”
- ASSIS, Machado. Gazeta de Notícias. Coluna “A Semana” de 22/07/1894 e 31/01/1897;
- ASSIS, Machaddo de. Esaú e Jacó. Rio de Janeiro. Nova Fronteira, 1982.
- CARDOSO, Solange Aparecida, CHAVES, Pinheiro Vânia, MOREIRA, Lauro “Lembrar
Machado de Assis” Ed. CLEPUL- Centro de Literaturas de Expressão Portuguesa das
Universidades de Lisboa, 2008
- CASTRO, Sílvio “Machado de Assis e a modernidade brasileira” Ed. Galo Branco, ABL,
2009.
- COUTINHO, Afrânio. A literatura no Brasil. Rio de Janeiro: José Olimpio, 3ª edição, vol. 4.
1986.
- FAORO, Raymundo “Machado de Assis: a pirâmide e o trapézio” Ed. Globo, 3ª Ed. 1988.
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- JUNQUEIRA, Ivan. “Machado de Assis Cronista” In:CHAVES, Vânia Pinheiro;
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SITES:
- www.jornaldepoesia.jor.br/1gerana2c.html
- Acessado em 26 de maio de 2011: http://www.lendo.org/como-escrever-um-conto.