As cidades da antropologia:
Entrevista com Michel Agier
Janaína Damasceno
Isabela Oliveira Pereira da Silva
Natália Helou Fazzioni
Guilhermo André Aderaldo
Heitor Frúgoli Jr.
Universidade de São Paulo
A trajetória de pesquisas de Michel Agier – professor e pesquisador na
École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS), coordenador de pesquisas no Institut de Recherche pour le Développement (IRD) e ex-diretor
do Centre d’Études Africaines (Ceaf/ EHESS), todos sediados em Paris
– conigurou-se inicialmente na realização de etnograias em cidades
africanas como Lomé (Togo) e Douala (Camarões) (Agier, 1983; 1999).
Tais pesquisas são marcadas pelo seu interesse por situações urbanas que
propiciam, segundo ele, um entendimento mais profundo acerca de aspectos que talvez não se apreenda senão na cidade. Isso ocorre porque os
contextos citadinos são tomados como espaços relacionais onde se produzem fenômenos signiicativos e invenções culturais inéditas e não apenas
justaposição de culturas (Agier, 2006, p.138-140).
Seu relacionamento com o Brasil remonta a uma etnograia realizada
em Salvador entre 1990 e 1996, que resultou no livro Anthropologie du
As cidades da antropologia: Entrevista com Michel Agier
Carnaval (2000) e ajudou a compor outra publicação referencial no campo da antropologia da cidade, L’invention de la ville (1999).
Nessa época, Agier estabeleceu várias interlocuções com autores brasileiros, inicialmente no campo da sociologia, em torno de temas como o
operariado urbano sob a ótica de trajetórias empregatícias, do espaço citadino, da família e do status social (Agier, 1990 e Agier; Castro; Guimarães, 1995). Esse trabalho se desdobrou, a partir de um olhar etnográico
mais detido na vida cotidiana e nas múltiplas facetas socioculturais do
bairro soteropolitano da Liberdade, em diálogos fecundos com a antropologia urbana brasileira. Isso ica evidente no enfoque dado aos processos
de subjetivação na pesquisa sobre o bloco afro Ilê Aiyê, surgido naquele
bairro e um dos responsáveis, segundo o autor, pela “africanização” do
carnaval de Salvador. Nesse âmbito, dispensou atenção especial às relações de parentesco e gênero (Agier, 1990), à construção de lugares e redes
por parte daqueles que “fazem a cidade” (Agier, 1998) e às redes pautadas
pela globalização acelerada de situações locais (Agier, 2001).
Tal itinerário prosseguiu, posteriormente, pelo contexto latino-americano, em Tumaco e em Cali, na Colômbia, onde o autor teve suas primeiras experiências etnográicas com deslocamentos forçados ocorridos
na região, após 1997, oriundos do agravamento dos conlitos armados e
geopolíticos naquele país (Agier, 1999). Essa temática ganhou signiicativo relevo em seus estudos posteriores, com a multiplicação de pesquisas
sobre campos de refugiados (Agier, 2008a). Tais pesquisas têm renovado
os enfoques do autor sobre a criação de novos contextos urbanos em situações vulneráveis e adversas, levando-o a outras formas de compreensão
sobre novas modalidades de “fazer a cidade” (Agier, 2008b).
Novas dimensões políticas e metodológicas se abriram, a partir das
pesquisas mais recentes sobre os campos de refugiados, dada a possibilidade de observação dos espaços humanitários – isicamente conigurados
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nos assentamentos do ACNUR (Alto Comissariado das Nações Unidas
para Refugiados) –, responsáveis pelo controle de certos luxos populacionais e pela consequente divisão entre pessoas “com direitos” e outras
“sem direito a ter direitos”. Nesse sentido, o autor se questiona a respeito
de como devemos compreender as novas territorialidades surgidas destes
impasses (Agier, 2008a).
Um dos ios condutores dessas abordagens diz respeito à necessidade de
evitarmos uma compreensão idealizada ou ocidentalizada de cidade, por
meio de um diálogo crítico com as Escolas de Chicago e de Manchester,
responsáveis, ainda que por caminhos distintos, por uma série de práticas pioneiras de etnograia urbana. Cabe migrar da pergunta sobre se “a cidade faz
ou não sociedade” para aquela sobre como “(...) as situações, as ações fazem
a cidade”, onde o foco são efetivamente as relações. (Agier, 2008, p. 20-21).
Mais detalhes dessa trajetória podem ser vistos na entrevista que Michel Agier gentilmente nos cedeu no dia 18 de agosto de 2010, na manhã
que precedeu sua conferência “Da etnograia urbana à antropologia da
cidade: introdução às situações africanas e latino-americanas”, na Sexta
do Mês – evento mensal organizado pelos estudantes do PPGAS/ USP.
O encontro ocorreu pouco mais de um mês após o término da Copa
do Mundo de Futebol, realizada na África do Sul. Como o futebol é um
espaço importante na construção da etnograia de Agier em Salvador, a
entrevista aproveitou o mote para iniciar tratando de sua participação nas
partidas de futebol conhecidas como “babas”.
Assim, ele comenta sobre sua aproximação com o Brasil ainda no período em que realizava pesquisas no Togo, sua inserção em campo na
capital baiana, a pesquisa com o bloco afro Ilê Aiyê, com populações
deslocadas na Colômbia e em campos de refugiados no Quênia e noutros
países africanos. Fala, ainda, sobre as especiicidades de etnografar diferentes contextos urbanos em cidades da Europa, América Latina e África,
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e sua mais recente aproximação com um campo que sempre lhe esteve
relativamente próximo: a cidade de Paris.
Janaína Damasceno: Eu tenho uma primeira pergunta: depois do
“Baba do Negão”, você aprendeu a jogar futebol?
(risos) Não melhorei, não! (risos) Eu vi que meu tempo já tinha passado!
Eu fui um bom meio de campo, é verdade, mas...
Heitor Frúgoli Jr.: (...) mas ter sido chamado de [Michel] Platini não
ajudou muito!
(Risos) Hoje não faz mais sentido! Mas quando cheguei à Bahia e disse
que me chamava Michel, todo mundo dizia “Platini”, “Platini”! Mas agora o pessoal não diz mais Platini, preferem o Zidane!
Heitor Frúgoli Jr.: De toda forma, qual a importância do “Baba do
Negão” para você entender um conjunto de relações que ocorria ali
[no bairro da Liberdade, na Bahia]?
Quando se fala sobre sociabilidade de bairro, para não ser demasiadamente abstrato nessa temática, é preciso ver na prática onde isso se realiza.
Uma das maneiras é ver como se formam essas turmas. Além de gostar
de futebol, o trabalho foi tentar entender como se compõe “socialidade”
com essa sociabilidade. Quer dizer, como surgem relações boas ou ruins,
e a partir de que estrutura, ou não estrutura, elas se desenvolvem. A ideia
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mais geral no trabalho dentro do bairro da Liberdade foi de mapear que
relações um antropólogo pode descrever nessa sociabilidade toda. E a forma imediata dessa sociabilidade, além da casa, eram aquelas turmas. Havia muitas palavras para tentar dizer isso e eram todas formas de encontro,
intercâmbio de formas sociais, que tinham a ver com o familiar, o parentesco. Eram um alargamento desse parentesco. Interessou-me muito também, nessa temática das turmas, o uso que se fazia da linguagem familiar:
o tio de consideração, o pai de consideração. Quando você torna familiar
algo que não é, quando você aproxima as pessoas e decide quem tem um
laço próximo de você, você o cria ou o reforça usando uma terminologia,
por exemplo, do parentesco simbólico ou do parentesco espiritual como
o apadrinhamento católico ou a família de santo no candomblé. No inal
das contas, havia uma complexidade de um universo social ao qual chamei de familiarismo, uma forma familiar de viver o espaço urbano. Então,
de certa forma, o “Baba do Negão” era uma família, nesse sentido.
Isabela Oliveira: Em L’invention de la ville, você etnografa partidas
de futebol em Salvador para tratar de redes de sociabilidade. No seu
caso, quais foram as redes que você acessou para chegar ao Brasil, não
apenas em termos teóricos, de leituras sobre o país, mas também de
pessoas, de pesquisadores? Neste sentido, como você chega até o Brasil
e ao bairro da Liberdade?
A pesquisa para chegar ao Brasil e ao bairro da Liberdade surgiu de um interesse que eu tinha a partir da África, quando eu estava no Togo, da leitura
de Pierre Verger e vendo que havia um laço interessante, enigmático e problemático para mim, que vai da chamada “Costa dos Escravos”, no atual
Golfo da Guiné, até a Bahia de Todos os Santos, e a escrita de Pierre Verger
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é muito especial, foi isso que deu a ideia geral, um elo transatlântico. Por isso
meu interesse pelo Brasil foi primeiro pela África no Brasil. E, por outro lado,
institucionalmente eu estava num instituto francês de pesquisa que trabalha com países do Sul, em cooperação. Então izemos um convênio com a
Universidade Federal da Bahia, juntamente com Nádia Araújo Guimarães,
que estava na UFBA naquela época. E me envolvendo nesses programas com
mobilidade social, em volta da industrialização de Salvador, entrei pelo lado
urbano, dizendo que ia pesquisar a mudança social através dos bairros, da
vida urbana dos trabalhadores, das famílias trabalhadoras envolvidas nessa
mudança social. Então, me falaram sobre o bairro da Liberdade como o primeiro bairro negro da América Latina, que era para eu fazer essa pesquisa lá.
Eu fui morar na Liberdade e comecei essa pesquisa dessa maneira. Foram
essas as redes institucionais para chegar ao Brasil. Para chegar à Liberdade, foi
através de um estudante que tinha família e a família que tinha um primo,
um primo que tinha uma prima que morava na Liberdade. Comecei assim
a chegar e depois morei lá, aluguei uma casa. Alguns colegas da universidade
me disseram: “Que chique, um francês na Liberdade!” Eu achava normal.
E foi assim, morando lá e fazendo amizade, jogando futebol, que tem um
lado engraçado, mas tem também o lado da participação, menos desportivo
e mais participação. A parte mais importante, a partir daí, foi o trabalho com
o Ilê Aiyê, que me deu um envolvimento e engajamento maior e mais importante com isso. Isso foi o mais complicado e também o mais interessante
em termos da relação, de como chegar lá. Porque o Ilê Aiyê era conhecido
como sendo um grupo que não quer brancos, mas eu me dei conta de que os
brancos que eles não queriam eram os brancos da Bahia. O ponto crítico são
as relações raciais na Bahia daquela época; o que eles faziam era um modo de
dizer: “Queremos um espaço fora das relações raciais da Bahia”, foi isso que
as pessoas chamavam de “racismo ao avesso”. Eu entendi que quando eles
diziam “não queremos brancos”, eles não queriam as relações raciais da Bahia.
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Eu entendia essa postura e não era contra ela. Aí tivemos uma espécie de contrato. Eu sabia que eles queriam fazer o acervo do Ilê Aiyê, e disse: “Se vocês
quiserem, eu faço para vocês.” Aí eles me deixaram entrar e acompanhar, não
me disfarçar de negro, mas acompanhar o trabalho e ir a qualquer lugar que
necessitasse, ir até às pessoas, poder entrevistar. E nos entendemos assim. Fizemos formalmente uma reunião, que depois a gente esqueceu, mas eu acho
que foi importante termos essa reunião como reconhecimento recíproco: eu
reconhecendo a autoridade do Ilê sobre este espaço e eles reconhecendo minha proissão de pesquisador. E izemos uma espécie de acordo, porque você
pode entrar e dizer que vai entregar um trabalho de tal maneira depois. E
assim foi feito. Mas depois se esqueceu que havíamos feito um contrato,
um acordo. Esse passo foi a entrada, o reconhecimento recíproco. Eu acho
isso importante. Infelizmente até agora, por vários motivos, não foi publicado em português o livro “A antropologia do carnaval” (Agier, 2000).
Espero que não façam como com o Donald Pierson (1945) e levem anos
para traduzir! Eu entreguei o relatório da pesquisa, que se chama O Mundo
Negro, ao pessoal do Ilê Aiyê, um relatório que dá conta do material que
eu levantei. Fiz um trabalho com 350 letras de samba, um trabalho com o
arquivo do pessoal inscrito no Ilê Aiyê, inclusive fazendo estatísticas sobre
residência, emprego, essas coisas todas. Tem o resultado das entrevistas que
eu iz, as anotações, os eventos e tal. E depois com isso iz um trabalho mais
relexivo, crítico do que é a produção cultural do mundo negro dentro do
espaço do carnaval. Então por vários motivos, até agora [o livro] não existe
no Brasil, mas virou um livro importante para os estudantes franceses interessados pelo carnaval em geral, sendo considerado um modelo de estudo
de caso do carnaval. é muito importante para mim, é óbvio, que saia esse
livro agora sobre antropologia urbana aqui no Brasil, mas o livro sobre o
carnaval da Bahia era para ser antes de tudo em português, para o pessoal
do Brasil e da Bahia.
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Guilhermo Aderaldo: Ainda sobre essa questão do Ilê Aiyê, você conta
como acabou realizando parte de seu trabalho de campo na biblioteca
da UFBA, dado que a descoberta de uma série de redes de atores distintos no processo de formação do grupo o fez compreender o modo pelo
qual a memória é solicitada seletivamente. Esse parece ser o caso da mãe
de santo negra presente na formação do grupo junto a um engenheiro
europeu, entre outros agentes, e que anos depois teve seu papel ressaltado ao mesmo tempo em que os demais foram esquecidos. Neste sentido,
como é possível pensar o contexto urbano quando operamos nessas diversas escalas, num contexto que é ao mesmo tempo local e global?
Foi muito interessante! Primeiro, realmente eu terminei na biblioteca do
CEAO [Centro de Estudos Afro-Orientais da UFBA] para entender como
o pessoal escolheu o nome de Ilê Aiyê. Acho uma reviravolta quando você
encontra a você mesmo ou seu próprio mundo no meio do seu objeto de
pesquisa! Essa objetivação ou intelectualidade da busca de identidade faz
todo um caminho. Assim, hoje em dia, frente a essas construções identitárias, a antropologia ou vai dizer de maneira airmativa, que não é minha
– “O Ilê Aiyê é a pura tradição africana no Brasil! Ou na Bahia!” – ou vai
dizer sob uma forma problemática e compreensiva: “Mas como o pessoal
inventou esse nome?” Aí vai começar a buscar nos lugares reais onde isso
aconteceu, nas relações sociais reais onde isso se transmitiu. Enim, eu acho
que tudo é construção, porque você constrói uma identidade que tem um
marco referencial. Nesse momento o pessoal tinha necessidade de dizer:
“Estamos ligados a essa cultura que está se construindo, que é uma cultura
dos negros, escolhemos o Ilê (a casa) Aiyê que é a réplica do Orum”. Eu
digo isso e eles mesmos dizem melhor do que eu. Quer dizer, essa intelectualização de Ilê Aiyê, porque o mundo material tem relação com o mundo
espiritual dos Orixás, que é a cultura dos negros, isso é a construção. Então
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isso não é minha interpretação, é um dado objetivo do campo e eu quero
entender como isso foi produzido. Eu acho que tradição sempre se inventa,
e que identidade se constrói, porque tradição é o resultado de um trabalho
que se faz com o passado. Porque há o esquecimento, há coisas que a gente
vai buscar no passado porque fazem sentido hoje em dia. Então, estamos
sempre inventando! A ideia de invenção da tradição é um pleonasmo. Sempre é uma construção a partir de um passado amplo. Nesse sentido – com
toda a simpatia que eu tenho pela mãe de santo [Dona Hilda], que é a mãe
de Vovô, presidente do Ilê Aiyê, que eu conheço muito bem, que eu gosto
–, por que se rememora ela e não também aquele europeu de quem até se
esqueceu o nome? Enquanto naquele momento, quando se falava com cada
um, parecia que ele tinha sido um cara muito importante para o grupo,
engenheiro do polo petroquímico, amigo de Apolônio e de Vovô. Foi ele
que deu o livro e disse: “Você vai lá no dicionário iorubá/ português, que
você vai encontrar [o signiicado de Ilê Aiyê].” Eu me pergunto: isso corresponde a alguma invenção de um marco, de um símbolo, que faz com que
haja mais sentido em se reconhecer a mãe de santo, que é a mãe espiritual
desse grupo, como marco referencial da memória, do que dizer que uma
rede de amigos, no meio dos quais havia um engenheiro europeu do polo
petroquímico e meninos que trabalhavam no polo petroquímico da Bahia,
que foram barrados na sua trajetória proissional no polo por motivo de
racismo e que essa raiva social, existente naquele momento na Bahia, junto
a uma forte mobilidade social, se traduziu no espaço do carnaval com todos esses recursos? Então, isso foi minha interpretação de uma construção
cultural. Uma joia em termos de pesquisa. Uma joia de invenção cultural,
para desfazer, desmontar, entender como foram inventando, criando essa
inovação cultural. Obviamente que estamos no contexto urbano do bairro
da Liberdade, uma das mais antigas favelas de Salvador que se tornou um
bairro reconhecido hoje em dia, um bairro negro onde houve muita mobi- 819 -
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lidade social. Mas um contexto também globalizado à medida que naquele
momento, os moradores do bairro da Liberdade estavam mais envolvidos
em contextos maiores, justamente por serem da Liberdade, que não era a
favela mais pobre das favelas. Você é mais globalizado quando mora num
bairro com forte mobilidade social, do que quando mora na favela mais
pobre e desconectada. O bairro da Liberdade, enquanto contexto urbano,
já tinha muitas conexões com a cultura global, mundial. Por isso, por exemplo, que as buscas de temas de carnaval realizadas durante muitos anos,
sobre os países africanos ou sobre negros nos Estados Unidos, sempre contaram com recursos globalizados. é assim que eu participei no ano em que
a Costa do Marim foi o tema do carnaval. Eu iz a “pesquisa tema” do Ilê
Aiyê aquele ano. Enim, quero dizer que o desenvolvimento do grupo vai
além do próprio contexto urbano.
Janaína Damasceno: Mas o seu trabalho sobre “africanização” da
Bahia e sobre a ideia de neotradicionalismo foi bastante polêmico entre o movimento negro. Houve uma repercussão um tanto negativa do
artigo “Distúrbios identitários em tempos de globalização” (2001). Por
que a ideia de invenção da tradição lhes pareceu tão forçada e ofensiva?
Eu tive duas críticas. Uma foi realmente demais: era o francês que amou os
negros(!), porque foi lá e não fez críticas para dizer que o Ilê Aiyê era racista,
por exemplo. Mas é que eu acho muito compreensível a atitude deles [Ilê
Aiyê], eu acho tão lógica! Então, essa foi uma crítica mais ou menos interessante... E a outra é interessante. Inclusive eu tive mais problemas no Rio do
que em Salvador por dizer que o Ilê Aiyê é o movimento culturalmente mais
mestiço que há no Brasil. é uma mestiçagem cultural. é um movimento
negro, mas é uma mestiçagem cultural. E eu continuo dizendo que é uma
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fantástica riqueza cultural! A riqueza é essa mistura toda que estamos vendo!
Quem se tranca e se fecha vai para um empobrecimento cultural. Pode não
ser “politicamente correto” no sentido do movimento negro, digamos mais
“duro”, mas eu acho que isso é importante porque eu não acredito no fechamento da cultura, no fechamento artiicial das identidades, mesmo que seja
forçado, mesmo que se diga: “Vamos fechar nossa identidade, controlar para
ter algo puro, etc.”, ela nunca se fecha, ela está sempre aberta. O exemplo
da França hoje em dia é muito interessante, porque temos um governo que
quer fechar as fronteiras, fechar a identidade nacional, e na verdade, a sociologia da França é completamente diferente do que o governo está dizendo.
Você olha a sociedade francesa real, ela está de fato muito mestiçada, com
famílias mistas que já incluíram pessoas vindas ou descendendo de África ou
do Maghreb. E aquele discurso do governo termina se chocando com todo
mundo. Mesmo pessoas que podem ser politicamente de centro, de direita, ou mesmo pessoas que podem dizer: “Tem mesmo muitos estrangeiros
aqui.”; mas na família tem um primo, uma sobrinha, o que quer que seja,
que é casado, que vive com alguém que vem da África. Então, as famílias
já são bastante avançadas na abertura da identidade, da mestiçagem na vida
real. E você tem um discurso político do governo para fechar a identidade.
Então, há um desencontro importante. Eu acho que isso é verdade para
qualquer movimento identitário, seja de um governo, seja de um grupo.
Em certo momento, politicamente, alguns movimentos querem airmar
uma identidade, mas na verdade eles querem um reconhecimento, o que é
diferente. E eles querem airmar uma identidade e acham que não se deve
dizer como se construiu a cultura dessa identidade. Por isso que no artigo da
Mana que você mencionou, eu chamei essas culturas de culturas identitárias
algo que está se fazendo, em vez de falar de identidade cultural como se fosse
um fato feito, simplesmente herdado. Você airma a identidade de uma cultura, enquanto todas as culturas são produtos mestiços, em transformação.
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E quanto mais misturados, há mais trocas, mais riquezas e inovações dessa
cultura. No Rio, um pessoal me chamou de racista, porque eu dizia que o
movimento negro era culturalmente mestiço. Ali nos confrontamos com
outra questão, que é inalmente uma questão política: o reconhecimento
de um segmento social que está confrontado à exclusão racial, a formas de
marginalização social e ao não reconhecimento político. Mas a superposição
entre a cultura e o reconhecimento político produz essas airmações de identidade, algo “cristalizado” ou ixado que eu não compartilho. Eu as tomo
como objeto de investigação, mas eu não compartilho com isso.
Janaína Damasceno: Mas qual deve ser a posição do antropólogo
quando há esse impasse com o movimento social?
Nós não devemos fugir da discussão, mas ao mesmo tempo é complicado
você sempre estar na posição de “dizer verdades”. é complicado porque,
como cidadão, posso querer dizer verdades como qualquer um e isso não
é tanto o trabalho ou a competência do pesquisador. Além do mais, nas
“verdades” em competição no espaço público não há muita escolha, geralmente é sim ou não, branco ou negro, falta complexidade e nuances.
A competência do cientista social é a de explicar a complexidade de uma
situação. Você explica a complexidade da coisa, você tenta socializar a
experiência que tem ao descrever e atravessar essa complexidade. Eu acho
que o antropólogo se situa sempre numa fronteira. No limite. Ele precisa
implicar-se pessoalmente mas precisa navegar também, se deslocar nos
espaços sociais, sempre se colocando na posição fronteiriça para poder
objetivar. é algo sempre desconfortável, mas é a condição da produção
de um saber ao mesmo tempo subjetivo e objetivo, de dentro e de fora, é
essa a força da antropologia e não se deve perdê-la. Mesmo Lévi-Strauss,
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que não era um grande pesquisador de campo, explica muito bem, na
“Introdução à obra de Marcel Mauss”, essa necessidade de estar ao mesmo tempo um pouco por dentro e um pouco por fora.
Guilhermo Aderaldo: Você fala que esses novos agentes que informam
os pesquisadores muitas vezes são jovens altamente “conectados”, em
muitos casos, com boa escolaridade. E junto com esses jovens há também um circuito de mediadores entre o local e o global, de tal forma
que a tendência é que nesse espaço social de circulação, aquilo que
você produz enquanto pesquisador também seja lido e “utilizado”
pelo “nativo”. Como lidar com essa dimensão da pesquisa?
Acho que no inal, talvez seja importante relatar os seus deslocamentos.
Philippe Bourgois fez isso muito bem em outro domínio. Em Le crack à
New York, Bourgois (1995) conta como ele entrou, com quem se relacionou e como avançou cada dia na pesquisa. Acho que talvez seja uma
das maneiras de fazer. De contar o cada dia de sua pesquisa, como você
vai avançando. O que eu diria, porque eu acho isso, esse relato um pouco demorado é tentar dar conta de todos os lugares que você percorreu
durante sua pesquisa. E dar conta dessas tentativas de objetivar sempre
o objeto da pesquisa. Acho que o objeto da pesquisa não existe. Você
está sempre construindo o objeto, se colocando na fronteira. E talvez, no
inal, a maior objetividade seja a maior subjetividade. Quer dizer, você
conta você mesmo sua trajetória de tentar objetivar alguma coisa. E na
questão do Ilê Aiyê, por exemplo, da cultura negra, é muito óbvio porque
você passa seu tempo a desconstruir, objetivar, desconstruir e vai vendo
pessoas que dão um relexo, às vezes, essencialista da identidade. Ou seja,
quando você tem um relexo essencialista, você tem que desconstruir,
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objetivar e pensar em que contexto se faz isso. Aí o próprio contexto dá
outra camada de interpretação. E você tem que reobjetivar cada vez e isso
não tem im.
Isabela Oliveira: A partir da sua experiência de pesquisa, quais as
especiicidades de se fazer uma antropologia urbana, ou mesmo uma
antropologia da cidade, num contexto africano e num contexto latinoamericano. Há mais aproximações ou distanciamentos?
A priori tem muita diferença. Há uma urbanização enorme, megalópolis
na América Latina, e um desprovimento no contexto africano. Mas eu
acho que minha perspectiva começou na África, depois na América Latina, e esse ano na Europa, num trabalho com acampamentos de migrantes
ditos “clandestinos” na Grécia, na Itália e na França.
Eu parto da situação de desnudamento, de um certo vazio. é isso que eu
chamei de cidade nua (Agier, 1999). São aglomerações, pessoas que se juntam, mas não têm nada. O modelo, digamos, é o acampamento de deslocados, pessoas que estão juntas sem nada. O que acontece? Acontece que
tem uma duração que começa, e relações começam, famílias se formam,
constroem-se casas. Você pode observar um processo que vai fazendo aos
poucos uma cidade. Então, para mim, você encontra esse processo em todos os lugares do mundo, é o processo da cidade, que eu chamei do “fazer
cidade”. Mesmo nas megalópoles você encontra um lugar marginalizado. E
é necessário descentrar o olhar para os lugares onde começam os processos
que vão formando algo que a gente, depois, chama de cidade. Quando você
está na extrema materialidade, você está numa situação onde parece que
tudo já foi feito. é como diz Marx, o trabalho morto. Você não vê o trabalho que já está feito. Parece que isso é a naturalidade da cidade. Referindo- 824 -
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se à Escola de Chicago, por exemplo, para Park isso é o habitat natural do
homem civilizado. Parece que o habitat natural da cidade é aquela grande
coisa, grandes prédios, carros, ruas, barulho... E você não vê o processo que
fez isso. Então, partindo da África, digamos, e daqueles pequenos bairros,
como aquele bairro de estrangeiros no Togo que eu estudei faz tempo, podemos dizer que sempre se repete o mesmo processo: o pessoal chega negociando como comerciante estrangeiro, ambulante, etc., chega de um outro
lugar e as pessoas da cidade dizem para eles: “Fiquem aí!” O espaço se torna
o acampamento dos estrangeiros, chamado “zongo” na língua haoussa. E se
ampliica assim, depois de anos e décadas, se torna um polo urbano importante. E o acampamento pode se tornar um gueto, se torna muitas coisas.
Mas você vê assim o processo. Então, para mim, de fato, se parece muito
diferente o que a gente chama de cidade na África, na América Latina e na
Europa. Mesmo assim, a cidade que a gente vê e pela qual se interessa enquanto antropólogo e não enquanto sociólogo, arquiteto, urbanista, o que
quer que seja... Enquanto antropólogo você se pergunta: qual é o processo
de invenção desse espaço? Então, é interessante tomar essas situações de
maneira descentrada, onde a coisa não está feita ainda, está se fazendo, e é
interessante acompanhar e recompor o processo que fez isso. Por isso eu me
interesso por espaços aparentemente marginais, acampamentos, formação
de guetos. Trata-se de entender o processo de formação de um espaço que
depois de décadas vai se chamar de cidade.
Janaína Damasceno: É possível considerar a relação da antropologia
e dos processos traumáticos na constituição das cidades? Eu gostaria
de saber se de algum modo isso faz sentido: pensar a cidade a partir
de uma ou um conjunto de experiências traumáticas em seu processo
de constituição.
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As cidades da antropologia: Entrevista com Michel Agier
Eu tive contato com esse conceito de trauma trabalhando na questão
das guerras, violência e deslocamento de pessoas. No trauma, você tem
que ver a diversidade de efeitos sobre as pessoas de um mesmo evento,
que a gente chama de traumático, de uma guerra, um massacre, em função dos recursos que essas pessoas têm. Tomar o trauma nesse sentido
do sujeito do trauma me parece mais complexo e, portanto, tendo mais
possibilidades de análise. Tomar o trauma enquanto evento que marca
um corte, acho que é importante. Creio que muitas cidades se formaram
pelas guerras, por exemplo. Muitas cidades nasceram como acampamentos. Muitas cidades nasceram com um grupo armado que se colocou em
algum lugar. Quer dizer, tem um evento violento que está na fundação
de um espaço ou de uma cidade. Nesse sentido, aceito a ideia de trauma.
Mas eu temo muito os efeitos analíticos de uma superemoção ligada à dor
que há na ideia de trauma. Acredito na ideia de um evento fundador, de
uma violência fundadora, de algo que marca uma ruptura com o estado
normal das coisas, um estado anterior. Essa ruptura toma forma de uma
violência, de um deslocamento de uma população, por exemplo, ou de
uma guerra, e funda algo novo.
Heitor Frúgoli Jr.: Seu interesse pela questão dos refugiados começou
com sua pesquisa na Colômbia? Você poderia contar um pouco do que
viu lá que o ajudou a conigurar essa ideia?
Tem a ver. A especiicidade de migrações, que não eram exatamente migrações, mas deslocamento de populações dentro de um contexto violento. No início, o programa de pesquisa que a gente tinha na Colômbia
nasceu no Brasil, na Bahia! Eram colegas colombianos que tinham vindo
como visitantes na UFBA, enquanto eu estava fazendo esse projeto que
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depois se chamou A Cor da Bahia, sobre relações raciais e cultura negra
na Bahia. E o pessoal queria duplicar isso na Colômbia. Na Colômbia
também tem população negra do Pacíico, tem movimento negro e queriam fazer essa pesquisa. Então a gente fez esse projeto sobre migrações da
população afro-colombiana do litoral do Pacíico para as grandes cidades,
como Cali. Mas quando a gente fez essa pesquisa, entre 1997 e 1999,
estava em plena retomada do conlito interno, um desenvolvimento importante das FARC e muita violência, muita guerra interna. Era uma
fase importante de deslocamentos de, como chamam lá, desplazados. E
muitos desplazados que chegavam em cidades maiores, Medellín, Bogotá
e Cali. Em Cali há um bairro que é um duplo da cidade, que se chama
Agua Blanca, que tem 500, 600 mil pessoas. é um lugar onde tem pessoas
mais pobres, negras, migrantes etc. E era o lugar também onde chegavam
os desplazados. Então, dentro desse contexto, falei com os colegas: “Isso
não é migrante! Isso não é migração!” Isso é algo que tem a ver com um
certo trauma. E a primeira coisa que me tocou foi a ideia de como você
diferencia uma migração de um deslocamento forçado de população. é
muito pelo trauma que as pessoas lhe contam que viveram, a violência da
partida, a violência que eles próprios viveram ou presenciaram. Começou
assim, com uma relexão de como se vive essa violência, o que é um deslocamento forçado e de como as pessoas vivem com aquele trauma de ter
passado por fases da biograia muito violentas e o que eles fazem com isso
depois. Como eles contam isso, testemunham isso. Foi assim que começou esse interesse. Voltando depois de lá, me parecia óbvia a questão de
se perguntar: será melhor ter um acampamento ou nada? Melhor ter um
lugar de proteção ou se espalhar na cidade? Como as pessoas fazem para
viver nesse contexto violento? Foi assim que eu iz todas essas pesquisas
durante anos sobre os campos de refugiados na África, a partir dessa pergunta, que é, ou parece ser, a mesma pergunta das organizações interna- 827 -
As cidades da antropologia: Entrevista com Michel Agier
cionais, que são da proteção, mas no inal das contas termino dizendo que
“no camps!” O pior é o encerramento das pessoas! Claro que a proteção é
necessária, mas os campos na África e agora na Europa e em muitos lugares são, antes de tudo, uma maneira de se organizar uma gestão de pessoas
que você não quer integrar. é uma forma de governo indireto e distante
que garante o afastamento das pessoas indesejáveis (Agier 2008).
Guilhermo Aderaldo: Essa é uma ideia de gestão que parece combinar muito bem com a questão da cidade moderna, à medida que essa
cidade é sempre vinculada a uma imagem de civilização. Qual é a
contribuição da “antropologia da cidade” para uma discussão mais
ampla da própria antropologia?
Bom, primeiro, o urbano está se tornando algo, não generalizado, mas
muito importante. Então é difícil não estar num ambiente urbano. Qualquer pessoa que a gente pesquise, todas têm a ver com o contexto urbano.
E de outra forma, eu diria, que os contextos urbanos, os processos urbanos, eles experimentam de maneira muito explícita os processos sociais,
em geral. Hibridação, mestiçagem, fundação de lugares, relação de identidade e alteridade, etnicidade, todas as problemáticas que a antropologia
tem são mais agudas, fortes e explícitas em contextos urbanos. Porque
o próprio contexto urbano é o encontro, eventualmente o conlito, o
encontro com o outro. Por exemplo, a questão das fronteiras. Podemos
tratar das fronteiras de identidade, que é uma questão maior na antropologia, a partir dessa fragmentação do urbano nas grandes metrópoles
como São Paulo, Los Angeles e outras grandes cidades do Oriente Médio,
que vêm privatizando e criando fronteiras dentro do espaço urbano, através do uso de polícias privadas, de ruas com segurança privada etc. Há,
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Revista de Antropologia, São Paulo, USP, 2010, v. 53 nº 2.
no contexto urbano, toda uma matéria prima para se pensar e pesquisar
sobre a questão da fronteira e, portanto, da identidade. Isso é central na
problemática antropológica.
Guilhermo Aderaldo: No livro Culturas Híbridas, de Nestor Canclini
(1997), ele cita uma experiência que viveu em Tijuana, no México,
quando pediu para que algumas pessoas fotografassem elementos signiicativos da cidade na perspectiva delas. E a imensa maioria das
fotos tiradas por essas pessoas continha elementos de fronteira. Isso é
muito signiicativo nesse sentido, não é?
Para dizer o si, se mostra o limite do si para o outro. A substância nunca
se encontra. O que você pode descrever são os limites e as fronteiras. LéviStrauss airma que a identidade é um foco virtual, ao qual a gente sempre
se refere sem nunca encontrá-lo. E tudo o que a gente pode descrever,
enquanto antropólogo, é o limite, a fronteira, a diferença, o encontro
com o outro.
Janaína Damasceno: Quando você se refere aos campos de refugiados,
fala de um certo “limbo” de cidadania e acaba por reletir sobre o
que chama de “governo dos indesejáveis”. Como você vê esta questão,
inclusive na Europa?
A questão da não-cidadania do refugiado refere-se, antes de tudo, à falta do Estado. São pessoas [para quem] faltou o Estado social, o Estado
político, o Estado que protege, o Estado que representa. Eles fugiram,
foram expulsos ou saíram por se sentirem ameaçados, abandonados, ou o
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As cidades da antropologia: Entrevista com Michel Agier
que quer que seja, e eles estão num certo momento do percurso em que
não há uma relação do indivíduo com o Estado. Então, há um problema
de cidadania no sentido mais violento do Sem-Estado, do qual Hannah
Arendt já tinha falado à propósito dos indivíduos refugiados, e de certa
forma o campo cria o limite físico da não cidadania. As organizações
internacionais e as ONGs não tratam de cidadãos, elas tratam de vítimas
ou de pessoas perigosas, mas é o mesmo trato, às vezes as vítimas podem
ser pessoas vistas também como perigosas. Não é nenhuma crítica dizer
que não há cidadania. é uma constatação, é a própria base do sistema.
Torna-se uma questão política quando isso se generaliza, quando isso se
expande e dura. Hoje em dia, há pelo menos mil campos de refugiados
ou desplazados no mundo. Pelo menos doze milhões de pessoas que estão
coninadas em campos. Além disso, você tem 250, 300 zonas de espera,
zonas de transição, centros de retenção, centros de detenção para estrangeiros, estes últimos na Europa. E não conto nisso os que têm os EUA na
fronteira com o México. Mas só falando no Oriente Médio, África, Ásia,
Europa, você tem essa quantidade. Então quer dizer que esse espaço do
não cidadão, o espaço da pessoa sem relação com o estado nacional é algo
que se torna um dos modos de ser no mundo, na mundialização de hoje
em dia. E a minha relexão vai em direção ao que eu chamo de governo
dos indesejáveis, um governo humanitário e policiado das pessoas que não
têm relação com o Estado, um governo sem cidadãos. E isso é um modo
de gestão política que está se desenvolvendo no mundo. Não é puramente
uma questão econômica, é uma questão política que consiste em criar
espaços fora dos espaços “normais”, na extraterritorialidade. E, hoje em
dia, esses espaços têm essa forma em que se desenvolvem campos, mais
ou menos fechados, pois há várias modalidades [de campos de refugiados]
fechados ou não fechados. E essas pessoas não têm escolha, a não ser sobreviver nesses espaços. E se tomamos as situações europeias (talvez ali se
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Revista de Antropologia, São Paulo, USP, 2010, v. 53 nº 2.
possa comparar com algumas situações latino-americanas) de subúrbios
afastados, onde se encontram os estrangeiros ou os ilhos dos estrangeiros
que foram colocados e mantidos nesses espaços à parte, ali temos esses espaços outros, como disse Foucault, que eu retomo através da ideia das novas heterotopias, dos novos espaços outros que se criam e que se parecem
no mundo. Como algo em que você pode observar a escala global, não só
a escala nacional. E a gente precisa tomar a escala global, mundializar o
olhar sobre um país. Então, é assim que eu vejo a questão dos estrangeiros na Europa, um corredor de exílio, como eles chamam. O corredor de
exílio é esse espaço à parte, um corredor de onde as pessoas migrantes não
saem, sendo ali estigmatizadas como estrangeiras indesejáveis.
Isabela Oliveira: Há pouco você se referiu à chamada Escola de Chicago para falar da ideia da cidade como habitat natural do homem
civilizado. E muitas leituras sobre a tradição dessa Escola advêm exatamente da França. Por que o interesse da França de pensar historicamente a Escola de Chicago, por exemplo, ou de retomar uma leitura de
uma escola anglo-saxã como a Escola de Manchester?
Eu acho que isso se inicia mais ou menos no período em que eu era estudante. Era o período da crise da antropologia dita marxista, o período da crítica ao estruturalismo e então uma releitura ou leitura de tradições chamadas
anglo-saxãs na França, no início de 1980. Eu teria que lembrar exatamente as
datas de tradução e apresentação que Isaac Joseph faz da Escola de Chicago,
acho que foi no inal de 1970 e início de 1980. E a tradução por [Pierre]
Bourdieu, de Erving Gofman, La Mise en scène de la vie quotidienne (1973),
que é do mesmo contexto. é o começo do interesse na França pela história da
Escola de Chicago e pela Escola de Manchester, que acho muito importante.
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As cidades da antropologia: Entrevista com Michel Agier
Eu acho que isso corresponde a um momento de uma certa crise, de uma
retomada crítica das grandes teorias objetivistas, seja a estruturalista, que é
herdeira de Lévi-Strauss, ou a linguística estrutural, ou a antropologia econômica marxista. Você tem um momento onde se critica essas teorias globais do
mundo e os pesquisadores se voltam para as interações do campo, para observar as relações sociais, a funcionalidade das relações sociais, e sobretudo as
subjetividades. Então, o retorno a um certo empirismo passa pela descoberta
da primeira Escola de Chicago – Park, Burgess etc. – e para o interacionismo
– Gofman. A fascinação de Bourdieu pelo trabalho de Gofman é estranha
porque Bourdieu é daquela sociologia “dura”, muito estrutural naquele momento. Então é uma espécie de busca pós-estrutural: “Mas o que é a prática
mesmo?” “Por que as relações são assim e não de outra maneira?” Saindo das
grandes teorias gerais, macro etc. E o interesse pela abordagem situacional da
Escola de Manchester é interessante porque nos anos 1950, George Balandier, por exemplo, trabalhou com a ideia da “situação colonial” e criticou a
etnologia africanista, dizendo: “Não são povos primitivos, não são indígenas.
São colonizados!” Essa é a grande diferença com a etnologia africanista francesa dos anos 1950. E criou o conceito de situação colonial exatamente no
momento em que Gluckman, Mitchell e outros da Escola de Manchester estavam realizando a análise situacional, ou seja, descrevendo casos e entendendo esses casos através de uma análise contextual. Isso no inal dos anos 1940,
início dos anos 1950. Mas naquele momento isso não fez uma contra corrente ao estruturalismo. Porque não se podia competir com essa representação
do mundo todo para qual abria o estruturalismo. E os antropólogos marxistas
que foram importantes nos anos 1960 criticavam o estruturalismo, dizendo
que ele não era politizado, que não se interessava pelo substrato econômico, e
por outro lado criticavam a Escola de Manchester dizendo que era funcionalista. E só depois dessas críticas é que se voltou a ter esse interesse pela Escola
de Chicago e pela Escola de Manchester – que vêm da mesma necessidade,
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Revista de Antropologia, São Paulo, USP, 2010, v. 53 nº 2.
da força do empirismo, da importância do empirismo. Ou, talvez, para se
entender melhor, havia uma busca sobre o sentido das relações sociais. Aquelas pequenas relações sociais que a gente pode observar, não aquelas grandes
construções. Mas está havendo não só na França, mas na Europa em geral,
estudos sobre a história da Escola de Manchester, tem esses três livros que saíram em inglês que indicam a importância da África na Escola de Manchester.
E, na França, depois do primeiro trabalho de tradução de Isaac Joseph, têm
sido realizados estudos sobre a história da Escola de Chicago.
Janaína Damasceno: Todo o seu trabalho é bastante devedor de uma
antropologia das situações. Você chegou a traduzir A Dança Kalela de
Clyde Mitchell.
Sim. Eu traduzi he Kalela dance (MITCHELL, 1956) para o francês,
porque eu acho que é um modelo da etnograia política de uma situação. Eu me inspirei muito nisso para trabalhar com carnaval, primeiro
porque tem todo um trabalho de saber descrever uma situação, que não
é um evento, mas algo que você recompõe na escrita, através de várias
observações, você termina fazendo a sua descrição, a melhor possível, e de
certa forma é mais fácil fazer uma descrição sistemática quando trata-se
de um ritual como é o caso da dança do Kalela. Depois Mitchell constrói
a análise dessa situação e o que os trabalhos de Gluckman ou de Mitchell
mostram é que você pode mobilizar todos os recursos da interpretação
histórica, contextual nacional, contextual internacional, tudo se mobiliza dentro de uma situação dada e você pode medir os efeitos de um
elemento no outro elemento de contexto. Por exemplo, eu acho interessante saber se outro contexto, lugar, coniguração social é mais ou menos
mundializado, pois não somos iguais na mundialização. E para isso o
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As cidades da antropologia: Entrevista com Michel Agier
interessante é poder fazer uma análise de situações, de rituais, de eventos
que lhe permitem medir o peso de cada elemento de um contexto, então
esse é um dos recursos da análise situacional. Outro recurso é o da diiculdade dos limites dentro do mundo urbano, do mundo de hoje: já que
nós criticamos os limites tribais, étnicos, aldeia, qual o limite de minha
unidade de base? Há um texto em francês que é excelente, “L’Empirisme
Irréductible” de Olivier Schwartz (1993), que trata de todas as maneiras
de se apreender a base empírica de qualquer investigação. Mas qual é o
limite da unidade empírica de referência, se estamos na crítica de todas as
abordagens etnológicas stricto sensu, as da etnia? Será que o bairro é um
bom limite para investigar, ou a casa, ou o quarteirão – essas perguntas
que nós sempre temos. Olivier Schwartz trata muito disso e para mim a
análise situacional permite responder isso sem se prende la tête, sem quebrar demais a cabeça.
Natália Fazzioni: Eu gostaria que o senhor falasse um pouco mais
sobre a sua preferência por uma etnograia dos espaços que chama de
“marginais” no contexto urbano. E também saber se essa relexão se
deve a uma relação próxima com as Escolas de Manchester e de Chicago, já que ambas estão pensando nesse contexto: a primeira a partir
dos estudos coloniais e a outra, a partir dos estudos urbanos, dos estudos de violência e de desvio.
Eu teria que retomar minha biograia para ver se isso tem realmente a ver
com a Escola de Chicago ou com a Escola de Manchester! Interessar-me
por espaços ditos marginais, pelo desnudamento, é como uma aposta
metodológica. é porque aí você vê melhor os processos, senão você acaba
repetindo o que os outros estão fazendo. Quando eu comecei a pesquisar,
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Revista de Antropologia, São Paulo, USP, 2010, v. 53 nº 2.
briguei com geógrafos, sociólogos etc., eu dizia: “O urbano não me interessa, tudo me interessa, não é o urbano. Eu não faço antropologia urbana, eu faço antropologia em qualquer lugar, não me interessa saber se é
urbano ou não urbano, por exemplo. Eu quero entender os processos sociais.” Isso porque os geógrafos urbanos, sociólogos urbanos, urbanistas,
arquitetos têm o objeto já deinido pela materialidade, pela cartograia ou
pelas fronteiras. Uma vez, eu iz um pequeno texto sobre a cartograia.
Quando eu comecei a pesquisar na Bahia, eu botei na minha parede um
mapa de Salvador e botei mil coisas sobre esse mapa! Aqui tem isso, aqui
tem cheiro, aqui tem uma igreja, aqui tem mais negros, aqui tem mais
brancos e logo comecei a entender o que era essa cidade, mas se eu fosse
aí nesse momento traçar os limites dos bairros, por exemplo, não teria
sentido. Eu tinha feito uma cartograia das regiões morais, como dizem
na Escola de Chicago, que não era o mesmo mapa daqueles cartógrafos.
Porque no inal eu julguei que não precisava mais do mapa, porque eu
podia me articular na cidade, eu não me perdia mais, eu sabia onde estava. E o cartógrafo nos dá a ideia de que ele está mostrando a realidade,
enquanto ele está mostrando uma representação da realidade. é certo que
essa verdade dada da cidade pelas outras competências que trabalham
com a cidade é interessante. Mas o que é que o antropólogo faz? Vai reproduzir isso tudo? Faz muito tempo, Richard Fox (1977) propôs uma
“antropologia urbana” que era algo como pesquisar sobre a identidade
cultural da cidade, mas se você não discute o processo que faz isso, para
que adianta? Você não discute os limites de seu mapa, mas quando fala
culturalmente da cidade, chama o antropólogo. Isso é muito frequente:
utilizar a antropologia como suplemento cultural. Não, o que me interessa é o que eu posso fazer, dizer sobre aquele processo que fez com que,
num certo momento, aqueles limites se izessem, aquelas fronteiras se
izessem, aquele espaço se criasse. é por isso que se vai em espaços que
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As cidades da antropologia: Entrevista com Michel Agier
estão nas heterotopias ou o que chamamos ban-lieu, o lugar do limite. E
observa-se o que vai entrar ou vai sair nesse espaço de fronteira. O que
também faz com que esse espaço termine existindo ou não existindo –
porque ocorre também que campos de refugiados podem ser arrasados,
bem como acampamentos informais podem desaparecer –, porque há
uma precariedade da realidade que você sempre maneja nesses espaços
que talvez não vão continuar a existir. Isso é o que é interessante no plano
metodológico, é o processo, a gênese que você pode observar.
Guilhermo Aderaldo: Ainda sobre os campos de refugiados, como foi
fazer etnograia nesses espaços? Como foi a relação com as ONGs, com
os agentes humanitários, com as pessoas que estavam ali?
Quando eu decidi que precisava pesquisar em campos de refugiados, fui me
aproximar do ACNUR [Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados] para ter as autorizações e negociar algumas coisas, o que foi muito
complicado. Durou mais de um ano para tentar negociar, eu fazia um projeto
que eles queriam, mas enim, terminei não me entendendo com o ACNUR.
Entendi depois o porquê. é uma dessas grandes máquinas poderosas que
quer controlar tudo. E através do Centro de Estudos Africanos, onde eu estava, eu me dei conta que existia um colega que fazia parte do Médecins Sans
Frontières, Médicos Sem Fronteiras (MSF), do conselho de administração, e
ele me fez o contato com esse pessoal. Fui apresentar a minha proposta de
trabalho ao presidente da MSF, que a achou muito interessante. Agora digo
isso, porque depois de muitos anos eu escrevi coisas muito críticas ao sistema
humanitário e às ONGs, mas naquele momento eu estava realmente fascinado pela sua potência. Ele achou muito interessante a minha proposta de
pesquisar campos de refugiados, como funcionam, quais são as relações de
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Revista de Antropologia, São Paulo, USP, 2010, v. 53 nº 2.
poder, tudo. O MSF é conhecido por ser muito crítico e autocrítico, então
gostam de pesquisadores, tem um centro de pesquisas dentro do MSF também, mas o que eu lembro muito bem é que naquele momento, Jean Hervé
Bradol, o presidente do MSF-França, me mostrou com o dedo o mapa do
mundo e disse: “Escolhe!” (risos) E então, conversamos sobre qual era o melhor lugar para entender os campos de refugiados e terminamos pensando
que seriam os campos de Dadaab no Quênia, porque já eram uns campos velhos e poderiam dar possibilidades de pesquisas tranquilas e interessantes em
termos de substrato social. Então me puseram em relação com o pessoal do
MSF-Bélgica, porque nesse campo era o MSF-Bélgica que fazia a intervenção. E foi aí que iz o contato e fui passar dois meses primeiro lá no Quênia
com refugiados somalis, depois comecei a trabalhar com o MSF. Apresentei
meu trabalho com pessoas que iam fazer intervenções humanitárias, comecei
a discutir, a construir uma crítica dos campos também, o pessoal começou
a se interessar por isso e terminei sendo eleito como membro do conselho
de administração do MSF. Isso foi interessante e complicado, ou não tão
complicado, não sei. Em certo momento, eu me envolvi como pessoa, não
como pesquisador, mas como militante nas disputas, no dia a dia dessa organização e passei seis anos como eleito no conselho de administração. Foi uma
experiência extraordinária, foi disso que eu tirei uma crítica, não das pessoas,
não de tal ou tal organização, mas do sistema de poder que eu chamo de governo humanitário, que é uma das potências que existem no mundo, junto
com a ONU. Há umas seis ou sete organizações internacionais, entre elas o
MSF, algumas delas que têm mais fundos, mais dinheiro que o ACNUR,
por exemplo. Daí o poder da OXFAM, da MSF, da CARE. Essas organizações têm uma potência inanceira e um poder político muito grande. Então
circulei no meio do mundo humanitário e ao mesmo tempo nos campos de
refugiados, onde eu entrava com e como um membro do MSF. Eu era um
branco e todos os brancos nos campos de refugiados são consideradas “UN”,
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As cidades da antropologia: Entrevista com Michel Agier
como as pessoas dizem... “UN”, ou seja, das Nações Unidas, e isso foi interessante porque você pode brigar na França ou nos Estados Unidos dizendo
que o MSF é muito diferente da OXFAM, que a OXFAM é muito diferente
da CARE, que a CARE é muito diferente da Cruz Vermelha, mas para os
refugiados nos campos tudo é UN. Os poderosos dos campos, seja o pessoal
das organizações humanitárias, seja o pessoal da organização, é tudo “UN”.
Heitor Frúgoli Jr.: Paris não é uma cidade que você pesquisa, já que
você elegeu outros campos. Mas eu gostaria de saber do seu olhar de
antropólogo sobre Paris. Que ideias você tem quando você observa
essa cidade?
Eu não sou parisiense, eu digo isso porque passei muito tempo da minha vida pessoal e proissional não querendo ir para Paris. Fui para Paris
porque era o lugar mais inclusivo no mundo, quer dizer, para circular
pelo mundo como eu faço, era mais simples morar em Paris, do que em
Montpellier ou Marseille. Paris é a mais cidade-mundo que nós temos na
França. Bem, eu não faço pesquisa em Paris, mas terminei uma pesquisa
agora com acampamentos de “clandestinos” na Europa e o inal da pesquisa terminou praticamente na porta da minha casa, porque no Canal
Saint-Martin (um dos canais que dá no Rio Sena) há imigrantes afegãos
sem-teto que colocam barracas no canal e isso ica a 100 metros do meu
apartamento. O campo está na minha casa! Esse é um trabalho que izemos com uma fotógrafa [Sara Prestianni], que vai sair no início de 2011.
é um trabalho sobre a ideia de refúgio chamado “ ‘Je me suis réfugié là!’
Bords de routes en exil”. Ele foi realizado na Grécia, em Roma, em Calais
no norte da França e em Paris. Há um outro trabalho que estou coordenando, com uma ex-doutoranda que agora é professora, uma colega e
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uma jornalista, que se chama “Refúgios em Paris” e que tenta entender
dentro daquela cidade, daquela grande cidade, a presença de espaços de
interstício, onde você tem pessoas que procuram aquele tipo de refúgio.
Tem um caso conhecido pelos parisienses que é dos afegãos que moraram
durante muitos anos no Parque Villemin [no décimo arrondissement de
Paris] e que foram tirados pela polícia no ano passado, mas que icaram
lá durante um bom tempo, e a reação das pessoas do bairro, uns contra
e outros fazendo uma associação para dar apoio. Um outro trabalho é
sobre a vida familiar, pessoal, íntima, dos sans abris, quer dizer de pessoas
que vivem na rua, enim há também um outro trabalho sobre situações
e lugares que existem em Paris e que talvez as pessoas não saibam como,
por exemplo as barracas que as pessoas constroem embaixo das pontes
(assim como em São Paulo). Isso também tem em Paris, em terrenos
vazios, onde constroem-se cabanas e as pessoas que se instalam nelas são
geralmente imigrantes, mas também ciganos romenos ou turcos. Por último, há um estudo dos squats, ocupações de apartamentos e imóveis por
africanos. Então o propósito desse projeto é explicar que ter esses tipos
de refúgio em Paris é também uma maneira de Paris estar no mundo, é
uma forma da mundialização urbana. A partir dali, podemos retomar o
projeto político que foi levado um tempo por Derrida (1997), aquele da
cidade-refúgio, quando explicava que hoje em dia estamos a esperar da
cidade aquilo que o Estado se recusa a dar, que é a hospitalidade. Por esse
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