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C urso de Processo Penal Eugênio Pacelli de Oliveira Mestre e doutor em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Procurador Regional da República no Distrito Federal e Relator-Geral da Comissão de Anteprojeto do Novo Código de Processo Penal instituída pelo Senado da República 1 Curso de Processo Penal 18ª Edição Revista e Ampliada. Atualizada de acordo com as Leis n' 12.830, 12.850 e 12.878, todas de 2013 SÃO PAULO EDITORA ATAS 5.A. - 2014 I 2011 by EditoraAtlas S.A. As 1 S primeiras edições são da Lumen Juris; 16. ed. 2012; 17. d. 2013; 18. ed. 2014 Capa: Leonardo Hermano Projeto gráfico e composição: Set-up TimeArtes Gráficas Dados Intenacionais de catalogaão na Publicaão (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, S. Brasil) Oliveira, Eugênio Pacelli de Curso de processo penal I Eugênio Pacelli de Oliveira. - 18. ed. rev. e ampl. atual. de acordo com as leis n' 12.830, 12.850 e 12.878, todas de 2013. - São Paulo: Atlas, 2014. Bibliografia. ISSN 978-85-224-8631-1 ISSN 978-85-224-8632-8 (PD) 1. Processo penal 2. Processo penal - Brasil 1. Título. 11-12156 CDU-341.1 Índice para catálogo sistemático: 1. Processo penal : Direito penal TODOS OS DIREITOS RESERVADOS - 343.1 � proibida a reproduçAo total ou parcial, de qualquer forma ou por qualquer meio. A violação dos direitos de autor (lei n° 9.610198) é crime estabelecido pelo artigo 184 do Código Penal. ..1 EditoraAtlas S.A. Rua Conselheiro Nébias, 1384 Campos Elísios 01203 904 São Paulo SP 011 3357 9144 atlas. com.br CAPÍTULO Da Prova 1 9.1 Teoria da prova Normalmente, a doutrina refere-se a uma teoria geral da prova para in­ troduzir o tema relativo à prova no processo penal. A nosso juízo, uma teoria acerca de qualquer objeto de investigação científica haverá de ser sempre geral, no sentido de examinar integralmente o conteúdo e a essência daquele objeto. Por isso, o exame, se for rigoroso, há de ter a pretensão de ser tam­ bém geral. Daí a desnecessidade da referência ao aludido predicado, com o que ficaremos apenas com a expressão teoria da prova, para indicar o estudo dos princípios e regras aplicáveis ao tema, sem adentrar, ainda, a análise dos meios de prova . A prova judiciária tem um objetivo claramente definido: a reconstrução dos fatos investigados no processo, buscando a maior coincidência possível com a realidade histórica, isto é, com a verdade dos fatos, tal como efetiva­ mente ocorridos no espaço e no tempo. A tarefa, portanco, é das mais difíceis, quando não impossível: a reconstrução da verdade. Ao longo de toda a sua história, o Direito defrontou-se com o tema da construção da verdade, experimentando diversos métodos e formas jurídicas de obtenção da verdade, desde as ordálias e juízos de deus (ou dos deuses), na Idade Média, em que o acusado submetia-se a determinada provação física 328 Curso de processopenal • Pacelli (ou suplíio), de cuja superação, quando vitorioso, se lhe reconhecia a veraci­ dade de sua pretensão, até a inrodução da racionalidade nos meios de prova. Tourinho Filho cita os seguintes exemplos do sistema ordálico: "Havia a prova da água fi.a: jogado o indiciado à gua, se submergisse, era inocente, se viesse : tona seria culpado [. . .] A do ferro em brasa: o pretenso culpado, com os ps descalços, teria que passar por uma chapa de ferro em brasa. Se nada lhe acontecesse, seria inocente; se se queimasse, sua culpa seria manifesta [. . .]" (1992, v. 3, p. 216). De uma verdade inicialmente revelada pelos deuses a outra, produzida a parir da prova racional, submetida ao contraditório e ao confronto dialético dos interessados em sua valoração, o Direito, em geral, e, mais especificamen­ te, a partir do século VIII, com a evolução da processualização da jurisdição, o processo penal, sempre se ocupou da reconsrução judicial dos fatos idos por delituosos. Ora com a preocupação voltada exclusivamente para a satis­ fação dos interesses de uma não bem deinida segurança pública, ora com a atenção também dirigida para a proteção dos interesses do acusado, sobretu­ do quando este passou a ocupar a posição de sujeito de direitos no processo, e não de objeto do processo. Por mais diícil que seja e por mais improvável que também seja a hipó­ tese de reconstrução da realidade histórica (ou seja, do fato delituoso), esse é um compromisso irrenunciável da atividade estatal jurisdiional. Monopo­ lizada a jurisdição, com a rejeição de qualquer forma de solução privada e unilateral dos conflitos (sociais, coleivos ou individuais), impõe-se a atuação do Direito, sempre que presente uma questão penal, entendendo-se por essa a prática de determinada conduta, por alguém, definida em Lei como crime, porque suiciente para causar lesão ou expor a perigo de lesão um bem ou valor juridicamente protegido. Assim, ainda que prévia e sabidamente imperfeita, o processo penal deve construir uma verdade judicial, sobre a qual, uma vez passada em jul­ gado a decisão inal, incidirão os efeitos da coisa julgada, com todas as suas consequências, legais e constitucionais. O processo, portanto, produzirá uma certeza do tipojurídica, que pode ou não corresponder à verdade da realidade histórica (da qual, aliás, em regra, jamais se saberá), mas cuja pretensão é a de estabilização das situações eventualmente conlituosas que vêm a ser o objeto da jurisdição penal. ara a consecução de tão gigantesca tarefa, são disponibilizados diversos meios ou métodos de prova, com os quais (e mediante os quais) se espera Da Pova 329 chegar o mais próximo possível da realidade dos fatos investigados, subme­ tidos, porém, a um limite previamente deinido na Constituição Federal: o respeito aos direitos e às garantias individuais, do acusado e de terceiros, pro­ tegidos pelo imenso manto da inadmissibilidade das provas obtidas ilicitamente. O exame acerca dos meios de prova disponveis, bem como da idoneida­ de e da capacidade de produção de certeza que cada um deles pode oferecer, deve ser precedido da idenificação dos princípios e das regras gerais a eles aplicáveis. a) Contraditório e ampla defesa Conforme adiantado por ocasião do exame dos princípios undamentais do processo penal, a abordagem a ser feita aqui destina-se mais à contextua­ lização do tema, no âmbito da teoria da prova, que propriamente a uma nova airmação dos fundamentos dos citados princípios. A referência feita aqui é mais para destacar a enorme importância que ocupam no cenário temáico das provas, em que dão o tom da efetiva partici­ pação do réu na formação do convenimento judicial e, assim, na construção do provimento inal de méito. Lembraremos apenas que o contraditório, cuja compreensão até a década de 1970 limitava-se à garantia de participação das partes no processo, com o direito à inormação oportuna de toda prova ou alegação feita nos autos, bem como a possibilidade de reação a elas, passou, com a doutrina do italiano Elio Fazzalari, a incluir também o critério de gualdade ou da par conditio (pari­ dade de armas), no sentido de que a participação, então garantida, se izesse em simétrica paridade. Com a ampla defesa, ou com o princípio da ampla defesa, a participa­ ção do acusado no processo penal completa-se (e agiganta-se), pois passa a ser exigida não só a garantia de paticipação, mas a efetiva participação, assegurando que o réu tenha uma efetiva contribuição no resultado inal do processo. Daí que a ampla deesa abranja a defesa técnica, com a exigência de defen­ sor devidamente habilitado nos quadros da OB para todos os atos do proces­ so, incluindo o interrogatório (art. 185); a autodsa, manifestada sobretudo neste último ato processual (interrogatório), mas abarcando toda a atividade desenvolvida em prol dos interesses defensivos; a defesa efetiva, exigindo não só a garantia de paricipação, mas a eetiva participação, não se admitindo a 330 Curso de processopenal • Pacelli ausência de manifestação da defesa nos momentos processuais mais relevan­ tes, como é o caso das alegações inais, que já mencionamos no estudo dos princípios fundamentais. E, por im, é de se registrar, mais uma vez, que a ampla defesa autoriza até mesmo o ingresso de provas obtidas ilicitamente, desde que, é claro, favo­ ráveis à defesa. E nem poderia ser de outro modo. Primeiro, porque, quando a obtenção da prova é feita pelo próprio interessado (o acusado), ou mesmo por outra pessoa que tenha conhecimento da situação de necessidade, o caso será de exclusão da ilicitude, presente, pois, uma das causas de jusiicação: o estado de necessidade. Mas mesmo quando a prova for obtida por terceiros sem o conhecimento da necessidade, ou mesmo sem a existência da necessida­ de (porque ainda não iniciada a persecução penal, por exemplo), ela poderá ser validamente aproveitada no processo, em favor do acusado, ainda que ilícita a sua obtenção. E assim é porque o seu não aproveitamento, fundado na ilicitude, ou seja, com a inalidade de proteção do direito, consituiria um insuperável paradoxo: a condenação de quem se sabe e se julga inocente, pela qualidade probatória da prova obtida ilicitamente, seria, sob quaisquer aspec­ tos, uma violação abominável ao Direito, ainda que justiicada pela finalidade originária de sua proteção (do Direito). Note-se que a equação em relação ao aproveitamento da prova para a acusação (que, segundo pensamos, em casos excepcionalíssimos, poderia até ocorrer) é signiicaivamente disinta: a inadmissibilidade da prova ilícita é dirigida ao Estado (produtor da prova, como regra) exatamente para a pro­ teção dos direitos individuais de quem pode, em tese, ser atingido pela ati­ vidade investigatória. Assim, produzida a ilicitude, o não aproveitamento da prova para a acusação atuaria preventivamente na preservação potenial dos apontados direitos individuais. O fato dessa prova, assim obtida, não poder favorecer a acusação mantém a efetividade da norma constitucional, ainda que a mesma prova possa ser utilizada para demonstrar a inocência de quem estiver sendo ou or submetido à persecução penal. Pode-se reconhecer (e o Direito assim o az) a necessidade para a defesa, mas não para a acusação. Diríamos, assim, que o contraditório e a ampla defesa constituem a base da estrutura do devido processo legal, em que, ao lado do princípio da inocên­ cia, autorizam a airmação no senido de ser o processo penal um instrumento de garantia do indivíduo diante do Estado. Dignas de nota e de aplausos as modiicações do art. 306, do CP, primei­ ro com a Lei n1 l l.449/07, e, depois, com a Lei n1 12.403/ll. Embora o texto Da Pova 331 atual do citado art. 306 não determine expressamente a comunicação ime­ diata de toda prisão (prazo máximo de 24 horas) à Defensoria Pública, ato é que o § 1. do mesmo art. 306 estabelece o dever de encaminhamento a ela (DP), em até vinte e quatro horas, de cópia do auto de prisão em flagrante, caso o autuado não indique advogado. Não bastasse, é bem de ver que o atual art. 289-A, § ', CP, impõe a necessidade de comunicação imediata da prisão à Defensoria, sempre que o aprisionado não indicar advogado. A se criica, no ponto, a exclusão do Ministério Público para ins de enca­ minhamento de cópias do auto de prisão em flagrante. O parágrafo único do citado art. 306 estabelece a necessidade do encaminhamento de cópias apenas ao juiz e à Defensoria Pública. Ora, ao parquet cabe, instituionalmente, a dee­ sa da ordemjurídica, o que inclui o conrole de legalidade dos atos prisionais. b) rincípio da identidade sica do juiz Enim, o nosso Código de Processo Penal, depois de quase setenta anos, passou a incorporar a regra (ou princípio) da identidade física do juiz, ao dis­ por, por força da Lei n1 11.719/08, que "o juiz que presidiu a instução deverá proferir a sentença" (art. 399, § 21, CPP). A medida é importaníssima, já que a coleta pessoal da prova, isto é, o contato imediato com os depoimentos, seja das testemunhas, seja também do ofendido e do acusado, parece-nos de grande significado para a formação do convencimento judicial. Como se sabe, o provimento judicial inal deve demonstrar sempre um juízo de certeza, quando condenatória a sentença. E essa, a certeza, de tão difícil obtenção, deve cercar-se das maiores cautelas. Daí a exigência de o juiz da instrução ser o mesmo da sentença alinha-se com um modelo processual que valoriza o livre convencimento moivado e da persuasão racional, dado que se põe como a mediação (da prova para a sentença) para a formação da convicção do magistrado. A regra já existe, há tempos, no processo civil, com maiores especiica­ ções, a saber: "art. 132. O juiz, titular ou substituto, que concluir a audiência julgará a lide, salvo se estiver convocado, licenciado, afastado por qualquer mo­ tivo, promovido ou aposentado, caso em que passará os autos ao seu sucessor''. A atual legislação, modificativa do Código de Processo Penal, Lei nº 1 1 .719/08, limitou-se a consignar que o juiz que presidiu a instrução deve­ rá proferir a sentença (art. 399, § 21, CPP). 332 Curso de processopenal • Pacelli No entanto, pensamos que o citado art. 132 do CPC não só pode, como deve, ser aplicado subsidiariamente. Primeiro, porque o Código de Processo enal não proíbe a aplicação de legislação de oura espécie processual; antes, a permite (art. 3:, CPP). Em se­ gundo lugar, porque haverá hipóteses em que será preciso recorrer-se a uma regra de substituição qualquer, para o im de dar implemento à celeridade processual trazida para os novos ritos processuais penais. Exemplo: quando em férias o magistrado, deve-se aguardar o seu retomo para o julgamento da ação penal? E se houver réu preso? Em terceiro lugar, e por im, as regras de subsituição do Código de Processo Civil (art. 132) visam resguardar o regular andamento processual, apontando situações concretas nas quais o afastamento do juiz da instrução, além de fundamentado em Lei, implicaria: (a) ou a impossibilidade de seu retomo para o julgamento do feito (hipótese de promoção à segunda instância, por exemplo); b) ou o retrocesso na mar­ cha processual, em prejuízo de todos (caso do licenciamento prolongado); (c) ou, o que seria sem solução, a impossibilidade do próprio julgamento, o que ocorreria nos casos de aposentadoria do juiz. Mas não só em relação ao proveito no julgamento atua o princípio da identidade ísica do juiz. Também no campo da competência jurisdicional, atinente àquela de natu­ reza territorial, ou seja, a competência relativa, a identidade do juiz produzirá bons rutos, especiicamente no que diz respeito à regra da perpetuatio juris­ dicionis, como, aliás, tivemos oportunidade de apontar, em capítulo próprio. 9.1.1 O mito e o dogma da verdade real Toda questão relativa aos métodos de prova em processo penal passa, necessariamente, pelo exame da espécie do modelo processual adotado, no que se refere à definição das funções investigatórias e acusatórias, bem como da ixação e da distribuição dos ônus processuais às partes. O nosso atual modelo, cujo peril se consolidou somente a partir da vigên­ cia da ordem consitucional instaurada em 1988, aproxima-se muito mais de um sistema de feição acusatória que de prevalência inquisitorial. Não era este, porém, o perfil traçado pelo Código de Processo Penal de 1941, em que se permiia a iniciativa acusatória ao próprio juiz, além de se Da Pova 333 reservar a este amplos poderes probatórios, inclusive como atividade subs­ tituiva da atuação do Ministério Público, conforme veremos neste capítulo. Entretanto, o sistema de garantias individuais insituído no art. 5. da C, integrado ainda pelos diversos documentos intenaionais airmativos de direitos e das apontadas garantias, caso do conhecido Pacto de San José da Costa Rica, permite um redimensionamento do modelo construído no Código de Processo enal, em bases completamente distintas. O chamado princípio da verdade real rendeu (e ainda rende) inúmeros rutos aos aplicadores do Código de Processo enal, geralmente sob o argu­ mento da relevância dos interesses tratados no processo penal. A gravidade das questões penais seria suiciente para permitir uma busca mais ampla e mais intensa da verdade, ao contrário do que ocorreria, por exemplo, em re­ lação ao processo civil. Não iremos muito longe. A busca da verdade real, durante muito tempo, comandou a instalação de práticas probatórias as mais diversas, ainda que sem previsão legal, autorizadas que estariam pela nobreza de seus propósitos: a verdade. Talvez o mal maior causado pelo itado princípio da verdade real tenha sido a disseminação de uma cultura inquisitiva, que terminou por aingir pra­ ticamente todos os órgãos estatais responsáveis pela persecução penal. Com efeito, a crença inabalável segundo a qual a verdade estava efetivamente ao alcance do Estado oi a responsável pela implantação da ideia acerca da neces­ sidade inadiável de sua perseguição, como meta principal do processo penal. O aludido princípio, batizado como da verdade real, tinha a incumbência de legitimar eventuais desvios das autoridades públicas, além de justificar a ampla iniciaiva probatória reservada ao juiz em nosso processo penal. A expressão, como que portadora de efeitos mágicos, autorizava uma atuação judicial supletiva e substitutiva da atuação ministerial (ou da acusação). Disse­ mos autorizava, no passado, por entendermos que, desde 1988, tal não é mais possível. A igualdade, a par conditio (paridade de armas), o conraditório e a ampla deesa, bem como a imparcialidade, de convicção e de atuação, do juiz, impedem-no. Desde logo, porém, um necessário esclarecimento: toda verdade judicial é sempre uma verdade processual. E não somente pelo ato de ser produzida no curso do processo, mas, sobretudo, por tratar-se de uma certeza de natu­ reza exclusivamente jurídica. 334 Curso de processopenal • Pacelli De ato, embora utilizando critérios dierentes para a comprovação dos fatos alegados em juízo, a verdade (que interessa a qualquer processo, seja cível, seja penal) revelada na via judicial será sempre uma verdade recons­ truída, dependente do maior ou menor grau de contribuição das partes e, por vezes do juiz, quanto à determinação de sua certeza. Enquanto o processo civil aceita uma certeza obtida pela simples ausência de impugnação dos atos articulados na inicial (art. 302, CPC), sem prejuízo da iniciativa probatória que se confere ao julgador, no processo penal não se admite tal modalidade de certeza (requentemente chamada de verdade for­ mal, porque decorrente de uma presunção legal), exigindo-se a materialização da prova. Então, ainda que não impugnados os fatos imputados ao réu, ou mesmo conessados, compete à acusação a produção de provas da existência do ato e da respectiva autoria, falando-se, por isso, em uma verdade material. E mais. Não só é inteiramente inadequado falar-se em verdade real, pois que esta diz respeito à realidade do já ocorrido, da realidade histórica, como pode revelar uma aproximação muito pouco recomendável com um passado que deixou marcas indeléveis no processo penal antigo, particularmente no sistema inquisitório da Idade Média, quando a excessiva preocupação com a sua realização (da verdade real) legitimou inúmeras técnicas de obtenção da conissão do acusado e de intimidação da defesa. Como vimos, a atual coniguração do processo penal brasileiro não deve guardar mais qualquer identidade com semelhante postura inquisitorial, im­ pondo-se o redimensionamento de vários institutos ligados à produção da prova, sobretudo no que respeita à iniciativa probatória do juiz. Esta, e aqui já o airmamos, não deve constituir-se em atividade supletiva dos deveres ou ônus processuais atribuídos ao órgão da acusação. Mas, de uma maneira ou outra, a verdade material continua sendo um princípio processual relevaníssimo em tema de prova, sobretudo quando ma­ nejado para a exclusão de determinados meios de prova. 9.1.2 A distribuição do ônus daprova e a iniciativa probatória dojuiz Em um processo informado pelo contraditório e pela igualdade das par­ tes, a distribuição dos ônus probatórios deveria seguir as mesmas linhas de isonomia. Da Pova 335 Entretanto, o nosso processo penal, por qualquer ângulo que se lhe exa­ mine, deve estar atento à exigência constitucional da inocência do réu, como valor fundante do sistema de provas. Afirmar que ninguém poderá ser considerado culpado senão após o trânsito em julgado da sentença penal condenatória implica e deve implicar a ransfe­ rência de todo o ônus probatório ao órgão da acusação. A este caberá provar a existência de um crime, bem como a sua autoria. Hájá aqui uma questão. Afirmar que cabe à acusação a prova da existên­ cia do crime signiicaria dizer que deve o Ministério Público (ou o querelante) comprovar a presença de todos os elementos que integram o conceito analíti­ co de crime, ou seja, a tipicidade, a ilicitude e a culpabilidade? Veremos que não. E veremos também que o Direito Processual Penal, como acontece com todo o Direito, rabalha com presunções legais. Em primeiro lugar, impende salientar que os exames da tipicidade e da ilicitude do fato não dizem respeito à matéria de prova. Cuida-se, ao contrá­ rio, de mero juízo de abstração, de valoração do fato (existente ou não) em relação à norma penal. Sobre tais questões não se produz prova, no sentido de sua materialização, mas, unicamente, emite-se juízo de valor, no plano absrato das ideias. Em relação especificamente à prova da existência do dolo, bem como de alguns elementos subjetivos do injusto (elementos subjetivos do tipo, já impregnado pela ilicitude), é preciso uma boa dose de cautela. E isso ocorre porque a matéria localiza-se no mundo das intenções, em que não é possível uma abordagem mais segura. Por isso, a prova do dolo (também chamado de dolo genérico) e dos ele­ mentos subjetivos do tipo (conhecidos como dolo especico) são aferidas pela via do conhecimento dedutivo, a parir do exame de todas as circunstâncias já devidamente provadas e uilizando-se como critério de referência as regras da experiência comum do que ordinariamente acontece. É a via da raciona­ lidade. Assim, quem desfere três tiros na direção de alguém, em regra, quer produzir ou aceita o risco de produzir o resultado morte. Não se irá cogitar, em princípio, de conduta impndente ou de conduta negligente, que caracteri­ zam o delito culposo. Nesses casos, a prova será obtida pelo que o Código de Processo Penal chama de indícios, ou seja, circunstância conhecida e provada que, tendo re­ lação com o fato, autorize, por indução (trata-se, à evidência, de dedução), 336 Curso de processopenal • Pacelli concluir-se a existênia de outra ou de outras circunstâncias (art. 239). Sobre o tema, ver item 9.2.9. Quanto à culpabilidade e, mais particularmente, em relação à imputabi­ lidade do agente, isto é, de sua responsabilidade penal, a questão pode até exigir prova, qual seja, a de maioridade penal (18 anos), ou da capacidade mental do autor do fato. Entretanto, não se exige que a acusação, em todas as ações penais, faça prova de se tratar de acusado capaz e mentalmente são. Parte-se da presun­ ção legal de que as pessoas maiores de idade, até prova em contrário, sejam efetivamente capazes. Por isso, como veremos, até a citação do incapaz, de cuja incapacidade não se tem ainda notícia, é eita pessoalmente. Havendo, porém, quaisquer indícios de se tratar de acusado portador de alguma enfer­ midade, deverá o juiz, de oício, ou a requerimento do Ministério Público, do defensor, do curador, do ascendente, descendente, irmão ou cônjuge do acusado (art. 149, CPP), requerer o exame de insanidade mental. Cabe, assim, à acusação, diante do princípio da inocência, a prova quanto à materialidade do fato (sua existência) e de sua autoria, não se impondo o ônus de demonstrar a inexistência de qualquer situação excludente da ilicitu­ de ou mesmo da culpabilidade. Por isso, é perfeitamente aceitável a disposi­ ção do art. 156 do CP, segundo a qual "aprova da alegação incumbirá a quem aizer". Não é o caso, contudo, da atual redação do art. 156, 1, CP, dada pela Lei n1 11.690/08, ao prever que poderá o juiz, de oício, ordenar, mesmo antes de iniciada a ação penal, a produção antecipada de provas consideradas urgentes e relevantes, observando a necessidade, adequação e proporcionalidade da medi­ da. O rerocesso, quase inacreditável, é também inaceitável. A inconstitucio­ nalidade é patente. O juiz não tutela e nem deve tutelar a investigação. A rigor, a jurisdição criminal somente se inicia com a apreciação da peça acusatória (arts. 395 e 396, CPP). No curso do inquérito policial ou de qualquer outra investigação a atuação da jurisdição não se jusifica enquanto tutela dos respectivos pro­ cedimentos. O juiz, quando deere uma prisão cautelar, quando deere uma interceptação telefônica ou a quebra de uma inviolabilidade pessoal, não está, nem nesse momento, protegendo os interesses da investigação criminal. Na verdade, como garantidor que é das liberdades públicas, ele estará exercen­ do o controle consitucional das restrições às inviolabilidades, nos limites da Consituição da República e do devido processo legal. Da Pova 337 É por isso que se insituem as chamadas cláusulas da reserva da jurisdi­ ção, segundo as quais somente ao juiz se defere o tangenciamento de direitos e garantias individuais, como ocorre, por exemplo, em relação à inviolabili­ dade do domicílio (mandado de busca e apreensão), da liberdade individual (prisão cautelar), do direito à intimidade e à privacidade (interceptação tele­ ônica e ambiental etc.). Ver art. 52, I, XII e I, da Constituição da República. Por isso, nenhuma providência deve ser tomada de oício pelo magistra­ do, para ins de preservação de material a ser colhido em ase de investigação criminal. Nem prisão de oício, nem qualquer outra medida acautelatória, até porque o que deve ser acautelado, em tais situações, é a investigação e dela não há de cuidar e nem por ela responder o órgão da jurisdição. Basta lembrar, ainda, que o juiz sequer levará em consideração, por ocasião da sentença, as provas ou elementos indiciários colhidos na fase de investigação, consoante se vê, agora do art. 155, CP, à exceção das provas irrepeíveis (periciais). No ponto, merece registro importante julgado do Supremo Tribunal Fede­ ral (HC 97 .553, 1& Turma, Rel. Dias Toffoli), no qual se rejeitou a suspeição de magistrado que participara de acordo de delação premiada, e, posteriormen­ te, recebera a denúncia. Não se viu aí - corretamente - violação ao sistema acusatório, na medida em que a posição do juiz na fase de investigação se limitara ao exame de legalidade do ajuste. No entanto, inconstitucional a mais não poder a regra do art. 156, I, CP, que deverá ter a sua invalidade airmada na Suprema Corte, como já ocorreu, pelas mesmas razões, no julgamento da DI nº 1.570, Rel. Min. Maurício Cor­ rêa, em 12.4.2004, relativamente àjá revogada Lei nº 9.034/95. Diz, mais, o art. 156, II, com redação dada pela Lei n2 1 1 .690/08, que poderá o juiz, de ofício, "determina; no curso da instrução, ou antes de proferir sentença, a realização de diligências para dirimir dúvida sobre ponto relevante". Já veremos os limites em que se pode aceitar a medida. Nesse ponto, o princípio acusatório imposto pela Constituição Federal de 1988, no qual foram delimitadas as funções do juiz e s atribuições do Minis­ tério Público, deverá funcionar como um redutor e/ou conrolador da aplica­ ção do mencionado dispositivo, em face da imparcialidade que deve nortear a atuação judicial. Quando alamos em imparcialidade, não estamos nos referindo unica­ mente à ausência de interferências extenas que, segundo a lei, podem in­ luir no ânimo do magistrado, como ocorre nos casos legais de impedimento, 338 Curso de processopenal • Pacelli suspeição ou incompatibilidade, previstos nos ans. 112, 252, 253, 254, todos do CP. Falamos, agora, na imparcialidade no que se reere à atuação concreta do juiz no processo, de modo a impedir que este adote postura tipicamente acusatória no processo, quando, por exemplo, entender deiciente a aividade desenvolvida pelo Ministério Público. O juiz não poderá desigualar as forças produtoras da prova no processo, sob pena de violação dos princípios cons­ titucionais do contraditório e da ampla deesa, ambos reunidos na exigência de igualdade e isonomia de oportunidades e faculdades processuais. arece ser nesse sentido, também, a posição de Tourinho Filho (1992, v. 3, p. 213). Poder-se-ia argumentar que tal limitação à atividade probatória do juiz seria, teórica e praicamente, impossível. Assim não nos parece, todavia. Pensamos ser perfeitamente possível construir uma linha divisória entre o que seja iniciativa probatória e iniciativa acusatória do juiz penal. A inicia­ tiva acusatória estará sempre presente quando o juiz, qualquer que seja o argumento declinado, empreenda atividade probatória de iniciativa da acu­ sação. E mais: que tal atividade revele-se substitutiva ou mesmo supletiva da­ quela que a própria lei impõe, como ônus processual, ao Ministério Público (art. 156, CPP). Um exemplo, a nosso aviso, é suficiente para demonstrar a possibilidade de se estabelecer um critério objetivo, minimamente que seja. O art. 564, III, b, do CP, prevê como nulidade a falta de exame de corpo de delito nos crimes que deixam vestígios, quando ainda presentes os vestí­ gios. Areditamos que, em tal situação, se o Ministério Público não requerer a produção da prova técnica, quando exigida, o juiz não poderá azê-lo à conta do princípio da verdade real, na medida em que ele estaria atuando em substituição ao Ministério Público, empreendendo atividade tipicamente acusatória, supletivamente ao órgão estatal responsável pela sua produção. Se, de um lado, assim deve ocorrer em relação ao ônus probatório im­ posto à acusação, de outro lado, a recíproca não deve ser verdadeira. Provas não requeridas pela defesa poderão ser requeridas de oício pelo juiz, quando vislumbrada a possibilidade de demonstração da inocência do réu. E não ve­ mos aqui qualquer dificuldade: quando se fala na exigência de igualdade de armas, tem-se em vista a realização efetiva da igualdade, no plano material, e não meramente formal. A construção da igualdade material passa, neces­ sariamente, como há muito ensinam os constitucionalistas, pelo tratamento distinto entre iguais e desiguais. Da Pova 339 E nesse campo nem sequer há divergências: o Estado, no processo penal, atua em posição de superioridade de forças, já que é ele responsável tanto pela fase de investigação quanto pela de persecução em juízo, quanto, final­ mente, pela de decisão. or mais surpreendente que possa parecer, no processo civil pode-se per­ eitamente aceitar uma posição mais atuante do juiz no campo probatório, tendo em vista que, ali, em tese, desenvolvem-se disputas entre partes em condições mais próximas da igualdade. Enretanto, mesmo ali, tratando-se de determinadas relações jurídicas em que a própria lei reconhece a posição de desigualdade com reerência a uma delas, como ocorre nos processos relativos à tutela de interesses difusos e coleivos (consumidor, sobretudo), a solução vem na própria legislação, com a inversão do ônus probatório, por exemplo. Hipótese diferente ocorreria quando a aividade probatória do juiz se des­ tinasse unicamente a resolver dúvida sobre ponto relevante, nos exatos ter­ mos do t . 156, II, do CP. Por dúvida, que deve se dirigir ao quesionamento acerca da qualidade ou da idoneidade da prova, não se pode entender a au­ sência dela (prova), como ocorreria no exemplo anterior. A dúvida somente instala-se no espírito a partir da conluência de proposições em sentido diver­ so sobre determinado objeto ou ideia. No campo probatório, ela ocorreria a parir de possíveis conclusões diversas acerca do material probatório então produzido, e não sobre o não produzido. Assim, é de se admiir a dúvida do juiz apenas sobre prova produzida, e não sobre a insuiciência ou a ausência da atividade persecutória. Ao leitor que tenha passado despercebido, remete-se ao texto articulado ao início desta obra, no ponto em que cuida do Sistema Acusatório (item 1.3), e em que se rejeita a ideia de um juiz inerte. 9.1.3 O livre convencimento motivado e a íntima convicção Além da questão ligada à iniciativa probatória do juiz, que não deixa de trazer uma certa carga de convencimento, ainda que em sentido negativo, isto é, de não convencimento, ou de dúvida em relação ao material probatório, assume grande importância o estudo acerca das regras de julgamento no pro­ cesso penal, no que concene aos métodos de valoração das provas. Nesse campo, como é óbvio, as atenções são voltadas para a necessidade de se controlar, em maior ou menor escala, a atividade judicante desenvolvida por ocasião do julgamento inal. 340 Curso de processopenal • Pacelli Dependendo do grau de preocupação com o subjetivismo inerente ao ato de julgar e, daí, com as possíveis arbitrariedades que dele possam resultar, pode-se adotar um modelo ou sistema de julgamento mais ou menos rígido. 9.1.3.1 A prova tarifada ou sistema das provas legais Como superação do excesso de poderes atribuídos ao juiz ao tempo do sistema inquisitivo, o que ocorreu de orma mais intensa a partir do século III até o século VII, o sistema das provas legais surgiu com o objetivo de­ clarado de reduzir tais poderes, instituindo um modelo rígido de apreciação da prova, no qual não só se estabeleciam certos meios de prova para determi­ nados delitos, como também se valorava cada prova antes do julgamento. Ou seja, no sistema de provas legais, o legislador é quem procedia à valoração prévia, dando a cada uma delas um valor fixo e imutável. Embora imbuído de bons propósitos, o aludido sistema revelou-se uma faca de dois gumes. Como, para a obtenção da condenação, era necessária a obtenção de um certo número de pontos, quando não se chegava a esse número, a prova era obtida a partir da tortura, já que essa fazia prova plena. Procurando fugir dos inconvenientes dos dois sistemas anteriores, o da prova legal ou tariada e o da inquisitio, no qual o juiz-acusador formava livremente a sua convicção, sem declinar os caminhos trilhados pelo seu ra­ ciocínio e pelo seu espírito, o processo penal modeno caminhou para a ela­ boração do sistema do livre convencimento motivado, ou da persuasão racional. 9.1.3.2 O livre convencimento motivado: persuasão racional Por tal sistema, o juiz é livre na formação de seu convencimento, não estando comprometido por qualquer critério de valoração prévia da prova, podendo optar livremente por aquela que lhe parecer mais convincente. Um único testemunho, por exemplo, poderá ser levado em consideração pelo juiz, ainda que em sentido contrário a dois ou mais testemunhos, desde que em consonância com outras provas. A liberdade quanto ao convencimento não dispensa, porém, a sua fun­ damentação, ou a sua explicitação. É dizer: embora livre para formar o seu convencimento, o juiz deverá declinar as razões que o levaram a optar por tal ou qual prova, azendo-o com base em argumentação racional, para que as partes, eventualmente insatisfeitas, possam conrontar a decisão nas mesmas bases argumentativas. Da Pova 341 Como se percebe, o livre convencimento motivado é regra de julgamento, a ser utilizada por ocasião da decisão inal, quando se ará a valoração de todo o material probatório levado aos autos. E essa regra de julgamento é aplicável somente às decisões do juiz singu­ lar, não se estendendo aos julgamentos pelo Tribunal do Júri, em que não se impõe aos jurados o dever de fundamentarem as suas respostas aos quesitos. Para o Tribunal do Júri vige o princípio da íntima convicção. Daí nossas reser­ vas pessoais ao Júri. Nesse passo, esclarecedora a disposição conida na Lei n1 1 1.690/08, que impede o magistrado de fundamentar a condenação em material colhido uni­ camente na fase de investigação, ressalvadas as provas antecipadas e não repetíveis (as perícias técnicas). São esses os termos do novo art. 155, CPP: "O juizformará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em con­ traditório judicial, não podendo undamentar sua decisão exclusivamente nos elementos normativos colhidos na investgação, ressalvadas as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas." O texto, entretanto, deixa uma janela perigosamente aberta: a expressão "exclusivamente" parece permitir que tais elementos (da investigação) pos­ sam subsidiar a condenação, desde que não sejam os únicos. Não aderimos a essa tese, embora aceitemos a interpretação, do ponto de vista gramatical. É certo que, às vezes, a mudança de versão apresentada na polícia, sem qual­ quer coação, de qualquer ordem, bem poderia ser questionada em juízo, por ocasião do interrogatório, a fim de saber de sua (in)consistência. No entanto, permitir-se, assim, sem maiores esclarecimentos, eventual aproveitamento de quaisquer elementos da investigação para a condenação nos parece medida inteiramente desarrazoada. De ouro lado, põe-se o problema da existência ou não, em nosso orde­ namento, de qualquer critério de especiicidade de prova, ou seja, se a nossa legislação faz alguma opção por determinado meio de prova, em relação a determinada inração penal. É o que veremos a seguir. 9.1.3.3 Hierarquia e especificidade de provas s provas no processo desempenham uma função muito bem deinida, a saber: a reconsrução da realidade histórica, sobre a qual se pronunciará a certeza quanto à verdade dos fatos, para ins de formação da coisa julgada. 342 Curso de processopenal • Pacelli E tratando-se da construção do que deverá ser expressão da verdade judi­ cial, parece-nos perfeitamente possível a exigência de meios de prova especí­ icos para a constatação de determinados fatos. Falar-se-ia, então, na regra da especiicidade da prova, cuja consequência, entretanto, não seria a existência de uma hierarquia de provas. É preciso estar atento ao fato de que toda restrição a determinados meios de prova deve estar arelada (e, assim, ser justiicada) à proteção de valores reconhecidos pela e positivados na ordem jurídica. s restrições podem ocor­ rer tanto em relação ao meio da obtenção da prova, no ponto em que esse (meio) implicaria a violação de direitos e garantias, quanto em referência ao grau de convencimento resultante do meio de prova utilizado. Quanto às primeiras, existe norma consitucional expressa vedando a admissibilidade de provas obtidas ilicitamente. Norma essa reproduzida no art. 157, CP, com a redação que lhe deu a Lei n1 11.690/08. Em relação às segundas, há também normas legais expressas. Não vemos, por isso, qualquer inconveniente na disposição do parágrafo único do art. 155 do CP, no qual se exige a obsevância das mesmas restrições à prova, estabelecidas na lei civil, quando se cuidar de matéria relaiva ao estado das pessoas. Do mesmo modo, segundo nos parece, a disposição do art. 564, III, b, do CP, estabelece uma hipótese de especicidade de prova, no que concene ao exame de corpo de delito, quando a inração deixar vestgios e não tiverem esses desaparecido. Lidas nesse contexto, as apontadas restrições ou especificidades funciona­ riam como verdadeiras garantias do acusado, na medida em que estabelecem critérios específicos quanto ao grau de convencimento e de certeza a ser obti­ do em relação a determinadas inrações penais. E não é só: a restrição decorreria de lei, não havendo por que recusá-la ao argumento de incompatibilidade com o sistema do livre convencimento moti­ vado. O livre convencimento há de ter o seu campo de atuação deinido na lei, ou seja, o juiz somente é livre na apreciação da prova enquanto prova válida, não podendo superar as restrições expressamente declinadas pelo legislador. Repetimos, todavia, que a existência de certo grau de especiicidade quanto ao meio de prova não implica a existência de qualquer hierarquia de provas. A hierarquia tem ouros pressupostos, fundados na prevalência de um em relação a outro, quando ambos forem igualmente admitidos. Da Pova 343 No caso da regra da especificidade, não haverá hierarquia, por exemplo, entre a prova pericial e a prova testemunhal. O que ocorrerá é que, ratando­ -se de questão eminentemente técnica, e ainda estando presentes os vestígios da inração, a prova testemunhal não será admitida como suiciente, por si só, para demonstrar a verdade dos fatos. Não se nega, contudo, qualquer valor à prova não especica, mas somente não se admite que ela seja a única e bas­ tante para sustentar a ocorrência de um fato ou de uma circunstância desse fato. Nada mais. A seu turno, a hierarquia não existe mesmo. Julgamos efetivamente não ser possível airmar, a priori, a supremacia de uma prova em relação a outra, sob o fundamento de uma ser superior a outra, para a demonstração de qual­ quer crime. Como regra, não se há de supor que a prova documental seja su­ perior à prova testemunhal, ou vice-versa, ou mesmo que a prova dita pericial seja melhor que a prova testemunhal. Todos os meios de prova podem ou não ter aptidão para demonsrar a veracidade do que se propõem. O que ocorre, em relação à prova técnica, é que a legislação demonstra maior preocupação quanto à idoneidade da prova, para o im a que se destina. Nossa jurisprudência é farta em reconhecer a inexistência de hierarquia de provas no processo penal, sustentando, em regra, sem maior profundidade, que qualquer meio de prova poderá provar a verdade dos fatos. Ora, sabemos que isso não ocorre, pelo menos em duas situações, tal como expressamente previstas no Código de Processo Penal. É o caso, como vimos, do art. 155, parágrafo único, CP, em relação à prova de fato relacionado ao estado das pessoas (ou os ribunais aceitariam a prova do casamento pelo de­ poimento de testemunhas?), bem como do exame de corpo de delito, quando a inração deixar vestgio e esse não tiver desaparecido. Não acreditamos, com eeito, que juiz ou tribunal algum proira sentença condenatória pela prática de falsidade material com base unicamente em prova testemunhal, quando houver prova pericial (técnica) concluindo não terem partido do punho do réu os escritos falsiicados. O problema aqui não seria com a idoneidade da testemunha (no caso concreto) para aferir do falso e da sua autoria, mas com o método (abstrato) testemunhal de prova para a aceitação da verdade. De resto, há também previsão de ressalva quanto à prova de natureza téc­ nica na legislação processual civil, consoante se vê da parte final do disposto no art. 335 do CPC. 344 Curso de processopenal • Pacelli 9.1.4 Dieito e restrições à prova Como decorrência do princípio e em consequênia do exerício da ampla defesa, pode-se airmar que o réu tem direito à prova. Desnecessário afirmar que igual direito assiste ao órgão da acusação, já que o direito do réu à prova tem como pressupostos a existência e o exercício do direito da acusação. O exercício desse direito à prova se estenderá a todas as suas fases, é dizer: a da obtenção, a da introdução e produção no processo e, por m, a da valoração da prova, na fase deisória. Aliás, de nada adiantaria o reconhe­ cimento do direito à produção da prova se não se reconhecesse também o direito à sua valoração, por ocasião da decisão final. Todavia, a eventual des­ consideração da prova na motivação da sentença, por conigurar verdadeiro errar in judicando (erro de julgamento, e não errar in procedendo - erro de procedimento), permitirá não a anulação do decisum, mas, eventualmente, a sua reorma. Embora se cuide de direito, isso não impede que o juiz da causa examine a pertinência da prova requerida (ver, por exemplo, art. 400, § 12, CPP), tendo em vista que cabe a ele a condução do processo, devendo, por isso mesmo, rejeitar as diligências manifestamente protelatórias. Consequência ainda do direito à prova, ou o seu reverso, porquanto di­ rigido ao mau exercíio por parte dos órgãos da persecução penal, seria o de exclusão das provas obidas ilicitamente, sobretudo quando se tratar de procedimentos do Tribunal do Júri. É que ali vigora a regra da íntima con­ vicção, não se exigindo a motivação das decisões. Com isso, o contato com material probatório ilícito poderia trazer graves consequências na formação do convencimento do jurado. Assim, tais provas deverão ser desentranhadas quanto antes dos autos, antes do ingresso na fase da valoração, nos termos do art. 157, CPP (Lei n° 1 1 . 690/08) . Quanto à fase de produção da prova, a regra do processo penal é que as provas podem ser produzidas a qualquer tempo, incluindo a fase recur­ sai, e até mesmo em segunda instância (quando dependerão de iniciativa judicial - art. 616, CPP), desde que respeitado, sempre, o conraditório. A exceção, quanto ao tempo apenas, fica por conta do art. 479 do CPP (Lei n2 11.690/08), no qual se exige a antecedência mínima de três dias antes da instrução em Plenário para a juntada de documentos no procedimento do Tribunal do Júri. Da Pova 345 9.1.4.1 A inadmissibilidade das provs ilícitas Nos termos do art. su, LI, da C, "são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos". Também o art. 157, caput, CP, com a redação que lhe deu a Lei nu 11.690/08, reproduz a mesma vedação. Mais que uma afirmação de propósitos éicos no rato das questões do Direito, as aludidas normas, constitucional e legal, cumprem uma função ain­ da mais relevante, particularmente no que diz respeito ao processo penal, a saber: a vedação das provas ilícitas atua no controle da regularidade da ati­ vidade estatal persecutória, inibindo e desestimulando a adoção de práticas probatórias ilegais por parte de quem é o grande responsável pela sua pro­ dução. Nesse sentido, cumpre função eminentemente pedagógica, ao mesmo tempo que tutela determinados valores reconhecidos pela ordem jurídica. A norma assecuratória da inadmissibilidade das provas obidas com vio­ lação de direito, com eeito, presta-se, a um só tempo, a tutelar direitos e garantias individuais, bem como a própria qualidade do material probatório a ser introduzido e valorado no processo. Em relação aos direitos individuais, a vedação das provas ilícitas tem por destinatário imediato a proteção do direito à intimidade, à privacidade, à imagem (art. 5°, X), à inviolabilidade do domicílio (art. 5°, XI), normalmente os mais aingidos durante as diligências investigatórias. No que se refere à questão da qualidade da prova, o reconhecimento da ilicitude do meio de obtenção da prova já impede o aproveitamento de méto­ dos cuja idoneidade probatória seja previamente questionada, como ocorre, por exemplo, na conissão obtida mediante tortura, ou mediante hipnose, ou, ainda, pela ministração de substâncias químicas (soro da verdade etc.). De outro lado, a vedação das provas obidas ilicitamente também oferece re­ percussão no âmbito da igualdade processual, no ponto em que, ao impedir a produção probatória irregular pelos agentes do Estado - normalmente os responsáveis pela prova -, equilibra a relação de forças relativamente à ativi­ dade instrutória desenvolvida pela defesa. Na realidade, o tema da inadmissibilidade das provas ilícitas oferece inú­ meros desdobramentos, não só no âmbito da prova, como também no campo da própria concepção do Direito que haverá de revelar o intérprete, por oca­ sião da tarefa hermenêuica. 346 Curso de processopenal • Pacelli Como já vimos, o espaço probatório no processo penal é (e há mesmo de ser) mais amplo que o do processo civil, em razão da relevância dos interesses que delimitam o seu conteúdo. Entretanto, isso não signiica que essa ampli­ tude possa ser traduzida como a admissibilidade de todos os meios de prova, desde que não estejam epressamente proibidos. Não. Na realidade, a vedação da prova não ocorre unicamente em relação ao meio escolhido, mas também em relação aos resultados que podem ser obti­ dos com a utilização de determinado meio de prova. Uma interceptação tele­ fônica, enquanto meio de prova, poderá ser lícita se autorizada judicialmente, mas ilícita quando não autorizada. No primeiro caso, a afetação (o resultado) do direito à privacidade e/ou intimidade é permitida, enquanto, no segundo, não, disso resultando uma violação indevida daqueles valores. Em tema de prova, portanto, mesmo quando não houver vedação expres­ sa quanto ao meio, será preciso indagar ainda acerca do resultado da prova, isto é, se os resultados obtidos coniguram ou não violação de direitos. E se conigurarem, se a violaçãofoi e se poderia ter sido autorizada. E mais. Nos termos do art. 157, caput, CP, as provas obtidas ilicitamente deverão ser desentranhads dos autos, esclarecendo o § 3l do aludido dispo­ siivo legal que a decisão de desenranhamento estará sujeita à preclusão. No entanto, nada se diz acerca do momento processual em que tal ocorrerá. A nosso juízo, deve o juiz apreciar a ilicitude da prova e o seu consequen­ te desentranhamento dos autos antes da audiência de instrução criminal, ou seja, após a apresentação de defesa escrita, desde que, é claro, a prova tenha sido juntada em momento anterior. Tratando-se de prova apresentada em audiência, deve o juiz, de imediato, apreciar a questão. Na primeira hipótese, de exame e decisão de desenranhamento antes da audiência, o recurso cabível será o de recurso em sentido estrito; durante a audiência, o recurso será de apelação, se e somente se a sentença for proferi­ da em audiência. Nesse caso, não se exigirá a apresentação de dois recursos, mas apenas o de apelação (art. 593, § 1, CPP). A decisão que não reconhece a ilicitude da prova é irrecorrível, o que não impede seja reapreciada a matéria por ocasião de eventual recurso de apelação ou por meio de ações autônomas de impugnação, a exemplo do habeas corpus. Aliás, é de se ter em mente que, não obstante a previsão de preclusão da decisão de desentranhamento da prova ilícita, a matéria diz respeito à ques­ tão de interesse público, indisponível às partes. Por isso, tanto o juiz quanto o tribunal sempre poderão conhecer da matéria quando do julgamento do Da Pova 347 mérito. A única ressalva ica por conta do Tribunal do Júri. Ali, em que se realiza um julgamento por leigos e sem qualquer necessidade de moivação, não caberá aos jurados o conhecimento da prova desentranhada. Mas diz mais a Lei (art. 157, § 31, CPP). Determina-se a inutilização da prova ilícita por decisão judicial, acultado o acompanhamento das partes. Ora, mas se a produção da prova ilícita puder causar danos a terceiros, sejam eles de natureza cível ou penal, como se fará para demonstrar a materialidade do ilícito? É preciso ter em mente, então, que a inutilização da prova depen­ derá da existência (ou não) de possíveis consequências jurídicas ao responsá­ vel por sua produção. a) s ravações ambientais Os métodos e meios de prova que requentemente podem ser questiona­ dos quanto à sua licitude atingem o direito à intimidade e/ou à privacidade (art. 51, X, CF) do acusado ou de terceiros. Quando alguém mantém alguma espécie de comunicação com outrem, o conteúdo dessa comunicação, em princípio, não diz respeito a quem não seja dela participante, daí por que a ninguém é permiida a sua reprodução, por qualquer meio - elerônico, eletromagnético, mecânico etc. A conversa, se verbal a comunicação, situa-se no âmbito da privacidade e, por vezes, da intimidade, dos interlocutores. Não faremos aqui uma disinção mais acentuada entre intimidade e pri­ vacidade, porque ambos os direitos podem e devem ser compreendidos pelo se.so comum, ou seja, pela leitura cujo significado reúna o maior número de intérpretes (ou de pessoas interessadas na sua deinição). Apenas como referência, diríamos que a noção de intimidade está mais ligada ao conjunto de convicções, sensações e estados de ânimo pessoais (íntimos) de seu itular, enquanto a privacidade seria o espaço mais adequado ou mais uilizado para a manifestação da inimidade. Chama-se de gravação ambiental aquela realizada no meio ambiente, podendo ser clandestina, quando desconhecida por um ou por todos os in­ terlocutores, ou autorizada, quando com a ciência e concordânia destes ou quando decorrente de ordem judicial. s gravações clandestinas, em princípio, são ilegais, na medida e quando violarem o direito à privacidade e/ou à intimidade dos interlocutores, razão pela qual, como regra, configuram provas obtidas ilicitamente, pelo que serão inadmissíveis no processo. 348 Curso de processopenal • Pacelli É o que ocorrerá em relação às gravações de conversas feitas por meio de gravadores, de câmaras de vídeo, ou por qualquer outro meio, sem a ciência de algum dos interlocutores, já que, ao menos em relação a ele, haverá clan­ destinidade na captação da comunicação e, assim, violação ao direito. Note­ -se, nesse caso, uma relevante distinção: o que é ilícito, na verdade, nem é a gravação sem o conhecimento do interlocutor. Sendo este o destinatário da comunicação, a reprodução da fala, em princípio, não atingiria a intimidade ou privacidade do falante. Apenas quando a captação do som (gravação) for revelada a terceiros é que ocorrerá a violação do direito (à privacidade). Não é incomum encontrar-se, aqui ou acolá, decisões no sentido de dis­ tinguir a gravação clandestina feita por um dos interlocutores, sem o conheci­ mento do outro, daquela realizada por terceiros. irma-se que apenas estas últimas seriam ilícitas. Ora, repetimos: quando um dos interlocutores promove a gravação da conversa sem o conhecimento do outro, a ilicitude não ocorrerá, eetivamente, do fato da ravação. E isso porque o conteúdo da conversa empreendida foi disponibilizado àquele interlocutor; assim, porque conhecedor do conteúdo, não haveria problema na gravação eita por este. No entanto, quando referido conteúdo for disponibilizado, aí sim, poderá haver a afetação a direitos de terceiros. Nesse caso, embora lícita a gravação, a revelação de seu conteúdo poderia não sê-lo, afinal, o que ali teria sido dito não se destinava a mais ninguém, pois realizada no âmbito da intimidade dos interessados. Obsetva-se, pois, que o que irá determinar a ilicitude da prova (gravação ou revelação do conteúdo) não é o fato de ter sido realizada por terceiros ou por um dos interlocutores. Ao contrário, será o conteúdo então revelado que poderá afetar a intimidade dos interlocutores (em quaisquer situações). Evidentemente, a gravação clandesina feita por terceiros já é, ela mesma, ilícita; não só a gravação, mas também a escuta (pessoal) da conversa sem a autorização dos interlocutores, ainda que por ele não osse gravada. Mas, repita-se: a revelação do conteúdo de uma conversa privada (pela gravação clandestina) pode também violar a inimidade do interlocutor que desconhe­ cia a gravação. Então, para que seja válida a revelação da gravação feita por um dos in­ terlocutores, sem o conhecimento do outro, é necessário que esteja presente situação de relevânciajurídica a que poderíamos chamar de justa causa, con­ forme se vê, por exemplo, no art. 153 do C, no qual se estabelece ser crime Da Pova 349 a divulgação de conteúdo de documento particular ou de correspondência conidencial, de que é destinatário ou detentor, sem justa causa. Ajusta causa aqui referida diz respeito a uma motivação que possa vali­ damente ser reconhecida pelo Direito, como é o caso, por exemplo, do estado de necessidade, como causa de justiicação da conduta tipificada penalmen­ te. Justa causa poderá ocorrer, assim, quando a revelação do conteúdo se destinar a provar ao cuja existência seja relevante para a defesa de direito daquele que promoveu a gravação. Não só de Direito enal, como seria o caso de possível descobrimento da autoria do crime, mas de todo o Direito. Exemplo do que vem a se sustentar pode ser enconrado no julgamento do RHC n° 12.266/SP (STJ - Rei. Min. Hamilton Carvalhido, DJ 20.10.2003), tendo por objeto prova decorrente de gravação teleônica pela víima de rime. A jurisprudência atual do Supremo Tribunal Federal segue a mesma tri­ lha: STF - E nº 402.717-8/PA, Rei. Min. Cézar eluso, julgado em 2.12.2008, em cuja ementa se lê, ao final: "[ .. .] é líita a prova consistente no teor de gravação de conversa teleônica rea­ lizada por um dos interlocutores, sem o conhecimento do ouro, se não há causa legal específica de sigilo nem de reserva da conversação, sobretudo quando se predestine a fazer prova, m juízo ou inquérito, a avor de quem a gravou." Mais ainda. No julgamento do E n2 583.937/RJ, a Suprema Corte re­ conheceu a repercussão geral da questão, airmando a validade da gravação clandestina nas hipóteses em que o interlocutor esteja a defender interesse juridicamente relevante e legíimo, bem como em casos em que não haja reseiva de sigilo na comunicação. Ora, sequer seria necessário chegar-se a tanto (admitir-se a prova apesar de ilícita). Basta ver o quanto disposto no art. 233, parágrafo único, de nosso velho CP, para se concluir pela validade ou pela licitude da utilização da co­ municação sem o consentimento do interlocutor, quando presente interesse do destinatário; "CPP - art. 233. As cartas paticulares, interceptadas ou obtidas por meios i­ minosos, não serão admitidas em juízo. arágrafo único. As cartas poderão ser exibidas em juízo pelo respectivo des­ tinatário, para a defesa de seu direito, ainda que não haja consentimento do signatário." 350 Curso de processopenal • Pacelli Aliás, nesse contexto, seria bastante proveitoso o conhecido conceito de tipicidade conglobante, de Zafaroni. Segundo este autor, não seria ípico o ato quando quaisquer normas do Direito (qualquer Direito, mesmo o não penal) autorizassem a conduta. Enquanto as causas expressas de jusificação (estado de necessidade, legítima deesa etc.) diriam respeito às ações tolera­ das, as regras normativas da tipicidade conglobante se reeririam às condutas incentivadas pelo direito (FRONI; PIEANGELI, 1997.) Na linha desse entendimento, e no exemplo dado, não se poderia inquinar de ilícita a prova obtida pelo interlocutor na defesa de seus direitos, eventual­ mente em risco, e cuja proteção, potencialmente, poderia ser realizada por tal prova. Um exemplo de semelhante hipótese também pode ser exraído do julgamento do HC n' 84.203/RS, Rel. Min. Celso de Mello, em 19.10.2004, no qual se reconheceu lícita a gravação realizada por meio de câmara instalada no interior de garagem do proprietário da casa, com o objetivo de identiicar o autor de danos em seu automóvel. Evidentemente, o caso não era de ilicitu­ de da prova, até porque, conforme veremos, não há, como regra, ilicitude na produção de prova durante o lagrante delito. Mas pode-se também justiicar a licitude da gravação com base na proteção de direito próprio. De ouro lado, se não afastada a ilicitude, haverá que se examinar even­ tual possibilidade de seu aproveitamento, já então pelos critérios hermenêu­ ticos da proporcionalidade (vedação de excesso e máxima efetividade da proteção), cujo exame será feito logo a seguir (item 9.1.4.6). Note-se, ainda, que a gravação de conversa sem o conhecimento de um dos interlocutores, e na qual se obtenha a coissão da prática de um crime, é evidentemente inadmissível no processo, até pela violação do direito ao silêncio que se reconhece a todos os que, potencial ou efetivamente, este­ jam ou venham a ser submeidos a processo penal. Nesse sentido, SF - HC n° 69.818, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 3 . 1 1 . 1992. A prova assim obtida não teria também valor probante, na medida em que a confissão somente poderá ser valorada quando realizada perante o juiz, no curso, pois, da ação penal. Assim, se não conirmada em juízo, a airmação feita na aludida gravação não se prestaria a comprovar a conissão. De ouro lado, há interessantes julgados da Suprema Corte, reconhecen­ do a validade de uma gravação de conversa manida entre agentes policiais e um preso, na qual este atribuía a responsabilidade pela práica de certo crime a determinada pessoa. As gravações foram admitidas ao fundamento de que o preso, por ter ciência da prática de um crime, teria o dever de depor sobre Da Pova 351 ele. Assim, não poderia alegar direito à intimidade (STF - HC nQ 69.818, JSTF 224/345, JSTF n' 174/352; HC n' 69.204-4/S, DU 4.9.1992). Na linha do entendimento que mais adiante passaremos a expor, reputa­ mos acertado o aludido posicionamento, pela inexistência de efetivo exercício de direito por quem tem o dever de depor. A seu tuno, como já visto, o Superior Tribunal de Justiça, sistematica­ mente, tem aceitado a gravação de conversa feita por um dos interlocutores sem o consentimento do ouro, com base na aplicação do princípio da propor­ cionalidade (STJ - HC n' 4.654/RS; RHC n' 5.944/PR). Por im, a Lei nº 12.850, de 2 de agosto de 2013, que cuida dos crimes praicados por meio de organizações criminosas, autorizando, para os delitos ali arrolados, diversas providências invesigatórias, incluindo a infilração de agentes, a ação conrolada e a colaboração premiada, além de outras medidas tipicamente probatórias, tais como a interceptação ambiental, telefônica, de dados etc., tudo coorme o disposto no t. 3Q da citada Lei. A compleridade das questões introduzidas pela Lei n° 12.850/13 está a re­ clamar um tratamento especíico da matéria, conforme se verá no item 14.7.8. Porfim, remetemos o leitor também ao exame da questão relaiva à dela­ ção ou colaboração premiada (item 14.7.4, a), em que se abordam alguns de seus principais aspectos e, sobretudo, a constitucionalidade da medida. b) s interceptações telefônicas e de dados A redação dos incisos (art. 5°, CF) que cuidam da proteção à intimidade, à privacidade, à honra, e de outros valores reconhecidos na ordem jurídica constitucional, costuma causar algumas perplexidades em quem se vê na con­ tingência de interpretá-los. O inciso X, por exemplo, menciona que são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito à indeni­ zação pelo dano material ou moral decorrente de sua violação. Mais adiante, o inc. I trata da inviolabilidade do domicílio, azendo, porém, a ressalva quanto ao ingresso por meio de ordem judicial, se de dia, e de hipótese de flagrante delito, mesmo à noite. Logo a seguir, no inciso XII, volta o constituinte a se referir à proteção da intimidade e da privacidade, dispondo ser inviolável o sigilo da correspondên­ cia e das comunicações telegráicas, de dados e das comunicações telefônicas, 352 Curso de processopenal • Pacelli "salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para ins de investigação criminal ou instrução processual penal". A primeira leitura deste último dispositivo, sem dúvida, poderia sugerir a seguinte interpretação: o direito à intimidade, à privacidade, à honra e à imagem (inciso X), bem como o sigilo da correspondência e das comunicações telegráicas e de dados (inciso II) seriam intangíveis, isto é, seriam absolutos, não podendo, em qualquer hipótese, ser determinada a respeciva e corres­ pondente violação. Já o direito à inimidade e à privacidade decorrente das comunicações telefônicas (inciso II) e a inviolabilidade de domiclio (inci­ so I) poderiam ser flexibilizados, por ordem judicial. Do ponto de vista de uma leitura exclusivamente gramatical, a interpre­ tação é bastante razoável, já que a presença de uma ressalva na lei significa exatamente uma regra de exceção. s demais hipóteses, fora da exceção, de­ veriam receber ratamento distinto. O problema é que essa interpretação parece-nos inteiramente fora do sis­ tema constitucional de garanias individuais, e nem sequer apresenta coe­ rência lógica (ver, no mesmo sentido, elucidaivo rabalho de SILVA, Virgílio fonso da. Os direitos fundamentais e a lei: a constituição brasileira tem um sistema de reserva legal? ln: SOUZA NETO, Cláudio Pereira de; SMENTO, Daniel; BINENBOJM, Gustavo (Org.). Vinte anos da Constituição Federal de 1988. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 605-618). Obsevaríamos, de início, que a Constituição da República garante tam­ bém a inviolabilidade do direito à vida, conforme dispõe o caput do art. si. Embora assim seja, não há quem duvide de que aquele que subtrai a vida alheia em situação de legítima defesa não deve responder por qualquer tipo de sanção. A violação, em semelhante hipótese, seria epressamente autoriza­ da em lei (art. 23, CP). E a autorização teria justiicação bastante simples e ao alcance de todos: no confronto entre dois valores igualmente relevantes - a vida -, não há de se exigir que alguém ceda o seu direito a outrem. Então, a primeira observação: na ordem constitucional brasileira não existem direitos absolutos, que permitam o seu exercício a qualquer tempo e sob quaisquer circunstâncias. E tal ocorre porque a tutela normaiva de qual­ quer bem ou valor é sempre abstrata. No plano da realidade concreta, surgi­ rão, inevitavelmente, situações em que dois ou mais titulares do mesmo direito entrem em confronto, razão pela qual a lei estará autorizada a regulamentar soluções especíicas para cada conflito. Da Pova 353 E o conflito poderá surgir (e frequentemente surge) também entre dois ou mais itulares de direitos que, embora de natureza distinta, serão atingidos pelo simples exercício por parte de um deles. Essa realidade decorre do fato de vivermos em uma sociedade plural, isto é, em que vários são os interesses individuais e dos grupos que com­ põem a comunidade jurídica. Assim, a tutela de uma pluralidade de interes­ ses somente pode ocorrer no plano abstrato, ou seja, no plano normativo. Quando a realidade demonstrar a possibilidade de eventuais conlitos en­ tre valores igualmente protegidos na Constituição, somente um juízo de proporcionalidade na interpretação do Direito, orientado pela vedação do excesso e da máxima efetividade dos direitos fundamentais, é que poderá oferecer soluções plausíveis. A proporionalidade, hoje utilizada como um indispensável critério herme­ nêutico na aplicação do Direito, tem sua origem exatamente como meio de con­ trole da constitucionalidade das leis, que, embora formalmente consitucionais, previam, por exemplo, sanções desproporcionais para determinadas espécies de descumprimento da lei. Há na literatura nacional e intenacional inúmeros trabalhos de maior fôlego tratando do postulado ou princípio da proporcionali­ dade, seja na dimensão da proibição de excesso, seja na dimensão da proibição de proteção deiciente. Enre nós, lembramos, por todos, a obra de Humberto ÁI, Teoria dos princípios. Da deinição à aplicação dos princípiosjurídicos (2. ed. São Paulo: Malheiros, 2005), na qual se esclarecem diversas possibilidades conceituais e de aplicabilidade do princípio. Na literatura estrangeira, vale a pena coneir, pelo menos, Robert Alexy, Derecho y ra6n práctica (Tradução de Manuel Atienza. Colonia dei Cannen: Biblioteca de Éica, Filosoia dei derecho y política, México, 2002), além de Nicolas Gonzales-Cuelar Serrano, ropor­ cionalidad y derechos undamentales en el proceso penal (Madrid: Colex, 1990), espeicamente em relação às questões de prova. Assim, será preciso, primeiro, que se examine a questão sob a ótica da existência ou não de lei regulando o eventual conflito entre valores igual­ mente protegidos na Constituição; depois, será necessário o exame da cons­ titucionalidade dessa lei, sob todos os aspectos; por último, na hipótese de inexistência de lei regulando a matéria, somente um juízo de ponderação dos interesses, isto é, somente um juízo de proporcionalidade, diante do caso concreto, é que eventualmente poderá resolver a questão. Dissemos, anteriormente, que a interpretação inicialmente sugerida em relação ao direito à inimidade, à privacidade, à honra etc. estaria inteiramente 354 Curso de processopenal • Pacelli ora do contexto das garanias individuais e que também não apresentava se­ quer coerência lógica. Por quê? Vejamos. Por que razão o constituinte se importaria tão intensamente com a prote­ ção do sigilo da correspondênia e das comunicações telegráficas e de dados, a ponto de não prever qualquer hipótese de sua violação, e não faria o mesmo em relação às comunicações telefônicas? Por que também a menor preocupa­ ção com a inviolabilidade de domicílio? Para estas duas úlimas (comunica­ ções teleônicas e inviolabilidade de domiclio), como vimos, existe ressalva expressa quanto à autorização judicial. Ora, vimos que o próprio direito à vida, bem e valor maior de todo indiví­ duo, de cuja existência decorrem todos os demais direitos, encontra limites na lei. Por que, então, esses não poderiam ser limitados, sob quaisquer circunstâncias? Na realidade, a interpretação que fazemos é exatamente em senido inverso. O direito à intimidade, à privacidade, à honra, e todas as suas ormas de manifestação, ou seja, a inviolabilidade do domicílio, da correspondência, das comunicações, que se consituem apenas em algumas das várias modalidades de exercício dos aludidos direitos (intimidade etc.), podem, como regra, ser limitados, por não conigurarem nenhum direito absoluto. Podem e poderão, por isso, ser limitados, sempre que o respectivo exercício puder atingir outros valores igualmente protegidos na Constituição, e desde que haja previsão ex­ pressa na lei. É o que ocorre, por exemplo, em relação ao sigilo da correspondência, cja inviolabilidade é até prevista como crime, conforme o disposto no art. 40 da Lei nª 6.538, de 22 de junho de 1978. Desde que presente autorização judi­ cial, poderá haver quebra do mencionado sigilo (da correspondência), porque devidamente prevista em lei (art. 240, § 12,f, CPP), justiicada por necessida­ de cautelar, no curso de invesigação ou instrução criminal, tal como ocorre em relação às comunicações teleônicas (art. SQ, II, CF). Por isso, não vemos qualquer inconstitucionalidade na Lei nª 9.296, de 24 de julho de 1996, que regulamenta as hipóteses nas quais serão possíveis as interceptações telefônicas, incluindo-se ali a interceptação do fluxo de comunicações em sistema de informática e telemática. No mesmo sentido a jurisprudência nacional, incluindo o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça (Recurso Extraordinário n2 E 418416/SC, Rel. Min. Da Pova 355 Sepúlveda Pertence; Recurso Especial n: 625.214-S, Rel. Min. Hamilton Carvalhido). Do mesmo modo, nada de errado com a previsão de idênticas medidas na Lei n: 12.850/13, que cuida da deinição e de outras providências acerca das organizações criminosas. Ver, no particular, item 14.7.8. A telemática, conforme anota Sampaio (1998, p. 560), "estuda a mani­ pulação e utilização da inormação atravs do uso combinado do computador e dos meios de comunicação", como ocorre, por exemplo, com a comunicação via Internet. A possibilidade de autorização judicial também para a interceptação do fluxo de comunicações em sistema de informática e telemática, como ali pre­ visto, é perfeitamente constitucional, e vem completar o rol de proteção do inc. II do art. 5: da C, estabelecendo que, em todas as hipóteses ali mencio­ nadas, a quebra do sigilo exigirá autorização judicial fundamentada. Nos termos do art. 1° da citada Lei nQ 9.296/96, as interceptações deverão ser precedidas de ordem judicial do juiz competente, devidamente fundamen­ tada (art. 5°), e poderão ser decretadas na ase de investigação ou no curso da ação penal, sob segredo de justiça. Exige-se, ainda, que haja indícios razoáveis da autoria ou participação em infração penal punida com pena de reclusão, bem como que a prova do crime não possa ser feita por ouros meios (art. 2°). O prazo máximo da interceptação será de 15 dias, prorrogáveis por mais 15 (art. 5°), devendo as diligências ser registradas em autos apartados, pre­ servando-se o sigilo de todo o procedimento (art. 8°). O Supremo Tribunal Federal, no julgamento do HC nº 83.515/RS, Rei. Min. Nelson Jobim, em 16.9.2004 (Informativo STF nl 361, 22.9.2004), ixou entendimento no senti­ do de ser possível a renovação do prazo de 15 dias por mais de uma vez, quan­ do complexa a investigação, desde que comprovada a indispensabilidade do procedimento. Aqui, não há negar: a Suprema Corte deu interpretação am­ pliativa à norma restritiva de direito. Possível, a nosso aviso, sob a perspectiva de proteção a direitos fundamentais, em risco em razão da prática de determi­ nados delitos - juízo de proporcionalidade (adequabilidade), pois. E apenas. No mesmo sentido, o Superior Tibunal de Justiça, salientando a possibilida­ de de renovação da medida tantas vezes quantas forem necessárias, desde que comprovada a indispensabilidade da diligência (STJ - HC n1 50.193-ES, Rei. Min. Nilson Naves, julgado em 1 1 .4.2006). 356 Curso de processopenal • Pacelli Por fim, a mencionada lei prevê como crime, punido com pena de reclu­ são, de dois a quaro anos, a interceptação das comunicações ali mencionadas sem autorização judicial, ou com objeivos não autorizados em lei. Assim, obtida a prova mediante a interceptação não autorizada de comu­ nicação telefônica, de informática ou telemática, a consequência será a sua inadmissibilidade no processo. A Lei n2 1 1.343, de agosto de 2006, ao regulamentar novos procedimen­ tos em matéria de crimes de tóxicos e entorpecentes, a par de dispor que em qualquer fase da persecução criminal relativa aos crimes ali previstos seria cabível, mediante ordem judicial, com oitiva prévia do Ministério Público, a iniltração de agentes (art. 53, I) e o chamado lagrante diferido (art. 53, II), que já veremos mais adiante (item 1 1 .5.3), estabeleceu a possibilidade de adoção de quaisquer outros procedimentos investigatórios previstos em lei (art. 53, caput), o que inclui, por certo, a quebra de sigilo teleônico e de dados (fiscais, patrimoniais, bancários etc.) no curso da persecução penal então instaurada. Por último, também a quebra do sigilo dos dados telefônicos, ou seja, dos registros dos telefonemas dados e recebidos por determinado aparelho (que não conigura hipótese de interceptação), reclama autorização judicial, posto que tais informações inserem-se no contexto da intimidade e da privacidade do interessado. c) Sigilo bancário Na linha do entendimento que expusemos, pensamos que a quebra do si­ gilo bancário, que, em última análise, atinge uma certa parcela da intimidade e/ou privacidade (art. 52, X) do correntista/aplicador, também pode perfeita­ mente ser determinada em lei. E agora enraremos em terreno não muito irme, diante das peculiari­ dades de algumas legislações, que autorizam a quebra do sigilo bancário a determinadas autoridades públicas sem a autorização judicial. A questão, então, passa a ser a seguinte: admitida que seja a inexistência de qualquer direito absoluto, haveria critérios normativos (constitucionais) que vinculariam o legislador inraconsitucional, a ponto de somente se per­ mitir, em lei, a quebra do sigilo de qualquer manifestação da intimidade e/ou privacidade por via de pronunciamento judicial? Acreditamos que não. Da Pova 357 A referência feita no inciso I, em relação à inviolabilidade do domicílio, e no inciso XII, ao sigilo das comunicações telefônicas, no sentido da exigên­ cia de ordem judicial para a flexibilização dos respectivos direitos, merece, segundo nos parece, uma interpretação inversa daquela sugerida no início de nosso estudo acerca das interceptações telefônicas. ensamos que a exigência constitucional de ordem judicial somente deve ser aplicada àquelas hipóteses ali expressamente previstas. É dizer: somente para a quebra da inviolabilidade de domicílio e das comunicações telefônicas é que haveia o condicionamento expresso do legislador ordinário. Isso se dá, provavelmente, em razão de ser essa a manifestação da inimidade ou da pri­ vacidade mais frequentemente atingida pelas autoridades responsáveis pela persecução penal. Nas demais, a lei poderá atribuir a outras autoridades do Poder Público a flexibilização da intimidade/privacidade, desde que preenchidos os requisitos da indispensabilidade da medida, do sgilo quanto ao procedimento e da inalida­ de pública reservada à providência. O que deve ser observado, sempre, é a neces­ sidade da lexibilização do direito (à intimidade/privacidade), em ace do risco que o exercício de tais direitos, se realizados de modo absoluto e incontestável, poderá causar a outros valores protegidos na ordem constitucional. Por isso, não vemos inconstitucionalidade na Lei Complementar n2 105, de 10 de janeiro de 2001, que, dispondo sobre o sigilo das operações de instituições financeiras, autoriza as autoridades fazendárias a examinar seus documentos, livros e registros, inclusive os reerentes à conta de depósitos e aplicações financeiras, desde que haja processo administrativo regularmen­ te instaurado ou procedimento iscal em curso, e desde que tais exames se­ jam considerados indispensáveis pela autoridade administrativa competente (art. 62). O resultado dos exames, as informações e os documentos analisados serão conservados em sigilo (art. &, parágrafo único). Do mesmo modo e, aliás, repetindo a legislação anterior (Lei nº 4.595/64), a Lei Complementar n2 105/01 autoriza também a troca de informações sigi­ losas enre as instituições financeiras e o Banco Central, inclusive sobre con­ tas de depósitos e investimentos (art. 22, § 12), e a quebra do sigilo bancário quando as informações forem requeridas pelo Poder Legislaivo Federal e pe­ las Comissões Parlamentares de Inquérito, desde que aprovada a medida pelo Plenário da Câmara e do Senado, ou pelo Plenário das respectivas Comissões Parlamentares (art. 2). 358 Curso de processopenal • Pacelli Tratando-se, ainda, de lei complementar, ica assim atendida a exigência prevista no art. 192 da C, com o que, sob esse aspecto, nada há a se argumen­ tar contra a constitucionalidade da aludida Lei nº 105/01. No julgamento da Medida Cautelar nº 33, no âmbito do Recurso Extraor­ dinário 389.808 (de 24.11.2010), com a presença de todos os dez Ministros que a integram (faltante, então, o provimento da 111 Vaga, deixada pelo Min. Eros Grau e hoje ocupada pelo Min. Luiz Fux), a Suprema Corte decidiu, por maioria (6 x 4), pela desnecessidade de ordemjudicial para a quebra do sigilo bancário, quando se tratasse de procedimento regular instaurado no âmbito da Receita Federal. Na semana seguinte, porém, e surpreendentemente, diante da ausência do Ministro Joaquim Barbosa, cujo voto acompanhara a maioria na semana anterior, e com a mudança de posição do Min. Gilmar Mendes, o STF alterou seu entendimento, concluindo ser necessária a autorização judicial para as providências previstas na citada legislação complementar, por cinco votos a quatro. Não se pode dizer, contudo, que a questão esteja encerrada. É que o Min. Joaquim Barbosa ainda ocupa seu lugar na Corte e não se sabe, por ora, qual será a posição do Minisro Fux e nem da Ministra Rosa Weber so­ bre a questão. O Superior Tribunal de Jusiça decidiu pela exigência de ordem judicial (Sª Turma - ei. Jorge Mussi, 11.9.2011 - lormativo STJ n1 482), em hipóte­ ses de requerimento do Ministério Público à autoridades iscais. Não aderimos a essa tese. A nosso aviso, a legislação em comento atende às eigências de propor­ cionalidade na interpretação das normas consitucionais, diante dos inúmeros danos causados ao Erário pela prática, notória e sistemática, da sonegação iscal, em prejuízo, portanto, do interesse público comum. José Adércio Leite Sampaio, debruçando-se sobre o tema, anota que: "Na Bélgica, por exemplo, tanto os juízes, quanto os procuradores do rei, audi­ tores militares, polícia judiciária ou autoridades iscais, monetárias e inancei­ ras podem ter acesso às inormações bancárias de um deteminado correntista. Na França, as leis permitem aos agentes iscais terem acesso a documentos conidenciais das empresas, aí incluídos os bancos [. . .] Assim também na Ale­ manha, Holanda, Itália e Espanha, defere-se poder análogo ao Fisco e ao Juiz" (1998, p. 555). Da Pova 359 Se assim se decidiu em relação à LC n" 105/01, afirmando-se a exigência e a exclusividade de ordem judicial para o aastamento do sigilo bancário, o que ali se dirá então da Lei Complementar n" 75/93, que, em tese, poderia (e pode, para nós) ser interpretada no senido de permiir aos membros do Ministério Público da União tal prerrogativa. inal, podem eles requisitar informações e documentos a entidades privadas (art. 8°, ); ter acesso incon­ dicional a qualquer banco de dados de caráter público ou relativo a serviço de relevância pública (art. 8", VIII), estabelecendo, também, que "nenhuma autoridade poderá opor ao Ministério Público, sob qualquer pretexto, à exceção de sgilo, sem prejuzo da subsistência do caráter sigiloso da infonação, do re­ gistro, do dado ou do documento que lhe sejafornecido" (art. 8", § 22). Nunca é demais lembrar que, em tema de direito à intimidade e/ou pri­ vacidade, é sempre necessária uma valoração dos interesses em disputa, so­ pesando-se o grau do dano a ser causado pela flexibilização legislativa, a ser aferido em contraparida àquele produzido pelo exercício de modo absoluto do reerido direito. ensamos que ambas as legislações são válidas. Evidentemente, para que a quebra do sigilo seja possível, deverão concorrer os mesmos requisitos de indispensabilidade, da existência de procedimento regular já instaurado e da inalidade pública da medida, nos termos, aliás, das disposições legais perti­ nentes, bem como epressa previsão legal na LC n2 105/01. A maior diiculdade em se aceitar a iniciativa direta do parquet para a quebra do sigilo bancário decorreria do disposto no art. 6°, VIII, a, da pró­ pria Lei Complementar nº 75/93, que prevê como competência do Ministério Público a representação à autoridade judiciária, para fins de quebra de sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comuni­ cações teleônicas, no curso de investigação ou instrução criminal. ensamos, porém, que o sigilo bancário não estaria incluído na aludida previsão, pois, do conrário, haveria verdadeira incompatibilidade normativa com as demais disposições da citada Lei Complementar nº 75/93. No entanto, como demonstrado, tanto a Suprema Corte quanto o Supe­ rior Tribunal de Justiça entendem de modo diverso, exigindo autorização ju­ dicial para a quebra de sigilo fiscal e bancário (No STJ - 5ª Turma - Rel. Jorge Mussi, 1°.9.2011 - Informativo STJ 482). Noutro giro, merece menção o fato de que no julgamento do Mandado de Segurança n1 21.729-4, sendo Relator para o acórdão o Min. Néri da Silvei­ ra, impetrado em 1995 (a publicação do acórdão veio uma década depois), 360 Curso de processopenal • Pacelli contra ato do Procurador-Geral da República, que exigia inormações sigilo­ sas a respeito do rastreamento de verbas públicas desviadas de sua finalida­ de, prevaleceu, por maioria, o entendimento segundo o qual, tratando-se de infonnações relativas a desvios de verbas públicas federais, o Ministério Público poderia obter tais informações diretamente da instituição financeira. No en­ tanto, a bem da verdade, não cuidava a espécie de quebra de sigilo acerca de conta de depósitos e/ou de aplicações financeiras, mas de rastreamento de verbas públicas. Ao que parece, trata-se de decisão isolada. Outra questão. Se não há dúvida quanto ao fato de poder a Comissão arlamentar de In­ quérito (CPI) determinar a quebra de sigilo bancário, talvez o mesmo não se pudesse mr em relação às Comissões arlamentares estaduais, seja por falta de previsão espeica na Constituição da República (argumento essen­ ialmente jurdico), seja por eventuais receios de abusos por pane das citadas Comissões (no que se revela argumentação de oura natureza). Seja como for, o Supremo llibunal Federal já esclareceu a questão, por apenada maioria (6 x 5), no julgamento da ACO nu 730/RJ, sendo Relator o Min. Joaquim Barbo­ sa, em 22.9.2004. Com os votos venidos dos n. Eros Grau, Cezar Peluso, Ellen Grade, carlos elloso e Nelson Jobim, o Supremo Tribunal Federal reconheceu tal poder invesigaivo às Comissões arlamentares estaduais, aastando, porém, a possibilidade de eventuais Comissões muniipais intentarem a medida. O undamento principal para a admissão da competência das Casas Legis­ laivas estaduais, para além das obsevações acerca do modelo do federalismo adotado na Carta de 1988, residiu, essencialmente, no reconhecimento da existência concreta do Poder Judiciário estadual, o que permitiria atribuir aos parlamentares estaduais os mesmos poderes investgatórios concedidos à au­ toridade judiciária (estadual), para fins de determinação de quebra de sigilo bancário. Podendo os Juízes Estaduais, também deveriam poder os respecti­ vos parlamentares (estaduais). Aliás, foi por esse fundamento que se recusou o mesmo poder aos parlamentares municipais, ente da Federação sem poderes para a insituição de Poder Judiciário. Estamos de acordo com a decisão, sobretudo no ponto em que rejeita a quebra de sigilo bancário para as CPis municipais. Enretanto, não pelo mes­ mo fundamento. Ora, se o cerne da questão residisse na correspondência entre Poder Ju­ diciário e Poder Legislativo, no mesmo âmbito do poder político, poder-se­ -ia alegar que a competência das CPis estaduais deveria se limitar à quebra de sigilo bancário apenas em relação às insituições financeiras privadas ou Da Pova 361 estaduais. É que, presente o Banco Cenral, a competência jurisdicional seria federal, afastando-se a competência dos Juízes Estaduais e, assim, também dos parlamentares estaduais. Ao parlamento municipal não se deve mesmo reconhecer o poder de que­ bra de sigilo, exatamente em razão da posição que referidos entes (Municí­ pios) ocupam na distribuição do Poder Público. Veja-se, por exemplo, a ampla limitação legiferante dos municípios (restrita às questões de interesse local), e, também, a inexistência de foros privativos, na Constituição da República, para os respectivos parlamentares (vereadores). Ora, sendo assim, não aria sentido permitir a eles poderes superiores às próprias prerrogativas. Por im, importante alteração legislativa veio com o art. 17-B da Lei n° 12.683/12, que promoveu sensíveis modificações na Lei n° 9.613/98 Oa­ vagem de dinheiro e capitais). Estabelece reerido dispositivo o acesso ao Ministério Público e à auto­ ridade judicial, sem a necessidade de ordem judicial, aos dados atinentes à qualiicação pessoal, iliação e endereço, daquele que se enconrar sob in­ vestigação, junto às insituições financeiras, às empresas de telefonia, aos provedores de Internet, às administradoras de cartões de crédito e à Justiça Eleitoral. Note-se que, embora se trate de medida portadora de certo grau de tan­ genciamento da privacidade, não se pode deixar de reconhecer, por outro lado, que a afetação ao aludido direito individual não chega ao ponto de re­ clamar a invalidade (inconsitucionalidade) da providência. Impende observar, no particular, e de início, que reerido acesso aos ór­ gãos da persecução criminal se limita, exclusivamente, aos dados de qualii­ cação do investigado, restrito apenas aos casos de crimes contemplados na Lei nº 9.613/98 (com redação dada pela Lei nº 12.683/12), de lavagem de dinheiro, ativos, bens e capitais. Trata-se, em verdade, de medida destinada ao esclarecimento da identiicação civil do investigado. Sequer se pode falar em nova hipótese de identificação criminal (Lei n1 12.037/09), a exigir maio­ res cuidados do legislador. E, repita-se, não se cuida de regra geral, mas de diligênia autorizada exclusivamente para os delitos de lavagem de dinheiro. d) A Comissão Parlamentar de Inquérito e a cláusula da reserva da jurisdição O art. 58, § 31, da C, prevê que as Comissões Parlamentares de Inquérito terão poderes investigatórios próprios das autoridades judiciais. 362 Curso de processopenal • Pacelli Quando dissemos, anteriormente, que a Constituição Federal é uma Carta plural, no senido de abrigar vários e distintos interesses, de disintos titulares, preocupávamo-nos apenas com as questões de direito material, sobretudo com aquelas ainentes à proteção dos direitos e garantias individuais e fundamentais. Já se vê, aqui, porém, que a pluralidade atingiu até mesmo a técnica de redação de nosso texto constitucional. Ora, não nos parece adequado dizer que a Comissão Parlamentar de Inquérito teria os poderes investigat6rios pr6prios das autoridades judiciais, pela simples razão de que as autoridades judi­ ciais, a rigor, não têm poderes investigat6rios. Têm, ao conrário, e muito ao contrário, a competência consitucional para a tutela dos direitos e garantias individuais, em cujo exercício poderão determinar a limitação concreta de alguns deles, desde que prevista em lei e desde que cumpridos os requisitos inerentes à cautelaridade da medida. Feita a ressalva, cumpre apontar as eventuais limitações postas à aivida­ de das Comissões Parlamentares de Inquérito, para o im de definir até onde iriam os tais poderes investgat6rios. Em primeiro lugar, observa-se que, tratando-se de restrições ao exercício de qualquer direito individual, toda decisão, seja de que autoridade partir, deve ser rigorosamente fundamentada. Observa-se, mais, que as citadas Comissões arlamentares haverão de en­ contrar limitação de seus poderes na própria Constituição, mais precisamente nas chamadas cláusulas de reserva a jurisdição. Tais reservas decorreriam de eventual excepcionalidade de determinada regra, quando prevista no próprio texto consitucional. Exemplos: a Consituição assegura como inviolável o domicílio, à exce­ ção do flagrante delito e de ordem judicial (art. 51, XI); assegura, ainda, que ninguém será levado à prisão ou nela manido, à exceção do flagrante delito, ou por ordem escrita de autoridade judiciária (art. 52, I); para a violação do sigilo das comunicações teleônicas, há dispositivo expresso reservando a competência da autoridade judiciária (art. 51, XII). Em todas essas situações, parece-nos que não será possível às Comissões Parlamentares a restrição ou a limitação dos direitos ali assegurados, em ra­ zão da regra de exceção expressa, em relação às autoridades judiciárias (STF - MS n' 23.642/D, em 29.11.2000 - Iormativo STF n' 212). Não é o que ocorre, por exemplo, com o sigilo de dados das comunica­ ções teleônicas, isto é, dos registros telefônicos (e não da interceptação), Da Pova 363 com o sigilo bancário e com o sigilo iscal, todos ao alcance das CPis, conso­ ante, aliás, vem entendendo o Supremo Tribunal Federal, em mais de uma oportunidade. 9.1.4.2 A teoria dos frutos da árvore envenenada A teoria dos fruis of the poisonous tree, ou teoria dos rutos da árvore envenenada, cuja origem é atribuída à jurisprudência norte-americana, nada mais é que simples consequência lógica da aplicação do princípio da inadmis­ sibilidade das provas ilícitas. Se os agentes produtores da prova ilícita pudessem dela se valer para a obtenção de novas provas, a cuja existência somente se teria chegado a parir daquela (ilícita), a ilicitude da conduta seria facilmente contonável. Bastaria a observância da forma prevista em lei, na segunda operação, isto é, na busca das provas obidas por meio das informações extraídas pela via da ilicitude, para que se legalizasse a ilicitude da primeira (operação). Assim, a teoria da ilicitu.de por derivação é uma imposição da aplicação do princípio da inadmis­ sibilidade das provas obtidas ilicitamente. O Supremo Tribunal Federal, em mais de uma ocasião, teve oportunida­ de de reconhecer a perinência dos fruis of the poisonous Tee, conforme se vê no julgamento do HC nº 74.116/S, DJU 14.3.1997, e HC nº 76.641/S, DJU 5.2.1999. A parir da Lei nº 11.690/08, que alterou diversos dispositivos do CP, a teoria dos rutos da árvore envenenada passa a integrar a ordem processual penal brasileira de modo expresso. Diz o t. 157, § 1°: "são também inadmis­ síveis as provas derivadas das ilícitas, salvo quando não evidenciado o nexo de causalidade entre umas e oulTas, ou quando as derivadas puderem ser obtidas por uma fonte independente das primeiras". Impõe-se, porém, observar que, no plano prático, algumas diiculdades poderão surgir, sobretudo em razão de não se apresentar tão simples assim a definição de derivação. A dificuldade a que ora nos referimos em relação à deinição da palavra derivação não é, evidentemente, de origem semântica. Ela se fará presente na identiicação concreta de se tratar de prova efetiva­ mente derivada da ilícita. Busca-se, então, o significado do apontado "nexo de causalidade da prova". Em primeiro lugar, pode ocorrer que a prova posteriormente obtida já estivesse, desde o início, ao alcance das diligências mais requentemente 364 Curso de processopenal • Pacelli realizadas pelos agentes da persecução penal. Pode ocorrer, de fato, que seja possível concluir que o conhecimento da existência de tais provas se daria sem o auxílio da informação ilicitamente obtida. ., ao que se vê, a hipótese seria da aplicação da "fonte independente'', isto é, de meio de prova sem qual­ quer relação fáica com aquela ilicitamente obtida. Note-se que a Lei nP 11.690/08 comete um equívoco técnico. No an. 157, § 2P, ao pretender definir o signiicado de ''fonte independente'', airmou tra­ tar-se daquela que "por si s6, seguindo os trâmites típicos e de praxe, pr6prios da investigação ou instrução criminal, seria capaz de conduzir ao ato objeto da prova". A nosso aviso, essa é a definição de outra hipótese de aproveitamento da prova, qual seja, a teoria da descoberta inevitável, muito utilizada no di­ reito estadunidense. Na descoberta inevitável admite·se a prova, ainda que presente eventual relação de causalidade ou de dependência entre as provas (a ilícita e a descoberta), exatamente em razão de se tratar de meios de prova rotineiramente adotados em determinadas investigações. Com isso, evita-se a contaminação da totalidade das provas que sejam subsequentes à ilícita. Exemplo: ainda que ilícito o ingresso da autoridade policial em determinada residência, a eventual descoberta de um cadáver no local não impedirá que se inicie investigação acerca de homicídio (se houver elementos nesse senido), devendo-se adotar os meios de prova que roineiramente são utilizados na investigação de crimes dessa natureza. Já a teoria da fonte independente baseia-se precisamente na ausência fáti­ ca de relação de causalidade ou de dependência lógica ou temporal (produ­ ção da prova posteriormente à ilícita). Fonte de prova independente é apenas isso: prova não relacionada com os fatos que geraram a produção da prova contaminada. Nada mais. Exemplo (real!): autoridade policial, ao avistar, no trânsito, veículo de prima linea, conduzido por determinada pessoa, descon­ iou tratar-se de furto, unicamente em razão da cor (negra) do motorista. Note-se que, embora a apreensão do veículo nessas circunstâncias nos pareça fruto de conduta discriminatória por parte de agente do Estado, a ma­ cular de ilicitude a diligência, nada impediria que eventuais testemunhas que presenciaram o furto na residência do proprietário do veículo fossem ouvidas e comprovassem a autoria. A apreensão nada teria a ver com o ato testemu­ nhado (fonte independente, pois). Como se observa, há muito a ser discutido. Mas, desde já, deixamos assen­ tado: ainda que ilícita a prova, não vemos razão alguma para se determinar Da Pova 365 o trancamento do inquérito. E isso porque nem toda atividade invesigatória subsequente estaria contaminada, como demonstramos. A prevalecer tal ex­ tensão para o conceito dos rutos da árvore envenenada, com desconsideração completa à teoria da descoberta inevitável, a ilicitude da prova, mais que uma violação à intimidade dos interessados, revelar-se-ia cláusula de permanente imunidade em relação ao fato. Com isso, nem sempre que esivermos diante de uma prova obtida ilici­ tamente teremos como consequência a inadmissibilidade de todas aquelas outras provas a ela subsequentes. Será preciso, no exame cuidadoso de cada situação concreta, avaliar a eventual derivação da ilicitude. Com eeito, interpretada em termos absolutos, alguns delitos jamais po­ deriam ser apurados, se a informação inicial de sua existência resultasse de uma prova obtida ilicitamente (por exemplo, escuta telefônica), antes, por­ tanto, da instauração de qualquer procedimento investigatório. Pode-se ob­ jetar: esse é um problema do Estado, que oi o responsável pela violação de direitos na busca de provas. Ocorre, todavia, que, prevalecendo esse entendimento, ou seja, no senti­ do de que todas as provas que forem obtidas a pair da notícia (derivada de prova ilícita) da existência de um crime são também ilícitas, será muito mais fácil ao agente do crime furtar-se à ação da persecução penal. Bastará ele mesmo produzir uma situação de ilicitude na obtenção da prova de seu crime, com violação a seu domicílio, por exemplo, para trancar todas e quasquer iniciativas que tenham por objeto a apuração daquele delito então noticiado. Nesse sentido, Gilmar Mendes, Inocêncio Mártires Coelho e Paulo Gustavo Gonet Branco (Curso de direito constitucional. São Paulo/Brasília: Saraiva ID, 2007, p. 605). Impõe-se, portanto, para uma adequada tutela também dos direitos indi­ viduais que são atingidos pelas ações criminosas, a adoção de critérios orien­ tados por uma ponderação de cada interesse envolvido no caso concreto, para se saber se toda a atuação estatal investigatória estaria contaminada, sempre, por determinada prova ilícita. Pode-se e deve-se recorrer, ainda mais uma vez, ao critério da proporcionalidade, que, ao im e ao cabo, admite um juízo de adequabilidade da norma de direito ao caso concreto. Nesse quadro, a atual redação do t. 157, § lQ e § 2Q, CP, embora pro­ veitosa, ao se referir expressamente a duas situações nas quais seria possível vislumbrar a não contaminação da prova ilícita, ao tempo em que buscava deinir o âmbito da contaminação, não parece suficiente para resolver todas 366 Curso de processopenal • Pacelli as questões teóricas e práicas envolvidas, a parir da necessidade de identi­ icação do real signiicado e extensão do chamado "nexo de causalidade" na derivação da ilicitude. 9.1 .4.3 A teoria do encontro fortuito de provas Ainda na linha das questões ligadas à inadmissibilidade das provas ob­ tidas ilicitamente, pode-se apontar também a teoria do encontro fortuito ou casual de provas como uma das hipóteses de aplicação do princípio. Fala-se em encontro fortuito quando a prova de determinada inração penal é obtida a parir da busca regularmente autorizada para a investigação de outro crime. A Lei nº 11.690/08, descendo a detalhes em tema de prova, perdeu boa oportunidade de regulamentar a matéria. A teoria, embora em um primeiro exame possa parecer um excessivo zelo com a tutela do devido processo legal, justifica-se plenamente. Na Alemanha, por exemplo, reconhece-se a sua aplicabilidade na intepretação, por exem­ plo, do § 100, b, , do Código de Processo Penal (StPO). Aqui, o que é (e será) decisivo é o desempenho de uma das funções que são atribuídas ao princípio da inadmissibilidade das provas ilícitas, tal como mencionado no início deste item, a saber: a função de controle ou de pedago­ gia da atividade policial persecutória. Mas é exatamente no tanto em que ela (a teoria) se justiica que reside também a deinição dos limites de sua aplicação. Quando, na invesigação de um crime contra a auna, por exemplo, agen­ tes policiais, munidos de mandado judicial de busca e apreensão, adentram em determinada residência para o cumprimento da ordem, espera-se, e mes­ mo exige-se (art. 243, II, CPP), que a diligência se realize exclusivamente para a busca de animais silvestres. Assim, se os policiais passam a revirar as gavetas ou armários da residência, é de se ter por ilícitas as provas de inração penal que não estejam relacionadas com o mandado de busca e apreensão. Em semelhante situação, como é óbvio, o local revistado jamais abrigaria o objeto do mandado judicial. Do contrário, a ação policial, em caso de mandado de busca e apreensão, fugiria do conrole judicial, conigurando verdadeira ilegalidade, por violação do domicílio, no ponto em que, para aquela inalidade, o ingresso na residên­ cia não estaria autorizado. A teoria, portanto, presta-se a jusiicar a adoção Da Pova 367 de medidas acautelatórias em avor da proteção do direito à inimidade e/ou privacidade, de modo a impedir o incenivo à práica do abuso de autoridade. ensamos, contudo, que é preciso certa prudência na sua aplicação, para que a teoria não se ransforme em instrumento de salvaguarda de aividades criminosas, sobretudo no campo da chamada criminalidade macroeconômica e da criminalidade organizada. Assim, por exemplo, quando, no curso de determinada investigação cri­ minal, é autorizada judicialmente a interceptação teleônica em certo local, com a consequente violação da intimidade das pessoas que ali se enconram, não vemos por que recusar a prova ou a informação relativa a outro crime ali obida. A tanto não se prestaria a teoria do encontro fouito, dado que a sua inalidade e ratio essendi nem de longe seria atingida. Em tal situação, se até as conversações mais íntimas e pessoais dos investigados e das pessoas que ali se encontrassem estariam ao alcance do conhecimento policial, por que não o estaria a notícia referente à prática de ouras infrações penais? Nem se poderia alegar que as autoridades encarregadas da investigação criminal poderiam valer-se do expediente para obter mais facilmente autori­ zação para a interceptação teleônica, agindo, então, abusivamente. É que, como vimos, a autorização judicial para a interceptação telefônica é feita sem­ pre de modo excepcional, devidamente fundamentada, e somente quando se izerem presentes indícios razoáveis de autoria e/ou participação, bem como quando a prova não puder ser feita de outro modo, além de ser cabível so­ mente para inrações punidas com pena de reclusão (art. 22, Lei n2 9.296/96) . Assim, não haveria o risco de influência significativa ou decisiva de um suposto interesse na invesigação de outros fatos, para a obtenção de autori­ zação para a interceptação teleônica. Na linha do aqui sustentado, com ligeira variação, quanto à identidade dos atos, é ver julgamento do Supremo Tribunal Federal, no sentido de reco­ nhecer a licitude da prova de outro crime, diverso daquele invesigado, obida por meio de interceptação teleônica autorizada, de início, para a apuração de crime punido com reclusão. Argumentou-se, então, que a conexão entre os fatos e os crimes justiicaria a licitude e o aproveitamento da prova, mesmo envolvendo crimes punidos com detenção, para os quais, inicialmente, por ve­ dação legal (art. 22, III, Lei nª 9.296/96), a interceptação telefônica não seria admitida (HC nª 83.515/RS, Rel. Min. Nelson Jobim, Informativo n1 361). E, posteriomente: HC n. 102.394, Rei. Min. Cármen Lúcia. 368 Curso de processopenal • Pacelli Ora, não é a conexão que justiica a licitude da prova. O fato, de todo relevante, é que, uma vez ranqueada a violação dos direitos à privacidade e à intimidade dos moradores da residência, não haveria razão alguma para a recusa de provas de quaisquer ouros delitos, punidos ou não com reclusão. Isso porque uma coisa é a justificação para a autorização da quebra de sigi· lo; tratando·se de violação à inimidade, haveria mesmo de se acenar com a gravidade do crime. Entretanto, oura coisa é o aproveitamento do conteúdo da intervenção autorizada; ratando·se de material relativo à prova de crime (qualquer crime), não se pode mais argumentar com a justicação da medida (interceptação telefônica), mas, sim, com a aplicação da lei. Questão das mais interessantes, contudo, diz respeito à possibilidade de aproveitamento de prova obtida por meio de interceptação teleônica, devida· mente autorizada para a apuração de determinado crime, em outro processo, de natureza diversa, isto é, não criminal. Bem se vê, aqui, a diferença entre a competência jurisdicional para a de· terminação da quebra da inviolabilidade, que, no exemplo dado, é o só o juiz criminal, e a possibilidade de aproveitamento do material assim obtido em outra instância. Se o juiz cível não pode determinar a quebra do sigilo tele· fónico, por vedação constitucional, pode ele, entretanto, conhecer da prova colhida em ação penal, por não haver qualquer risco ou diminuição da eficácia da aludida norma de proteção (da inviolabilidade da comunicação telefôni· ca). Apenas o juz criminal prosseguirá com competência para determinar a sua quebra; jamais o juiz cível. Aproveitar a prova (emprestada) não impli· ca violação à competência de jurisdição. (Nesse sentido, decisão do Supre· mo Tribunal Federal, na Questão de Ordem em etição 3.683·2 - ei. Cezar Peluso, DJ 20.2.2009). 9.1 .4.4 A prova ilegítima: a prova emprestada A doutrina do processo penal faz uma distinção conceituai entre a prova ilícita e a denominada prova ilegítima. Sequer a Lei nº 11.690/08, que tantas inovações rouxe no campo das provas, cuidou do tema. Fala·se, ali, em pro· vas ilícitas como sendo aquelas obtidas em violação a normas constitucionais ou legais (art. 157, caput, CPP). Ainda segundo a dourina, as provas ilícitas seriam aquelas obtidas com violação ao direito material, enquanto as provas ilegítimas receberiam tal de· finição por violarem normas de Direito Processual. Da Pova 369 A disinção pode ser perinente unicamente para ailitar a compreensão do que sejam os momentos de obtenão, introdução e produão e, ainda, e valoração da prova. Quanto às consequênias juídicas, porém, não tem qualquer uilidade. O melhor exemplo, e que facilita enormemente o entendimento acerca da distinção, é o da prova emprestada, isto é, a prova obtida a partir de oura produzida em processo distinto. Em ação penal instaurada contra determinados réus, é possível, por exemplo, que, no caso de morte de uma testemunha, a acusação obtenha uma certidão de inteiro teor do depoimento por ela prestado em outra ação penal, envolvendo os mesmos fatos e outros acusados. Essa prova, assim obtida, seria denominada emprestada, porque produzida efetivamente em outro processo. Como se percebe, a sua obtenção seria inteiramente lícita, não se poden­ do falar, ainda, em inadmissibilidade da prova. Todavia, a sua introdução no novo processo e, sobretudo, a sua valoração, seria inadmissível, por manifesta violação do princípio do conraditório. Efeti­ vamente, como os réus na nova ação não eram os mesmos daquela, no curso da qual teria sido produzida a aludida prova testemunhal, tem-se que eles não puderam manifestar-se concretamente sobre o conteúdo do depoimento constante da prova assim emprestada. Em tese, sempre em tese, é claro, pode­ riam eles, se ali presentes, conrontar o reerido depoimento, demonstrando até mesmo (em tese) a sua falsidade, o que, com a morte da testemunha, e a juntada de simples certidão, seria rigorosamente impossível. Por isso, porque atingido o direito ao conraditório, tal prova não poderia ser utilizada conra os réus. Obsevaríamos, apenas, que o direito ao contraditório, parece-nos, não constitui uma norma de Direito Processual, ainda que no processo é que se efetive e se exerça. A nosso aviso, toda garantia individual relativa ao due process of law tem conteúdo eminentemente material. Seja como for, uma (prova ilícita) e outra (prova ilegítima) são inadmis­ síveis no processo. 9.1.4.5 O aproveitamento da prova com excluão da ilicitude O que é inadmissível é a prova ilícita. Havendo situações reconhecidas pelo Direito como suficientes a aastar a ilicitude, as provas, assim produzi­ das, serão validamente aproveitadas no processo penal. 370 Curso de processopenal • Pacelli A exclusão poderá ocorrer em razão da presença de atos e/ou circuns­ tâncias que afastam a ilicitude da ação praticada, como também em razão de nem sequer se ter por configurada a hipótese de violação de qualquer direito e, por isso, não conigurada a hipótese da ilicitude. a) xcludentes de ilicitude O Código Penal brasileiro prevê (art. 23) determinadas situações em que a ilicitude geral (e abstrata) da conduta seria afastada pelo que a doutrina denomina também de causas de justiicação. Que sejam de justiicação (da conduta) não temos dúvidas, mas que conigurem causas não estamos con­ vencidos, já que dizem respeito a determinadas e especíicas motivações para a prática da ação típica. O que importa, todavia, é que, nessas situações (o es­ tado de necessidade, a legítima deesa, o estrito cumprimento do dever legal e o exercício regular do direito), a ação típica realizada estará jusiicada aos olhos do Direito, não havendo de se falar em crime. Assim, quando o agente, atuando movido por algumas das motivações anteriormente mencionadas (causas de justiicação), atinge determinada in­ violabilidade alheia para o fim de obter prova da inocência, sua ou de tercei­ ros, estará afastada a ilicitude da ação. Em consequência, estará também afastada a ilicitude da obtenção da pro­ va, podendo ela ser regularmente introduzida e valorada no processo penal. Como se percebe, o critério de ponderação enre o mal causado na infra­ ção praticada com inalidade deensiva e aquele que ocorreria com a possí­ vel condenação do inocente, é realizado, aqui, pelo próprio legislador. Mais adiante veremos se é possível a aplicação de critérios de ponderação, não mais pelo legislador, mas pelos próprios órgãos da jurisdição, quando, então, a questão se tomará muito mais complexa. b) O larante delito Ao abordarmos o tema da inadmissibilidade das provas obidas ilicita­ mente, tentamos pôr em relevo a afetação de certos direitos que ocorre justa­ mente no momento da obtenção da prova. Realçamos o risco, sempre requente, por ocasião da busca de provas de práicas criminosas, de serem aingidos os direitos à intimidade, à privacida­ de, à imagem e outros, seja por meio da violação de domicílio, de correspon­ dências, de comunicações telefônicas, seja por quaisquer outros métodos. Da Pova 371 A ilicitude localiza-se, portanto, na violação de direitos. A Constituição Federal de 1988, como visto, estabelece a inviolabilidade do domiclio, com o que alguém somente poderá nele adentrar, sem o consen­ timento do morador, para prestar socorro ou em situação de larante delito. E que não haja dúvidas: a autorização constitucional para o ingresso em residência durante situação de flagrante delito prevalece em razão do risco aos bens jurídicos protegidos pela ordem jurídica, independentemente da vontade e de quem seja o proprietário ou morador da residência. Assim, ainda que o delito no interior da residência esteja sendo praticado pelo seu proprietário, qualquer pessoa do povo estará autorizada a ingressar na casa para a proteção dos aludidos bens (vida, liberdade sexual, patrimônio etc.). Evidentemente, a prova assim obtida nada terá de ilícita, quer quanto à sua obtenção, quer quanto à sua produção e valoração no processo. Nada terá de ilícita por uma razão bem simples: o Direito, salvo raras exceções, não protege as ações atentatórias contra bens e valores reconheci­ dos expressamente no ordenamento jurídico. De outro modo: o Direito não protege as violações praticadas contra ele mesmo (Direito). À evidência, ninguém poderá argumentar, no interior de sua residência, que tem o direito de ali estuprar ou matar a pessoa de sua preferência, por se encontrar supostamente protegido pela inviolabilidade de domicílio. Esta inviolabilidade existe e somente existirá na medida e nos limites em que o seu titular estiver no exerccio de seu legítimo direito (à intimidade, à privaidade, por exemplo). Do mesmo modo, pelo fato de existir norma penal incriminadora da con­ duta de manter em depósito substância entorpecente (Lei nQ 11.343/06), essa mesma pessoa não poderá alegar o seu direito à inviolabilidade do domicílio, em razão de não se enconrar no exercício de qualquer um de seus direitos in­ dividuais. Por isso, em uma situação de flagrante delito (e qualquer delito), o ingresso no domicílio é expressamente autorizado pela norma constitucional. É claro que a efetiva ocorrência de situação de flagrante delito pode não ser tão facilmente demonstrada. É claro também que diligências policiais ar­ bitrárias e abusivas poderão ser praticadas, sob o argumento de se tratar de lagrante delito, embora se comprove, posteriormente, que rime algum ocor­ ria no interior da residência invadida. Esse é, porém, um risco que o cons­ tituinte preferiu correr, deixando o exame da perinência e da regularidade da ação policial à prudente análise dos órgãos públicos responsáveis pela aplicação do Direito. 372 Curso de processopenal • Pacelli É bem de ver, nesse campo, que a matéria refoge um pouco ao âmbito es­ trito do processo penal, para se localizar no vasto terreno da ilicitude. E, aqui, será sempre possível, ao menos em tese, que também o Judiciário, que tam­ bém o Ministério Público, que também os membros do Congresso Nacional, enim, que qualquer servidor público ou agente político atue com desvio de inalidade, com arbitrariedade ou abuso de poder, ou que atue com violação às leis penais. Por isso, é de se exigir, sempre, que toda ação policial ou de terceiros de­ monstre a idoneidade de sua conduta, a plausibilidade fática e a existência de indícios veementes da ocorrência do crime, para o im de se justificar a atua­ ção em uma situação de flagrante delito. Do contrário, não havendo crime em curso, deverão eles responder criminalmente por suas ações. Diferentemente, iremos encontrar, fora dos exemplos relativos à inviola­ bilidade de domicílio, inúmeras ouras situações em que a prova do delito seja obida durante a prática do crime. Isso ocorrerá por ocasião das chamadas gravações ambientais, ou seja, realizadas no meio ambiente, por meio de gravador, vídeos, em que a imagem do cometimento do crime é captada por alguém (geralmente um paricular) durante a sua realização, o que ocorre, sobretudo, quando o delito é praticado em lugares públicos ou de acesso ao público. A realidade tem nos mostrado a ação de pessoas que, por quaisquer ra­ zões, estejam ilmando ou fotografando em determinados locais e terminam por gravar, acidental ou voluntariamente, a prática de inúmeros crimes. Em todas essas situações, a prova do crime deve ser ranquilamente ad­ mitida no processo, porque obidas durante a prática do delito, situação em que os seus autores jamais poderão alegar violação a qualquer de seus direi­ tos (intimidade, privacidade, imagem etc.), pela ausência de extensão a eles, naquele momento, das garantias constitucionais individuais. No momento do crime, que conigura sempre uma violação de direitos, e não exercício deles, nenhuma norma de direito poderá proteger a ação delituosa. Por isso, a gravação de conversa teleônica feita por um dos interlocu­ tores, sem a autorização do outro, poderá ser validamente utilizada, quan­ do realizada durante o lagrante delito, como ocorre, por exemplo, durante o crime de extorsão mediante sequestro. Tratando-se de crime permanen­ te, enquanto durar a sua permanência, as diligências adotadas para a sua apuração não configurarão ilicitude, no que disser respeito à suposta vio­ lação da intimidade e/ou privacidade dos autores e participantes. É o que Da Pova 373 decidiu o ST, embora com fundamentação não muito clara, no julgamento do HC n• 75.338-8/RJ, DJU de 25.9.1998. No mesmo sentido, decisão do Su­ perior Tribunal de Justiça, no RHC n2 12.266/SP (STJ - Rel. Mn. Hamilton Carvalhido, DJ 20.10.2003). Cumpre disinguir: uma coisa é a prova obtida durante o flagrante delito, e outra, muito diferente, é a prova produzida antes do delito. or exemplo: em uma interceptação telefônica (escuta) feita ilegalmente, sem autorização judicial, é gravada a prática de determinado crime (de ameaça, por exemplo) . Nesse caso, a gravação não se realizou durante o flagrante delito; ao contrá­ rio, a prova resultou da práica anterior de uma ação criminosa (interceptação não autorizada - art. 10, Lei nº 9.296/96) e, por isso, não estará excluída a sua ilicitude (da prova) . Embora ilícita, pode até ser que semelhante prova possa vir a ser aprovei­ tada, mas não sob essa fundamentação, isto é, da inexistência de ilicitude por ocasião da prova produzida em situação de flagrante delito. ara um eventual aproveitamento dela, deverá haver fundamentação dis­ tinta, atendendo, sobretudo, à gravidade do caso concreto, por critérios de proporcionalidade e razoabilidade, orientado sempre pela proibição de exces­ so, e/ou pela presença de uma excludente legal de ilicitude (caso de estado de necessidade, quando, por exemplo, undada suspeita de crime de extorsão mediante sequestro). 9.1.4.6 O aproveitamento da prova ilícita: proporcionalidade, proibição de excesso (vedação de proteção deficiente?) A Constituição Federal de 1988 dedica um capítulo inteiro à proteção de direitos e garantias fundamentais, comprometendo-se a proteger direitos e interesses os mais variados. Bastaria, porém, a simples consideração de que tais normas têm por desti­ natário toda a coletividade, para se saber que casos haverá em que a proteção de um implicará a não tutela de outro. Já aqui demos o exemplo da legíti­ ma defesa, e podemos alinhar um outro, realmente, clássico: o do estado de necessidade. O conflito de interesses, presente na realidade da vida desde os primórdios da existência humana, é ineitável pelo simples fato da convivênia social. 374 Curso de processopenal • Pacelli No plano da previsão normativa e, mais especiicamente, no plano das normas constitucionais, por vezes será também impossível a proteção de to­ dos os direitos assegurados na ordem jurídica, pelo fato de que, muito mais requentemente do que se imagina, o exercício de um, por alguém, impedirá ou atingirá o exercício de ouro, de um terceiro. Os exemplos são vários, bas­ tando a referência às eventuais tensões presentes na aplicação de normas ga­ rantidoras do direito à livre informação (art. 51, V e ) e o direito à imagem e à honra (art. 51, X), bem como enre o direito à segurança pública e o direito à liberdade individual, ambos alinhados no caput do itado art. s1. O critério hermenêutico mais utilizado para resolver eventuais conflitos ou tensões entre princípios consitucionais igualmente relevantes baseia-se na chamada ponderaão de bens e/ou de interesses, presente até mesmo nas opções mais corriqueiras da vida cotidiana. O exame normalmente realizado em tais situações destina-se a permitir a aplicação, no caso concreto, da pro­ teção mais adequada possível a um dos direitos em risco, e da maneira menos gravosa ao(s) outro(s). Fala-se, então, em proporcionalidade. Na verdade, porém, não se trata nem de ponderação de interesse e nem de ponderação de valores. Estes, valores e interesses, são escolhidos pelo le­ gislador, seja ele o constituinte ou o parlamentar. Ao juiz, cabe apenas a esco­ lha da norma mas adequada ao caso concreto. O critério de preferência não pode ser axiológico, isto é, valorativo, mas, sim, deontológico, na medida em que ambas as normas devem ser cumpridas. Daí as diiculdades: qual norma seria mais adequada em cada caso concreto de conflito? ara não irmos muito longe, lembraríamos que Beccaria, no longínquo ano de 1764, no clássico Dei deliti e delle pene (Dos delitos e das penas), já lu­ tava pela proporcionalidade das penas, no que tinham elas de excessivamente supliciantes e cruéis. Posteriormente, plantando suas raízes no Direito Administrativo, quando foi utilizado como meio de limitação do excesso de poder, o princípio passou a ocupar lugar cativo na hermenêuica de todo o Direito e, de modo panicular, no controle de constitucionalidade das leis. No que mais de perto nos interessa, porém, o princípio da proporcionali­ dade vem sendo utilizado pela jurisprudência da Alemanha e de alguns países da Europa para fins de permitir, sempre excepcionalmente, o aproveitamento de provas obtidas ilicitamente. Para se ter uma ideia, a questão da proporcionalidade assume dimen­ sões até mesmo de positividade expressa, isto é, de aplicação fundada em Da Pova 375 lei, como ocorre na França e na Inglaterra, onde as provas obtidas ilicita­ mente são utilizadas no processo, punindo-se, porém, os responsáveis pela sua produção. Em relação a este último caso, da legislação rancesa e inglesa, pensamos, todavia, com os olhos postos em nossa realidade, que essa realmente não é a mellior maneira de se tutelar os direitos e garantias individuais. Como anota Magalliães Gomes Filho, corre-se o risco de haver um verdadeiro incentivo da práica de ilegalidades, diante da menor expectativa que se deve ter de uma efetiva punição dos produtores da prova, até porque a prova estaria servindo aos interesses da acusação (1997, p. 102). De outro lado, o Direito norte-americano, de onde, aliás, importamos a vedação constitucional de admissibilidade de provas ilícitas, apesar da re­ conhecida tecnologia de provas ali existentes, exibe, como regra, quase ab­ soluta, a vedação à prova ilícita, se e quando produzida pelos agentes do Estado. Ali, o princípio da razoabilidade está conectado, não com critérios de adequação, mas de controle dos atos do poder público. Exatamente por isso, inúmeros princípios são utilizados para fins de afastamento da ilicitude, tal como ocorre, por exemplo, com a boa-fé na obtenção da prova, ainda que contrariamente à regra legal. No processo penal, como intuitivo, a aplicação da vedação das provas ilícitas, se considerada como garantia absoluta, poderá gerar, por vezes, situa­ ções de inegável desproporção, com a proteção conferida ao direito então violado (na produção da prova) em detrimento da proteção do direito da vítima do delito. ensamos que a questão, efetivamente, é das mais complexas e proble­ máticas do processo penal. Acreditamos que isso ocorra, sobretudo, pela impossibilidade de se ixar qualquer critério minimamente objeivo para o aproveitamento da prova ilícita, pela aplicação da proporcionalidade. E essa impossibilidade está ligada às razões legiimantes da própria nor­ ma constitucional. Se a vedação das provas ilícitas tem por objetivo, pelo menos um deles, e dos mais relevantes, o controle da atividade estatal perse­ cutória, que é a responsável pela produção da prova, a existência de um crité­ rio fixo e objetivo já estimularia a prática da ilegalidade, quando se soubesse, previamente, a possibilidade do aproveitamento da prova. Surge, então, re­ clamando aplicação e orça normativa o postulado da vedação de excesso a que nos referimos já no início desta obra, no tema alusivo ao sistema dos direitos fundamentais. 376 Curso de processopenal • Pacelli Todavia, cremos não ser impossível a sua aplicação, dependendo da hipó­ tese concreta. Em primeiro lugar, esclarecemos que o objeto de nossas preocupações é o aproveitamento da prova ilícita apenas quando avorável à acusação. E por uma razão até muito simples. A prova da inocência do réu deve sempre ser aproveitada, em quaisquer circunstâncias. Em um Estado de Direito não há como se conceber a ideia da condenação de alguém que o próprio Estado acredita ser inocente. Em tal situação, a jurisdição, enquanto Poder Público, seria, por assim dizer, uma conradição em seus termos. Um paradoxo jamais explicado ou explicável. Aliás, o aproveitamento da prova ilícita em favor da defesa, além das ob­ servações anteriores, constitui-se em ritério objetivo de proporcionalidade, dado que: a) a violação de direitos na busca da prova da inocência poderá ser levada à conta do estado de necessidade, excludente geral da ilicitude (não só penal!); b) o princípio da inadmissibilidade da prova ilícita constitui-se em ga­ rantia individual expressa, não podendo ser uilizado contra quem é o seu primiivo e originário titular. Mas, voltando à questão do aproveitamento da prova ilícita em favor da acusação, diríamos que o critério de proporcionalidade poderá validamente ser utilizado, nas hipóteses em que não estiver em risco a aplicabilidade poten­ cial e inalstica da norma da inadmissibilidade. Por aplicabilidade potencial e inalstica estamos nos referindo à função de controle da atividade estatal (responsável pela produção da prova) que desempenha a norma do art. 52, LI, da C. Assim, quando não se puder falar no incremento ou no esímulo da práica de ilegalidade pelos agentes produtores da prova, pensamos ser possível, em tese, a aplicação da regra da proporcionalidade. E citamos exemplo. Exemplo, aliás, já mencionado em outro rabalho (OEIA, 2001, p. 299), e aqui ora reproduzido. Trata-se de decisão da Suprema Corte, no julgamento do E ni 251.445/ GO (DJU 3.8.2000), Relator o eminente Min. Celso de Mello, que airmou a ilicitude e a inadmissibilidade da prova, em razão de ter sido obida com violação do domicílio do suposto autor. O fato envolvia crimes de natureza sexual conra menores (registro e manutenção de fotografias ponográficas). Da Pova 377 Acreditamos que a Suprema Corte perdeu uma grande oportunidade de aplicação do critério da proporcionalidade. É que a aplicação da norma da vedação das provas ilícitas naquele caso não cumpriu qualquer um de seus propósitos inalísicos. Ora, se a mais relevante função desempenhada pela garantia da inadmissi­ bilidade da prova ilícita, para além de sua dimensão ética, é servir como fator inibitório e intimidatório de práicas ilegais por parte dos órgãos responsáveis pela produção da prova, constata-se que, em nenhum momento, tal missão oi cumprida. Ou, mais ainda, que, em nenhum momento, colocou-se em risco o incremento das atividades policiais abusivas. E assim nos parece porque quem produziu a prova não foi o Estado, e, sim, um particular, que, à evidênia, não se dedica a essa função (a de produtor de provas para o processo penal). Pior: um dos autores da subtração da prova era uma das vítimas. Constata-se. com efeito, que o Estado não agiu com qualquer abuso de poder, ou com incentivo à ação abusiva por parte do menor, ao receber a pro­ va de um fato praicado com violação ao direito. Nesse passo, cabem algumas considerações acerca de uma suposta impos­ sibilidade de se fazer disinções entre a prova ilícita produzida pelo Estado e aquela produzida pelo particular, como se observa, por exemplo, em Marinoni e Arenhart (2001, p. 305), no âmbito do que se convencionou denominar eicácia horizontal dos direitos undamentais. A questão não se resolve pela airmação de que os direitos de persona­ lidade devem ser respeitados tanto na relação entre Estado e particulares quanto na relação entre particulares. É claro que devem. Todavia, como reconhecem os mesmos autores, o critério de proporcio­ nalidade reclama sua aplicação exatamente onde haja tensão enre princípios constitucionais de mesma grandeza. Não se pode perder de ista que o Direito Penal, com todas as suas ragilidades, sobretudo no que respeita às funções da sanção privaiva da liberdade, tem como escopo não uma reeducação ou resso­ cialização do agente, ainda que essas constituam também alguns dos objeivos da execução da pena; o Direito Penal pretende cumprir uma missão inerente a todo o Direito, qual seja, a de proteção de direitos, individuais, coletivos e difusos. No seu caso especíico, de proteção de direitos undamentais, cuja in­ tervenção dos demais ramos do Direito não tenha se revelado suficiente (essa, enim, a justiicaiva da intervenção penal mínima). Nesse quadro, o exame de cabimento do juízo de proporcionalidade deve passar também não só pela identiicação de uma tensão ou conflito enre 378 Curso de processopenal • Pacelli princípios constitucionais relativos à efetiva proteção de direitos fundamen­ tais (do réu e da vítima), mas pela elaboração de critérios objetivos, tanto quanto possíveis, em que a escolha por um dos princípios possa não implicar o sacriício integral do outro. Perinentes aqui as ponderações de Robert Aley, na sua teoria dos princípios como poderá ocorrer segundo mandados de otimização, cuja aplicabilidade graus de efetividade, de modo a permitir a convivên­ cia pacíica entre todos aqueles que integram o ordenamento (LY, 1993, p. 130-133). Ora, se é possível, como de fato nos parece, sustentar que a norma da inadmissibilidade das provas obtidas ilicitamente destina-se prioritariamente (e não unicamente) ao Estado, no processo penal, dado que este é o produtor da prova, mesmo nas ações penais privadas, não há como negar que o referido princípio constitucional não perderia tanto em sua efetividade quanto aquele (princípio) que garante a proteção dos direitos undamentais, e cuja violação se demonstraria por meio da prova ilicitamente obtida pelo particular. É de se ver, mais, que se a atuação do particular, na busca da prova, estivesse dirigida pelos agentes do Estado, tais considerações não teriam ca­ bimento, por óbvio. E também não se pode sustentar, por ora, no contexto de nossa realidade atual, que os particulares estariam sendo incenivados a buscar a prova, a qualquer custo, para com ela obterem a condenação de seu agressor. Se e quando isso ocorrer, semelhante realidade também haverá de integrar o conjunto dos elementos que devem ser considerados em quaisquer juízos de proporcionalidade. Não bastasse, não haia, como não há, qualquer razão para que o autor da violação do domiclio não fosse (ou não seja ainda) responsabilizado por seus atos. É claro que, tratando-se de menor (como eram), as medidas cabíveis serão aquelas previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente, mas o que importa salientar é o não comprometimento da função inestigatória estatal. Não por outra razão, o Direito norte-americano, exatamente a fonte de nossa vedação das provas ilícitas, aceita, sem maiores problemas, a prova ob­ tida ilicitamente por particulares. É o que se observa na doutrina de Exeberria Guridi (1999, p. 519-520) e de Gonzalez-Cuellar Serrano (1990, p. 331). O undamento é o mesmo que acabamos de expor: a norma da vedação da pro­ va ilícita dirige-se ao Estado, produtor da prova, e não ao particular. De se ver, no paricular, que a história do Supremo Tribunal Federal re­ gistra um caso em que se deferiu a produção de exame de DNA na placenta da gestante, suposta víima de estupro nas dependências da Polícia Federal, Da Pova 379 recolhida sem a autorização desta, com fundamento em uma necessária ponde­ ração, entre valores constitucionais conrapostos, admitindo, então, a aplicação da proporcionalidade na produção da prova (RCL nP 2.040/D, Rel. Min. Néri da Silveira, em 21.2.2002 -lnformativo SF n2 257, 18 a 22 de fevereiro de 2002) . Nesse caso, inegavelmente, a Suprema Corte valeu-se de critério de pro­ porcionalidade para a aceitação de prova não prevista em lei, portanto, ini­ cialmente inadmissível. E mais: em avor da acusação. De nossa parte, estamos de acordo com a aludida decisão, sobretudo e paricularmente porque a intervenção probatória não atingiu nem atingiria a integridade ísica da vítima. Cabível e oportuno o juízo de proporcionali­ dade, para uma adequada aplicação do Direito. Como veremos adiante, em determinadas circunstâncias (e uma delas é a previsão em lei), serão possíveis algumas intervenções corporais na produção da prova, mesmo quando em desfavor do réu. 9.2 Meios de prova 9.2. 1 Do interrogatório O interrogatório do acusado somente se realizará após a apresentação escrita da defesa (art. 396, CPP), e, na audiência una de insrução (art. 400, CPP), após a inquirição do ofendido, das testemunhas (de deesa e de acusa­ ção) e até dos esclarecimentos dos peritos, acareações e demais diligências probatórias que devam ali ser realizadas. É dizer: o interrogatório é o último ato da audiência de instrução, cabendo ao acusado escolher a estratégia de autodefesa que melhor consulte aos seus interesses. A Lei nP 1 1 .343/06, a cuidar dos crimes de tráico ilícito de drogas, pre­ vê, contudo, que o interrogatório seria ainda o primeiro ato de inquirição (art. 57). Não obstante, nada impede a aplicação da regra prevista no atual CP, com redação dada pela Lei n2 11.719/08, por analogia, também ao rito da Lei de Tóxicos, de modo a se realizar o aludido ato processual (do inter­ rogatório) após a inquirição das testemunhas. Mas, note-se, somente a ana­ logia justiicaria a medida, diante dos termos expressos da atual redação do art. 394, § °, CP, cabendo anotar que o Superior Tribunal de Justiça já teve oportunidade de se manifestar a respeito do tema, entendendo que não há qualquer vício no interrogatório do acusado como primeiro ato nos processos 380 Curso de processopenal • Pacelli que seguem o rito da Lei de Tóxicos (STJ - HC n- 152776/RS, Rel. Jorge Mussi, em 8.11.2011). Inicialmente concebido como um meio de prova, no qual o acusado era unicamente mais um objeto da prova, o interrogatório, na ordem atual, há de merecer nova leitura. Que continue a ser uma espécie de prova, não há maiores problemas, até porque as demais espécies defensivas são também consideradas provas. Mas o fundamental, em uma concepção de processo via da qual o acusado seja um sujeito de direitos, e no contexto de um modelo acusatório, tal como instaura­ do pelo sistema constitucional das garantias individuais, o interrogatório do acusado enconra-se inserido undamentalmente no princípio da ampla deesa. Trata-se, eetivamente, de mais uma oportunidade de defesa que se abre ao acusado, de modo a permiir que ele apresente a sua versão dos fatos, sem se ver, porém, constrangido ou obrigado a azê-lo. E a conceituação do interrogatório como meio de defesa, e não de provas (ainda que ostente valor probatório), é riquíssima de consequências. Em primeiro lugar, permite que se reconheça, na pessoa do acusado e de seu defensor, a itularidade sobre o juízo de conveniência e a oportunidade de prestar ele (o réu), ou não prestar, o seu depoimento. E a eles caberia, então, a escolha da opção mais favorável aos interesses defensivos. E é por isso que não se pode mais falar em condução coercitiva do réu, para fins de interrogatório, parecendo-nos revogada a primeira parte do art. 260 do CPR Fazemos a ressalva em relação à possibilidade de condução coerciiva para o reconhecimento de pessoas, meio de prova perfeitamente possível e admissível em nosso ordenamento. Em segundo lugar, impõe, como sanção, a nulidade absoluta do processo, se realizado sem que se desse ao réu a oportunidade de se submeter ao inter­ rogatório. Haveria, no caso, manifesta violação da ampla defesa, no que se refere à manifestação da autodefesa. No início da primeira década deste século, todavia, o Supremo Tribunal Federal entendeu que a ausência de interrogatório seria causa de nulidade re­ lativa, sujeita, portanto, à preclusão (STF - HC n- 82.933-3/S, Rel. Min. Ellen Grade, em 29.8.2003), reportando-se a ouro acórdão daquela Corte, julgado no longínquo ano de 1991 (STF - HC n- 68.490/D, Rel. Min. Celso Mello). Cabem aqui algumas considerações. Em primeiro lugar, no referido julgamento, tratava-se de réu revel, citado por edital, e que somente teve acesso aos autos após a sentença Da Pova 381 condenatória, da qual havia sido intimado pessoalmente (antes, portanto, da regra de suspensão do processo, art. 366, CPP). Assim, o que se susten­ tava no habeas corpus era a existência do direito ao interrogatório, mesmo quando já encerrada regularmente a instrução criminal. Nesse ponto, pode­ -se mesmo objetar que não teria ele direito ao interrogatório, já que, nos termos do art. 616 do CP, o tribunal tem a faculdade de proceder a novo interrogatório, e não a obrigação. Em segundo lugar, é de se ter em vista que uma coisa é o direito à opor­ tunidade do interrogatório, e outra é o direito à sua realização obrigatória. De fato, se, uma vez intimado o réu (art. 399, CPP), regularmente, ele não comparece à audiência una (art. 400, CPP), não se pode mais falar em um di­ reito futuro à repetição do interrogatório, isto é, a ser exercido em outra fase do processo, tendo em vista a já superação da etapa procedimental prevista para o exercício da autodefesa. Direito a ser ouvido, sim, mas não quando for conveniente apenas ao acusado. Que não se queira, por isso, sustentar que a atual redação do t. 185 do CPP ("O acusado que comparecer perante a autoridade judiciária, no curso do processo penal, será qualiicado e interrogado na presença de seu defenso, cons­ tituído ou nomeado") estaria permiindo que o acusado, a qualquer momento que assim o desejasse, teria o direito a ser ouvido pelo juiz da causa. Que ele tem direito a ser ouvido é mais que certo, independentemente da nova Lei nª 10. 792, pois já era uma exigência do Pacto de San José da Costa Rica (art. 8ª, 1). Todavia, o exercício desse direito ocorrerá segundo o devido procedimento legal, e não segundo a vontade exclusiva do réu. O eventual não comparecimento na data de audiência una designada pelo juízo, enquanto não justiicado, pode e deve ser entendido como manifesta­ ção do direito ao silêncio, ainal ninguém pode ser coagido a comparecer perante o juiz, a não ser quando se tratar de réu preso, eis que o réu não pode manifestar livremente a sua vontade. E, nos termos do art. 399, § 1ª, CP, o acusado preso será requisitado para comparecer ao interrogatório, ressalvadas as hipóteses previstas no §§ 1 ª e 2° do art. 185, com a redação dada pela Lei n• 1 1 . 900/09. É bem de ver, ainda, que, nos termos do atual art. 366 do CP, tendo havi­ do a citação por edital, o curso do processo será suspenso, como suspenso será o prazo prescricional. As decisões anteriormente mencionadas certamente re­ ferem-se a fatos anteriores à alteração do citado art. 366 (Lei nª 9.271/96). E mais. O veto oposto pelo Presidente da República à atual redação do art. 366, 382 Curso de processopenal • Pacelli caput, do CP, dada pela Lei nº 11. 719/08, não tem como consequência a re­ vogação de seus termos. Vale, então, o texto não modificado, isto é, a redação da Lei n' 9.271/96. De mais a mais, não bastasse a norma do tratado intenacional assegu­ rando o direito a ser ouvido pelo juiz da causa, em prazo razoável (art. 8°, 1), há outros dispositivos no Código de Processo Penal que reorçam a conve­ niência Uá não mais a obrigatoriedade) de semelhante providência, consoan­ te se observa no art. 196, CPP (com a redação dada pela Lei nº 10.792/03) e art. 616, CP, no sentido de se permitir ao juiz, em primeira instância, novo interrogatório do réu, e também ao Tribunal, já em grau de recurso, proceder à inquirição do acusado. A partir da Lei nº 10. 792/03, que alterou diversos dispositivos do Código de Processo Penal, e nos termos do novo t . 185 do CP, o interrogatório do acusado será eito na presença de seu defensor, constituído ou nomeado (dati­ vo ou ad hoc). A nulidade, pela não observância do referido dispositivo, então, será ab­ É que a garantia da paricipação da defesa técnica (e da acusação, é claro), condicionada unicamente ao exame da pertinência e relevância das perguntas (art. 188, CPP), alcançou, portanto, o status de garania individual fundamental, assegurando-se também o direito de entrevista reservada do acusado com seu defensor (art. 185, § 5°). soluta. Anote-se, no ponto, que a garania de intervenção da deesa no interro­ gatório poderá implicar a necessidade de nomeação de diferentes advogados aos acusados, nas hipóteses de conlito de interesses entre os corréus. E sob pena de nulidade absoluta, é claro. Já quanto ao descumprimento da entrevista reservada com o advogado, observa-se que com o novo rito implementado pela Lei nº 11.719/08 os riscos à defesa são praticamente inexistentes. Mas, se a tanto se chegar, a nulidade, em princípio, será absoluta. Nos termos do art. 396, CP, uma vez recebida a denúncia, o acusado será citado para apresentar defesa esrita no prazo de dez dias. Se ele não tiver defensor, o juiz lhe nomeará um. Só após essa providência é que será designa­ da a audiência una para inquirição do ofendido, das testemunhas, peritos, e, finalmente, para o interrogatório do acusado. Assim, o interrogatório somen­ te ocorrerá após o pleno conhecimento da instrução, ocasião em que o réu já estaria habilitado a manifestar-se sem surpresas. Da Pova 383 Note-se que o an. 185, § 5:, com redação dada pela Lei n: 1 1.900/09, garante o direito à entrevista prévia do acusado com seu defensor, mesmo nas hipóteses de interrogatório por videoconferência, nas excepcionais hipóteses em que cabível (t. 185, § 2°, CPP). Assim, a exigência de resposta escrita an­ tes do aludido ato judicial, aliado à enrevista com o defensor, poderá ampliar as possibilidades defensivas do acusado. Isso, em tese, porque, na práica, se o defensor apresentar resposta escrita sem se entrevistar com o réu, a única matéria que lhe restará impugnar com maior eficiência será a de direito e não a de fato. Logo adiante, por ocasião do exame do procedimento no interrogatório, abordaremos as modiicações trazidas pela Lei n: 11.900/09, que cuida do interrogatório do réu preso, dentre outras disposições. Por último, a concepção do interrogatório como essencialmente um meio de defesa, com o reconhecimento do direito ao silêncio, tem por consequência a conclusão no sentido de que o não comparecimento do réu ao referido ato não poderá implicar a aplicação de quaisquer sanções processuais, daí por que inaplicável o agravamento de eventual medida cautelar imposta, a menos que se possa jusiicar a ausência no interrogatório como indício claro de risco à aplicação da lei penal. Por isso, e por que se rata de exercício de direito, a ele não se pode­ rá impor nem a revelia, que significa a dispensa de intimações para os atos subsequentes, nem a restauração da prisão para aquele que se encontrar em liberdade provsória (art. 310, caput e seu parágrao único). 9.2.1.1 Direito ao silêncio e não autoincriminação O direito ao silêncio, cuja origem deita raízes na Idade Média e início da Renascença (ADDAD, 2000, p. 141), é a versão nacional do privilege against self-incrimination do Direito anglo-americano. O princípio do direito ao silêncio, tradução de uma das manifestações da não autoincriminação e do nemo tenetur se detegere (ninguém é obrigado a se descobrir), foi uma das grandes conquistas da processualização da jurisdição penal, consolidada no século VIII, com a queda do Absoluismo. No Brasil, com a Consituição de 1988 (art. 5Q, LIII) e com o t. 8:, 1, do Pacto de San José da Costa Rica (Dereto nQ 678/92), há regra expressa assegurando ao preso e ao acusado, em todas as ases do processo, o direito a permanecer calado. Embora não haja previsão expressa do direito à não 384 Curso de processopenal • Pacelli autoincriminação, pode-se, contudo, extrair o princípio do sistema de garan­ tias constitucionais. Beccaria, nos idos de 1764, já se baia conra a exigência de juramento do réu, afirmando que "uma contradição entre as leis e os sentimentos naturais do homem nasce dos juramentos que se exigem do réu, para que seja um homem veraz. quando seu maior interesse é mentir; como se o homem pudesse jurar, com sinceridade, contribuir para a própria destruição; como se a religião não se calasse, na maioria dos homens, quando fala o interesse" (BECCA, 1997, p. 78). O direito ao silêncio tem em mira não um suposto direito à mentira, como ainda se nota em algumas doutrinas, mas à proteção contra s hostilidades e as intimidações historicamente desfechadas contra os réus pelo Estado em atos de natureza inqusitiva. Primeiro, nas jurisdições eclesiásicas; depois, no Estado Absolutista, e, mesmo na modenidade, pelas autoridades responsá­ veis pelas investigações criminais. Não é porque se reconhece o direito à deesa que se permitiria que o acu­ sado. por exemplo. aribuísse falsamente a prática do crime a terceiros. com o im de se ver livre da acusação. Nessa hipótese, ao menos em tese, estaria conigurado o delito do art. 339 do CP (denunciação caluniosa) . Evidente­ mente, estamos nos referindo unicamente à questão relaiva à ipicidade da conduta; a questão referente à eventual excludente de ilicitude (estado de necessidade) não se inclui no âmbito temático de nossas relexões. O princípio atua ainda na tutela da integridade física do réu, na medida em que autorza epressamente a não participação dele na formação da culpa. E no que, a nosso juízo, tem de mais relevante, atua no controle da quali­ dade e idoneidade do material probatório, bem como no controle da motiva­ ção das decisões judiciais. sobretudo as condenatórias. Com efeito, ao permitir-se. como regra legal, o silêncio no curso da ação penal, o sistema impede a utilização, pelo(s) julgador(es), de critérios exclu­ sivamente subjetivos na formação do convencimento judicial. Dessa manei­ ra, procura-se evitar que eventuais hesitações, eventuais contradições. não relevantes, ou, ainda, lapsos de memória ou coisa que o valha, presentes no momento do interrogatório do réu, sirvam de motivação suiciente para o convencimento do juiz ou do tribunal. De outra forma: evita-se o esímulo à cultura do quem cala consente, que não oferece padrões mínimos, seja de Da Pova 385 ordem psicanalítica, jurídica, espiritual, seja de qualquer outra espécie, para a reprodução de verdade alguma. De se ver que as disposições do Código de Processo Penal em relação ao Júri (Lei nº 1 1.689/08) não mais contemplam a exigência da presença do acusado nos processos do Tribunal do Júri, nos casos de crime inaiançá­ vel, conforme previa a antiga e revogada redação do art. 451 do CP. Sobre a inconsitucionalidade da exigência, havia divergência jurisprudencial. No sentido da inconstitucionalidade, julgado do STJ (RT n2 710/344); da consti­ tucionalidade, jurisprudência da Suprema Corte (HC n• 71 .923-6/PE, DJU de 24.2.1995). A questão, então, parece resolvida. E a mudança há de ser aplaudida. É que o julgamento feito pelo Tribunal do Júri não impõe o dever de motivação da decisão, vigendo, como se sabe, a regra da ínima convicção, segundo a qual os jurados não estão obrigados a undamentar as respostas à quesitação. Assim, quem se atreverá a exercer o direito ao silêncio correndo o risco, historicamente comprovado, de ver utili­ zado contra si tal direito? Com a Lei nº 11.689/08, e mais, desde a Lei nº 10. 792/03, o que já se continha de modo implícito no ordenamento jurídico brasileiro, por força do texto constitucional, ocupa deiniivamente seu espaço no Direito Processual Penal: a) em primeiro lugar, a exigência de se esclarecer o acusado de seu di­ reito a permanecer calado e a não responder perguntas, nos exatos termos do disposto no art. 186, caput, do CP, cuja redação anterior enconrava-se já revogada; b) em segundo lugar, a vedação de valoração do silêncio em prejuízo da defesa, conforme se acha também expresso no parágrafo único do mesmo art. 186 do CP. Nada mais evidente: se é de direito que estamos falando, como poderia ser sancionado o seu exercício? Entretanto, há algumas questões que devem ser esclarecidas. O exercício do direito ao silêncio pode ser caracterizado como uma inter­ venção passiva do acusado, no sentido de uma manifestação deensiva não impugnativa dos fatos articulados na acusação, já que os ônus de sua prova são exclusivos do Ministério Público, na ação pública, e do querelante, na ação privada. Diz-se passiva pela ausência de impugnação expressa. 386 Curso de processopenal • Pacelli Quando, porém, o réu preferir manifestar-se oralmente durante o interro­ gatório, submetendo-se às perguntas das partes e eventualmente do juiz, ele estará exercitando o que se denomina autodefesa ativa, assim caracterizada pela atuação efeiva do acusado em relação aos fatos a ele imputados. Seja como or, o que estará em cena é o exercício de uma das várias modalidades de participação da defesa no processo, isto é, o que se estará exercendo (a autodefesa) é um dos "atributos" do princípio da ampla defesa. E, por isso, fazia-se necessária a nomeação de um defensor, o que veio a ser corrigido (ou explicitado) com a Lei nu 10.792/03. E exercido que seja o direito de autodefesa ativa, ou seja, tendo optado o acusado pela manifestação em interrogatório, submetendo-se às perguntas que lhe orem dirigidas, parece-nos irrecusável a conclusão no sentido de que a versão dos fatos por ele apresentada poderá ser livremente valorada pelo juiz, no que se refere à consistência lógica e verossimilhança das alegações, do mesmíssimo modo que ocorre em relação à valoração de qualquer peça defensiva escrita. Não há, obviamente, nenhuma exigência legal de aceitação, pelo juiz, da veracidade do que é alegado pelo acusado. Não há dúvida de que os ônus da prova da ocorrência de um fato criminoso recaem todos sobre a acusação. Mas não menos verdadeira é a conclusão de que a qualidade probatória de determinado meio de prova poderá ser robustecida pela fragilidade ou in­ consistência de uma alegação articulada pela defesa. Dizer, em um primeiro momento, que o réu não estava no local do crime, para, depois, assegurar que, se ele estivesse, os tiros teriam sido disparados em legítima defesa, pode tomar eetivamente inconsistente a primeira alegação, ainda que explicável pela re­ gra (processual) da eventualidade. Hipótese mais complexa, todavia, poderá ocorrer quando o acusado, dis­ pondo-se a participar ativamente do interrogatório, se vir indagado sobre de­ terminada questão e pretender valer-se do direito ao silêncio. É dizer: pode-se exercer o direito ao silêncio parcial? No Direito anglo-americano, o problema jamais se poria. Ou bem o acusa­ do exerce o direito a não ser interrogado, ou bem se submete, como qualquer testemunha, ao dever de depor e ao dever de dizer a verdade. No Direito ale­ mão, também não se admite o silêncio parcial, embora sob outra fundamen­ tação, conforme anota Claus Roxin (2000). Nossa legislação, sobretudo com a Lei nu 10.792/03, não resolve deiniti­ vamente o problema. Mais que isso: deixa uma incógnita no ar... É ver. Da Pova 387 O an. 186 do CPP afirma o direito ao silêncio e o de não responder as perguntas que lhe forem formuladas, assegurando também que o silêncio não imponará conissão nem poderá ser interpretado em prejuzo da defesa. Ora, que o silêncio não deve ser valorado explica-se pelo fato de que a idoneidade probatória de semelhante posrura, para ins da construção da cenezajudicial, é de uma pobreza ranciscana. Ademais ao assegurar-se o direito ao silênio, preserva-se a integridade física e psíquica do réu, na medida em que este pode vir a ser constrangido, moral ou fisicamente, a apresentar uma versão coerente com os interesses acusatórios, na hipótese de inexistência desse di­ reito. Ainal, quem se vê obrigado a dizer algo, pode se ver compelido a dizer algo já determinado. Mas tudo o que dissemos acerca da valoração da consistência lógica e verossimilhança das alegações do acusado na autodefesa ativa pode ser aqui reafirmado, com as seguintes restrições: a) se há o direito a não responder perguntas (sem especiicação, no que se refere à totalidade ou individualidade delas), o silêncio em relação a elas, ou a algumas delas, não poderá ser valorado em prejuízo da defesa; b) todavia, como não existe também uma obrigação legal à aceitação da veracidade do depoimento do acusado, o juiz poderá livremente desconsiderar a idoneidade probatória de uma versão defensiva que se mosre desconectada de sentido ou de lógica argumentaiva, o que atalmente ocorrerá quando o réu passar a escolher as perguntas de sua preferência. Mais que isso: quando ele não conseguir, satis­ fatoriamente, responder a uma indagação que esteja a quesionar uma airmação anterior. Nesse caso, não se cuidará de valoração do silêncio, mas de reconhecimento da inconsistência do conjunto da autodefesa. Entretanto, embora inquesionável o ato de ser admissível a valoração do depoimento, na hipótese de autodefesa aiva, nos limites anteiormente men­ cionados, diante de eventual inconsistência, julgamos ser absolutamente im­ pensável a possibilidade de se querer submeter o acusado ao procedimento de acareação (arrs. 229 e seguintes, CPP). A acareação, como se verá, é meio de prova (aliás, de eiciência bastante discutível) cujo objeivo é demonstrar e esclarecer eventuais contradições entre versões apresentadas sobre um mes­ mo fenômeno da realidade, com o objetivo de apontar aquela mais próxima 388 Curso de processopenal • Pacelli da verdade. Ora, se é da verdade que se cuida, o que dizer do conronto en­ tre versões oerecidas por quem não está obrigado por lei a dizer a verdade, caso do réu, e por aqueles legalmente comprometidos com esta, caso ípico da testemunha? O que poderá ocorrer, na espécie, e na fase do julgamento da causa, é a valoração do depoimento prestado no interrogatório, ainda que negativa ou prejudicial aos interesses do réu. Aliás, isso ocorrerá do mesmo modo que compete ao julgador apreciar livremente o conteúdo de todo o material de­ fensivo articulado nos autos, em face das provas apresentadas pela acusação, para o im de formação de seu convencimento. Nunca a acareação enre teses defensivas e teses acusatórias! Consequência lógica da aplicação do direito ao silêncio é a exigência que se impõe às autoridades, policiais e judiciais, da advertência ao réu de seu di­ reito de permanecer em silêncio (art. 186, caput, CPP), sob pena de nulidade. Não osse assim, na práica, o princípio jamais seria obsetvado, como não o foi no famoso e paradigmático precedente da jurisprudência norte-america­ na, Miranda vs. Arizona, em 1966, no qual se anulou a conissão prestada pelo réu, por ausência de inormação de seus direitos constitucionais, entre os quais o de permanecer calado. Nesse sentido, STF - HC nQ 78. 708-1/S, Rei. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 16.4.1999. Mais que uma exigência ética de obsetvância do Direito, a informação da existência do direito ao silêncio presta-se também a evitar a prática de méto­ dos xtorsivos da conissão, que vem a ser a ratio essendi da norma. A respeito do dever de informação, interessante debate surgiu na Ale­ manha após decisão prolatada pelo l Senado do Bundesgerichtshof (BGHSt, 53, p. 112 e ss), que concluiu que o interrogatório do acusado prestado em juízo não poderia ser valorado, não pela ausência da informação do direito ao silêncio ao interrogando em juízo, mas pela ausência da informação de que o depoimento prestado anteriormente em sede policial, sem que se prestasse igual informação (do direito ao silêncio), não poderia ser considerado para fins de prova. Sobre a decisão, Claus ROIN (Por uma proibição de valorar a prova nos casos de omissão do dever de inormação qualificada, Revista Liberdades, . 4, IBCCRJM, Trad. Alaor Leite) designou de dever de informação qualiicada o dever do juízo de informar ao interrogando que o depoimento em sede po­ licial, prestado sem a obsetvância do direito ao silêncio, não pode acarretar qualquer consequência desfavorável na hipótese de exercício, agora em sede Da Pova 389 de procedimento judicial, do seu direito ao silêncio. A omissão do dever de informação qualicada implica na impossibilidade de valoração da prova. ObseVe-se que, ao contrário do que ocorre aqui, na Alemanha e nos EUA - neste país, desde Miranda x Arizona (1966) - o depoimento prestado na fase de investigação pode ser valorado, desde que obseVado o dever de infor­ mação acerca do direito ao silêncio. No Brasil, ainda que tal direito seja efeti­ vamente esclarecido no inquérito policial, o depoimento não terá validade se não conirmado em juízo. Ao menos como regra geral. Os limites de aplicabilidade do princípio do direito ao silêncio, bem como a sua respectiva undamentação, serão renovados no item seguinte, por oca­ sião do tema relaivo às inteVenções corporais. 9.2.1.2 Intervenções corporais s legislações europeias, de modo geral, bem como a anglo-americana e algumas de países da América do Sul, como ocorre, nesses países, com a Ar­ genina (at. 218, Códgo Procesal enal de la Nación), por exemplo, preveem situações nas quais o réu, embora sujeito de direitos, e não mero objeto do processo, deve se submeter a (ou suportar) determinadas ingerências corpo­ rais, com finalidades probatórias. Em todos os casos, porém, como regra, deverá haver previsão expressa na lei e controle judicial da prova. É o que ocorre, nesses países, com os exames para coleta de sangue, com os testes para a comprovação de DNA - desde que realizados por médicos -, os exames de alcoolemia, o onecimento de padrões gráficos e de voz etc., para a realização de perícia técnica. É bem de ver que em todas as legislações citadas há também previsão e aplicação do princípio da não autoincriminação, mas nos limites de suas concretas inalidades, que é a proteção da dignidade humana da pessoa, da sua integridade, ísica e mental, de sua capacidade de autodeterminação e do exercício efetivo do direito de não ser obrigado a depor contra si. E exatamente por que se trata de medidas dirigidas conra a pessoa do acusado, cujas consequências geralmente afetam, em certa medida, a sua in­ violabilidade pessoal, elas devem se submeter a eigências extremamente rí­ gidas, no que se refere à possibilidade de sua aplicação. É preciso, primeiro, expressa previsão na lei. Em segundo lugar, é preciso que se cuide de inração penal para cuja comprovação o exame pericial técni­ co seja efetivamente necessário, quer pela complexidade do crime, quer pela 390 Curso de processopenal • Pacelli impossibilidade prática de obtenção de outras provas. É também necessário que a diligência se realize sob o controle judicial, exceto nos casos de urgência inadiável, quando o controle deverá ser feito posteriormente. No Brasil, as intervenções corporais previstas em lei são pouquíssimas e, não bastasse, nem sempre vêm sendo admitidas pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, geralmente sob a fundamentação - equivocada, segundo nos parece - de desrespeito a um suposto princípio constitucional da não autoincriminação. Nesse sentido, por exemplo, a Suprema Corte reconheceu o direito de um acusado a não ornecer padrões gráicos para exame pericial, ao entendimen­ to de que o réu não era obrigado a fazer prova conra si (STF - HC n1 77135/ S, Rei. Ilmar Galvão, em DJ 6.11 .1998). Igual ponto de vista poderia ser aplicado também ao conheido bafômetro, que vem a ser o teste de alcoole­ mia, para fins de comprovação da quanidade alcoólica ingerida pela pessoa. Aliás, parece-nos que o baômetro deve ser criticado muito mais por questões técnicas, no plano da qualidade e da idoneidade de sua eicáia probatória, do que por suposta violação do direito ao silêncio. Saliente-se que ambas as formas de ingerênia corporal têm previsão le­ gal (art. 174, CP, e t. 306, § 2°, Lei nº 9.503/97, com redação dada pela Lei n1 12.760/12), e, a nosso aviso, satisfazem, em tese, as exigências nor­ malmente requeridas para a aplicação de semelhante modalidade probatória. Conforme já anotamos em ouro local (Breves notas sobre a não autoincri­ minação, disponível em: <ww.eugeniopacelli.com.br> ), reina entre nós a mais completa incompreensão acerca do alcance e da respectiva fundamenta­ ção do nemo tenetur se detegere. E o registro há que restar limitado à doutrina e jurisprudência brasileiras, já que não se encontra desorientação semelhante - ou, com as mesmas dimensões! - no direito comparado. Já se sustentou por aqui, aliás, que o réu teria direito à fuga. Ora, ao que parece, confundem-se comportamentos que podem (ou não!) ser justiicados ou ineíveis - excluindo-se, assim, a ilicitude ou a culpabili­ dade, conforme or o caso - com direito subjetivo. E o equívoco é inaceitável. Direitos subjetivos são oponíveis a todos, que lhe devem respeito e ob­ servância. Aquele que foge após causar um acidente de trânsito, deixando vítimas prostradas e em situação de risco à vida, não está a exercer qualquer direito a não azer prova contra si!!! Na verdade, ele, em princípio, estará sob as luzes do art. 304, Lei n1 9.503/97, por deixar de cumprir um dever legal e validamente imposto a todos, desde que não haja qualquer risco pessoal para Da Pova 391 o agente do fato. A fuga do local poderá até ser compreendida juridicamente como eventual excludente de culpabilidade (ou até de ilicitude), tudo a de­ pender do caso concreto, mas jamais como direito subjetivo. Houvesse esse direito, sequer se poderia pensar na prisão em flagrante do autor da conduta. Insustentável, portanto, a tese que vem de se defender no Superior Tri­ bunal de Justiça, em decisão proferida no julgamento do HC 166377, Rei. o eminente Min. Og Fernandes, no qual se chegou a afirmar que a exigibilidade à submissão ao teste do bafômetro constituiria violação ao direito à não au­ toincriminação. Pelas razões já expostas, não nos alinhamos ao referido en­ tendimento, preferindo acompanhar a experiência e o direito comparado, no qual não se tem notícia, ao menos no mundo ocidental, de qualquer proibição ao referido teste do bafômetro ou a outro teste de alcoolemia, apesar das alu­ didas ordens jurídicas também acolherem o direito ao silêncio. O que deve ser protegido, em qualquer situação, é a integridade, física e mental, do acusado, bem como a sua capacidade de autodeterminação, daí por que são inadmissíveis exames como o do soro da verdade ou de ingestão de qualquer substância química para tal inalidade. E mais: deve ser também protegida a dignidade da pessoa humana, a edar qualquer ratamento vexa­ minoso ou oensivo à honra do acusado, e o reconhecimento do princípio da inocência. eputamos, por isso, absolutamente inaceitável a diligênia policial conhecida como reprodução simulada ou reconstituição dos fatos (art. 7., CPP). Assim, não vemos também como acatar a decisão antes mencionada, da Suprema Corte, acerca da exigência de fornecimento de padrões gráicos. Não enxergamos como a coleta de manuscrito de alguém pode afetar quaisquer dos valores protegidos pelo princípio da não autoincriminação ou do direito ao silêncio, parecendo-nos exorbitante do âmbito de proteção da norma cons­ titucional a referida decisão. Mantendo-se semelhante ponto de vista, em breve também não se aceita­ rá mais a diligência probatória intitulada reconhecimento de pessoas, conforme previsão do art. 226 e seguintes do CP, tendo em vista que ali também se exige um comportamento ativo do acusado. Por que razão quem pode se recu­ sar a fornecer padrões gráicos estaria obrigado a se posicionar, de rente, de peril, de costas, contra a sua vontade e contra os seus interesses? Note-se que nossa legislação civil caminha em oura direção, conorme se vê do disposto no t. 15 do Código Civil. '.rt. 15. Ninguém pode ser cons­ trangido a submeter-se, com rsco de vida, a tratamento médico ou a interven­ ção cirúrgica. " A contrario sensu, portanto, inexistindo qualquer afetação aos 392 Curso de processopenal • Pacelli direitos da personalidade, são aceitáveis determinadas intervenções, sobre­ tudo quando não invasivas. Se restassem dúvidas quanto a isso, leia-se o dis­ posto no art. 232 do mesmo Código Civil: '.rt. 232. A recusa à percia médica ordenada pelo juiz poderá suprir a prova que se pretendia obter com o exame." Noutro giro, mas ainda nesse contexto. impende observar que, embora pertencentes ao acusado, determinados objetos materiais e/ou substâncias or­ gânicas poderão validamente ser objeto de prova (pertences pessoais, impres­ sões digitais etc.), desde que: a) tenham sido disponibilizados por ele, isto é, dispensados voluntaria­ mente de seu domínio (cigarros, por exemplo); b) embora involuntariamente, caso de um acidente ou no curso de quaisquer ações criminosas, estejam ao alcance de terceiros e ora da disponibilidade do agente (sangue e/ou material para exame de DNA), desde que, evidentemente, a sua uilização (das substâncias orgânicas) não cause nem possa causar qualquer tipo de dano à integridade isica, psíquica ou à dignidade do suspeito/indiciado/ acusado. Esta é uma conclusão que nos parece de uma evidência solar, daí por que não acreditamos que ela seria ou será iirmada por nossas Cortes Superiores, malgrado o entendimento que acabamos de expor. Determinadas interven­ ções corporais, quando não puserem em risco a integridade isica e psíquica do acusado em processo penal, e desde que previstas em lei, não encontram obstáculos em quaisquer princípios constitucionais, sobretudo quando se des­ tinarem a colher prova em crimes que atingiram direitos undamentais das ví­ timas. inal, o Direito enal, intervenção estatal mais radical, não é também destinado à proteção dos direitos undamentais? Precisamente por isso, não vemos inconstitucionalidade absoluta na Lei n1 12.760/12, que promoveu importantes alterações em nossa legislação de trânsito (Lei nQ 9.503/97), no que toca à previsão de submissão daquele que se envolver em acidente de trânsito ou que or preso em lagrante a testes de alcoolemia, seja por meio de baômetro, seja por perícia médica (art. 277 e art. 306, CTB). O que não impede que tenhamos que reduzir o alcance de algumas dessas normas, e, particularmente, em relação ao disposto no art. 277, que estabelece a possibilidade de condução coercitiva daquele que apresentar si­ nais de embriaguez ou de uso de oura substância psicoativa que determine Da Pova 393 dependência, a partir do envolvimento em acidente de trânsito ou mesmo por constatação realizada em fiscalização de agentes de trânsito. Ora, tal como disposto, abrem-se à autoridade policial duas possibilidades: (a) a prisão em flagrante pela prática do crime capintlado no art. 306 (B), e b) condução coercitiva, para ins de avaliação da embriaguez ou perda de capacidade psicomotora, diante das normas reguladoras de inrações admi­ nisrativas (art. 165 e art. 276, TB). Neste úlimo caso, duas circunstâncias justiicariam a condução coercitiva: o envolvimento em aidente de trânsito ou a suspeita decorrente de iscalização dos órgãos competentes de rânsito. Na hipótese de prisão em flagrante, e como deve ocorrer em quaisquer ouras modalidades criminosas, impõe-se que o ato somente seja praticado à vista de elementos seguros quanto à configuração do ipo. É dizer, nos casos de rânsito, o flagrante apenas se justiicará quando houver material infor­ mativo (probatório) suiciente para comprovar a efetiva perda ou redução da capacidade psicomotora. E, sabemos todos, que tais situações são mais requentes do que se pensa! Provas testemunhais quanto à articulação da fala, a higidez de raciocínio e a movimentação corporal poderão atestar uma situação de risco que legitima a possibilidade da prática do crime. Imagens e vídeos também foram incluídos como meio de prova pela Lei nº 12.760/12. Naturalmente, estamos nos referindo à hipótese em que o agente se recuse ao uso do bafômetro. Nas demais hipóteses, em que não se identiique suicientemente a prá­ tica de infração penal, pensamos que apenas quando houver o envolvimento em acidente de trânsito ou o risco manifesto ou evidente de que tal venha a ocorrer é que se deverá recorrer à condução coercitiva, para fins do art. 277, CB. O fato apenas da iscalização, sem que se possa ter segurança quanto ao grau de comprometimento ou quanto ao efetivo consumo de bebida alcoólica ou oura substância entorpecente, poderá dar lugar a excessos inconroláveis por parte dos agentes públicos. De todo modo, uma vez que se legiime a condução coerciiva ou a pri­ são em flagrante, fato é que o agente poderá ser submeido à perícia médica, sem que isso importe qualquer violação a direito individual. A intervenção corporal então prevista (Lei n1 12.760/12), desde que realizada por médico - e justiicada, repita-se! - nada tem de inconsitucional. E que se esclareça também que: (a) não há previsão legal de exração de sangue, como ocorre, por exemplo, no art. 81 do Código de Processo penal alemão; (b) do mesmo modo que o agente não pode ser compelido a soprar o bafômetro (sem que 394 Curso de processopenal • Pacelli isso implique direito subjetivo a não fazer prova contra si), não poderá ele ser forçado a realizar atos ísicos em que exijam manifestação ativa de sua vonta­ de; (c) no entanto, poderá ser submetido ao exame médico passivo, a ser feito sem ingerência corporal abusiva ou ilegal. Uma modalidade também de intevenção corporal normalmente acei­ ta sem maiores questionamentos diz respeito à identiicação criminal, atu­ almente prevista na Lei n1 12.037, de outubro de 2009. Já veremos a Lei n1 12.654/12, que instituiu a identiicação criminal genéica. Nela se prevê a identiicação datiloscópica e fotográica para quaisquer pessoas que não apresentem identiicação civil, desde que, é claro, achem-se submetidas à persecução penal (art. 1°). Prevê, ainda, a identiicação pelo processo datiloscópico efotográco mes­ mo para aqueles já identiicados civilmente, quando (art. 32): a) o documento apresentar rasura ou tiver indício de falsiicação (I); b) o documento apresentado for insuiciente para identiicar cabalmen­ te o indiciado (II); c) o indiciado portar documentos de identidade distintos, com informa­ ções conflitantes entre si (III); d) a identiicação criminal for essencial às investigações policiais, se­ gundo despacho da autoridade judiciária competente, que decidirá de oício ou mediante representação da autoridade policial, do Mi­ nistério Público ou da defesa (); e) constar de registros policiais o uso de nomes ou dierentes qualiica­ ções ); ) o estado de consetvação ou a distância temporal ou da localidade da expedição do documento apresentado impossibilite a completa identiicação dos caracteres essenciais I). Como se vê, a atual legislação modiica sensivelmente o tratamento do indiciado, somente admiindo a identiicação criminal daquele civilmente identiicado em situações em que se possa quesionar a aludida idenificação (art. 32, 1, II, III, V e I) pelos aspectos intrínsecos dos documentos apresenta­ dos, ou, também, pela existência de anterior utilização de registros diferentes. Fora de tais hipóteses, somente por autorização judicial se determinará a me­ dida (de identiicação criminal do civilmente identiicado). Da Pova 395 Obviamente, a decisão judicial haverá que ser fundamentada, orientan­ do-se por eventuais necessidades acautelatórias da invesigação ou mesmo no interesse no indiciado. Não são raros os casos de homonímia e de dúvidas sobre a fotograia do documento e sua correspondência com a pessoa inves­ tigada. Note-se que no delito de uso de documento por terceiros, embora a documentação apresentada não seja materialmente falsa, a sua utilização o será, do ponto de vista ieológico, evidentemente. Toda cautela é pouco. Além de vedar eventuais consrangimentos por ocasião da identificação (art. 1), a Lei autoriza a retirada da identificação fotográfica do inquérito ou do processo, quando rejeitada ou não oferecida a denúncia ou em caso de absolvição do acusado, desde que comprovada a identidade civil (t. 7°). E também dispõe ser vedada a referência da identiicação riminal em atestados de antecedentes ou em informações não destinadas ao juízo crimi­ nal, antes do trânsito em julgado da sentença condenatória (art. 6Q). Mas que se esclareça: o que é proibido, sobretudo em relação ao atestado de antecedentes, é a remessa da identiicação à autoridade que não seja o juiz criminal. É dizer: a regra é que a identiicação criminal se destine apenas ao juiz criminal, se antes do trânsito em julgado. No entanto, não há como negar que, em determinadas e excepcionais si­ tuações, a identificação criminal poderá ser requisitada por juiz cível, quando presente situação de risco à pessoa. Exemplos: em alguns casos de competên­ cia dos Juizados da Violência Domésica, mesmo que ainda sem a ocorrência de violência real ou moral, pode se revelar indispensável a invesigação sobre fatos anteriores (casamento etc.), a fim de se proteger a mulher contra situa­ ções de risco futuro. Do mesmo modo, no âmbito dos Juizados da Juventude e Adolescência, que, rigorosamente, não cuidam de matéria criminal. De se ver, ainda, que a previsão de retirada da identificação criminal em autos de inquérito policial (art. 72), sobretudo no caso de não oerecimento de denúncia (arquivamento, pois), nem sempre se jusicará. É que, quando as razões de arquivamento repousarem em ausência de provas, e, a depen­ der da natureza do delito investigado, pode ser absolutamente necessária a manutenção da identificação criminal, com o objeivo de permiir a maior abrangência de novas investigações e para evitar também a repetição de pro­ cedimentos já realizados. No caso de absolvição, não. O aastamento concreto da pretensão punitiva, naquele caso, jusicaria a retirada dos autos. Note-se, mais, que a Lei n2 12.037/09, não faz distinções quanto à ado­ ção e proibição do reconhecimento datiloscópico e do fotográfico (art. 52), o 396 Curso de processopenal • Pacelli que nos parece um grande equívoco. A ideniicação fotográica raz a marca indelével da temporalidade, o que permite a identificação contemporânea da pessoa, em relação aos atos eventualmente a ela imputados. A modificação dos aspectos faciais da pessoa no tempo pode dificultar o seu reconhecimento por testemunhas, o que seria minimizado com o registro fotográico, desde que as fotograias permaneçam unicamente nos regisros procedimentais em curso, mantido o sigilo necessário à investigação e, sobretudo, à preservação das garantias individuais do otografado (direito à imagem, honra, tratamen­ to de inocente etc.). Embora o art. 20 do Código Civil preveja (aliás, com redação sofrível) a possibilidade de uilização da imagem da pessoa (aqui, no que nos interessa, o réu) quando necessárias à administração da Justiça ou à manutenção da or­ dem pública, o que é expressamente vedado na Lei n1 12.037/09, pensamos que somente em casos excepcionais se poderá quebrar o sigilo da imagem do suspeito (ainda não condenado), como ocorrerá com a exposição pública de otograias, e desde que justificados por ordem judicial. A questão não se resolve no âmbito inraconstitucional, como querem a Lei n1 12.037/09 e o novo Código Civil, mas, sim, no âmbito do disposto no art. 51, X, da Carta da República. Note-se que ali não se az reserva da jurisdição para eventual fle­ xibilização do direito à imagem. Assim, tem-se que, diante da inexistência de direitos absolutos, o juiz poderá determinar a quebra do citado sigilo. Eis, então, que se chega à Lei n1 12.654/12, a cuidar da identiicação genéti­ ca, primeiro, como inalidade probatória no curso de invesigações, e, segundo, como obrigatoriedade para condenados em rimes praticados com grave vio­ lência e para aqueles capitulados como hediondos. No primeiro caso, alterou-se a Lei nº 12.037/09, da idenicação riminal; no segundo, arescentou-se novo disposiivo (t. 9'-A) à Lei de Execuções Penais (Lei n' 7.210/84) . Tivemos oportunidade de apreciar a validade da citada lei e também de levantar objeção acerca do banco genético geral de condenados, conforme modiicação inroduzida na Lei de Execuções Penais, em nosso rocesso e her­ menêutica na tutela penal dos direitos fundamentais, 31. edição, publicado pela Editora Atlas (2012). E, ali assentamos que: 'A nova legislação prevê duas espécies bem distintas de identiicação criminal por peril genético. Da Pova 397 A primeira, com inalidades exclusivamente probatórias, vinculadas à neces­ sidade - indispensabilidade - para a invesigação (e, assim, para eventual e uuo processo) . Nesse caso, estabelece que a ideniicação por peril genético estará submetida à autorização judicial e demonsração da necessidade da medida, quando já ci­ vilmente identiicado o investigado (art. 3°, , c/c art. 5°, parágrafo único, Lei nº 12.037/09, com redação dada pela Lei n° 12.654/12). E pensamos também que o juiz, ao exame da necessidade da identiicação para a busca de elementos informativos da prova, deverá atentar para a natureza do delito, além de sua gravidade. É que a autoria de alguns crimes vem reorçada exatamente na idenicação de material genético, como ocorre, por exemplo, com os rimes de natureza sexual. De todo modo, que não se queira invalidar a providência com base em suposto direito a não autoincriminação. or todas as razões lançadas nesse trabalho. Aliás, eis aqui cristalino exemplo da inadequação do argumento: a questão gira em tomo da violação ou não (a depender do exame a ser realizado e de sua necessidade efetiva) de direitos materiais, como a integridade ísica e/ou psíquica da pessoa submeida à intervenção dessa natureza. Então, desde que mantida a excepcionalidade da medida, conrolada pela exi­ gência de ordem judicial undamentada (art. 3ª, , Lei nª 12.037/09, com redação dada pela Lei nª 12.654/12), não vemos inconstitucionalidade na exi­ gência. Os meios de coleta deverão respeitar a proibição de ingerências abusi­ vas e desnecessárias, conforme estipulado em Tratados Intenacionais sobre a matéria. E como a inalidade é essencialmente probatória, subordinada aos resultados úteis dajurisdição criminal, oi prevista também a exclusão do peril genéico ao inal do prazo prescricional do delito invesigado (art. 7ª-A, Lei nº 12.037/09, e/redação da Lei nº 12.654/12). E, acrescentaríamos: na hipótese de absol­ vição ou decisão exintiva da punibilidade já passada em julgado, a solução será a mesma, confortada por semelhança - analogia - do quanto contido em relação à identiicação otográica estabelecida na mesma lei (art. 7ª - Lei nQ 12.037/09), que, aliás, a prevê em maior extensão (rejeição da denúncia, arquivamento deinitivo (sic)). De se ver, ainda, que a nova regra prevê que a defesa também poderá requerer a identiicação criminal em favor do investigado, isto é, como meio de afastar, o quanto antes, a sua responsabilidade criminal. E a segunda modalidade (de identiicação criminal) diz respeito à obrigato­ riedade da coleta de material genético para cadastro geral de condenados em crimes praicados com violência grave contra a pessoa ou por quaisquer dos 398 Curso de processo penal • acelli 8.072/90), 9-A da Lei de Execuções Penais (Lei n° 7.210/84), introduzido pela referida Lei n° 12.654/12. Regisre-se que a matéria já foi objeto de regulamentação por meio do Decreto nº 7.950/13. crimes previstos no art. 1° da Lei dos Crimes Hediondos (Lei n° consoante se vê da norma contida no art. Certamente não altará quem queira ver ali uma série de inconstitucionalidades. Não nos animamos, ainda (sua vigência nem se iniciou!), a desconstruir a va­ banco de lidade das alterações ali propostas. Mas, com efeito, a riação de um dados genéticos para condenados em execução penal pode ser riticada por diversos aspectos. Teme-se, com razão, a perigosa manipulação das informações genéticas, e, o que é pior, o acirramento do processo de seletividade do sistema penal, na medida em que as novas regras somente atingirão a clientela dos crimes tradi­ cionalmente praticados mediante violência. Obviamente, não estamos a gitimar a medida s6 por essa razão: desle­ a exclusão social não pode conferir alvará de imunidade criminal. De outro lado, e em relação à idenicação para ins probatórios, também à busca de receamos que as invesigações de tais crimes tendam a se limitar identiicação de peril genético, diante da força de convencimento da prova obida pelo exame de DNA. Todo cuidado é pouco quando se aponta na direção de certezas absolutas. O risco de equívocos no exame de coincidência de peris (o cruzamento do dado armazenado e o elemento colhido no local do rime) não pode ser subesimado. No entanto, essa modalidade deenderá de ordemjudial expressa e comprovada necessidade para a invesigação, o que pennite um conrole mais ou menos seguro quanto aos riscos antes menionados. E não só. O regisro genéico (de idenica­ ção) será ecludo ao término do prazo de prescrição do crime (t. 7-A). Já a obrigatoriedade de coleta de material em Execução Penal, e, sobretudo, a instituição de um cadastro geral genético de condenados, sem prazo de duração (deiniivo, portanto), parece-nos de duvidosa constituionalidade. A medida, para além de seu caráter estgmatizante, direito esado pleno viola o verdadeiro daquele que, após o cumprimento de sua pena, deve retomar ao de cidadania e de inocência em relação a fatos futuros - ressalvada apenas a possibilidade de valoração da condenação para ins de nova imposição penal (reincidência). Não se jusiica a manutenção indeinida de seu registro genético, afastada de à efeividade do processo penal. Nesse inalidades probatórias, isto é, ligadas passo, bastaria aos interesses do Estado a manutenção sigilosa dos regisros sobre o processo e sobre a condenação, conforme o disposto no Penal, a cuidar da reabilitação. e. 95, Código Da Pova 399 E, mais. O tema da identicação criminal se enconra na Constituição da República, mais precisamente em seu art. 51, LVIII, como garantia individual. Ou seja, sua interpretação vem orientada pela proibição do excesso, somente admitindo-se a medida quando absolutamente necessária. Em tema de direitos e garantias individuais, como sói ocorrer nos modelos de Estado de Direito, a delegação ao Congresso Naional (nos termos da lei) não pode ser entendida como um cheque em branco. A norma de proteção já se põe ao nível consituional exatamente para submeter os poderes públicos ao res­ peito e observância de suas determinações. Uma coisa é pemiir a identiicação genética para inalidades probatórias, diante da possível adequação da diligência, pela ausência de risco de danos à pessoa (coleta de saliva, por exemplo), e o proveito a ser obtido na efetividade da tutela penal. Daí a exigência de ordem judicial fundamentada, como ocor­ re, aliás, com as demais inviolabilidades pessoais previstas na Constituição da República (comunicações teleônicas, domicílio etc.). Oura, muito diferente, é reerendar m cadastro genético nacional e condenados em rimes graves. í, parece-nos, haveria ranscendênia exponenial da Segu­ rança Pública, incompaível com o Estado de Direito e as liberdades públicas. A pessoa, em semelhante cenário, passaria do estado (situação) de inocência para o estado de suspeição, ainda que se reconheça - e o fazemos expressamen­ te! - o proveito na apuração de uturos delitos (casos de reiteração, evidente· mente) . O problema não se resume, porém, às utilidades possíveis do cadasro. Trata-se, mais que isso, de se pugnar pelo reconhecimento do direito ao retomo à condição de cidadão pleno daquele que foi condenado e já cumpriu em toda a extensão a sanção que foi imposta. A radicalização no ratamento do egresso do sistema carcerário atingiria níveis incompaíveis com as funções declaradas da pena pública. De resto, a elevação prévia do processo de estigmatização do culpado poderia concretizar o alarme a que se referia Rui Barbosa em seus famosos Discursos: prendam os suspeitos de sempre (Novos dscursos e conferências. São Paulo: Saraiva, 1933, p. 75). Que não se pense que desconhecemos a gravidade dos crimes que se repetem tragicamente no país. Ou que ignoramos a necessidade de um combate mais eicaz conra tais ações. E, menos ainda, que não nos alinhamos a todos aque­ les que se indignam contra agressões abjetas e incontroláveis por parte das pessoas referidas na citada lei. Nada disso. A questão é: não haverá limites para essa nobilíssima batalha?". 400 Curso de processo penal • Pacelli De outro lado, pode-se pensar em uma interpretação conforme a Consti­ tuição quando se tratar de delitos que ordinariamente deixam vesígios, como ocorre com os crimes sexuais. ara tais infrações, a coleta do material no local do delito e o seu imediato conronto com os dados do banco genéico poderão facilitar a imediata ideniicação do autor, com o que se poderá pensar na su­ peração dos óbices à validade da lei aqui levantados. Exatamente em atenção à gravidade de tais delitos e à necessidade de se fazer uma prova mais segura quanto à autoria, é que a Lei n2 12.845/13 exige que todo médico colha even­ tuais vestígios deixados no cometimento de crimes sexuais, para posterior identiicação do DNA. Por fim, tudo o que se disse em relação às intervenções corporais previs­ tas no ordenamento jurídico seria de pouca valia se não se examinasse tam­ bém a hipótese de recusa do agente às respectivas inspeções. É dizer: e se o indiciado/réu se recusa a ornecer padrões gráicos ou a soprar o bafômero, enfim, a quaisquer das modalidades de intervenções estipuladas em lei? O direito ao silêncio, ao contrário do que se quer azer prevalecer, é uma garantia que atua em duas direções, a saber: a) de um lado, impedindo que a simples ausência de manifestação, ou mesmo eventuais lapsos de memória ou contradições no depoimento do réu, constituam critérios de certezajurídica suicientes para emba­ sar uma condenação; b) de ouro, impedindo que o réu seja submeido a procedimentos inquisi­ toriais por parte do aparato estatal, vendo-se na obrgação de apresen­ tar uma versão para os atos, se não previsto o seu direito ao silêncio. O princípio presta-se, pois, a cumprir duas relevantes missões: a de exigir uma decisão judiial fundada em provas materiais, e não em meras presun­ ções, estabelecidas a partir do depoimento do acusado; e também a de prote­ ger a integridade ísica e psíquica do réu. Relembre-se de que o direito ao silêncio tem origem no Direito anglo­ -americano, no qual não existe o interrogatório do réu. Este também é ouvido como testemunha, sob o compromisso (a jura) de dizer a verdade. Assim, sub­ meido à inquirição pelo advogado de acusação, o conteúdo de seu depoimen­ to corre sempre o risco de manipulação, ou redirecionamento, para o im de atender às expectativas condenatórias, sobretudo porque dirigido a um júri popular, sem o dever de fundamentar suas decisões. É exatamente por isso que a "Quinta Emenda" no Direito norte-americano concede a imunidade ao Da Pova 401 réu, permitindo a ele que analise a conveniência e a oportunidade de compa­ recer ao depoimento. O direito ao silêncio é, pois, uma exceção à regra da obrigatoriedade do dever de depor, fundada tanto na preservação da integridade física e psíquica do acusado quanto no controle de idoneidade do meio de prova. Nada mais. Então, e porque o princípio do nemo tenetur se detegere tem seu campo de aplicabilidade também limitado à realização das garantias anteriormente mencionadas (proteção à integridade física e psíquica, à dignidade humana e à capacidade de autodeterminação do sujeito), não se pode querer impedir certas intervenções, quando não estão em risco as apontadas garantias. Enim: nas hipóteses de eventual recusa por parte do acusado em se sub­ meter à determinada intervenção, qual seria a solução, dado que se sabe im­ possível (e vedada pela direito) a coação orçada (a redundância é proposital) do agir humano, para as inalidades legais? No caso do bafômetro, impensá­ vel e inaceitável qualquer tentativa de coerção ísica sobre a pessoa, com o im de obtenção da prova. Evidentemente! O nosso Código Civil prevê, no art. 232, que: "A recusa à perícia médica ordenada pelo juiz poderá suprir a prova que se pretendia obter com o exame." É claro que, no processo penal, em que o ipo de certeza jurídica que aqui se constrói exige maior prudênia, deve-se evitar, quanto possível, as pre­ sunções legais e judiciais. Mas não podemos deixar de lembrar também que, mesmo aqui, no processo penal, a prova dos elementos subjeivos dos tipos penais é feita sempre por processos dedutivos, isto é, por meio de presunções, quando não confessada a motivação do delito. E nem estamos sustentando também que o referido art. 232 do Códi­ go Civil, cuja aplicação por analogia, em tese, parece-nos possível, esteja a dispensar o Estado do ônus probatório de demonstrar o fato imputado, pela simples e solitária recusa ao meio de prova previsto em lei. Não. O que se nos aigura perfeitamente possível é que o Juiz Criminal, quando diante de um quadro probatório existente, mas ainda insuiciente, possa valer-se da presun­ ção (legal) para, diante da ausência de explicações minimamente razoáveis para a citada recusa (ao meio de prova válido), convencer-se em um ou outro sentido. Que seja até mesmo à conta de um critério de proporcionalidade, quando se tratar de infrações de natureza grave e cuja apuração revele-se demasiadamente complexa ou de diícil acesso. Mais extensamentesobre o tema da não autoincriminação, consulte-se, por exemplo, Marcelo Shrimer Albuquerque. Garantia de não autoincriminação. 402 Curso de processo penal • Pacelli xtensão e limites (Belo Horizonte: Del Rey, 2007). Na literatura estrangei­ ra, imperdível a consulta ao trabalho do Proessor Espanhol José Francisco Exeberria Guridi, Las intervenciones corporales: su prácticay valoración como prueba en el proceso penal. Inspecciones, registros e etracción de muestras cor­ porales (Madrid, Trivium), no qual se colhe riquíssima e ampla pesquisa no Direito Comparado, sobretudo nos Tribunais Constitucionais europeus e na Suprema Corte norte-americana. 9.2.1.3 Procedimento Como o leitor já deve ter percebido, o presente trabalho não desce a mi­ núcias quando do trato das regras procedimentais, por entendermos inteira­ mente desnecessária a reprodução repetitiva de dispositivos de lei. Acrescentaríamos apenas que o interrogatório conigura efeivamente di­ reito do acusado, inserido na ampla defesa, resultando a nulidade absoluta do processo quando negada essa oportunidade ao réu. Por óbvio, isso não ocorrerá quando o acusado não comparecer injusicadamente à data pre­ vista para o referido ato probatório. inal, como os demais meios de defesa, há etapas procedimentais específicas para a prática dos atos processuais. É verdade que o processo penal não pode jamais se tornar refém das formas ritos -, e exatamente por isso qualquer prova nova que puder demonsrar a inocência do acusado poderá ingressar nos autos a qualquer momento. O procedimento relativo ao interrogatório se viu parcialmente modiica­ do, em razão da superveniência da Lei nº 11.719/08, que trouxe inúmeras alterações nos procedimentos do processo penal, a começar pelo depoimento do acusado. Recebida a denúncia ou queixa, se e quando não for rejeitada liminar­ mente (art. 395, CPP), o réu será citado para apresentar deesa escrita no prazo de 10 (dez) dias (art. 396, CPP). Não apresentada a defesa, nomeia­ -se defensor ao acusado, reabrindo-se o prazo de dez dias para a resposta (an. 396-A, § 2°). Feito isso, será designada a audiência de instrução, na qual serão inquiri­ dos o ofendido, as testemunhas, peritos, e, por im, realizado o interrogatório do réu (an. 400, CPP). Nos atuais ritos procedimentais, ordinário e sumário (procedimento co­ mum), nada se alude à forma do interrogatório, o que deixa em aberto a possibilidade de se manter a aplicação dos dispositivos previstos nos arts. 185 e seguintes do CP. Da Pova 403 No entanto, é bem de ver que no procedimento do Júri (Lei n- 1 1.689/08) há previsão do interrogatório, estabelecendo-se a possibilidade de perguntas diretas pelo Ministério Público, assistente, querelante e deensor (art. 474, § 1-, CPP), sem mencionar, aliás, a participação do juiz na inquirição. Ao con­ trário, quando se refere a ele, diz que o Juiz-Presidente inquirirá o oendido e as testemunhas (art. 473, CPP) . E, mais, antes que as partes. Curiosamente, no rito comum (ordinário e sumário), as testemunhas são inquiridas diretamente pelas partes, cabendo ao juiz tão somente comple­ mentar a inquirição (art. 212, parágrafo único, CPP). Resumo da ópera bufa: a) no rito comum, o juiz complementa a inquirição das testemunhas (e ofendido), eita diretamente pelas partes; já no interrogatório, a se manter a vigência dos arts. 185 e seguintes, o juiz inicia o interroga­ tório, cabendo às partes complementá-lo. Mais: não há previsão de inquirição direta no interrogatório no processo comum. No júri, há (an. 474, § l', CPP); b) no rito do Júri, o juiz inicia diretamente a inquirição das testemu­ nhas (e ofendido), antes das perguntas, também diretas, das partes; já no interrogatório, sequer há previsão de perguntas por parte do juiz, cabendo às partes azê-lo diretamente (art. 474, § 1-, CPP). O que fazer? Aceitarmos tamanhas inconsistências procedimentais? Como já dissemos antes, o Direito e, sobretudo, o Direito Processual não podem se tomar reféns da alta de técnica legislativa. A solução seria e deve ser a unificação do procedimento: na inquirição de testemunhas, as partes iniciam a inquirição e o juiz esclarece eventuais dúvi­ das que restarem; no interrogatório, a inquirição deverá ser iniciada pela acu­ sação, cabendo à defesa o contraponto, e, depois, ao juiz as perguntas inais. Poder-se-ia pensar que o fato de se tratar de meio de deesa, caberia a esta iniciar a inquirição. No entanto, como não se trata, a rigor, de prova testemunhal, mais adequado ao princípio do contraditório e da ampla defesa seria o início da inquirição pela acusação. Uma questão: em processos já iniciados antes das alterações (Lei n- 11. 719/ 08), e com interrogatório já realizado, seria necessária a sua repetição? 404 Curso de processo penal ensamos que não. • Pacelli É que, em relação aos procedimentos, há que se res­ peitar a integralidade do rito já iniciado, particularmente no que toca ao início da instrução, a fim de se evitar prejuízo ao devido processo legal, recomen­ dação constante, aliás, de nossa esquecida Lei de Introdução ao CP. É nesse sentido decisão do ST, no julgamento do HC 104555/S, 11 Turma, Relator o Min. Lewandows.i, DJE, 15.10.2010, que rejeitou alegação de nulidade do processo sob tal fundamentação. Correta a decisão. No entanto, embora não obrigatória, nada impede a repetição do ato. De outro lado, o art. 196 do CP, com a redação que The deu a Lei n2 10. 792/03, prevê que "a todo tempo o juiz poderá proceder a novo interroga­ tório e oicio ou a pedido .undamentado de qualquer das partes". Ora, assim já o dispunha o art. 616 do CP, relativamente ao julgamento da apelação. Mas note-se: não se trata de imposição ao juiz, mas de simples aculdade. Todavia, quando e acaso justiicada a ausência do acusado no interrogatório na data designada pelo juiz, a hipótese será de direito subjetivo, ou seja, o juiz, nesse caso, deverá designar novo interrogatório. Em resumo: o interrogatório é direito do réu. Cumpre, então, lembrar que a condução coercitiva do acusado para ins exclusivos do interrogatório não é mais admitida, cabendo a ele a opção en­ tre exercer ou não a autodefesa ativa, podendo, por isso mesmo, deixar de comparecer ao referido ato, já que o direito ao silêncio implica o direito à não paricipação no ato, e não o mero direito de emudecer diante do juiz. Seguindo. Com a Lei nª 1 1.900/09, modificou-se mais uma vez o art. 185, CPP: "t. 185. [...] § P O interrogatório do réu preso será realizado, em sala própria, no estabe­ lecimento em que estiver recolhido, desde que estejam garanidas a segurança do juiz, do membro do Ministério Público e dos auxiliares, bem como a presen­ ça do defensor e a publicidade do ato. § 21 Excepcionalmente, o juiz, por decisão fundamentada, de oício ou a reque­ rimento das partes, poderá realizar o interrogatório do réu preso por sistema de videoconferência ou outro recurso tecnológico de transmissão de sons e imagens em tempo real, desde que a medida seja necessária para atender a uma das seguintes inalidades: Da Pova 405 I - prevenir risco à segurança pública, quando exista fundada suspeita de que o réu integre organização riminosa ou de que, por outra razão, possa fugir durante o deslocamento; II - viabilizar a participação do réu no referido ato processual, quando haja relevante diiculdade para seu comparecimento em juízo, por enfermidade ou outra circunstância pessoal; III - impedir a influência do réu no ânimo de testemunha ou da vítima, desde que não seja possível colher o depoimento destas por videoconferência, nos termos do art. 217 deste Código; V - responder à gravíssima questão de ordem pública. § 3° Da decisão que determinar a realização de interrogatório por videoconfe. rência, as partes serão intimadas com 10 (dez) dias de antecedência. § 11Antes do interrogatório por videoconferência, o preso poderá acompanhar, pelo mesmo sistema tenológico, a realização de todos os atos da audiência úni­ ca de instrução e julgamento de que am os arts. 400, 411 e 531 deste Código. § 5° Em qualquer modalidade de interrogatório, o juiz garantirá ao réu o direito de entrevista prévia e reservada com seu defensor; se realizado por videocon­ ferência, ica também garantido o acesso a canais telefônicos reservados para comunicação enre o defensor que esteja no presídio e o advogado presente na sala de audiência do Fórum, e entre este e o preso. § 61 A sala reservada no estabelecimento prisional para a realização de atos processuais por sistema de videoconerência será iscalizada pelos corregedo­ res e pelo juiz de cada causa, como também pelo Ministério Público e pela Ordem dos Advogados do Brasil. § 7D Será requisitada a apresentação do réu preso em juízo nas hipóteses em que o interrogatório não se realizar na forma prevista nos §§ 1° e 2° deste arigo. § s1 Aplica-se o disposto nos §§ 21, 31, 4R e 51 deste arigo, no que coube, à realização de ouros atos processuais que dependam da participação de pessoa que esteja presa, como acareação, reconhecimento de pessoas e coisas, e inqui­ rição de testemunha ou tomada de declarações do ofendido. § 91 Na hipótese do § 81 deste artigo, ica garantido o acompanhamento do ato processual pelo acusado e seu deensor." s atuais regras parecem se orientar por uma lógica esranhíssima. Pa dizer o mínimo. Ao que se vê em uma primeira abordagem, a regra geral do interrogató­ rio do réu preso seria a sua realização no estabelecimento em que estiver ele 406 Curso de processo penal • Pacelli recolhido (cadeia pública, delegacia ou penitenciária), em sala própria (§ 1"), destinada a este fim. Curiosidade: o dispositivo preocupa-se com a segurança do juiz, do Minis­ tério Público e dos auxiliares da Jusiça, além de garantir a presença do advoga­ do de defesa e a publicidade do ato, sem, no entanto, referir-se, nem de longe, s testemunhas e peritos que eventualmente tenham que partiipar do ato. Explica-se: a lei, nesse ponto, se pautou no texto da Lei n" 10.792/03, que, como se sabe, é anterior às modiicações de rito impostas pela Lei n" 1 1 . 719/08. Assim, esqueceu-se de que atualmente os atos instrutórios são concentrados em uma única audiência, na qual se ouvem testemunhas e se in­ terroga o réu. Por isso, o interrogatório do réu preso mencionado no art. 185, § 1", segue a lógica do ato isolado, sem a presença de testemunhas! O que fazer? Ora, a menos que o Estado possa garantir a segurança de todos quantos devam participar do ato, além daqueles que eventualmente queiram (o ato não é público?), não se poderá exigir que o juiz e seus auxiliares, além do membro do Ministério Público, se desloquem para todo e qualquer estabe­ lecimento prisional, a im de ali realizarem a instrução concentrada. Mais. Uma coisa é exigir da testemunha o seu comparecimento às delegacias para prestarem depoimentos no curso de investigação criminal, locais nos quais o número de policiais, em regra, costuma ser maior que o de presos. Quando nada, o risco de rebeliões intenas ali é bem menor. Oura, muito diferente, é exigir que elas (testemunhas) se desloquem para penitenciárias apinhadas de presos, nem sempre com garantias visíveis e com maiores ou menores riscos a sua segurança pessoal. Iria até aí o dever de colaboração com a Justiça Pú­ blica? Pensamos que não! Veja-se, contudo, que não se trata de inconstitucionalidade. Aliás, no Bra­ sil de hoje, há um preocupante superdimensionamento do controle consti­ tucional de validade de normas. Quando não há contrariedade expressa em relação a um dispositivo da Constituição, recorre-se aos princí pios. Assim, nada parece haver que não esteja previsto em algum princípio constitucional... Caberá, então, ao prudente juízo do magistrado, avaliar as condições í­ sicas para a realização do ato em tais locais, atentando-se, sobretudo, para a existência ou não de prova testemunhal, bem como para o número de pessoas a serem protegidas no evento. E não é só. Diante de semelhantes dificuldades, e, mais, diante da ausên­ cia de referência legislativa expressa à proteção das testemunhas, acaso não Da Pova 407 bastaria a ramentação da instrução, com a realização apenas do interroga­ tório no estabelecimento prisional? Do ponto de vista procedimental, não veríamos problemas nessa solução. Ocorre que o acusado tem direito subjetivo a acompanhar a produção da prova contra si. Direito esse, por óbvio, extensivo ao réu preso. Assim, e como ele tem direito a acompanhar a audiência de inquirição de testemunhas, há que se concluir que: (a) ou a audiênia se realiza na sede com juízo, com requisição do preso; ou (b) realiza-se o ato integralmente na sala própria do estabeleci­ mento prisional, valendo relembrar, no paricular, a ausência de previsão legal acerca da preservação da segurança das testemunhas (an. 185, § 12). Mas veja-se bem: se a regra fosse a instrução do feito (audiência de ins­ trução, incluindo interrogatório) no estabelecimento onde estiver recolhido o acusado preso, por que razão prever-se o interrogatório por videoconferência, quando houver risco decorrente do deslocamento do preso? Bastaria seguir a regra geral: instrução no presídio ou delegacia! A realização do ato por vide­ oconerência pressupõe, então, impossibilidade da audiência na sala própria do presídio ou estabelecimento prisional! Mais que isso: a rigor, não existe a exigência da realização da audiência de instrução naqueles locais; só a possibilidade do interrogatório, com ra­ cionamento do ato. Voltamos à indagação: também nessa situação o réu não teria direito ao acompanhamento pessoal da instrução? Ora, se ele tiver que ir ao Juízo para a instrução, ali se realizará também o interrogatório, sendo desnecessária a designação de outra data para o citado ato (interrogatório). Portanto, nessas situações, melhor que a regra do t. 185, § 1º, seria a aplicação de oura, do § ° do mesmo disposiivo, que permite ao acusado preso acompanhar a audiência, quando tiver que realizar o seu interrogatório por meio de videoconerência. Bem se vê, contudo, que as citadas regras (da videoconferência) somente serão aplicadas eceponalmente, para determinadas e especíicas situações, não se impondo como regra geral. Anote-se, mais, a visível inaplicabilidade da medida nos processos da competência do Tribunal do Júri. Ora, como realizar um ato envolvendo tan­ tas pessoas em uma sala especial de estabelecimento prisional? Seria inconstitucional o interrogatório por videoconferência? A nosso aviso, semelhante modalidade de inquirição do acusado - ou mes­ mo de testemunhas- não viola o direito individual consitucional (acto de San José da Costa Rica - tratado intenacional) a ser ouvido pelo juiz da causa. 408 Curso de processo penal • Pacelli Nem a produção legislativa do Direito e nem sua interpretação podem ser eitas de modo linear, como se tudo coubesse em uma mesma orma normativa. Certamente que a inquirição feita por videoconferência não é a mesma que aquela feita pessoal e diretamente, não só em tempo real, mas também em espaço real. Certamente. Mas a distinção de ratamento poderá, eventual e excepcionalmente, en­ conrar justiicativas. A primeira hipótese, prevista no inciso 1, § 2ª (art. 185), por exemplo, é pereitamente factível e plausível. O deslocamento de alguns presos, cuja potencialidade lesiva tenha sido seguidamente demonstrada por constatações ormais (inquéritos policiais, ações penais, depoimentos em procedimentos adminisraivos etc.), desde que examinadas: (a) a natureza das imputações (crimes praicados com violência ou grave ameaça); b) participação em orga­ nizações criminosas, como apontado em Lei), poderá se revelar especialmente problemático, quanto à segurança pública em geral, e quanto ao possível risco de fuga do réu no trajeto. Inúmeros são os exemplos que, sobretudo nas gran­ des capitais nacionais mostram a força e o poder de organização de muitos grupos recolhidos em peniteniárias (ataques sistemáticos e coordenados a delegacias e a outros bens de acesso ao público). Ignorar isso é acreditar na ab­ soluta desconexão entre o mundo normativo (das garantias) e o mundo real. E nem se cuida de um tratamento calculadamente desinado a um ini­ mgo, no pior sentido da palavra (se é que existe outro, que não seja o pior) . Mas, sim, de precauções validamente deduzidas da experiência concreta vi­ venciada em um mundo de imensas desigualdades (produtoras, justiicada­ mente ou não, de violência) e intolerâncias (mais violência). No entanto, somente farão senido (as atuais regras) na medida em que assim possam se justiicar. Aplicar a videoconferência com o objeivo único de acomodação dos interesses da Administração carcerária é trilliar o caminho da ilegalidade e do arbítrio, em prejuízo das garantias individuais, cuja flexibili­ zação somente poderá ocorrer diante das peculiaridades inerentes ao mundo da vida. Como exceção, devidamente fundamentada, jamais como regra. Exatamente por isso, não se pode aceitar a possibilidade de interroga­ tório por videoconferência prevista no inciso , do § 2ª, do art. 185, que se refere a uma inexplicável gravssima questão de ordem pública. Evidentemen­ te, um conronto armado entre um grupo qualquer e órgãos da segurança pública, por exemplo, pode gerar uma situação entendida como de ordem pública. Mas o que deve ser rejeitado é a abertura (conceito indeterminado) Da Pova 409 inconrolável da expressão (ordem pública) para fins de aferição da situa­ ção de cautela. O núcleo legitimador da medida (videoconferência) já vem expresso no inciso 1: segurança pública e risco de fuga. Nada mais é preciso e tudo o mais será desnecessário. De se ver, ainda, que a hipótese alinhada no inciso III (art. 185, § 2") seria mero complemento da regra já prevista no art. 217, na qual se destaca a pos­ sibilidade de videoconferência para a inquirição de testemunhas, desde que presentes os requisitos ali alinhados (temor, intimidação ou ouro ipo de influ­ ência, desde que causados pelo acusado). O importante, e isso se percebe em ambos os disposiivos, é garantir ao réu o direito de acompanhar a produção da prova. E tanto é assim que o § 5" do art. 185, CP, estabelece o direito de comu­ nicação entre o acusado e seus advogados durante a videoconferência - tanto para a prova testemunhal, quanto para o interrogatório -, inclusive por meio de canais telefônicos, para a manutenção do sigilo da conversa. Observe-se também que a própria lei exige a designação de um defensor para atuar no local em que esteja o preso e outro (advogado) na assentada de insrução, ou seja, na sede do Juízo. s dificuldades não serão poucas. E é bom que sejam muitas mesmo, para que se evite a banalização da medida. Quanto ao mais, registre-se, por óbvio, a necessidade de fundamentação esrita e motivada da adoção da videoconferência (art. 185, § 2Q), o que, de resto, é aplicável a qualquer procedimento de natureza cautelar. E que, deci­ dida a realização da videoconferência, as partes serão intimadas com o prazo mínimo de dez dias de antecedência do ato, o que se acha na linha de proce­ dimento prevista no art. 159, § 5Q, 1, CP. E, mais. ermite-se que, desde que presentes as mesmas razões autoriza­ tivas do interrogatório por videoconferência, ouras pessoas possam ser assim inquiridas, se e desde que estejam presas (acareação, declaração do oendido, testemunhas - art. 185, § 8"). De outro lado, pensamos que o Supremo Tribunal Federal reconhecerá a validade da Lei nª 1 1 .900/09, a par de suas inconsistências lógicas e da superfetação da norma contida no art. 185, v, ainda que recuse a eventual aplicação de alguns de seus desdobramentos (art. 185, § 11, por exemplo), por impossibilidade fáica. A medida, tem previsão em Lei, como já exigido naquela Corte. Aliás, precisamente por ausência de previsão legislativa - ao nívelfederal, ique bem claro! -, o Supremo Tribunal Federal teve oportunidade de recusar 41 O Curso de processo penal • Pacelli validade a interrogatório realizado via on line. E oi além: anulou todos os atos processuais praticados a partir do interrogatório então realizado por vi­ deoconferência, conforme se vê no julgamento do HC nº 88914, Rel. Min. Ce­ zar Peluso, 2' Turma, julgado em 14.8.2007, publicado no DJ de 5.10.2007. Embora concordemos com a impossibilidade de determinação compulsó­ ria do interrogatório por videoconferência, exatamente por ausência de pre­ visão legislativa naquele caso concreto, não podemos aderir às consequências vislumbradas pela Suprema Corte, ao menos enquanto regra absoluta. De se ver, no ponto, que o caso ali julgado, para além da questão da modalidade do interrogatório, apresentava algumas peculiaridades, como, por exemplo, a ausência de citação do réu. Certamente que o aludido ato pode e deve causar prejuízo à intervenção defensiva, na medida em que se pode supor a diminuição da participação voluntária do acusado, além de eventual perda de expectativas em relação ao tratamento judicial destinado aos réus. No entanto, e como na maioria esmagadora das nulidades processuais, não se pode impor, aprioristicamente, a nulidade de todos os atos subsequentes, sem que se examine o conteúdo das declarações prestadas pelo acusado, e, mais ainda, a qualidade da prova produzida nos autos. Com efeito, a anulação de um processo condenatório cuja decisão tenha se amparado em sólidas pro­ vas documentais, magnéticas e testemunhais, além da conissão espontânea do acusado, conirmada por testemunhas por ele arroladas - sabemos a raridade de uma situação como essa! -, ignoraria quaisquer pretensões de efetividade jurisdicional, além da possibilidade de airmação fática da realidade, elevando garantias constitucionais abstratas ao nível do etiche humanista. Aliás, a nulidade em caso de sentença absolutória jamais seria declarada. Não só por impossibilidade de arguição por parte do Ministério Público, para aqueles que veem o referido órgão unicamente como parte, mas por compro­ vação fáica e concreta da ausência de prejuízos, a posteriori. De outro lado, reconhecendo a inconstitucionalidade ormal de lei paulis­ ta que previa o interrogatório por videoconferência, ante a competência pri­ vativa da União para legislar sobre direito processual (art. 22, 1, da CF), bem andou a Suprema Corte no julgamento do HC n2 90. 900/S, Rel. p/ o acórdão Min. Menezes Direito, publicado no Informativo STF nº 526. Duas últimas questões: Da Pova 411 a) Não existe mais a necessidade de nomeação de curador ao réu menor, nem para o interrogatório nem para quaisquer ouros atos processu­ ais. E por uma razão até bem simples: se o interrogatório é meio de defesa, para o qual, inclusive, deve-se nomear um defensor (art. 185), não há mais que se falar na obrigação de nomeação de m curador; b) Segundo registro o disposto no t. 189 do CPP: "Se o interrogando negar a acusação, no todo ou em parte, poderá prestar esclarecimentos e indicar provas." Ora, nada mais redundante e desnecessário. O acusa­ do sempre poderá, no interrogatório e em qualquer oura fase, prestar esclareimentos e indicar provas, tenha ele negado ou não a imputa­ ção. Pode ocorrer, por exemplo, de o réu não negar a conduta a ele imputada - matar alguém -, mas alegar ter agido em legíima defesa. Pode também confessar o fato, mas pretender demonstrar a presença de causas de diminuição ou de atenuantes em seu avor. Acaso alguém duvidaria de seu direito a esclarecer os fatos e indicar provas? Como o interrogatório é o úlimo ato da instrução, acaso o acusado venha a indicar provas naquela assentada, provas essas não apontadas pela deesa técnica, cumprirá ao magisrado apreciar a pertinência de suas alegações, devendo sempre atentar para o princípio da ampla defesa, evitando-se o reco­ nhecimento de preclusão de matéria defensiva. 9.2.2 Da confissão Antes de adentrarmos o procedimento ainente à conissão, remetemos o leitor aos estudos feitos no item 14.7.4, a, em que se enrenta a questão rela­ tiva à delação premiada, prevista, como se verá, em várias leis. Vejamos, então, como se opera o procedimento da conissão. A conissão do réu, que também pode ser feita fora do interrogatório, quando será tomada por termo nos autos, segundo o art. 199 do CP, consitui uma das modalidades de prova com maior efeito de convencimento judicial, embora, é claro, não possa ser recebida como valor absoluto. Por isso, e como acabamos de ver, antes de proceder ao interrogatório, o juiz deverá informar o réu sobre o seu direito a permanecer calado e, ainda, que o exercício deste direito não implicará qualquer prejuízo para a defe­ sa, ao contrário do que dispõe o art. 198, revogado que se encontra pela superveniência da ordem consinicional de 1988 - e pela Lei n2 10.792/03, que alterou substancialmente o disposto no art. 186 do CP. 412 Curso de processo penal • Pacelli A previsão legal que indica a necessidade de se conrontar o conteúdo da conissão com os demais elementos de prova (art. 197) é bastante emblemá­ tica da situação do acusado perante o sistema do Código de Processo Penal de 1941. É que, na ordem precedente (antes do sistema processual implantado com a Constituição de 1988), as provas produzidas na fase policial sempre serviram de fundamento, às vezes único, para a condenação. Atualmente, com a exigência do contraditório e da ampla defesa, as pro­ vas produzidas na ase pré-processual destinam-se ao convencimento do Mi­ nistério Público, e não do juiz. Por isso, devem ser repetidas na fase instrutória da ação penal. Daí, a previsão, expressa, do t. 155, caput, CP, em redação dada pela Lei n' 1 1.690/08. A conissão, sobretudo, não terá valor algum quando prestada unicamen­ te na fase de inquérito (ou administrativa), se não conirmada perante o juiz. E, mesmo quando prestada em juízo, deverá ser também contextualizada jun­ to aos demais elementos probatórios, quando houver, diante do risco, sempre presente, sobretudo nos crimes societários, de autoacusação falsa, para prote­ ger o verdadeiro autor. s razões são várias, da motivação afeiva ou aetuosa, àquela movida por interesses econômicos. Por im, a conissão é também retratável e divisível, o que signiica que o acusado poderá arrepender-se dela, se ainda em tempo, e que o juiz, dentro de seu livre convencimento, poderá valer-se apenas de pate da conissão. 9.2.3 Da prova testemunhal A prova testemunhal talvez seja a mais requentemente utilizada no pro­ cesso penal. Só isso basta para que os cuidados em relação a ela sejam redo­ brados. Mas não é só. Todo depoimento é uma manifestação do conhecimento, maior ou menor, acerca de um determinado ato. No curso do processo penal, a reprodução desse conhecimento irá conrontar-se com diversas situações da realidade que, cons­ ciente ou inconscientemente, poderão afetar a sua idelidade, isto é, a corres­ pondência entre o que se julga ter presenciado e o que se airma ter presenciado. Isso ocorrerá por uma razão muito simples. O sujeito, portador do conheci­ mento dos fatos, é o homem, itular de inúmeras potencialidades, mas também de muitas vulnerabilidades, tudo a depender das situações concretas em que esiver e que iver diante de si. or isso, a noção de verdade, que vem a ser o objeto a ser buscado na prova testemunhal, em regra, poderá não ser unívoca. Da Pova 413 Em primeiro lugar, é de se observar que a única verdade absolua que se pode compreender é a verdade da fé, que nada indaga acerca de seus pressupostos. A verdade do homem, ou a verdade da razão, é sempre relativa, dependente do sujeito que a estiver airmando. A verdade da razão é apenas a representação que o homem tem e az da realidade que apreende diutumamente. Não bastasse, muitas vezes o prolongamento das invesigações criminais e do próprio curso da ação penal impedirá uma atuação mais eficaz da memó­ ria do depoimento, com o que a sua convicção da realidade dos atos apura­ dos já não será tão segura. Por fim, no plano do consiente e do inconsciente individual, a gravidade dos atos, as circunstâncias do crime, bem como diversos outros fatores liga­ dos à pessoa do acusado ou da vítima e à própria formação moral, cultural e intelectual do depoente poderão também influir no espírito e, assim, no discer­ nimento da testemunha. Nada obstante, reconhecida que seja a ragilidade, em tese, da prova tes­ temunhal, a maior parte das ações penais depende de sua produção. E, por isso, o depoimento em juízo é dever de todos, como regra, dispensando-se al­ gumas pessoas somente em consideração a certos valores e a certas situações, passíveis, aos olhos do legislador, de impedir uma correta e fiel reprodução da realidade histórica. 9.2.3.1 Capacidade para testemunhar Ao conrário do que ocorre no processo civil, toda pessoa poderá depor no processo penal, incluindo-se os menores, crianças e até incapazes, o que não signiica que todos esses estejam em condições de contribuir, de alguma maneira, para a formação da verdade judicial. O que se está colocando em relevo é o fato relativo à capacidade geral para ser testemunha no processo penal (art. 202, CPP). Certamente essa maior abertura para a produção da prova testemunhal no processo penal deve-se ao grau de certeza que se quer obter nesse ipo de proces­ so, razão pela qual não se admite, por exemplo, a verdade ormal dos fatos, ou seja, aquela obida pela simples ausência de impugnação dos fatos articulados na inicial, l como ocorre no processo civil (art. 302, CPC). Como vimos, por essa razão é que se fala em uma verdade material, no âmbito do processo penal. ara que não restem dúvidas: uma coisa é a capacidade para depor, ou­ tra, bem diferente, é o juízo de valoração que se faz sobre o depoimento. No 414 Curso de processo penal • Pacelli processo penal, todos podem ser testemunhas, cabendo ao juiz examinar a pertinência e a idoneidade de cada testemunho. 9.2.3.2 O compromisso de dizer a verdade A primeira parte do art. 206 do CPP assevera que "a testemunha não po­ derá eximir-se da obrgação de depor". Já no art. 203, encontra-se a referência feita diretamente ao compromisso de dizer a verdade, nestes termos: "a teste­ munha fará, sob palavra de honra, a promessa de dizer a verdade do que souber e lhe for perguntado [. ..". Nota-se, de imediato, que não se trata de juramento, assim como não se cuida de perjúrio o depoimento ou a perícia prestados falsamente. Parece-nos, contudo, que a exortação prevista no citado art. 203, em que se alude à promessa e à palavra de honra, cumpre função unicamente no cam­ po do convencimento da existência de um dever moral de dizer a verdade, de­ ver, aliás, devido aos membros da comunidade e aos senidos éicos por esta proessado. É a posição também de Tourinho Filho (1992, v. 3, p. 278-279). Todavia, a imposição normaiva do dever de dizer a verdade, como regra de direito e não como regra moral, decorre do previsto no art. 206, primeira parte. É por isso que, ainda que o juiz da causa tenha se esquecido de tomar o compromisso da testemunha, ela não estará dispensada ou desobrigada do dever de dizer a verdade. Desse dever já cuidou a própria lei, cuja observância não depende da atuação ou da lembrança do magistrado. No ponto, é rele­ vante lembrar que o art. 342 do CP não faz qualquer referência ao compromis­ so como elementar do ipo penal de falso testemunho. Assim, em regra, todos têm o dever de depor, decorrendo daí também o dever de dizer a verdade, conforme imposição da lei, única autorizada a ex­ cepcionar as hipóteses em que esse dever não será exigido de determinadas pessoas, em determinadas situações concretas. É o que veremos a segui, quando também examinaremos a possibilidade de coexistência entre o dever de depor e a ausência de compromisso de dizer a verdade, como, excepcionalmente, ocorre na parte final do art. 206 do CP. 9.2.3.3 Dispensa do dever de depor Em atenção aos laços afetivos decorrentes de relações de parentesco entre determinadas pessoas, o art. 206 do CPP prevê que poderão se recusar a depor Da Pova 415 "o ascendente ou descendente, o aim em linha reta, o cônjuge, ainda que separa­ do ou divorciado, o irmão e o pai, a mãe, ou o ilho adotivo do acusado". Em tais situações, envolvendo realidades e compromissos de afeto cuja intensidade o Estado não pode ignorar e, por isso, não pode impor a obser­ vância de regras morais gerais, a lei admite tanto a dispensa do dever de depor (art. 206) quanto o compromisso (promessa, sob palavra de honra) de dizer a verdade (an. 208). Eis, então, algumas situações interessantes. E se o parente mencionado no art. 206, embora dispensado do dever de de­ por, quiser prestar o seu depoimento? Estará ele obrigado a dizer a verdade, mesmo diante da regra do art. 208, no qual se airma não ser exigível delas o compromisso do art. 203? Pensamos que não, com a ressalva da exceção pre­ vista na parte inal do mesmo art. 206, que logo examinaremos. Coerente com o nosso ponto de vista, no senido de que o compromisso do art. 203 (promessa de dizer a verdade, sob palavra de honra) tem natureza de norma moral, acreditamos que o art. 206, ao permitir a recusa do dever de depor, admite também a dispensa do dever de dizer a verdade, partindo do pressuposto que aqui já mencionamos: o Estado não pode exigir, de deter­ minadas pessoas, em determinadas situações, e como regra, um compromisso mais esreito com as normas morais e com as normas de direito que aquele resultante dos laços de sangue, de afeto e das relações fratenas de amília. Por isso, pensamos que o depoimento prestado por essas pessoas, como regra geral, não se submeterá ao dever (como também não se submeterá ao com­ promisso do art. 203) de dizer a verdade. Dissemos, em mais de uma oportunidade, que a dispensa do dever de di­ zer a verdade, para tais pessoas, seria a regra geral. E assim nos parece porque acreditamos que a lei poderá, excepcionalmente, exigir o depoimento dessas pessoas, com a consequência, inevitável, de se exigir também o dever de di­ zer a verdade. É o que consta na parte final do art. 206 do CP, no ponto em que se ressalva a dispensa de depor, "quando não for possível, por outro modo, obter-se ou integrar-se a prova do fato e de suas circunstâncias". O dispositivo, como exceção que é, é compreensível. Há crimes, geral­ mente praticados no interior da residência e no convívio enre os parentes, que, pela sua imensa gravidade, aferida pelos critérios de reprovabilidade previstos em lei (pena e regimes de cumprimento mais graves, a espécie de bemjuridico violado etc.), devem merecer resposta penal, ainda que em pre­ juízo das relações pessoais entre os envolvidos. 416 Curso de processo penal • Pacelli Quando o único meio de obter a prova, ou de integrá-la (isto é, quando existentes outros elementos), depender do depoimento de quem tenha pre­ senciado os atos, e quando se tratar de inrações graves (estupro, homicídio etc.), estará justiicada a exceção à regra da dispensa, caso em que a testemu­ nha terá o dever e depor, bem como o dever de dizer a verdade. Conforme já assentamos, os detentores de imunidade diplomática (agen­ tes diplomáticos e amiliares) gozam de prerrogativa de não prestarem depoi­ mento em processo judicial, salvo quando houver renúncia à imunidade pelo Estado acreditante (Convenção de Viena para Relações Diplomáticas - ver item 7.4). 9.2.3.4 Proibição do testemunho Enquanto algumas pessoas são dispensadas do dever de depor, em razão dos laços afetivos que as une ao acusado, ouras estarão impedidas de depor, de acordo com outra ordem de considerações, a saber: segundo o t. 207 do CP, são proibidas de depor as pessoas que, em razão de função, ministério, ofício ou profissão, devam guardar segredo, salvo se, desobrigadas pela parte interessada, quiserem dar o seu testemunho. O que se tem em mira, ao que se vê, é a proteção tanto de determinadas fun­ ções, para as quais vige o dever, prossional e/oufundonal, do segredo, quanto da própria pessoa do acusado, ou, as especiicamente, o seu direito ao silênio. De fato, se o réu, seja por questões morais, seja por questões de interesse pessoal, procura um advogado ou um religioso para dar a eles conhecimento de determinado fato delituoso, o depoimento de ambos implicaria, por vias oblíquas, a violação do direito ao silêncio. Mirabete declina os seguintes exemplos de vedação de testemunho: "[. . .] Refere-se a lei à função (encargo em virtude de le� decisão judicial ou contrato, como tutor, curado, diretor de empresa etc.); ministério (encargo em atividade religiosa e social - sacerdotes, freiras...); oicio (atividade remunerada predomi­ nantemente mecânica); e proissão (atividade predominantemente intelectual)" (2001, p. 488). Embora não estejamos de acordo com algumas das classificações e/ou de­ inições feitas pelo citado autor, o que deve efetivamente ser levado em conta é o nexo causal que deverá existir entre o conhecimento do fato criminoso e a relação (proissional, funcional, ministerial etc.) mantida enre o acusado e a testemunha proibida. E mais: será preciso também que o dever de segredo resulte de lei, como ocorre em algumas profissões regulamentadas, ou de Da Pova 417 outra modalidade de normas, cuja validade seja geral, isto é, não limitada aos interesses de determinados grupos. Assim, estão proibidos de depor os padres ou pastores de quaisquer reli­ giões, os advogados, os médicos, os psicólogos e psiquiatras que tenham co­ nhecimento dos fatos a partir do xercício das respectivas unões. O Superior Tribunal de Jusiça incluiu o contador (profissional da Contabilidade) dentre aqueles que estariam proibidos de depor sobre fatos cujo conhecimento de­ corresse exclusivamente do regular exercício de sua função (STJ - Recurso Ordinário em MS 17.783-S, Rei. Min. Felix Fischer, 6.4.2004). Evidentemente, quando da conissão assim obtida se puder exrair fundado receio da práica de crimes futuros, não se poderá exigir o silêncio absoluto da testemunha, devendo ela diligenciar junto às autoridades a adoção das provi­ dências cabíveis, mantido, porém, o segredo em relação aos fatos passados. Tais pessoas, quando autorizadas pela parte interessada, poderão prestar o depoimento, se assim quiserem, não sendo a tanto obrigadas (art. 207, CPP). Por último, registramos a inviolabilidade do sigilo da onte, prevista constitucionalmente para o profissional da imprensa (t. 52, ) e para os parlamentares (art. 53, § 6Q). À evidência, sigilo da onte é sigilo quanto às informações passadas por terceiros, e não acerca de fatos que aqueles (par­ lamentares e jornalistas) tenham presenciado pessoalmente. Quanto a esses fatos, eles têm o dever de depor. 9.2.3.5 Testemunhas, declarantes, informantes e outros Embora não haja qualquer previsão em lei, é comum ouvir-se, na prática forense e mesmo em sede de doutrina, expressões como inormante, ou decla­ rante, em relação às pessoas que estariam dispensadas de prestar o compro­ misso legal do art. 203 do CP. A leitura do nosso Código de Processo Penal, entretanto, não permite tais conclusões. De fato, nele se faz referência apenas às testemunhas e às per­ guntas feitas ao ofendido (art. 201, CPP). É dizer: no que se refere ao critério legal, as pessoas ouvidas em juízo são: o acusado (interrogatório), o ofendido (art. 201), os peritos e intérpretes (art. 159, § 5°, CPP), e as testemunhas (art. 202). Não há referência a declarante ou a informante. Aliás, no julgamento do HC nº 83.254/PE, vencido apenas o Min. Marco Aurélio, a Suprema Corte deixou assentado que o fato de o paciente (no HC) ter prestado depoimento na qualidade, ou melhor, qualiicado como declarante, 418 Curso de processo penal • Pacelli seria insuiiente para desqualiicá-lo como sujeito ativo do crime de falso teste­ munho (HC nª 83.254-PE, rel. orig. Min. Marco Aurélio, red. p/ o acórdão Min. Joaquim Barbosa. Inormativo STF n1 322, de março de 2004, p. 2). A utilização dessas duas expressões, porém, não deixa de ter bons propó­ sitos. A ideia central é o afastamento da aplicação do art. 342 do C, que cuida do crime de also testemunho. m algumas hipóteses, e para determinadas pessoas, busca-se descaracterizar o depoente enquanto testemunha, para que não haja possibilidade de incriminação pelo also testemunho, tendo em vista que testemunha é uma elementar do mencionado tipo penal. Greco Filho, por exemplo, chega a dizer que a testemunha presta depoi­ mento; os demais fazem declarações (1999, p. 231). E quem ou quais seriam os declarantes? Seriam aquelas pessoas desobri­ gadas ao compromisso de dizer a verdade a que se reere o art. 203 do CP. Segundo o disposto no at. 208 do CP, "[. . .] não se deferirá o compromisso a que alude o art. 203 aos doentes e deicientes mentas e aos menores de 14 anos, nem s pessoas a que se refere o art. 206". Ora, vimos sustentando que o dever de dizer a verdade não decorre do art. 203 (promessa de dizer a verdade), mas, sim, do art. 206, primeira parte (dever de depor). Quando se airma que não se deerirá o compromisso (art. 203) aos doentes mentais ou aos menores de 14 anos, não é por que eles es­ tejam desobrigados de dizer a verdade, mas por que eles não têm maturidade e discenimento, quando não a capacidade mental, para compreenderem o sig­ nificado de uma promessa, sob palavra de honra, de dizer a verdade. ortanto, não é pelo fato de serem inimputáveis penalmente. Se assim fosse, os maiores de 14 anos e menores de 18 não deveriam também prestar, como de fato pres­ tam, o compromisso, já que também são penalmente inimputáveis. Greco Filho afirma que também seriam declarantes as pessoas que, con­ traditadas pelas partes, fossem reconhecidas como suspeitas ou indignas de fé (1999, p. 232). Ora, nesse ponto há até certa incoerência do ilustre mesre, porque, nos termos da lei, somente não se tomará o compromisso do art. 203 das pessoas mencionadas nos arts. 207 e 208, entre as quais não se incluem as pessoas contraditadas, como se observa da parte inal do art. 214 do CP. Ao que parece, o citado autor, no ponto, tinha em mente o disposto no art. 405, § 11, do CPC, no qual se prevê a possibilidade de oitiva de testemu­ nhas impedidas ou suspeitas, que podem (e não devem) ser ouvidas sem o com­ promisso de dizer a verdade. Ocorre que, na legislação processual civil, há previsão expressa de causas de impedimento e de suspeição de testemunhas, Da Pova 419 o que não acontece no processo penal. E mais: no Código de Processo Civil, a lei quase equipara, por assim dizer, o dever de dizer a verdade ao compromis­ so de dizer a verdade (art. 415, CPC). A nosso aviso, todas as pessoas ouvidas em juízo, à exceção do acusado e do ofendido, em razão de tratamento distinto expressamente previsto na lei, serão ouvidas, quando o forem, como testemunhas. s pessoas arroladas no art. 206, parentes do acusado, podem se recusar a depor, ou, mesmo quando ouvidas, não têm o dever de dizer a verdade, salvo quando o depoimento for o único meio de obtenção da prova ou de sua integração, consoante a ressalva da parte final do mesmo dispositivo. Neste último caso, ainda que delas não se tome o compromisso (conforme art. 208), a lei exige o dever de depor e, com isso, o dever de dizer a verdade. Evidentemente, será muito diíil, quando não praticamente impossível, querer responsabilizar criminalmente o parente mencionado no art. 206, quando egido o seu depoimento (parte final do art. 226, CPP), porque, em regra, ele teria agido em estado de necessidade, ou por quaisquer outras for­ mas de exclusão de ilicitude ou mesmo de culpabilidade. Também as pessoas contraditadas têm o dever de depor e, assim, o dever de dizer a verdade (art. 214, CPP), podendo valer, em reerência a elas, no máximo e dependendo do caso concreto, as mesmas obsevações feitas relati­ vamente aos parentes obrigados a depor. Por fim, as pessoas citadas no art. 207 do CP, ou seja, aquelas para as quais vige a proibição do testemunho, quando desobrigadas pelo interessado, e desde que queiram, poderão depor, sob o dever de dizer a verdade. Note-se, em relação a estas últimas, que delas também não se exigirá o compromisso do art. 203 (promessa de dizer a verdade), conforme previsto na parte inal do art. 214, embora a própria lei (art. 207, in fine) faça menção expressa ao vocábulo testemunho, e não a declarações /ou informações. 9.2.3.6 Regras procedimentais gerais O processo penal inicia-se com o oferecimento e o recebimento da de­ núncia ou queixa, quando não for o caso de sua rejeição liminar, por questões processuais (art. 395, CPP). Note-se que, a partir da Lei nº 11.719/08, tanto a atpicidade (o ato maniestamente não constituir crime) quanto a extinção da punibilidade não constituem mais causa de rejeição da peça acusatória. Ao contrário, já por se ratarem de questões relacionadas com o mérito da ação 420 Curso de processo penal • Pacelli penal (ser o ato crime, ser o fato punível), deverá o juiz receber a denúncia ou queixa, citar o réu para a apresentação de defesa escrita, para, só então, absolver sumariamente o acusado (art. 397, CPP) . O anigo art. 43, CP, foi expressamente revogado. Nos Juizados Especiais Criminais poder-se-á pensar na rejeição da denúncia por razões de mérito (atipicidade, por exemplo), como ainda veremos. O rol de testemunhas deverá constar da petição inicial, isto é, da queixa ou da denúncia, havendo número máximo deinido nos vários procedimentos cabíveis (oito, no rito ordinário e na ase de acusação e de instrução prelimi­ nar nos processos do Tribunal do Júri, e cinco no rito sumário e no Plenário do Tribunal do Júri). Estas, incluídas no limite de arrolamento pelas partes, são denominadas testemunhas numerárias. Aquelas que nada souberem sobre os fatos (art. 209, § 21, CPP), bem como as referidas em outros depoimentos e as que não prestam compromisso não se incluirão no número limite do rol de testemunhas (art. 401, § 11, CPP). Nos Juizados Especiais Criminais, à falta de regra expressa, vem se en­ tendendo cabível a aplicação subsidiária do Código de Processo Penal, re­ lativamente ao procedimento sumário (para os crimes cuja sanção máxima cominada seja inferior a quaro anos - art. 394, § 11, II, CPP), permitindo­ -se, então, o número de cinco testemunhas. No processo da competência do Tribunal do Júri, com a redação dada pela Lei n1 11.689/08, as partes pode­ rão arrolar até oito testemunhas na fase da acusação e instrução preliminar - art. 406, CP, e seguintes), baixando para cinco testemunhas em Plenário (art. 422, CPP), o mesmo ocorrendo em relação ao processo ainente ao trái­ co de drogas (art. 55, § l', da Lei n• 1 1.343/06). É importante observar que o número de testemunhas diz respeito aos fatos imputados. Assim, se houver imputação da prática de mais de um crime, o número de testemunhas variará em relação à quantidade dos delitos. O li­ mite é, portanto, para cada fato. Do contrário, bastaria ao Ministério Público oferecer denúncias separadas, ali arrolando o número de testemunhas que lhe parecesse suiciente, para depois requerer o apensamente dos autos, seja em razão de conexão, seja em razão de continência entre os fatos. Além das pessoas arroladas pelas partes, o juiz também poderá determi­ nar a oitiva de testemunhas, quando julgar necessário ao esclarecimento de ponto sobre o qual esteja em dúvida, ou quando se tratar de pessoas mencio­ nadas em ouro depoimento (art. 209, § 11, CPP) . A dourrina costuma se re­ ferir a estas últimas como testemunhas referidas. Elas não integram o número Da Pova 421 máximo imposto às panes (an. 209), o mesmo ocorrendo com aquelas que nada souberem acerca dos fatos. O testemunho de quem se encontrar oa da sede do juízo será eito por meio de cana precatória (an. 222). Segundo o Código de Processo Civil, a expedição de precatória não suspenderá o prazo da insrução. Se expedida com prazo certo para o seu cumprimento, o julgamento somente será realiza­ do após o seu termo. Do contrário, poderá ser julgada a causa, juntando-se a precatória a qualquer tempo, após a sua devolução. Há aqui uma questão bastante problemática. É que, como se sabe, não pode haver inversão na produção da prova, isto é, não pode haver prova produzida pela acusação, sem a possibilidade de a deesa poder confrontá-la. Assim, não se pode pensar na juntada posterior de carta precatória de testemunha arrolada pela acusação, quando já ouvidas as testemunhas de defesa. Haveria violação ao contraditório e à ampla defesa. ensamos, aliás, que em tais situações, como o interrogatório é, agora, o último ato de defesa - e de instrução - a juntada de testemunho da acusação implicaria a possibilidade de renovação até mesmo do ato de interrogatório, se já realizado antes dela (juntada) . De outro lado, a Lei n1 1 1.900/09 autoriza a inquirição de testemunhas por videoconerência no cumprimento de cartas precatórias, de modo a a­ cilitar a participação dos interessados, sobretudo a defesa, garantida a pre­ sença de defensor (an. 222, § 31, CPP). ensamos que o juiz deverá designar deensor também na sede do juízo onde se realizará o ato de inquirição (isto é, além do defensor presente na sede do juiz da casa), do mesmo modo que ocorre com o interrogatório por videoconferência. Aliás, como o testemunho costuma ser muiíssimo mais relevante para a prova que o interrogatório do acusado, a presença de defensor nos dois ambientes (juízo deprecante e de­ precado) garantirá um mais efeivo exercício da ampla defesa. O Supremo Tribunal Federal irmou jurisprudência no sentido de ser dispensável a intimação, pelo juízo deprecado, da data da realização da au­ diência, bastando a intimação da epedição da precatória no juízo deprecante (STF - HC nº 79.446/S, DJU 1.6.2001). A partir daí, caberia ao advogado do acusado, quando constituído, tomar providências para o conhecimento e o comparecimento ao ato deprecado. Aludida decisão foi reerendada em Ple­ nário, no julgamento do E QO-RG/RS 602.543, Relator o Min. Cezar Peluso. Nada obstante, se, no local do juízo deprecado, houver intimações por meio 422 Curso de processo penal • Pacelli da imprensa, deverá constar expressamente o nome do advogado do réu, sob pena de nulidade. Não comparecendo a testemunha ao dia designado, sem motivo jusiica­ do, ela deverá ser conduzida coerciivamente, com o auxHio de força policial, se necessário (art. 218), sem prejuízo da imposição de multas e de processo por crime de desobediência (at. 219). No mesmo sentido, o disposto no art. 535, CP, segundo o qual nenhum ato será adiado, salvo quando imprescindível a prova faltante, determinando o juiz a condução coercitiva de quem deva com­ parecer. Ressalte-se que, no procedimento do Tribunal do Júri, há previsão do não adiamento do julgamento, como regra, excepcionando-se a hipótese de uma das partes tiver declarado não prescindir do depoimento da testemunha faltante, logo após a pronúncia (art. 461 c/c art. 422, CPP). A testemunha, enretanto, não é obrigada a comparecer à sede de juízo localizado fora da cidade onde reside. É por essa razão que, em regra, a com­ petência para a ação penal deve ser a do lugar do crime. As partes poderão conraditar a testemunha ou arguir circunstâncias ou deeitos que a tomem suspeita de parcialidade, ou indigna de fé (art. 214). A prova das apontadas circunstâncias ou defeitos deve ser feita imediatamente. Todavia, o juiz, ainda que reconheça a perinência da contradita, não deixará de tomar o seu depoimento, exigindo-lhe, inclusive, o compromisso da pro­ messa de dizer a verdade, consoante se vê no art. 214, úlima parte, salvo se se ratar das pessoas mencionadas no art. 207 (proibidas de depor) e art. 208 (doentes mentais, menores de 14, parentes mencionados no art. 206). A Lei n2 11.690/08 trouxe importante alteração no procedimento de in­ quirição de testemunhas. Ali se prevê que as perguntas das partes serão feitas diretamente à tes­ temunha, não admitindo o juiz aquelas que puderem induzir a resposta, não tiverem relação com a causa ou importarem a repetição de outra já respon­ dida (art. 212, CPP). E, mais ainda, prevê que o juiz poderá complementar a inquirição, sobre pontos eventualmente não esclarecidos (art. 212, parágrao único, CPP). Obseva-se, então, que a medida se encontra alinhada a um modelo acu­ satório de processo penal, no qual o juiz deve assumir posição de maior neu­ tralidade na produção da prova, evitando-se o risco, aqui já apontado, de tomar-se o magistrado um subsituto do órgão de acusação. Assim, as partes iniciam a inquirição, e o juiz a encerra. Da Pova 423 Eventual resistência do magistrado na adoção das atuais regras, isto é, na hipótese de permanecer o juiz iniciando a inquirição e só após permiindo a intetvenção das partes, não implicará nulidade do processo, a não ser que se demonstre o prejuízo ou a efetiva violação da imparcialidade do julgador. Não se pode pensar na anulação do processo unicamente como pedagogia procedimental. É nesse senido, decisão do Supremo Tribunal Federal (HC n• 103.525/PE, Rei. Min. Cármen Lúcia, 3.8.2010; HC n' 110.936/RS, Rei. Min. Cármen Lúcia, 25.9.2012). Já nos crimes da competência do júri, o art. 473, CP, com a redação dada pela Lei nª 1 1.689/08, dispõe de modo diferente, iniciando a inquirição pelo Juiz-Presidente. Não se esclarece, contudo, se igual procedimento seria ado­ tado também na ase de acusação e de instrução preliminar (art. 411, CPP). Por isso, e com o im de uniicar os procedimentos de inquirição de tes­ temunhas, pensamos que se deveria (ou dever-se-á) adotar sempre a fórmula prevista no art. 212, e seu parágrafo único, CP, como regra geral, ainada com uma leitura mais atualizada do processo penal. or último, regisre-se a existência de certas prerrogaivas deferidas a um sem-número de autoridades (art. 221, CPP), que poderão ajustar previamente com o juiz da causa o dia e o horário do depoimento, bem como, para algumas delas (art. 221, § 1°, CPP), a prerrogaiva de prestar depoimento por escrito. Ressalte-se, ainda, que os militares serão requisitados junto à autorida­ de superior (§ 22), e os funionários públicos serão intimados por manda­ do, devendo ser também comunicado o chefe da repartição pública em que servirem (§ 3°). A Lei nª 11. 900/09 insituiu o art. 222-A ao CP, cujo texto determina que "as cartas rogatórias só serão epedidas se demonstrada previamente a sua imprescindibilidade, arcando a parte requerente com os custos do envio". Como se sabe, a carta rogatória é o pedido dirigido à jurisdição de outro país para a prática de determinado ato processual. Por óbvio, o seu efetivo cumprimento não costuma ser tarea das mais simples, implicando, na maio­ ria esmagadora dos casos, o atraso e outros transtornos no processamento da ação penal. A exigência de imediata comprovação da necessidade da inquiri­ ção de pessoas fora do país nada tem de arbirária. No entanto, não poderá signiicar a exigência de antecipação de teses deensivas, cujo conteúdo só à defesa interesse. O que deve ser jusiicado é a importância do depoimento, no contexto fático objeto da prova. Assim, testemunhas que não tenham co­ nhecimento algum do fato, arroladas unicamente para atestar a idoneidade 424 Curso de processo penal • Pacelli moral ou o comportamento pessoal do agente, bem como outras ocasionais virtudes pessoais, não podem ser consideradas imprescindíveis. Somente caso a caso, poderá o juiz examinar a perinência da imprescindibilidade do de­ poimento, após o exame da natureza do crime, da complexidade ou não dos atos a serem demonstrados, e por fim, do conjunto de evidências já produ­ zido em juízo. De ouro lado, tratando-se de réu pobre, nada haverá de se exigir dele para o envio da rogatória. Por todas as razões. Incluindo a ampla defesa. 9.2.3.7 Proteção à testemunha: Lei n2 9.807 /99 A Lei n2 9.807, de 13 de julho de 1999, regulamentada pelo Decreto n2 3.518, de 20 de junho de 2000, instituiu o Programa de Proteção Federal de Assistência a Vítimas e a Testemunhas Ameaçadas, a ser desenvolvido no âmbito da União, dos Estados e do Distrito Federal, sob supervisão do Minis­ tério da Justiça, cuja finalidade é a proteção de víimas, testemunhas e até os réus colaboradores na invesigação de crimes. A referida legislação prevê, entre outras medidas, a alteração de nome e regisros da pessoa protegida (art. 9°); a segurança na residência, incluin­ do o conrole de telecomunicações; a suspensão temporária das aividades funcionais, sem prejuízo dos respectivos vencimentos ou vantagens, quando servidor público ou militar; o sigilo em relação aos atos praicados em virtude da proteção concedida (art. 2) etc. A proteção oferecida terá a duração de dois anos, podendo, excepcional­ mente, ser prorrogada (art. 11). l proteção levará em conta a gravidade da coação ou da ameaça à integridade ísica ou psicológica, a dificuldade de preveni-las ou reprimi-las pelos meios convencionais e a sua importância para produção da prova (art. 2°). Em relação aos réus, poderá o juiz, de oício ou a requerimento das par­ tes, conceder o perdão judicial e a consequente exinção da punibilidade ao acusado que, sendo primário, tenha colaborado voluntariamente com a in­ vestigação e com o processo criminal, se (e desde que) de tal colaboração se chegar à recuperação, total ou parcial, do produto do crime, à idenificação dos demais autores e/ou participes e à localização da vítima, com sua integri­ dade ísica preservada (art. 13). É prevista também, ainda em relação ao réu colaborador, a redução da pena, de um terço a dois terços, quando atingidas as inalidades anteriormente Da Pova 425 mencionadas (art. 14) e na hipótese de sentença condenatória. Havendo ab­ solvição, não se poderá cumprir acordo de delação para redução da pena somente em relação ao colaborador. Na hipótese do art. 13, do perdão judicial, dentre os requisitos para a extinção da punibilidade, se encontra o da primariedade do réu e da preser­ vação da integridade física da víima. Já no art. 14, para o qual é cabível a redução de pena, não se prevê a primariedade, satisfazendo-se o dispositivo, ainda, com a recuperação com vida da vítima. É o que ocorre com a Lei n1 9.613/98, com redação dada pela Lei nª 12.683/12 (Lavagem de Ativos); com a Lei nª 1 1.343/06 (Tráico de Drogas); com a Lei nª 7.492/86 (art. 25, crimes contra o sistema inanceiro nacional), além, é claro, da Lei nª 8.072/90 (Crimes Hediondos) e da Lei nª 12.850/13 (Crimes Praicados por Meio de Organizações Criminosas). As referidas leis não estabelecem o rito procedimental para a delação ou colaboração premiada. Nem quando preveem o perdãojudicial para o réu cola­ borador primário e nem quando se rata da redução da pena de um a dois terços. Por isso, pensamos que deverão ser aplicadas as normas previstas na Lei n1 12.850/13, a pair do art. 11 e seguintes, nos quais se especificam os ri­ tos e providências a serem adotados nas hipóteses de colaboração premiada. Assim, remete-se para lá o leitor, que ali enconrará uma detida análise da matéria (item 14.7.8). Por im, e evidentemente, não será necessária a concorrência simultânea de todos os objetivos declinados, até porque, em determinados crimes, isso nem sequer será possível. A Lei nª 12.483/11, modificando a Lei n1 9.807/99, dispõe sobre a priori­ dade na tramitação do inquérito policial e do processo criminal em que haja pessoas protegidas por aquela lei (vítima, réu colaborador, testemunha, indi­ ciado), bem como acerca da inquirição antecipada das aludidas pessoas após a citação do réu no processo (art. 19-A). E mais. Dispõe que, qualquer que seja o rito procedimental adotado, o juiz deverá antecipar o depoimento das pessoas incluídas no Programa de Proteção prevista na Lei n2 9.807/99, a fim de tomar mais eicazes as medidas de tutela. A merecer registro, nesse espaço, decisão da 1ª Turma do Supremo Tri­ bunal Federal no sentido de aplicação - e, assim, da consitucionalidade - do art. 71, , da citada Lei n2 9.807/99, garantindo a preservação da identidade 426 Curso de processo penal • Pacelli e, por isso, a omissão do nome de testemunha em peça de denúncia e tam­ bém no libelo-acusatório, em razão da gravidade dos fatos (homicídios ri­ plamente qualiicados), imputados a agentes do Poder Público responsáveis pela Segurança Pública (policiais e guardas municipais) e da necessidade de se efeivar uma mais adequada proteção das pessoas que atestaram os atos. Trata-se do julgamento do RHC n' 89.137, de 20.3.2007, DJU 29.6.2007, Rei. o Min. Carlos Ayres Brito, vencido o Min. Marco Aurélio, que devolvia o conhecimento da matéria ao STJ. A medida, como se vê, há de ser excepional, bem observadas as carac­ terísticas e a gravidade de cada caso concreto, e dependerá, por exigência constitucional, da efeiva participação da deesa (técnica e autodefesa) na inquirição das testemunhas, para que, somente assim, se possa airmar a au­ sência de prejuízo aos acusados, tal como ocorreu no itado julgamento. A se considerar, aqui, e então, as atuais regras razidas com a Lei n2 1 1.900/09, no ponto em que preveem a inquirição por videoconferência de testemunhas presas (art. 185, § 8°, CPP) ou por ocasião de inquirição via carta precatória, conforme se acha disposto no art. 222, § 31, do CP. Cabível, também, e até por força de disposição inteiramente pertinente, a inquirição por videoconferência prevista no art. 185, § 2°, III, a estabelecer tal modalida­ de de ato em razão da inluência de ânimo (temor, intimidação etc.) causada pela presença do acusado. Isso, é claro, se não osse suficiente o quanto se contém no art. 217 do CP. 9.2.4 Da prova pericial No sistema processual da prova tarfada, ou da prova legal, cada meio de prova tinha valor previamente previsto, de tal maneira que somente quando atingido o mínimo legal é que se poderia proerir decisão condenatória. Nesse sentido, havia, com certeza, uma hierarquia de provas, a significar que deter­ minada espécie probatória era superior a outra. O nosso atual modelo processual, como já tantas vezes mencionado, não trabalha com a ideia da existência de uma hierarquia de provas, tendo em vis­ ta que o juiz atua com liberdade de convencimento, dele se exigindo apenas a moivação do julgado. A prova pericial, antes de qualquer outra consideração, é uma prova téc­ nica, na medida em que pretende certificar a existência de fatos cuja certeza, segundo a lei, somente seria possível a partir de conhecimentos específicos. Da Pova 427 Por isso, deverá ser produzida por pessoas devidamente habilitadas, sendo o reconheimento desta habilitação eito normalmente na própria lei, que cuida das proissões e atividades regulamentadas, fiscalizadas por órgãos regionais e nacionais. Normalmente, o próprio Poder Público tem em seus quadros de carrei­ ras os peritos judiciais, responsáveis pela realização das perícias solicita­ das pela jurisdição penal. São os chamados peritos oiciais. A partir da Lei n1 1 1.690/08, a perícia poderá ser realizada por apenas um perito oficial, portador de diploma de curso superio, salvo quando o objeto a ser periciado exigir o conhecimento técnico em mais de uma área de conhecimento espe­ cializado (art. 159, caput, e § 7°, CPP). Na hipótese de ausência de perito oicial na comarca ou no juízo, o exa­ me será realizado por duas pessoas idôneas, necessariamente portadoras de diploma de curso superior, preferencialmente na área especíica, dentre aque­ las que tiverem habilitação técnica relacionada com a natureza do exame (art. 159, § 1°, CPP). Cumpre observar, porém, que a exigência de ormação superior não deve ser entendida como um tributo desmedido ao ensino oficial, ou no sentido de que apenas ele (ensino oficial) se mostraria suiciente para insrumentalizar o conhecimento. Na realidade, semelhante imposição visa apenas a resguardar o convencimento judicial, estabelecendo um critério objeivo de formação da certeza. or isso, a expressão "preferencialmente", relativamente ao curso es­ pecializado, deve ser levada a sério, para que não sejam indicados quaisquer bacharéis, unicamente pelo fato de terem formação superior. No que se refere ao ráfico de drogas e entorpecentes, observa-se que, já desde a Lei n1 1 1 .343/06, não se exigia a presença de dois peritos oiciais no caso de exame de constatação da natureza da substância entorpecente, previsto no art. 50, § 11, exame esse necessário apenas para a lavrarura da prisão em flagrante e do oferecimento da denúncia. Nos termos do citado dispositivo, não havendo perito oicial, o laudo de constatação (provisório) poderá ser elaborado por pessoa idônea. Embora a respectiva legislação (de drogas) não airme de modo expresso, há de se exigir da tal pessoa idônea um nível razoá­ vel de habilitação técnica para a matéria. Com a alteração das regras gerais para a realização da perícia no CP, também não se deverá exigir a presença de dois peritos para o laudo dei­ nitivo em caso de tóxicos. Referida exigência existia em razão da aplicação subsidiária do CPP à referida legislação especial (de Drogas). 428 Curso de processo penal • Pacelli Embora estejamos de acordo em relação à inexistência de uma hierarquia de provas, pensamos que, diante das inúmeras diiculdades sempre presen­ tes na reconstrução da verdade, qualquer que seja o seu campo de conhe­ cimento, a nossa legislação exibe uma preocupação com uma especicidade de prova para a comprovação de determinados atos. E não vemos qualquer inconveniente em se exigir maior grau de certeza quanto à formação do con­ vencimento judicial. No contexto de um processo penal garantsta, em deter­ minados casos, essa exigência revela-se até como uma necessidade. Releva notar, como já explicitamos, que especiicidade da prova não é o mesmo que hierarquia, já que não se rata da airmação prévia acerca da superioridade de uma em relação a outra. Trata-se, na verdade, do reconhe­ cimento da incapacidade de determinados meios nominados (previstos ex­ pressamente na lei) para gerar uma certeza mais segura, em relação a fatos especicos. Ora, se a prova testemunhal já tem os seus problemas até no que se refere aos crimes nos quais ela é mais requentemente utilizada, parece-nos mesmo recomendável a adoção de maiores cuidados quando se tratar de atos cuja prova da existência reclame uma opinião especializada. O falso documental, por exemplo, demanda a paricipação de prova técnica, quer quanto à com­ provação do falso, quer quanto à indicação de autoria. Não bastasse, é o próprio Código de Processo Penal que comina de nuli­ dade a ausência de corpo de delito, quando a inração iver deixado vestígio e este não iver desaparecido (art. 564, III, b). Na leitura do apontado dispositivo, percebe-se a exigência de prova es­ pecica para determinados delitos, ou, nos termos do art. 158, "quando a in­ fração deixar vestgios". í será indispensável o exame de corpo de delito, não podendo supri-lo a conissão do acusado, segundo o mesmo artigo, quando não desaparecidos os vestígios. A ressalva ali referida, a do exame de corpo de delito indireto, não inirma a regra da especiicidade, porquanto apenas será aplicada quando inexistentes ou desaparecidos os vestígios deixados pela inração. Antes de prosseguirmos, é necessário fazer algumas considerações. Há quem sustente até a revogação do art. 158, ao argumento de que ele estaria "arranhando os princípios da liberdade probatória e do livre convencimento do juiz, dicultando a busca da verdade real" (MIBETE, 2001, p. 416). O ilustre autor faz referência à doutrina de Luiz Vicente Cemicchiaro, acerca do feti­ chismo dos meios probatórios. Da Pova 429 Ora, rigorosamente, não é nada disso. A exigência de prova técnica somente haverá de ser eita quando a exis­ tência de determinado elemento do crime só puder ser provada por meio de conhecimento técnico. O mencionado dispositivo, ainda que esse tenha sido eventualmente o seu propósito primiivo, não pode ser lido como a consa­ gração tardia da evolução cientíica da tecnologia probatória. Ora, sabemos todos quão precárias são todas e quaisquer ciências para nos curvarmos, irre­ fletida e acriticamente, à certeza cientíica. Se houver um fato, qualquer fato, cuja existência, a senso comum, ao al­ cance do conheimento dito vugar, pode ser comprovada por outro meio de prova, qualquer prova, não haverá de se falar na prova específica. O especico que izemos acompanhar o vocábulo prova estará sempre na dependência da natureza do delito e dos fatos a serem provados, como ocorre, por exemplo, no exame cadavérico, na identificação de arcada dentária etc. Também a legislação processual civil contempla a apontada especiici­ dade, quando, no inal do art. 335, faz ressalva de eventual necessidade de perícia técnica. Do mesmo modo, o at. 155 do CPP faz exigências quanto ao meio de prova de atos relativos ao estado das pessoas, como já demonstra­ mos (item 9.1.3.3). Na linha do que sustentamos, o estupro, por exemplo, não dependerá da prova pericial, nem quanto à efetiva existência da conjunção canal ou de qualquer outro ato libidinoso, nem quanto à autoria, pelo exame de sêmen, quando o ato for presenciado por testemunhas. Estas, se maiores, terão cer­ tamente perfeito conhecimento acerca do ocorrido para atestar a existência de penetração não consentida e para o reconhecimento da pessoa. Nesse caso, a prova, apesar da presença de vestígios, não será especiicamente técnica. O caso, então, não é de revogação do art. 158, mas de sua interpretação conforme a Constituição. E a Lei nP 1 1 .690/08, em boa hora, institui o contraditório para a prova pericial, reservado, contudo, à fase de instrução e não à ase de investigação, como se verá. 9.2.4.1 O exame de corpo de delito Se deixar vestígios a inração, a materialidade do delito e/ou a extensão de suas consequências deverão ser objeto de prova pericial, a ser realizada 430 Curso de processo penal • Pacelli diretamente sobre o objeto material do crime, o corpo de delito, ou, não mais podendo sê-lo, pelo desaparecimento inevitável do vestígio, de modo indireto. O exame indireto será eito também por perito oficial, só que a partir de informações prestadas por testemunhas ou pelo exame de documentos relati­ vos aos fatos cuja existência se quiser provar, quando, então, se exercerá e se obterá apenas um conhecimento técnico por dedução. Nesse ponto, estamos com a doutrina de Tomaghi (1959, v. 4, p. 277) e com Greco Fillio (1999, p. 222), que não veem na regra do an. 167 (não sen­ do possível o exame de corpo de delito, pelo desaparecimento dos vesígios, a prova testemunhal poderá suprir-lhe a falta) uma espécie de exame de corpo de delito indireto. Para aqueles autores, nesse caso, do an. 167, a prova será exclusivamente testemunhal, com o que estamos de pleno acordo. Esclare­ cendo: o exame de corpo de delito será direto ou indireto, sendo realizado, em qualquer caso, por perito. Na impossibilidade de realização do exame de corpo de delito, seja direto ou indireto, é que a prova testemunhal poderá substituí-lo. Portanto, exame de corpo de delito (direto ou indireto) e a possi­ bilidade de sua subsituição por prova testemunhal são situações que não se confundem, não se devendo tratar, como boa parcela da doutrina tem feito, a subsituição do exame de corpo de delito pela prova testemunhal como se exame indireto osse. A prova pericial se faz por meio da elaboração de laudo ténico, pelo qual o(s) epert(s) responderão às indagações e aos esclarecimentos requeridos pelas partes e pelo juiz, por meio de quesitos. Vejamos o que diz o atual CPP sobre a matéria. Em primeiro, por facultar, expressamente, a possibilidade de as partes, Ministério Público, querelante, assistente de acusação e acusado formularem quesitos e indicarem assistente técnico, que atuará a partir de sua admissão pelo juiz e somente após a conclusão dos exames e elaboração do laudo pelo perito oicial, com intimação das partes (art. 159, § 32 e § 2). É dizer: os assistentes técnicos somente ingressarão no processo na fase instrutória e após sua admissão pelo juiz. E mais. s partes deverão, por oca­ sião da defesa escrita (se já estiver realizada a perícia oficial) e antes da au­ diência de instrução (arts. 400 e 531, CPP), indicar assistentes técnicos, bem como requerer a inquirição do perito oicial para esclarecimentos, mediante a apresentação de quesitos para resposta (art. 159, § 52, 1, CPP). Exige-se, ainda, o prazo de dez dias de antecedência. Note-se que, no procedimento ordinário (art. 400, CPP), a audiência deverá ser designada no prazo máximo Da Pova 431 de 60 dias (art. 400, caput, CPP), enquanto no rito sumário o prazo será de apenas 30 dias (art. 531, CPP). Em qualquer caso, o marco inicial para a sa­ tisfação dos prazos procedimentais antes mencionados seria após a apresen­ tação da defesa escrita (art. 396-A, CPP). Embora o art. 159, § Sl, airme que a atuação das partes em relação à perícia se daria "durante curso do processo judicial", pensamos que uma in­ terpretação sistemática da matéria conduziria à seguinte conclusão, a saber: (a) quando se ratar de perícia já realizada na fase de invesigação, a defesa deverá se manifestar sobre as providências a ela acultadas por ocasião da apresentação da defesa escrita (art. 396-A, CPP); (b) quando a perícia se rea­ lizar já em juízo, o prazo a ser obedecido será apenas aquele de antecedência da audiência a ser designada (art. 159, § 5l, 1, CPP). Quando possível a conservação do material a ser periciado, o exame dos assistentes técnicos deverá ser feito na presença do perito oicial (art. 159, § 6°, CPP). Há, ainda, na Lei n2 ll.690/08, uma previsão inteiramente desconectada com o sistema geral de partes no processo penal. Ali se prevê que também o ofendido poderia formular quesitos e indicar assistente técnico (art. 159, § 3°, CPP). O texto fala no "ofendido" e também no "assistente de acusação" como se fossem pessoas diferentes. Ora, como o assistente de acusação, enquanto presente, é o ofendido, nos termos do art. 268, CP, o que se pode compreender do referido texto é que este, o ofendido, ainda quando não habilitado como assistente da acusação, poderia participar da prova pericial. Ou seja, teria sido prevista uma "assistên­ cia limitada". Do ponto de vista da validade da norma, não temos muito o que objetar, desde que a atuação do ofendido somente seja possível nas hipóteses em que também cabível a assistência (ver item 10.6). Do contrário, haveria desequilíbrio de forças no processo, em prejuízo da defesa. Por im, observa-se que o juiz, dentro de seu livre convencimento, não estará adstrito ao laudo apresentado, podendo rejeitá-lo, no todo ou em parte (an. 182). Nesse caso, tratando-se de inração que deixa vestígios e estando estes ainda presentes, o juiz deverá nomear novo perito, se de prova exclusi­ vamente técnica se cuidar (t. 181). No caso da lesão corporal prevista no art. 129, § 1l , 1, do C, será neces­ sária a realização de exame pericial complementar, se ainda presentes os ves­ tígios, logo após o prazo de 30 dias, contados da data do crime, para que se saiba acerca do tempo de incapacidade provocada pelo delito. Evidentemente, 432 Curso de processo penal • Pacelli se no laudo inicial já estiver conirmada a incapacidade permanente, não será necessária a elaboração de novo laudo. 9.2.4.2 Outras perícias Além da prova pericial realizada, direta ou indiretamente, sobre o corpo de delito, como ocorre para a comprovação do óbito, da falsidade documen­ tal, que demonsram a existência da materialidade do delito, há outras que também se revelam necessárias para o esclarecimento de questões igualmente relevantes. Essas são as perícias realizadas para a demonsração de circunstâncis do crime (modo, tempo de execução etc.), que, inclusive, poderão ser úteis na identiicação da autoria, como ocorre com o exame de balística, bem como de todos aqueles realizados sobre o insrumento do delito, como a autópsia (art. 162), a perícia realizada no local do crime (em caso de incêndio, por exemplo) e, por im, com os exames laboratoriais (art. 170). Quando se tratar de crime praticado com rompimento de obstáculo ou destruição de coisas, ou por meio de escalada, a prova periial será neces­ sária até mesmo para a definição do tipo penal, que poderá ser qualiicado (art. 155, § ', CP). Nas perícias de laboratório, os peritos deverão guardar material suicien­ te para a eventualidade de nova perícia (at. 170). Semelhante disposição, como se observa, tem destinatário certo: o contraditório. 9.2.4.3 Prova pericial e contraditório Como regra, vimos que todas as provas devem se submeter ao contra­ ditório, devendo também ser produzidas diante do juiz, na fase insnutória. Isso porque a prova produzida na ase investigatória tem por objetivo o con­ vencimento e a ormação da opinio delicti do órgão da acusação. Recebida a denúncia ou queixa, todas elas, em princípio, deverão ser repeids. Ocorre, entretanto, que muitas vezes se faz necessária a produção ime­ diata da prova pericial, antes do encerramento da ase de invesigação, até mesmo para a comprovação da materialidade do delito e identiicação de sua autoria. Por isso, em razão da natureza cautelar que inorma tais provas, não será possível (e nem há previsão legal) a participação da defesa na produção da Da Pova 433 prova. E mais: a prova também não será produzida diante do juiz, porque ainda não provocada a jurisdição. Relembre-se de que a atuação do juiz na fase pré-processual é permitida apenas na tutela das liberdades públicas e dos direitos e garantias individuais, bem como do controle cautelar da efetividade do processo. Nesses casos, ala-se no contraditório diferido. Desnecessário insistir na inconveniência de nosso modelo de investi­ gação criminal. É claro que determinadas medidas devem mesmo ser en­ cetadas sem o conhecimento e sem a participação da defesa, sob pena de inviabilização completa da persecução penal. Mas a prova pericial deveria, sempre que possível, contar com a contribuição e a fiscalização da defesa, desde o início, para a garantia não só do contraditório, mas sobretudo da amplitude da defesa. No ponto, a Lei nº 11.690/08, embora portadora de grandes inovações, sobretudo no que respeita à possibilidade de participação do assistente téc­ nico indicado pelas partes, não resolveu o problema essencial. E isso porque a atuação da defesa sobre o objeto periciado somente será possível após a elaboração do laudo oficial e quando já em curso a ação penal, isto é, depois da fase de investigação. Consulte-se, a respeito, o disposto no art. 159, §§ ° e 5°, CP. Em tais situações, uma vez produzida a prova pericial, o contraditório somente será realizado já perante a jurisdição, e limitado ao exame acerca da idoneidade do(s) proissional(is) responsável(is) pela perícia e das conclu­ sões por ele(s) alcançada(s), quando já perecido o material periciado. Nesse campo, o objeto da prova, na maior pate das vezes, será a qualidade técnica do laudo, e, particularmente, o cumprimento das normas legais a ele perti­ nentes, por exemplo, a exigência de moivação, de coerência, de atualidade e idoneidade dos métodos etc. Evidentemente, a hipótese a que agora estamos nos referindo é aquela em que não há mais a possibilidade de realização de nova pericia, ou seja, quando não existir mais o objeto periciado, por alteração do estado de coisas ou pelo desaparecimento da própria coisa. Não tendo esse perecido ou se modificado, é perfeitamente possível, e mesmo indispensável, a repetição da prova. Regisre-se, ainda, que nos crimes de falsidade documental, o desapare­ cimento do corpo de delito não só inviabilizará o novo exame pericial, como, mais que isso, aastará, por completo, a própria prova da materialidade do delito, impondo-se a absolvição. 434 Curso de processo penal • Pacelli 9.2.5 Ds perguntas ao oendido Como já afirmamos, o ofendido não integra o rol de testemunhas da acusação, por não poder ser considerado, rigorosamente, testemunha. Em consequência, não tem o compromisso de dizer a verdade (art. 203, CPP), prevendo a lei, entretanto, a sua condução coercitiva se, quando regularmen­ te inimado, não comparecer em juízo. Tourinho Filho afirma que o oendido não pode ser sujeito ativo do crime de falso testemunho, e que teria ele, inclusive, o direito ao silêncio (1992, 3, p. 259). . Com o devido respeito, não aderimos, em hipótese alguma, a este último entendimento, relativo ao direito ao silêncio do ofendido. É certo que o ofen­ dido deve merecer um tratamento distinto daquele reservado às testemunhas, diante de sua situação de víima de uma inração penal, cujos efeitos já são suficientemente danosos. Entretanto, é bem de ver que, em muitas oportuni­ dades, é a palavra do ofendido que irá fazer nascer a persecução penal, geran­ do consequências também danosas para aquele acusado da prática do delito. Nessa hipótese, tendo sido ele o responsável pela instauração da investigação policial e da ação penal, é perfeitamente compreensível que a lei acautele-se contra eventuais denunciações caluniosas, para o que já existe até um tipo pe­ nal especíico (art. 339, CP). Por isso, quando o ofendido atribui a alguém a prática de um crime, pen­ samos que ele tem o dever de depor, sempre que intimado, pois, ao inal, po­ derá vir a ser apurada a sua responsabilidade penal pela alsa imputação de crime. É claro que, na hipótese de vir ele a ser processado pela denunciação caluniosa ou qualquer outro tipo resultante da falsa atribuição de crime a ourem, o direito ao silêncio naquele processo lhe será assegurado, mas isso apenas na posição de acusado e não de acusador. E mais: o seu depoimento, como meio de prova que é, deve sempre se realizar sob o conraditório, permitindo-se a ampla participação da defesa, por orça imperativa da vigência das normas constitucionais posteriores ao nosso Código de Processo Penal de 1941. De se ver, então, a possibilidade de inquirição do ofendido por meio de videoconerência, seja quando estiver ele mesmo preso (art. 185, § 82, CP, com redação dada pela Lei n2 11.900/09), seja quando estiver solto, no caso de cumprimento de carta precatória, expedida para a inquirição de testemu­ nhas (art. 222, § 3., CP, Lei nº 1 1.900/09). Mais sobre o tema, ao exame do item 9.2.1.3. Da Pova 435 Semelhante conclusão assume relevânia ainda maior no que se refere aos chamados crimes conra a dignidade sexual, quando a palavra da vítima é sempre de capital importância, para fins de condenação. Naturalmente que tais obsevações se dirigem absratamente à igura do ofendido, sem consideração, portanto, a qualquer hipótese concreta. Casos haverá, é certo, em que a "não participação" da víima poderá ser explicada, e bem explicada, por razões perfeitamente compreensíveis, quando, então, não se poderá submetê-la, mais uma vez, ao constrangimento de ter que se submeter à presença de seu algoz. Em tais situações, a conduta de alheamen­ to ao processo será plenamente justificada, não constituindo ilícito algum. Esclareça-se que estamos nos referindo aos crimes de ação penal incondicio­ nada, pois nas ações condicionadas caberá ao oendido a representação. De outro lado, diz a lei que o ofendido será comunicado dos atos proces­ suais relativos ao ingresso e à saída do acusado da prisão, à designação de data para audiência e à sentença e respectivos acórdãos que a mantenham ou modiiquem (art. 201, § 2°, CPP). E que a aludida comunicação será feita até mesmo por meio eletrônico se ele assim o desejar (art. 201, § 3°, CPP). Tudo muito bem se tudo conigurar faculdade disposta em favor do ofen­ dido. Ou seja, se ele realmente estiver interessado no andamento do processo. Certamente em muitos e muitos casos tal não ocorrerá. ensamos que o juiz deverá consultá-lo antes de submetê-lo ao acompanhamento forçado do pro­ cesso penal. Havendo interesse, comunica-se; não havendo, segue-se. Digna de nota também é a norma prevista no art. 201, § 6°, CP, que prevê a possibilidade de decretação de segredo de justiça em relação a dados, depoimentos e ouras informações relativas à pessoa do ofendido, para evitar sua exposição aos meios de comunicação. Esperamos que seja frequentemen­ te utilizada a opção, preservando-se também o nome do acusado contra juízos deiniivos forjados na experiência midiática. E, mais, por im: (a) será reservado espaço separado para o ofendido nas audiências (t. 201, § 40, CPP); b) o ofendido poderá ser encaminhado à assistência psicossocial, jurídica e de saúde, às expensas do Estado (art. 201, § 5°, CPP). Propósitos nobilíssimos... 9.2.6 Do reconhecimento de pessoas e coisas Não vemos, aqui, qualquer necessidade de mais explicações ou explicita­ ções: trata-se de mero procedimento, tendente à ideniicação de pessoas, de 436 Curso de processo penal • Pacelli alguma maneira envolvidas no fato delituoso, e de coisas, cuja prova da exis­ tência e individualização seja relevante para a apuração das responsabilidades. O procedimento previsto no art. 226, III, do CP, fundado no receio que a testemunha possa ter em relação à pessoa a ser reconhecida, é eito de modo sigiloso, isto é, impedindo que o reconhecido possa ver aquele que o reconhe­ ce. Em razão disso, a própria legislação estabelece não ser possível tal proce­ dimento em juzo (art. 226, parágrafo único), em obediência às exigências da ampla defesa. O reconhecimento fotográico não poderá, jamais, ter o mesmo valor pro­ batório do reconhecimento de pessoa, tendo em vista as dificuldades notó­ rias de correspondência enre uma (fotograia) e outra (pessoa), devendo ser utilizado este procedimento somente em casos excepcionais, quando puder servir como elemento de conirmação das demais provas. Há decisões na Su­ prema Corte admitindo o reconhecimento fotográfico (RT nª 739/546). Já o reconhecimento de pessoa por meio de itas de vídeo deve merecer maior força de evidência probatória, diante da possibilidade concreta de re­ conhecimento da imagem da pessoa, em posições diferentes, tudo a depender, porém, do caso concreto. Nos termos da Lei n2 11.719/08, que alterou as regras de procedimento do Código de Processo Penal, o reconhecimento de pessoa, tal como os demais atos de instrução, é realizado na audiência una de instrução, em face da con­ centração dos atos processuais penais (arts. 400 e 531, CPP). Nesse caso, não haverá o sigilo no reconhecimento, reservado apenas à fase de investigação. 9.2.7 Da acaeação A acareação é o típico procedimento de índole inimidatória. No mais das vezes, presta-se apenas a revelar um maior ou menor grau de temor de uma testemunha em relação a oura. E o que é pior: a lei prevê a possibilidade de acareação até entre o acusado e as testemunhas, quando se sabe que um (o réu) não tem qualquer compromisso com a verdade, enquanto o outro (a tes­ temunha), sim! Em tais hipóteses, a acareação revela-se não só impertinente, mas absolutamente sem sentido. Isso sem alar, é óbvio, na hipótese em que o acusado tenha exercido o direito ao silêncio em juzo, apesar de ter sido ouvido na ase investigatória. Ora, o depoimento prestado pelo réu na ase de inquérito não tem qualquer valor quando não conirmado em juzo. Assim, nessa hipótese, se o réu, na Da Pova 437 fase insrutória, deixar de comparecer ao interrogatório, exercendo o seu di­ reito ao silêncio, não vemos como se possa submetê-lo ao procedimento de acareação. arece-nos, então, que a acareação somente poderá ocorrer entre teste­ munhas, e entre testemunhas e o oendido, ou entre os ofendidos, já que es­ tes têm o dever de depor e poderão ser responsabilizados criminalmente por eventual falsidade nos seus depoimentos. s testemunhas, pelo crime de falso testemunho (art. 342, CP), e o ofendido, pelo crime de denunciação caluniosa (art. 339, CP), sem prejuízo do crime de desobediência (art. 330, CP), cabível em relação a ambos. O procedimento de acareação pode ser realizado tanto na ase de investi­ gação quanto durante a instrução criminal, razão pela qual é de todo conve­ niente que as respectivas autoridades somente liberem as testemunhas após o depoimento de todas elas. Assim, a acareação poderá ser realizada ime­ diatamente após os testemunhos. Consoante os termos da Lei nº 11.719/08, também a acareação é realizada na audiência una de instrução, em face da concentração dos atos processuais (arts. 400 e 531, CPP). 9.2.8 Dos documentos Desde que obseVado o princípio do contraditório, será sempre possível a juntada de documentos, em qualquer fase do processo (art. 231, CPP), à exceção da fase de plenário do julgamento pelo Tribunal do Júri, se o docu­ mento não tiver sido apresentado com a antecedência mínima de três dias (art. 479, CPP). A noção de documento deve ser a mais flexível possível, porque depen­ dente do conteúdo que se quer com ele demonsrar. O que realmente importa, para ins de relevância probatória, é a sua originalidade. Daí dispor o art. 232 que se consideram documentos quaisquer escritos, insrumentos ou papéis, públicos ou pariculares, reconhecendo-se o mesmo valor à fotograia (ou à reprodução, à cópia, enim) do documento, desde que devidamente autenti­ cada (art. 232, parágrafo único). Deve-se, então, entender como documento qualquer manifestação mate­ rializada, por meio de graia, de símbolos, de desenhos e, enim, que seja uma forma ou expressão de linguagem ou de comunicação, em que seja possível a compreensão de seu conteúdo. 438 Curso de processo penal • Pacelli Tratando-se de escritos em língua estrangeira, parece-nos indispensável a atuação do radutor, ainda que o juiz da causa tenha conhecimentos sobre o respecivo idioma. Eis, aqui, talvez, outro exemplo da existência de uma certa especiicidade da prova no processo penal, ao menos no que diz respeito à liber­ dade de convencimento do juiz. s partes têm direito à compreensão integral do conteúdo do documento a ser judicialmente valorado, razão pela qual é de se exigir, até mesmo para se presevar a imparcialidade do juiz, a presença de um tradutor cujo conhecimento da matéria seja oicialmente atestado. Ainda no campo do livre convencimento do juiz, permite-se a ele a requi­ sição, de ofício e na fase de instrução, de documento cuja existência tenha chegado ao seu conhecimento, quando necessário para resolver dúvida sobre ponto relevante do material probatório (art. 156, II, CPP). Repita-se, porém, a inconstitucionalidade do quanto disposto no art. 156, 1, do CP, com redação dada pela Lei nº 1 1.690/08. Oura questão: costuma-se indagar acerca da validade de um documento, geralmente público, no qual, perante terceiros, incluindo oiciais de cartórios, determinada pessoa presta depoimento sobre um fato criminoso que teria presenciado. Isso pode ocorrer em razão de eventual receio da testemunha ou quando se ratar de testemunha não incluída no rol oerecido em juízo. Pois bem. Quanto à validade, ela evidentemente pode estar presente. Entretanto, presta-se unicamente a demonstrar o fato de ter alguém comparecido na pre­ sença de outro e ali airmado o que consta no documento. Em nenhuma hi­ pótese pode-se extrair a veracidade do fato afirmado, mas tão somente de sua airmação. É, inclusive, o que se contém nos arts. 364 e 368, parágrafo único, ambos do CPC, aplicáveis, se necessário, por analogia. E não é só: a prova, no que se refere ao seu valor de prova testemunhal, careceria de validade por não ter sido realizada em contraditório, como nos parece evidente. Por último, merece menção e aplausos a vedação de apresentação de ma­ terial jonalístico ou de mídia, em geral, no procedimento do Tribunal do Júri. Em primeiro lugar, porque não se trata, efetivamente, de documento. Em segundo lugar, porque o Tribunal do Júri, integrado por jurados sem conhe­ cimento técnico Qurídico), não tem o dever de fundamentação da decisão. Assim, o poder de convencimento de uma matéria jornalística fugiria ao con­ trole naquele tribunal, para além do fato de não constituir, rigorosamente, matéria de prova. Da Pova 439 9.2.9 Dos indícios Na verdade, o indício mencionado no art. 239 do CPP não chega a ser propriamente um meio de prova. Trata-se, antes disso, da utilização de um raciocínio dedutivo, para, a partir da valoração da prova de um fato ou de uma circunstância, chegar-se à conclusão da existência de um outro ou de uma outra. Com efeito, pelo indício, airma-se a existência do conhecimento de uma circunstância do fato delituoso, por meio de um processo dedutivo cujo objeto é a prova da existência de outro fato. arte-se, então, para um juízo de lógica dedutiva para a valoração de cir­ cunstâncias que estejam relacionadas com o ato em apuração. A prova indiciária, ou prova por indícios, terá a sua eiiência probatória condicionada à natureza do fato ou da circunstância que por meio dela (prova indiiária) se pretender comprovar. Por exemplo, tratando-se de prova do dolo ou da culpa, ou dos demais elementos subjetivos do tipo, que se situam no mundo das ideias e das intenções, a prova por indícios será de grande valia. Efeivamente, não há como demonstrar, como prova material, o que não pode ser materializado. Quem, conscientemente, desfere uma facada em ou­ trem, tanto pode estar querendo produzir o resultado morte quanto poderá estar pretendendo abater temporariamente o adversário, em meio a uma bri­ ga ou tumulto. O elemento subjetivo da conduta somente poderá ser aferido por meio da constatação de todas as circunstâncias que envolverem o fato, a parir das quais será possível se chegar a alguma conclusão. E esta somente será obtida, quando possível, pela via do processo dedutivo, com base nos elementos onecidos pelas regras da experiência comum, informadas pelo que ordinariamente acontece em situações semelhantes. Quando, ao conrário, pretender-se, com os indícios, demonsrar fatos ou circunstânias que podem normalmente se reduzir à prova material, tais como a autoria, e sobretudo correndo o risco de ser redundante, a materialidade, o valor probatório dos indícios haverá de ser muito reduzido, quando nenhum. Nesse campo, é bom lembrar que o próprio Código de Processo Penal não faz referência expressa a fatos, mas, sim, a circunstâncias, com o que não se deve aceitar a prova da existência do rime ou da autoria por meio de simples provas indiciárias, que são circunstanciais por excelência. Nesses casos, elas deverão ser consideradas o que verdadeiramente são: indícios. 440 Curso de processo penal • Pacelli Como dissemos anteriormente, os indícios não se qualiicam, a rigor, como meio de prova; nada obstante, apresentam ou podem apresentar a mes­ ma consequência, no que diz respeito à valoração judicial. Tais processos dedutivos coniguram verdadeiras presunções eitas pelo julgador, diante da ausência de prova material em sentido contrário, sendo perfeitamente válidas enquanto meio de conhecimento de determinado ato submetido à apreciação jurisdicional. Carnelutti referia-se à prova denominada indiciária como uma prova crí­ tica, afirmando "[ ... ] Porém se as regras da experiência operam também para deduzir do ato representativo o fato a provar, desaparece a diferença enre indício e meio [onte] de prova imaginada por Schmidt [ ... ] Cada uma das fontes de prova, enquanto tema de prova, pode ser, por sua vez, provada com qualquer ipo de fonte de prova, ou seja, mediante a prova histórica [depoimento, documento] ou mediante a prova critica [pela via da dedução]" (2002, p. 231 e 243). Também merece ser transcrita a lição de Barbosa Moreira, que completa, de modo definitivo, o pensamento do mestre peninsular: "O que o indício tem em comum com um documento ou com o depoimento de uma testemunha é a circunstância de que todos são pontos de parida. Enquan­ to, porém, o documento ou o testemunho são unicamente pontos de parida, o indício, repita-se, já é, ao mesmo tempo, um ponto de chegada. Não, ainda, o ponto inal; mas um ponto, sem dúvida, a que o juiz chega mediante o exame e a valoração do documento ou do depoimento da testemunha" (1988, p. 59). 9.2.10 Da busca e apreensão Enquanto os demais meios de prova anteriormente analisados são pro­ duzidos, desde o seu início, em contraditório, com a paricipação de ambas as partes, a bsa e apreensão segue procedimento diverso, em atenção às peculiaridades da medida. Trata-se, por certo, de medida de natureza eminentemente cautelar, para acautelamento de material probatório, de coisa, de animais e até de pessoas, que não estejam ao alcance, espontâneo, da Justiça. A medida, cautelar no que se refere à questão probatória e à segurança de pessoas, também é excepcional por implicar a quebra da inviolabilidade do Da Pova 441 acusado ou de terceiros, tanto no que se refere à inviolabilidade do domicaio quanto no que diz respeito à inviolabilidade pessoal. Por isso, somente quando fundadas razões, quanto à urgência e à neces­ sidade da medida, estiverem presentes, é que se poderá conceder a busca e apreensão, tanto na fase de invesigação como no curso da ação penal. A busca poderá ser domiciliar ou pessoal. Por busca domiciliar entende-se aquela realizada em residência, bem como em qualquer comparimento habitado, ou aposento ocupado de habi­ tação coletiva ou em compartimento não aberto ao público, no qual alguém exerce proissão ou aividade, nos termos do art. 246 do CP. Todos esses locais, bem como os quartos de hotéis, motéis ou equivalentes, quando ha­ bitados, encontram-se incluídos e protegidos pela cláusula constitucional da inviolabilidade de domicílio. A seu tuno, o automóvel não se inclui na defini­ ção legal de domicílio, a não ser quando estiver no interior deste. Assim, são indispensáveis para a execução da medida busca domiciliar: a) ordem judicial escrita e fundamentada, como qualquer medida cau­ telar restritiva de direitos (art. 52, I, CF); b) indicação precisa do local, dos motivos e da finalidade da diligência (an. 243, CPP); c) cumprimento da diligência durante o dia, salvo se consentida à noi­ te, pelo morador; d) o uso de força e o arrombamento somente serão possíveis em caso de desobediência, ou em caso de ausência do morador ou de qualquer pessoa no local (an. 245, §§ 3' e '). Segundo o disposto no art. 243, § 2Q, não será permitida a apreensão de documento em poder do defensor do acusado, salvo quando constituir elemento do corpo de delito. Aqui, o limite é o direito à ampla defesa, de tal maneira que os documentos que podem ser utilizados pelo defensor não de­ vem ser apreendidos. Todavia, quando se tratar de outro meio e prova, que não o documento, e que não esteja relacionado diretamente com o material da defesa, será possível a busca e apreensão, sobretudo quando se cuidar do próprio corpo de delito, bem como de instrumentos utilizados na prática do crime e os produtos dele derivados. O livre exercício da advocacia é, inegavelmente, instumento de garantia do indivíduo contra eventuais abusos dos poderes constituídos. Mas, manida 442 Curso de processo penal • Pacelli e reairmada a exigência de ordem escrita e fundamentada da autoridade ju­ diciária competente, não se pode pretender situá-lo acima da proteção penal de direitos igualmente fundamentais. Já a busca pessoal, a nosso aviso, não depende de autorização judicial, ainda que se possa constatar, em certa medida, uma violação à intangibilida­ de do direito à inimidade e à privacidade, previstos no art. 5°, X, da CR Como sustentamos alhures, na abordagem relativa à quebra do sigilo bancário, a exigência de autorização judicial para determinadas restrições de direito não é absoluta, podendo a lei autorizar determinadas atividades e/ou funções realizadas pelo Poder Público, de cuja atuação resulte a redução do âmbito do exercício das citadas garantias individuais. Para isso, será sempre necessário observar a indispensável proporcionalidade da medida, no que se refere ao grau de afetação do direito e à indispensabilidade da atuação estatal. Sob tais considerações, acreditamos perfeitamente possível a realização de busca pessoal sem autorização judicial, desde que, uma vez prevista em lei, existam e estejam presentes razões de natureza cautelar e, por isso, urgentes. A nosso aviso, então, a previsão do art. 244 do CPP atende às exigências para a execução da medida, porque somente possível "quando houverundada suspeita de que a pessoa esteja na posse de arma proibida ou de objetos ou papéis que constituam corpo de delito, ou quando a medida for determinada no curso de busca domiciliar". Neste úlimo caso, no curso de busca domiciliar, há, na realidade, ordem judicial, uma vez que a pessoa se encontraria dentro do lo­ cal cuja inviolabilidade já havia sido quebrada.