Location via proxy:   [ UP ]  
[Report a bug]   [Manage cookies]                
COMENTÁRIO A CAMÕES O original foi sujeito a apreciação cientíica por Sebastião Tavares de Pinho Maria Lucília Gonçalves Pires Jorge Alves Osório Título: Comentário a Camões, vol. 3 coordenação e tradução de Rita Marnoto © dos Autores, do CIEC e do CEL Genève, Coimbra 2016 ISBN 978-2-8399-2001-8 Depósito Legal 419275/16 Comentário a Camões vol. 3 Redondilhas Sôbolos rios, Odes coordenação de Rita Marnoto Sôbolos rios que vão (Vasco Graça Moura), Fermosa fera humana (Barbara Spaggiari), Pode um desejo imenso (Maurizio Perugi), A quem darão de Pindo as moradoras (Soledad Pérez-Abadín Barro), Fogem as neves frias (Barbara Spaggiari) Centro Interuniversitário de Estudos Camonianos Centre d’Études Lusophones Centro Interuniversitário de Estudos Camonianos Centre d’Études Lusophones Índice Introdução 7 Redondilhas Sôbolos rios que vão (Vasco Graça Moura) 11 13 Odes 43 Fermosa fera humana (Barbara Spaggiari) 45 Pode um desejo imenso (Maurizio Perugi) 87 A quem darão de Pindo as moradoras (Soledad Pérez-Abadín Barro)105 Fogem as neves frias (Barbara Spaggiari) 123 Bibliograia 1. Edições de referência da obra de Camões 2. Edições e comentários a Camões 3. Manuscritos em edição 4. Textos literários de referência 5. Estudos 157 159 159 164 165 168 Ensaios Maurizio Perugi, Achegas ao comentário da ode Pode um desejo imenso 175 177 Soledad Pérez-Abadín Barro, A quem darão de Pindo as moradoras: um contributo para a coniguração da ode encomiástica 195 Barbara Spaggiari, Algumas observações acerca da ode IV e da ode IX 223 Autores 261 5 Introdução Se há autor da literatura portuguesa que tem vindo a suscitar um apreço constante e intenso, ao longo dos tempos, entre Portugal e tantas outras latitudes do globo, esse autor é Luís de Camões. A sua lírica, escrita há mais de cinco séculos, é pedra basilar de um cânone de incidência nacional e mundial, no qual sucessivas gerações de leitores da mais variada índole se têm vindo a reconhecer. Sob o ponto de vista literário, esse estatuto assenta numa recriação sem par do código petrarquista e também do neoplatonismo dos séculos XV e XVI, o que implica quer uma forte renovação de toda anterior tradição peninsular à luz de um novo contexto europeu, quer uma singular e genial declinação desses modelos. A partir daí, o rasto de Camões estende-se ao longo de uma linha ininterrupta. Nos nossos dias, o lírico continua a falar a linguagem das novas gerações, como bem o mostra a facilidade com que os seus versos passam dos manuais escolares para os palcos da música rock, e continua a ser fonte primordial de motivação literária, se um dos maiores poetas portugueses da actualidade, Vasco Graça Moura, confessa que Camões é uma espécie de ‹‹sombra tutelar›› que lhe ocorre naturalmente e o faz ‹‹respirar melhor›› na sua língua e na sua escrita. Um arco temporal tão alargado acumula interpretações e leituras que são inigualáveis lições de erudição ou até verdadeiros rasgos de génio, a par com outras, tão imprecisas e aleatórias, que chegam a redundar em autênticos atentados ao nome do poeta. Mas um autor canónico vive no tempo, em continuidade, e resiste às suas usuras porque, da mesma feita, se sobrepõe ao tempo. Para utilizar a imagem de Italo Calvino, persiste sempre como ruído de fundo, capaz de responder às perguntas que cada época e cada grupo de leitores lhe dirige. O comentário à lírica de Camões levado a cabo pelo Centro Interuniversitário de Estudos Camonianos é feito por um grupo de experientes críticos, portugueses e estrangeiros, que, ao estudar a obra do poeta numa dimensão verdadeiramente europeia, mostra bem a imensidão das fronteiras literárias por entre as quais o poeta se move. Dirige-se a um 7 COMENTÁRIO A CAMÕES, vOl . 3 público constituído por estudantes de nível avançado e por estudiosos de Camões, situando-se numa plataforma de convergência. Nesse sentido, procede por estratos, entre uma primeira abordagem mais simples das matérias e níveis interpretativos mais complexos. O comentário é um aparato de ilustrações verbais, destinado a tornar mais compreensível um texto, o qual ganha sentido exclusivamente na relação que mantém com esse texto. Tomado por si, não tem valor de texto, porquanto desprovido de autonomia comunicativa. Inscreve-se entre emissor e receptor, como um decriptador da mensagem, e a sua função é semelhante à que se costuma designar como metalinguística, mas ica para além dos aspectos linguísticos, pelo que será caso de dizer metacomunicativa. É nestes termos que Cesare Segre o deine, logo no início do seu célebre ensaio Per una deinizione del commento ai testi. O comentário não tem autonomia, dado que explicita um outro texto, mas ao fazê-lo é também produtor de um sentido, que é correlato ao momento em que é escrito e ao público a que se dirige. Nos tempos que correm, são cada vez mais fortes os sinais da necessidade de uma renovada atenção à letra do texto camoniano, e é nesse plano que o comentário assume uma função basilar. Como diz Aguiar e Silva, na introdução ao seu livro de ensaios sobre Camões intitulado A lira dourada e a tuba canora, o suporte da materialidade de cada texto camoniano e a moldura constituída pelos outros textos que o envolvem são os grandes fundamentos da sua interpretação hermenêutica, pelo que, quando não lhes é dada primazia, a actividade crítica facilmente se esvai numa espuma efémera. Essa atitude metodológica centrada sobre a substância do texto camoniano é fundamental para o seu mais profundo conhecimento, em todos os planos, e o comentário, enquanto ilustração verbal, será uma das melhores formas de a explorar. Uma forma concreta e real, que são precisamente os termos através dos quais Walter Benjamin caracteriza o comentário. É tomado como texto de referência o volume das Rimas preparado por Costa Pimpão, resultado de um trabalho que saiu pela primeira vez em 1944 e que encontrou a sua última forma na edição de 1973, sucessivamente reeditada. Corrigem-se lapsos ou gralhas editoriais pontualmente, conforme é devidamente assinalado, e quando necessário actualiza-se a graia de acordo com as normas em vigor. 8 INTROduçãO O comentário articula-se em cinco pontos, de modo a organizar de forma clara e metódica os vários aspectos tratados, mas deixando a cada crítico um espaço próprio para a modulação desses itens, em correlação com a especiicidade de cada poema. O ponto 1 visa um quadro geral de informações e questões relativas à composição. Compreende uma síntese do seu conteúdo global e uma apresentação da sua estrutura, com eventual explicitação de casos, episódios, iguras ou fontes que nela ocupam um lugar central, e referência a comentários e interpretações precedentes de particular impacto na sua leitura. O ponto 2 incide sobre aspectos ilológicos ligados à materialidade do texto e à sua transmissão, com indicação remissiva das fontes primordiais, impressas e manuscritas, bem como dos trabalhos onde é feito o registo de variantes, e indicação do texto de base escolhido por Costa Pimpão (e eventualmente por outros editores), apresentando um balanço crítico acerca desse conjunto de questões. Por sua vez, o ponto 3 contempla assuntos relacionados com a forma métrica da composição, o seu esquema e a sua estruturação. O ponto 4 organiza-se em torno do comentário pontual de palavras, sintagmas ou versos do poema. No caso de composições mais longas (odes, canções, etc.), faz-se uma chamada para toda a estrofe, com a sua paráfrase, ao que se seguirá o comentário pontual dos seus elementos. No ponto 5, é apresentada uma bibliograia passiva especíica sobre o poema, que não contempla comentários ou estudos gerais. Numa secção inal, reúne-se o elenco da bibliograia citada pelos vários comentadores, que é funcional a cada grupo de composições. Um comentário trabalha elementos que, num texto (neste caso, num poema), estão dispostos sintagmaticamente, isto é, segue o fraseado desse texto pela sua ordem material. É certo que pode reenviar para outros textos e para passos da obra do autor, numa dimensão paradigmática, de sistematização. Mas, de uma forma ou de outra, o primeiro aspecto tende a sobrepor-se ao segundo. Diferentemente, o ensaio crítico tende a valorizar a dimensão paradigmática, ao descortinar, pôr em relevo, organizar e sistematizar elementos do texto que o comentário explicita. Uma segunda secção de cada volume reúne ensaios que desenvolvem e aprofundam assuntos relacionados com cada uma das composições objecto de comentário, mas não enquadráveis na sua dimensão breve, 9 COMENTÁRIO A CAMÕES, vOl . 3 mostrando bem, na variedade de assuntos e abordagens, a inesgotável riqueza da obra lírica de Camões. Rita Marnoto Coordenadora da Quarta Linha de Investigação do Centro Interuniversitário de Estudos Camonianos 10 Redondilhas Sôbolos rios que vão Vasco Graça Moura, Sôbolos rios que vão Uma homenagem O Comentário a Camões brota de um trabalho colectivo levado a cabo em regime de seminário, com a colaboração de alguns dos mais destacados especialistas na obra de Camões, portugueses e estrangeiros. Cada um dos textos que vai sendo publicado contém pois, in nuce, os resultados de um debate de ideias e de uma partilha de perspectivas na qual têm vindo a colaborar os membros do Centro Interuniversitário de Estudos Camonianos e outros estudiosos que se reúnem nessas sessões seminariais. Vasco Graça Moura foi um deles. Esteve presente nas sessões do Centro Interuniversitário de Estudos Camonianos desde os seus primórdios, acompanhou a construção do modelo de comentário a adoptar e participou em todos os seminários, carreando as suas argutas observações e partilhando informação de diversa ordem, com riquíssimas remissões para as mais variadas fontes e autores. Desde o primeiro momento manifestou o seu entusiasmo pelo comentário a uma composição especíica de Camões, à qual estava particularmente ligado, Sôbolos rios que vão. Apresentou-a num seminário muito participado. A redacção deinitiva do comentário, contudo, foi sendo protelada. Aquela derradeira palavra com que Camões terminava as redondilhas ia-o envolvendo no tempo, eternamente. A abrir este terceiro volume, edita-se a última versão do comentário, no estado redaccional em que foi deixada, como homenagem ao Vasco Graça Moura camonista. 13 5 10 15 20 25 30 I Sôbolos rios que vão por Babilónia, m’achei, onde sentado chorei as lembranças de Sião e quanto nela passei. II Ali o rio corrente de meus olhos foi manado, e tudo bem comparado, Babilónia ao mal presente, Sião ao tempo passado. Salmo 136 1. Super lumina Babylonis illic sedimus et levimus, cum recordaremur Sion. III Ali, lembranças contentes n’alma se representaram, e minhas cousas ausentes se izeram tão presentes como se nunca passaram. IV Ali, despois de acordado, co rosto banhado em água, deste sonho imaginado, vi que todo o bem passado não é gosto, mas é mágoa V E vi que todos os danos se causavam das mudanças e as mudanças dos anos; onde vi quantos enganos faz o tempo às esperanças. VI Ali vi o maior bem quão pouco espaço que dura, o mal quão depressa vem, e quão triste estado tem quem se ia da ventura. 15 COMENTÁRIO A CAMÕES, vOl . 3 35 40 45 50 55 60 VII Vi aquilo que mais val, que então se entende milhor quanto mais perdido for; vi o bem suceder mal, e o mal, muito pior. VIII E vi com muito trabalho comprar arrependimento; vi nenhum contentamento, e vejo-me a mim, qu’ espalho tristes palavras ao vento. IX Bem são rios estas águas, com que banho este papel; bem parece ser cruel variedade de mágoas e confusão de Babel. X Como homem que, por exemplo dos transes em que se achou, despois que a guerra deixou, pelas paredes do templo suas armas pendurou: XI Assi, despois que assentei que tudo o tempo gastava, da tristeza que tomei nos salgueiros pendurei os órgãos com que cantava. XII Aquele instrumento ledo deixei da vida passada, dizendo:—Música amada, deixo-vos neste arvoredo à memória consagrada. 2. In salicibus in medio ejus, suspendimus organa nostra; 16 SôboloS rioS que vão 65 70 75 80 85 90 XIII Frauta minha que, tangendo, os montes fazíeis vir para onde estáveis, correndo; e as águas, que iam decendo, tornavam logo a subir: XIV jamais vos não ouvirão os tigres, que se amansavam, e as ovelhas, que pastavam, das ervas se fartarão que por vos ouvir deixavam. XV Já não fareis docemente em rosas tornar abrolhos na ribeira lorecente; nem poreis freio à corrente, e mais, se for dos meus olhos. XVI Não movereis a espessura, nem podereis já trazer atrás vós a fonte pura, pois não pudestes mover desconcertos da ventura XVII Ficareis oferecida à Fama, que sempre vela, frauta de mim tão querida; porque, mudando-se a vida, se mudam os gostos dela. XVIII Acha a tenta mocidade prazeres acomodados, e logo a maior idade já sente por pouquidade aqueles gostos passados. 17 COMENTÁRIO A CAMÕES, vOl . 3 XIX Um gosto que hoje se alcança, amanhã já o não vejo; assi nos traz a mudança de esperança em esperança, 95 e de desejo em desejo. XX Mas em vida tão escassa que esperança será forte? Fraqueza da humana sorte, que, quanto da vida passa 100 está receitando a morte! XXI Mas deixar nesta espessura o canto da mocidade, não cuide a gente futura que será obra da idade 105 o que é força da ventura. XXII Que idade, tempo, o espanto de ver quão ligeiro passe, nunca em mim puderam tanto que, posto que deixe o canto, 110 a causa dele deixasse. XXIII Mas, em tristezas e enojos em gosto e contentamento, por sol, por neve, por vento, terné presente á los ojos 115 por quien muero tan contento. XXIV Órgãos e frauta deixava, despojo meu tão querido, no salgueiro que ali estava que para troféu icava 120 de quem me tinha vencido. 18 SôboloS rioS que vão XXV Mas lembranças da afeição que ali cativo me tinha, me perguntaram então: que era da música minha 125 qu’eu cantava em Sião? XXVI Que foi daquele cantar das gentes tão celebrado? Porque o deixava de usar, pois sempre ajuda a passar 130 qualquer trabalho passado? 3. Quia illic interrogaverunt nos, qui captivos duxerunt nos, verba cantionum; et qui abduxerunt nos: Hymnum cantate nobis de canticis Sion. XXVII Canta o caminhante ledo no caminho trabalhoso, por antr’o espesso arvoredo; e, de noite, o temeroso 135 cantando, refreia o medo. XXVIII Canta o preso docemente os duros grilhões tocando; canta o segador contente; e o trabalhador, cantando, 140 o trabalho menos sente. XXIX Eu, qu’estas cousas senti n’alma, de mágoas tão cheia, Como dirá, respondi, quem tão alheio está de si 145 doce canto em terra alheia? XXX Como poderá cantar quem em choro banh’o peito? Porque se quem trabalhar canta por menos cansar, 150 eu só descansos enjeito. 4. Quomodo cantabimus canticum Domini in terra aliena? 19 COMENTÁRIO A CAMÕES, vOl . 3 XXXI Que não parece razão nem seria cousa idónea, por abrandar a paixão, que cantasse em Babilónia 155 as cantigas de Sião. XXXII Que, quando a muita graveza de saudade quebrante esta vital fortaleza, antes moura de tristeza 160 que, por abrandá-la, cante. XXXIII Que se o ino pensamento só na tristeza consiste, não tenho medo ao tormento: que morrer de puro triste, 165 que maior contentamento? XXXIV Nem na frauta cantarei o que passo, e passei já, nem menos o escreverei, porque a pena cansará, 170 e eu não descansarei. XXXV Que, se vida tão pequena se acrecenta em terra estranha, e se amor assi o ordena, razão é que canse a pena 175 de escrever pena tamanha. XXXVI Porém se, para assentar o que sente o coração, a pena já me cansar, não canse para voar 180 a memória em Sião. 20 SôboloS rioS que vão XXXVII Terra bem-aventurada, se, por algum movimento, d’alma me fores mudada, minha pena seja dada 185 a perpétuo esquecimento. XXXVIII A pena deste desterro, que eu mais desejo esculpida em pedra, ou em duro ferro, essa nunca seja ouvida, 190 em castigo de meu erro. 5. Si oblitus fuero tui, Jerusalem, oblivioni detur dextera mea. 6. [segunda parte] si non proposuero Jerusalem in principio laetitiae meae. XXXIX E se eu cantar quiser, em Babilónia sujeito, Hierusalém, sem te ver, a voz, quando a mover, 95 se me congele no peito. XL A minha língua se apegue às fauces, pois te perdi, se, enquanto viver assi, houver tempo em que te negue 200 ou que me esqueça de ti. 6. [primeira parte] Adhaereat lingua mea faucibus meis, si non meminero tui; XLI Mas ó tu, terra de Glória, se eu nunca vi tua essência, como me lembras na ausência? Não me lembras na memória, 205 senão na reminiscência. XLII Que a alma é tábua rasa, que, com a escrita doutrina celeste, tanto imagina, que voa da própria casa 210 e sobe à pátria divina. 21 COMENTÁRIO A CAMÕES, vOl . 3 XLIII Não é, logo, a saudade das terras onde naceu a carne, mas é do Céu, daquela santa cidade, 215 donde esta alma descendeu. XLIV E aquela humana igura, que cá me pôde alterar, não é quem se há-de buscar: é raio de fermosura, 220 que só se deve de amar. XLV Que os olhos e a luz que ateia o fogo que cá sujeita, não do sol, mas da candeia, é sombra daquela Ideia 225 qu’em Deus está mais perfeita. XLVI E os que cá me cativaram são poderosos afeitos que os corações têm sujeitos; soistas que me ensinaram maus caminhos por direitos. 230 XLVII Destes, o mando tirano me obriga, com desatino, a cantar ao som do dano cantares d’amor profano 235 por versos d’amor divino. XLVIII Mas eu, lustrado co santo Raio, na terra de dor, de confusão e d’espanto, como hei-de cantar o canto 240 que só se deve ao Senhor? 22 SôboloS rioS que vão XLIX Tanto pode o benefício da Graça, que dá saúde, que ordena que a vida mude; e o que tomei por vício 245 me faz grau para a virtude; L e faz que este natural amor, que tanto se preza, suba da sombra ao Real, da particular beleza 250 para a Beleza geral. LI Fique logo pendurada a frauta com que tangi, ó Hierusalém sagrada, e tome a lira dourada, 255 para só cantar de ti! LII Não cativo e ferrolhado na Babilónia infernal, mas dos vícios desatado, e cá desta a ti levado, 260 Pátria minha natural. LIII E se eu mais der a cerviz a mundanos acidentes, duros, tiranos e urgentes, risque-se quanto já iz 265 do grão livro dos viventes. LIV E tomando já na mão a lira santa, e capaz doutra mais alta invenção, cale-se esta confusão, 270 cante-se a visão da paz. 23 COMENTÁRIO A CAMÕES, vOl . 3 LV Ouça-me o pastor e o Rei, retumbe este acento santo, mova-se no mundo espanto, que do que já mal cantei 275 a palinódia já canto. LVI A vós só me quero ir, Senhor e grão Capitão da alta torre de Sião, à qual não posso subir 280 se me vós não dais a mão. LVII No grão dia singular que na lira o douto som Hierusalém celebrar, lembrai-vos de castigar 285 os ruins ilhos de Edom. LVIII Aqueles que tintos vão co pobre sangue inocente, soberbos co poder vão, arrasai-os igualmente, 290 conheçam que humanos são. 7. Memo esto, Domine, iliorum Edom, in die Jerusalem, LIX E aquele poder tão duro dos afeitos com que venho, que encendem alma e engenho, que já me entraram o muro 295 do livre alvídrio que tenho; LX estes, que tão furiosos gritando vêm a escalar-me, maus espíritos danosos, que querem como forçosos 300 do alicerce derrubar-me; qui dicunt: Exinanite, exinanite, usque ad fundamentum in ea. 24 SôboloS rioS que vão LXI Derrubai-os, iquem sós, de forças fracos, imbeles, porque não podemos nós nem com eles ir a Vós, 305 nem sem Vós tirar-nos deles. LXII Não basta minha fraqueza, para me dar defensão, se vós, santo Capitão, nesta minha fortaleza 310 não puserdes guarnição. LXIII E tu, ó carne que encantas, ilha de Babel tão feia, toda de misérias cheia, que mil vezes te levantas, 315 contra quem te senhoreia: LXIV beato só pode ser quem co a ajuda celeste contra ti prevalecer, e te vier a fazer 320 o mal que lhe tu izeste. LXV Quem com disciplina crua se fere mais que ũa vez, cuja alma, de vícios nua, faz nódoas na carne sua, 325 que já a carne n’alma fez. LXVI E beato quem tomar seus pensamentos recentes e em nacendo os afogar, por não virem a parar 330 em vícios graves e urgentes. 8. Filia Babylonis misera! beatus qui retribuet tibi retributionem tuam quam retribuisti nobis. 9. Beatus qui tenebit, 25 COMENTÁRIO A CAMÕES, vOl . 3 LXVII Quem com eles logo der na pedra do furar santo, e, batendo, os desizer na Pedra, que veio a ser 335 enim cabeça do Canto. LXVIII Quem logo, quando imagina nos vícios da carne má, os pensamentos declina àquela Carne divina 340 que na Cruz esteve já. LXIX Quem do vil contentamento cá deste mundo visível, quanto ao homem for possível, passar logo o entendimento 345 para o mundo inteligível: LXX ali achará alegria em tudo perfeita e cheia, de tão suave harmonia que nem, por pouca, recreia, 350 nem, por sobeja, enfastia. LXXI Ali verá tão profundo mistério na suma alteza que, vencida a natureza, os mores faustos do mundo 355 julgue por maior baixeza. LXXII Ó tu, divino aposento, minha pátria singular! Se só com te imaginar tanto sobe o entendimento, 360 que fará se em ti se achar? 26 et allidet parvulos tuos ad petram. SôboloS rioS que vão LXXIII Ditoso quem se partir para ti, terra excelente, tão justo e tão penitente que, despois de a ti subir 365 lá descanse eternamente. (Rimas, Redondilhas 117, pp. 105-114) 1. 1.1. As redondilhas conhecidas pela designação de Babel e Sião e também pelo seu verso inicial, Sobre os rios que vão (segundo a primeira edição, Rimas: 1595) ou, mais eufonicamente, Sobollos rios que vão (segunda edição, Rimas: 1598), são compostas por 365 versos, o que terá sido notado, pela primeira vez, por Agostinho de Campos em 1924 (Camões lírico, reed.), quase três séculos e meio após aquela primeira edição da lírica camoniana. Jorge de Sena, que chama a atenção, na edição de 1598, para uma nítida «obsessão de eliminar todos os hiatos possíveis», explica a modiicação do incipit em virtude dessa preocupação (Sena 1980). A contracção da preposição sobre com o artigo deinido «o», «a», «os», «as» é arcaica e ocorre na nossa língua desde pelo menos o século XIII (superlos > supellos > sobelos > sobolos). Os dois cancioneiros adiante referidos apresentam a forma Sobre os, tal como a edição de 1595, à qual pelo menos o Cancioneiro de Cristóvão Borges é anterior. O hiato vocálico só foi remediado na edição de 1598, na tese de Sena por intervenção «abusiva» do editor, mas sem que tal se imponha como conclusão deinitiva. Por três razões: Em primeiro lugar, porque o próprio Camões empregou a forma «sôbolo» em Os Lusíadas: «Sôbolo tanque lúcido e sereno» (IX 60, 6). Anota Faria e Sousa: «modo Portugues de que el Poeta se aprovechó, porque si dixera, sobre o, quedava el numero manco», que no mesmo lugar menciona expressamente o caso destas redondilhas, opinando todavia que, nelas, Sobre os terá sido mal emendado para Sobollos, uma vez o poeta teria preferido aquela forma, «cayendose el verso aprissa por falta de numero, por expressar el caer de los rios» (Lusiadas II 1639)… Em segundo lugar, porque dado o breve espaço de tempo que medeia entre as duas primeiras edições da lírica camoniana, a edição das Rimas datada de 1595 só pode ter começado a circular em 1596, uma vez que o 27 COMENTÁRIO A CAMÕES, vOl . 3 alvará passado a favor do mercador de livros Estêvão Lopes é de 30 de Dezembro de 1595. Ora, para a edição de 1598, a licença já estava passada em 8 de Maio de 1597. O que signiica que a primeira edição terá esgotado muito depressa, tendo a segunda começado logo a ser preparada... Sendo assim, era natural que as correcções introduzidas na segunda edição traduzissem uma preocupação de maior idelidade aos textos originais e fosse ainda possível fazê-las nesses termos. Esses cuidados, de resto, icaram expressos no «Prologo ao Leitor» dessa edição das Rimas de 1598: «procurei que os erros, que na outra por culpa dos originais se cometeram, nesta se emendassem de sorte que icasse merecendo conhecer-se de todos por digno parto do grande engenho de seu autor». E mais adiante: «baste que enquanto o pude o comuniquei com pessoas que o entendiam, conferindo vários originais, escolhendo deles o que vinha mais próprio ao que o Poeta queria dizer, sem lhe violar a graça e termo particular seu, que nestas cousas importa muito». Em terceiro lugar, mas facto tão ou mais importante do que as lições manuscritas acima referidas, porque, no fólio 191v do índice do Cancioneiro do Padre Pedro Ribeiro, que é de 1577, vemos a indicação Sobolos rios que uão. Ou seja, nas duas únicas fontes conhecidas que surgem garantidamente ainda em vida do poeta, encontram-se as duas versões divergentes, sobolos e sobre os... 1.2. O sentido geral destas redondilhas camonianas é o de, através de uma paráfrase do Salmo 136, nelas se fazer a palinódia ou retractação em relação ao canto profano, reorientando-se este a lo divino, a partir de certa altura. Assim, à lauta sucede a lira dourada, ao instrumento idóneo para a expressão da pulsão dos sentidos e da sensualidade, bem como para a provocação da metamorfose órica, substitui-se o instrumento de cordas de Apolo, num registo puramente intelectual e próprio para entoar um canto à divindade. Abandona-se tudo o que tenha a ver com o prazer, com o Mal e até com a pátria terrena, incluindo-se mesmo no que já mal se cantou (v. 274), o próprio canto épico, para se procurar, pela retractação palinódica, o caminho que leva metaisicamente à Jerusalém celeste, à pátria divina, ao Bem supremo que proporciona a salvação individual. Camões exclama nos vv. 269-270: cale-se esta confusão, / cante-se a visão da paz, aludindo a Babel como confusão e ao signiicado de Jerusalém, como cidade da paz. Antes de prosseguirmos e para maior inteligibilidade de certas oposições toponímicas e conceptuais, convém precisar que, na tradição bíblica, 28 SôboloS rioS que vão Sião, nome da colina a sudoeste de Jerusalém, a partir do rei David era chamada a cidade onde Deus mora, ou morada de Deus, ou ainda lugar por excelência de Deus, embora sem o sentido escatológico que vem a ser o de Jerusalém celeste. Por sua vez, Jerusalém tem o signiicado de cidade da paz, sendo os habitantes de Jerusalém chamados de ilhos e ilhas de Sião. 1.3. Jorge de Sena chama à «paráfrase do salmo Super lumina Babylonis, uma longa composição na qual o conteúdo do salmo é transformado no mais pessoal poema, ao mesmo tempo uma revisão da sua vida como homem e poeta, e uma exposição das suas ideias ilosóicas sobre a salvação» (Sena 1980). Não se pode concordar inteiramente com a parte inal desta formulação e não deve esquecer-se que essas ideias são também e fundamentalmente religiosas. A ilosoia surge aqui como verdadeira ancilla theologiae. O platonismo e até o aristotelismo que transparecem no poema devem ser vistos nessa perspectiva. Nas redondilhas camonianas, e partindo do canto do cativeiro dos Hebreus em Babilónia, «o pranto colectivo do povo de Israel converte-se no pranto individual do poeta exilado Luís Vaz de Camões», como escreve Luciana Stegagno Picchio, observando também que o salmo 136 é por excelência salmo de cativeiro e choro, de nostalgia e de abandono (Stegagno Picchio 1982). Jorge de Sena faz idêntica observação (Sena 1980), sendo todavia de notar que a passagem do «nós» ao «eu» já se encontra literalmente expressa no versículo 5 do próprio salmo. Edith Weber, escrevendo sobre a música protestante, observa que a fé, expressa na primeira pessoa do plural na época da Reforma, passa a ser traduzida na primeira pessoa do singular na época da Contra-Reforma (Weber 1975). A paráfrase deste canto dos Hebreus durante o cativeiro de Babilónia, recordando-se de Sião, tornou-se, no último quartel do século XVI, um tema recorrente da criação poética, quer protestante (sobretudo após as perseguições da Saint Barthélémy e outras), quer católica. Em Portugal, e com glosas do mesmo salmo, deparam-se-nos os nomes de Jorge da Silva e de Jorge de Montemor, respectivamente em 1552 e 1558. E, entre outros autores poeticamente inspirados pela Bíblia, já no último quartel do século XVI, devem mencionar-se pelo menos D. Jorge de Menezes Sottomayor, com uma versão dos Psalmos penitenciaes, e o quase desconhecido Pedro da Costa Perestrelo, com as suas Lições de Job. O poema de Camões apresenta todas as características da poesia de inspiração bíblica desse período, 29 COMENTÁRIO A CAMÕES, vOl . 3 embora acabe por se transformar em Ich Dichtung, numa transposição ou translação da circunstância colectiva para a circunstância pessoal. Camões coloca-se numa perspectiva existencial de exílio terreno e de busca individual da saída redentora, numa espécie de balanço crítico que faz da sua vida e da sua obra. Por isso há quem tenha visto nestas redondilhas uma «autobiograia espiritual» (Maria Vitalina Leal de Matos). 1.4. A questão do platonismo de Camões, muito em especial nas suas alorações nas redondilhas em questão, tem feito correr rios de tinta. Sobre ela houve uma polémica célebre entre Costa Pimpão (Pimpão 1972) e Vergílio Ferreira (Ferreira 1942). Além destes, muitos outros autores modernos têm opinado na matéria. Aigura-se, com efeito, que todo o poema é repassado de um profundo platonismo, ou, como escreve Jorge de Sena, «não há, na inteira paráfrase, nada que não possa ser estritamente interpretado como uma leitura neoplatónica (e estóica), mas não católica, do Velho Testamento, excepto a 34.ª décima, em que parece haver uma referência à Igreja, e certamente que há à Cruz e à cruciixação divina» (Sena 1980). Ver-se-á também que há pelo menos uma referência a Mateus VI, 22. Ocorre todavia a presença de conceitos aristotélicos no poema, maxime da alma como «tábua rasa». Silva Dias observa que, em Camões, «passos há, como as estrofes [leia-se décimas] 40 e 44 da canção Babel e Sião, que longe de revelarem aderências platónicas, como já se tem pretendido, relectem a peripatética escolástica» (Dias 1981). Mas não pode haver dúvidas de que outras passagens são de matriz absolutamente platónica, por exemplo a sequência formada pelas quintilhas 44 a 50. Sobre os rios é um poema de transiguração, de sublimação do amor humano no divino, de recondução daquele a este, o que é feito demonstrativamente a partir da teoria da formosura / beleza divina e do seu relexo na terra, sendo esse relexo o raio daquela outra fermosura / que só se deve de amar (vv. 219-220). 1.5. Propusemos em 1985 uma leitura de base pitagórica destas redondilhas, mostrando que o primeiro momento em que cada um dos versículos do salmo alora numa quintilha (adiante será defendida a partição do texto em quintilhas) teria sido determinado pelo recurso ao número de ouro. Não é assim, evidentemente, quanto à primeira quintilha, que introduz o tema; e também não é quanto à quintilha 37 que ocupa o centro geométrico do 30 SôboloS rioS que vão texto. Mas, quanto às restantes que, pela primeira vez no texto, dão entrada a um determinado versículo ou a um fragmento dele, quase sempre essa posição numerológica pode demonstrar-se pelo princípio da chamada divina proporção, assim como podem supor-se regidas por esse esquema pitagórico a formulação da teoria platónica do amor, a referência a uma mulher amada e as alusões musicais do poema. Os versículos do salmo 136 têm entrada nas quintilhas n.os 1, 11, 25, 29, 37, 39, 40, 57, 60, 63, 64, 66 e 67. A partição do número 73 (total das quintilhas) segundo as regras referidas dará como divisões e subdivisões que a essas regras obedecem os n.os 28 e 45, 11 e 17 que, combinados entre si, permitem encontrar a localização de nove das quintilhas referidas, sendo que a primeira e a central (n.º 37) não têm de obedecer ao mesmo princípio: 11, 29, 39, 40, 57, 63, 64, 66 e 67. 1.6. Quanto às alusões musicais, é de notar um passo de Macróbio sobre a origem da história de Orfeu, no comentário ao Sonho de Cipião, segundo o qual «a alma traz consigo para o corpo a memória da música que é conhecida no céu», e também de registar que Santo Agostinho distinguia entre «musica harmonica» (voz humana), «musica organica» (instrumentos de sopro) e «musica rythmica» (percussão e instrumentos de corda), acrescendo que as tradições musicais pitagóricas e platónicas vêm até ao Renascimento e, entre nós, aloram num D. João de Castro e num João de Barros. Recorrendo à classiicação agustiniana, teríamos assim, em Sobre os rios, a música orgânica, representada pela lauta, instrumento ledo e sensual da vida passada, investido de poderes de transmutação órica, a música harmónica, ou seja, a voz humana com o seu poder de descarga e de soulagement, de cantar por menos cansar (por exemplo, vv. 121 a 140), e a música rítmica, a da lira dourada, própria para o canto da razão e da medida, para o hino de elevação a Deus. No contraponto destas elevações musicais, dá-se a derrota dos inimigos da alma com a veemência e a violência bíblicas dos versículos 7 a 9 do salmo 136. 1.7. Aventámos ainda a hipótese de, tendo os 365 versos uma correspondência aos dias do ano, por idêntica razão terem as 73 quintilhas uma correspondência aos anos do século XVI decorridos até ao momento da escrita (o que situaria esta por alturas de 1573). Alguns pontos poderiam servir de apoio a esta hipótese. Por um lado, certas passagens poderiam corresponder a factos autobiográicos: se Camões perdeu o olho direito 31 COMENTÁRIO A CAMÕES, vOl . 3 em Ceuta entre 1547 e 1548, tal facto estará aludido na quintilha 48, Mas eu, lustrado co santo / Raio, na terra de dor (vv. 236-237); e ainda mais nitidamente, tendo Camões sido preso em 1552, a quintilha 52 alude a um cativeiro, Não cativo e ferrolhado / na Babilónia infernal (vv. 256-257). Por outro lado, a própria colocação de versículos do salmo poderia, neste ou naquele caso, assinalar alguma data importante. Por exemplo, se acaso Camões nasceu em 1525, um novo sentido para a quintilha 25 viria de ser uma das que contêm um versículo nessas condições e uma das duas únicas (25 e 60), fora a primeira e a medial, de entre as que contêm pela primeira vez um versículo do canto bíblico, que não parece determinável pelas regras do número de ouro. 1.8. A data da composição do poema não é conhecida. Já houve quem sustentasse ter sido o poema escrito na Ásia, por ocasião do naufrágio de Camões na foz do rio Mekong (cf. Lus. X 128), e quem pretenda ter sido uma parte do poema escrita quando Camões ainda se encontrava em Lisboa e a parte restante na Índia. Um terceiro entendimento, que perilhamos, coloca a escrita do poema numa fase tardia da vida do poeta, depois do seu regresso a Lisboa e da publicação de Os Lusíadas. A tese da foz do Mekong é acreditada por fontes ainda do século XVI e retomada por Severim de Faria, João Franco Barreto e Faria e Sousa no século XVII. O Cancioneiro de Cristóvão Borges apresenta só os primeiros 190 versos do poema sob a epígrafe «De L. de C. a sua perdição na China». Vai também nesse sentido a anotação da edição de Os Lusíadas de 1584 à estância 80 do Canto VII: «perdeose na viagem que fez pêra a China donde elle compoos aquelle Cancioneiro, que diz Sobre os rios que vão per Babylonia, e etc.». Ainda nesse sentido, Diogo do Couto, na versão extensa da Década VIII da Ásia: «fez também aquela graue e docta cançaõ q começa Sobre os rios que vão / por Babilonia me achei / aly asentado chorey / alembrandome Siaõ / e quanto nelle passei // O q tudo anda impresso no liuro de seus sonetos». O cancioneiro da Real Academia de la Historia de Madrid introduz a peça nestes termos: «O Psalmo super lumina, do mesmo Poeta o qual compôs, indo para a China no qual caminho fez um grande naufrágio». Parece todavia muito provável uma confusão entre estas redondilhas e algum ou alguns dos sonetos versando o tema de Babel e Sião e atribuídos a Camões, que vieram a ser incluídos nas edições de 1616 (Cá nesta Babilónia donde mana), 1668 (Na ribeira de Eufrates assentado) e 1685-1689 (De Babel sobre os rios nos sentamos, Sobre os rios do reino escuro quando 32 SôboloS rioS que vão e Em Babilónia sobre os rios quando). Em 1624, na sua biograia de Camões inserta nos Discursos vários políticos, Manuel Severim de Faria, falando da estada de Camões da foz do Mekong após o naufrágio, escreve: «e com esta occasião, dizem que compoz aqui aquella sua tradução do Psalmo: Super lumina Babylonis, que começa: Sobolos rios que vão, etc…» (Faria 1999). Faria e Sousa, na sua Vida del poeta, a anteceder as Lusíadas comentadas e com algumas cautelas, diz substancialmente a mesma coisa: «Aqui se cree aver escrito aquellas admirables Redondilhas, a imitaciõ del Psalmo…», embora seja mais airmativo algumas colunas adiante: «ya diximos que las escrivió escapado del naufragio» (I 1639). Para outros no entanto, Sobre os rios é uma obra tardia na vida de Camões. Creio que só nesse sentido se compreende a palinódia do v. 275. Pode interpretar-se o v. 271 (Ouça-me o pastor e o Rei) como referindo-se a toda a gente, ao que Sousa da Silveira chama «expressão polar» (isto é, «a indicação da totalidade pela menção dos dois extremos»; Silveira, Textos quinhentistas). Mas essa é uma leitura assaz indigente. Uma leitura mais ambiciosa deve ver aí mais característica e complexamente uma alusão em que podem combinar-se Orfeu e David, tanto como pastor e rei, poeta e salmista e também protagonistas e destinatários, respectivamente, do canto lírico (bucólico) e do canto épico, o que também permitirá concluir que a palinódia é posterior à publicação de Os Lusíadas. Esta feitura tardia parece ser a opinião de Costa Pimpão e de Maria Vitalina Leal de Matos. José Filgueira Valverde faz, nesse sentido, uma importante análise estilística do poema: «Sóbolos rios es obra de un espíritu cansado y de una mano trémula» (Filgueira Valverde 1958). Por sua vez, Jorge de Sena, não apenas no seu célebre conto Super Flumina Babylonis em Novas andanças do demónio, mas ainda no verbete «Babel e Sião» hoje incluído em Trinta anos de Camões (Sena 1980), invoca uma informação da biograia do poeta por Pedro de Mariz que acompanha a edição de Os Lusíadas de 1613. Diz o biógrafo que um idalgo, Rui Dias da Câmara, já depois de 1572, insistia com o poeta para que traduzisse em verso os salmos penitenciais («sendo tam grande poeta, e que tinha composto tam famoso poema») e que este, muito atrasado na execução da encomenda, respondeu que, ao contrário de antigamente, «agora não tinha spirito nem contentamento para nada» (Lusíadas 1613). Sendo certo que o salmo 136 não se inclui nos salmos penitenciais, é possível uma confusão da parte de Mariz quanto a esse ponto, sem contar que há ecos dos salmos penitenciais 33 COMENTÁRIO A CAMÕES, vOl . 3 nestas redondilhas. E o atraso na conclusão da tradução referida poderia explicar uma versão incompleta como a do Cancioneiro de Cristóvão Borges. Também pensamos tratar-se de uma obra tardia e chamámos já a atenção para o facto de a relação do salmo 136 com a ideia de naufrágio remontar pelo menos aos comentários de Santo Agostinho na In Psalmum CXXXVI Enarratio, o que ajudaria a explicar tivesse ocorrido uma confusão quanto à data de escrita, pelo facto de se saber do naufrágio de Camões no Oriente. Sendo a penitência considerada como «a segunda tábua depois do naufrágio», a ideia poderia explicar esta e outras confusões, até quanto ao adjectivo «penitencial». Acresce que, em nosso entender, não se encontra na obra canónica de Camões nenhum outro poema com tantos tiques estilísticos «de vejez» como os apontados por Filgueira Valverde (Filgueira Valverde 1958). 2. 2.1. Nas edições referidas de 1595 e 1598, bem como nas seguintes, o poema apresenta-se estruturado em décimas, sendo que a estrofe XXXIV da sequência tem 15 versos. Faria e Sousa, segundo manuscrito citado pelo visconde de Juromenha, supõe que, ou se perdeu uma quintilha (o que, diga-se, não parece crível, dado que deixaria de se estar ante um número de versos correspondente ao dos dias do ano), «ou o poeta não teria feito estas quintilhas para serem unidas». Nos cancioneiros manuscritos ditos de Cristóvão Borges, este de 1578, o mais tardar, e portanto elaborado ainda em vida de Camões, e da Real Academia de la História de Madrid, de princípios do século XVII segundo Askins (de ins do século XVI, segundo Justo Garcia Soriano e também Maria Isabel S. Ferreira da Cruz), o poema encontra-se dividido em quintilhas, partição criticada por Cleonice Berardinelli, Jorge de Sena e Luciana Stegagno Picchio, mas que merece a concordância de autorizados especialistas como Agostinho de Campos, Hernâni Cidade, António Salgado Júnior, Maria Vitalina Leal de Matos, Sebastião Pestana e Arthur Lee-Francis Askins. Outros editores modernos, como José Maria Rodrigues-Afonso Lopes Vieira, Costa Pimpão e Maria de Lurdes Saraiva, mantêm a partição em décimas. Na verdade, Jorge de Sena não enjeita completamente a hipótese das quintilhas: «chegámos às redondilhas camonianas, 365 versos heptassilábicos, organizados em 73 quintilhas, ou, mais exactamente, 36 décimas mais uma quintilha de cabo» (Sena 1980). Por sua vez, na sua tradução alemã, publicada em 1880, Wilhelm Storck recorre à partição em quintilhas, «fuenfzeilige Strophen 34 SôboloS rioS que vão (Quintiljen)», pois, diz, se se dividir o poema em décimas, sobraria meia estrofe. Askins é terminante: «parece haver pouca dúvida, apesar […] da tradição impressa das primeiras edições, de que Camões preparou a peça como uma série corrida de quintilhas, agrupadas em pelo menos duas secções principais». Esse é também o meu entendimento. Seguiu-se o texto estabelecido por Costa Pimpão, mas as décimas foram divididas em quintilhas e foi adoptado graicamente um espaçamento maior de dez em dez versos. Em segunda coluna indicam-se, na versão da Vulgata, versículos do Salmo 136, os quais vão transcritos junto das quintilhas que os incorporam ou se lhes referem. 2.2. Outro tipo de estrutura tem a ver com a marcação nítida de dois tempos no poema: a primeira parte de abandono e renúncia ou enjeitamento das condições e características «terrenas» do canto, do mundo sensível, e a segunda, em que o canto, demandando o mundo inteligível, prosigue a lo diuino... Berardinelli vê o poema dividido em duas situações, temporal (vv. 1-175) e espacial (vv. 181-360; Berardinelli 2000). Salgado Júnior encontra na própria sequência do salmo a ordem seguida no poema: «narração do que se passa quando os israelitas são convidados a cantar; canto e promessa de irmeza no amor saudoso de Jerusalém; voto de vingança contra os inimigos de Jerusalém» (Salgado Júnior 1936). Para Hernâni Cidade, Camões não trata da oposição entre lugar e lugar, mas entre tempo e tempo. 2.3. Quanto a temas semelhantes tratados por Camões, convém assinalar os sonetos versando o tema de Babel e Sião e a ele atribuídos, embora essa atribuição seja discutível pelo menos nalguns casos, que vieram a ser incluídos nas edições de 1616 (Cá nesta Babilónia donde mana), 1668 (Na ribeira de Eufrates assentado) e 1685-1689 (De Babel sobre os rios nos sentamos, Sobre os rios do reino escuro quando e Em Babilónia sobre os rios quando). Além disso, há, noutras obras do poeta, uma longa sequência de aspectos lexicais e frásicos semelhantes a passagens destas redondilhas. Lugares paralelos, mais ou menos directamente detectáveis, podem encontrar-se em Dante e Jorge Manrique. E há inúmeros fragmentos de outros salmos que repercutem no texto de Sôbolos rios que vão. 2.4. Uma das razões para a datação mais tardia da escrita do poema prende-se com o papel de fonte ideológica que a Imagem da vida cristã de 35 COMENTÁRIO A CAMÕES, vOl . 3 Frei Heitor Pinto muito provavelmente teve na construção do texto e na autêntica rapsódia temática que este percorre. A primeira parte da Imagem foi publicada em 1563, não podendo ter chegado à Índia antes de inais do ano seguinte (o que seria certamente muito tardio em relação ao naufrágio na foz do Mekong), e a segunda parte, também com muita matéria relevante para as redondilhas, só saiu dos prelos em 1572. Autores tão diversos como Joaquim Ferreira, A. Correia de Oliveira e Eduardo Lourenço admitem essa inluência, que julgamos ter contribuído para demonstrar em concreto, através de um cotejo bastante minucioso a que procedemos, entre os diálogos da Imagem e o texto das redondilhas (Moura 1985). Por isso escrevemos, a partir do levantamento dos recursos estilísticos do frade jerónimo feito por Mário João Pereira Loureiro, que «não é difícil supor quanto teria fascinado Camões o reencontrar, na Imagem da vida cristã, de todo um arsenal ideológico e estilístico, de intertextualidades espiritualmente revalorizadas porque reorientadas, de démarches platónicas e petrarquistas, de maneiristas paralelismos e oposições de contrários, de uma obsessiva dialéctica entre o jogo das aparências iguradas e a realidade substancial, de equilíbrios fónicos e virtuosismos semânticos, de concreto e abstracto». Por outro lado, a especiicação dos instrumentos musicais pendurados nos salgueiros como órgãos e frauta (v. 116) parece derivar directamente da adaptação do salmo 136 feita no Segundo cancionero espiritual de Jorge de Montemor (Antuérpia, 1558), que foi logo proibido no ano seguinte e não poderia ter chegado ao Oriente a tempo de inluenciar Camões numa altura em que este já teria ido para as paragens da China. Mas, para uma melhor compreensão da adstrição, em tempos camonianos, da lauta ao canto profano e da lira ao canto divino numa perspectiva da história cultural e das mitograias literárias europeias, é de atentar também no longo trajecto que vai de Pã e Orfeu a Sôbolos rios e no horizonte «pós-órico» em que estas redondilhas se inscrevem, que foi desenvolvidamente abordado por Rita Marnoto ao estudar as relações entre Camões e Sanazzaro no seu estudo fundamental «Da Arcadia a Sôbolos rios» (Marnoto 2007). Numa perspectiva que proporcione o cotejo dos conteúdos e das modalidades de utilização da medida velha e eventualmente contribua para ainar a questão da datação do poema camoniano, importa ainda assinalar a importante paráfrase anónima do Salmo 136 publicada por Carlos Ascenso André em 1992, Ho psalmo de Svper Flvmina Babylonis em 36 SôboloS rioS que vão trova, sem se mudar nada da sentença a noso preposito, que será do segundo ou do terceiro quartel do século XVI (André 1992). 3. Indicação sumária de fontes: índice do Cancioneiro do Padre Pedro Ribeiro, Cancioneiro de Cristóvão Borges, cancioneiro da Real Academia de la Historia de Madrid, ANTT, MS. 22037 (não consultado), Rimas 1595, Rimas 1598. Não se levantam quaisquer dúvidas quanto à autoria camoniana destas redondilhas. Os editores modernos oscilam entre as duas edições da lírica, de 1595 e 1598, na ixação do texto, assinalando, de um modo geral, os pontos em que se afastam da versão que seguem. Além das edições de obras completas ou da lírica do poeta, de Juromenha a Maria de Lurdes Saraiva, passando por José Maria Rodrigues e Afonso Lopes Vieira, Costa Pimpão, Hernâni Cidade e António Salgado Júnior, há edições, algumas delas antológicas, em que as redondilhas em análise iguram e que devem ser mencionadas: Sousa da Silveira (Textos quinhentistas), Vitorino Nemésio (Versos 1957), Sebastião Pestana (Sôbolos rios que vão... 1981), Cleonice Berardinelli (Berardinelli 2000), Maria Vitalina Leal de Matos (Matos 2012). Trabalhos que registam variantes e vocabulários: edição de Arthur Lee-Francis Askins do Cancioneiro de Cristóvão Borges (mas só até ao v. 190, uma vez que aí o texto icou interrompido), edições das redondilhas de Sebastião Pestana (Sôbolos rios que vão... 1981) e de Sousa da Silveira (Textos quinhentistas). A edição de Sebastião Pestana faz o levantamento dos esquemas rimáticos («das estrofes, das rimas e do vocabulário rimado»), esquematização a que Luciana Stegagno Picchio também procede (Stegagno Picchio 1982). De assinalar igualmente a edição de José Pedro Machado (Monumentos literários [1971]) que reproduz diplomaticamente a de Rimas 1595 e faz o levantamento das opções editoriais das modernas edições de Rodrigues-Vieira, Hernâni Cidade e Costa Pimpão. 4. Ficam feitas nos parágrafos que antecedem várias indicações e considerações quanto à estrutura do poema e à problemática principal que suscita, isto é, a partição em décimas ou quintilhas. Diz Cleonice Berardinelli que a redondilha, sobretudo a maior ou heptassilábica, e o decassílabo «são os pés métricos das duas vertentes da lírica camoniana: a medieval e a 37 COMENTÁRIO A CAMÕES, vOl . 3 renascentista» (Berardinelli 2000). No tocante ao recurso à medida velha, as redondilhas Babel e Sião representam o ponto mais alto. Cleonice Berardinelli remete para a teorização de Juan del Encina (na parte que interessa ao nosso caso, ela encontra-se no vol. IV da Antologia de poetas líricos castellanos de Menéndez Pelayo), distinguindo-se entre pés, versos, mote, vilancete, coplas e canções. Mas, nota D. Cleonice, se o poema em apreço «não se compõe a rigor de um mote e glosas, não deixa de ser, em seu todo e em cada uma das suas partes, a glosa do Salmo 136, e de cada um dos seus versículos, respectivamente». Por isso considera o poema «um tipo à parte na lírica camoniana em metros tradicionais» (Berardinelli 2000). De notar que, enquanto segundo Carolina Michaëlis a redondilha não servia para os conceitos poéticos do Renascimento, para Luciana Stegagno Picchio a modernidade deste poema de Camões está precisamente na utilização da medida velha: «la modernité de Camões se trouve dans sa mediévalité, dans le fait qu’il n’a pas renoncé, dans son choix exclusif de la “medida nova” (au sens large), propre aux poètes italianisants des débuts du XVe siècle portugais, à toutes les expériences culturelles, à toute la science poétique transmise par un Moyen Age ibérique qui était beaucoup moins isolé de l’Europe que ne le sera le Portugal pendant les siècles suivants» (Stegagno Picchio 1982). 5. 1 Sôbolos rios que vão Costa Pimpão seguiu o texto de 1595, afastando-se dele apenas uma vez, no verso inicial, preferindo Sôbolos rios a Sobre os rios, por achar esta formulação menos eufónica; por outro lado, limita-se a assinalar duas diferenças entre 1595 e 1598: — A primeira quanto a que, quanto da vida passa / está receitando a morte (vv. 99-100), mantendo receitando que, em 1598, aparece como recitando. De notar que receitando aparece também no Cancioneiro de Cristóvão Borges e no cancioneiro da Real Academia de la Historia de Madrid. — A segunda quanto a alvídrio (v. 295) que saiu arbítrio em 1598. O mesmo editor adopta por vezes sinais de pontuação que poderão ser menos justiicados: pontos de exclamação no im dos vv. 100, 255 e 355, ponto de interrogação a rematar o v. 130, falta de uma vírgula a seguir a ó carne do v. 311. 114-115 terné presente a los ojos / por quien muero tan contento Camões faz uma ligeira alteração aos versos do soneto de Boscán (Ponme en la vida más 38 SôboloS rioS que vão brava, importuna) cujo inal cita. Boscán escreveu: «dondequiere terné siempre presentes / los ojos, por quien muero tan contento», enquanto Camões escreve na quintilha 23: terné presente a los ojos / por quien muero tan contento, deslocando o sentido daqueles versos. Rita Marnoto interpreta este emprunt como «emblema da poesia negada, da poesia de um passado superado, da poesia da frauta», isto é, como recusa de «uma memória literária petrarquista dotada de excepcional intensidade» já que o abandono da lauta implica o do tema órico e «a superação do petrarquismo amoroso» (Marnoto 2007). 191-200 Nas quintilhas XXXIX e XL aigura-se estar trocada a referência às duas partes do versículo 6 do Salmo, uma vez que E se eu cantar quiser ... Hierusalém, sem te ver (vv. 191, 193) corresponde à transposição da sua primeira parte. 205-206 reminiscência... tábua rasa Sendo o conceito de reminiscência de ordem platónica e o conceito de tábua rasa de ordem aristotélica, crê-se que a referência ao segundo não diminui a importância da matriz platónica que informa o poema. Pode entender-se que, por nunca ter visto a essência da terra da Glória, em sentido físico e literal, ela não pode ser recordada na memória, mas sim na reminiscência, enquanto arquétipo. A noção de tábua rasa era muito vulgar numa época de ortodoxias aristotélicas; cf. João de Barros, Diálogo com dois ilhos seus sobre preceitos morais em modo de jogo: «a nossa alma [...] segundo Aristótiles e como hũa tábua rasa sem pintura». Propusemos em tempos o cotejo com outros passos camonianos: Lus. III 121; canção VII 84-85 e 89-90; elegia II 19-21, 111; elegia IV 4-6; sonetos 82, 105, 110. Nesses lugares, o que na alma está escrito ou impresso parece ter a ver com a experiência vivida. No v. 206 estabelece-se a relação com a reminiscência: a alma é tábua rasa, mas preexiste nela «impressa» a doutrina celeste. Nada disto é líquido todavia. 216-219 humana igura... raio de fermosura Formosura humana e formosura divina (quintilhas XLIV, XLV e L); cf. Rimas: 269-271, VI ode; Rimas: 318, I écl. vv. 418-420; Rimas: 344, IV écl. vv. 148-149. Ter em atenção os caps. LIX, LXII e LXIV a LXIX do IV livro de Il cortegiano de Castiglione, o comentário de Pico à Canção de Beniveni (caps. VIII-XII do II livro e IX a X do III livro) e Plotino, Enneadas, I 6, 8: «Já que quem contempla a beleza corpórea não deve perder-se nela, mas há de reconhecer que esta é só uma imagem, uma pegada, uma sombra, e voar com o pensamento para aquilo cuja imagem esta representa» (utilizamos uma citação feita por Edwin Panofsky). 39 COMENTÁRIO A CAMÕES, vOl . 3 223 não do sol, mas da candeia Convém explicitar, porque vários editores modernos se enganaram quanto a esse ponto, que no v. 223 não pode aceitar-se a alteração para não do sol, nem da candeia, como fazem Juromenha, Storck, Mendes dos Remédios, Agostinho de Campos, Rodrigues-Vieira, Sousa da Silveira, Cleonice Berardinelli e outros, entre eles, em tempos, o próprio Costa Pimpão. O verso relecte uma passagem de Mateus (VI 22), «Lucerna corporis tui est oculus tuus». Assim, a luz que ateia o fogo que cá sujeita, sendo ateada pelos olhos que são a candeia do corpo (da mulher amada), é ainal uma sombra daquela Ideia / qu’ em Deus está mais perfeita; cf. Leão Hebreu: «la luce del sole [...] non è altro che ombra della luce inteletuale, ovvero splendore di quella nel corpo più nobile»; cf. também Frei Heitor Pinto: «a corporal formosura, em se vendo, contenta os olhos dos enganados mortais, desatentados em sua vista, mas queima e abrasa-lhes os corações e cega-lhes o juízo». 275 a palinódia já canto É provável que Camões tenha bebido em Horácio o conceito de palinódia, como Vergílio Ferreira sustentava em 1942. Costa Ramalho (Ramalho 1992), na esteira de Eugenio Asensio, chama a atenção para os Adagia de Erasmo e para uma obra de Vasco Diaz Tanco de Fregenal, aventureiro e impressor que também trabalhou no Porto e que em 1547 publicou em Orense o Libro intitulado palinodia de la nephanda y iera nación de los Turcos..., onde se lê: «Palinodia: el ql vocable es griego y compuesto de dos dictiones: la primera es Palin: y la segunda: Odia. Palin: quiere decir en lengua latina: Rursus. Odia quiere decir cantus. De manera q Palinodia en Griego qere dezir en latin: Reccantatio, vel Retractatio». O conceito de palinódia é também utilizado no De sapiente de Charles de Bovelles (1510), cujas relações com a Península Ibérica foram estudadas por Silva Dias (Dias 1960) e Marcel Bataillon (Bataillon 1991) e que apresenta uma singular ainidade com o seu emprego por Camões nas redondilhas: «Est enim hic secundus Homo velut proprium humanae Contemplationis obiectum, velut item mundi exodium exitusve ac palinodia, que a mundana peregrimatione sapiens Homo recinit canitque receptui» (‘Este segundo homem é com efeito como que o objecto próprio da contemplação humana, como o termo, a conclusão e a repetição, palinódia, do mundo que o Homem Sábio faz ressoar quanto anuncia a retirada da sua peregrinação através do mundo’). Mas deve observar-se também que, a ser Sôbolos rios posterior a Os Lusíadas, Camões já tinha feito no seu poema épico uma importante pa40 SôboloS rioS que vão linódia em sentido técnico ao desmontar toda a maquinaria mitológica e pagã de Os Lusíadas e a propósito do Empíreo: Aqui, só verdadeiros, gloriosos divos estão, porque eu, Saturno e Jano, Júpiter, Juno, fomos fabulosos, ingidos de mortal e cego engano. Só pera fazer versos deleitosos Servimos […] (Lus. X 82, 1-6) E ainda no mesmo contexto há que ter presente que Frei Bartolomeu Ferreira também refere uma palinódia na sua censura, ao «aduertir os Lectores que o Autor [...] vsa de hũa ição dos Deoses dos Gentios. E ainda que sancto Augustinho nas suas Retractações se retracte de ter chamado nos liuros que compos de Ordine, aas Musas Deosas. Toda via como isto he Poesia e ingimento, e o Autor como poeta, não pretenda mais que ornar o estillo Poetico não tiuemos por inconueniente yr esta fabula dos Deoses na obra, conhecendoa por tal, e icando sempre salua a verdade de nossa sancta fee, que todos os Deoses dos Gentios sam Demonios». 338 declina Há quem entenda que este verbo exprime uma descida, o que parece incongruente no contexto, a não ser que se tratasse de declinar os pensamentos à humanidade de Cristo, de modo que por esta se subisse à divindade, como se poderia dizer parafraseando Frei Bartolomeu dos Mártires. A melhor interpretação será porventura a proposta por Luís de Sousa Rebelo: Camões «pode muito bem estar a utilizar o verbo no seu mais corrente sentido etimológico [...]. Com efeito, declinare, em latim, não exprime qualquer ideia de descida, mas sim de delexão, mudança natural de uma parte para outra, como se vê no Moraes até à edição de 1851» (Rebelo 1986). Vasco Graça Moura 41 Odes 5 10 15 20 25 I Fermosa fera humana, em cujo coração soberbo e rudo a força soberana do vingativo Amor, que vence tudo, as pontas amoladas de quantas setas tinha, tem quebradas; II Amada Circe minha (posto que minha não, contudo amada), a quem um bem que tinha da doce liberdade desejada pouco a pouco, entreguei, e, se mais tenho, inda entregarei: III Pois natureza irosa da razão te deu partes tão contrárias que, sendo tão fermosa, folgues de te queimar em lamas várias, sem arder em nenhũa mais que enquanto alumia o mundo a Lũa; IV pois triunfando vás com diversos despojos de perdidos, que tu privando estás de razão, de juízo e de sentidos, e quási a todos dando aquele bem que a todos vás negando; V pois tanto te contenta ver o nocturno moço, em ferro envolto, debaixo da tormenta de Júpiter, em água e vento solto, 45 COMENTÁRIO A CAMÕES, vOl . 3 30 35 40 45 50 à porta que, impedido lhe tem seu bem, de mágoa adormecido; VI porque não tens receio que tantas inocências e esquivanças a deusa que põe freio a soberbas e doudas esperanças castigue com rigor, e contra si se acenda o fero Amor? VII Olha a fermosa Flora; de despojos de mil suspiros rica, pelo capitão chora que lá em Tessália, enim, vencido ica, e foi sublime tanto que altares lhe deu Roma e nome santo. VIII Olha em Lesbos aquela no seu psalteiro insigne conhecida; dos muitos que por ela se perderam, perdeu a cara vida na rocha que se inlama com ser remédio estremo de quem ama. IX Pelo moço escolhido, onde mais se mostravam as três Graças; que Vénus escondido para si teve um tempo antr’as alfaças, pagou co a morte fria a má vida que a muitos já daria. 46 FermoSa Fer a humana 55 60 65 70 75 X E, vendo-se deixada daquele por quem tanto já deixara, se foi desesperada precipitar da infame rocha cara; que o mal de mal querida sabe que vida lhe é perder a vida. XI «Tomai-me, bravos mares; tomai-me vós, pois outrem me deixou!» E assi, dos altos ares pendendo, com furor se arremessou. Acude tu, suave, acude, poderosa e divina ave! XII Toma nas asas tuas, Minino pio, Elisa sem perigo, antes que nessas cruas águas caindo, apague o fogo antigo. É digno amor tamanho de viver e ser tido por estranho? XIII Não; que é razão que seja para as lobas isentas, que amor vendem, exemplo onde se veja que também icam presas as que prendem. Assi deu por sentença Némesis, que Amor quis que tudo vença. (Rimas, Ode 4, pp. 266-268) Lapsos corrigidos v. 36 contra si em vez de contra ti, conforme a lição de todos os testemunhos (Rimas 1595, Rimas 1598, Manuscrito de Juromenha). 47 COMENTÁRIO A CAMÕES, vOl . 3 v. 56 tanto em vez de tantos, conforme a lição de todos os testemunhos (Rimas 1595, Rimas 1598, Manuscrito de Juromenha). Lições a corrigir v. 32 insolencias (Rimas 1595, Manuscrito de Juromenha) em vez de inocências (Rimas 1598). v. 47 se infama (Rimas 1595, Manuscrito de Juromenha) em vez de se inlama (Rimas 1598). v. 68 illesa (Rimas 1598, Manuscrito de Juromenha) em vez de Elisa (Rimas 1595), juntamente com Toma-a em vez de Toma no v. 67. 1. Ao interpretar esta ode, Aguiar e Silva quer justamente libertar o campo da «concepção biograista da enunciação poética» (Silva 2008: 154), que no caso de Camões se tem vindo a inscrever com pervicácia na crítica literária a partir do primeiro comentário de Faria e Sousa (Rimas varias II 1689, 3: 139-147). Aguiar e Silva ataca com particular virulência a fantasiosa reconstrução que José Hermano Saraiva (1980: 156-157) apresenta na sua biograia romanceada de Camões. Hermano Saraiva pretende mesmo identiicar nos versos da IV ode duas mulheres diferentes, mas tanto uma como outra bem reais, às quais se destinariam as palavras do poeta. A primeira é D. Violante de Andrade, condessa de Linhares, celebrada sob o duplo senhal de fera e de Circe, como aquela que nega os seus favores ao poeta. A segunda não seria se não D. Joana de Noronha, ilha da própria D. Violante, cuja presença no texto é extrapolada a partir do sintagma seu bem (v. 30): a mãe (invejosa?) impede o poeta de ver o seu bem, ou seja, a ilha, que permanece para ele inatingível atrás de uma porta sempre fechada. Tão engenhosa hipótese baseia-se numa interpretação sintáctica errada da V estrofe, como o explica claramente Aguiar e Silva (2008: 156). Contudo, o que é mais importante são as considerações gerais deste crítico, que não se cansa de repetir: «em vez de ler nas Rimas uma poesia que espelha vicissitudes biográicas, é necessário aprender a ler nelas uma poesia que utiliza magistralmente convenções e códigos literários para gerar efeitos autobiográicos» (2008: 161). De facto, a leitura em chave biográica de um texto poético é uma distorção crítica que, tendo-se airmado com o Romantismo, ainda hoje resiste ao seu desaparecimento. A ode de Camões, como toda a sua poesia lírica, inscreve-se numa tradição poética secular, que remonta aos autores 48 FermoSa Fer a humana clássicos latinos e gregos. Assim, a lírica amorosa é um género altamente estilizado e quase ritualizado desde os poetas elegíacos latinos (Catulo, Tibulo, Propércio). Com Petrarca e o petrarquismo, o código de referência para os poetas do século XVI enriquece-se e amplia-se, mas continua a ser um código, ou seja, um conjunto convencional e relativamente rígido de imagens, conceitos e iguras que cada poeta repropõe com a sua marca original. A poesia de amor não é, nem nunca o foi, um espelho iel da realidade. Engana-se quem pretende encontrar nela a expressão de sentimentos sinceros, conissões ditadas pelo coração ou mesmo dados biográicos concretos. É sempre necessário distinguir a persona histórica que o poeta é, da persona lírica, ou seja, da personagem literária que fala e age em seu nome. De resto, contra a interpretação autobiográica da IV ode já se declarava abertamente Wilhelm Storck, que apresenta o texto como III ode, acrescentando-lhe o título Amor und Nemesis (‘Amor e vingança’). Segundo Storck (III 1881: 339), não se devia procurar nem querer encontrar a todo o custo, neste poema, ecos de relações pessoais de Camões com uma «moça de plazer» (a expressão é de Faria e Sousa, Rimas varias II 1689, 3: 141). Tratar-se-ia na verdade de um estudo de modelos clássicos acerca do tema da vingança que se abate sobre certos amantes para os fazer expiar as próprias culpas. Com um humor muito alemão, Storck conclui que a eventual e improvável prostituta a quem o poema seria dedicado não seria capaz de compreender um único verso. Também o visconde de Juromenha, já antes do crítico germânico, se tinha exprimido com louvável cautela, resumindo muito sobriamente o contexto: «Ode IV. A uma dama que repartia os seus agrados, porém que desdenhava os seus amores; aponta-lhe vários exemplos com que o amor castiga tais esquivanças, terminando pelo de Safo. Suponho que esta ode não é escrita a D. Catarina de Ataíde» (Obras II 1861: 537-538). Com esta última frase, Juromenha alude ao comentário precedente de Faria e Sousa, sem o citar. O erudito do século XVII, de facto, logo de início apressara-se a excluir que a ode fosse dirigida a essa «Dama de Palacio, a quien amó casta, y honestamente», D. Catarina de Ataíde, precisamente. Preocupado em reairmar a pureza dos sentimentos do poeta sob essa perspectiva, Faria e Sousa adianta então a hipótese de que a senhora apostrofada por Camões seja «una Dama Lisbonense, de las que buscan a todos [...] y parece que él se desveló por ella». Ainda não satisfeito, chega 49 COMENTÁRIO A CAMÕES, vOl . 3 depois a insinuar que a ode tivesse sido escrita de encomenda, «a ruego de algun amante», da misteriosa ‘mulher-fera’, que oferece o corpo mas nega a todos o seu amor (Rimas varias II 1689, 3: 139). Ao fazê-lo, reconhece implicitamente a V canção de Garcilaso de la Vega, Si de mi baja lira, como um dos principais modelos da IV ode de Camões. Esta célebre canção (na verdade, também ela uma ode, como o especiica o título Ode ad lorem Gnidi) foi de facto escrita pelo autor castelhano durante a sua estadia em Nápoles, para defender a causa de um seu amigo, Mario Galeota, perante a senhora que cortejava sem sucesso, D. Violante Sanseverino. A mulher bela mas cruel, que permanece insensível à paixão do amante, é uma tipologia ixa da poesia erótica desde as suas origens antigas. Na IV ode, Camões representa-a através de duas metáforas, ambas já codiicadas pela poesia petrarquista: a ‘mulher-fera’, ou seja, a mulher que tem aspecto humano e coração ferino; e a ‘mulher-Circe’, capaz de embruxar os homens com os seus iltros mágicos para os reduzir ao seu poder. Tanto num caso como no outro, o amante ica refém da sua paixão amorosa, apesar de não ter qualquer esperança em ser correspondido. Esse amor em sentido único, desesperado precisamente por ser sem esperança, pode levar a gestos extremos como o suicídio. Disso mesmo se deve tornar consciente a mulher-fera, do facto de que no im ‘Amor vence tudo’ e se pode vingar dessa atitude distante e soberba da amada. A crueldade da mulher não poderá escapar à punição dos deuses, e não só de Cupido, deus do Amor, como também de Némesis, a deusa que castiga excessos e vícios de todo o tipo, em particular a soberba e a lascívia. Sobre este pano de fundo, inserem-se outras imagens ou conceitos secundários, também em grande parte ligados à tópica da poesia erótica. É um dogma reconhecido por todos que ‘Amor faz perder a liberdade’. O amante é capturado e feito prisioneiro desde o primeiro olhar que recebe da amada. E não pode recuperar a liberdade perdida. Decorre desta primeira evidência a metáfora bélica, muito usada nos poemas eróticos, segundo a qual a mulher é a ‘inimiga’ (nemica) que derrota o amante na ‘guerra de amor’, e o traz em ‘triunfo’, mostrando os ‘despojos dos vencidos’. Numa aplicação especíica desta metáfora, o amante, ‘armado’ a rigor, guarda a porta da amada na vã esperança de ser acolhido por ela, pronto para defrontar outros pretendentes e também disposto a icar de vigia durante toda a noite ao frio e ao mau tempo. É o tema do exclusus amator (correspondente ao greco paraklausithyron) que Camões desenvolve na V 50 FermoSa Fer a humana estrofe da ode, como bem o assinala Aguiar e Silva, que porém pretende ler todo o poema como «a lamentação cantada por um amante diante da porta fechada da mulher por quem está apaixonado» (2008: 156), ao passo que o exclusus amator apenas é uma das imagens sobre a qual é construída a ode camoniana, limitando-se, como se disse, a uma única estrofe. Tratando-se de uma apóstrofe ou invocação que o poeta dirige à amada, pedindo-lhe para moderar o seu coração de fera e retribuir o amor de que é objecto, na ode não podia faltar o recurso aos admonitoria, ou seja, personagens históricas ou mitológicas que constituem um caso exemplar em relação ao tema desenvolvido no texto, e cujas vivências servem de aviso à mulher-fera. No caso desta ode de Camões, trata-se de exemplos de mulheres que acabaram por pagar a sua crueldade fria, ao apaixonarem-se por homens que por sua vez permaneceram insensíveis ao seu amor: porque também quem prende pode icar preso, como reza o v. 76, num andamento quase proverbial: que também icam presas as que prendem. Dos dois exempla, ou seja, os casos exemplares que ilustram a posição que é sustentada, o primeiro diz respeito a Flora, uma cortesã de Roma que se enamorou de Pompeu, o grande comandante derrotado por César. A essas vicissitudes históricas é apenas dedicada uma estrofe, a VII. Muito mais longo é o caso dramático do segundo exemplum, a meio caminho entre história e lenda, ou seja, o amor de Safo por Faonte, que se conclui com o trágico suicídio da poeta grega, ao lançar-se do alto de um penedo no mar da ilha de Lêucade. Um único tema, de entre os que são introduzidos na IV ode, escapa ao paradigma amoroso, pelo menos na sua origem puramente ilosóica: o tópico do apetite natural que se opõe à razão, ou seja, a parte animal do homem que luta contra a sua parte racional ou espiritual, e vence. Eixo radial da ilosoia antiga, grega e latina, a oposição natureza versus razão (voluntas contra ratio, appetitus contra intellectus) foi objecto de numerosas glosas, primeiro nos escritos exegéticos cristãos, depois na ilosoia escolástica de Tomás de Aquino e Duns Scoto, até chegar à doutrina neoplatónica com Marsilio Ficino. Na IV ode, Camões retoma este tema na III estrofe, ligando-o à oposição paralela entre o aspecto angelical da mulher e o seu coração de fera, que constitui, como já se disse, um dos baluartes do Cancioneiro de Petrarca (ver, por exemplo, «Questa humil fera, un cor di tigre o d’orsa, / che ’n vista humana e ’n forma d’angel vène, / in riso e ’n pianto, 51 COMENTÁRIO A CAMÕES, vOl . 3 fra paura et spene», Canz. 152, 1-3). O paradoxo inexplicável é que na mulher amada possam coexistir elementos opostos e contraditórios, de tal modo que a mulher-fera acaba por ser ela própria um oximoro vivo, em que os opposita convivem sem se anularem (sobre o conceito de opposita, ver o soneto Amor é um fogo que arde sem se ver). Do ponto de vista da estrutura, já se disse que a IV ode se apresenta sob a forma ictícia de uma apóstrofe do poeta à mulher amada. É, pois, com um vocativo que se abrem as duas primeiras estrofes (Fermosa fera humana, v. 1; Amada Circe minha, v. 7). Segue-se depois um conjunto de três estrofes (III-V), cada uma das quais é introduzida pela conjunção declarativa-causal pois (vv. 13, 19, 25). De facto, são estrofes de carácter explicativo, onde se enumeram as atitudes ‘reprováveis’ da mulher amada (a inconstância, a soberba, a arrogância, o gozo pelo sofrimento dos outros). A VI estrofe liga-se, por sua vez, aos dois vocativos iniciais para formular a pergunta com a qual inalmente se conclui a frase iniciada no I verso (e no VII): porque é que (cf. porque, v. 31), depois de tantas manifestações de desdém e de desprezo arrogante, a mulher não tem medo do castigo de Némesis? A parte conclusiva da ode, da VII à XII estrofes, é inteiramente dedicada, como se notou, aos exempla, ou seja, àquelas iguras exemplares de mulheres que, por se terem mostrado insensíveis, sofreram por sua vez um castigo amoroso. As estrofes VII e VIII, introduzidas pelo mesmo verbo no imperativo (Olha..., vv. 37, 43), voltam a propor uma apóstrofe directa da amada. Dirigindo-se a ela, o poeta recorda-lhe brevemente o lamento de Flora por Pompeu, derrotado em batalha, para depois se alongar sobre o mito de Safo e Faonte, que ocupa as quatro estrofes seguintes (IX-XII). Uma ulterior pergunta colocada no inal da XII estrofe introduz a gnome conclusiva, ou seja, a sentença inal, atribuída à própria Némesis: as mulheres dispostas a venderem o seu amor, negando porém a reciprocidade dos sentimentos, é justo que saibam que existe a vingança de Amor (cf. o vingativo Amor do v. 4) e que também icam presas as que prendem (v. 76). A XIII estrofe, que é a última da ode, retoma de forma circular o dogma do ‘Amor que vence tudo’, que já tinha sido introduzido na estrofe inicial (do vingativo Amor, que vence tudo, v. 4 / Némesis, que Amor quis que tudo vença, v. 78). O círculo fecha-se, reairmando que o verdadeiro tema principal da IV ode é o de Amor vingativo, ou a vingança de Amor, como bem o viu Wilhelm Storck na sua edição do século XIX. 52 FermoSa Fer a humana É também a Storck que se deve fazer referência, para uma avaliação global da ode. De facto, a elevadíssima quantidade de modelos latinos e da literatura em língua vulgar que podem ser encontrados, em iligrana, no seu texto, dá credibilidade à hipótese avançada pelo crítico alemão de que se trata essencialmente de um estudo, ou seja, de um poema escrito com grandes ambições e com a intenção manifesta de desenvolver o tema de Amor vingativo, como o poderia fazer um autor da Antiguidade. No fundo, o desaio de todos os autores do século XVI que compõem odes é o de se confrontarem com os grandes modelos do passado. Sem entrar em detalhes, apenas assinalamos as relações interdiscursivas entre a IV ode e uma série de precedentes literários, quer em latim, quer em vulgar. Em primeiro plano igura Horácio com a ode III 10, pela apóstrofe directa da amada que não corresponde ao amante, assim se fazendo responsável pelos seus actos temerários. Por sua vez, o tema dominante de Amor vingativo encontra os seus precedentes directos em Catulo e em Tibulo. Quanto a Catulo, ver o L poema: «ne poenas Nemesis reposcat a te. / est vehemens dea: laedere hanc caveto» (Carm. L 20-21; ‘se não queres que Némesis te faça descontar a pena. / É uma deusa colérica e severa: tem cuidado em não a ofender’). Quanto a Tibulo, ver a elegia II 4, na qual a escravidão amorosa («servitium») é assinalada por cadeias e grilhões («servitium sed triste datur, teneorque catenis, / et numquam misero vincla remittit Amor», vv. 3-4; ‘triste é a escravidão que me é imposta, estou preso com cadeias / e a mim infeliz Amor não alivia nunca os grilhões’), e a amada cruel («saeva puella», v. 6) se recusa a apagar o fogo da paixão, o que leva à invocação inal de Némesis: «si modo me placido videat Nemesis mea vultu» (v. 59; ‘se a minha Némesis me olhar com vulto sereno’). Por im, para o tema do exclusus amator os exemplos são tão numerosos que não é possível indicar um modelo único. Um dos principais, que está na própria origem do paraklausithyron latino, pode-se sem dúvida identiicar em Propércio e na elegia I 16 (monólogo de uma porta, que sofre os insultos e os maus-tratos dos excluídos), considerando também o LXVII poema de Catulo. Mas variações sobre o tema encontram-se igualmente em Horácio (Carm. III 10; I 25), bem como em Ovídio nos Amores («Ianitor — indignum! — dura religate catena», Am. I 6, 1; ‘Tu guarda da porta, que estás atado com uma cruel cadeia – facto por si indigno!’). Como se pode ver por esta rápida recolha de dados, Camões remonta quer ao ilão da ode horaciana, quer à tradição da poesia elegíaca. Desta 53 COMENTÁRIO A CAMÕES, vOl . 3 última, em particular, retoma dois elementos de tendência áulica, o mito e a apóstrofe, já presentes na reinada poesia alexandrino-neotérica cultivada por Catulo e pelo círculo de poetas onde se integra, bem como naquela vertente gnómica para a qual «il poeta fa rientrare la sua esperienza sotto leggi generali della vita o tende a ricavarle da essa e ad insegnarle ad altri» (La Penna 1970: xxIII). Uma última observação, que não é de menor relevo, reconduz a IV ode aos elegíacos latinos: a puella cantada por Propércio (Cynthia), por Tibulo (Delia) ou por Catulo (Lesbia) é sempre uma mulher culta, que ama o luxo, que vive à custa de vários amantes e que acolhe o poeta como um entre muitos, sem retribuir o seu amor. Esta igura de mulher não é uma mera prostituta, podendo ser colocada em paralelo com uma cortesã culta do Renascimento. É nesse sentido que há que entender a alusão às lobas isentas, que amor vendem (v. 74) na estrofe inal da IV ode. Para concluir esta resenha de precedentes antigos, convirá referir ainda as fontes especíicas que Camões usa para os dois exempla de Flora e de Safo. Para o segundo exemplum, o modelo principal, embora não certamente o único, é de facto a epístola de Safo a Faonte das Heróides de Ovídio (Her. XV), só descoberta no século XV e portanto dotada de uma grande actualidade. Para Flora e Pompeu, por seu lado, nenhuma das fontes tradicionalmente indicadas (isto é, Plutarco, Vitae, Pompeius 2, 5-8; Santo Agostinho, De Civitate Dei VI 7; Lactâncio Divinarum Institutiones I 20) contém os elementos efectivamente utilizados na IV ode. Surge então uma nova questão, relativa aos conhecimentos histórico-mitológicos de Camões. Perante esta impressionante rede de reenvios a poetas latinos de várias épocas e cuja inspiração é diversiicada, a paleta de modelos da literatura em vulgar limita-se apenas a dois nomes. O primeiro, inevitável, é Petrarca, quer como poeta do Cancioneiro, no qual a mulher-fera é um dos oximoros fundacionais, quer como poeta dos Triumphi, obra escrita em idade avançada e que icou inacabada. O título recupera o sentido original da palavra latina triumphus, ou seja, o cortejo com que um general vitorioso atravessava Roma, guiando um carro triunfal, precedido pelas suas insígnias e pelo saque trazido da guerra, e acompanhado pelos inimigos derrotados e condenados à escravidão (cf. IV ode, IV estrofe). Na sua gigantesca alegoria, Petrarca põe inicialmente em cena o Triumphus Cupidinis, o Triunfo de Amor. Através da icção de um sonho, o poeta vê Amor-Cupido no seu carro triunfal, circundado pelo cortejo dos vencidos de Amor. Esse quadro permite-lhe não só apresentar vários 54 FermoSa Fer a humana catálogos de célebres pares de amantes, como também deter-se detalhadamente sobre a fenomenologia erótica e em particular sobre o tema do amor não correspondido, que é central na tipologia da mulher-fera (Triumphus Cupidinis III 100-184). No Triumphus Pudicitie, o Triunfo da Castidade (vv. 178-186), é Laura, a mulher amada por Petrarca, que se apresenta para colocar diante da estátua da Castidade o saque pilhado ao inimigo, ou seja, as armas despedaçadas de Amor (cf. as pontas amoladas / de quantas setas tinha, vv. 5-6), com um gesto que decalca o dos capitães romanos quando ofereciam no templo de Júpiter Ferétrio o rico saque (spolia opima) tirado aos capitães inimigos que tinham sido derrotados ( pois triunfando vás / com diversos despojos de perdidos, vv. 19-20). Finalmente, e apenas por motivos de cronologia, resta citar Garcilaso de la Vega com a sua Ode ad lorem Gnidi, ou seja a V canção, conhecida por ser o primeiro exemplo de lira na poesia castelhana. Os elementos comuns à V canção de Garcilaso e à IV ode de Camões são não só temáticos, como estruturais. Para a construção do poema, contribuem quer a apóstrofe à mulher, quer a anáfora que se repete ao longo de quatro estrofes consecutivas («Por ti [...]», estrofes VIII, IX, X, XI de Garcilaso; Pois..., estrofes III, IV, V de Camões). O motivo de fundo é também nesse caso a amada que com desdém se recusa a corresponder aos sentimentos do amante, tratando-se, como já se disse, de um amigo pelo qual Garcilaso intercede, e não do poeta que se exprime na primeira pessoa. Para convencer esta mulher cruel a moderar a sua atitude, Garcilaso introduz como exemplum de admoestação a história de Anaxárete e Íis, que ocupa quase inteiramente a segunda metade da ode. O suicídio por amor de Íis, que se enforca diante da porta da amada, corresponde ao suicídio de Safo por amor de Faonte na ode de Camões, ao que se acrescenta a trágica conclusão do mito que vê a desdenhosa Anaxárete transformada em pedra diante do corpo de Íis. Num tal contexto, funcionalmente idêntico, não espanta encontrar no inal da V canção de Garcilaso a referência a Némesis, a própria deusa invocada por Camões com intento dissuasivo em dois passos nevrálgicos da ode, ou seja, na VI estrofe, na qual articula a pergunta à mulher-fera preparada ao longo das primeiras cinco estrofes, e nos dois versos inais que recolhem, de forma gnómica, a sentença irrevogável da deusa: Assi deu por sentença / Némesis, que Amor quis que tudo vença (vv. 77-78). 55 COMENTÁRIO A CAMÕES, vOl . 3 2. A tradição da IV ode limita-se a três testemunhos. Apenas um é manuscrito, o Manuscrito de Juromenha (16-17v), e dois são impressos, a primeira edição das Rimas (1595: 48-49v) e a segunda (1598: 56v-58). Esta situação, que não deixa de ser anómala quando comparada com a de outros poemas de Camões, confronta-se com a solidez da atribuição e a continuidade da presença desta ode nas edições da obra do poeta. Consta em Faria e Sousa (Rimas varias II 1689, 3: 139-147), Juromenha (Obras II 1861: 266-268 e 537-538 para variantes), Costa Pimpão (Rimas: 266-268, texto estabelecido a partir de Rimas 1595 e Rimas 1598) ou Leodegário A. de Azevedo Filho (Lírica de Camões 3 II 1997: 155-186, texto do Manuscrito de Juromenha). Explicitamente atribuída a Camões no único manuscrito sobrevivente, o Manuscrito de Juromenha, a ode igura já na primeira edição das Rimas e, com algumas modiicações essenciais, na segunda. Continua posteriormente a ser publicada em todas as edições seguintes com base ora numa, ora noutra das duas impressões do século XVI. Assim acontece também no caso das Obras editadas pelo visconde de Juromenha em 1861, que reproduz separadamente as variantes do manuscrito que tem na sua posse. A autoria camoniana da ode nunca foi posta em causa. A redacção do Manuscrito de Juromenha apresenta diferenças signiicativas em relação à primeira e à segunda edições das Rimas, com várias lectiones singulares, mas concorda com Rimas 1598 em todos os casos em que a editio princeps mantinha uma lição manifestamente errónea: — no v. 32, inocências (Rimas 1595) em vez de insolencias (Manuscrito de Juromenha = Rimas 1598). — no v. 47, se inlama (Rimas 1595) em vez de se infama (Manuscrito de Juromenha = Rimas 1598). — no v. 68, Elisa (Rimas 1595) em vez de illesa (Manuscrito de Juromenha = Rimas 1598). O caso da IV ode mostra uma vez mais como é essencial o papel que cabe ao Manuscrito de Juromenha no que diz respeito às relações estemáticas com as duas primeiras edições das Rimas. Além de alguns erros manifestos (por exemplo, no v. 43 Lisboa por Lesbo), as lições singulares apresentadas pelo Manuscrito de Juromenha são sem dúvida o resultado de banalizações. Assim: foges por folgues (v. 16); brava por cara (v. 58), abolindo o oximoro infame rocha cara, etc. Tal não impede que o Manuscrito de Juromenha concorde em lições dificiliores com a segunda edição das Rimas (1598), lições essas que divergem da primeira edição (1595). É o que acontece nos três lugares nevrálgicos da 56 FermoSa Fer a humana ode, os vv. 32, 47 e 68 acima citados. Pode-se agora airmar com segurança, à luz da edição crítica do Manuscrito de Juromenha que se encontra em preparação, que este manuscrito não deriva, com certeza, da tradição impressa. A sua concordância com a segunda edição das Rimas (1598), relativamente aos três versos acima indicados, constitui, pois, a certeza estemática de que as lições insolências, se infama e illesa remontam ao original. 3. Ode com 13 estrofes de 6 versos, senários e decassilábicos, segundo o esquema: aBaBcC. As duas primeiras rimas são alternadas nos quatro primeiros versos, ao que se segue um dístico inal com rima emparelhada. Verso mais curto e verso mais longo são regularmente entrepostos, o primeiro nos versos com numeração ímpar, o segundo nos versos com numeração par. Na poesia ibérica, este tipo de estrofe é deinido como lira-sestina ou sexteto-lira. O seu uso, pela primeira vez, é atribuído a Luis de León (1527-1591), que adoptou o sexteto-lira nas suas traduções das Odas de Horacio. A forma estróica original, de 6 versos com alternância entre senário e decassílabo, remonta porém a Bernardo Tasso, o primeiro a codiicar a ode nas literaturas em língua vulgar, com as relativas variantes métricas. Na XXXIII ode, A Madama Margherita, com esquema AbAbcC, usa verso decassilábico em posição ímpar (vv. 1, 3) e senário em posição par (vv. 2, 4). Uma estrutura semelhante é também utilizada por Bernardo Tasso nos Salmi número 6 (abaBcC), 12 (AbabCC) e 26 (AbabcC). Esta observação, aliás fundamental, foi já feita por Storck (III 1881: 339). O uso constante e com particular relevo do encavalgamento (originalmente designado como inarcatura e depois como enjambement), pelo menos duas vezes em cada estrofe, confere na verdade grande luidez ao ritmo da ode. Também neste aspecto Camões parece seguir de modo próximo a lição de Bernardo Tasso que teoriza o uso constante da inarcatura / encavalgamento nos seus escritos sobre a ode (Spaggiari 1980: 1005-1008; 1994). Estrofe I Fermosa fera humana... Paráfrase - Mulher bela mas cruel como uma fera, a força soberana de Amor, que se vinga de quem não ama, lançou e dobrou todas as suas lechas pontiagudas contra a soberba dureza do teu coração. O poeta dirige-se à mulher por ele amada, que não corresponde ao seu amor. Põe em evidência a sua beleza, mas ao mesmo tempo a sua 4. 57 COMENTÁRIO A CAMÕES, vOl . 3 fria crueldade. Amor, representado como um menino armado com lechas, em vão desferiu todas as suas armas contra o coração de pedra da mulher, que se mostra desdenhosa e altiva. A I e a II estrofes suscitam no leitor um horizonte de falsas expectativas, pela presença de estilemas petrarquistas, com os topoi da crueldade da amada e da perda da liberdade do amante. Contudo, essa linha não tem continuidade nas três estrofes seguintes (III-V), «todas elas iniciadas com fórmulas anafóricas típicas de um discurso argumentativo: Pois Natureza irosa, Pois triunfando vás e Pois tanto te contenta» (Silva 2008: 157). Já Faria e Sousa antecipa essa observação no seu comentário, sublinhando como, do petrarquismo inicial, se passa indelevelmente à identiicação inal ente fera e loba. 1 fera humana Fera com aspecto humano. Como Deus criou o homem à sua imagem, assim o distinguindo do animal que é desprovido de razão, uma fera por deinição não pode ser humana. Trata-se, pois, de duas ideias contraditórias, humano versus animal, que se juntam num único sintagma. Este oximoro, que remonta directamente ao Cancioneiro de Petrarca (Canz. 152, 1-4), forma o nó em torno do qual se vão agregando outros opposita inconciliáveis (vv. 13 ss.). A imagem da mulher-fera é um dos baluartes do Cancioneiro. Recordem-se dois passos de Petrarca em que a palavra fera era já precedida por bella, ou seja, formosa, e acompanhada por pares de adjectivos: «quella fera bella e cruda» (Canz. 23, 149); «la fera bella e mansueta» (Canz. 126, 29). Ao que se acrescenta: «questa fera angelica innocente» (Canz. 135, 45). A dupla adjectivação reforça o choque do oximoro entre o substantivo e os seus qualiicativos. Além disso, o sentido que o adjectivo «humil» assume no soneto 152 de Petrarca (compreensiva, benévola) é retomado por humana na ode de Camões. Da mesma feita, o adjectivo fera é precedido por fermosa, por paranomásia, uma igura que usa sucessivamente palavras com som semelhante. 1 Fermosa fera Colocado em posição inicial, o par aliterante dá início a uma densa trama de repetições fonéticas ao longo de todo o texto. A aliteração apresenta-se, pois, como cifra estilística da ode ao nível fonético. Nos primeiros seis versos, ver também: |f| força; |k| cujo coração; |r| fermosa fera, soberbo e rudo, força soberana; |v| vingativo, vence; |t| tinha, tem, precedidos por tudo, pontas, quantas setas. A disposição sintáctica deste primeiro verso da ode, formado por uma sequência de adjectivo + substantivo + adjectivo, será reproduzida 58 FermoSa Fer a humana por Camões mais três vezes. Uma, a abrir a II estrofe, coincidentemente com o segundo vocativo, que é colocado no seu início: Amada Circe minha (v. 7). Outra, também na II estrofe: doce liberdade desejada (v. 10). E outra ainda, na X estrofe: infame rocha cara (v. 58). O substantivo, emoldurado pelo par de adjectivos, acaba por constituir a charneira do sintagma nos quatro versos referidos (cf. Giovanni Della Casa, «Bella fera e gentil mi punse il seno», Rime 12, 9). 2 soberbo e rudo Soberbo e cruel, arrogante e insensível, dito do coração da mulher-fera. O par de adjectivos é composto por sinónimos ligados entre si pela conjunção e, segundo um modelo estilístico recorrente: soberbas e doudas, referido a esperanças (v. 34), poderosa e divina, referido a ave (v. 66). 3 soberana Porque tem o poder supremo de vencer tudo. Retoma a parte inicial sober- de soberbo no verso precedente, por paronomásia. Apesar do seu enorme poder, Amor não é capaz de tocar sequer de raspão o coração de pedra da amada com as suas setas. 4 Amor, que vence tudo Decalque de um verso da X écloga de Virgílio: «omnia vincit Amor: et nos cedamus Amori» (Ecl. X 69; ‘Amor vence tudo: e nós sujeitamo-nos a Amor’). Retomado de forma circular no último verso da ode, a enfatizar o tema da vingança amorosa: Némesis, que Amor quis que tudo vença (v. 78). Na batalha amorosa, o amante não pode ser se não derrotado, um topos da poesia erótica clássica, amplamente repetido, a ponto de se tornar um lugar-comum da lírica moderna. Valha por todos Petrarca: «Quel vincitor che primo era all’offesa» (Triumphus Pudicitie 34). Vários passos semelhantes em Camões, entre os quais se assinalam os da XI ode, «que a tudo Amor obriga, e vence tudo» (v. 24; Rimas: 280) e «contra as forças do Amor, que pode tudo» (v. 72; Rimas: 281). 4 do vingativo Amor O complemento, que gramaticalmente depende de força no verso anterior, coincide com o primeiro encavalgamento do texto, a força soberana | do vingativo Amor. Logo a seguir, o sintagma, as pontas amoladas | de quantas setas tinha (vv. 5-6), caracteriza-se por uma idêntica distribuição sintáctica e rítmica. Note-se a diferença semântica entre vingativo, que se vinga, que se compraz com a vingança, e vingador, aquele que vinga, víndice. 5 amoladas Aiadas, aguçadas, como convém que as lechas o sejam. Só o coração de pedra da amada é capaz de destruir as suas pontas. Alusão à iconograia tradicional do deus Amor, Eros em grego, Cupido em latim, que na mitologia clássica é representado como um menino (Minino pio, v. 59 COMENTÁRIO A CAMÕES, vOl . 3 68), munido de asas (nas asas tuas, v. 67), e de origem divina (divina ave, v. 66), pois é ilho de Vénus. Fere o coração dos homens desferindo as lechas que traz na aljava. Para além da aljava, do arco e das lechas, pode ter na mão uma tocha ou uma vela com a qual inlama de amor os seres humanos, que icam sem qualquer possibilidade de escaparem (o fogo de amor). 5-6 as pontas... tem quebradas A imagem remonta com toda a probabilidade a Petrarca: «quando ’l colpo mortal là giù discese / ove solea spuntarsi ogni saetta» (Canz. 2, 7-8). «Saetta» corresponde, também etimologicamente, a setas, ao passo que spuntarsi equivale literalmente a quebrar as pontas. Mas confronte-se também: «Queste gli strali / avean spezato, e la pharetra a lato / a quel protervo, e spennachiato l’ali» (Triumphus Pudicitie 133-135). A cena da neutralização das armas de Amor remonta aos Remedia amoris de Ovídio (Rem. am. 699-702). O detalhe das lechas partidas e das asas depenadas tem vários precedentes clássicos, a começar por Tibulo e pelo próprio Ovídio. No sintagma, o complemento directo ( pontas) precede o verbo regente (tem quebradas), por hipérbato, igura de inversão da ordem das palavras. Estrofe II Amada Circe minha... Paráfrase - Amada Circe minha (não minha, na realidade, porém por mim amada), a ti acabei por entregar, pouco a pouco, aquele bem que tinha da doce liberdade com que tanto sonhei, e se ainda o tivesse dar-to-ia. O poeta dirige-se de novo à amada, chamando-lhe desta feita Circe, numa alusão à maga que fez prisioneiros Ulisses e os seus homens. Lamenta ter perdido a liberdade por ela. Apesar disso, se pudesse, mais escravo dela icaria. Entre parênteses, no primeiro verso da estrofe, é inserida uma relexão sobre a falta de congruência do adjectivo minha, referido a uma mulher que se dá a todos, excepto ao próprio poeta. Apesar disso, não pode evitar amá-la. A estrofe oferece, pois, um duplo exemplo de paradoxo amoroso: o amante perdeu a sua liberdade, mas estaria pronto a perdê-la de novo (portanto compraz-se com o seu papel de prisioneiro); o amante não pode deixar de amar a mulher, mesmo sendo ela de todos, excepto sua (portanto a paixão não se apaga quando não é correspondida). 7 Circe «Foy ilha do Sol e da Ninfa Perseida, [...] se deo a encantos e maleicios, per virtude de algumas ervas, que ella conhecia muito bem, com as quaes dizem as fabulas, fazia taes beberragens, que convertia os omens em varias feras, como Virgilio disse em a Egloga 8.a » (Barreto 1982: 219-220). O mito da maga Circe, que vem de Homero (Od. X-XII), 60 FermoSa Fer a humana está vivo em toda a Antiguidade grega e latina (Met. XIV 1-75). Célebre pela sua beleza, bem como pelas artes mágicas com que atraía os homens, fazendo-os seus prisioneiros, Circe encontra lugar na poesia erótica como também já assinalava João Franco Barreto: «Costumam porem os poetas chamar alvas damas Circes, como que as enfeitiçam com seu amor, ou com sua fermosura» (Barreto 1982: 221). É neste sentido mais amplo que Circe se torna sinónimo de mulher cuja beleza enfeitiça os homens, fazendo-os prisioneiros dos seus encantos. Assim Camões na última estrofe do soneto Um mover d’olhos, brando e piadoso: «esta foi a celeste fermosura / da minha Circe, e o mágico veneno / que pôde transformar meu pensamento» (Rimas: 161); e na canção X: «o doce e piadoso / mover d’olhos, que as almas suspendia / foram as ervas mágicas, que o Céu / me fez beber; as quais, por longos anos, / noutro ser me tiveram transformado» (Rimas: 226). Estes dois passos são construídos com os mesmos sintagmas, que são cruzados como num quiasmo (a-b / b-a): «Um mover d’olhos, brando e piadoso» e «o doce e piadoso / mover d’olhos». Além disso, inserem-se num mesmo contexto. Basta o olhar da amada para provocar a transformação do amante, conforme o tópico explicitado no soneto Transforma-se o amador na cousa amada. 8 (posto que minha não, contudo amada) Como já dito, é uma relexão parentética sobre a incongruência do adjectivo minha, dito de uma mulher que se concede a todos sem dar a ninguém o seu coração. Mas o poeta não pode evitar amá-la, tornando-se por isso seu prisioneiro. A fonte próxima é Petrarca, «Amor in guisa che, se mai percote / gli orecchi de la dolce mia nemica, / non mia, ma di pietà la faccia amica» (Canz. 73, 26-29), em que o característico oximoro petrarquiano «dolce» / «nemica» se associa neste passo a outros pares antinómicos, «nemica» / «amica», «mia» / «non mia», segundo a retórica dos opposita. Já El Brocense, de resto, tinha notado o decalque que Garcilaso faz do passo de Petrarca na sua IV canção: «aquella tan amada mi enemiga» (v. 145). Ver também um passo de Tebaldeo em que o mesmo esquema lógico-sintáctico se associa à imagem da mulher-fera: «Deh, maledetto sia chi amando spera / né chi mai mette la sua affezione / in donna: in donna non, ma in aspra fera» (Rime 73, 52-54). Um paralelo contemporâneo de Camões encontra-se em Diogo Bernardes: «Ia do Mondego as agoas aparecem / a meus olhos, não meus, antes alheos» (Rimas várias. Flores do Lima: 21). A matriz clássica desta igura especíica remonta a Ovídio: «Nympha suo Paridi, quamvis 61 COMENTÁRIO A CAMÕES, vOl . 3 suus esse recuset» (Her. V 1, Oenone Paridi; ‘A Ninfa ao seu Páris, embora ele recuse ser seu’). 7-8 Amada... minha / minha... amada Quiasmo reforçado pelo uso de parênteses (posto que... contudo...). 9 um bem que tinha Como o explicará no verso seguinte, Camões alude à liberdade que é doce porque há muito desejada e esperada. Esta liberdade reencontrada, entregou-a o poeta à mulher, de cujos encantos está agora prisioneiro. Não se arrepende disso: se ainda gozasse dessa liberdade, não hesitaria em renunciar a ela por causa da mulher a quem se dirige. O motivo da prisão de amor está implícito, tanto aqui, como no v. 76, que também icam presas as que prendem. Em Petrarca a história de amor começa sob o signo da submissão («fui preso», Canz. 3, 3; 106, 7), segundo um topos que percorre toda a lírica moderna e encontra um precedente antigo no incipit da I elegia de Propércio: «Cynthia prima suis miserum me cepit ocellis» (‘Cinzia primeiro me prendeu, coitado de mim, com os seus belos olhos’). Em todos os passos citados o verbo prender tem o signiicado de fazer prisioneiro. 10 da doce liberdade desejada Liberdade dos laços de Amor, cf. v. 76, presas... prendem. Eco de Petrarca, «canterò com’io vissi in libertade» (Canz. 23, 5), numa alusão ao período anterior ao enamoramento e à prisão. No Triumphus Cupidinis insiste sobre o conceito da liberdade perdida: «Poscia che mia fortuna in forza altrui / m’ebbe sospinto, e tutti incisi i nervi / di libertate, ov’alcun tempo fui» (IV, 1-3). Esta parte dos Triumphi conclui-se circularmente com o mesmo tema: «e’ntanto, pur sognando libertate» (IV 160). O sintagma é colocado no centro de um duplo encavalgamento, que envolve os vv. 9-10 e 10-11, e anda associado a um hipérbato, pois o complemento directo (um bem) precede o verbo regente (entreguei). É formato por adjectivo + substantivo + adjectivo, ligados por aliteração em |d|. 11-12 entreguei... entregarei Renunciar à liberdade, que é o bem mais precioso, não basta. O poeta está pronto para se sacriicar de novo, tornando-se ainda mais escravo da mulher por ele amada. Do ponto de vista retórico, o mesmo verbo conjugado em dois tempos diferentes, passado e futuro, é colocado em posição privilegiada, em rima, para exprimir uma total dedicação (entregar, devolver-se, doar-se). No v. 12 tenho reenvia para tinha no v. 9, instituindo um novo paralelismo entre duas formas do mesmo verbo, neste caso presente e imperfeito. Esta 62 FermoSa Fer a humana igura de retórica, que consiste na repetição de uma mesma palavra em formas gramaticais diversas, com um breve intervalo, designa-se poliptoto. Estrofe III Pois natureza irosa... Paráfrase - Visto que a natureza, inimiga da razão, te dotou de características de tal modo contraditórias que, bela como és, tens prazer em te expor ao calor de várias chamas, sem porém arderes em nenhuma, mais do que o faz a lua quando ilumina o mundo. A III estrofe introduz o primeiro plano da argumentação contra a mulher-fera. Os opposita de que a natureza a dotou são tais que, apesar de ser objecto de desejo por parte de tantos, com a sua fria e cruel beleza se compraz em suscitar a paixão amorosa sem nunca dela ser vítima. Tem prazer no sofrimento dos outros, mas não se expõe nunca à reciprocidade de amor. 13-14 natureza irosa / da razão O forte encavalgamento põe em relevo o tópico da oposição natureza versus razão (voluntas / ratio, appetitus / intellectus), que constitui uma premissa imprescindível da teoria de amor, entre Idade Média e Renascimento. Cf. a nota de Herrera ao v. 34 da IV canção de Garcilaso: «razón. Platón hizo 3 partes del ánimo: razón, ira i codicia o concupicencia, si esto declara lo que es cupiditas [Timeu 69b-70d]; pero Aristóteles i otros, imitando a Pitágoras, dividen el ánimo en dos: partícipe de razón o racional, [...] con la cual juzgamos i contemplamos, enseña i muestra lo que se deve hazer i huir; la otra, que es la irracional, está puesta en el apetito, la cual se llama horme en sermón griego, i en ella pusieron unos movimientos turbios de ira i codicia, contrarios i enemigos a la razón [Ética, 1, 5-8, 1185a-1186b]»; e também: «Tiene ésta [la razón] por terrible contrario, opuesto con proprio estudio i diligencia a su intento, [...] al apetito enxerto en el cuerpo i los sentidos; i nunca se apartan de la contienda, si no es destruído i acabado el cuerpo» ([1580] 2001: 515-516). Quanto ao signiicado de iroso, cf. Bluteau: «Affecto impetuoso, & ardente, a modo de chama, que a imaginação do objecto levanta do coração; ou desejo de vingança, nascido do appetite sensitivo irascivel, & causa da perturbação» (Vocabulario vol. 4: 197, s. v. «ira»). 14 partes tão contrárias Os elementos contrários, ou seja, os opposita que paradoxalmente coexistem na mulher-fera, são elencados de forma explícita na VIII elegia da edição de Faria e Sousa: «Quam contrario parece na beldade, / Que os coraçoens cativa com brandura / Alguma nodoa aver de crueldade! / Quam contrario parece em fermosura, / Que deixa muito 63 COMENTÁRIO A CAMÕES, vOl . 3 atraz quanto he humano, / Esquiva condição, ou alma dura!» (Rimas varias II 1689, 4: 58). A sua beleza, apesar de ser supra-humana, não obsta a que a mulher seja dura de alma e tenha uma aspereza cruel. O choque entre a aparência angélica e o coração de fera é um dos oximoros fundadores do Cancioneiro, e como tal recorrentemente retomado pelos seus imitadores dos séculos XV e XVI. Quanto a Camões, basta recordar a II écloga, Almeno e Agrário: «Não vem de nenhum jeito / de causa divinal contrário efeito» (Rimas: 321). Deus criador, causa primeira da existência humana, não pode ter produzido um efeito contrário a si. Alguns editores colocam uma vírgula depois de irosa, interpretando, na senda de Faria e Sousa: «Estas partes que la Natureza cruel (esto es, irosa, que vale ayrada) la dió contrarias á la razon, vienen a ser que siendo tan hermosa sea tan cruel» (Rimas varias II 1689, 3: 140). Este tipo de pontuação, além de anular o primeiro encavalgamento da estrofe, faz com que o sintagma da razão dependa sintacticamente de partes contrárias, com a ulterior diiculdade colocada pela preposição de (em vez de a) em relação a contrárias. 15 sendo tão fermosa O gerúndio com valor concessivo (apesar de seres, embora sejas) encontra-se em vários passos que tratam o mesmo tema. Boiardo: «sendo cotanto bella» (Amorum libri I 50, 24). Faria e Sousa comenta: «y es porque siendo tan hermosa se huelga de que muchos se enciendan en sus amorosas llamas, sin que ella, por su crueldad se encienda en las de alguno» (Rimas varias II 1689, 3: 140). 16 folgues de te queimar... A metáfora signiica que a mulher-fera, sendo tão bela quanto cruel, experimenta prazer em se expor às chamas de amor, sem porém se deixar queimar. Portanto, tem prazer em se ver circundada por tantos adoradores, bem sabendo que icará imune ao seu amor. A variante foges do Manuscrito de Juromenha não é por si errónea, apesar de ser seguramente mais banal em relação a folgues. De acordo com este manuscrito, a mulher evita expor-se às várias chamas de amor porque não quer correr o risco de se queimar. A lição folgues, que é a registada pelas duas edições quinhentistas das Rimas (1595, 1598), altera substancialmente o sentido da imagem evocada, colocando uma vez mais em relevo a crueldade da mulher que tem prazer em ver sofrer os outros, certa de não correr qualquer perigo. 64 FermoSa Fer a humana Note-se a diferença de aspecto entre os dois verbos: arder, estar em chamas, estar a ser consumido pelo fogo, e queimar-se, consumir-se ou destruir-se pelo fogo, reduzindo-se a cinzas. 15-16 fermosa / folgues... lamas Aliteração em |f|, cf. v. 1. 16-17 queimar em lamas várias, / sem arder em nenhũa A comparação aqui implícita é com a borboleta (ou melhor, a falena, a borboleta nocturna) que no escuro é atraída pela luz do fogo e acaba por nele queimar as suas asas. O modelo destes versos encontra-se (mais do que em Canz. 141, 2) num passo do Cancioneiro em que a borboleta está igualmente implícita: «et altri, col desio folle che spera / gioir forse nel foco, perché splende, / provan l’altra vertù, quella che ’ncende» (Canz. 19, 5-7). O desejo louco, que no código trovadoresco é contraposto à in’amors, «sta dunque nel non saper distinguere lo splendore dalla iamma distruttiva del fuoco» (Bettarini, ed. Canz., ad loc.). De facto, para os animais nocturnos a luz coincide com o fogo, que tem duas propriedades, a de resplandecer e a de queimar (Carducci, Ferrari, ed. Canz.: 20). A melhor paráfrase encontra-se em Seraino Aquilano: «Cerco mia libertà / mia alma, el core / de’ quai col sguardo tuo m’ hai privo e casso. / Ma qual farfalla semplice mi spasso / che segue il lume, ove ’l corpo arde e more» (Rime, son. dubbi 21, vv. 5-8). É porém importante notar a inversão do topos na estrofe de Camões: não é o amante, fatalmente atraído pelo esplendor dos olhos da amada, que acaba por se deixar consumir pela chama amorosa. Pelo contrário, é a mulher-fera que se inge atraída por várias chamas (ou seja, pelos vários admiradores aos quais oferece os seus favores), sem que contudo se queime em nenhuma delas (ou seja, sem conceder a nenhum o seu próprio amor). 18 mais que enquanto O signiicado da estrofe depende da interpretação que se dá (ou não se dá, como muitas vezes se faz) ao sintagma mais que em início de verso, seguido por enquanto. O problema exegético é posto em relevo por Faria e Sousa que propõe várias soluções: «El dezir que no ardia en alguna de essas llamas sino en tanto que la Luna alumbrava el mundo, no está facil de entender. O dirá que esta Dama hablava de dia à los amantes, si no de noche [...], ò que no avia en ella luzes de amor que passassen de calentar al modo de las de la Luna que nada calientã. De qualquier modo que sea, dá a entender que esta Dama andava mudando de galanes ò hablava á muchos, sin amar a alguno; haziendo cautelosamente copia de si de noche por interes a quien queria» (Rimas varias II 1689, 3: 140-141). 65 COMENTÁRIO A CAMÕES, vOl . 3 Tanto Faria e Sousa (ib.), como Aguiar e Silva (2008: 158) interpretam mais que como ‘se não’. O sentido geral do verso seria então ‘se não pelo espaço de uma noite, que é o tempo iluminado pela lua’. Esta interpretação não parece ser congruente com o sentido geral da estrofe. O poeta criticaria a mulher por ela experimentar prazer em se expor às várias chamas (de amor) sem nunca se queimar, se não de noite (quando a lua resplandece). Diferentemente, propõe-se a seguinte leitura: ‘mais que a Lua, enquanto alumia o mundo’. A luz da Lua, de facto, é fria, à diferença da do sol. Ilumina sem queimar, tal como a amada se expõe às chamas de amor mas não se incendeia. A leitura proposta pressupõe uma pontuação do verso que não é a da edição de referência: mais que, enquanto alumia o mundo, a Lũa, com a posposição do sujeito para o im do verso em posição rimática. Para a perífrase, que expõe por várias palavras o que poderia ser dito mais brevemente, confronte-se a estrofe inicial da I ode, À Lũa, «àquela cujo objeito / todo o mundo alumia» (Rimas: 259). 18 alumia... a Lũa Nova aliteração que abrange os primeiros três fonemas |a|, |l|, |ũ|. Estrofe IV pois triunfando vás... Paráfrase - Visto que ostentas as tuas vitórias, mostrando os numerosos despojos de homens que por ti se perderam, homens que tu privas de razão, de juízo e de bom senso, dando a quase todos aquele bem que a todos estás a negar. A IV estrofe introduz o segundo plano da argumentação contra a mulher-fera: vangloria-se das suas conquistas, mostrando com orgulho os despojos dos vencidos (de amor), como um general romano que desila ostentando os seus troféus. São amantes que por ela se perderam, renunciando às capacidades intelectuais que distinguem o homem do animal. A única causa da sua perdição é o fogo da paixão amorosa que a mulher neles acende, sem nunca se expor às chamas. 19 pois triunfando vás Toda a estrofe assenta no motivo convencional da guerra de amor. A mulher, como um comandante que desbaratou o inimigo, desila num cortejo triunfal, fazendo mostra dos despojos dos vencidos. A referência é Petrarca e os Triumphi no seu conjunto, em particular um passo do Triumphus Cupidinis: «Or quivi triumphò il signor gentile / di noi e degli altri tutti ch’ ad un laccio / presi avea, dal mar d’India a quel di Tile» (IV 112-114; o «signor gentile» é Amor). Uma variação do 66 FermoSa Fer a humana motivo em Camões: «Ora, enim, sublimai vossa vitória, / Senhora, com vencer-me e cativar-me» (Rimas: 137). Continua a anáfora de pois no início da estrofe (cf. estrofes III e V). Quanto à perífrase verbal, note-se o hipérbato e o latinismo triunfar, agere triumphum ou trazer o triunfo, dito do general vitorioso que entra solenemente em Roma à cabeça de um cortejo (Barbosa, Dicionário: 1057). 20 diversos despojos de perdidos É Petrarca em iligrana: «E veggio andar quella leggiadra fera, / non curando di me né di mie pene, / di sue vertuti e di mie spoglie altera» (Triumphus Cupidinis III 121-123). E novamente a II écloga de Camões: «quando do seu despojo amado / sua imiga estar triunfando veja» (Rimas: 328); «se esta fera que anda em traje humano / vires [...] / de meu despojo rica e de meu dano» (Rimas: 333; segue a comparação da fera Anaxerete, transformada em mármore, como na V canção de Garcilaso). [P]erdidos no duplo sentido de extraviados e extremamente apaixonados; cf. Aguiar e Silva, «perdidos de amor e perdidos de juízo, aos quais cativa e aos quais vende o seu amor» (2008: 158). Mais um verso com aliteração, desta feita em |d|. Quanto a despojos, é um tecnicismo que se liga a triunfar no verso precedente. Trata-se, originariamente, dos despojos de guerra, ou seja, do saque tomado ao inimigo derrotado. Ocorre nova referência mais adiante, no primeiro dos exempla: de despojos de mil suspiros rica (v. 38). 21 tu privando estás Construção estróica paralela à do v. 19, seguida por um forte encavalgamento ( privando estás / de razão...). A igura sintáctico-rítmica decalca a usada no início da III estrofe, Pois Natureza irosa / da razão (vv. 13-14), e põe igualmente em relevo a palavra razão em início de verso (vv. 14, 22). 22 razão... juízo... sentidos Série de três membros que forma um trinómio com elenco dos três níveis da espiritualidade humana. O amor carnal e a paixão dos sentidos pertencem à parte animal do homem. O espírito governa a ratio, a capacidade de pensar, o iudicium governa a capacidade de julgar e os sensus governam os sentimentos, a consciência ou o bom senso. 23-24 a todos dando... a todos negando A mulher-Circe concede (quase) a todos os seus encantos, ou seja o amor carnal, mas dessa feita nunca retribui o sentimento amoroso de que é objecto. Conirma-se o conceito presente no v. 8, posto que minha não. Apesar de tudo, a mulher nega-se ao poeta, também no plano físico. Além disso, é dado por descontado que recusa a todos, e não só ao poeta, qualquer sentimento. 67 COMENTÁRIO A CAMÕES, vOl . 3 O paralelismo sintáctico a todos dando... a todos negando reforça a antítese dar / negar. Note-se o forte encavalgamento dando / aquele bem, que redistribui os acentos e cria de facto uma sequência decassílabo-senário, quando o esquema estróico requer e apresenta regularmente a sequência inversa, senário-decassílabo. Estrofe V pois tanto te contenta... Paráfrase - Visto que tens prazer em ver o jovem amante pela noite, coberto com as suas armas, exposto à tempestade, à chuva e ao vento impetuoso, adormecido pela tristeza junto à tua porta, que faz com que o seu bem lhe seja inacessível. A V estrofe contém o terceiro e último plano da argumentação contra a mulher-fera. Com a sua crueldade, ela compraz-se em remeter o admirador para uma espera inútil, de noite, diante da sua casa, exposto ao frio e às intempéries, até cair adormecido defronte da porta que permanece inexoravelmente fechada. Como já anteriormente indicado, trata-se do tópico do exclusus amator (a fórmula remonta a Lucrécio), de grande difusão na poesia elegíaca latina. 25 tanto te contenta Te satisfaz, te alegra. Mais um verso com aliteração, depois do terceiro pois... que conclui a anáfora iniciada na III estrofe. 26 nocturno moço Hipálage, igura que consiste na atribuição a uma pessoa ou a uma coisa de uma característica que, na realidade, pertence a outra com a qual está relacionada. Cf. Horácio «nocturnis ab adulteris» (Carm. III 16, 4; ‘dos adúlteros que agem de noite’). De facto, nocturno equivale a de noite (lat. «nocturno tempore») e não é atributo real de moço, indica apenas que o jovem apaixonado ica em vigília toda a noite diante da porta fechada da sua amada. Faria e Sousa reenvia justamente para Horácio: «me tamen asperas / porrectum ante foris obicere incolis / plorares Aquilonibus. / Audis quo strepitu ianua, quo nemus / inter pulchra satum tecta remugiat / ventis, et positas ut glaciet nives / puro numine Iuppiter? / Ingratam Veneri pone superbiam» (Carm. III 10, 2-9; ‘Tu chorarias por me teres deixado por muito tempo deitado defronte da tua porta, exposto aos ventos frios que sopram naquele lugar. Ouve com que barulho as janelas e as madeiras da tua bela habitação retumbam com os ventos, e como Júpiter sob o céu sereno faz gelar a neve que cai? Abandona a tua soberba, que ofende Vénus’). O adjectivo nocturno é além disso um latinismo gráico (também Lus. II 1, 6; Rimas: 319, II écloga), 68 FermoSa Fer a humana porque desde o século XIV a forma nouturno > noturno se encontra grafada, segundo a normal evolução fonética (lat. |oct| > |ou| > |o| fechado). 26 em ferro envolto Envolvido nas suas armas, coberto pela armadura. A imagem pode-se ligar à metáfora da guerra de amor (v. 20) ou aludir às rixas que se desencadeavam à noite defronte da porta dessas mulheres desejadas por muitos. Recorde-se Ovídio: «Militat omnis amans, et habet sua castra Cupido» (Am. I 9, 1; ‘Todo o amante é soldado e Cupido tem o seu acampamento’); «Pervigilant ambo; terra requiescit uterque; / Ille fores dominae servat, at ille ducis. / Militis oficium longa est via: mitte puellam. / Strenuus exempto ine sequetur amans» (I 9, 7-10; ‘Ambos passam a noite em vigília; ambos repousam estendidos no chão; um guarda a porta da sua amada, o outro a porta do seu comandante. O dever do soldado é um longo caminho; levas para outro lugar a jovem que ama, o amante valoroso segui-la-á até ao im do mundo’). 27-28 debaixo da tormenta... solto Sem se importar com as intempéries. Na eventualidade de cruzar armas com outros pretendentes, nem as condições atmosféricas adversas podem levar o jovem amante a desistir da sua vigília. Júpiter é, obviamente, o deus responsável pelas tempestades, muitas vezes representado na iconograia clássica com um raio na mão. O sintagma tormenta / de Júpiter é colocado na passagem entre dois versos. O adjectivo solto refere-se ao vento impetuoso, ao passo que envolto e adormecido (em rima nos vv. 26 e 30) são atributos de moço. Para a interpretação astrológica, ver Faria e Sousa: «Los Astrologos señalan por propiedades del Planeta Jupiter las lluvias, y los ayres, o vientos; y por esso le dan a conocer por ellas los Poetas. En el libro de la antigua Roma se reiere que avia en ella un Templo dedicado a Jupiter Pluvio» (Rimas varias II 1689, 3: 142). Reenvia, além disso, para a IX ode de Camões, «E Jupiter, chovendo, / turvará a clara fonte» (Rimas: 276), bem como para o seu provável modelo latino, Horácio, que ao caso se aplica à caça, «Manet sub Iove frigido / venator tenerae coniugis immemor» (Carm. I 1, 25-26; ‘Fica exposto aos rigores de Júpiter o caçador, esquecido da carinhosa esposa que o espera’). 29-30 impedido / lhe tem A porta constitui o obstáculo físico que impede o jovem de alcançar o seu bem. Toda a estrofe pressupõe como modelo o início da ode de Horácio III 10, que acima se assinalou como provável hipotexto desta ode de Camões. Note-se mais uma vez o encavalgamento e o hipérbato impedido... tem. 69 COMENTÁRIO A CAMÕES, vOl . 3 30 de mágoa adormecido Exausto e dominado pela tristeza, o jovem amante por im adormece junto à porta. Mas mantém as suas armas, sugerindo a imagem de um inimigo vencido. Novo hipérbato com o complemento directo que precede o particípio. Estrofe VI porque não tens receio... Paráfrase - Porque não temes que a deusa que põe freio às esperanças loucas e soberbas castigue com rigor tantas manifestações de inocência (variante: insolência, orgulhoso desdém) e de arrogante desprezo, e que contra ti se inlame o cruel Amor? Depois das acusações formuladas nos três sucessivos planos de argumentação (estrofes III, IV, V), o poeta formula inalmente a pergunta que tinha icado em suspenso desde o início da ode. Porque é que a mulher, que, como se viu, é tão cruel, não tem medo da vingança dos deuses? Porque é que não teme a punição de Némesis e o fogo de Cupido? A dupla imagem mitológica serve para evocar a possibilidade de que a mulher-fera acabe por ser ela própria vítima daquele Amor que agora recusa com desdém, e então a sua crueldade será inalmente punida. 31 Porque... A seguir ao pois anafórico das estrofes III, IV e V, a conjunção interrogativa porque rompe a sequência e introduz a pergunta preparada pelos dois vocativos iniciais (vv. 1, 7). De facto, é só no v. 36 (ou seja, no inal desta VI estrofe) que se conclui a única e longuíssima fala que ocupa quase metade do texto. 31-35 não tens receio que... castigue com rigor Como podes não ter medo de que… castigue com rigor. A frase subordinada estende-se do v. 32 ao v. 35, pondo em relevo o complemento directo (tantas inocências e esquivanças) que antecipa o sujeito a deusa (hipérbato). 32 tantas… Tantos actos de. Todo o contexto e todo o sentido geral da ode excluem a variante inocências, transmitida pela primeira edição das Rimas (1595) e aceite por Costa Pimpão, em prol de insolências, que é a lição da segunda edição das Rimas (1598) e do Manuscrito de Juromenha. Não se percebe como a mulher-fera pode ser punida pela sua inocência, ou seja, pela ausência de malícia, de maldade, pelo desconhecimento do mal, e pela ingenuidade e pureza, quando todo o seu comportamento é consciente e impuro. O plural actos sublinha a repetição desse comportamento por parte da mulher, que acumula insolência(s) (arrogância, altivez, soberba) e esquivança(s) (retraimento, com desprezo ou aversão, relativamente a quem 70 FermoSa Fer a humana se aproxima de nós, a quem procura o nosso agrado; Dicionário da Academia das Ciências, s. v.). 33 a deusa que põe freio A perífrase alude à deusa Némesis, que voltará a ser explicitamente referida na estrofe e no verso conclusivos da ode (v. 78). Barreto recorda a sua iconograia clássica: «Em a mam direita lhe poem um freio, e na esquerda um covado, para mostrar que devemos ser comedidos e temperados, nam somente em as obras, mas tambem em as palavras» (Barreto 1982: 552; côvado é antiga medida de comprimento, do lat. «cubitum», cotovelo). Némesis é de facto a deusa que pune todo o tipo de excessos e vícios, em particular a soberba e a lascívia. Recorde-se o retrato que dela traça Camões na I écloga: «Que, lá junto das aras da esperança / Némesis moderada, justa e dura, / um freio lhe está pondo e lei terrível / que os limites não passe do possível» (Rimas: 309). 34 a soberbas e doudas esperanças As aspirações desmesuradas e por isso mesmo arrogantes e loucas. A desmesura, entendida como excesso, é a culpa principal que Némesis pune. Contraria o princípio de equilíbrio e o conceito de justa medida que são fundamentais para o pensamento antigo, primeiro grego e depois latino. 35 castigue com rigor A punição será severa, porque correlativa às culpas da mulher-fera. O modelo da estrofe no seu conjunto remonta ao L poema de Catullo (vv. 20-21), como acima se disse e Faria e Sousa foi o primeiro a notar. É também seu o reenvio para a Ode ad lorem Gnidi de Garcilaso, cuja parte inal contém uma advertência à mulher amada para que não se arrisque a experimentar a ira da deusa: «No quieras tu, señora, / de Nemesis ayrada las saetas / provar...» (vv. 101-103). 35-36 castigue com... contra Aliteração em |k|, tal como logo a seguir rigor... fero Amor, que repetem o som |r|. 36 contra ti... Amor Não só Némesis, mas também Cupido punirá a mulher-fera, acendendo nela aquele amor do qual sempre foge. 36 fero Amor Cruel, como a mulher é cruel. O adjectivo é posto em relevo pela aliteração que liga verticalmente freio (v. 33), fero (v. 36) e fermosa Flora (v. 37). Estrofe VII Olha a fermosa Flora... Paráfrase - Olha a bela Flora, enriquecida pelos restos de mil suspiros, que chora pelo capitão vencido na Tessália, tão sublime que em Roma foram construídos altares em sua honra. Depois da 71 COMENTÁRIO A CAMÕES, vOl . 3 advertência (suasoria) da VI estrofe, são apresentados os exempla, ou seja, as personagens exemplares que mostram, com as suas vicissitudes, a justiça e a veracidade da sentença de Némesis e dos conselhos (interessados) do poeta. Convida a mulher a olhar para o que sucedeu a Flora, aventureira ou cortesã de Roma antiga, à qual o povo, feito herdeiro das suas muitas riquezas, chegou a consagrar altares. Ora, apesar de se poder enfeitar com os despojos de tantos enamorados desiludidos, agora só pode chorar o seu amante, Pompeu, derrotado com o seu exército em batalha. 37 Olha Apostrofa-se directamente a mulher com o imperativo Olha no começo de duas estrofes seguidas, VII e VIII. A intenção é exortar a mulher a não cometer os mesmos erros das duas célebres amantes. 37 a fermosa Flora A citação de Flora cria uma das maiores diiculdades da ode, pela incongruência objectiva deste primeiro exemplum (pelo contrário, o segundo, Safo, adequa-se perfeitamente ao contexto). Nenhuma das fontes antigas hoje conhecidas documenta a narração do caso nos termos aqui pressupostos por Camões. Flora era de facto uma prostituta de alto nível, amante ‘oicial’ de Pompeu (chamado Magno, pelo papel determinante que teve como comandante e como político na Roma de César), mas não resulta que se tenha alguma vez esquivado aos desejos do amante. De outra forma, as biograias antigas concordam em ter sido Pompeu a deixá-la, abandonando-a, além disso, nos braços de um amigo que se tinha apaixonado por ela. O episódio histórico a que Camões se refere é por sua vez bem conhecido. Pompeu foi derrotado por César na batalha de Farsalo (e não morto, como erroneamente airma Aguiar e Silva 2008: 159) e fugiu depois para o Egipto, levando consigo a sua última esposa, Cornélia, que assistiu à sua morte à traição sob ordens do rei Ptolomeu XIII. Se Flora chora a derrota militar de Pompeu, fá-lo por ainda estar enamorada do seu antigo amante, e não por lamentar ter-lhe negado o seu amor. O sintagma fermosa Flora propõe de novo o adjectivo fermosa do v. 1 na mesma sequência, com aliteração em |f|, como em Fermosa fera. 38 de despojos de mil suspiros rica Hipérbato. Quanto ao sintagma, ver a nota ao v. 20. A variante que de despojos mil soberba e rica do Manuscrito de Juromenha resulta indubitavelmente facilior em relação à lição dos outros testemunhos. Sintacticamente mais luida, apresenta de facto um binómio formado por dois adjectivos em sequência (soberba e rica) que evita a presença de suspiros. Este substantivo, dependente de despojos, torna preciosa 72 FermoSa Fer a humana a imagem dos dois primeiros versos. Os despojos, ou seja, o saque de guerra que enriqueceu Flora, é composto por mil suspiros, ou seja, pelos lamentos inumeráveis dos enamorados. Já em latim mille, mil, era usado com o valor de inumerável. 39 pelo capitão Pompeu, que ao comando de tropas bastante mais numerosas foi contudo derrotado por César. 39-40 chora… ica Lamenta-se pela sua derrota militar. Note-se também aqui um primeiro hipérbato (o complemento directo precede o verbo chora), o encavalgamento da frase relativa ( pelo capitão / que) e um segundo hipérbato no inal do verso (vencido ica). 40 lá em Tessália Farsalo ica precisamente na Tessália (Ásia Menor). A batalha entre César e Pompeu ocorreu em 48 a. C. e decretou a derrocada política do segundo, que foi ter com a mulher Cornélia e o ilho Sexto Pompeu à ilha de Lesbos, para depois procurar refúgio no Egipto com a família. 41-42 sublime tanto / que... A beleza de Flora foi tão sublime que, como o poeta dirá logo a seguir, os antigos romanos lhe ofereceram altares e lhe prestaram culto divino. A frase consecutiva distribui-se por dois versos, introduzindo um novo encavalgamento. 42 altares... e nome santo Não só altares, mas um estatuto de divindade. Neste passo, Camões mostra confundir a Flora amante de Pompeu com a outra Flora, deusa das lores e das plantas, em honra da qual eram celebrados os jogos chamados Floralia (de 28 de Abril a 3 de Maio). A confusão entre as duas personagens homónimas já era notada por João Franco Barreto (Barreto 1982: 342-343), numa longa nota a que se fará referência no ensaio publicado na segunda parte (infra). Segundo o testemunho de Plínio (Naturalis historia XVIII 286), os jogos Florais foram instituídos em 438 a. C., portanto alguns séculos antes do nascimento daquela Flora amada por Pompeu. Esta Flora era uma famosa cortesã romana que pela sua beleza foi imortalizada por um retrato, o qual se encontrava exposto, na época, no templo de Castor e Pólux, como atesta Plutarco na Vida de Pompeu (Pomp. 2, 3-5; cf. 53, 2). Estrofe VIII Olha em Lesbos aquela... Paráfrase - Olha, em Lesbos, aquela poeta que icou conhecida, em virtude da excelência das suas líricas, pelos muitos homens que por ela se perderam, e que perdeu a sua preciosa vida num 73 COMENTÁRIO A CAMÕES, vOl . 3 penedo. [ Q]ue se inlama (variante: que se infama, que se tornou infame), por ser remédio extremo para quem ama. O poeta repete o convite a olhar para o que aconteceu a uma outra mulher cruel. Trata-se, desta feita, de Safo, a poeta da ilha de Lesbos que se tornou célebre pela sua lírica. Depois de ter desdenhado o amor de muitos homens, Safo apaixonou-se por Faonte, um jovem belíssimo que porém não correspondia aos seus sentimentos. Por esse motivo, suicidou-se, atirando-se de um penedo que se tornou também ele célebre, mas em sentido negativo, como remédio extremo para o desespero dos amantes. A VIII estrofe introduz, pois, o segundo exemplum da ode, a história de Safo e Faonte, que ocupa, no total, cinco estrofes (VIII, IX, X, XI, XII), estendendo-se do v. 43 até ao v. 72. Daqui resulta uma notória desproporção, ou talvez uma deliberada assimetria, relativamente ao exemplum de Flora, que se esgota numa só estrofe. 43 Olha Tal como o imperativo precedente do v. 37, a apóstrofe à mulher-fera assinala a intenção de a advertir. 43 em Lesbos O poeta não explicita o nome de Safo, nem neste passo, nem nos versos seguintes, limitando-se a sugeri-lo através do lugar natal da poeta, a ilha de Lesbos. O mesmo procedimento alusivo encontra-se no modelo de Ovídio: «Et modo dixisses: “Lesbi puella, vale”» (Her. XV 100; ‘Se me tivesses só dito: Adeus jovem de Lesbos’). 43-44 aquela... conhecida Forte encavalgamento entre o primeiro e o segundo versos da estrofe que antecipa a mesma igura, também usada nos vv. 45-46, em correspondência com um outro pronome, ela, igualmente referido a Safo (técnica alusiva ou elíptica). 44 psaltério Antigo instrumento musical de forma triangular, constituído por uma caixa de ressonância e um certo número de cordas, que se dedilhavam ou se feriam com o plectro. 44 insigne Famoso. A celebridade conquistada por Safo deve-se, além do mais, à invenção de um tipo especíico de estrofe métrica, designada como estrofe sáica a partir do seu nome. Ver Ovídio: «at mihi Pegasides blandissima carmina dictant; / iam canitur toto nomen in orbe meum» (Her. XV 27-28; ‘a mim as Musas ditam os mais harmoniosos poemas; já o meu nome é celebrado em todo o universo’). Ver também a citação de Safo por Petrarca no elenco dos poetas de amor: «l’uno era Ovidio, e l’altro era Catullo, / l’altro Propertio, che d’amor cantaro / fervidamente, e l’altro era Tibullo. / Una giovene greca a paro a paro / coi nobili poeti iva cantando, / ed avea un suo stil soave e raro» (Triumphus Cupidinis IV 22-27), ou seja, 74 FermoSa Fer a humana um seu estilo peculiar, da mesma feita doce e precioso. Recorde-se que Petrarca não conhecia directamente o mito de Safo e Faonte, porque a epístola XV das Heroides apenas foi descoberta no século XV. 44-45 dos muitos que por ela se perderam Os muitos enamorados que por Safo se destruíram. Perder-se é quase um tecnicismo da linguagem erótica, como perdidos no v. 20. Perder-se quer dizer icar desprovido da própria razão, desviar-se do bom caminho e, para além da metáfora, arruinar-se também em sentido material. 46 perderam, perdeu Poliptoto, cujo efeito é reforçado pelo contacto directo, quase um choque, entre duas formas do mesmo verbo. 47 na rocha que se inlama O contexto exclui, também neste caso, a variante se inlama, transmitida pela edição de Rimas (1595), e acolhida por Costa Pimpão, em vez de se infama, que é a lição da segunda edição das Rimas (1598) e do Manuscrito de Juromenha. A ponta rochosa, donde segundo a lenda Safo se lançou, não tem qualquer motivo para se inlamar ou para se incendiar. Aceitando se inlama, torna-se depois difícil explicar a declarativa causal do verso seguinte, enquanto se infama se revela perfeitamente congruente, no sentido de ‘que se desacredita, que se desonra’, ou seja, que tem má fama, porque é escolhida pelos enamorados infelizes para se suicidarem. O verbo infamar-se corresponde ao adjectivo infame, que conta com uma longa tradição, provinda já de Horácio: «qui vidit mare turbidum et / infamis scopulos, Acroceraunia?» (Carm. I 3, 19-20; ‘quem viu o mar tempestuoso e os Acroceráunios, mal afamados penedos?’; a confrontar com «Se tenho novos medos perigosos / doutra Cila e Caríbidis já passados, / outras Sirtes e baxos arenosos, / outros Acroceráunios infamados», Lus. VI 82, 1-4). O epíteto infame(s) encontra-se estavelmente associado, na linguagem poética, a penedos ou promontórios tristemente famosos por constituírem um perigo mortal para os navegantes. 48 com ser Pelo facto de ser. Esclarece o motivo em virtude do qual o penedo é infame. Não só Safo, mas também outros amantes infelizes como ela (quem ama, v. 48) o escolheram para porem im às suas penas, como remédio estremo. Estrofe IX Pelo moço escolhido... Paráfrase - Pelo jovem por ela escolhido, no qual se concentravam os dons das três Graças, exactamente aquele que Vénus teve escondido para si numa alface, [Safo] pagou com a fria morte a vida 75 COMENTÁRIO A CAMÕES, vOl . 3 infeliz que tinha dado a muitos amantes. A estrofe retoma e aprofunda o tema do suicídio por amor. O jovem sobre o qual recai a escolha do seu coração tinha em si todas as virtudes, de tal forma que já Vénus, a deusa de Amor, se tinha enamorado dele, e para o conservar perto de si tinha-o escondido numa alface (ver ensaio publicado infra). Por ele, Safo pagou com uma morte solitária, nas gélidas águas do mar, a vida infeliz que tinha dado aos tantos amantes que rejeitou. A morte é o preço a pagar para resgatar a infelicidade causada aos outros durante a vida. 49 Pelo moço Também neste caso não é explicitado o nome de Faonte, objecto do amor infeliz de Safo, assunto sobre o qual João Franco Barreto escreve: «Dizem que amava com todo o estremo este mancebo, que era muim gentilomem, e que sendo delle desprezada, por nam ser muito fermosa, desesperada se lançou ao mar desde uma penha chamada Leucadia» (Barreto 1982: 678), com reenvio para Estácio, «non formidata temeraria Leucade Sapho» (Silvae V 3, 154; ‘e a temerária Safo que se atirou da rocha de Leucádia sem medo’). Ver também o comentário de Sérvio ao passo da Eneida de Virgílio «Leucatae nimbosa cacumina montis» (Aen. III 274; ‘Os cumes do monte da Leucádia circundados de nuvens’): «Leucata mons est altissimus [...]. Sane de hoc Leucate amatores se in mare ad excludendum amorem praecipitare dicebantur: ut Sappho quae his inde desiluit» (‘O monte da Leucádia é altíssimo [...]. Dizia-se que desse monte da Leucádia os enamorados se lançavam ao mar para se libertarem do seu amor [infeliz]: como Safo que daí se atirou’). 49 escolhido Em rima com escondido, cria uma paronomásia quase com efeitos de rima equivoca 50 onde mais... as três Graças As três Charites (Gratiae em latim) não desempenham qualquer papel na lenda de Safo e Faonte. Camões, por um lado, põe em relevo as extraordinárias qualidades do jovem, ao qual as divindades concederam não só beleza, como também todas as virtudes. Por outro lado, coloca em im de verso uma rima em –aças que depois se liga a alfaças no v. 52 (este, de facto, um elemento imprescindível da história mitológica). Daqui resulta um par de rimas com registos estilísticos opostos, alto (Graças) e baixo (alfaças). 51-52 que Vénus escondido... teve O pronome relativo que, referido a moço, é complemento directo de teve. 51 escondido Até Vénus se enamorou de Faonte e o quis reter durante um certo tempo junto de si. 76 FermoSa Fer a humana 52 alfaças As fontes antigas estão de acordo neste pormenor que pode parecer bizarro. Na verdade, eram muitas as ervas às quais na Antiguidade se atribuíam certos poderes, seja em campo medicinal, seja nas artes mágicas (vimos que Circe era uma especialista em iltros e poções). A alface, em particular, era considerada um calmante que actuava sobre os estímulos sexuais, à semelhança, nesse sentido, de outras substâncias especiais que acalmavam os ardores excessivos. Disso dá conta Faria e Sousa, numa nota tão longa como divertida, da qual apenas citamos um passo: «Calimaco solia dezir (aludiendo a esta fabula) que los lascivos devian andar embueltos en lechugas, porque su frieldad reprime el ardor venereo» (Rimas varias II 1689, 3: 146). Primeiro testemunho atestado em Eliano, que se exprime de forma lapidar: «Phaonem, omnium hominum formosissimum, Venus in lactucis abscondit» (Varia historia XII 18; ‘Faonte, que era o mais belo de todos os homens, Vénus escondeu-o entre as alfaces’). A excepcional beleza do jovem seria porém resultado de um unguento, guardado num vaso de alabastro, que Vénus lhe deu para o compensar pelos seus serviços: «quo unctus Phaon speciosissimus hominum evasit, atque adeo amarunt eum Mitylinensium feminae» (‘untado, Faonte tornou-se de uma extraordinária beleza, e por isso dele se enamoraram as mulheres de Mitilene’; Mitilene corresponde a Lesbos). Esta lenda intersecta-se (e por vezes confunde-se) com a de Adónis, outro jovem de extrema formosura que Vénus escondeu numa alface, contudo só depois de morto e com intenção evidentemente diversa. 53 pagou O sujeito é Safo (em Lesbos aquela, v. 43). 53 morte fria Imperturbável, insensível, mas também solitária e gélida, porque as águas frias do mar tempestuoso recebem, como um sepulcro, o corpo de Safo. 54 a má vida A oposição morte / vida articula-se em dois versos, com um encavalgamento também evidenciado pela estrutura em quiasmo, ou seja, substantivo morte + adjectivo fria / adjectivo má + substantivo vida (a-b / b-a). O sintagma a má vida retoma verticalmente a cara vida do inal do v. 46. 54 a muitos Aos muitos enamorados que tinha feito sofrer sem corresponder ao seu amor. Estrofe X E, vendo-se deixada... Paráfrase - E vendo-se abandonada por aquele pelo qual tinha deixado tantos amantes, foi-se lançar do penedo infame 77 COMENTÁRIO A CAMÕES, vOl . 3 mas para ela querido, porque uma mulher que sofre por não ver o seu amor correspondido sabe que para ela a vida é perder a vida. Toda a estrofe é formada por iterações e oposições. O suicídio de Safo é a resposta ao sofrimento (o mal, v. 59) que experimenta uma mulher não correspondida no seu amor (mal querida, v. 59). No seu desespero, Safo sabe com certeza que vida lhe é perder a vida (v. 60). Paradoxalmente, é a morte que pode devolver a vida, ou noutros termos, é vital que a mulher morra para se libertar da pena de amor. 55 vendo-se deixada Abandonada, mas também rejeitada, posta de lado. Antecipa deixara em rima no verso seguinte (poliptoto). 56 daquele O pronome refere-se a Faonte, pelo qual Safo tinha deixado tanto ou tantos. As duas variantes são adiáforas, ou seja, ambas aceitáveis. A primeira é genérica (tanto: tantas coisas, tantos afectos, tantos bens), a segunda alude aos muitos enamorados (tantos: tantos amantes, tantos enamorados infelizes). Entre as variantes, o Manuscrito de Juromenha regista enjeitava, imperfeito de enjeitar (< lat. «ejectare»), recusar, rejeitar, em confronto com o pretérito mais-que-perfeito deixara. A mudança de tempo verbal comporta a variante rocha brava, em vez de rocha cara, na palavra em posição rimática correspondente ao v. 58. Note-se também o forte encavalgamento entre o primeiro e o segundo versos da estrofe, que é uma constante rítmico-sintáctica de toda a composição. 57-58 se foi / precipitar Mais um forte encavalgamento que inclui o adjectivo desesperada, um amplo pentassílabo que ocupa o verso quase inteiro, alargando-se até à posição inal de rima. O suicídio por amor tinha sido justiicado por Séneca («Decreta mors est; quaeritur fati genus / laqueone vitam iniam, an ferro incubem? an missa praeceps arce Palladia cadam?», Phedra 258-260; ‘Decretada está a morte; procura-se apenas o modo de executar o meu destino, se devo acabar a minha vida com o laço, ou se caindo sobre a espada? ou ainda se devo cair pelo precipício da roca de Palas’; a roca de Palas corresponde à Acrópole) e por Quintiliano («Datum est remedium dolori, qui saepe egit in laqueos, in praecipitia impulsit, qui cruciatus laborantis animae vulneribus emisit. Quantum Amori in hominem liceat, illi magis sciunt, qui ‹non› amantur», Declamationes XV; ‘Existe um remédio para a dor, que muitas vezes levou aos laços, empurrou para os precipícios, deixou sair com as feridas os tormentos da alma atormentada. Quanto poder seja concedido a Amor em confronto com o homem, sabem-no ainda melhor aqueles que não são correspondidos’). Note-se a 78 FermoSa Fer a humana formulação através da qual se alude ao suicídio, que na Antiguidade era por sufocamento ou por despenhamento no vazio. Aos homens, icava além disso reservada a possibilidade de se atirarem para a espada desembainhada, deixando-se assim atravessar por ela. 58 precipitar Atirar-se, mas com um sentido particular que sugere a determinação e a impulsividade do gesto e quase a sua violência. Recorde-se Sannazaro: «Iam saxo meme ex illo demittere in undas / praecipitem iubet ipse furor. Vos, o mihi Nymphae, / vos maris undisoni Nymphae, praestate cadenti / non duros obitus, saevasque extinguite lammas» (II écloga, 73-76; ‘A desmedida paixão manda-me atirar de cabeça daquele precipício nas ondas. Vós, minhas Ninfas, vós, Ninfas do mar sonoro, concedei-me uma morte não dura e apagai as cruéis chamas de amor’). 58 da infame rocha cara Na sequência adjectivo + substantivo + adjectivo (cf. vv. 1, 10), o primeiro epíteto reenvia para na rocha que se infama (v. 47). A rocha é infame pelas razões já precedentemente explicadas, e contudo cara, como é cara a vida (v. 46). Os adjectivos que contêm rocha são de facto antitéticos: infame mas cara, ou seja, mal afamada e contudo apreciada, quase amada, porque oferece o derradeiro remédio ao sofrimento. A variante brava do Manuscrito de Juromenha (em rima com enjeitava, v. 56) corresponde a uma antecipação de bravos mares no início da estrofe seguinte (v. 61). 59-60 que o mal... perder a vida Dístico de sabor proverbial, em que cada verso joga com a repetição da mesma palavra, mal e vida. 59-60 o mal... sabe Personiicação do mal, consciente de como a vida depende da morte, ou seja, de como a salvação está no suicídio. A igura retórica consiste na atribuição de uma qualidade imprópria. O mal de mal querida está para a mal querida que está a sofrer. Note-se uma vez mais o forte encavalgamento que liga os dois últimos versos da estrofe. 59 mal querida É o contrário de bem querida e indica a mulher que ama sem ser amada. Neste contexto, mal querida é memória da lírica trovadoresca, francesa e occitana, em que os compostos com mal constituem um paradigma semântico preciso, depois transmitido a outras línguas românicas (mal-aventurado, mal-amado, mal-fadado, mal-maridada, etc.). 60 vida lhe é perder a vida Paradoxo no limite do oximoro. A única forma de sobrevivência (espiritual) consiste em morrer, porque só a morte pode libertar a alma da prisão do corpo (e portanto das paixões amorosas). A variante do Manuscrito de Juromenha, bem sabe que he milhor perder a vida, é 79 COMENTÁRIO A CAMÕES, vOl . 3 uma evidente banalização, porque destrói o duplo jogo de palavras sobre o qual é construído o dístico. 60 vida lhe é Hipérbato. Este verso, como o precedente, está no limite da «locução artiiciosa», pelos elaborados efeitos estilísticos e semânticos (vida... perder a vida). Estrofe XI Tomai-me, bravos mares... Paráfrase - Safo dirige-se inicialmente às ondas do mar, dizendo: — Levai-me, ondas do mar tempestuoso, levai-me vós, pois um outro me abandonou. Depois lançou-se impetuosamente no vazio, permanecendo por um momento como que suspensa no ar, sobre o alto penedo. O poeta, por sua vez, pede a Cupido que intervenha em auxílio da amante desesperada (Elisa, ou então Safo, ver infra, v. 68): — Vai em seu socorro, tu, deus Amor, alado e potente. Na primeira parte da estrofe, a inesperada evocação de Safo interrompe, com acentuado efeito dramático, o carácter linear da narração. Dirige-se às ondas do mar para pedir que a acolham, como braços amigos, uma vez que aquele que por ela é amado a abandonou para sempre. O gesto do suicídio está descrito com rara eicácia, pondo em relevo, por um lado, o ímpeto do salto no vazio e, por outro lado, o momento em que o corpo de Safo permanece quase suspenso no ar, como se voasse. A estrofe termina com uma outra apóstrofe, desta feita do poeta ao deus Amor, Cupido, para que intervenha com a força que lhe é própria em socorro da desventurada amante. Ele, pequeno deus alado, pode voar em sua ajuda e evitar a queda fatal. 61-62 Tomai-me... tomai-me... Imperativo anafórico, que em dois versos consecutivos faz ressoar o grito que a suicida lança ao mar que bate contra o penedo de Leucádia. 61 bravos Fortes, impetuosos. 62 outrem Alusão, que continua a ser implícita, a Faonte, que abandonou Safo, afastando-se dela (deixou). 63-64 dos altos ares / pendendo Suspensa do alto no ar. Decalque das Metamorfoses de Ovídio: «nam iam pendebat in aura» (Met. VIII 145; ‘já estava pendente no ar’); «et aura cadentem / sustinuisse levis, ne tangeret aequora, visa est» (148-149; ‘e parecia que a brisa ligeira a suspendia na sua queda, impedindo-a de tocar nas ondas’; trata-se da metamorfose de Ciris em ave). 80 FermoSa Fer a humana Note-se o forte encavalgamento acompanhado por hipérbato (o complemento precede o verbo regente). 64 se arremessou Se atirou sem medo, se lançou no vazio. A violência determinada do gesto é posta em relevo pelo complemento de modo, com furor, com força cega, com impetuosidade descontrolada. 65-66 Acude tu... divina ave É agora que o poeta fala na primeira pessoa, dirigindo-se a Cupido, o deus Amor, o qual, sendo dotado de asas, pode voar em auxílio de Safo, recolhendo-a nos seus braços e assim interrompendo o seu trágico voo. Do ponto de vista estrutural, um outro passo em discurso directo conclui a estrofe, propondo de novo o imperativo anafórico, Acude... acude..., paralelo ao precedente Tomai-me... tomai-me... O verbo acudir signiica aqui interceder, intervir em auxílio de alguém, socorrer. 65-66 suave... poderosa e divina O primeiro adjectivo, suave, corresponde a «mollis» no modelo latino, Ovídio, do qual decorre toda a estrofe: «Quicquid erit, melius quam nunc erit. Aura, subito. / haec mea non magnum corpora pondus habent. / tu quoque, mollis Amor, pennas suppone cadenti, / ne sim Leucadiae mortua crimen aquae» (Her. XV 177-180; ‘O que quer que aconteça, será melhor do que agora. Ar, sustém-me. Este meu corpo não é um grave peso. Também tu, Amor suave, estende as tuas asas sob mim, enquanto caio, de tal modo que a minha morte não seja atribuída como culpa às águas de Leucádia’; «Leucadiae» é correcção de Poliziano em relação a «Calchide» do manuscrito M). [P]oderosa contém uma nova alusão à força invencível de Amor. [D]ivina porque Cupido é uma divindade do Olimpo grego. 66 ave Metáfora para indicar o deus Amor, que na iconograia clássica é representado com asas e portanto pode voar. O substantivo ave, em aliteração com Acude... acude..., ocupa o im do verso em posição de rima, ao passo que os três epítetos que o acompanham, suave... poderosa e divina, se repartem por dois versos. Estrofe XII Toma nas asas tuas... Paráfrase - Segura nas tuas asas, piedoso menino, Elisa (variante: illesa e) segura-a, antes que, caindo nessas águas cruéis, apague o antigo fogo. Um amor tão grande não é digno de viver e de ser considerado excepcional? Continua a invocação do poeta a Amor (Minino pio), para que receba piedosamente nas suas asas a amante infeliz (Elisa, ou então Safo, ver infra, v. 68), antes que apague a chama antiga do seu amor 81 COMENTÁRIO A CAMÕES, vOl . 3 ao cair nas águas cruéis do mar. A estrofe termina com uma pergunta do poeta: um amor tão grande é digno de ser perpetuado e pode-se efectivamente considerar, esse amor, algo de extraordinário e fora do comum? A resposta ica contida na estrofe conclusiva da ode. 67-68 Toma... pio É o último de uma série de imperativos, todos em início de estrofe e de verso, que caracterizam o duplo monólogo de Safo e do poeta. Para Safo, o interlocutor era o mar, pronto a acolhê-la no seu derradeiro voo. Por sua vez, para o poeta, é o próprio deus Amor, um Minino, numa alusão à tenra idade de Cupido, que se pode mostrar piedoso, pio. O substantivo asas reenvia para ave no verso imediatamente anterior (v. 66), e justiica a metáfora. Em vez de toma, seria preferível a variante toma-a, cuja forma pronominal é requerida pela sintaxe em função da variante illesa do v. 68. 68 Elisa Esta lição, que foi a aceite por Costa Pimpão, aparece só na primeira edição das Rimas (1595). A lição concorrente illesa, que se encontra no Manuscrito de Juromenha (único testemunho manuscrito) e na segunda edição das Rimas (1598), é sem dúvida preferível, porque se refere ainda a Safo, illesa, ou seja, sã e salva, sem ter sofrido qualquer dano, e portanto sem perigo, ou seja, protegida de qualquer risco. Prolonga-se, pois, a imagem de Safo suspensa no ar, como um fotograma parado no momento da queda do alto do penedo. Nesse preciso momento, só Cupido a pode amparar com as suas asas, interrompendo o seu salto fatal. Desse modo, Safo icaria ilesa e o fogo da paixão por Faonte que a consome não se extinguiria quando tocasse as ondas gélidas e cruéis. Neste contexto, o nome próprio Elisa introduziria de maneira abrupta, e uma vez mais incongruente, uma nova personagem feminina, facilmente identiicável com Dido. De facto, Elissa ou Elisa é o nome grego dessa heroína que no mundo romano e na Eneida de Virgílio é conhecida como Dido. Ora, e sem esquecer as divergências entre as várias versões do mito, facto é que Dido se suicida apunhalando-se, ao cravar no coração uma lâmina. Não se atira ao mar. A única dúvida reside no motivo do suicídio, não na sua modalidade. Segundo uma das versões, depois de ter fundado Cartago, Dido prefere matar-se a aceitar a proposta de matrimónio com o rei dos Gétulos, uma população nómada do Norte de África. Na Eneida, é por amor de Eneias que Dido escolhe a morte, no momento em que o herói da guerra de Tróia, chamado bruscamente aos seus deveres, a abandona para corresponder ao seu destino de fundador do povo romano. Como se 82 FermoSa Fer a humana vê, a introdução de Elisa / Dido neste passo da ode não seria compatível com um contexto em que se menciona explicitamente cair nessas águas cruas. É claríssimo que a XII estrofe prolonga e completa a precedente, continuando a fazer alusão a Safo. É ainda possível salvá-la, é ainda possível parar o destino cruel que a leva para o seu túmulo marítimo. De resto, o Manuscrito de Juromenha permite seguir o deslize que transforma o adjectivo illesa no nome próprio Elisa. De facto, o copista escreve, numa primeira redacção, eleza, depois corrige registando por cima jllesa. Com base em tais elementos, a lição Elysa da primeira edição das Rimas (1595) tem todas as características de uma hipercorrecção, favorecida pelo paralelo com o soneto Os vestidos Elisa revolvia. Neste caso, para além do nome da heroína que igura no incipit, no III verso alude-se aos «doces despojos da passada glória». A segunda edição das Rimas (1598) intervém restaurando a lição original, com toda a probabilidade a partir de um testemunho manuscrito. 69-70 nessas cruas / águas caindo É utilizada a mesma igura rítmico-sintáctica, com encavalgamento acompanhado de hipérbato. Entre cruas e caindo há aliteração em |k|, tal como entre águas... apague... antigo... há aliteração em |a|. 70 o fogo antigo A antiga chama da paixão. É um sintagma venerável, utilizado na fenomenologia amorosa para indicar a persistência do fogo de amor. Faria e Sousa (Rimas varias II 1689, 3: 146) remete justamente para Virgílio: «Veteris vestigia lammae» (Aen. IV 23; ‘os vestígios do antigo fogo de amor’). 71-72 É digno... por estranho? Nem todos os editores interpretam esta frase como interrogativa. Hernâni Cidade, por exemplo, observa: «Há quem faça dos vv. [71-72] frase interrogativa, mas é bem assertivo o sentido implícito em todos os pedidos anteriores» (Obras completas II 1946: 134). Torna-se contudo difícil, neste caso, explicar o Não peremptório que inicia a estrofe seguinte com uma resposta precisa, a de que não, não é digno de viver um amor tamanho, ou seja, tão grande que é excessivo, desmesurado, e pela sua desmesura só pode suscitar o castigo de Némesis. 71-72 amor... de viver Afastamento entre o verbo regente, É digno, e os ininitos que dele dependem, viver e ser tido, ambos colocados no verso seguinte (v. 73). 71 estranho No sentido positivo de extraordinário, como observa Hernâni Cidade (Obras completas II 1946: 134), ou seja, que suscita admiração 83 COMENTÁRIO A CAMÕES, vOl . 3 e espanto. A paixão amorosa que excede os limites e por vezes degenera em suicídio é digna de existir e de ser admirada? A pergunta é colocada em termos gerais, mas pressupõe o caso de Safo e a sua situação virtualmente suspensa entre ar e mar, a aguardar uma (improvável) intervenção dos deuses. Estrofe XIII Não; que é razão que seja... Paráfrase - Não, porque é justo que sirva de exemplo às mulheres da má vida, que vendem o seu amor e não se deixam seduzir, um exemplo que mostra como também as que estão habituadas a cativar os outros icam por sua vez cativas, e esta foi a sentença de Némesis, que quis fazer Amor vencedor de tudo. A estrofe conclusiva da ode contém a resposta à pergunta que acabara de ser formulada (vv. 71-72). É uma resposta negativa, que se inge ser enunciada pela deusa Némesis em pessoa. A morte de Safo, como a de outras heroínas suicidas por amor, deve servir de exemplo e de advertência para aquelas mulheres que oferecem o seu corpo, concedendo-se a todos, sem nunca se deixarem envolver pelos sentimentos. É um exemplo para mostrar que aquelas que estão habituadas a fazer dos homens prisioneiros podem, por sua vez, icar prisioneiras da paixão. O amor não correspondido, ou melhor, retribuído com desdém e frieza, é uma culpa que não pode escapar à justa punição. Quem recusa o amor acaba por se enamorar de uma forma tão excessiva e desmesurada que deseja a morte como único remédio. Némesis condena os excessos e decide que amor é a força que pode vencer tudo. 73 Não;... A negação no início do verso é seguida por uma pausa sintáctica que põe em relevo o carácter deinitivo, sem apelo nem agravo, da resposta. 73 que Com valor declarativo-causal. 73 razão Fundamento legítimo, princípio moral. 74 para as lobas O substantivo loba signiica aqui prostituta, numa acepção que encontra o seu primeiro testemunho na segunda metade do século XVI. Trata-se de um latinismo semântico, porque já na Roma antiga o latim «lupa» assumia o mesmo signiicado (donde deriva «lupanar», prostíbulo). A palavra lobas liga-se a fera no incipit da ode, identiicando na sua destinatária não a mulher-fera de tipo petrarquesco, mas antes «uma mulher de vida livre, uma mulher que vende o amor, sem respeitar regras ou critérios morais de vida e de comportamento, e por isso mesmo de- 84 FermoSa Fer a humana sobedecendo a Amor, que é o princípio constitutivo e regulador de todo universo» (Silva 2008: 160). 74 isentas Esquivas, que não se deixam seduzir ou cativar. 74 que amor vendem Explicita o sentido de lobas. 75 exemplo No signiicado etimológico do latim exemplum, ou seja, facto ou personagem que pelas suas características ou pelas suas experiências se torna um paradigma, um modelo a seguir (ou a não seguir, como neste caso, um modelo negativo). Note-se que exemplo depende de seja (v. 73), em posição rimática no primeiro verso da estrofe (é razão que seja... exemplo), e que todo o v. 75 constitui o seu complemento. Mais uma vez, o hipérbato acompanha o encavalgamento. 75 se veja Se possa constatar, concluir, deduzir. 76 icam presas as que prendem O verbo prender, usado em dois tempos e modos diversos ( presas... prendem, por poliptoto), adquire aqui o sentido jurídico de aprisionar, capturar, encarcerar, com evidente alusão à metáfora da guerra de amor (ver vv. 19-24, 26, 38). 77 Assi Em início de verso para introduzir a gnome ou sentença conclusiva. Corresponde ao latim sic, com valor asseverativo, e antecipa o conteúdo da sentença enunciada no verso seguinte. 77 deu per sentença Em sentido jurídico, julgamento ou decisão inal proferida por um juiz a respeito de uma causa que lhe é apresentada. O sujeito é Némesis no início do verso seguinte, com hipérbato e encavalgamento, numa igura rítmico-sintáctica várias vezes assinalada ao longo desta ode. 78 Némesis A melhor deinição é a de Erasmo: «Hanc quidam Nemesim Deam esse putant, insolentiae et arrogantiae vindicem, quaeque spes immoderatas, et vetet, et puniat» (Adagia: 642, s. v. Adrastia Nemesis; ‘Alguns pensam que esta Némesis é a deusa que vinga a insolência e a arrogância e que ao mesmo tempo impede e pune as esperanças desmesuradas’). Já fora referida nos vv. 32-35 através de uma perífrase, como a divindade que põe travão às esperanças soberbas e abstrusas, punindo com rigor os comportamentos esquivos e desdenhosos, em conformidade com quanto escreve Camões na I écloga: «Que, lá junto das aras da esperança / Némesis moderada, justa e dura, / um freio lhe está pondo e lei terrível / que os limites não passe do possível» (Rimas: 309). 78 Némesis... vença Hipérbato: Assi Némesis deu por sentença, que quis que Amor vencesse tudo. 85 COMENTÁRIO A CAMÕES, vOl . 3 78 que tudo vença Escreve Camões na XI ode: «que a tudo Amor obriga, e vence tudo» (Rimas: 280); «contra as forças do Amor, que pode tudo» (Rimas: 281), a concluir, respectivamente, a IV e a XII estrofes. Nesta ode, retoma através de um movimento circular quanto airmado na I estrofe, a força soberana / do vingativo Amor, que vence tudo (vv. 3-4), reairmando que o verdadeiro tema principal da ode é, come já o viu Storck, a vingança de Amor, ou seja, a punição que Amor reserva às mulheres cruéis e insensíveis, que rejeitam com sobranceria quantos delas se enamoram. Barbara Spaggiari 86 5 10 15 20 25 I Pode um desejo imenso arder no peito tanto que à branda e à viva alma o fogo intenso lhe gaste as nódoas do terreno manto, e puriique em tanta alteza o esprito com olhos imortais que faz que leia mais do que vê escrito. II Que a lama que se acende alto tanto alumia que, se o nobre desejo ao bem se estende que nunca viu, a sente claro dia; e lá vê do que busca o natural, a graça, a viva cor, noutra espécie milhor, que a corporal. III Pois vós, ó claro exemplo de viva fermosura, que de tão longe cá noto e contemplo n’alma, que este desejo sobe e apura; não creais que não vejo aquela imagem que as gentes nunca vêm, se de humanos não têm muita ventagem. IV Que, se os olhos ausentes não vêm a compassada proporção, que das cores excelentes de pureza e vergonha é variada; da qual a Poesia, que cantou até qui só pinturas, com mortais fermosuras igualou; 87 COMENTÁRIO A CAMÕES, vOl . 3 30 35 40 45 50 55 V se não vêm os cabelos que o vulgo chama d’ouro, e se não vêm os claros olhos belos, de quem cantam que são do Sol tesouro e se não vêm do rosto as excelências, a quem dirão que deve rosa, cristal e neve as aparências; VI vêm logo a graça pura a luz alta e severa que é raio da divina fermosura que n’a alma imprime e fora reverbera, assi como cristal do Sol ferido, que por fora derrama a recebida lama, esclarecido. VII E vêm a gravidade com a viva alegria, que misturada tem, de qualidade que ũa da outra nunca se desvia; nem deixa ũa de ser arreceada por leda e por suave, nem outra, por ser grave, muito amada. VIII E vêm do honesto siso os altos resplandores, temperados co doce e ledo riso, a cujo abrir abrem no campo as lores; as palavras discretas e suaves, das quais o movimento fará deter o vento e as altas aves; 88 Pode um deSejo imenSo 60 65 70 75 80 IX Dos olhos o virar, que torna tudo raso, do qual não sabe o engenho divisar se foi por artifício, ou feito acaso; da presença os meneios e a postura, o andar e o mover-se, donde pode aprender-se a fermosura. X Aquele não sei quê, que espira não sei como, que, invisível saindo, a vista o vê, mas para o compreender não acha tomo; o qual toda a Toscana poesia, que mais Febo restaura, em Beatriz nem em Laura nunca via; XI em vós a nossa idade, Senhora, o pode ver, se engenho e ciência e habilidade, igual à fermosura vossa der, como eu vi no meu longo apartamento, qual em ausência a vejo. Tais asas dá o desejo ao pensamento! XII Pois se o desejo aina ũa alma acesa tanto que por vós use as partes da divina, por vós levantarei não visto canto, que o Bétis me ouça, e o Tibre me levante; que o nosso claro Tejo envolto um pouco vejo e dissonante. 89 COMENTÁRIO A CAMÕES, vOl . 3 85 90 XIII O campo não o esmaltam lores, mas só abrolhos o fazem feio; e cuido que lhe faltam ouvidos para mim, para vós olhos. Mas faça o que quiser o vil costume; que o sol, que em vós está, na escuridão dará mais claro lume. (Rimas, Ode 4, pp. 269-271) Lições a corrigir v. 1 intenso em vez de imenso. vv. 3-4 qu’abranda e aviv’a alma, e o fogo immenso / lhe gasta em vez de que à branda e à viva alma o fogo intenso / lhe gaste. v. 5 puriica em vez de puriique. vv. 6-7 que c’os olhos mortais / erguendo-os lea mais do que é scrito em vez de com olhos imortais / que faz que leia mais do que vê escrito. v. 11 já em vez de a. v. 16 divina em vez de de viva. vv. 24-25 qu’é... variada em vez de que... é variada. v. 39 qu’a alma em vez de que n’alma. v. 48 e süave em vez de e por suave. v. 53 a cujo riso no campo abrem as lores em vez de a cujo abrir abrem no campo as lores. v. 55 e altas em vez de e as altas. v. 70 em Bëatriz nem Laura em vez de em Beatriz nem em Laura. v. 76 em presença em vez de em ausência. v. 83 que o dourado Tejo em vez de que o nosso claro Tejo. 1. A vista da mulher amada (D. Francisca de Aragão, conforme atestam o Manuscrito apenso e o Manuscrito de Juromenha) provoca um desejo ardente de contemplar a essência divina da sua beleza, e a lama que desse desejo emana tem o poder de puriicar a alma do amador das impurezas induzidas através do invólucro corpóreo. Em virtude desse processo de puriicação, o espírito, que é elemento intermediário entre alma e corpo, adquire o poder de se elevar para além dos limites impostos aos olhos mortais, de modo 90 Pode um deSejo imenSo a ler e distinguir muito mais do que a imagem que, conforme a doutrina neoplatónica, ica gravada na memória do amador. A im de possibilitar tal operação, o desejo terá de ser não apenas intenso (v. 1; e não imenso, como se lê na edição de Costa Pimpão, cf. infra), como também nobre (v. 10), isto é, exclusivamente voltado para a beleza espiritual do ser amado. Só sob essa condição a lama do desejo se consegue elevar suicientemente para alumiar o espírito, de modo a que este possa contemplar às claras a igura da amada sob uma forma mais pura do que a simplesmente corporal. É como se Camões estivesse a dizer à sua interlocutora: eu, por muito longe de vós que me encontre, posso contudo contemplar-vos com a minha alma, a qual o desejo já elevou e puriicou, e a imagem que eu contemplar é tal, que só pode ser vista por quem é capaz de se erguer acima dos limites da condição humana. Um vasto ilão da poesia petrarquista apenas consegue descrever, como numa pintura, a beleza mortal da mulher amada, dotada de proporções harmoniosas, de tal modo que a pureza das linhas se une ao pudor do gesto. Essa mulher, conforme os tópicos poéticos, tem cabelos de ouro, olhos cuja luz compete com a do sol e rosto cujas cores ultrapassam em resplendor as da rosa, do cristal e da neve. Por sua vez, Camões está a suster: se, enquanto estou ausente, eu não posso ver tudo isso, em contrapartida, graças aos meus olhos espirituais, consigo ver muito para além dessas aparências. Aquilo que então se segue (vv. 36 ss.) é um elenco de belezas que seria muito mais difícil, se não impossível, expressar na linguagem da poesia ou da pintura: a luz alta e severa (v. 37) que, relexo da beleza divina, irradia do vulto; o perfeito equilíbrio entre gravidade (v. 43) e alegria (v. 44), entre honesto siso (v. 50) e doce e ledo riso (v. 52); as palavras discretas e suaves (v. 54), o virar dos olhos, os meneios e a postura (vv. 57-63). Finalmente, o vocabulário de que o autor dispõe, mesmo afastando-se dos lugares-comuns do petrarquismo, revela-se incapaz de exprimir o inexprimível, aquele não sei quê (v. 64), invisível (v. 66), que a vista espiritual consegue atingir, contudo sem chegar a perceber os seus contornos e os seus limites. Até mesmo Beatriz e Laura, os tipos de beleza feminina reconhecidos como exemplares pela melhor poesia da época, o petrarquismo, icam, na opinião do poeta, muito aquém do ideal moderno de beleza espiritual. Esse ideal poderia ser então descrito, tomando como exemplar a própria mulher cantada na presente ode, digna sucessora de Beatriz ou Laura, sob condição de as qualidades poéticas do autor se revelarem adequadas à 91 COMENTÁRIO A CAMÕES, vOl . 3 expressão dessa beleza, claro que não a corpórea, mas sim a da sua própria essência divina. Essa essência é a que Camões airma ter contemplado no período da sua longa ausência, e isto foi-lhe possível graças à intensidade do seu próprio desejo, que deu asas ao pensamento. No momento em que escreve conia que a própria inspiração, potenciada pela visão atingida, lhe permita levantar não visto canto, capaz de despertar admiração em Espanha e em Itália. Quanto a Portugal, julga que, neste caso, nem se sabe apreciar a sua própria poesia nem a beleza da mulher amada, quanto uma e outra o merecem. 2. No plano da crítica textual, o texto deste poema é um dos mais penalizados. A edição de Costa Pimpão que, como é sabido, se fundamenta essencialmente na segunda edição impressa (Rimas 1598: 59v-61v), ignorando os testemunhos manuscritos, neste caso o Manuscrito apenso (27) e o Manuscrito de Juromenha (28), apresenta uma série de lições erróneas, a mais notória das quais é de viva fermosura (v. 16, em vez de divina fermosura). Além de resultar claramente de uma intervenção censória, esta lição anula um dos sintagmas técnicos mais divulgados na literatura neoplatónica (Leão Hebreu, Castiglione). Consequências análogas tem o facto de acolher lições como desejo imenso (v. 1), à branda e à viva alma (v. 3), olhos imortais (v. 6), enquanto o hemistíquio a sente claro dia (v. 11) resulta diicilmente compreensível. Com respeito à edição Rodrigues-Vieira, o único progresso de Costa Pimpão é a correcção de iguais (v. 75, lição de Faria e Sousa, Rimas varias II 1689, 3: 159) para igual. A edição de Leodegário de Azevedo Filho (Lírica de Camões 3 II 1997: 225-227), devido à preferência programaticamente conferida ao Manuscrito de Juromenha com prejuízo do outro manuscrito, o Manuscrito apenso (em sua opinião, «há várias evidências de erros de cópia e mesmo de inaceitáveis inovações em MA», ib.: 228), só parcialmente consegue melhorar o texto crítico. Substitui imenso (v. 1), mortais (v. 6) e ausência (v. 76), lições que iguram na segunda edição das Rimas, de 1598, e aceites por todos os editores precedentes (Rodrigues-Vieira, Costa Pimpão, Hernâni Cidade, Salgado Júnior, Maria de Lurdes Saraiva) por, respectivamente, intenso, imortais, presença. Em contrapartida, os vv. 3, 16, 48 icam como no texto de Costa Pimpão. O que mais surpreende é o tratamento do v. 16, pois a censura religiosa, juntamente com as reacções dos copistas ao regime de 92 Pode um deSejo imenSo hiato constituem um dos factores dinâmicos justamente privilegiados na ixação textual de Azevedo Filho. Escusado será precisar que o nosso comentário assenta nas lições dificiliores acima mencionadas. 3. Ode «de apartamento» com 13 estrofes de 7 versos, senários e decassilábicos, segundo o esquema: abABCD(d)C. A rima interna d, que cai sobre a sexta sílaba do decassílabo inal de cada estrofe, tem a função de fazer corresponder uma rima com D, no inal do VI verso. De outra forma, a rima D icaria desprovida de qualquer relação. Da mesma feita, sob o ponto de vista métrico, eleva-se o estilo deste poema, cujo modelo principal é, como veremos nas Achegas ao comentário (infra), uma canção de Bernardo Tasso, Almo mio sol, che col bel crine aurato. As rimas frequentemente repetidas ao longo do poema delimitam um núcleo principal de 12 estrofes, icando a última de certa forma isolada, com função de comiato. A I e a XII estrofes encontram-se ligadas através dos pares de rimas tanto : manto (vv. 2, 4) e tanto : canto (vv. 79, 81; ou seja, 2, 4 da XII estrofe). Note-se que arder no peito tanto (v. 2) e ũa alma acesa tanto (v. 79) são sintagmas semanticamente próximos, enquanto terreno manto (v. 4) é um hápax, isto é, uma expressão usada uma única vez pelo poeta. Ora, terreno manto é um sintagma que este poema tem em comum com a referida canção de Bernardo Tasso, ao passo que não visto canto (v. 81) comporta a promessa de uma nova forma de poesia. Para além destas correspondências entre a I e a XII estrofes, a função de remate da XII estrofe é ainda marcada pela repercussão imediata da rima interna -ejo a partir da estrofe precedente: vejo (v. 76) / desejo (v. 77) e Tejo (v. 83) / vejo (v. 84). Tenha-se também em conta que a repetição de desejo em «coblas capinidas» constitui outra ligação entre as estrofes XI e XII (vv. 77, 78). Portanto desejo, palavra-chave que aparece nas três primeiras estrofes (vv. 1, 10, 18), contribui para o esquema circular que une a primeira e a última parte do poema. A VI estrofe, centro do núcleo principal, é caracterizada pela presença de outra rima-chave, fermosura. Já presente na IV estrofe como rima interna (-uras, vv. 27, 28), reaparece na IX, completando o leque de posições em que uma rima pode aparecer ao longo de uma estrofe. A VII estrofe, centro topográico de todo o poema, é por sua vez marcada pelo facto 93 COMENTÁRIO A CAMÕES, vOl . 3 de -ave (vv. 48, 49) reaparecer como -aves na estrofe seguinte (vv. 54, 56), conforme uma igura já observada no caso de -ejo. A estas iguras métricas, e ainda outras que poderíamos assinalar, corresponde uma estrutura sintáctica igualmente estudada, com a anáfora se não vêm... vêm logo... E vêm... E vêm a marcar as estrofes V, VI, VII e VIII. Estrofe I Pode um desejo... Paráfrase - Um desejo, desde que se manifeste com forte intensidade, torna-se capaz de gerar no coração um calor tão elevado que abranda a alma e a aviva. Esse incêndio, sendo tão forte, consegue eliminar do invólucro corpóreo qualquer vestígio dos desejos materiais, a ponto de puriicar o espírito e de o elevar a uma grande altura, de modo a que este, com seus olhos mortais, chegue a ler o que está muito para além da imagem do ser amado, tal como essa imagem está gravada dentro de si. 1-3 A oposição entre desejo intenso : fogo imenso (Manuscrito de Juromenha) e desejo immenso : fogo intenso (Manuscrito apenso; Rimas 1598; Rimas varias II 1689, 3: 151) terá de ser resolvida a favor da lição do Manuscrito de Juromenha. Para além da evidência proporcionada pelo paralelo com Petrarca, p. ex., «tirar mi suol un desiderio intenso» (Canz. 129, 55, também neste caso com referência ao motivo do apartamento), ver Leão Hebreu, «Y por esto su amor viene tanto intenso, ardiente y eicaz [...] y su amor acerqua della es grandemente intenso, eicaz, y ardiente» (1568: 114v) ou «aquel puro amor, ni intenso deseo» (79v), e Pietro Bembo, personagem do tratado de Castiglione, Il cortegiano, «Mas hablando de la hermosura de que nosotros agora tratamos, la cual es solamente aquella que parece en los cuerpos, y en especial en los rostros humanos, y mueve aquel ardiente deseo que llamamos amor, diremos que es un lustre o un bien que mana de la bondad divina» (1997: 482). Quanto a imenso, que falta em Petrarca (a par de intenso em Os Lusíadas), cf. Os Lusíadas, «d’espanto o ardor imenso do Oriente» (X 13, 7). 3 que à branda e à viva alma A lição do Manuscrito apenso é: qu’abranda e aviv’a alma, e o fogo immenso / lhe gasta (com puriica no v. 5). Trata-se de uma lição dificilior (ressalvando o adjectivo immenso, ver a nota precedente). Por um lado, abranda é estilema típico de Camões épico e lírico. Recorde-se a esse propósito, em particular (embora o texto não pertença ao corpus mínimo, ver Lírica de Camões 5 I 2001: 53), o passo da écloga A quem darei queixumes namorados: «porque te não abranda o fogo ardente / que procede 4. 94 Pode um deSejo imenSo de tua fermosura?» (Rimas: 356). Por outro lado, as noções expressas pelos dois verbos encontram plena abonação em Petrarca: «i’ sento in mezzo l’alma / una dolcezza inusitata et nova» (Canz. 113, 12); «Amor ne l’alma, ov’ella signoreggia, / raccese ’l foco» (Canz. 71, 76-77). Diferentemente, sendo a interpretação de que a = á indispensável, em consequência da falta, no Manuscrito de Juromenha, da conjunção e, os adjectivos branda e viva não parecem ter muito sentido no contexto em que se encontram. Para aviva (e apura no v. 18), cf. Castiglione: «como el fuego material apura el oro, así este santísimo fuego destruye en las almas y consume lo que en ellas es mortal, y viviica y hace hermosa aquella parte celestial que en ellas por la sensualidad primero estaba muerta y enterrada» (1997: 507, itálico nosso). 4 lhe gaste as nódoas Observa Faria e Sousa: «Le limpie de las manchas; y estas son los materiales deseos a que incita la porción terrena; en contrario de los divinos que la olvidan [...]. Y luego aqui en la e[strofa]. 3. dirá que aquel divino deseo le mundiica, y le haze ver, y amar a su señora como a cosa divina» (Rimas varias II 1689, 3: 151). 4 terreno manto Designa o corpo humano, que envolve ou aprisiona a alma, numa concepção platónica. O termo provém da canção Almo mio sol, che col bel crine aurato, de Bernardo Tasso (infra, Achegas ao comentário). 5 puriica Corresponde, tal como apura (v. 18), a purgare em Marsilio Ficino: «Huius denique mentis oculo, qui cupit veritatis lumen et capit, solem ipsum praeesse divinum, in quem Plato noster purgatam mentis aciem dirigere iussit» (2002, I 1; ‘o olho da mente deseja perceber o lume da verdade, e quem o dirige é o próprio sol divino, para o qual, conforme disse o nosso Platão, temos que dirigir o acume da mente puriicada’); «Ita radius ille caelestis, qui ad ima deluxerat, reluit ad sublimia, dum similitudines idearum, quae fuerant in materia dissipatae, colliguntur in phantasia, et impurae purgantur in ratione» (XVI 3; ‘Assim esse raio celeste, que descera às profundidades do ser, remonta até às alturas sublimes, uma vez que as similitudes das ideias, que se espalharam na matéria, se recolhem na fantasia e, sendo impuras, se puriicam através da razão’). 6-7 com olhos... / escrito A lição do Manuscrito de Juromenha, que regista que c’os olhos mortais / erguendo-os lea mais do que é scrito, é mais uma vez preferível. Não apenas por razões prosódicas (a saber, a sinalefa de com e a presença do hiato, que é excepcionalmente possível à luz da versiicação de Os Lusíadas; ver Azevedo Filho, Lírica de Camões 3 II 1997: 231-232), mas também porque a versão da tradição impressa acaba por desfazer o 95 COMENTÁRIO A CAMÕES, vOl . 3 contraste entre olhos mortais e visão transcendente. Observe-se, além disso, que o Cancioneiro de Petrarca apresenta exclusivamente o sintagma «occhio mortal» e seus sinónimos (Canz. 127, 51; 151, 5; 154, 6). Quanto ao v. 7, recorde-se que «por la memoria y el recuerdo de la igura impresa en el alma se recupera la visión de la amada» (Llosa Sanz 1996-1997, § 2. 1. 2). Estrofe II Que a lama que se acende... Paráfrase - Tão intensa é a luminosidade irradiada por essa lama, ao erguer-se, que o desejo espiritual, depois de atingir aquela beleza suprema que nunca antes tinha visto, pode enim apercebê-la às claras, e assim contemplar o objecto de que estava à procura, cuja natureza, graça e vívida cor lhe aparecem então numa visão diferente e mais clara, em comparação com aquela normalmente perceptível pela vista corporal. 11 a Lição da segunda edição das Rimas que é diicilmente compreensível. Anota Maria Vitalina Leal de Matos: «o [sic] sente claro dia: o vê com toda a clareza» (Matos 2012: 200). É por isso corrigida para o por Faria e Sousa. Azevedo Filho privilegia lá, que é a lição do Manuscrito de Juromenha. Ver, na écloga A quem darei queixumes namorados, a comparação entre a pastora amada e o sol: «Torna, vem já, meu sol tão desejado, / faze esta noite escura em claro dia» (Rimas: 354). 12-14 e lá vê... corporal Escreve Castiglione: «y así en lugar de salirse de sí mismo con el pensamiento, como es necesario que lo haga el que quiere imaginar la hermosura corporal, vuélvase a sí mismo por contemplar aquella otra hermosura que se vee con los ojos del alma, los cuales entonces comienzan a tener gran fuerza, y a ver mucho, cuando los del cuerpo se enlaquecen» (1997: 505). Estrofe III Pois vós, ó claro exemplo... Paráfrase - Vós, ó senhora, sois um luminoso exemplo da divina beleza, a qual, por muito longe que me encontre, eu cá consigo aperceber e contemplar dentro da minha alma, que o desejo espiritual eleva e puriica: por isso não creiais que, mesmo na situação em que me encontro, não veja aquela imagem de vós que os outros nunca vêem, a não ser que consigam elevar-se muito além da própria condição humana. 96 Pode um deSejo imenSo 16 de viva fermosura O Manuscrito apenso lê divina. À diferença das ocorrências seguintes, o termo é aqui referido não a Deus, mas directamente à mulher amada. A lição divina é eliminada nos demais testemunhos por (auto)censura. Trata-se evidentemente da lição autêntica. Castiglione escreve, «esta alta y divina fermosura» (1997: 492); Leão Hebreu, «la misma belleza divina exemplar» (1568: 114v); Garcilaso de la Vega el Inca, «esa misma hermosura divina ejemplar» (1947: 54-55). «No caso, não acreditamos em censura religiosa preventiva, pois o substantivo exemplo (v. anterior) naturalmente reclama o complemento nominal de viva fermosura», escreve Azevedo Filho (Lírica de Camões 3 II 1997: 236). Na verdade, os dois substantivos, exemplo (v. 15) e fermosura (v. 16), coniguram um assíndeto por hendíadis, a igura de retórica que exprime através de dois substantivos ligados por coordenação uma ideia que é geralmente expressa por um substantivo e um adjectivo, mas neste caso com construção sintáctica dificilior. 17-18 que de tão longe... apura Cf. na elegia O poeta Simónides falando: «Ũa cousa, Senhor, por certo assele / que nunca Amor se aina, nem se apura, / enquanto está presente a causa dele» (Rimas: 236; Lírica de Camões 4 I 1998: 272). 19 não creais... Escreve Acuña: «mas no penséis que no la veo agora, / que el espíritu siempre está dispuesto / a verla ausente» (Varias poesias XLIV). Estrofe IV Que, se os olhos ausentes... Paráfrase - Com certeza que, estando ausente, os meus olhos não vêem a vossa harmoniosa proporção, na qual a pureza e o recato se alternam vestidos das suas cores respectivas (branco e vermelho): a poesia, até agora, não pôde senão compará-la às belezas mortais, tais como se admiram nos quadros de pintores famosos. 23-24 não vêm... proporção Escreve Juan de Mena: «Ay otra cosa que es indicio e señal en qualquier que cabe fermosura: que los elementos de que es elementada su forma estavan concordes e amigables quando le dixieron bien compasada proporción» (1994: 644). É de notar que os tratados quinhentistas «oscillent entre la déinition aristotélicienne de la beauté qui fait primer l’harmonie des proportions et la déinition platonicienne, chez les poètes, en revanche, c’est Platon qui l’emporte» (Anselem 1994: 70). 24-25 cores... variada Preferível ler, no v. 24, a partir do texto do Manuscrito apenso: qu’é... variada. Os demais testemunhos inserem he = é antes de varïada. A cor da pureza é o branco, a cor da vergonha é o vermelho, 97 COMENTÁRIO A CAMÕES, vOl . 3 e «na época, o ideal da mulher era este: alegre, mas recatada», escreve Azevedo Filho (Lírica de Camões 3 II 1997: 239). 27 até qui O Manuscrito de Juromenha regista até aqui. Até agora, a poesia limitou-se a competir com a pintura, que só pode representar belezas mortais. Estrofe V se não vêm os cabelos... Paráfrase - Nem vêem o vosso cabelo, que a linguagem da poesia corrente chama de ouro; nem os belos olhos, cuja luz os poetas comparam àquela do sol; nem a beleza do rosto, à qual a rosa, o cristal e a neve devem a beleza da própria cor. 30-31 se não vêm... Escreve, p. ex., Garcilaso de la Vega: «Oh hermosura sobre ’l ser humano, / oh claros ojos, oh cabello d’oro, / oh cuello de maril, oh blanca mano!» (II écloga, 19-21). 32 de quem Quanto ao uso de quem em vez de que, sendo coisa e não pessoa o antecedente (cf. v. 34), ver Lus. I 3, 6. 32 tesouro Observa Faria e Sousa: «El hazer tesoro es providencia para lo que puede suceder: y assí quiere dezir esto, que el Sol para quando se hallare falto de luz haze tesoro de luzes en estos ojos» (Rimas varias II 1689, 3: 154). 34-35 Ou seja, tecendo o elogio do rosto, dirão que a rosa, o cristal e a neve lhe devem a beleza da própria cor. O emprego do verbo no singular, deve, com um sujeito múltiplo, rosa, cristal..., constitui um zeugma. De entre as frequentes enumerações deste tópico no petrarquismo italiano, ver: Matteo Bandello, «L’avorio schietto e la iorita falda / d’un chiar cristallo, e le vermiglie rose, / [...] // quella tenera, fresca, viva e calda / neve, che ’l sol non teme, / le nascose / al volgo gran belleze» (Rime 210 estrav., 1-8); Pietro Barignano, «L’oro, il cristallo, l’ebano e i zafiri / e le purpuree rose in su la neve» (Rime 27, 1-2); Luigi Tansillo, «L’oro, il cristallo, l’ebano, e le rose, / i rubini, le perle, e ’l terso avorio» (Poesie liriche 202, 9-10). Estrofe VI vêm logo a graça pura... Paráfrase - Se não vêem tudo isso, os meus olhos vêem, em contrapartida, a vossa graça pura e a luz alta e severa, a qual emana do raio da divina beleza que está dentro de vós: ela é que marca a alma e resplandece por fora, tal como um cristal que, iluminado por um raio de sol, derrama exteriormente a luz que acaba de receber. 98 Pode um deSejo imenSo 38 que é o raio... Escreve Castiglione: «el cuerpo donde aquella hermosura resplandece no es la fuente de donde ella nace, sino que la hermosura, por ser una cosa sin cuerpo y, como hemos dicho, un rayo divino, pierde mucho de su valor hallándose envuelta y caída en aquel sujeto vil y corruptible» (1997: 497). 39 que n’alma Preferível a lição do Manuscrito apenso que regista qu’a alma. O emprego transitivo que surge nesta lição parece preferível ao emprego absoluto que registam os demais testemunhos. A única abonação do verbo encontra-se em Os Lusíadas: «Nenhum frio temor em vós se imprima» (II 86, 4), a atestar o uso relexivo. Castiglione escreve: «y así con esto trae sabrosamente a sí los ojos que le ven, y penetrando por ellos se imprime en el alma de quien le mira [...], y encendiéndola, la mueve a un deseo grande dél» (1997: 483). 40-42 assi como cristal... esclarecido Escrevem Celio Magno, «Per sì leggiadro in lei corporeo velo / trasparerà l’interna alma bellezza, / qual per puro cristallo ardente luce» (Rime 27, 73-75); Luigi da Porto, «Tienemi amor nel petto / un bel desio d’amarvi, / un foco, un stral che mi consuma e punge; / e pur come per schietto / cristallo può passarvi / il raggio vostro, che nel cor mi giunge» (Rime 30, 5-10); Luigi Tansillo, «O sommo Sol, ch’a guisa di cristallo / trapassi il cor» (Poesie religiose, son. 138, 9-10); Torquato Tasso, «Alma real, che per leggiadro velo / splendi qual per cristallo il sol traluce» (Rime 670, 1-2). Estrofe VII E vêm a gravidade... Paráfrase - Vêem igualmente a vossa gravidade misturada com a vívida alegria de forma tão íntima, que nunca uma se separa da outra, nem deixa uma delas, por ser leda e suave, de ter receio, nem a outra, por ser grave, de ser amável. 48 por leda e por suave O segundo por não é originário, como atesta o Manuscrito de Juromenha. O Manuscrito apenso, a segunda edição das Rimas e Faria e Sousa desfazem justamente o hiato após leda (leda e), ao redobrarem por antes de süave. Estrofe VIII E vêm do honesto siso... Paráfrase - Vêem igualmente os feixes de sublime luz que, ao irradiar do vosso espírito, saem temperados com um riso doce e ledo, e ao manifestarem-se, logo as lores desabrocham no campo; 99 COMENTÁRIO A CAMÕES, vOl . 3 e vêem as palavras discretas e suaves que, ao ressoarem, têm o poder de deter o vento e as aves que voam no alto. 53 a cujo abrir abrem... A lição do Manuscrito apenso, a cujo riso no campo abrem as lores, com acentos em 4.a e 7.a sílabas, reproduz um tipo de decassílabo mais arcaico e raro, e que por isso é preferível à lição dos demais testemunhos, que apresentam um decassílabo perfeitamente luido e regular. 56 as Conforme o testemunho do Manuscrito apenso, o monossílabo não é originário, e foi evidentemente introduzido na restante tradição com o intuito de desfazer o zeugma (ver notas aos vv. 34-35, 70). Estrofe IX Dos olhos o virar... Paráfrase - Vêem ainda o virar dos olhos, que tudo faz raso, ninguém sendo capaz de adivinhar se é resultado de artifício, ou se foi efectuado por acaso; vêem os meneios e a postura da vossa pessoa, o andar e o mover-se, através dos quais se pode aprender o que é formosura. 58 raso Cf. Os Lusíadas: «aqueles que as cidades fazem rasas» (X 16, 4). Estrofe X Aquele não sei quê... Paráfrase - Enim, aquele não sei quê, que se exala não sei como, e mesmo sendo invisível, a vista o vê, mas para o compreender, lhe falta um ponto de referência, e até a poesia toscana, aquela que melhor consegue restaurar o culto de Febo, patrono da poesia e das artes, nunca foi capaz de ver, quer em Beatriz quer em Laura, essa beleza inefável. 64 Aquele não sei quê Típico sintagma petrarquiano, p. ex.: «et non so che nelli occhi, che ’n un punto / pò far chiara la notte, oscuro il giorno, / e ’l mèle amaro, et adolcir l’assentio» (Canz. 215, 12-14). Menéndez Pelayo não apreciou adequadamente este sintagma: «Pero al airmar la naturaleza ideal del amor, sabe tan poco y tan confusamente acerca de su esencia, que no acierta a designarle sino con los términos que arguyen más confusión: Hum não sey que...» (1993: 544). Os poetas petrarquistas usaram-no amplamente. O elenco elaborado por Faria e Sousa compreende Minturno, Rota, Bembo, Poliziano, Lelio Bonsi, Anibal Tosco, Stefano Ambrosio, Anibal Caro, Nicolò Amanio, Erasmo Valvasone, Angelo Firenzuola, Boscán, Montemayor, Aldana, Bernardim Ribeiro, Sá de Miranda e Diogo Bernardes (Rimas varias I 1685, 1: 45). 100 Pode um deSejo imenSo 67 tomo «Corpo ou coisa materialmente sensível» segundo Azevedo Filho (Lírica de Camões 3 II 1997: 254), ou seja, nada existe de concreto e real capaz de exprimir, ou pelo menos de sugerir, a beleza inefável da mulher celebrada. Faria e Sousa cita, entre outros textos, os vv. 94-97 da canção Yo ya biví de Boscán: «Para curallos no les hallo tomo» (Rimas varias II 1689, 3: 159). Com efeito, a única abonação semântica do vocábulo corresponde a ‘valor, importância, valia’ (Houaiss s. v. 2, com datação ca. 1543, Ferreira de Vasconcelos, Eufrosina: «é a data para a cp. ig. ‘importância’»), também conirmada pela Microcosmographia de André Falcão de Resende (II 7, 8; II 58, 6). A etimologia talvez seja o latim tumba, ‘sepulcro’. No século XVII, o Diccionario de Autoridades regista em «tombo»: «No es probable separar de esto el uso del cast. tomo, en acs. abstractas y aines a la idea de masa o balumba», ou seja ‘bulto’ em Fr. A. de Guevara (1539), ‘importancia’ em B. de Villalba, ‘el grueso, corpo o bulto de alguna cosa’ em Fray Luís de León; ‘importancia, valor y estima’». Quanto a tombo, é aceitável a hipótese de Carolina Michaëlis de Vasconcelos, que «la idea básica fuese la de ‘montón de escrituras, donde éstas quedan como enterradas’» (Corominas s. v. «tumba»). 69-70 que mais Febo restaura... Graças a Dante e a Petrarca, o primeiro originário de Florença, o segundo de Arezzo, a poesia em língua italiana (toscana) é considerada a mais prestigiosa de Europa, sendo Febo o patrono mitológico da poesia e das artes. Tanto Dante, com a personagem de Beatriz, como Petrarca, com a personagem de Laura, procuraram descrever o ideal da formosura feminina. Contudo, nem um, nem outro conseguiram perceber e captar, na sua linguagem, a essência divina de aquele não sei quê. 70 em... em... O segundo em não é originário, conforme atesta o Manuscrito de Juromenha (com Bëatriz trissílabo). Os demais testemunhos introduziram-no com o intuito de desfazerem o zeugma sintáctico que implica uma omissão. Em Os Lusíadas também ocorre hiato intravocabular (e não sinérese com contração das duas vogais) com o vocábulo Bëatriz em IV 7, 1. Estrofe XI em vós a nossa idade... Paráfrase - Tudo isso, Senhora, em vós a nossa época o pode ver, se quiser outorgar, aos tempos coevos, engenho, ciência e habilidade iguais à vossa beleza, tal como eu, durante o longo período em que me encontrei longe de vós, consegui ver essa beleza como se estivesse na vossa presença, e isso em virtude das asas que o desejo dá ao pensamento. 101 COMENTÁRIO A CAMÕES, vOl . 3 73 se engenho... O verso apresenta hiato após se, diérese com separação das duas vogais na palavra cïência, e acentos na 3.a (cesura lírica) e na 6.a sílabas. 74 ...der Em vez de der, Azevedo Filho (Lírica de Camões 3 II 1997: 257) escolhe houver como no Manuscrito de Juromenha, mas na verdade o manuscrito regista ouver. 76 em ausência É a lição da segunda edição das Rimas e de Faria e Sousa, a corrigir para em presença com base nos dois manuscritos, o Manuscrito de Juromenha e o Manuscrito apenso. Observa Azevedo Filho: «o sentido do verso é o seguinte: no meu longo apartamento (afastamento) eu a vi (com sua beleza invisível) como se ela estivesse presente» (Lírica de Camões 3 II 1997: 258). 77 asas Escreve Marsilio Ficino: «solvamus quamprimum vincula compedum terrenarum, ut alis sublati platonicis a Deo duce, in sedem aetheream liberius pervolemus» (Ficinus 2002: I 1; ‘é preciso libertarmo-nos das cadeias terrenas, de modo a elevarmo-nos graças às asas de Platão e, sob a guia de Deus, voar mais livremente no éter’; a metáfora, como é sabido, remonta ao Fedro de Platão, Phdr. 251 a. c.); «Concludamus animam nostram per intellectum et voluntatem tanquam geminas illas platonicas alas idcirco volare ad Deum, quoniam per eas volat ad omnia» (XIV 3; ‘conclui-se que a nossa alma voa até Deus por meio do intelecto e da vontade, que correspondem às duas conhecidas asas de Platão, porque é graças a elas que a alma, voando, atinge todas as coisas’). Esta imagem neoplatónica é amplamente usada pelos petrarquistas: Bernardo Cappello, «me ben puoi tu fuggir, ma non le levi / ali, ch’Amor benigno a l’alma diede» (Rime 92, 3-4); Tullia d’Aragona, «s’al ciel, lasciato ogni terren soggiorno, / sopra l’ali d’amor poggiando volo» (Rime 36, 3-4, e cf. v. 8 «da santo e bel disio levato a volo»); Vittoria Colonna, «voli con l’ali del verace amore» (Spirituali 93, 13); Angelo di Costanzo, «Quando l’ali d’Amor per lungo et erto / camin guidan tant’alto» (Rime 29, 1-2). Tal como a alma, assim também o desejo ganha asas, depois de ser puriicado. O sintagma ali del desir (desio) encontra-se, p. ex., em Pietro Barignano (Rime 45, 3; 67, 2), Pietro Bembo (Rime 82, 14), Bernardo Cappello (Rime 91, 4) ou Vittoria Colonna (Rime amor. disp. 8, 9 e 38, 3). Para «a terminologia ligada ao voo» na obra lírica camoniana, ver Spina 1993. Neste verso, Camões faz uma espécie de cruzamento entre asas do desejo e a metáfora, aliás muito mais comum, que atribui asas ao engenho ou ao pensamento. Um propósito parecido com aquele exprimido neste passo por Camões lê-se num soneto de Luigi Alamanni: «forse udirai di te più 102 Pode um deSejo imenSo lunge il grido, / ch’altra che scaldi il Sol, che bagnin l’onde. // E ben che l’ali del mio basso ingegno / non pôn molto per sé da terra alzarse» (Rime 1, 90, 7-10; ‘apesar de as asas do meu baixo engenho não poderem, por si mesmas, levantar-se muito acima do solo, ouvirás talvez falar de ti e da tua beleza muito mais longe, do que qualquer outra que viva sob o sol ou junto do mar’). Ver também em Alamanni: «sopra l’ali del ver mio basso stile / porterà il nome tuo tant’alto forse / ch’odio e sdegno n’avran l’Ibero e il Reno» (Versi e prose 2, 9, 235-237; ‘levantando-se com as asas da verdade, o meu baixo estilo levará talvez tão alto o teu nome, que isso provocará o ódio e a indignação de Espanha e Alemanha’). Estrofe XII Pois se o desejo aina... Paráfrase - Enim, se o desejo conferir à minha alma inlamada um grau de pureza tão intenso que graças a vós consiga aproveitar a centelha de luz divina, que a minha alma guarda dentro em si, graças a vós levantarei um canto nunca antes visto, e que a Espanha me ouça, e a Itália me celebre; quanto ao nosso Tejo dourado, vejo as suas ondas estarem a correr um pouco envoltas e dissonantes. 82 Bétis... Tibre Observa Azevedo Filho: «O Bétis é o rio Guadalquivir, em clara alusão a Sevilha, onde Luiz Gomes de Tapia e Fernando de Herrera, segundo Faria e Sousa, p. 160, celebraram a poesia de Camões. E Tibre, rio da Europa, é clara alusão a Roma, onde igualmente a sua poesia foi celebrada» (Lírica de Camões 3 II 1997: 260). 83 que o nosso claro Tejo O Manuscrito de Juromenha conserva o hiato que o dourado Tejo, transformado pela segunda edição das Rimas e por Faria e Sousa em qu’o nosso claro Tejo. O indício mais revelador encontra-se na lição do Manuscrito apenso, que é hipermétrica, com um número de sílabas excessivo, por implicar duas redacções (que o nosso dourado T.), possivelmente retomando nosso do ascendente da segunda edição das Rimas e de Faria e Sousa. Estrofe XIII O campo não o esmaltam... Paráfrase - Não há lores a embelezar o campo, somente abrolhos que o fazem feio. Aos que gostam da poesia e da beleza, acho que lhes faltam ouvidos para mim, olhos para vós. Mas faça o que quiser o vil costume: graças à escuridão em que está envolto, o sol que ica dentro em vós mostrar-se-á bem mais luminoso. 103 COMENTÁRIO A CAMÕES, vOl . 3 85-87 O campo... / ...faltam Faria e Sousa (Rimas varias II 1689, 3: 161) remete para Garcilaso: «la tierra, que de buena / gana nos producía / lores [...] / produce agora en cambio estos abrojos» (I écloga, 302-306). 89 vil costume Escreve Benedetto Varchi: «lungi dal costume vile / di questi tempi» (Opere son. 261, 12-13). Maurizio Perugi 104 A D. Manuel de Portugal 5 10 15 20 25 I A quem darão de Pindo as moradoras, tão doutas como belas, lorescentes capelas do triunfante louro ou mirto verde, da gloriosa palma, que não perde a presunção sublime, nem por força do peso algum se oprime? II A quem trarão na fralda [delicada] rosas a roxa Clóris, conchas a branca Dóris; estas, lores do mar, da terra aquelas, argênteas, ruivas, brancas e amarelas, com danças e coreias de fermosas Nereidas e Napeias? III A quem farão os hinos, odes, cantos, em Tebas Anion, em Lesbos Arion, senão a vós, por quem restituída se vê da Poesia já perdida a honra e glória igual, Senhor Dom Manuel de Portugal? IV Imitando os espritos já passados, gentis, altos, reais, honra benina dais a meu tão baixo quão zeloso engenho. Por Mecenas a vós celebro e tenho; e sacro o nome vosso farei, se algũa cousa em verso posso. 105 COMENTÁRIO A CAMÕES, vOl . 3 V O rudo canto meu, que ressuscita 30 as honras sepultadas, as palmas já passadas dos belicosos nossos Lusitanos, para tesouro dos futuros anos, convosco se defende 35 da lei Leteia, à qual tudo se rende. VI Na vossa árvore, ornada de honra e glória, achou tronco excelente a hera lorecente para a minha até qui, de baixa estima; 40 na qual, para trepar, se encosta e arrima; e nela subireis tão alto quanto aos ramos estendeis. 45 50 55 VII Sempre foram engenhos peregrinos da Fortuna envejados; que, quanto levantados por um braço nas asas são da Fama, tanto por outro a sorte, que os desama, co peso e gravidade os oprime da vil necessidade. VIII Mas altos corações, dinos de império, que vencem a Fortuna, foram sempre coluna da ciência gentil: Octaviano, Cipião, Alexandre e Graciano, que vemos imortais; e vós, que nosso século dourais. 106 a quem dar ão de Pindo aS mor ador aS 60 IX Pois, logo, enquanto a cítara sonora se estimar pelo mundo, com som douto e jucundo, e enquanto produzir o Tejo e o Douro peitos de Marte e Febo crespo e louro, tereis glória imortal, Senhor Dom Manuel de Portugal. (Rimas, Ode 7, pp. 272-273) Lapso corrigido v. 51 vencem em vez de vendem. 1. A ode VII trata a imortalidade poética através da exaltação de D. Manuel de Portugal, merecedor da distinção das Musas e das Ninfas por ter restituído à poesia a sua honra, ao actuar como protector e mecenas dos poetas. Em agradecimento, o poeta faz-lhe a promessa de imortalizar o seu nome com os seus versos. O poema combina diversos temas e entrelaça-os em associações cuja aparente arbitrariedade é abolida pelos recursos que aglutinam os elementos. Um io condutor, o tema metapoético, confere unidade a esta ode programática, que se autodeine e delimita os seus objectivos como louvor de um destinatário nela envolvido, porquanto mecenas e garantia da imortalidade dos versos em sua honra compostos. Deste modo, a ode serve de álveo à teorização sobre a inspiração, o estilo e os géneros poéticos. Ao longo do seu texto sucedem-se referências metapoéticas: as Musas, de Pindo as moradoras (v. 1); as éclogas piscatórias e campestres, a que se alude com as danças das Ninfas correspondentes, de fermosas Nereidas e Napeias (v. 14); os géneros ligados a uma execução musical, hinos, odes, cantos (v. 15), a qual se atribui aos cantores míticos Anion e Arion (III estrofe); a igura do poeta, consciente do seu estilo, meu tão baixo quão zeloso engenho (v. 25), e do seu ofício e missão, como laudator, o que compõe o louvor (IV estrofe); as faculdades desse rudo canto (v. 29) de ressuscitar as glórias lusitanas, com citação metatextual de Os Lusíadas (V estrofe); a imagem da poesia de quem escreve como hera lorecente, de baixa estima (vv. 38, 39); os poetas como engenhos peregrinos (v. 43); a poesia como instrumento musical ou cítara sonora (v. 57), capaz de propagar e imortalizar o nome do 107 COMENTÁRIO A CAMÕES, vOl . 3 destinatário com som douto e jucundo (v. 59). Qualiicar desta maneira o canto poético supõe uma proclamação em defesa do estilo maneirista, soma de erudição e artifício formal, em conformidade com o docere et delectare horaciano. A ode contém, pois, em si mesma, uma argumentação estilística a favor da complexidade poética, em sentido formal e intelectual (Silva 2008: 63-68). Mesmo assim, tais declarações aludem à ascendência musical da ode, anteriormente equiparada a hinos e cantos (v. 15) por se destinar, na sua origem, a ser recitada ou cantada com acompanhamento musical, conforme o sentido etimológico do termo. O tema da poesia encontra nos motivos vegetais um meio expressivo recorrente em grande parte das estrofes. A partir da primeira pergunta, deine-se esse fundo simbólico, com a menção às coroas de louro, mirto e palma: lorescentes capelas / do triunfante louro ou mirto verde, / da gloriosa palma (vv. 3-5). Se o louro, árvore de Apolo mas também de Júpiter, conota a vitória militar e a poesia épica, o mirto, planta de Vénus, representa a poesia amorosa. Une-se a este binómio a gloriosa palma (v. 5), imagem de triunfo reiteradamente referida, com sinal invertido em as palmas já passadas (v. 31). Reforça esta dicotomia entre grandeza épica e humildade lírica a marca vegetal alegórica dos vínculos que unem o mecenas e o poeta. O seu magistério é simbolizado pela hera lorecente (v. 38) que trepa através do sólido tronco (talvez equivalente ao louro) do seu protector, a quem tributa a divulgação do seu nome em agradecimento (vv. 36-42). Entre os elementos vegetais cabe mencionar as rosas (v. 9) da II estrofe, ornamento loral que, através de uma adjectivação múltipla, aduz cromatismo: argênteas, ruivas, brancas e amarelas (v. 12). A ideia de mecenato poético também se cristaliza em noções espaciais que realçam o contraste entre elevação e queda com efeitos dinâmicos. Espalham-se por todo o poema, adquirindo diversos matizes: a presunção sublime da palma (v. 6), que não se deixa oprimir pela força de um qualquer peso (I estrofe); a hera que trepa pelo tronco e pelos seus ramos, num percurso ascendente (VI estrofe); os engenhos peregrinos (v. 43), elevados pelas asas da Fama e derrubados pela Fortuna (VII estrofe). Exprime-se aqui a instabilidade da Fortuna com a sua roda, adversa aos talentos premiados pela Fama. Os versos em causa, co peso e gravidade / os oprime da vil necessidade (vv. 48-49), sugerem a igura mitológica de Encélado, o gigante esmagado pelo Etna em castigo da sua ambição. 108 a quem dar ão de Pindo aS mor ador aS Conigura-se assim uma moralidade implícita, perilada na igura do herói ou sapiens, cuja rectidão confere honra e glória à poesia. A personalidade que é objecto de louvor, o laudandus, equipara-se aos espíritos gentis, altos, reais (v. 23) do passado e aos altos corações, dinos de império (v. 50), que subjugaram a Fortuna com a sua virtude. Este arquétipo do sapiens deriva para o arquétipo do beatus, instaurador da Idade de Ouro no presente (v. 56). O mesmo tema da imortalidade enche-se de um cunho moral, ao posicionar-se como anulação do tempo e restauração dos valores do passado que D. Manuel encarna na sua pessoa. Como é próprio da ode horaciana, a realidade contemporânea conforma o fundo e o ambiente histórico do poema, dirigido a uma personagem relevante. A sua presença justiica o sentimento patriótico que alora igualmente na evocação de Os Lusíadas, em particular na V estrofe do I canto, e nos versos inais desta ode: e enquanto produzir o Tejo e o Douro / peitos de Marte e Febo crespo e louro (vv. 60-61). Tais referências convivem e fundem-se com iguras do mundo clássico (Octaviano, / Cipião, Alexandre e Graciano, vv. 53-54) e também com o ornamento mitológico das Musas, das Ninfas, Anion, Arion, a Fama e a Fortuna, o rio infernal Letes e, de forma alusiva, Encélado. Estas são evocações que neutralizam e universalizam a situação, ainal num contexto temporal e geográico preciso. Das duas possibilidades estruturais da ode horaciana, a linear e a retórica (Tracy 1952; Maddison 1960; Collinge 1961), este poema aplica a segunda, que distribui a matéria em quatro núcleos nitidamente delimitados: 1. Propositio (I-III estrofes). Musas, Ninfas e cantores míticos congregam-se numa oferenda universal a D. Manuel, apresentado como restaurador da honra e da glória da poesia. Esta dupla proposta, de dádivas ao destinatário e da pessoa do nobre ao leitor, constitui a parte introdutória da composição. 2. Narratio (IV estrofe). A categoria do destinatário como mecenas merece ao poeta a distinção de sacralizar o seu nome com os seus versos. Além de a ampliicar, este núcleo faz derivar da propositio o tema axial da ode, que aponta já para a imortalidade poética. Perila-se assim a reciprocidade entre os méritos do nobre e o reconhecimento por parte do poeta, que será desenvolvida nos versos seguintes. 3. Argumentatio (V-VIII estrofes). A ampliicação das ideias expostas estratiica-se em vários núcleos. Em primeiro lugar, evoca-se o trabalho 109 COMENTÁRIO A CAMÕES, vOl . 3 do poeta no passado, aludindo a Os Lusíadas, testemunho da sua faculdade imortalizadora graças à acção do protector (V estrofe). Descreve-se depois a relação entre ambos, equiparável à imagem clássica da hera trepadora pelo tronco (VI estrofe). Alcança-se então um plano geral (VII-VIII estrofes), no qual se expõe como os poetas são sujeitos aos avatares da Fortuna, força à qual se sobrepõem os ilustres mecenas, entre os quais se alinha o ouvinte, mencionado para restabelecer o plano apelativo e actual do poema, com a passagem do mundo clássico ao nosso século, partilhado por quem fala e por um vós (v. 56). 4. Peroratio (IX estrofe). O poema conclui-se com a promessa vaticinadora da perpetuação do nome do destinatário através do canto do poeta. A este desenvolvimento argumentativo por blocos sobrepõe-se a alternância das pessoas gramaticais implicadas pelo poema, cada uma delas portadora de um determinado motivo temático. O «eu» representa o protegido, que em agradecimento elabora um canto perene, ao passo que o vós se faz merecedor desse canto porque ao auspiciar a actividade literária assegura a sua permanência no tempo. Ambos os actantes se relacionam através de um sentimento recíproco de amizade, marcado por uma relação hierárquica que delimita as respectivas funções. Este plano e as suas marcas gramaticais reforçam o carácter do poema como dedicatória, segundo a tradição da ode clássica e europeia. Essa segunda pessoa, que aparece pela primeira vez em senão a vós (v. 18), canaliza a evolução do bloco interrogativo, para dar resposta ao anafórico A quem (vv. 1, 8, 15) das estrofes iniciais. A identidade desse vós, já facultada na dedicatória, reitera-se no último verso da introdução: Senhor Dom Manuel de Portugal (v. 21). Deinem-se a continuidade dos vínculos entre senhor e poeta em termos de mútuo tributo, porquanto o nobre honra o baixo engenho do escritor, que em troca se compromete a sacralizar o seu nome (IV estrofe). Na V estrofe o «eu» fala do seu poema épico, sem que este predomínio exclua a presença do tu, responsável último por que esta obra não caia no esquecimento (convosco se defende / da lei Leteia, vv. 34-35). A simbiose plena de ambas as entidades ocorre na estrofe seguinte, cristalizada na metáfora da hera e do tronco, expressamente vinculada à segunda pessoa gramatical em Na vossa árvore (v. 36) e à primeira em para a minha (v. 39), segundo alguns testemunhos textuais (Manuscrito apenso, Rimas 1598, Faria e Sousa Rimas varias), em contraste diluído, embora 110 a quem dar ão de Pindo aS mor ador aS implícito, com outros testemunhos que omitem o possessivo (Manuscrito de Juromenha). O «eu» e o vós fundem-se nesta imagem vegetal que conota o tema central da ode, a proposta a quem é superior de um poema de agradecimento pela sua protecção. Um parênteses de duas estrofes interrompe a alternância entre pessoas para ascender a generalizações, segundo o movimento em crescendo de algumas odes de Horácio (Tracy 1952: 210-212). Porém, o jogo comunicativo restabelece-se no último verso, que menciona D. Manuel como sucessor dos mecenas antigos na época que partilha com o poeta, o que ica incluído no possessivo plural: e vós, que nosso século dourais (v. 56). Para terminar o poema o «eu» retoma as declarações metapoéticas, diluídas na impessoalidade, a cítara sonora (v. 57), com som douto e jucundo (v. 59), cedendo todo o protagonismo à igura do seu destinatário na solene profecia que encerra a ode: tereis glória imortal, / Senhor Dom Manuel de Portugal (vv. 62-63). O entrelaçamento entre as estrofes estabelece-se através de iterações que travejam o poema, concentrando em linhas unitárias a diversidade dos seus motivos. Tais repetições, verbais ou nocionais, ligam quer estrofes consecutivas, quer núcleos distantes, dando lugar a duas variedades de procedimento. À semelhança da ode clássica, começo e im do poema unem-se coerentemente numa estrutura envolvente ou circular, formada por elementos recorrentes na I e na IX estrofes, com predomínio de signiicados metapoéticos. No verso da I estrofe do triunfante louro ou mirto verde (v. 4) percebe-se o contraste entre o sublime do heroísmo e a simplicidade lírica que se retoma na estrofe inal, em peitos de Marte e Febo crespo e louro (v. 61). A alusão mitológica latente no binómio do louro e do mirto, plantas respectivamente de Apolo ou Febo e de Vénus, prepara a dicotomia entre o deus da guerra e o da poesia. Uma tal variante do tópico das armas e das letras envolve o poeta e o seu protector. Gera-se uma dupla metonímia que designa a poesia, enquanto inspiração ou actividade. Se na I estrofe as Musas são mencionadas com a perífrase de Pindo as moradoras (v. 1), assim o verso inicial da última estrofe se refere ao instrumento musical, a cítara sonora (v. 57), que produz o poema. Além disso, ambas as estrofes contêm declarações que apontam de modo conciso para a dualidade horaciana docere et delectare. Nos dois casos o conteúdo metapoético deposita-se no adjectivo douto, que aponta para o carácter elaborado e culto do poema, equilibrado com os ingredientes 111 COMENTÁRIO A CAMÕES, vOl . 3 puramente formais ou lúdicos, que icam a cargo do segundo elemento do binómio: tão doutas como belas (v. 2), som douto e jucundo (v. 59). Em conformidade com a qualiicação douto e jucundo que o autodeine, o poema exibe um intenso artifício, contido dentro dos limites de um estilo equilibrado que evita cair na ostentação. 2. O texto deste poema tem dois testemunhos manuscritos com expressa atribuição a Camões, o Manuscrito de Juromenha (28v) e o Manuscrito apenso (29v; preparado entre 1595 e 1598) que se encontra anexado a um exemplar da primeira edição das Rimas (1595) existente na Biblioteca Nacional de Portugal e cujo conteúdo reverte na segunda edição das Rimas, onde foi publicado (1598: 61v-63). Esses dois códices poderão derivar de um mesmo original ou de exemplares distintos de uma mesma família, ao passo que o texto impresso na edição de 1598 provém do Manuscrito apenso. Várias leituras demonstram que o Manuscrito de Juromenha não é cópia da edição das Rimas de 1598, pois oferece soluções especíicas que são indícios da sua independência. Como principais variantes, esse testemunho regista dilicada (v. 8), adjectivo que falta no Manuscrito apenso e na edição de 1598, e em vez de para a minha até qui, de baixa estima (v. 39) transcreve hera aguora de muito baixa estima. Quanto a estas questões, remete-se para a obra de Leodegário A. de Azevedo Filho (1990: 27, 28-29, 88). Ver também o estudo textual que o mesmo crítico dedica especiicamente a esta ode em Lírica de Camões (3 II 1997: 123-153), onde oferece uma exaustiva lista de variantes. Corrigiu-se o seguinte lapso: vendem > vencem (v. 51, correctamente registado na edição de Costa Pimpão de 1953 e erroneamente grafado a partir da edição de 1955). 3. Ode com 9 estrofes de 7 versos, senários e decassilábicos, segundo o esquema: AbbCCdD. O enraizamento do poema na tradição da ode clássica e europeia conirma-se pela sua forma métrica, a estrofe de 7 versos, decassílabos e senários, ligados por rimas emparelhadas que são encabeçadas por um verso solto. Nas suas restantes odes, genuínas e atribuídas, Camões emprega outras combinações em estrofes de 7 (I, II, V, VI), 6 (IV, VIII, XI, XII) e 5 versos em forma de lira (III, IX, X). Por isso, Faria e Sousa na sua introdução às odes estabelece o limite do número de versos como traço distintivo desta forma relativamente à canção: «No deben las 112 a quem dar ão de Pindo aS mor ador aS odas exceder de ocho versos en cada estancia […]. Luis de Camoens no hizo alguna que excediese de siete versos; y aunque también no la hizo que bajase de cinco, bien se puede hacer de cuatro» (Rimas varias II 1689, 3: 117). Este tipo de estrofe segue o modelo geral das adaptações do tetrástico horaciano levadas a cabo por Bernardo Tasso, que combina decassílabos e senários em grupos de 5 ou 6 versos, sem decalcar nenhum dos seus esquemas, que nem tão pouco oferecem a particularidade do verso solto inicial. A denominada lira, de 5 versos, provém de um dos poemas de Bernardo Tasso, O pastori felici (Loda de la vita pastorale), através da Ode ad lorem Gnidi de Garcilaso, um dos álveos predilectos da ode peninsular, também vertida em estrofes semelhantes à lira, mas que aumentam o seu número de versos, sem chegarem porém às proporções da stanza divisa. À semelhança do que se passa com outras variedades poéticas, a estrofe erige-se em indício óbvio da eleição do tipo de composição e em veículo portador de um conjunto de factores temáticos, formais e estruturais que, aglutinados, o deinem. Pela sua brevidade, os modelos métricos da ode contemplam um ritmo discursivo e uma estrutura que se encontram intimamente ligados aos elos que se estabelecem entre as estrofes, e, além disso, andam associados ao tratamento de certos temas de cariz horaciano, próprios da coniguração formal e prosódica especíica da ode (Pérez-Abadín 1995; Beltrami 2011; Spaggiari 2011: 185-196). Dedicatória A D. Manuel de Portugal, filho do conde de Vimioso e poeta. «Él era hijo del primer conde de Vimioso, don Francisco de Portugal, y fue caballero de lúcidas partes y erudito, y que escribió versos afectuosos, y el primero de Portugal que después del largo olvido de los endecasílabos en España los restituyó con luz digna de alumbrar a otros», escreve Faria e Sousa (Rimas varias II 1689, 3: 161-162; Fardilha 1991, acerca da sua poesia). A eleição do destinatário mostra-se solidária com o propósito do poema, pela actividade efectiva do laudandus, que além de actuar como mecenas beneiciará da faculdade imortalizadora da poesia. Nas duas fontes manuscritas, o Manuscrito apenso e o Manuscrito de Juromenha, o título Ode a D. Manuel de Portugal evidencia a centralidade desta personagem como canalizador do discurso poético que vai sendo desenvolvido em continuação. As apóstrofes Senhor Dom Manuel de Portugal (vv. 21, 63), dis4. 113 COMENTÁRIO A CAMÕES, vOl . 3 postas estrategicamente no inal da introdução e do poema, conirmam esse relevo. Estrofe I A quem darão de Pindo as moradoras... Paráfrase - O poeta interroga-se sobre aquele que merece ser galardoado pelas Musas com coroas de louro, mirto e palma, motivos vegetais de sentido simbólico. Logo desde o começo, o poema manifesta uma dimensão metapoética que será mantida até ao inal. Mesmo assim, implanta-se a partir deste momento o carácter binário que marcará o seu ritmo: tão doutas como belas (v. 2), do triunfante louro ou mirto verde (v. 4). 1 A quem Ao longo das três primeiras estrofes, interrogatio e anáfora combinam-se realçando o culto universal que Musas, Ninfas e cantores míticos prestarão ao destinatário. Começa aqui a propositio do poema, desenvolvida como pergunta ao longo de três estrofes. 1 de Pindo as moradoras Alusão às Musas, que habitam na montanha de Pindo, situada entre a Tessália e o Epiro. O sintagma procederá da I elegia de Garcilaso, «con que de Pindo ya las moradoras» (v. 14), modelo por sua vez do hipérbato, a igura de retórica que altera a ordem das palavras, pelo que a preposição de se antepõe ao substantivo. 3 capelas Coroas. 4 louro, mirto Plantas que conotam, respectivamente, a vitória militar e por extensão a poesia épica, e a poesia lírica ou amorosa. Cada uma delas associa-se a uma divindade, o louro a Apolo e o mirto a Vénus, e constituem uma variante do binómio armas-letras. Segundo Herrera, «Coronávanse de laurel los poetas eroicos, como se puede ver en Oracio i Estacio, i de mirto los eróticos, que son los que escriven cosas de amor. Pero la corona de iedra se daba a los poetas menores, que son los no eroicos, que éstos se nombran mayores. Ésta es de los líricos, según algunos» (2001: 697). 5 gloriosa palma Também árvore da vitória, como o louro. Estrofe II A quem trarão na fralda [delicada]... Paráfrase - O poeta interroga-se sobre aquele que merece os presentes das Ninfas, no momento em que faz alusão às éclogas piscatórias e campestres, com as danças das suas Ninfas emblemáticas, Nereidas e Napeias. Esta estrofe constrói-se de acordo com um princípio binário reforçado pelo hipérbato e pela correlação, a partir 114 a quem dar ão de Pindo aS mor ador aS dos versos senários: rosas a roxa Clóris, / conchas a branca Dóris (vv. 9-10). De ambos os versos deriva a construção dos dois membros simétricos, estas, lores do mar, da terra aquelas (v. 11), com elipse do termo comum lores. Seguem-se a construção de quatro membros acerca do colorido das plantas (v. 12) e dois versos com sinais de dualidade: com danças e coreias / de fermosas Nereidas e Napeias (vv. 13-14). Em suma, deste travejamento resulta uma correlação com dois membros, Clóris e Dóris, e três enumerações (vv. 9-10, 11, 14). 9 Clóris Napeia, que é uma Ninfa dos bosques (cf. v. 14). Faria e Sousa identiica-a com Flora (Rimas varias II 1689, 3: 143, 163). 10 Dóris Nereida, que é uma Ninfa do oceano (cf. 14). 13 coreias Bailados. Estrofe III A quem farão os hinos, odes, cantos... Paráfrase - O poeta interroga-se sobre aquele que merece os cantos de Anion e Arion, e identiica-o com D. Manuel de Portugal, que restituiu à poesia a sua honra. Como que a fazer-se eco da anterior construção em dois membros, esta estrofe reproduz o paralelismo dos dois versos que contêm nomes próprios, em Tebas Anion, / em Lesbos Arion (vv. 16-17), agora desprovidos de correlação. O recurso aplica-se, em posição idêntica, na V estrofe: as honras sepultadas, / as palmas já passadas (vv. 30-31). Deste modo, em três estrofes, o segundo e o terceiro versos, que são senários, são construídos através de diversos processos de paralelismo: a correlação (II estrofe); o zeugma, uma igura de elipse, já que ambos os cantores, Anion e Arion, partilham os elementos presentes do decassílabo que os precede (A quem farão os hinos, odes, cantos, v. 15); ou simplesmente o ênfase semântico (V estrofe). 15 hinos, odes, cantos Três formas de celebração poética ou musical relacionadas com a ode clássica. 16 Anion Músico acerca do qual se dizia que a sua lira construiu as muralhas de Tebas, movendo as pedras ao ritmo da música. 17 Arion Outro dos cantores míticos acerca do qual a lenda conta que, ao ser lançado à água pelos marinheiros, atraiu com a sua lira os delins e, conduzido por um deles, alcançou a costa. 19 Poesia já perdida Alusão ao poema épico Os Lusíadas ou, mais plausivelmente, recordação da participação de D. Manuel na difusão da poesia nova. 21 Senhor Dom Manuel de Portugal A menção ao laudandus foi diferida para este verso que encerra uma interrogatio múltipla de três estrofes. 115 COMENTÁRIO A CAMÕES, vOl . 3 Estrofe IV Imitando os espritos já passados... Paráfrase - Ao dar-lhe protecção, tal como os mecenas da Antiguidade, honra o baixo engenho do poeta, o qual, em agradecimento, com os seus versos fará sacro o seu nome. Embora o termo possua sentido genérico, a sua menção introduz a presença da personagem histórica de Mecenas, amigo e protector de Horácio, a quem dirige o prólogo dos Carmina (Maecenas atavis edite regibus, Carm. I 1), bem como a ode II 12 e a sátira I 6 (Olivier 1939; Reckford 1959). Sob um invólucro de modéstia, o poeta revela-se conhecedor do seu estilo e consciente da sua missão laudatória. No travejamento retórico do discurso, esta estrofe desempenha a função de narratio, introduzindo o tema da imortalidade poética que será ampliicado nos núcleos seguintes. Do ponto de vista técnico, destaca-se a construção com três membros, gentis, altos, reais (v. 23), que contém um elemento de contraste relativamente ao único verso de ritmo binário deste núcleo: a meu tão baixo quão zeloso engenho (v. 25), sem que se advirta outro indício de dualidade para além da coordenação de sinónimos (celebro e tenho, v. 26). 22 espritos já passados Os antigos mecenas, aos quais se equipara D. Manuel. 25 zeloso engenho Engenho que se aplica com singular cuidado e empenho. 26 Por Mecenas a vós celebro e tenho Atribuindo a D. Manuel o nome do protector de Horácio, Gaio Cílnio Mecenas, o poeta assume a sua missão de laudator, para outorgar ao poema um desígnio epidíctico de enaltecimento. 27-28 e sacro o nome vosso / farei A humilitas não constitui óbice a que o poeta se atribua faculdades sacralizadoras. Estrofe V O rudo canto meu, que ressuscita... Paráfrase - O seu rude canto, que recorda a glória dos lusitanos, pelo facto de cantar o seu destinatário alcançará a imortalidade. Anulam-se aqui as distinções temporais, na medida em que o passado lendário de Portugal se revive no presente e se transmite, através da obra literária, ao futuro. O passo contém um comentário metatextual a Os Lusíadas, projectado sobre a VIII estrofe da ode. Do ponto de vista da estrutura discursiva, começa aqui uma ampliicatio que se estenderá até à VIII estrofe, na qual a natureza e a história trazem argumentos em defesa da excelência do mecenas. 29-32 O rudo canto meu… / dos belicosos nossos Lusitanos Perífrase de Os Lusíadas, que apontará para a cronologia relativa da ode em relação 116 a quem dar ão de Pindo aS mor ador aS ao poema épico, publicado em 1572. Segundo Faria e Sousa, «No puedo averiguar si esto era al tiempo que le escribía, si después que le imprimió. Si era después, sería el año 1573, porque la impresión fue el de 1572. Si era antes, sería el año 1552, porque el de 1553 era ya partido para la India. Y esto es lo que yo creo, según lo dije en la Vida del P. que puse al principio de los Comentarios a la Lusiada» (Rimas varias II 1689, 3: 164). 34-35 convosco se defende / da lei Leteia Litotes dupla, recurso ligado à suposta modéstia do poeta. Num primeiro nível, atribui ao próprio mecenas, e não aos seus versos, o mérito de se sobrepor à lei leteia, numa evocação do rio infernal do esquecimento, o Letes, num segundo nível, a atenuatio reintroduz o conceito de imortalidade. Estrofe VI Na vossa árvore, ornada de honra e glória... Paráfrase - Como protector, D. Manuel é o tronco por onde trepa a hera, que por sua vez o faz subir por ele. Recorre-se aqui ao modelo de recusatio aplicado por Horácio nas odes, para reivindicar as suas preferências líricas (Carm. I 6; I 19; II 12; III 3; IV 2; IV 15; para a evolução histórica deste género, Race 1988: 1-34; para o seu uso por Horácio, d’Anna 1979-1980), embora a humilitas não implique uma renúncia à épica, cultivada com êxito no passado (V estrofe), nem tão pouco uma conissão de incapacidade, pois com a ajuda da sua eminência o poeta sente-se capacitado para situar a lírica nas esferas da épica, fundindo as iguras do protector e do poeta, irmanadas no acto de escrita. Deste modo, uma imagem greco-latina de signiicado amoroso dilata o seu alcance semântico para deinir a simbiose entre as duas iguras, o magnate e o escritor, participantes no acto de criação poética. A hera agarrada ao tronco modiica o seu referente, o abraço físico, para se converter em símbolo do elogio poético (aplicando um tópico consagrado por Catulo, nos seus poemas 61 e 62; Demetz 1958). Toma como modelo textual directo um passo do exórdio da I égloga de Garcilaso: «dé lugar a la hiedra que se planta / debajo de tu sombra y se levanta / poco a poco, arrimada a tus loores» (vv. 38-40). Pela quantidade de recursos epidícticos, culmina nesta estrofe o enaltecimento do destinatário. 36 Na vossa árvore O louro ou a palma, já mencionados no poema pela sua vinculação ao triunfo e ao poder, ou qualquer árvore que conote irmeza, como o carvalho. 38 hera lorecente Planta que simboliza a poesia lírica, pela sua humildade. 117 COMENTÁRIO A CAMÕES, vOl . 3 39 de baixa estima O contraste de adjectivos, baixa e excelente (v. 37), resume a união de opostos, a hera e o tronco, conirmada pelos verbos se encosta e arrima (v. 40). 41 nela subireis O uso do futuro redunda na faceta de vate com capacidades proféticas que se atribui o poeta e que se proclamará sem rodeios no penúltimo verso (tereis glória imortal, v. 62). Aqui os augúrios lançam um movimento ascendente, marcado pelas partículas através das quais se pondera a promessa: e nela subireis / tão alto quanto aos ramos estendeis (vv. 41-42), imagem visual do poder. Estrofe VII Sempre foram engenhos peregrinos... Paráfrase - O tema da fortuna, de ampla tradição, encontra também a sua formulação nas odes de Horácio, que lançam advertências em relação à sua volubilidade (Carm. I 34; I 35; III 29). Sugestões visuais, dinamismo e contraste deinem o estilo desta estrofe que plasma a versatilidade da Fortuna, aludindo à sua roda, a qual com um dos seus raios eleva à Fama os engenhos, para depois os esmagar com o seu peso. O par de opostos é formado por duas personiicações de abstractos, Fortuna e Fama, forças que submetem os poetas às acções antagónicas de elevar (v. 45), em confronto com invejar (v. 44), desamar (v. 47) e oprimir (v. 49). A construção consecutiva que articula a estrofe realça a dicotomia de ambas as acções: quanto levantados / por um braço nas asas são da Fama, / tanto por outro a sorte ... / os oprime (vv. 45-49). Deste modo, expande-se uma forma sintáctica concentrada num verso da estrofe precedente: tão alto quanto aos ramos estendeis (v. 42). Tal coincidência reforça a ainidade entre as duas estrofes seguidas. 43 engenhos peregrinos Engenhos de inusual excelência. 46 nas asas são da Fama A Fama representa-se como igura alada. A amálgama de Fama e Fortuna gera jogos visuais, descritos através do voo ascendente das asas da Fama e das voltas da roda da Fortuna, cujos braços ou raios mudam de posição em sentido descendente, até oprimir as suas vítimas. Além de contrastar o sentido dos seus movimentos, vertical e circular, Fama e Fortuna opõem-se pela sua respectiva ligeireza e gravidade. Desta referência, irradiarão as formulações seguintes acerca da imortalidade dos mecenas (VIII estrofe) e da perenidade do nome do laudandus através do canto do poeta (IX estrofe). 47 a sorte Denominação da Fortuna. 118 a quem dar ão de Pindo aS mor ador aS 48-49 co peso e gravidade / os oprime da vil necessidade A ideia de esmagamento insinua o castigo de Encélado, gigante rebelde sepultado por baixo da Sicília. Estrofe VIII Mas altos corações, dinos de império... Paráfrase - Porém os altos corações vencem a Fortuna e podem apoiar a poesia, tal como no passado izeram alguns poderosos e agora o destinatário. Além de exibir um invólucro épico, esta estrofe introduz no poema um fundo de moralidade, ao incluir o destinatário no grupo dos governantes cuja rectidão moral lhes permitiu sobreporem-se aos enganos da Fortuna. O andamento binário da estrofe obtém-se com o cotejo entre passado e presente, mediante uma enumeração de personagens que é encerrada pelo destinatário: Octaviano, / Cipião, Alexandre e Graciano / ...e vós (vv. 53-56). A divisão da série enumerativa em dois núcleos cria-se através de proposições relativas, dispostas paralelamente: que vemos imortais (v. 55), que nosso século dourais (v. 56), respectivamente ligadas a duas noções temporais, sempre (v. 52) e nosso século (v. 56). Tal ritmo pendular, que visa a inserção de D. Manuel na história, acompanha a relação adversativa das estrofes VII e VIII, que confrontam a imagem da Fortuna, sob a perspectiva das suas vítimas, os poetas, e dos seus debeladores, os mecenas. 50 altos corações, dinos de império Recupera-se a identiicação com os espritos já passados, / gentis, altos, reais (vv. 22-23). 53 ciência gentil Poesia greco-latina. 53-54 Octaviano, / Cipião, Alexandre e Graciano Enumeração dos mecenas da Antiguidade, Augusto, Cipião Emiliano (o segundo Africano, que criou em Roma um cenáculo literário conhecido como Círculo dos Cipiões), Alexandre Magno e Graciano. Todos eles convergem, da mesma feita, num passo de Os Lusíadas, «Dá a terra Lusitana Cipiões, / Césares, Alexandros, e dá Augustos» (V 95, 1-2), pela sua dedicação à escrita e à leitura de poesia, mais do que pelos seus atributos de mecenato. O parentesco já foi detectado por Faria e Sousa: «De Otaviano y de Scipion, y de Alexandro se acordó el P. [a este mismo propósito también] al in del c. 5. de su Lusiada» (Rimas varias II 1689, 3: 167). 56 que nosso século dourais Alusão à Idade do Ouro, que D. Manuel instaurará no presente, graças à sua condição de sapiens e ao mesmo tempo de beatus, pela sua virtude capaz de derrubar a Fortuna. 119 COMENTÁRIO A CAMÕES, vOl . 3 Estrofe IX Pois, logo, enquanto a cítara sonora... Paráfrase - Deseja-lhe glória imortal, enquanto a cítara fôr estimada e enquanto houver guerreiros e poetas em Portugal. É como se lhe estivesse a oferecer um munus, constituído pelo desígnio imortalizador, equivalente ao que se apresenta à destinatária da III écloga de Garcilaso (Ramajo Caño 2008). Esta promessa, à maneira de um vaticínio, feita por um poeta-vate, funciona como peroratio do discurso. Culmina nestes versos a proclamação da imortalidade poética, tributária de Exegi monumentum (Carm. III 30) e de outras odes de Horácio (Carm. IV 8; IV 9). Da plasticidade das imagens precedentes (VI-VII estrofes), acede-se aos efeitos acústicos do encerramento, o que deine o próprio instrumento e o seu resultado em termos musicais: cítara sonora (v. 57), som douto e jucundo (v. 59). Uma construção sintáctica múltipla segmenta a estrofe em duas proposições paralelas, enquanto ... / se estimar ... (vv. 57-58), e enquanto produzir ... (v. 60), que concorrem para a proclamação tereis glória imortal (v. 62). Reproduz-se aqui uma formulação clássica (dum... dum... + futuro), que conjuga o matiz temporal e o matiz hipotético, para declarar uma devoção incondicional, a partir do momento em que se veriiquem as premissas estabelecidas (Navarro Durán 1983; Ramajo Caño 2001; Pérez-Abadín 2004). Os binómios douto e jucundo (v. 59) e o Tejo e o Douro (v. 60) preparam a construção com dois membros, peitos de Marte e Febo crespo e louro (v. 61), que nacionaliza o tema das armas e das letras ao situá-lo nos limites de rios portugueses. O tom elevado da estrofe deriva em grande medida da selecção dos adjectivos, em cítara sonora (v. 57), som douto e jucundo (v. 59), Febo crespo e louro (v. 61), glória imortal (v. 62). Faz culminar em tom apoteótico esta dedicatória que profetiza ao mecenas a imortalidade. 57 cítara Instrumento musical, aqui empregue como metonímia de poesia. A plasticidade predominante em estrofes anteriores é agora substituída pelos efeitos acústicos que as referências musicais sugerem. 59 som douto e jucundo Deinição estilística do maneirismo (Almeida 2011), que conjuga o saber ou a erudição com o deleite e o ornamento formal, aplicando o binómio horaciano docere et delectare. Este verso, equivalente ao binómio «doutos e venustos» de Os Lusíadas (V 95, 6), revalidará a condição do poeta como precursor do ideal poetológico defendido nas Anotaciones de Herrera, segundo a hipótese de Aguiar e Silva (2008: 63-66). 60 e enquanto produzir o Tejo e o Douro Referência geográica que se acrescenta aos lampejos de historicidade de um poema em que a realidade 120 a quem dar ão de Pindo aS mor ador aS lusitana e o sentimento patriótico se combinam com iguras lendárias e clássicas, num universo poético no qual história e mitologia se fundem harmoniosamente. A expressão desta ideia conforma-se com a fórmula clássica dum... dum... + futuro, para proclamar uma devoção incondicional e incólume ao tempo. 61 peitos de Marte e Febo crespo e louro Marte e Febo (ou Apolo) são metonímia do binómio armas-letras, cristalizado no tópico da espada e da pena (cf. La espada y la pluma 2000), presente ao longo do poema e relacionado com a oposição entre épica e lírica, que se materializa nos pares louro-mirto (v. 4) e tronco-hera (vv. 37-38), e implícita na alusão a Os Lusíadas (V estrofe). Soledad Pérez-Abadín Barro Trabalho inserido no Proyecto de I+D La poesía hispano-portuguesa de los siglos XVI y XVII: contactos, conluencias, recepción (FFI2015-70917-P), do «Programa Estatal de Fomento de la Investigación Cientíica y Técnica de Excelencia, Subprograma Estatal de Generación del Conocimiento (MINECO, Gobierno de España)». 121 5 I Fogem as neves frias dos altos montes, quando reverdecem as árvores sombrias; as verdes ervas crecem, e o prado ameno de mil cores tecem. 10 II Zéiro brando espira; süas setas Amor aia agora; Progne triste suspira e Filomena chora; o Céu da fresca terra se namora. 15 III Vai Vénus Citareia cos coros das Ninfas rodeada; a linda Panopeia, despida e delicada, com as düas irmãs acompanhada. 20 IV Enquanto as oicinas dos Cíclopes Vulcano está queimando, vão colhendo boninas as Ninfas, e cantando, a terra co ligeiro pé tocando. 25 V Dece do duro monte Dïana, já cansada d’espessura, buscando a clara fonte, onde, por sorte dura, perdeu Actéon a natural igura. 123 COMENTÁRIO A CAMÕES, vOl . 3 30 VI Assi se vai passando a verde primavera e seco estio; trás ele vem chegando despois o inverno frio, que também passará por certo io. 35 VII Ir-se-á embranquecendo com a frígida neve o seco monte; e Júpiter, chovendo, turbará a clara fonte; temerá o marinheiro a Orionte. 40 VIII Porque, enim, tudo passa; não sabe o tempo ter irmeza em nada; e nossa vida escassa foge tão apressada que quando se começa é acabada. 45 IX Que foram dos Troianos Hector temido, Eneias piadoso? Consumiram-te os anos, ó Cresso tão famoso, sem te valer teu ouro precïoso. 50 X Todo o contentamento crias qu’estava no tesouro ufano? Ó falso pensamento! Que à custa do teu dano, do douto Sólon creste o desengano! 124 Fogem aS neveS FriaS 55 XI O bem que aqui se alcança não dura por possante, nem por forte; que a bem-aventurança, durável de outra sorte, se há-de alcançar na vida para a morte. 60 XII Porque, enim, nada basta contra o terríbel im da noite eterna; nem pode a deusa casta tornar à luz superna Hipólito da escura noite Averna. 65 XIII Nem Teseu esforçado, com manha, nem com força rigorosa, livrar pode o ousado Pirítoo da espantosa prisão Leteia, escura e tenebrosa. (Rimas, Ode 9, pp. 275-277) Lapsos corrigidos v. 6 branco em vez de brando (conforme a lição de todos os testemunhos). v. 6 espira em vez de aspira (conforme a lição de todos os testemunhos). v. 17 Cíclopes (proparoxítono) em vez de Ciclopes (paroxítono). v. 29 despois em vez de depois (conforme a lição de todos os testemunhos). Lições a corrigir v. 11 Citareia em vez de Citerea (Manuscrito de Juromenha). v. 35 a Orionte em vez de o Orionte (Manuscrito de Juromenha; cf. o orizonte Manuscrito apenso, Rimas 1598). 125 COMENTÁRIO A CAMÕES, vOl . 3 Diérese v. 7 süas (bissílabo). v. 15 düas (bissílabo). v. 22 Dïana (trissílabo). v. 45 precïoso (quadrissílabo). 1. No Manuscrito apenso, a rubrica Ode da brevidade da vida encima o texto, resumindo a temática fundamental do poema. Com efeito, Camões alude ao contínuo fazer-se e desfazer-se das coisas, numa mudança constante que põe em relevo a fragilidade e a precariedade de tudo. Passam e voltam as estações do ano, passa, sem voltar, o tempo da nossa vida. De facto, o curso da existência humana é um instante fugaz, quando comparado com a eternidade. Até este ponto, Camões percorre um topos que conta com uma ilustre tradição e que atravessa toda a lírica ocidental desde as suas origens. O tempo passa rapidamente e sem possibilidade de retorno, como a água de uma nascente que lui sem parar e nunca poderá regressar à sua fonte. A fuga do tempo, que é imparável e irreversível, implica necessariamente uma relexão sobre a vida e a morte. Perante este dilema existencial, o comportamento varia de acordo com a época e com a pessoa. No modelo subliminar da IX ode, que é Horácio, a consciência da brevidade da vida acaba por desembocar na doutrina do carpe diem, ou seja, a exortação a que se colha o momento fugidio, se aproveite aquilo que a vida pode oferecer, já e no presente, porque não há certezas sobre o dia de amanhã, numa atitude que muito deve ao epicurismo. Um poeta do século XVI já adiantado, como Luís de Camões, num país católico, como Portugal, renunciará obviamente à posição epicurista para se exprimir em termos cristãos. Tudo aquilo que o homem pode recolher na vida terrena, como a glória (Heitor e Eneias) ou a riqueza material (Cresso), não ultrapassará o limiar da morte. É pois inútil perseguir estes bens efémeros. Torna-se então necessário, diferentemente, viver a vida terrena tendo em vista e preparando a vida ultraterrena, na medida em que, só com actos relectidos e em conformidade com os ensinamentos da Igreja, o homo viator tem a certeza de alcançar o único bem que dura para além da 126 Fogem aS neveS FriaS morte: a felicidade celeste, aquela suprema felicidade que somente a visão de Deus lhe pode oferecer (a bem-aventurança, v. 53). O apelo ao bem e as advertências contra os falsos prazeres tingem-se nas estrofes inais de obscuros presságios. Sob uma capa sombria, o poeta reairma que nada é suicientemente forte para vencer a noite eterna. A morte é para todos os homens um im inexorável. Nem a potência de amor (ilustrada pelo caso de Diana e Hipólito), nem a astúcia ou a força incoercível (exaltada no caso de Teseu e Pirítoo) podem fazer regressar à luz do dia quem está inapelavelmente coninado ao mundo obscuro do além-túmulo. Perante a morte, o homem encontra-se desarmado e impotente, pois virtudes ou qualidades humanas de nada valem, face ao inexorável im da vida. Os próprios deuses nada podem fazer para nos salvar da terrível escuridão eterna, à qual é impossível escapar. Camões conclui Fogem as neves frias com uma imagem que se repete, a de trevas e de medo. Contradiz, implicitamente, a esperança de uma felicidade ultraterrena. A morte não será ainal o início de uma nova vida, como o sustêm os preceitos cristãos, mas uma prisão espantosa, uma escura noite infernal, ou melhor, uma noite eterna (v. 57), em vez da vida eterna. Chegados a este ponto, esvai-se o optimismo do homem renascentista, bem como o ideal cristão de um Paraíso pleno de luz, sem que reste qualquer resquício do epicurismo horaciano. Neste aspecto, Camões mostra-se um intérprete magistral do sentimento de crise que envolve a mentalidade de inais do século XVI. Sob o ponto de vista estrutural, esta ode divide-se em duas partes de igual tamanho, cada uma com 5 estrofes, separadas por um núcleo central de 3 estrofes. No seu conjunto, essa estrutura é de 5 + 3 + 5, num total de 13 estrofes, cada uma das quais tem 5 versos, num total de 65 versos. A primeira parte (estrofes I a V) contém o topos do exórdio primaveril, codiicado pela lírica provençal como abertura obrigatória da canção, mas já presente nos clássicos latinos (Horácio, ao caso). O poeta alonga-se na descrição, rica de pormenores, do despertar da Natureza depois do im do Inverno. Derretem-se as neves nas montanhas, as folhas voltam a romper das árvores e os prados cobrem-se de ervinhas e lores coloridas (I estrofe). Docemente, sopra Zéiro, o vento primaveril, e entretanto Cupido, o pequeno deus Amor, aguça as suas lechas, para alvejar o coração dos amantes. As aves (andorinhas e rouxinóis) fazem ressoar o seu canto 127 COMENTÁRIO A CAMÕES, vOl . 3 melancólico e o Céu, que é personiicado, enamora-se da Terra, fresca e bela na estação propícia aos amores (II estrofe). O quadro do despertar da Primavera é enriquecido por uma série de recursos mitológicos, já presentes nas duas odes de Horácio, as quais, como veremos, servem de modelo a Camões. A mitologia, nesta primeira parte da ode, tem uma função puramente decorativa. Constitui, nada mais nada menos, do que o ornamento clássico que serve de pano de fundo aos versos. Logo na II estrofe, mostram-se Zéiro e Cupido, e Progne e Filomena, bem como e o Céu a Terra personiicados. Na III estrofe, surge Vénus circundada por um grupo de Ninfas que cantam e dançam em coro. Avança também na ribalta a bela Panopeia, de corpo desnudo e elegante, acompanhada pelas duas irmãs (III estrofe). Por sua vez, Vulcão, esposo de Vénus, trabalha nas oicinas dos Ciclopes para forjar os raios de Júpiter, enquanto as Ninfas que acompanham a deusa colhem margaridas nos prados, cantando e dançando com extrema suavidade (IV estrofe). O clima ameno e agradável esboçado no início da ode começa-se a desgastar na V estrofe com a alusão ao mito sangrento de Actéon (ver infra). Com a chegada da Primavera, também Diana deixa as montanhas e a espessura dos bosques para se dirigir até à fonte límpida onde se dá o encontro com o infeliz jovem (V estrofe). Segue-se o núcleo central, composto por 3 estrofes (VI a VIII), que serve de charneira entre a primeira e a segunda parte da ode. A VI estrofe destina-se a retomar quanto até então dito acerca do ciclo eterno das estações. Assi (v. 26), ou seja, do modo que acabou de ser descrito, passa a verde Primavera, passa o Verão quente e seco, depois chega lentamente o Inverno e o frio, que também a seu tempo há-de passar. Tudo isso porque as estações se sucedem sem parar, uma a seguir à outra, no incessante movimento da natureza. De novo as montanhas se voltarão a cobrir de neve, de novo as chuvas enviadas por Júpiter hão-de turvar as águas das nascentes e o marinheiro terá medo das tempestades que se formam no horizonte (VII estrofe). A VIII estrofe, que abre a segunda parte da ode, introduz uma relexão fundamental: tudo passa (v. 36). O tempo corre sem parar e a nossa vida foge tão apressadamente que mal começa já está a terminar. A gnome, ou seja, a sentença que reconduz a experiência imediata do poeta a uma verdade de ordem geral, insiste sobre os dois temas da fugacidade do 128 Fogem aS neveS FriaS tempo e da brevidade da vida, de acordo com os princípios característicos da mundividência maneirista. Com a IX estrofe, regressa-se à mitologia, desta feita com propósitos de advertência. Inicia-se a série de exempla relativos à sentença central, ou seja, a apresentação de personagens históricas ou mitológicas que simbolizam, neste quadro, os bens preciosos que a vida, ao fugir, nos subtrai. Por sua vez, a XI estrofe tira as devidas conclusões dos exempla apresentados, oferecendo uma espécie de moral dos casos mitológicos que acabaram de ser contados. Tudo aquilo que se pode obter ao longo da vida não tem o poder, nem a força, de durar para além da morte. É ao longo da vida terrena, pois, que, graças às nossas acções, devemos conquistar a felicidade eterna, a única felicidade que dura para sempre. Mais dois exempla, respectivamente apresentados na XII e na XIII estrofes, levam a uma conclusão em tom de amargo desencanto. Mais do que pela promessa de uma luz ultraterrena, Camões parece ser atraído pelas trevas que fazem prisioneiros dois heróis antigos, Hipólito, enteado de Fedra, e Pirítoo, amigo de Teseu. Nem Diana, com o seu poder divino, nem Teseu com a astúcia e a força que possuía, conseguiram libertar Hipólito e Pirítoo da espantosa / prisão (vv. 64-65) do além-túmulo, escura e tenebrosa. O poema termina, pois, com uma nota lúgubre, pondo em relevo a impotência do homem perante o seu último destino. Sob o ponto de vista formal, esta ode escrita em «lira» (ver infra) apresenta características muito particulares no plano rítmico-sintáctico, a começar pela frequência do encavalgamento (originalmente designado como inarcatura e depois como enjambement), de acordo com o princípio teorizado por Bernardo Tasso, que exortava os poetas a desvincular o período sintáctico do período rítmico, sem necessariamente sobrepor frase e verso. Esse artifício é usado nada mais nada menos do que 11 vezes, num total de 65 versos, sempre em coincidência com um decassílabo de tipo sáico ou com desvios da escansão do decassílabo heróico, que é a forma predominante no poema. Ganha relevo, desta feita, o facto de Camões, mesmo quando usa um esquema estróico de importação, mostrar um absoluto domínio e uma excepcional perícia técnica, integrando as irregularidades aparentes e as anomalias dentro de uma estrutura rítmica e sintáctica que nada deixa ao acaso. A mesma coerência perfeita domina o sistema das rimas. A variedade dos sintagmas é entretecida por uma rede fónica vertical de assonâncias 129 COMENTÁRIO A CAMÕES, vOl . 3 e consonâncias (Spaggiari 1980: 1009). Por sua vez, no interior do verso é a aliteração que cria elementos de ligação no plano fónico, os quais se repercutem necessariamente sobre o plano semântico, conferindo densidade e um acréscimo de signiicado a certas sequências de vocábulos. A repetição de algumas palavras-chave ou de vocábulos que pertencem à mesma esfera semântica assinalam de forma inequívoca os pontos nodais do poema: — passando (v. 26), passará (v. 30), passa (v. 36); — nada (vv. 37, 56); — alcança (v. 51), alcançar (v. 55); — forte (v. 52), esforçado (v. 61), força (v. 62); — bem... (v. 51), bem-aventurança (v. 53); — noite (vv. 57, 60). Quanto às fontes, Fogem as neves frias apresenta-se como uma reelaboração de duas odes de Horácio entre si ligadas pelos temas da Primavera e da morte. A primeira é Diffugere nives, redeunt iam gramina campis (Carm. IV 7; ‘Derreteram-se as neves, voltam aos campos as ervas novas’). A segunda é Solvitur acris hiems grata vice veris et Favoni (Carm. I 4; ‘Dissolve-se o áspero Inverno com o grato regresso da Primavera e do favónio’). Aliás, também no plano formal as duas odes têm em comum o uso do metro arquilóquio em dístico. Essas duas odes latinas são incindíveis, como se fossem as tábuas de um díptico em que os motivos de fundo se entrecruzam e desenvolvem, utilizando espaços e volumes de modo especular. À pallida mors (Carm. I 4, 13; ‘pálida morte’), que com o seu vulto lívido tanto bate à porta dos ricos, como dos pobres, serve de eco o verso pulvis et umbra sumus (Carm. IV 7, 16; ‘somos pó e sombra’), que a bom título se poderia inscrever na tradição cristã, se não fosse por aquelas sombras que evocam o mundo pagão dos mortos. O além-túmulo é o reino da inconsistência, em confronto com a materialidade corpórea do mundo terreno. O tema do tempo linear da vida humana, que se contrapõe à circularidade do tempo natural, é particularmente caro a Horácio, que na ode I 4 lhe associa o conceito de igualdade entre ricos e pobres perante uma morte que tudo nivela, um motivo de origem epicurista. A morte 130 Fogem aS neveS FriaS das estações anuncia o seu retorno, ao passo que a morte do homem tem carácter único e deinitivo. O sentido de precariedade e a certeza da perda, com a morte, de todos os bens terrenos, são pois agudizados pelo espectáculo da natureza que se renova com o ciclo eterno das estações. Daí decorre o apelo, da parte do poeta, a que não se acalentem esperanças de imortalidade, e também a exortação a viver o momento presente, único e irrepetível, preservando a consciência do nosso inelutável destino. O excepcional êxito deste díptico horaciano é ilustrado pela quantidade de traduções, imitações e reelaborações que dele foram feitas no Renascimento. Limitamo-nos a citar, de entre os poetas do tempo de Camões, António Ferreira e André Falcão de Resende. Escreve António Ferreira: «Eis nos torna a nascer o ano fermoso» (Poemas lusitanos: 128-130). E André Falcão de Resende: «Já o pesado inverno o rigor perde» (Obras 1: 494-496). A XLIV ode de Bernardo Tasso, Dianzi il verno nevoso, igualmente inspirada no díptico de Horácio, constitui uma fonte paralela e funciona come iltro, em língua vulgar, relativamente ao modelo latino. A estrutura de base de Fogem as neves frias reproduz substancialmente a ode IV 7 de Horácio, Diffugere nives, redeunt iam gramina campis, que é imitada à letra quer no início, quer no im do texto, segundo o esquema: I estrofe = Horácio IV 7, 1-3; XII-XIII estrofes = Horácio IV 7, 23-28). Sobre o pano de fundo fornecido por Diffugere nives, redeunt iam gramina campis, são aliás dispostas várias tesselas provenientes da ode geminada, a I 4, com relevo para a imagem de Vulcano nas grutas dos Ciclopes, que contrasta com o quadro de Vénus acompanhada pelas Ninfas (III-IV estrofes = Horácio I 4, 5-8). Num único lugar, assinalado por Costa Ramalho (1997), parece propor-se como modelo uma terceira ode ligada ao tema primaveril, ou seja «Nidum ponit, Ityn lebiliter gemens, / infelix avis» (IV 12, 5-6; ‘Faz o seu ninho a que geme com voz de choro por Ítis, / ela, ave infeliz’). Trata-se de dois versos da ode de Camões que evocam as personagens mitológicas de Progne e Filomena: Progne triste suspira / e Filomena chora (vv. 8-9). Neste caso, porém, a referência imediata parece antes ser Petrarca com o soneto 310 do Cancioneiro, cujas quadras descrevem o regresso da Primavera em termos bastante próximos de Fogem as neves frias: «Zephiro torna, e ’l bel tempo rimena, / e i iori et l’erbe, sua dolce famiglia, / et garrir Progne et pianger Philomena, / et primavera candida et vermiglia. // Ridono i prati, e ’l ciel si rasserena / Giove s’allegra di mirar sua iglia 131 COMENTÁRIO A CAMÕES, vOl . 3 [Venere]; / l’aria et l’acqua et la terra è d’amor piena; / ogni animal d’amar si riconsiglia [‘torna a volere’]». Como acontece com as odes geminadas de Horácio, também no caso do soneto de Petrarca nos encontramos perante um texto que teve uma enorme difusão e que no século XVI não podia faltar na formação de base de um letrado. A presença constante e bem visível destes ilustres precedentes, da Antiguidade e da literatura em vulgar, sugere que a IX ode seja também ela, pelo menos em princípio, um exercício compositivo cujo objectivo é, pois, o de emular grandes modelos. Daí resulta um poema em que abundam ecos literários, e por isso mesmo de grande densidade. A recodiicação camoniana incide ao nível de idiolecto, mais do que ao nível de ideologia. A sua reescrita em chave cristã, coniada a uma única estrofe, a XI, leva a pensar numa espécie de homenagem aos rigores da censura, mais do que numa proissão de fé intimamente vivida. 2. A transmissão da IX ode processa-se por via manuscrita e impressa. É registada no Manuscrito apenso (32v-33v) e no Manuscrito de Juromenha (29r-29v), fazendo também parte do Índice do Cancioneiro do Padre Pedro Ribeiro (191v). Quanto às edições, consta na segunda edição das Rimas (1598: 64-66) e em Faria e Sousa (Rimas varias II 1689, 3: 174-179). Costa Pimpão transcreve-a a partir da segunda edição das Rimas, ao passo que Leodegário A. de Azevedo Filho (Lírica de Camões 3 II 1997: 187-223) toma como texto base o Manuscrito apenso. No Índice do Cancioneiro do Padre Pedro Ribeiro (1577), elaborado por inais do século XVI com base num manuscrito hoje perdido, no fólio 191v encontra-se uma secção que compreende os incipit de vários poemas de autoria camoniana certa, ou tradicionalmente atribuídos a Camões. A indicação «Canção et reliquae» na margem direita do fólio mostra que a epígrafe canção inclui também as odes. Na verdade, no primeiro lugar da lista, com o número que seria 70, surge Fogem as neves frias, normalmente conhecida como IX ode. O testemunho do Índice permite datar a composição anteriormente a 1577 (ante quem), à semelhança do que se passa com os restantes poemas que formam esta secção. 3. Ode com 13 estrofes de 5 versos, senários e decassilábicos, em forma de «lira», segundo o esquema: aBabB. Este preciso esquema métrico foi elaborado por Bernardo Tasso, à volta dos anos 30 do século XVI, como 132 Fogem aS neveS FriaS uma das variantes da ode que redescobriu e adaptou à lírica em vulgar (Spaggiari 1980: 1004-1006). Tasso utiliza a «lira» nas odes 13, 43 e 55, bem como nos Salmos 8 e 27. O seu exemplo foi seguido por Garcilaso de la Vega na chamada canção V, que é na realidade uma ode, como o conirma a epígrafe Ode ad lorem Gnidi. No primeiro verso, Si de mi baja lira, Garcilaso alude ao estilo «bajo» dos seus versos, mas o termo «lira», colocado em posição rimática, acabou por identiicar este tipo especíico de estrofe em toda a área ibérica. Camões utiliza a «lira» noutras duas odes, a III e a X, nas quais o vocábulo surge como explícita homenagem ao modelo: «triste lira» (v. 5) e «branda lira» (v. 26), respectivamente (Belchior 1971: 76-77). 4. Estrofe I Fogem as neves frias… Paráfrase - O Inverno acaba e chega a Primavera. Desaparecem as neves do alto dos montes, e entretanto renovam-se as copas frondosas das árvores que dão sombra; as ervas crescem viçosas, e os prados cobrem-se de lores de todas as cores. 1 Fogem O presente descritivo Fogem corresponde ao perfeito Diffugere do modelo de Horácio (IV 7, 1), que exprime, por sua vez, a ideia do total desaparecimento das neves, como se fossem levadas a fugir pelo regresso da erva. «Fugir» é pois um decalque etimológico e tem o sentido de dispersar, dissipar, derreter-se, com referência às neves. 1 as neves frias Hipérbato, igura de inversão da ordem das palavras. O verbo precede o substantivo. 1 frias O adjectivo, referido a «nives» / neves, não aparece na ode de Horácio. No plano denotativo é de todo supérluo, porque as neves só podem ser frias, mas a inovação de Camões justiica-se, seja por motivos de rima (sombrias, v. 3), seja porque no estilo elevado, como o é o da épica ou da ode, não só se admite, mas se encontra codiicado o uso de epítetos redundantes, que acabam por se ixar, tornando-se verdadeiras fórmulas. 2 dos altos montes O sintagma é um decalque do famoso verso conclusivo da I écloga de Virgílio: «maioresque cadunt altis de montibus umbrae» (v. 83; e maiores descem as sombras dos altos montes). Segue-se a um forte encavalgamento, o primeiro de uma série que se alarga a todo o texto. 2 quando No período em que, com referência ao despontar das novas folhas nas árvores. 2 reverdecem Cobrir-se de verde, dito dos campos e das árvores. Do modelo latino «redeunt», é nesta situação apenas mantido o preixo 133 COMENTÁRIO A CAMÕES, vOl . 3 re- que introduz o conceito de retorno ininito num ciclo eterno. Por sua vez, re-verdecem e verdes ervas desdobram-se, para reproduzir o «gramina» de Horácio, que transmite a imagem da erva nova e viçosa que acabou de nascer. Talvez intervenha a mediação do «viride gramen» de Virgílio em três passos das Georgicae (II 219; III, 144; e «virescunt gramina», I 56). 3 as arvores sombrias Traduz «arboribusque comae» de Horácio (IV 7, 2; ‘[voltam] as comas às árvores’), ou seja, as árvores cobrem-se novamente de folhas, que dão sombra. Um novo encavalgamento associa-se ao hipérbato, formando uma igura rítmico-sintáctica idêntica à dos dois primeiros versos. 4 as verdes ervas crescem Verso aliterante em |v|, com um artifício fonético preparado nos versos anteriores através da série neves (v. 1) / reverdecem (v. 2) / árvores (v. 3). Parece que o poeta quer sugerir e antecipar o rumor ligeiro do vento primaveril que sopra nos campos recobertos pela erva que cresce. 5 prado ameno Singular colectivo, que será um eco de Horácio: «nec prata canis albicant pruinis» (I 4, 4; ‘e os prados não alvejam de branca geada’). A ser assim, o empréstimo é porém revisto e corrigido através de Petrarca, «et primavera candida et vermiglia, / ridono i prati, e ’l ciel si rasserena» (Canz. 310, 4-5). Na verdade, o texto de Horácio é reelaborado por Camões em sentido contrário, passando da imagem de um inverno prestes a acabar (‘e os prados não alvejam de branca geada’) a uma paisagem em tudo primaveril, com a extensão amena, ou seja, deleitável e aprazível, de prados entretecidos de mil cores. Para o «smalto policromo del paesaggio primaverile» (Bettarini, ed. Canz., ad loc.), abundam os possíveis modelos clássicos, de Lucrécio (V 737-740) a Virgílio (Georg. II 328-331; Ecl. III 56-57). 5 tecem O verbo tecer, no sentido de entrelaçar, revestir, matizar ou esmaltar, reenvia para a metáfora da tessitura, tradicionalmente aplicada a todas as artes liberais, inclusive a escrita e a pintura. O sujeito é as verdes ervas do verso anterior (v. 4), sendo a frase construída por hipérbato, com o complemento directo, prado ameno, a preceder o verbo regente, tecem. Este tipo de construção, extremamente frequente na poesia de estilo alto, serve para pôr em relevo certos elementos da frase, ao caso o verbo tecem e o seu valor metafórico. 134 Fogem aS neveS FriaS Estrofe II Zéiro brando aspira… Paráfrase - Regressa a Primavera, sopra de novo a amena brisa, e em todas as criaturas desperta a vontade de amar. As aves voltam a cantar, cada uma delas com a sua voz característica. A andorinha emite o seu gorgeio e o rouxinol o seu lamento. O Céu enamora-se da Terra, que recuperou toda a sua frescura. 6 Zéiro… Vento primaveril por excelência, presente em Horácio: «frigora mitescunt Zephyris» (IV 7, 9; ‘o frio amaina graças aos ventos’). Mas não se pode excluir o eco de Petrarca: «Zeiro torna e’l bel tempo rimena» (Canz. 310, 1 ). O adjectivo brando recupera o signiicado de «mitescunt», pois o vento que sopra é ligeiro e suave. 6 brando Não branco, como em todas as edições de Costa Pimpão. Ver, de resto, António Ferreira e André Falcão de Resende, ambos autores de traduções-reelaborações de odes de Horácio. Nas suas versões escrevem, respectivamente, «Eis nos torna a nascer o ano fermoso, / Zéiro brando, e doce primavera» (Poemas lusitanos: 128) e «Já o pesado Inverno o rigor perde / e ao Favonio brando / obedecendo vai, e ao verão verde» (Obras 1: 494). 6 aspira Os manuscritos concordam na lição aspira (Manuscrito apenso e Manuscrito de Juromenha), ao passo que Rimas 1598 propõe spira, numa gralha evidente. O verbo intransitivo aspirar, ou seja, soprar, exalar sopro ou odor, conserva o signiicado etimológico do latim «ad + spirare», pelo que se pode falar de um latinismo semântico. A lição espira, apresentada por Costa Pimpão, não encontra correspondente em nenhum testemunho. Remonta na verdade a Faria e Sousa e é aceite pelo editor, apesar de os dicionários antigos atestarem espirar tão só como variante de expirar, ou seja morrer. 7 suas setas Cupido, o pequeno deus Amor, tradicionalmente representado com arco e lechas, aguça as pontas das suas armas porque se prepara para alvejar o coração de homens e mulheres, neles insinuando a paixão amorosa. A Primavera assinala de facto, para todas as espécies animais, o despertar da actividade amorosa, após o longo letargo invernal. Da mesma forma, o homem não escapa a esta lei da natureza, expondo-se às feridas inligidas por Cupido. Trata-se de um verso extremamente artiicioso, que reproduz a iconograia clássica do deus Amor, Cupido para os romanos, Eros para os gregos. O verbo aiar corresponde a amolar no passo correspondente da IV ode de Camões (v. 5). Cupido está a preparar as armas, pelo que tem de aiar ou aguçar as pontas das lechas. 135 COMENTÁRIO A CAMÕES, vOl . 3 O verso não encontra correspondente nas odes latinas. Pode ter sido sugerido por Petrarca: «l’aria et l’acqua et la terra è d’amor piena; / ogni animal d’amar si riconsiglia» (Canz. 310, 7-8). Contudo, a sublime abstracção do verso de Petrarca, de clara inspiração neoplatónica, em Camões materializa-se no que poderia virtualmente ser uma estátua ou um quadro de gosto renascentista. Do ponto de vista formal, assinalem-se: a aliteração continuada, primeiro em |s|, suas setas, de seguida em |a|, Amor aia agora; o pronome suas, com diérese, pelo que conta duas sílabas; a escansão do verso, que é um decassílado lírico com acentos em terceira e décima sílabas, e o habitual hipérbato, que inverte a ordem da frase, a qual seria Amor aia agora suas setas. 7-8 Progne triste suspira e Filomena chora A andorinha triste suspira e o rouxinol chora, exactamente como acontece no III verso do referido soneto 310 de Petrarca, onde Progne «garrisce», lamenta-se, e Filomena «piange», chora. Toda a estrofe, que é concebida a partir de modelos da lírica vulgar, se conigura como uma inovação relativamente às odes de Horácio. Veriica-se um desvio do tom idílico e suave do despertar da Primavera. Suspiros, tristeza e choro parecem destoar, sobre o pano de fundo dos prados loridos. A explicação reside no código poético de referência, pois já em Petrarca os dois mitónimos Progne e Philomela «equivalgono a sostantivi generici» (Contini 1964: xxi), indicando simplesmente duas aves, a andorinha e o rouxinol, ambas sinónimo de Primavera. Na poesia posterior ao século XIII, os nomes das duas infelizes irmãs não andavam associados à carga sanguínea do mito originário. De resto, na varia lectio do VII verso, o Manuscrito de Juromenha regista, Progne leda suspira, instaurando uma oposição com triste na redacção impressa. A lição leda mostra-se mais próxima dos modelos italianos, e não só Petrarca, mas também Bernardo Tasso, ao passo que triste evoca, em pano de fundo, o trágico mito grego das duas irmãs Progne e Filomena. Segundo a lenda antiga, Tereu, marido de Progne, aproveita-se em segredo da jovem Filomena, que violenta e aprisiona. Mais do que isso, para garantir o seu silêncio, corta-lhe a língua. Apesar de muda, Filomena consegue comunicar o sucedido à irmã, enviando-lhe um pano bordado por ela própria. Desencadeia-se então a vingança de Progne que primeiro mata Ítis, o ilho que teve de Tereu, depois corta-o em pedaços, cozinha-o e apresenta-o em repasto ao pai ignaro. Só depois de Tereu ter comido os restos do ilho é que Progne lhe revela o que izera. Fora de si, Tereu 136 Fogem aS neveS FriaS persegue as duas irmãs para as matar, mas os deuses intervêm, impondo uma metamorfose generalizada. Progne é transformada em andorinha e emite um som choroso e estridente, como um gemido. Filomena passa a rouxinol, resgatando na excepcional beleza do seu canto a voz humana que perdera. Tereu torna-se uma poupa, condensando na lúgubre ave nocturna a violência sombria dos seus actos. O mito é obviamente contado por Ovídio nas Metamorphoses (VI 426 ss.). 10 o Céu da fresca terra se namora Neste despertar geral e no renovado ímpeto amoroso que envolve todo o criado, também o Céu e a Terra, personiicados, acabam por se enamorar. O Céu, com as suas chuvas, fecundará a Terra, que por sua vez irá produzir lores e plantas em abundância (graças à intervenção de Zéiro, que precedentemente a cobriu de sementes). Matriz directa do verso 10 é também Petrarca: «ch’anco il ciel de la terra s’innamora» (Canz. 255, 8). O binómio Céu / terra é muito frequente em Camões. O adjectivo fresca, assente no modelo petrarquesco, liga-se por antítese a seco estio (v. 27) e seco monte (v. 32), funcionando como comutador de verde, na já notada acepção de tenro, recente, acabado de nascer. O hipérbato da terra se namora encontra-se em Petrarca. Assim se conclui esta segunda estrofe, que é ao mesmo tempo quer uma interpolação relativamente ao modelo das odes de Horácio, quer um apêndice de cariz mitológico à descrição inicial da Primavera, quer uma iligrana do soneto 310 de Petrarca. Todos estes aspectos se concentram em frases breves, de curto fôlego, que se justapõem por assíndeto, com uma sintaxe rigorosamente escandida. Estrofe III Vai Vénus Citareia … Paráfrase - Vénus, deusa do amor, surge acompanhada por um grupo de Ninfas e de Graças. Segundo a iconograia renascentista, magistralmente plasmada no quadro La Primavera de Botticelli (1482), Vénus anda sempre circundada por um número, que pode variar, de divindades menores, precisamente as Ninfas e as três Graças, que formam por si um núcleo. As Graças são representadas como jovens desnudas ou subtilmente cobertas e de porte elegante. Uma delas ica sempre de costas para o espectador, ou por outras palavras, está sempre voltada para as duas irmãs. Esta disposição especíica faz com que a imagem sugira o movimento das três jovens que dançam em roda, alternando pois a sua posição sob o ponto de vista do espectador. 137 COMENTÁRIO A CAMÕES, vOl . 3 Para além do aspecto iconográico, esta III estrofe caracteriza-se pelo regresso prepotente do modelo de Horácio, depois do parênteses da homenagem feita à lírica italiana, e a partir deste momento será Horácio a fornecer a trama de toda a ode. Em contraste com a enumeração enxuta da II estrofe, escandida pela medida do verso, o quadro primaveril passa a animar-se com iguras em movimento. Vénus simboliza o regresso à vida e ao amor. A sintaxe volteia em torno da imagem da deusa e das Ninfas que a acompanham, tirando partido do encavalgamento. 11-12 Vai Vénus… rodeada Um grupo de mulheres, jovens e belas, irrompe em cena. A matriz encontra-se em Horácio: «Iam Cytherea choros ducit Venus imminente luna, / iunctaeque Nymphis Gratiae decentes / alterno terram quatiunt pede» (I 4, 5-7; ‘Já Vénus Citerea guia os coros à luz da lua, / e juntas Ninfas e Graças elegantes / batem a terra com um e outro pé’). Vénus, com o seu cortejo de divindades menores, simboliza a continuidade do ciclo vital. 11 Vénus Citerea Decalque de Horácio, em cuja obra o epíteto «Citerea» indica simplesmente a ilha de Cítera, na qual, segundo uma das versões do mito, a deusa teria nascido da espuma do mar. A forma correcta, Citerea, e não Citareia como em Costa Pimpão, é conservada pelo Manuscrito de Juromenha, que porém suprime Vénus, considerando talvez tratar-se de um desdobramento inútil. Na lição Vai a alva Citerea, deste manuscrito, surge a aliteração em |v|, que será retomada em Vai Vénus, transmitida concordemente pelo Manuscrito apenso e por Rimas 1598. 12 cos coros Corresponde literalmente ao latim «choros» («ducit») do modelo horaciano, mantendo também o signiicado de grupo que dança e canta, disposto em círculo ou formando uma ila. A preposição cos em vez de com os é uma forma arcaica de crase, ou fusão, que se encontra com frequência na língua literária da época. Tem a vantagem de contar por apenas uma sílaba e, no lugar em questão, antecipa a sílaba inicial do substantivo que se segue (cos coros). 11-12 Vai… das Ninfas rodeada Prossegue circundada de Ninfas. A forma verbal perifrástica divide-se, com o primeiro elemento no início do dístico, Vai (v. 11), e o segundo no inal, rodeada (v. 12). As Ninfas eram divindades femininas que habitavam nas águas (dos mares, dos rios, dos lagos, das fontes), em grutas, montes, vales, bosques ou árvores. Viviam em simbiose com o local em causa e dele tomavam o nome, pelo que as Nereidas eram as Ninfas do mar, as Náiades eram as Ninfas das fontes e 138 Fogem aS neveS FriaS dos rios, as Oréades as Ninfas dos montes, as Dríades as das árvores, e assim sucessivamente. O seu número varia de escritor para escritor, podendo ir das dezenas aos milhares (em Esíodo são trinta mil). Constituem uma presença física ixa em qualquer paisagem porque são divindades ligadas aos lugares naturais. Habitualmente acompanham Diana, a casta deusa da caça (que surgirá na V e na XII estrofes). João Franco Barreto escreve: «Ha tambem Ninfas dos prados, que chamam Hymnidas ou Lemonidas [...], e inalmente outras muitas especies de Ninfas, que tomaram o nome dos lugares onde as ingem abitar, como as Tagides do Tejo ec.a» (1982: 567). 13 a linda Panopeia Não existe qualquer nome correspondente nos dois passos de Horácio que servem de modelo a esta estrofe. O primeiro, I 4, 5-6, já foi citado a propósito do v. 11. O segundo são os versos: «Gratia cum Nymphis geminisque sororibus audet / ducere nuda choros» (IV 7, 5-6; ‘uma Graça, desnuda, juntamente com as Ninfas e as duas irmãs, ousa guiar os coros’). Em Horácio, contudo, trata-se apenas das Ninfas e das Graças, sem qualquer especiicação individual. Como observa Paolo Fedeli com ineza, «poiché il plurale Gratiae non potrebbe trovare posto in un esametro, Orazio ricorre [...] a un’elegante perifrasi» (Fedeli 2008: 331). Os tradutores ou imitadores quinhentistas preenchem esta lacuna propondo o nome em falta, que é, por exemplo, «Aglais» em André Falcão de Resende («Alegre a Graça Aglais, e as irmãs duas», Obras 1: 539) e «Panopeia» em Camões. O nome Panopeia é lição do Manuscrito apenso e da segunda edição das Rimas (1598), e como tal acolhida por Costa Pimpão, mas recusada por Faria e Sousa na sua edição do século XVII. Constitui de facto uma das cruces textuais desta ode (o termo crux indica um lugar da tradição que coloca problemas considerados irresolúveis ou, contudo, de solução difícil ou controversa). De facto, Panope(i)a é o nome de uma Nereida, ou seja, de uma Ninfa dos mares, que nada tem que ver com as Ninfas dos campos ou dos prados. Por sua vez, o Manuscrito de Juromenha regista a linda Pazitea, o que se liga às duas irmãs do v. 15, porque Pasitea era considerada uma das três Graças, segundo uma tradição que é ilustrada, no Renascimento, pelas Genealogiae de Boccaccio. Assinala-o Costa Ramalho (1997), que porém aceita a lição Panopeia exactamente em virtude da troca de mitónomos, amplamente documentada nos autores clássicos. 139 COMENTÁRIO A CAMÕES, vOl . 3 Sobre o facto de Panopeia ser um ‘erro mitológico’, não pode haver dúvida. As opiniões são contudo divergentes quanto à sua avaliação. A maior parte dos estudiosos, de Faria e Sousa a Frederico Lourenço (2009), considera Panopeia um erro de trasmissão, introduzido por um copista ou por um tipógrafo, e como tal a ser corrigido para Pasiteia. Diferentemente, quem escreve entende que se trata de um erro de autor, decorrente de um curtocircuito mnemónico que o copista do Manuscrito de Juromenha foi o primeiro a corrigir, segundo uma tipologia comportamental característica deste códice (Spaggiari 1980, 1993, 2007). Erro de autor, portanto, certamente não isolado, como bem nota o próprio Frederico Lourenço: «Como tantas vezes em Camões, a onomástica greco-latina levanta dúvidas de melindrosa resolução, tanto no que diz respeito à graia adoptada como à forma em si» (2009: 202). 14 despida e delicada O binómio de adjectivos, além do mais com aliteração em |d|, corresponde ao latim «decentes», elegantes, graciosas, prazenteiras, referido às Graças que em Horácio dançam juntamente com as Ninfas (Carm. I 4, 6). Em Camões os dois adjectivos conotam Panopeia / Pasiteia, que se apresenta desnuda, como em Horácio (Carm. IV 7, 6), e delicada, atributo frequente das divindades e das Ninfas no idiolecto de Camões. No modelo latino o adjectivo «decentes» encontra-se ligado ao tema horaciano do «decus» e do «decorus», ou seja, a um ideal de beleza equilibrada e essencial. A nudez das Graças é um elemento tópico tanto na literatura como nas artes igurativas. 15 com as duas irmãs É a lição do Manuscrito apenso e da segunda edição das Rimas (1598). As Graças são de facto três e o seu número é constante, mas o seu nome pode variar. João Franco Barreto escreve: «Graças. São tres, Aglaya, Thalia, e Eufrosina, como diz Orfeo, em um imno às mesmas Graças; ainda que Homero, lib. 14. Iliad. poem a Pasithea em o numero dellas, e assi Stacio lib. 2. Theb» (Barreto 1982: 378). Sobre o assunto, mais recentemente Spaggiari 2007. O Manuscrito de Juromenha regista das fermosas irmãs, sem especiicar o número e portanto a natureza das Graças. É tanto mais curioso se considerarmos que o mesmo manuscrito introduz Pasiteia, nome de uma das três Graças, no v. 13, como acima se comentou. 15 com as Conta duas sílabas, tal como o sucessivo duas, com diérese a desfazer o ditongo. A dupla diérese não existe na lição do Manuscrito de Juromenha, no qual das fermosas ocupa as quatro sílabas iniciais. 140 Fogem aS neveS FriaS 15 acompanhada Mesmo tipo de perífrase, a igura que expõe por várias palavras o que poderia ser dito mais brevemente, e disposição paralela à dos dois versos iniciais da estrofe: Vai Vénus Citareia / cos coros das Ninfas rodeada (vv. 11-12) = [vai] a linda Panopeia / ... / com as duas irmãs acompanhada (vv. 13-15). A elipse do verbo vai no segundo membro perifrástico corresponde a uma igura retórica designada zeugma. Estrofe IV Enquanto as oicinas… Paráfrase - A aparição de Vénus arrasta consigo, quase por metonímia, a imagem do deus Vulcano, seu esposo e ferreiro dos deuses. Vulcano é retratado enquanto trabalha na escuridão, entre o fumo e o rumor do martelo que bate na bigorna, no interior da montanha onde moram os Ciclopes. Por contraste, o regresso às Ninfas que cantam e dançam, mal tocando com os pés no prado onde colhem margaridas, não pode ser se não uma explosão de luz, de harmonia e de cor. 16 Enquando Corresponde exactamente ao dum latino e introduz a imagem do deus Vulcano que enche de chamas e de faúlhas o antro dos Ciclopes, onde fabrica os raios destinados a Zeus, como escreve Horácio: «dum gravis Cyclopum / Vulcanus ardens visit oicinas» (I. 4, 7-8; ‘enquanto Vulcano em fogo visita as oicinas laboriosas dos Ciclopes’). Só na época helenística é que Vulcano foi relacionado com os Ciclopes (anteriormente, a lenda colocava-o a trabalhar no Olimpo). Por sua vez, a dança de Vénus com as Graças remonta a Homero, fazendo parte da tradição grega desde a poesia arcaica. Em Horácio (mas não em Camões) «imminente luna» introduz uma variante também ela helenística. A dança ocorre de noite, enquanto a lua se demora a olhar do alto. 16 as oicinas Decalque do modelo latino, com o signiicado de fábrica. Neste caso as grutas onde vivem os Ciclopes são comparadas a oicinas de ferreiros. 17 dos Ciclopes «Fingem os Poetas serem ilhos de Neptuno e de Anitrite, os quaes nam tinham mais que um só olho em o meio da testa, como Polifemo, que foi um delles, e eram cento em numero, ministros de Vulcano; que forjam os raios do Jupiter na Ilha Lipara, uma das Eolias, onde está o monte Etna» (Barreto 1982: 210-211). Observe-se como também os comentadores podem cair em erro. O monte Etna ica na Sicília, ao passo que o vulcão do arquipélago das Eólias, a norte da Sicília, ica numa das suas ilhas, que é a de Stromboli e não a ilha Lípara. O complemento dos Ciclopes depende de oicinas no verso precedente, e provoca o primeiro 141 COMENTÁRIO A CAMÕES, vOl . 3 forte encavalgamento da estrofe. O ritmo do decassílabo, com acentos em terceira, sexta e décima sílabas, garante neste caso a pronúncia da palavra como paroxítona. Não é proparoxítona, Cíclopes, como no texto de Costa Pimpão. 17 Vulcano O ferreiro dos deuses, que nasceu disforme e com uma tal fealdade que foi atirado por Júpiter para uma ilha e, por efeito da queda, icou manco. A tradição fê-lo esposo de Vénus. Para além dos raios que fornece a Júpiter, também forja armas para os outros deuses e para os heróis. 17 está queimando Mais uma perífrase verbal, com valor durativo. Vulcano vive fechado no ventre incendiado da montanha onde leva a cabo, incessantemente, o seu trabalho de ferreiro. No quadro inicial, a estrofe transmite a imagem da força física brutal (Vulcano que bate na bigorna), por entre as trevas fendidas pelo fogo e pelas faúlhas, com o barulho surdo e profundo que ressoa naquele ambiente quase infernal. 18-19 vão colhendo boninas / as Ninfas O contraste com o quadro precedente não podia ser mais nítido. Nos prados, ao ar livre, sob o sol primaveril, as Ninfas passam o tempo a colher margaridas e vão cantando e dançando. Esta segunda parte da estrofe é uma inovação relativamente ao modelo latino. Ao retomar as Ninfas, já mencionadas no v. 12, Camões acrescenta a esta descrição primaveril um toque de frescura com o gesto de colher lores, aliás lores modestas, as boninas. Depois da férrea estrutura mitológica dos vv. 6-17, abre-se um parênteses de doçura quase doméstica. Estrofe V Dece do duro monte Diana… Paráfrase - Uma outra imagem de deusa ocupa a V estrofe, evocando a iconograia renascentista que lhe corresponde. Depois de Vénus, eis que surge a sua inimiga, Diana, deusa da caça, que, cansada da sua dura estadia invernal no alto da montanha, se aproxima à procura de uma nascente de águas claras (já não turvas das chuvas, mas cristalinas porque alimentadas pelo degelo). Junto daquela nascente, deu-se o encontro fatal com o jovem Actéon, que pagou com a vida o seu pecado. 21-22 Dece do duro monte Diana Diana desce dos ásperos cumes do monte, cobertos por densos bosques, até ao vale que se abre, verde e luminoso, o que é mais um sinal de que o inverno está a terminar. A mesma deusa será de novo evocada na XII estrofe, com o epíteto de deusa casta, ligada ao mito de Hipólito. Diana, ilha de Júpiter e irmã gêmea de Apolo, era originariamente deusa da caça e dos animais. Obteve licença do pai para 142 Fogem aS neveS FriaS não casar, icando para todo o sempre virgem, e daqui decorre o atributo de casta. Júpiter concedeu-lhe também um séquito de Ninfas, tal como ela votadas à castidade. Foi para se vingar do ultraje feito à sua pureza que Diana transformou em veado o jovem Actéon (cf. v. 25), que a tinha visto banhar-se desnuda numa nascente (a clara fonte do v. 23). Toda esta V estrofe parece inspirada nas Metamorfoses de Ovídio (III, 155-164), com relevo para os passos: «Vallis erat piceis et acuta densa cupressu, / […] cuius in extremo est antrum nemorale recessu» (vv. 155-157; ‘Era um vale com bastos pinheiros e ciprestes cheios de agulhas […] / na extremidade do qual havia uma gruta que é um refúgio entre os bosques’); «fons sonat a dextra tenui perlucidus unda, / […] hic dea silvarum venatu fessa solebat / virgineos artus liquido perfundere rore» (161-164; ‘Uma nascente ressoa à direita, translúcida, com o ténue movimento da água, / […] aqui a deusa dos bosques, quando estava cansada da caça, costumava banhar os membros virgens com a líquida geada’). No início da estrofe, note-se a aliteração em |d| que sugere, no plano fonético, a dureza e o rigor da vida silvestre (Dece do duro monte Diana), bem como o hipérbato (o verbo precede o sujeito) e o forte encavalgamento que liga, como sempre, os dois primeiros versos. Dïana, com diérese, vale três sílabas. 22 já cansada Fatigada, depois dos longos meses invernais (cf. «venatu fessa», nota anterior). 22 espessura Floresta ou bosque denso (cf. «vallis [...] densa», nota anterior). É uma palavra bastante frequente no idiolecto de Camões e indica sempre a densidade dos bosques, por contraste com as clareiras. 23 a clara fonte A nascente de claras águas. Este sintagma faz parte de uma série de formulações em que substantivo e adjectivo se relacionam através de um paradigma predeinido, com recurso ao número restrito de possibilidades combinatórias que é admitido pelo cânone. Cf. neves frias (v. 1), altos montes (v. 2), árvores sombrias (v. 3), verdes ervas (v. 4), prado ameno (v. 5), fresca terra (v. 10), duro monte (v. 21), verde primavera (v. 27), seco estio (v. 27), inverno frio (v. 29), frígida neve (v. 32), seco monte (v. 32), clara fonte (v. 34). 24 por sorte dura Má fortuna, adversidade, fatalidade. Foi de facto por mero acaso que Actéon, que andava à caça, assistiu ao banho de Diana. O mesmo adjectivo já fora empregue no sintagma duro monte (v. 21). A estrofe conclui-se, pois, com a mesma nota inicial, quer sob o ponto de vista semântico, quer sob o ponto de vista fonético. 143 COMENTÁRIO A CAMÕES, vOl . 3 A culpa de Actéon é a de ter faltado ao respeito à deusa. Depois de a ter visto desnuda junto à nascente, o jovem deixou-se seduzir pela sua beleza, quando, diferentemente, a sua adoração devia ter sido puriicada de qualquer desejo carnal. A casta Diana não pôde deixar de o punir, por ter transgredido os limites do seu território, ao ceder à atracção sensual, que é domínio de Vénus. De facto, na mitologia antiga, Diana (que corresponde à deusa grega Ártemis) e Vénus (que corresponde à deusa grega Afrodite) são potências adversárias, e da sua contínua inimizade nascem algumas das mais terríveis sagas ou guerras da Antiguidade. 24 Actéon O mito de Actéon que, transformado em veado, acaba por ser dilacerado pelos seus próprios cães, é aqui apenas objecto de alusão. Em Os Lusíadas, esse mesmo mito é plenamente utilizado com objectivos políticos. Ao recordar a sorte infeliz de Actéon, Camões pretende convencer D. Sebastião a abandonar a caça e os restantes passatempos próprios de um gentilomem, para se concentrar nos destinos do reino (Ramalho 1980). 24 perdeu... a natural igura Perdeu a forma exterior que lhe era própria, e portanto perdeu o aspecto humano. A metamorfose em veado é obviamente descrita por Ovídio nas Metamorfoses (III, 186 ss.). Note-se que o verbo perdeu é a única forma do perfeito que interrompe a longa série de formas do indicativo presente ou futuro, com a qual é entretecida a primeira parte da ode. Abre como que um parêntese acerca do trágico destino do jovem, que ocorreu e está deinitivamente encerrado no passado, e, mais do que isso, para sempre ixado pelo caso mitológico. Estrofe VI Assi se vai passando… Paráfrase – Entre estes acontecimentos, em parte naturais, em parte mitológicos, passa lentamente a Primavera, verde e viçosa, à qual se segue o Verão, que traz calor e seca. Volta depois o Inverno, que por sua vez durará um certo período. Fecha-se assim circularmente o ciclo das estações que se tinha iniciado na I estrofe com o despertar da Primavera. 26 Assi Deste modo, ou seja, segundo as modalidades descritas nas 5 primeiras estrofes. 26 se vai passando Mais uma construção perifrástica, posta em relevo pelo encavalgamento e pelo hipérbato. A forma verbal no singular é válida para os dois sujeitos apresentados no v. 27, através da igura retórica do zeugma. 144 Fogem aS neveS FriaS 27 a verde primavera e seco estio Par antitético (verde : seco, primavera : estio), cujo paralelismo se torna assimétrico em virtude da ausência de artigo no segundo sintagma (seco estio, não o seco estio). 28 trás ele Referido a estio, em rima no verso precedente. A preposição trás sugere a sucessão temporal, reforçada por depois no verso seguinte, ao passo que vem chegando constitui a segunda das três personiicações que plasmam esta VI estrofe. 29 o inverno frio O terceiro elemento do ciclo das estações, depois da Primavera e do Verão. O sintagma situa-se em rima, portanto em posição destacada, e é o sujeito de vem chegando do verso anterior, por hipérbato. 30 também Como as outras estações. 30 passará Trata-se da primeira forma verbal do texto em indicativo futuro. Até este momento fora usada uma sequência de formas verbais construída em indicativo presente de tipo descritivo ( fogem... reverdecem... crecem... tecem... aspira... aia... suspira... chora... se namora... vai... está... vão... dece...). É também a segunda vez que o verbo passar é usado. Este verbo repete-se três vezes em 10 versos, num dos pontos fulcrais da ode: passando (v. 26), passará (v. 30), passa (v. 36). A iteração responde à necessidade de transmitir a ideia do contínuo decurso do tempo. Passam as estações, tal como passa o tempo da nossa vida, contudo o ciclo das estações é eterno e imutável, ao passo que a nossa vida é breve e irrepetível. 30 por certo io Na mesma ordem fatal, segundo Maria de Lurdes Saraiva (Lírica completa III 1981: 107). O substantivo io é usado no sentido igurativo de encadeamento, concatenação, continuidade. Estrofe VII Ir-se-á embranquecendo… Paráfrase – De acordo com o ritmo incessante das estações, os montes que se tinham libertado do gelo com o tépido Zéiro voltam a icar brancos, as chuvas enviadas por Júpiter farão de novo turvas as águas cristalinas das nascentes e os navegantes icarão preocupados com a chegada das tempestades outonais. Tudo recomeça, sempre igual e sempre diferente, no ciclo perpétuo da natureza. 31 ir-se-á embranquecendo A perífrase que se estende por todo o verso, projecta desta feita um futuro. Lentamente, um loco e depois outro, a neve, que se tinha derretido no início da Primavera, cobrirá de novo os montes, fazendo-os brancos. O sujeito, posposto, encontra-se no im do verso seguinte, por hipérbato. 145 COMENTÁRIO A CAMÕES, vOl . 3 32 com a frígida neve Corresponde às neves frias do incipit. O singular colectivo substitui o plural, ao passo que o adjectivo frias sofre uma variação com o sinónimo frígida, de igual signiicado e etimologia, mas pertencente ao registo de estilo dos cultismos (latinismo, ou seja, decalque do latim «frigidum»). 32 o seco monte Também aqui os altos montes, de inspiração virgiliana, se transformam num singular colectivo. O adjectivo seco (despido, árido) contrapõe-se in absentia a verde, que conota a Primavera. No v. 27 o mesmo adjectivo surge no sintagma seco estio com valor semelhante. 33 Júpiter chovendo Elegante solução para indicar Júpiter Pluvius, ou seja, Júpiter como deus que traz a chuva. Esta divindade romana, à qual foram consagrados vários templos, determinava a distribuição das chuvas, função de importância primordial numa sociedade rural, como a latina. 34 turbará a clara fonte As chuvas do Outono farão turvas as águas das nascentes, as quais são por deinição claras, ou seja, transparentes. O sintagma clara fonte já tinha sido usado no v. 23, quando é evocado o mito de Diana e Actéon. 35 temerá Terceira e última forma verbal no futuro da estrofe, em aliteração com turbará no início do verso precedente. 35 o marinheiro Sujeito depois do verbo, com o habitual hipérbato. 35 a Orionte Constelação próxima do signo de Touro, cuja aparição no céu assinala a chegada das tempestades no Outono. Por essa razão suscita os receios dos navegantes. Esta lição, tal como foi estabelecida por Costa Pimpão, não existe, remontando a uma conjectura de Faria e Sousa. Os três testemunhos textuais registam: o orisonte (Manuscrito apenso); o Orizonte (Rimas 1598); o orionte (Manuscrito de Juromenha). Esta passo constitui a segunda crux textual da IX ode de Camões e propõe de novo a disposição tipológica do mitónimo Panopeia / Pasitea (v. 13). A segunda edição das Rimas, bem como o Manuscrito apenso (1595-1598), transmitem ambos a lição orizonte, substantivo que designa a linha circular em que a terra ou o mar parecem unir-se ao céu. O signiicado geral do verso não se altera. Quando chega o Outono, o navegante olha receoso o horizonte, ao divisar os primeiros sinais de tempestade. Por sua vez, o Manuscrito de Juromenha regista o orionte, com inicial minúscula. Entre as duas lições concorrentes, a diferença reduz-se a um único grafema: o ori<z>onte. A forma Orionte encontra-se em Os Lusíadas (VI 85, 6; X 88, 6), bem como na ode de Bernardo Tasso igualmente inspirada em Diffugere nives de 146 Fogem aS neveS FriaS Horácio («e l’armato Orionte / facea con l’onde salse aspra tenzone», 46, 9-10). Já na poesia latina este era um lugar-comum, usado nomeadamente por Virgílio e Horácio para indicar uma constelação perigosa para a navegação. Também neste caso as opiniões são discordantes, tendo sido escolhida, pela maior parte dos editores, a opção Orionte, em detrimento de orizonte (cf. Spaggiari 1980; Spaggiari 1993; Spaggiari 2011; Azevedo Filho, apud Lírica de Camões 3 II 1997: 203-204; Lourenço 2009). Estrofe VIII Porque, enim, tudo passa… Paráfrase – A estrofe assinala uma pausa para relexão, depois da primeira parte da ode onde se descreve a sucessão das estações do ano, ora em termos paisagísticos, ora através de recursos mitológicos. A sentença é sem apelo, pois tudo passa, o tempo corre sem retorno e a nossa vida termina mal começa. 36 Porque Conjunção coordenativa explicativa, separada da proposição anterior por uma pausa, neste caso expressa através de um ponto inal. 36 enim No im, chegados ao fundo das questões, com valor de algo consumado, introduzindo a própria e verdadeira sentença. 36 tudo passa Sintagma aparentemente banal, mas que é nada mais, nada menos, do que um decalque do célebre panta rhei kai ouden perimene do ilósofo grego Heraclito. Este fragmento, que é um condensado da sabedoria antiga, era um dos slogans mais usados, na Antiguidade, por quem quisesse recordar ao homem o seu destino terreno. Simboliza a ideia de um mundo em perpétuo movimento, em virtude da incessante transformação de todas as coisas. 37 não sabe o tempo Saber com o signiicado de ter capacidade ou possibilidade de. A habitual inversão de verbo e sujeito prepara a parte conclusiva do verso. 37 ter irmeza Manter-se irme, icar imóvel e ser constante. 37 em nada Em nenhum aspecto da realidade terrena. A palavra nada, em posição de rima, contrapõe-se a tudo do verso precedente, tal como ter irmeza se contrapõe a passa(r), no sentido de ser transitório, não perdurar e como tal acabar. 38 nossa vida escassa O tempo breve da nossa vida terrena. A brevidade da vida é dimensionada no confronto com a eternidade da morte. O modelo encontra-se num verso gnómico de Horácio «vitae summa brevis» (Carm. I 4, 15; ‘a breve suma da nossa vida’, ou, noutros termos, a totalidade da 147 COMENTÁRIO A CAMÕES, vOl . 3 vida, resultado da soma de anos, meses, dias, horas e minutos, mostra-se, por im, breve ou mesmo insigniicante). 39 foge Como fogem no incipit. O verbo fugir, juntamente com o verbo passar, é o único que se repete ao longo dos 65 versos da ode. Insiste-se na rapidez com que se esgota a nossa vida, já por si breve, de tal modo que início e im, nascimento e morte, não são mais do que dois momentos que vêm um a seguir ao outro no decurso eterno do tempo. O verbo é colocado no início do verso, depois de um forte encavalgamento. O adjectivo apressado transmite a idea de rapidez, velocidade e quase precipitação. A ânsia não é, naturalmente, um atributo emotivo do tempo, mas antes do homem, que tem a percepção da sua passagem inexorável. 40 que... é acabada Sintagma consecutivo, introduzido por tão do verso anterior. 40 quando se começa No momento em que se inicia, já contém em si a predição do im. O verso, de sabedoria popular, airma de forma instintiva uma verdade hoje cientiicamente comprovada. No momento em que um recém-nascido vê a luz, parte das suas células começa a morrer. O sabor proverbial do verso decorre da justaposição de dois verbos antónimos, começar e acabar, usados com diverso valor de aspecto, respectivamente, o presente durativo (se começa) e a forma composta do verbo ser predicativo e do particípio passado acabada, que indica um estado alcançado, um processo realizado. Estrofe IX Que foram os Troianos… Paráfrase – Qual foi, no passado, a sorte dos heróis, dos poderosos e dos ricos? Nenhum deles se pôde eximir ao destino fatal. Que aconteceu ao valente Heitor, ao pio Eneias? A sua glória de guerreiros não os salvou da morte. Também Cresso, famoso pela sua extraordinária riqueza, foi consumido pelos anos, sem que todo o ouro que possuía servisse para o resgatar do outro mundo. 42 Hector temido, Eneias piadoso O nome de cada um dos dois heróis Troianos é acompanhado pelo respectivo epíteto tradicional. Heitor é temido, ou seja, audaz e destemido. Por sua vez, Eneias é piadoso, ou seja, dotado de devoção e caridoso (lat. pius). Estes epítetos são quase alcunhas, porque qualiicam invariavelmente a virtude predominante do herói, num caso a audácia do guerreiro que não teme ninguém, no outro a devoção de quem, apesar de ser guerreiro, subordina os seus actos a um im superior. É supérluo acrescentar que Heitor e Eneias são protagonistas de 148 Fogem aS neveS FriaS dois dos maiores poemas épicos da Antiguidade, a Ilíada de Homero e a Eneida de Virgílio. Sob o ponto de vista métrico, o verso é um decassílabo de gaita galega (4-7-10). Os dois sintagmas paralelos, formados por nome próprio e epíteto, justapõem-se em assíndeto, ou seja, sem recurso a uma conjunção coordenativa. 43 Consumiram-te os anos... Uma segunda forma verbal no perfeito, depois de foram no v. 41, introduz uma relexão acerca de outra personagem da Antiguidade, Cresso, que foi consumido pelos anos, apesar de possuir muitos tesouros. Depois da interrogação directa contida nos vv. 41-42, Camões utiliza a apóstrofe dirigindo-se a um destinatário preciso. Esta igura de retórica, que consiste precisamente na interpelação de alguém, estende-se a toda a estrofe sucessiva, só se concluindo no v. 50. De acordo com aquela que é uma constante estilística da ode, o verbo consumiram-te precede o sujeito os anos, por hipérbato. 44 ó Cresso tão famoso Trata-se de Cresso, rei da Lídia, célebre na Antiguidade pela sua riqueza desmesurada. A variante ô Craso poderoso do Manuscrito de Juromenha mostra-se errónea, porque na estrofe seguinte é feita explícita alusão ao diálogo que o rei Cresso teve com Sólon (infra). A interjeição ó tem, neste caso, valor interpelativo. 45 sem te valer teu ouro precioso A palavra sem indica a ausência de condição necessária. [V ]aler tem o sentido de socorrer, ajudar. O adjectivo precioso conta como quatro sílabas por diérese. A posse (teu) de tesouros de grande valor, simbolizados, por antonomásia, pelo ouro precioso, não serviu para salvar Cresso do im que é o destino de todos os mortais. Estrofe X Todo o contentamento… Paráfrase – Dirigindo-se directamente a Cresso, o poeta adverte-o por ter cegamente acreditado que a felicidade consistia na riqueza. Uma crença falsa, como o pôde veriicar o próprio Cresso, ao pagar com a morte a inutilidade do seu tesouro. Contudo, o sábio Sólon tinha-o avisado da caducidade dos bens terrenos. 46 todo o contentamento A felicidade, correspondente ao grego eudaimonia. Prepara-se a alusão ao célebre diálogo entre Cresso e Sólon, que foi contado por Heródoto (I 29-33). 47 crias No signiicado de ter por certo, considerar verdadeiro. 149 COMENTÁRIO A CAMÕES, vOl . 3 A falsa crença de Cresso era que a felicidade consistia em possuir tesouros fabulosos. 47 ufano Do qual se gabava, com exagerado orgulho, usado em sentido pejorativo. Os dois primeiros versos da estrofe encontram-se ligados pelo habitual encavalgamento, com distanciamento da palavra-chave contentamento que, do ponto de vista sintáctico, é sujeito da subordinada qu’estava, com hipérbato e ênfase. 48 Ó falso pensamento A ilusão de ser feliz, o que torna extraordinária a igura de Cresso. O que está em causa não são as suas riquezas, mas a convicção de ser o homem mais feliz do mundo. 48 ó A interjeição tem, neste caso, valor exclamativo. 48 pensamento Opinião, crença. 49 que Conjunção causal. 49 à custa do teu dano Sofrendo prejuízo, pagando por isso. 50 do douto Solon Sólon foi um dos sete Sábios da antiga Grécia. Por isso é qualiicado como douto, que é aquele que se distingue pela sua grande sabedoria, pela sua experiência do mundo e pela sua vida exemplar. Heródoto conta que, quando Sólon o foi visitar, Cresso lhe quis mostrar todos os seus tesouros. O sábio ateniense ostentava, porém, uma indiferença absoluta. Habituado à adulação, e como tal desiludido, Cresso perguntou-lhe, por im, se alguma vez vira um homem mais feliz do que ele. Sólon respondeu-lhe então, citando nomes de iguras obscuras, sem poder nem riqueza, como Telo, Cleóbis ou Bíton, que em seu entender se podiam dizer mais felizes do que Cresso. Este icou então admirado pela felicidade de tais desconhecidos ser superior à sua. Sólon respondeu-lhe que a felicidade só se pode medir depois do im da vida, porque no mundo tudo é «caso e circunstância» e muitas vezes os deuses destroçam precisamente aqueles a quem pareciam ter dado riqueza e felicidade. A história de Cresso e Sólon, tal como é contada por Heródoto, é um apólogo sobre a inconstância da fortuna, mais do que uma advertência relativamente ao escasso valor dos bens terrenos. Diferentemente, Camões prefere colocar a tónica sobre a futilidade de riquezas e tesouros, os quais nem podem acompanhar o homem para além da morte, nem fazem feliz a sua vida. 50 creste o desengano Cresso, antes de encontrar Sólon, vivia numa condição de ignorância feliz e duradoura, porque não se dava conta do mal que o futuro lhe podia reservar. Mas quando se viu confrontado com a 150 Fogem aS neveS FriaS morte, na pira que começava a arder, voltaram-lhe à memória as palavras do sábio ateniense acerca da inconstância da fortuna e da initude e da casualidade da vida humana. Só então percebeu a lição de Sólon e tomou consciência do seu próprio engano. 50 creste Em paralelo com crias do v. 47, numa igura chamada poliptoto, que consiste na repetição com um breve intervalo de uma mesma palavra em formas gramaticais diversas. O verbo crer tem aqui o signiicado de coniar em, aceitar como verdadeiro. 59 o desengano O que faz sair do engano, ensinando a não recair em erro. O verso apresenta de novo um hipérbato, com o complemento do douto Sólon que precede o verbo creste, bem como o substantivo desengano, do qual depende sintacticamente. Estrofe XI O bem que aqui se alcança… Paráfrase – Estrofe explicativa em relação aos exemplos que acabaram de ser apresentados, desenvolve os preceitos do sábio antigo à luz da teleologia cristã. O bem terreno não é para durar, portanto a nossa vida deve ser orientada para a beatitude celeste, aquela que apenas através dos nossos actos e dos nossos pensamentos se pode obter. Diferentemente da felicidade terrena, que é ilusória e efémera, a beatitude celeste é por deinição eterna. 51 o bem Antecipa a bem-aventurança (v. 53), contrapondo o bem que aqui se alcança, que é aquele que se pode obter durante a passagem pela terra, à beatitude eterna. 51 se alcança Antecipa se há-de alcançar (v. 55). Insiste sobre a ideia de apanhar, conseguir, obter, atingir. O esforço feito para acumular riquezas não é compensado pela sua perenidade. 52 não dura A confrontar com durável (v. 54). Continua a rede de reenvios entre palavras idênticas ou pertencentes à mesma categoria lexical. O verbo durar, no sentido de continuar a existir e conservar-se, ica limitado por duas negações, não... nem... Reairmam a inutilidade do poder (não... possante, ou seja, poderoso) e da força (nem... forte, ou seja, vigoroso), face ao derradeiro im da morte. Provável eco de Bernardo Tasso que usa três vezes o sintagma «possente e forte», primeiro em rima com «sorte» (IV 80) e depois com «morte» (XI 37 = XXXIII 50-51). 53 que De novo com valor declarativo-causal, como no v. 49. 151 COMENTÁRIO A CAMÕES, vOl . 3 54 bem-aventurança Termo da religião católica que tem um signiicado preciso. Não indica simplesmente um estado de bem-estar ou uma felicidade absoluta, mas mais precisamente a glória celeste, ou seja, a beatitude ou a felicidade suprema que só os santos e os justos podem alcançar no Céu, junto de Deus. 54 sorte Termo, im, destino, e não simplesmente modo, condição. 54 de outra sorte Alusão à diversidade da felicidade celeste, relativamente à terrena. 55 se há-de alcançar É um dever necessário para alcançar a beatitude eterna. 55 na vida para a morte A nossa vida terrena, frágil e breve, deve-nos servir para ultrapassar a morte, conquistando a vida eterna que há-de ser fruída no Além. Estrofe XII Porque, enim, nada basta… Paráfrase – No im, nada é suicientemente forte para se opor ao destino e à morte, que é a temível noite eterna. Nem os deuses têm esse poder, como o mostra Diana, incapaz de salvar Hipólito das profundas trevas infernais. O mundo do mito substitui o dos homens para reairmar que nem às personagens lendárias, notoriamente dotadas de poderes excepcionais e mesmo sobre-humanos, é permitido contraporem-se às leis férreas da morte. 56 porque Com valor declarativo-causal. 56 enim Por im, inalmente, usado para introduzir a conclusão inal. 56 nada basta Nenhuma coisa nem nenhuma pessoa, ou seja, nada nem ninguém, têm força ou poder contra a morte. A palavra nada já fora usada no v. 37, com referência ao tempo que não sabe ou não é capaz de parar o seu incessante decurso. 57 contra o... im O momento inal, o termo. 57 terríbel Que incute medo, mas também contra quem não se pode lutar, pelo que é invencível. 57 noite eterna A escuridão da morte, representada como ausência de luz que se perpetua na eternidade. Antecipa noite averna (v. 60). O topos da morte simbolizada pela noite, em oposição à vida que é dia, implica a presença ou ausência de luz, o que distingue o mundo terreno do Além-túmulo. O motivo remonta às origens da poesia clássica e encontra-se resumido num verso de Catulo que identiica o nada depois da morte com a «nox [...] perpetua una dormienda» (V 6; ‘uma noite […] eterna de sono’). 152 Fogem aS neveS FriaS 58-61 nem... Nem... A dupla conjunção negativa reairma e especiica o conceito que fora expresso por nada (v. 56), que é a insuiciência (nada basta) e a incapacidade (nem pode...) de regressar à vida, depois de atravessado o conim com o Além. A dupla negação, já presente no modelo latino de Horácio («neque... nec», IV 7, 25-28) tem a função de introduzir os exempla inais da ode, igualmente tirados de Horácio. O primeiro ocupa a segunda parte da XII estrofe, logo a seguir à relexão conclusiva dos vv. 56-57. 58 nem pode a deusa casta Diana, por antonomásia (v. nota aos vv. 21-22). Depois do mito de Actéon, a que foi feita alusão na V estrofe, Diana volta a ser mencionada como exemplum da impossibilidade de resgatar alguém da morte. A referência é ao mito de Hipólito e Fedra, que Eurípedes foi o primeiro a imortalizar. Hipólito era um jovem esquivo, que preferia viver longe da sociedade e passava os seus dias a caçar, acompanhado por um grupo de coetâneos. A sua devoção pela deusa da caça, a própria Diana, era reforçada pelo desprezo que Hipólito tinha do amor carnal e pelo repúdio do desejo amoroso e das mulheres que o motivavam. Virgem de corpo e alma ( pudicum, escreve Horácio), Hipólito reivendica a castidade como única condição aceitável. O seu comportamento exclusivo e inlexível suscita, porém, a ira de Vénus, a deusa do amor, tradicional adversária de Diana. Para se vingar, Vénus leva Fedra a enamorar-se do jovem Hipólito, que obviamente a rejeita (era, além do mais, sua madastra, sendo a segunda esposa de Teseu, rei de Atenas). Fedra mata-se, face a essa recusa, mas deixa uma carta a Teseu em que acusa o enteado de a ter violentado. Apesar de clamar inocência, Hipólito é considerado culpado e o deus Neptuno provoca a sua morte. Então Diana, a deusa à qual tinha votado a sua breve existência, desce até ao Além-túmulo para o trazer à vida, mas sem o conseguir. 58 pode Na graia da época não se distinguia o presente indicativo pode do perfeito pôde (a mesma forma, por si ambígua, encontra-se na última estrofe, v. 63). Como justamente observa Frederico Lourenço (2009), a interpretação das estrofes inais altera-se substancialmente se se interpreta pode como presente ou como passado. Se nos dois versos citados se lê pode como presente, a ode conclui-se com uma nota de desespero e impotência. Se, diferentemente, se considera pôde a interpretação correcta, então o passado leva-nos até um tempo remoto, anterior ao advento do Cristianismo, quando nada tinha poder contra a inexorabilidade da morte. Depois da Redenção de Cristo, a morte é apenas a passagem para 153 COMENTÁRIO A CAMÕES, vOl . 3 a vida eterna e, como tal, depende do homem e da sua actuação terrena, consoante assinale a passagem para uma perpétua beatitude ou, pelo contrário, a deinitiva submersão nas trevas infernais. No caso da primeira solução, pode (presente do indicativo) implica o modelo de Horácio, com dois presentes, neque... liberat... nec... valet, aos quais se atribui a função de deinir o falhanço de Diana e de Teseu. Na actualidade, um comentador de Horácio fala de um «presente della morte, in cui ogni tentativo di ribellione è vano» (Cremona 1990: 210). 59 tornar Reconduzir com valor transitivo. O forte encavalgamento que liga os vv. 58-59 e 59-60 é acompanhado pelo habitual hipérbato, precedendo a forma verbal pode o sujeito, a deusa casta. 59 à luz superna À luz do mundo superior, contraposto aos reinos infernais, que são por deinição lugares de trevas. Esta variante do mito (presente, p. ex., nas Fabulae de Higino, n.° 47) é minoritária relativamente à versão segundo a qual Esculápio, cedendo às preces de Diana, teria feito ressuscitar Hipólito. Assim Virgílio (Aen. VII 765-769) e Ovídio (Met. XV 531-546; Fast. VI 737-756). 60 Hipólito O nome próprio, complemento directo de tornar, ica encerrado entre dois complementos que indicam, respectivamente, o lugar donde devia sair (da escura noite Averna, v. 60) e o que devia reconquistar (à luz superna, v. 59). 60 da escura noite Averna O adjectivo Averna é formado a partir do topónimo latino (lago) Averno, local onde a tradição clássica coloca uma das entradas do inferno. Portanto, por extensão, Averno está também por inferno, como substantivo, e infernal, como adjectivo (cf. «infernis [...] tenebris» em Horácio, Carm. IV 7, 25). 60 escura noite Ecoa a noite eterna, em posição de rima no v. 57. Na primeira ocorrência, põe-se em relevo a eternidade da noite. Na segunda é a ausência de luz a ser sublinhada com escura, que se acrescenta a noite. Do ponto de vista estilístico, note-se a construção adjectivo + substantivo + adjectivo que se voltará a encontrar na estrofe inal: espantosa / prisão Leteia (vv. 64-65). Estrofe XIII Nem Teseu esforçado… Paráfrase – Nem os heróis têm qualquer poder contra a morte, por mais valorosos ou astutos que sejam, como o mostra 154 Fogem aS neveS FriaS o caso de Teseu, que não consegue libertar Pirítoo, amigo inseparável, da sua terrível prisão infernal. 61 Nem Teseu esforçado A conjunção negativa abre a última estrofe, ligando-se a nem pode do v. 58. 61 Teseu É o lendário rei de Atenas, herói nacional e protagonista de muitas aventuras. Liga-se ao mito precedente, porquanto pai de Hipólito e marido de Fedra em segundas núpcias. Nesta estrofe inal é porém conjuntamente apresentado com um outro herói, Pirítoo, rei dos Lápitas, seu amigo e companheiro de várias proezas e peripécias (é um par inseparável de heróis, como Aquiles e Pátroclo). 61 esforçado Forte, enérgico, corajoso. 62 com manha Habilidade, destreza. 62 nem com força rigorosa Retoma o conceito e a base etimológica de esforçado, insistindo no aspecto duro, inlexível e intransigente da sua força. Teseu resume em si todos os dotes do guerreiro, da inteligência à habilidade, à força e à tenacidade. Apesar disso, mostra-se incapaz de salvar o companheiro Pirítoo, prisioneiro do Além-túmulo. 63 livrar pode Hipérbato. Quanto à dupla interpretação de pode / pôde, cf. nota ao v. 58. 63 ousado Corajoso, valente, destemido. Corresponde a esforçado, como epíteto padronizado ligado ao segundo herói do par. 64 Pirítoo Forte encavalgamento, que separa o adjectivo ousado, em posição de rima no verso anterior, e o nome próprio no início deste verso. A aventura a que aqui se faz alusão é a descida dos dois heróis ao Tártaro. Segundo a versão mais difundida do mito, Pirítoo, como sempre acompanhado por Teseu, tinha descido até ao reino de Hades, rei dos mortos, para pedir em casamento a sua mulher, Perséfone. Compreensibilmente irritado, Hades fez prisioneiros os dois inseparáveis amigos. Hércules, ao passar pelos infernos num dos seus doze trabalhos, encontrou-os aos dois por acaso e tentou salvá-los. Com um esforço sobre-humano, tirou Teseu, que conseguiu regressar ao mundo dos vivos. Mas nada pôde fazer por Pirítoo, o verdadeiro culpado, que assim icou para sempre encarcerado no Tártaro. Muito resumidamente, é esta a lenda, da qual existem diferentes versões que introduzem, para além de alterações de pormenor, substanciais modiicações do epílogo. Importa pôr em relevo que, em nenhuma das versões conhecidas, o mito é apresentado como em Horácio. Nunca Teseu intervém pessoalmente para libertar Pirítoo das cadeias infernais. 155 COMENTÁRIO A CAMÕES, vOl . 3 64-65 da espantosa / prisão Leteia A construção adjectivo + substantivo + adjectivo estende-se por dois versos, num dos mais fortes encavalgamentos de toda a ode. Os elementos reenviam verticalmente para o sintagma análogo do v. 60: espantosa reenvia para escura; prisão para noite; Averna para Leteia. Se Averna deriva do lago Averno, Leteia deriva do rio Letes, que, segundo a mitologia greco-romana, corria pelo Hades e causava esquecimento a quem bebesse as suas águas, como conta Virgílio na Eneida (VI etc.). Do ponto de vista funcional, os dois adjectivos, por si incompreensíveis para quem não conheça a mitologia antiga, são ambos sinónimos de infernal, ou seja, designam tudo aquilo que pertence ao Além-túmulo. 65 escura e tenebrosa Binómio de sinónimos, que se acrescenta à dupla adjectivação do substantivo prisão (espantosa... Leteia, vv. 64-65). Todo o inal da ode gravita em torno do substantivo prisão, reairmando a completa perda da liberdade, bem como a impossibilidade de regresso ao mundo dos vivos. Os quatro adjectivos que conotam prisão transmitem essencialmente a ideia de um lugar de trevas profundas, que incute terror (ver, na estrofe precedente, a oposição noite eterna / luz superna / escura noite Averna, vv. 57, 59, 60). Do ponto de vista estilístico, o poeta utiliza, uma a seguir à outra, duas iguras sintácticas privilegiadas: a construção adjectivo + substantivo + adjectivo (já anteriormente assinalada) e o binómio de sinónimos que retoma e conclui o verso depois da pausa imposta pela cesura. Note-se, por im, que este último verso é um decassílabo de gaita galega (acentos em 4.ª, 7.ª e 10.ª sílabas). Barbara Spaggiari 156 Bibliograia O texto das edições camonianas é citado literalmente, com actualização de grafemas e meras alterações pontuais. Procede-se da mesma forma para os comentários e outros textos publicados até ao século XIX e para a referenciação bibliográica. No caso de Faria e Sousa, normaliza-se a acentuação. A partir do século XIX, faz-se actualização da graia. As referências às edições de Camões e a manuscritos de interesse camoniano dizem respeito a todo o volume. 1. EdIçÕES dE REfERêNCIA dA ObRA dE CAMÕES Rimas, texto estabelecido, revisto e prefaciado por Álvaro J. da Costa Pimpão, apresentação de Aníbal Pinto de Castro, Coimbra, Almedina, 2005, reimpr. Tem por fulcro a ed., Barcelos, Companhia Editora do Minho, 1944, que foi objecto, ao longo do tempo, de várias reformulações, e matriz da edição anotada, Coimbra, Atlântida, 1961. Os Lusíadas, leitura, prefácio e notas de Álvaro Júlio da Costa Pimpão, apresentação de Aníbal Pinto de Castro, Lisboa, Instituto Camões, Ministério dos Negócios Estrangeiros, 2003, 5.ª ed. 1.ª ed., Lisboa, Instituto de Alta Cultura, 1972. 2. EdIçÕES E COMENTÁRIOS A CAMÕES Rimas 1595 Rhythmas de Luís de Camões divididas em cinco partes, dirigidas ao muito illustre Senhor D. Gonçalo Coutinho, impressas com licença do Supremo Conselho da Geral Inquisição e Ordinário, em Lisboa, por Manoel de Lyra, anno de M.D.LXXXXV, à custa de Estevão Lopez mercador de livros. Ed. facsimilada do exemplar pertencente a D. Manuel II, comemorativa do IV centenário da estada de Luís de Camões na Ilha de Moçambique, s.l., s.d. Ed. facsimilada do exemplar pertencente à Academia Brasileira de Letras, Rio de Janeiro, 1980. ‹http://purl.pt/14880› (12-2014) Rimas 1598 Rimas de Luís de Camões accrescentadas nesta segunda impressão, dirigidas a D. Gonçalo Coutinho, impressas com licença da Santa Inquisição por Pedro Crasbeeck, anno de M.D.XCVIII, à custa de Estevão Lopes mercador de livros com privilégio. Ed. facsimilada, estudo introdutório de Vítor Manuel de Aguiar e Silva, Braga, Universidade do Minho, 1980. ‹http://purl.pt/14706› (12-2014) 159 Lusíadas 1613 Os Lusíadas do grande Luis de Camoens principe da poesia heroica, Commentados pelo Licenciado Manuel Correa, Dedicados ao Doctor D. Rodrigo d’Acunha, Per Domingos Fernandez seu livreyro, Com licença do S. Oficio, Ordinario, y Paço, Em Lisboa por Pedro Craesbeeck, 1613. Rimas 1616 Rimas de Luis de Camoens segunda parte. Agora novamente impressas com duas comedias do autor. Com dous epitaios feitos a sua sepultura, que mandarão fazer Dom Gonçalo Coutinho, & Martim Gonçalvez da Camara. E hum prologo em que conta a vida do author. Dedicado ao Illustrissimo e Reverendissimo Senhor D. Rodrigo d’Acunha, bispo de Portalegre, e do Conselho de Sua Magestade. Em Lisboa, na oficina de Pedro Crasbeeck, a custa de Domingos Fernandez mercador de livros, 1616. ‹http://purl.pt/14096/3/#/4› (12-2014) Lusíadas I / II 1639 Lusiadas de Luis de Camoens, Principe de los poetas de España, al Rey N. S. Felipe IV, el Grande, comentadas por Manuel de Faria i Sousa, Cavallero de la Orden de Christo, i de la Casa Real, contienen lo más de lo principal de la historia, i Geograia del mundo, i singularmente de España, mucha politica excellente, i Catolica, varia moralidad, i dotrina, aguda, i entretenida satira en comun a los vicios, i de profession los lances de la Poesia verdadera, i grave, i fu más alto, i solido pensar. Todo sin salir [un solo punto] de la idea del altissimo Poeta, año 1639, con privilegio, en Madrid, por Iuan Sanchez, a costa de Pedro Coello, mercader de libros, 1639, primero i segundo tomo; tomos tercero i quarto. Reed. facsimilada, Lusíadas de Luís de Camões, comentadas por Manuel de Faria e Sousa, introdução de Jorge de Sena, Lisboa, IN-CM, Comissão Nacional do IV Centenário da Publicação de Os Lusíadas, Edição Comemorativa, 1972, vol. 1 (contém ts. I e II), vol. 2 (contém ts. III e IV). ‹http://purl.pt/23676› (12-2014) 160 Rimas 1668 Terceira parte das Rimas do princepe dos poetas portugueses Luis de Camoes, tiradas de varios manuscriptos muitos da letra do mesmo Autor, por D. Antonio Alvarez da Cunha, offerecidas a Soberana Alteza do Princepe Dom Pedro, por Antonio Craesbeeck de Mello, Impressor de S. Alteza, e à sua custa impressas, anno 1668. Rimas varias I 1685 / II 1689 Rimas varias de Luis de Camoens príncipe de los poetas heroycos y lyricos de España, ofrecidas al muy ilustre Señor D. Iuan da Sylva, Marquez de Gouvea, Presidente del Dezembargo del Paço y Mayordomo mayor de la Casa Real, etc., commentadas por Manuel de Faria y Sousa, Cavallero de la Orden de Christo, tomo I y II, que contienen la primera, segunda y tercera centuria de los sonetos, Lisboa, con privilegio real, en la Imprenta de Theotonio Damaso de Mello Impressor de la Casa Real, con todas las licencias necessarias, año de 1685. Rimas varias de Luis de Camoens príncipe de los poetas heroycos y lyricos de España, ofrecidas al muy ilustre Señor Garcia de Melo, Montero Mor del Reyno, Presidente del Dezembargo del Paço, etc., commentadas por Manuel de Faria y Sousa, Cavallero de la Orden de Christo, tomo III, IV y V, segunda parte, el tom. III contiene las canciones, las odas y las sextinas, el tom. IV las elegias y las otavas, el tom. V las primeras ocho éclogas, Lisboa, con todas las licencias necessarias, en la Imprenta Craesbeeckiana, año 1689, con Privilegio Real. Reed. facsimilada, Rimas várias de Luís de Camões, comentadas por Manuel de Faria e Sousa, nota introdutória do Prof. F. Rebelo Gonçalves, prefácio do Prof. Jorge de Sena, Lisboa, IN-CM, Comissão Nacional do IV Centenário da Publicação de Os Lusíadas, Edição Comemorativa, 1972, vol. 1 (contém ts. I e II), vol. 2 (contém ts. III, IV e V). ‹http://purl.pt/14198› (12-2014) ‹http://purl.pt/14199› (12-2014) Obras I 1860 / II 1861 / III 1861 / IV 1865 / V 1864 / VI 1869 Obras de Luiz de Camões, precedidas de um ensaio biographico no qual se relatam alguns factos não conhecidos da sua vida, augmentadas com algumas composições ineditas do poeta, pelo Visconde 161 de Juromenha, Lisboa, Imprensa Nacional / vol. I, 1860 / vol. II, 1861 / vol. III, 1861 / vol. IV, 1865 / vol. V, 1864 / vol. VI, 1869. Em 1924 a Imprensa Nacional editou um fragmento. Obras completas I 1, 1873 / I 2, 1874 / I 3-4, 1874 / II 5, 1874 / II 6, 1874 / III 7, 1874 Obras completas de Luiz de Camões, edição crítica, com as mais notaveis variantes, Porto, Imprensa Portugueza Editora / t. I Parnaso, vol. 1 Sonetos, 1873 / vol. 2 Canções, sextinas e odes, 1874 / vols. 3-4 Elegias. Eclogas, 1874 / t. II Cancioneiro de todas as redondilhas e autos / vol. 5 Redondilhas, 1874 / vol. 6 Autos e cartas, 1874 / t. III, vol. 7 Os Lusíadas, 1874. Parnaso I 1880 / II 1880 / III 1880 Parnaso de Luiz de Camões, edição das poesias lyricas consagrada à commemoração do Centenario de Camões, com uma introdução sobre a historia da recensão do texto lyrico por Theophilo Braga, Porto, Imprensa Internacional de Ferreira de Brito & Monteiro, 1880 / vol. I Os sonetos / vol. II Canções, sextinas, odes e outavas / vol. III Elegias e eclogas, redondilhas ineditas do Ms. da Academia das Sciencias. Sämmtliche Gedichte I 1880 / II 1880 / III 1881 / IV 1882 / V 1883 / VI 1885 Luis‘ de Camoens Sämmtliche Gedichte, zum ersten Male deutsch von Wilhelm Storck, Paderborn, Druck und Verlag von Ferdinand Schöningh / erster Band, Buch der Lieder und Briefe, 1880 / zweiter Band, Buch der Sonette, 1880 / dritter Band, Buch der Elegieen, Sestinen, Oden und Octaven, 1881 / vierter Band, Buch der Canzonen und Idyllen, zweite Vermehrte und verbessert Aulage, 1882 / fünfter Band, Die Lusiaden, 1883 / sechster und letzer Band, Dramatische Dichtungen, 1885. Sonetos I 1913 / Sonetos II 1913 Sonetos, coordenados e acompanhados com um escorço biographico do immortal poeta e com a lista dos sonetos apocriphos que lhe são atribuídos por Theophilo Braga, Lisboa, A Educadora, 1913, 2 vols. 162 Camões lírico I 1925 / II 1925 / III 1925 / IV s.d. / V s.d. Antologia portuguesa organizada por Agostinho de Campos, Camões lírico, Paris, Lisboa, Livraria Aillaud e Bertrand / Porto, Livraria Chardron / Rio de Janeiro, Livraria Francisco Alves / vol. I Redondilhas, 1925, 2.ª ed. / vol. II Redondilhas, 1925, 2.ª ed. / vol. III Conclusão das redondilhas, autos e cartas, 1925 / vol. IV Sonetos escolhidos, s.d. / vol. V Canções, s.d. Lírica 1932 Lírica de Camões, edição crítica pelo Dr. José Maria Rodrigues e Afonso Lopes Vieira, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1932. Sôbolos rios Sôbolos rios que vão..., introd., leitura, notas, vocabulário e rimas por Sebastião Pestana, Lisboa, [s. ed.], 1981. Obras completas I 1946 / II 1946 / III 1946 / IV 1946 / V 1946 Obras completas, com prefácio e notas do Prof. Hernâni Cidade, Lisboa, Livraria Sá da Costa Editora, 1946 / vol. I Redondilhas e sonetos / vol. II Géneros líricos maiores / vol. III Autos e cartas / vol. IV Os Lusíadas (I) / vol. V Os Lusíadas (II). Com várias reedições, também por outras casas editoras. Versos de Camões 1957 Versos de Camões, escolhidos e prefaciados por Vitorino Nemésio, Lisboa, Direcção-Geral do Ensino Primário, 1957. Obra completa 1963 Obra completa, organização, introdução, comentários e anotações do Prof. António Salgado Júnior, Rio de Janeiro, G. B./Companhia Aguilar, Editora, 1963. Monumentos literários [1971] Monumentos literários, colectânea das obras atribuídas ao épico, organizada e anotada por José Pedro Machado, [Lisboa], Sociedade de língua portuguesa, [1971]. 163 Sonetos 1980 Sonetos de Camões, corpus dos sonetos camonianos, apresentação de José V. de Pina Martins, edição e notas por Cleonice Serôa da Motta Berardinelli, Paris, CCP / Rio de Janeiro, Fundação Casa de Rui Barbosa, 1980. Lírica completa I 1986 / II 1994 / III 1981 Lírica completa, Lisboa, IN-CM, prefácio e notas de Maria de Lurdes Saraiva / vol. I, 1986, 2.ª ed. / vol. II Sonetos, 1994, 2.ª ed. revista / vol. III Canções, sextinas, odes, elegias, oitavas, éclogas, epigramas, 1981. Lírica de Camões 1 1985 / 2 I 1987 / 2 II 1989 / 3 I 1995 / 3 II 1997/ 4 I 1998/ 4 II 1999/ 5 I 2001 Leodegário A. de Azevedo Filho, Lírica de Camões, texto estabelecido à luz da tradição manuscrita, em confronto com a tradição impressa, revisão editorial e colaboração na adaptação ortográica de Sebastião Tavares de Pinho, Lisboa, IN-CM / vol. 1 História, metodologia, corpus, apresentação de António Houaiss, 1985 / vol. 2, t. I, t. II, Sonetos, apresentação de Sílvio Elia, 1987, 1989 / vol. 3, t. I, Canções, 1995 / t. II, Odes, apresentação de Roger Bismut, 1997 / vol. 4, t. I, Elegias em tercetos, apresentação de Álvaro de Sá, 1998 / vol. 4, t. II, Oitavas, apresentação de Marina Machado Rodrigues, 1999 / vol. 5, Éclogas, t. I, apresentação de Xosé Manuel Dasilva Fernández, 2001. 3. M ANuSCRITOS EM EdIçãO Cancioneiro de Cristóvão Borges, edition and notes by Arthur Lee-Francis Askins, Braga, Barbosa & Xavier Limitada / Paris, Jean Touzot, 1979. Cancioneiro de D. Cecília de Portugal, introdução e notas por António Cirurgião, Lisboa, Edições da Revista Ocidente, 1972. Cancioneiro de Fernandes Tomás, facsímile do exemplar único, com preâmbulo de D. Fernando de Almeida, Lisboa, Museu Nacional de Arqueologia e Etnologia, 1971. Cancioneiro de Luis Franco Correa 1557-1589, Lisboa, Comissão Executiva do IV Centenário da Publicação de Os Lusíadas, 1972. 164 The Hispano-Portuguese Cancioneiro of the Hispanic Society of America, edition and notes by A. L.-F. Askins, Chapel Hill, UNC, Department of Romance Languages, 1974. Índice do Cancioneiro do Padre Pedro Ribeiro: Aníbal Pinto de Castro, «Índice do Cancioneiro do Padre Pedro Ribeiro. Fac-simile e leitura diplomática», Páginas de um honesto estudo camoniano, Coimbra, CIEC, 2007: 49-84. Manuscrito apenso ao exemplar da edição das Rhytmas de 1595 que se encontra nos Reservados da Biblioteca Nacional (Lisboa), cota CAM-10-P. Facsimilado em Emmanuel Pereira Filho, As rimas de Camões, Cancioneiro ISM e comentários, ed. preparada e organizada por Edwaldo Cafezeiro e Ronaldo Menegaz, Rio de Janeiro, Aguilar/Brasília, Instituto Nacional do Livro, 1974 [ed. póstuma]. Novos Subsídios - Maria Isabel S. Ferreira da Cruz, Novos Subsídios para uma edição crítica da lírica de Camões. Os cancioneiros inéditos de Madrid e do Escorial, Porto, Centro de Estudos Humanísticos da FLP, 1971. 4. TExTOS lITERÁRIOS dE REfERêNCIA Acuña, Hernando de, Varias poesías, ed. Luis F. Díaz Larios, Madrid, Cátedra, 1982. Alamanni, Luigi, Versi e prose, ed. Pietro Raffaelli, Firenze, Le Monnier, 1859. Antologia de poetas líricos castellanos, ed. Marcelino Menéndez Pelayo, Buenos Aires, Esparsa Calpe, 10 vols. , 1951-1952. Bandello, Matteo, Rime, ed. Massimo Danzi, Modena, Panini, 1989. Barignano, Pietro, Rime, tesi di laurea di M. G. Vecchio [rel. Cesare Bozzetti], Università di Pavia, 1971-1972. Bembo, Pietro, Prose e rime, ed. Carlo Dionisotti, Torino, Utet, 1966, 1992. Bernardes, Diogo, Rimas várias. Flores do Lima, Manoel de Lyra, à custa de Estevão Lopez, Lisboa, 1597. Reprodução facsimilada, nota introdutória de Aníbal Pinto de Castro, Lisboa, IN-CM, 1985. Boiardo, Matteo Maria, Amorum Libri, id., Opere volgari, ed. Pier Vincenzo Mengaldo, Bari, Laterza, 1962. Boscán, Juan, Obras completas, ed. Carlos Clavería, Madrid, Cátedra, 1999. Cappello, Bernardo, Rime, tesi di laurea di E. Albini [rel. Cesare Bozzetti], Università di Pavia, 1969-1970. Castiglione, Baltasar de, El Cortesano, Universidad Nacional Autónoma de México, 1997 [«La traducción al castellano, hecha por Juan Boscán, 165 es de Barcelona (Pedro Monpezat, 1534) [...], cuya tercera edición es la que ahora utilizamos»]. Colonna, Vittoria, Rime, ed. Alan Bullock, Bari, Laterza, 1982. Da Porto, Luigi, Rime, ed. Guglielmo Gorni, Giovanna Brianti, Vicenza, Neri Pozza, 1983. Della Casa, Giovanni, Rime, ed. Roberto Fedi, Roma, Salerno, 1978. Di Costanzo, Angelo, «Una raccolta di rime di A. di Costanzo», ed. Silvia Longhi, Rinascimento, 15, 1975: 248-290. Erasmo Adagia = Adagia optimorum utriusque linguae scriptorum omnia, quaecumque ad hanc usque diem exierunt, Pauli Manutii studio atque industria [...] Cum plurimis, ac locupletissimis indicibus [...], Ursellis, Ex Oficina Cornelii Sutorii, impensis Lazari Zetzneri, 1603 [Oberursel: Cornelius Sutor], s. v. «Adrastia Nemesis. Rhamnusia Nemesis»: 642644 [primeira ed. Florentiæ, Apud Iuntas, 1575]. Ferreira, António, Poemas Lusitanos, ed. T. F. Earle, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2000, 2008. [Ficino, Marsilio] Ficinus, Marsilius, Commentaire sur le Banquet de Platon, de l’amour = Commentarium in Convivium Platonis, de amore, éd. Pierre Laurens, Paris, Les Belles Lettres, 2002. Gonzaga, Curzio, Rime, ed. Giovanna Barbero, Roma, Verso l’arte Edizioni, 1998. [Hebreu, Leão / León Hebreo], Los Diálogos de Amor de Mestre León Abarbanel [...] de nuevo traduzidos en lengua castellana [...], en Venetia, con licenza delli Superiori, 1568. [Hebreu, Leão / León Hebreo], La traduzión del Indio de los tres Diálogos de Amor de León Hebreo, hecha de Italiano en Español por Garcilasso Inga de la Vega, natural de la gran Ciudad del Cuzco, cabeça de los Reynos y Provincias del Piru, Madrid, 1590; reimpr. Buenos Aires, Austral, 1947. Herrera, Fernando de, Poesía castellana original completa, ed. Cristóbal Cuevas, Madrid, Cátedra, 1985. Magno, Celio, Rime, ed. Francesco Ersparmer, s. l., s. ed., 1990. Mena, Juan de, Tratado de Amor, id., Obra completa, Madrid, Turner, 1994. Minturno, Antonio, L’arte poetica [1564], München, Wilhelm Fink, 1970. Petrarca, Francesco, Le rime, ed. Lodovico Castelvetro, Basilea, Pietro de Sedabonis, 1582, 2 vols. Petrarca, Francesco, Le rime [1899], ed. Giosuè Carducci, Severino Ferrari, Firenze, Sansoni, 1984. 166 Petrarca, Francesco, Canzoniere, ed. Marco Santagata, Milano, Arnaldo Mondadori, 1996, 22004. Petrarca, Francesco, Canzoniere. Rerum vulgarium fragmenta, ed. Rosanna Bettarini, Torino, Einaudi, 2005, 2 vols. Petrarca, Francesco, Trioni, rime estravaganti, codice degli abbozzi, ed. Vinicio Pacca, Laura Paolino, introduzione Marco Santagata, Milano, Arnaldo Mondadori, 1996. Petrarca, Francesco, Triumphi, ed. Marco Ariani, Milano, Mursia, 1988. Resende, André Falcão de, Obras, ed. Barbara Spaggiari, Lisboa, Colibri, 2009, 2 vols. Ronsard, Pierre de, Oeuvres complètes, ed. Jean Céard, Daniel Ménager, Michel Simonin, Paris, Gallimard, 1993, 2 vols. Sannazaro, Iacopo, Arcadia, ed. Francesco Ersparmer, Milano, Mursia, 1990, 2003. Sannazaro, Jacopo, The Piscatory Eclogues of Jacopo Sannazaro, ed. Wilfred P. Mustard, Baltimore, The John Hopkins Press, 1914. Sannazaro, Iacopo, Opere volgari, ed. Alfredo Mauro, Bari, Laterza, 1961. Serafino Aquilano, R ime, ed. Mario Menghini, Bologna, Romagnoli-Dall’Acqua, 1894. Tansillo, Luigi, Poesie liriche, ed. Erasmo Pèrcopo, Tobia R. Toscano, Napoli, Liguori, 1996, 2 vols. Tasso, Bernardo, Rime, ed. Domenico Chiodo, Torino, Res, 1995, 2 vols. Tasso, Torquato, Rime, Torquato Tasso, Opere, ed. Bruno Maier, Milano, Rizzoli, 1963, 2 vols. Tebaldeo, Antonio, Rime, ed. Tania Basile, J. Jacques Marchand, Modena, Panini, 1992. Textos quinhentistas, estabelecidos e comentados por Sousa da Silveira, São Paulo, Imprensa Nacional, 1945. Tullia D’Aragona, Le rime, ed. Enrico Celani, Bologna, Commissione per i Testi di Lingua, 1968. Varchi, Benedetto, Opere, con un discorso di A. Racheli, Trieste, Sezione letterario-artistica del Lloyd austriaco, 1858-1859 [Biblioteca Classica italiana, 6]. Vega, Garcilaso de la, Obra poética y textos en prosa, ed. Bienvenido Morros, Barcelona, Crítica, 2007. 167 5. ESTudOS Almeida, Isabel, «Manierismo en Camões», in Dicionário de Luís de Camões, coord. Vítor Aguiar e Silva, Lisboa, Caminho, 2011: 542-554. Azevedo Filho, Leodegário Amarante de, Introdução à lírica de Camões, Lisboa, Ministério da Educação, 1990. Amselem, Line, «Marie-Madeleine ou la conversion de la beauté dans la poésie religieuse de la in du XVIe siècle», Images de la femme en Espagne aux XVIe et XVIIe siècles, ed. Augustin Redondo, Presses de la Sorbonne nouvelle, 1994: 63-76. André, Carlos Ascenso, Mal de ausência. O canto do exílio na lírica do humanismo português, Coimbra, Minerva, 1992. Araújo, Abel de Mendonça Machado de, «Luís de Camões, aspectos ilosóicos», Boletim da Escola de Regentes Agrícolas de Coimbra, 13, 1946. Barbosa - Dicionário = Dictionarium Lusitanicolatinum [...] Per Augustinum Barbosam Lusitanum [...], Bracharæ, Typis, & expensis Fructuosi Laurentij de Basto, 1611. Barreto, João Franco, Micrologia camoniana, prefácio Aníbal Pinto de Castro, leitura e integração do texto Luís Fernando de Carvalho Dias, Fernando F. Portugal, Lisboa, IN-CM, BN, 2008. Bataillon, Marcel, Erasme en Espagne [1937], ed. Daniel Devoto, Genève, Droz, 1991, 3 vols. Belchior, Maria de Lurdes, «As glosas do salmo 136 e a saudade portuguesa», Os homens e os livros, Lisboa, Verbo, 1971: 17-28. Belchior, Maria de Lourdes, «Nótula sobre a Lira usada por poetas portugueses dos séculos XVI e XVII», Os homens e os livros. Séculos XVI e XVII, Lisboa, Verbo, 1971: 75-86. Belchior, Maria de Lurdes, «Problemática religiosa na lírica de Camões», Revista da Faculdade de Letras de Lisboa, 1983: 85-99. Beltrami, Pietro G., La metrica italiana, Bologna, Il Mulino, 2011, 5.ª ed. Bluteau, Raphael, Vocabulario portuguez e latino, Coimbra, Collegio das Artes da Companhia de Jesu, 1712-1721, 8 vols. Lisboa Occidental, Joseph Antonio da Sylva, 1727-[1728], 2 vols. Berardinelli, Cleonice, Estudos camonianos, Rio de Janeiro, PUC, 2000, 2.ª ed. Carreira, José Nunes, Camões e o Antigo testamento, Ponta Delgada, Universidade dos Açores, 1982. 168 Collinge, N. E., The Structure of Horace’s Odes, London, Oxford University Press, 1961. Contini, Gianfranco, «Preliminari alla lingua del Petrarca», Francesco Petrarca, Canzoniere, Torino, Einaudi, 1964: vIII-xxxvIII. Corominas, Juan, J. A. Pascual, Diccionario crítico-etimológico castellano e hispánico, Madrid, Gredos, 1980-1991, 6 vols. Cremona, Virginio, «Sentimento del tempo in Orazio: due odi a confronto (I 4 e IV 7)», Aevum Antiquum, 3, 1990: 203-211. Cruz, Maria Isabel S. Ferreira da, Novos Subsídios para uma edição crítica da lírica de Camões, Porto, Centro de Estudos Humanísticos, 1971. d’Anna, Giovanni, «La recusatio nella poesia oraziana», Sileno, 5-6, 1979-1980: 209-225. Demetz, Peter, «The Elm and the Vine: Notes Toward the History of a Marriage Topos», Publications Modern Language Association, 73, 1958: 521-532. Dias, J. S. da Silva, Correntes de sentimento religioso em Portugal, Coimbra, Instituto de Estudos Filosóicos, Universidade de Coimbra, 1960, 2 vols. Dias, J. S. da Silva, Camões no Portugal de Quinhentos, Lisboa, ICLP, 1981. Diccionario de la Lengua Castellana, llamado de Autoridades, por la Real Academia Española, Madrid, 1726-1739, 6 vols. Reprodução facsimilada, 4.a reimpr., Madrid, Gredos, 1979. Dicionário da Academia das Ciências, Lisboa, Verbo, 2001, 2 vols. Fardilha, Francisco de Sá, Poesia de D. Manuel de Portugal. I. Prophana, Porto, Instituto de Cultura Portuguesa, 1991. Faria, Manuel Severim de, Discursos vários políticos, Évora, Manoel Carvalho, impressor da Universidade, 1624. Reprodução facsimilada, ed. Leonor Soares de Albergaria Vieira, João Trindade, Lisboa, IN-CM, 1999. Fedeli, Paolo - Q. Horatii Flacci Carmina liber 4, introduzione Paolo Fedeli, commento Paolo Fedeli, Irma Ciccarelli, Firenze, Le Monnier, 2008. Ferreira, Joaquim, Camões, dúvidas & acertos, Porto, Domingos Barreira, 1960. Ferreira, Vergílio, «Teria Camões lido Platão?», Biblos, 18, 1, 1942: 277-283. Filgueira Valverde, José, Camoens, Barcelona, Labor, 1958 [Camões, trad. Albina de Azevedo Maia, Coimbra, Almedina, 1975]. Fraga, Maria do Céu, Os géneros maiores na poesia lírica de Camões, Coimbra, CIEC, 2003. Herrera, Fernando de, Anotaciones a la poesía de Garcilaso [1580], ed. Inoria Pepe, José María Reyes, Madrid, Cátedra, 2001. 169 Houaiss, Antônio, Mauro de Salles Villar, Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, Rio de Janeiro, Objetiva, 2001 (em volume e em CD-ROM); 1.a reimpressão com alterações, 2004; última versão, incluindo o novo acordo ortográico, Rio de Janeiro, Objetiva, 2009 (em volume e em CD-ROM); ed. port. em 6 vols., ed. lit. Fr. Manuel de Melo Franco, Lisboa, Círculo de Leitores, 2002-2003; ed. port. em 3 vols. (ed. lit. Fr. Manuel de Melo Franco - Instituto Antônio Houaiss de Lexicograia); Lisboa, Temas e Debates, 2003. Jeanneret, Michel, Poésie et tradition biblique au XVIe siècle, Paris, José Corti, 1969. La espada y la pluma. Il mondo militare nella Lombardia spagnola cinquecentesca. Atti del Convegno Internazionale di Pavia, 16, 17, 18 ottobre 1997, Viareggio, Mauro Baroni, 2000. La Penna, Antonio, «Introduzione», Sesto Properzio, Elegie, trad. e note Gabriella Leto, Torino, Einaudi, 1970. Llosa Sanz, Álvaro, La memoria enamorada: Ecos y luces de amor neoplatónico en la primera generación de poetas renacentistas españoles (período 1526-1555), Memoria del licenciatura, Curso 1996-1997, Universidad de Deusto. Loureiro, Mário João Pereira, «A Imagem da vida Cristã de Frei Heitor Pinto no aspecto estilístico e literário», Revista de História Literária de Portugal, 2, Coimbra, 1967: 199-230. Lourenço, Eduardo, «Camões e Frei Heitor Pinto», Arquivos do Centro Cultural Português, 1981: 361-370. Lourenço, Frederico, «Alguns problemas de crítica textual nas Rimas de Camões», Diacrítica. Ciências da Literatura, 23, 3, 2009: 199-212. Machado, Diogo Barbosa, Bibliotheca lusitana, Lisboa Occidental, Antonio Isidoro da Fonseca, 1741-[1759], 4 vols. Reprodução facsimilada, Coimbra, Atlântida, 1965-1967, 4 vols. Maddison, Carol, Apollo and the Nine. A History of the Ode, Baltimore, Maryland, Johns Hopkins University Press, 1960. Marnoto, Rita, O petrarquismo português do «Cancioneiro Geral» a Camões, Lisboa, IN-CM, 2015. Marnoto, Rita, «Da Arcadia a Sôbolos rios», Sete ensaios camonianos, Coimbra, CIEC, 2007: 189-221. Martins, Mário, «Babel e Sião, de Camões, e o pseudo-Jerónimo», Brotéria, 52, Abril 1951: 24-32. 170 Matos, Maria Vitalina Leal de, O canto na poesia épica e lírica de Camões, Paris, Fundação Calouste Gulbenkian, 1981. Matos, Maria Vitalina Leal de, «Sôbolos rios: uma estética arquitectónica», Ler e escrever. Ensaios, Lisboa, IN-CM, 1987: 55-64. Matos, Maria Vitalina Leal de, A lírica de Luís de Camões, Lisboa, Caminho, 2012. Mendes, João, «O platonismo de Camões», Camões e o pensamento ilosóico do seu tempo, Lisboa, Prelo, 1979. Menéndez Pelayo, Marcelino, Historia de las ideas estéticas en España, t. I, Madrid, C.S.I.C., 1993. Mira y Gómez de Mercado, María Dolores, Actualización, estudio y edición del Diálogo sobre la necesidad de la oración vocal, obras virtuosas y santas ceremonias de Fray Juan de la Cruz (1555), Universidad de Almería, 2012, 2 vols. Moura, Vasco Graça, Camões e a divina proporção, Lisboa, ed. autor, 1985. Moura, Vasco Graça, Os penhascos e a serpente e outros ensaios camonianos, Lisboa, Quetzal, 1987. Navarro Durán, Rosa, «Entretanto / que el sol al mundo alumbre..., una hipérbole fosilizada», Bulletin Hispanique, 85, 1-2, 1983: 5-19. Olivier, Frank, «Horace et Mécène», Bulletin de la Société des Études de Lettres, [Lausanne], 14, 1939: 1-16. Osório, Jorge Alves, «As redondilhas Sobre os rios: ensaio de leitura a partir da versão do Cancioneiro de Cristóvão Borges», Arquivos do Centro Cultural Português, 16, 1981: 427-436. Pérez-Abadín Barro, Soledad, La oda en la poesía española del siglo XVI, Universidade de Santiago de Compostela, 1995. Pérez-Abadín Barro, Soledad, Resonare silvas. La tradición bucólica en la poesía del siglo XVI, Universidade de Santiago de Compostela, 2004. Pérez-Abadín Barro, Soledad, Los espacios poéticos de la tradición. Géneros y modelos en el Siglo de Oro, Málaga, anexo 93 de Analecta Malacitana, 2014. Pimpão, Álvaro J. da Costa, «Teria Camões lido Platão» [1942], Escritos diversos, Coimbra, Por Ordem da Universidade, 1972: 111-120. Race, William H., Classical Genres and English Poetry, London, New York, Sidney, Croom Helm, 1988. Ramajo Caño, Antonio, «Una fórmula inmortalizadora: ‘dum’... ‘mientras’ (‘en tanto que’)...», Dicenda. Cuadernos de Filología Hispánica, 19, 2001: 293-302. Ramajo Caño, Antonio, «Munus Mariae: Garcilaso, égloga III», Boletín de la Real Academia Española, 88, 297, 2008: 133-193. 171 Ramalho, Américo da Costa, «O Mito de Actéon em Camões» [1967-1968], Estudos camonianos, Lisboa, INIC, 1980: 45-68. Ramalho, Américo da Costa, «Camões e o Humanismo renascentista» [1984], Camões no seu tempo e no nosso, Coimbra, Almedina, 1992: 109-133. Ramalho, Américo da Costa, «Três Odes de Horácio em alguns quinhentistas Portugueses» [1965], Estudos sobre a época do Renascimento, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, JNICT, 1997: 318-332. Rebelo, Luís de Sousa, recensão crítica a Vasco Graça Moura, Camões e a divina proporção, Colóquio. Letras, 92, 1986: 107-109. Reckford, Kenneth J., «Horace and Maecenas», Transactions and Proceedings of the American Philological Association, 90, 1959: 195-208. Reichenberger, Kurt, «Der christliche Humanismus des Camões», Aufsaetze zur Portugiesische Kulturgeschichte, 4. Band, Muenster, Aschendorff, 1964: 105-137. Rodrigues, Manuel Augusto, «Sôbolos rios que vão à luz da exegese bíblica moderna», Arquivos do Centro Cultural Português, 16, 1981: 387-426. Salgado Júnior, António, «Camões e Sôbolos Rios. Ensaio de interpretação destas redondilhas», sep. Labor, 10 [1935] 1936. Saraiva, José Hermano, Vida ignorada de Camões [1978], Lisboa, Europa-América, 1980. Scantimburgo, João de, Interpretação de Camões à luz de Santo Tomás de Aquino, São Paulo, Edições Melhoramentos, 1978. Sena, Jorge de, «Babel e Sião», Trinta anos de Camões, Lisboa, Edições 70, 1980: 113-131. Silva, Vítor Aguiar e, Camões. Labirintos e fascínios, Lisboa, Cotovia, 1994. Silva, Vítor Aguiar e, A lira dourada e a tuba canora. Novos ensaios camonianos, Lisboa, Cotovia, 2008. Spaggiari, Barbara, «Nel quarto centenario della morte di Luís de Camões. L’Ode IX. Per la conoscenza della lirica camoniana», Annali della Scuola Normale Superiore di Pisa, s. 3, vol. 10, 3, 1980: 1003-1064. Spaggiari, Barbara, «Errore d’autore, lectio dificilior ed emendamento congetturale», in Estudos universitários de Língua e Literatura. Homenagem ao Prof. Dr. Leodegário A. de Azevedo Filho, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1993: 501-513. Spaggiari, Barbara, «L’enjambement di Bernardo Tasso», Studi di Filologia Italiana, 52, 1994: 111-139. Spaggiari, Barbara, Camões e o Outono do Renascimento, Coimbra, CIEC, 2011. 172 Spina, Segismundo, «Variações de um aposentado», in Estudos universitários de língua e literatura, Homenagem ao Prof. Dr. Leodegário A. de Azevedo Filho, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1993: 385-389. Stegagno Picchio, Luciana, «Babel et Sion: inspiration thématique et inspiration formelle dans la glose camonienne du psaume Super lumina Babylonis» [ed. it. 1980], La méthode philologique, 1. La Poésie, avec une préface de Roman Jackobson, Paris, Fundação Calouste Gulbenkian, 1982: 183-224. Tracy, H. L., «Thought-Sequence in the Ode», in Studies in Honour of Gilbert Norwood. Phoenix, Sup. vol. 1, Toronto, 1952: 203-213. Weber, Edith, La musique mesurée à l’antique Allemagne, Strasbourg, Université de Strasbourg, 1975, 2 vols. 173 Ensaios Achegas ao comentário da ode Pode um desejo imenso Maurizio Perugi 1. Esta ode é um dos poemas de Camões em que a inluência do petrarquismo italiano é mais sensível. Trata-se, em primeiro lugar, de um poema «di lontananza», ou seja, «de apartamento», «com a acepção de ausência, de separação, condição indispensável para transcendermos a Beleza individual» (Spina 1993: 387). A partir da terceira estrofe, o autor deixa claro que a sua contemplação se tem realizado de tão longe (v. 17), com os olhos ausentes (v. 22), durante um longo apartamento (v. 75). Entre as canções «di lontananza» que Petrarca compôs, a composição número 37 do Cancioneiro, Sí è debile il ilo a cui s’attene, apresenta o equivalente de uma das imagens mais signiicativas do nosso texto: che quando io mi ritrovo dal bel viso cotanto esser diviso, col desio non possendo mover l’ali, poco m’avanza del conforto usato (Canz. 37, 28-31) ‘quando me encontro tão longe de aquele rosto, como não posso voar a par com o meu desejo, pouco me resta daquele contentamento que a sua vista me costumava proporcionar’1. Neste caso não é, contudo, Petrarca o modelo mais próximo da ode camoniana, mas uma canção de Bernardo Tasso (Rime II 27) cujo incipit é Almo mio sol, che col bel crine aurato. Reproduzimos as quatro primeiras estrofes, apresentando uma tradução na qual não tivemos receio de recorrer, sempre que possível, ao léxico do Camões lírico, de forma a mostrar a proximidade que existe entre as duas linguagens poéticas: 1 É de notar que na última estrofe Petrarca acena a «gli atti suoi soavemente alteri, / e i dolci sdegni alteramente humili» (vv. 100-101). 177 COMENTÁRIO A CAMÕES, vOl . 3 I 1 5 10 Almo mio sol, che col bel crine aurato spargete il ciel di luce eterna e viva, e fate Cinzia chiara, e l’altre stelle; splendor del mondo, da cui sol deriva quanto fa parer bel l’umano stato, quanto men bel le cose adorne e belle; queste certo son quelle bellezze cui mirar mai non si sazia occhio o pensiero uman, ma più s’invoglia, tal che di voglia in voglia trasportato dal bel che in voi si spazia, a l’ombra delle vostre altere ciglia contempla Amor, che vosco si consiglia. ‘Almo meu sol, que com os cabelos d’ouro regais o céu de luz eterna e viva, fazendo clara a lua, claras as outras estrelas; resplandor do mundo, de onde deriva o que faz parecer belo o humano estado, e menos belas as coisas ornadas e belas; essas, com certeza, são as belezas que quem vos vê ou pensa em vós nunca se farta de mirar, pelo contrário, estende a própria vontade, e arrebatado pela beleza que de vós amplamente irradia, à sombra das vossas celhas alteras contempla Amor, que convosco se demora’. II 15 20 25 Non quello che dal vulgo è ’n pregio avuto, nato di van desio, di vana spene, onde vengon le lagrime e i tormenti, ma ’l nobile, ch’al certo e sommo bene drizza i nostri pensier, mal conosciuto forse dal mondo e da le sciocche genti, che co’ be’ lumi spenti de la ragion, un desir folle e strano, che scorge l’alme in sempiterno errore, hanno chiamato Amore. O cieche menti, o stolto ingegno umano, il vero amor nel viso è di costei, né può produr effetti amari e rei. ‘Não aquele amor apreciado pelo vulgo, e nascido de vão desejo e de vã esperança, do qual só vêm lágrimas e tormentos 2 ; mas o nobre amor, que dirige os pensamentos ao certo e sumo bem: o mundo e as néscias gentes, tendo apagada a bela luz da razão3, com certeza mal o conhecem, e em contrapartida, deram o nome de Amor a um desejo louco e estranho que conduz as almas ao error eterno. Ó mentes cegas, ó estulto engenho humano, o verdadeiro amor está no rosto desta, nem pode ter efeitos maus ou amargos’. 2 Lê-se na versão castelhana do tratado de Castiglione: «y de aquí proceden las lágrimas, los sospiros, las cuitas, y los tormentos de los enamorados» (Castiglione 1997: 502). 3« el que cree gozar la hermosura poseyendo el cuerpo donde ella mora, recibe engaño, y es movido no de verdadero conocimiento por eleción de razón, sino por opinión falsa por el apetito del sentido» (Castiglione 1997: 483). 178 AChEgAS AO COMENTÁRIO dA OdE Pode um deSejo imenSo III 30 35 Ma d’un gentil desio l’anime iniamma, ch’aprendo gli occhi in sì nobile obietto vaghe divengon de la sua beltate, e sprezzando ogni gioia ogni diletto, che venga da men bella e chiara iamma, volgonsi alle sue luci alme e beate; e del fango purgate, che porta seco il lor terreno manto, col foco ch’esce dal suo ardente lume, come da puro iume surgon lucide e chiare: e di quel santo desir accese, quel ch’ora gli è tolto, veggion le maraviglie del bel volto. ‘Esse amor inlama as almas de um desejo gentil, desde que elas abrem os olhos 4 a tão nobre objecto e se enamoram da sua beleza; desprezando qualquer deleite ou contentamento vindo de flama menos bela e clara, voltam-se para as suas luzes almas e beatas; e, uma vez apuradas das nódoas que o terreno manto leva consigo, graças ao fogo que emana do seu ardente lume, quase saindo de um puro rio surgem lúcidas e claras; um desejo santo acende-as, que lhes permite ver naquele vulto as fermosuras que agora nem podem perceber’.5 IV 40 45 50 E remirato ch’hanno ogni vaghezza a parte a parte del celeste viso, che grazia et onestà regge e governa, restan con l’occhio, e col pensiero afiso ne la maravigliosa alta bellezza, con gioia tal che non è chi ’l discerna; indi volti a l’interna e più rara beltate ergon la mente, e destando nel cor più be’ pensieri, apron quegli occhi veri del divin intelletto ne l’ardente e chiara anima sua, dove si mira quel ben col cui valore al ciel s’aspira. ‘Após terem mirado cada uma das excelências do celeste rosto, em que moram a graça e a honestidade, permanecem com os olhos e o pensamento na sua maravilhosa alta beleza, e tal é a felicidade que sentem que ninguém consegue entendê-la; logo erguem a mente à interna e mais rara beleza, que suscita no coração pensamentos mais belos, e abrem os olhos verdadeiros, que o divino intelecto alumia, na sua ardente e clara alma, na qual se mira aquele bem com que se aspira ao céu’. Procuramos fazer um resumo do texto italiano. Através da beleza alta e severa de Ginevra Malatesta, mulher dedicatária desta canção (e de todo o canzoniere do autor), o Amor que Tasso airma contemplar não é aquele que o vulgo aprecia («Non quello che dal vulgo è ’n pregio avuto», v. 14), mas o que coincide com o bem supremo. A beleza da qual a alma ica enamorada, e que 4« Por eso el alma apartada de vicios [...] abre aquellos ojos que todos tenemos y poco los usamos, y vee en sí misma un rayo de aquella luz que es la verdadera imagen de la hermosura angélica» (Castiglione 1997: 505). 5« adonde el alma, encendida en el santísimo fuego por el verdadero amor divino [...] sin velo o nube alguna vee el ancho piélago de la pura hermosura divina» (Castiglione 1997: 506). 179 COMENTÁRIO A CAMÕES, vOl . 3 leva o olhar a concentrar-se naquele nobre vulto, manifesta-se sob a forma de uma lama luminosa que, irradiando dos olhos, consegue puriicar as almas das nódoas induzidas através do invólucro corpóreo: «e dal fango purgate, / che porta seco il lor terreno manto, / col foco ch’esce dal suo ardente lume» (vv. 33-34). Assim, as almas tornam-se lúcidas e claras, como se tivessem saído das águas puras de um rio6. Um santo desejo inlama-as e em virtude disso podem ver aquilo que agora não vêem, isto é, as maravilhas daquele vulto celeste. O poeta tem então ocasião para apresentar em detalhe o próprio elenco das belezas da mulher: «grazia» (v. 42; a confrontar com a graça pura em Camões, v. 36), «onestà» (v. 42; a confrontar com o honesto siso em Camões, v. 50), «alta bellezza» (v. 44; a confrontar com a luz alta e severa / que é raio de divina fermosura em Camões, vv. 37-38). Seguem-se os traços da beleza interior. Alumiado pelo intelecto divino, o olhar é capaz de admirar a própria alma da mulher, em todo o seu ardor e claridade, nela sendo possível contemplar a beatitude celeste. Posto que a proximidade e por vezes a própria coincidência do assunto tratado não se considerem como indício suiciente para demonstrar a relação entre os dois textos, com certeza a expressão terreno manto (v. 4) constitui uma prova decisiva. Hápax nas concordâncias camonianas, por ser a única vez em que o sintagma é usado, a partir de Sannazaro7 passa a fazer parte integrante do vocabulário neoplatónico manejado pelos petrarquistas italianos8, sendo atestado preferivelmente em posição de rima9, a par com 6 Note-se a imagem dantesca: no canto XXVII do Purgatorio (vv. 10 ss.), Dante tem que passar através de uma muralha de fogo, com o objectivo de puriicar a própria alma dos pecados de luxúria. 7 Sannazaro 1961: 89, 7. 8 O termo manto, no sentido de corpo, véu mortal, já se encontra em Petrarca, Canz. 313, 8. Cf. Sentences de Sextius, texto de inspiração pitagórica, redigido na época de Augusto: «Vestimentum esse putato animae corpus tuum, mundum igitur id conserva» (1843: 235; ‘considera que o teu corpo é a roupa que veste a alma, e por isso hás-de preservá-lo puro’); «Incontaminatum custode corpus tuum, tanquam si indumentum acceperis a Deo, et sicut vestimentum corporis immaculatum servare stude» (257; ‘o teu corpo hás-de-o preservar isento de qualquer contaminação, tal como uma indumentária recebida de Deus: essa vestimenta corporal, esforça-te por a manter imaculada’). 9 Cf. Cod. Isold. «O alma eterna sotto un terren manto» (5, 12; cf. 2, 6 «mortal manto»); Curzio Gonzaga, «sì ne incolpate il mio terreno manto» (Rime, Pt. 2, 18b, 11); Gaspara Stampa, «dopo il dipor del terren vostro manto» (Rime 2 286, 13) e «anima il frale suo terreno manto» (ib., T. Bembo 1 6, 4); Erasmo di Valvasone, «dal terreno manto / partendo» (Rime 92, 3-4); Benedetto Varchi, «fuor del terren manto» (Rime 1 11, 4). 180 AChEgAS AO COMENTÁRIO dA OdE Pode um deSejo imenSo as variantes: «terrestre manto»10 ~ «mortal manto»11 ~ «corporeo manto»12 ~ «fragil manto»13. Contudo, somente na canção de Bernardo Tasso acima mencionada a expressão se encontra associada ao assunto especíico, desenvolvido tanto em Tasso, como em Camões. Em Torquato, o ilho de Bernardo Tasso, terreno manto encontra-se num quarteto que virá a ser incluído entre os arquétipos do soneto Alma minha gentil, que te partiste (Rimas: 156): «Tu che lieta anzi tempo al ciel salisti, / alma beata, e ’l tuo terreno manto14 / lasciando in terra hai me lasciato in pianto / e resi i giorni miei dogliosi e tristi» (Rime 522, 1-4 )15. É de notar, aliás, que a fórmula terreno manto já tinha sido divulgada, anteriormente a Torquato Tasso, por autores que na actualidade são pouco conhecidos, 10 Giovan Giorgio Trissino, «così depose il suo terrestre manto» (Rime 75, 47); Domenico Venier, «avien che ’l copra / celeste velo et quei terrestre manto» (Rime 2, 40, 12-13); e ainda Antonio Cornazano, Canz. 34, 3 e Son. 56, 1. Muito frequente nas Rime de Curzio Gonzaga. 11 Filenio Gallo, «de la mia dea rinchiusa in mortal manto» (Rime, Pt. 1b, 115, 2); Giovanni Guidiccioni, «scosso il mortal manto» (Rime 28, 13); Benedetto Varchi, «poi che lasciato in terra il tuo bel manto / mortal» (Rime 1 344, 3-4). 12 Giorgio Gradenigo, «Lasciato in terra il suo corporeo manto» (Rime e lettere 32b, 1 [Pietro Gradenigo]); Giovan Battista Guarini, «chi mira il freddo suo corporeo manto» (Rime Son. 84, 5; ver Son. 103, 2); Giovan Battista Pigna, «spoglia il mio spirto del corporeo manto» (Il ben divino 109, 7), «incendio tanto, / ch’arde e consuma il mio corporeo manto» (45, 6-7); Bernardo Tasso, «Sciolto et ignudo del corporeo manto» (Amori 1 119, 2; cf. Torquato Tasso, «l’alma in ciel vola e lascia ignudo il manto», Rime 1327, 6). Cf. ainda Veronica Franco, Terze rime 4, 25; M. Girolamo Molino, Rime 236, 10; Francesco Maria Molza, Ninfa 15; Ascanio Pignatelli, Rime, App. 13, 2. 13 Giovanni Della Casa, «Quando in questo caduco manto e frale» (Rime 50, 9); Torquato Tasso, «e si dissolve questo fragil manto» (Rime 1162, 7). Cf. Tebaldeo, «per rimembranza del terrestre manto» (Rime 76, 6); «libera e disciolta / dal fral, caduco e corruptibil manto» (158, 3-4); «che, mentre avolto fui nel terren manto» (284, 46). 14 Cf. «Quasi celeste diva alzata a volo / parti, fuggendo il tuo caduco manto, / anima bella, e ’n sempiterno pianto / qui lasci di mortali aflitto stuolo» (ib. 660, 1-4). 15 Cf. vv. 12-14 «e se di questo far forza non hanno / i prieghi miei, dal ciel m’impetra almeno / non mi tardi a venir l’ultimo giorno». 181 COMENTÁRIO A CAMÕES, vOl . 3 como Giovan Battista Schiafenato (Alma gentil che del terreno manto)16 ou Ludovico Domenichi (Alma, che per vestir terreno manto)17. 2. A ode de Camões pressupõe, portanto, a distinção, estabelecida por Bernardo Tasso, entre um desejo vão («van desio», v. 15) e um desejo «gentil» (v. 27). Do primeiro nasce o Amor contrário à razão e privilegiado pelo vulgo, do segundo o Amor nobre («nobile», vv. 17, 28) que dirige a mente para o sumo bem divino. Aquilo que Camões retoma na íntegra do poema de Tasso diz respeito à operação através da qual esse amor nobre, que mora no rosto da mulher, inlama as almas com um desejo gentil e, puriicando-as das nódoas do terreno manto (Tasso, v. 34; Camões, v. 4), as acende de um desejo que por isso se torna «santo» (Tasso, v. 37). Camões, além disso, desenvolve e amplia a distinção entre a «maravigliosa alta bellezza» (Tasso, v. 44) externa, feita de «grazia e onestà» (v. 42), e uma «interna / e più rara beltate» (vv. 46-47), só visível a partir do momento em que os olhos, alumiados pelo «divino intelletto» (v. 50), se tornam capazes de contemplar a «ardente / e chiara anima sua» (vv. 50-51). Comparativamente, encontram-se ausentes da canção de Bernardo Tasso tanto a situação de apartamento, como também a relação exclusiva com a mulher objecto de canto. Tasso inclui-se sempre entre todas as outras almas avivadas por um «gentil desio» (v. 27). Finalmente, note-se que Tasso está muito mais próximo do seu modelo teórico, Baldassar Castiglione18. A ode de Camões assenta em amplas iguras de repetição (para as quais o texto de Tasso apenas oferece algumas sugestões)19: as estrofes 1 a 16 Rime 1534, 137. Para Schiafenato ver o verbete redigido por Massimo Danzi em Poeti del Cinquecento 2001: 444-446, bem como id. 2005: 218-219. 17 Giolito 1564: 372. 18 Além das correspondências acima indicadas, basta comparar os vv. 53-54, «Scorgono allor che quanto fuora appare / è solo ombra di bene ombra di bello», com Castiglione, «si las hermosuras que a cada paso con estos nuestros lacos y cargados ojos en los corruptibles cuerpos (las cuales no son sino sueños y sombras de aquella otra verdadera hermosura) nos parecen tan hermosas que muchas veces nos abrasan el alma» (1997: 507). 19 Ver a oposição entre «Non quello che dal vulgo è ’n pregio avuto» (Tasso, v. 15) e «Ma ’l nobile» (v. 17), «Ma d’un gentil desio» (v. 27), bem como a sucessão 182 AChEgAS AO COMENTÁRIO dA OdE Pode um deSejo imenSo 3 encontram-se ligadas pela palavra-chave desejo, e com a III estrofe inicia-se uma anáfora, com não vejo e nunca vêm do verbo «ver», que se prolonga até à VIII estrofe, mediante a repetição da terceira pessoa do plural, vêm (quatro vezes não vêm, três vezes vêm), sendo retomada nas estrofes 10 (a vista o vê e nunca via) e 11 ( pode ver, eu a vi, a vejo). Finalmente, as estrofes 11 e 12 são mais uma vez ligadas pela palavra desejo, ao passo que a última estrofe, com o seu conteúdo polémico, permanece de certa forma isolada. Essa técnica estende-se ao plano lexical, como o mostra a insistência em quatro palavras-chave, todas sugeridas pelos manuais neoplatónicos então em voga, com o objectivo de pôr em relevo quatro prerrogativas. A divina fermosura (vv. 16 e 38): mortais fermosuras (v. 28), fermosura (v. 63), à fermosura vossa (v. 74). A alteza: em tanta alteza (v. 5), a lama que se acende / alto (vv. 8-9), a luz alta e severa (v. 37), os altos resplandores (v. 51). A luminosidade: claro dia (v. 11), claro exemplo (v. 15), claros olhos belos (v. 31), mais claro lume (v. 91). A excelência: cores excelentes (v. 24), do rosto as excelências (v. 33). Em particular, a divina fermosura constitui, como já vimos, o próprio alvo da contemplação. «Los platónicos coinciden en señalar que “el amado se hace y es considerado divino en la mente del amante” [Hebreo III, 5 635], y la causa de ello es la participación de su hermosura en el origen divino: “es aquel fulgor de la divinidad, que resplandece en las cosas hermosas, lo que obliga a los hombres a temer, maravillarse y venerar a los amados como a una imagen de Dios” [De Amore II vi]» (Llosa Sanz 1996-1997, § 2). Com efeito, todo o processo é cuidadosamente descrito por Leão Hebreu: Siendo nuestra alma imagen pintada de la summa belleza, y deseando naturalmente tornar a lo propio divino [...], cuando ve una persona ansí bella de belleza conveniente a si misma, conoce en ella, y por ella la belleza divina; por que tanbién aquella persona es imagen de la divina belleza, y la imagen de la persona amada, en la mente del amante, abiena con su belleza, aquella escondido [sic] belleza divina, que es la misma alma, y la dá autualidad del modo que se la daría la misma belleza divina exemplar, por donde ella se haze divina, y cronológica entre «E remirato ch’hanno ogni vaghezza / a parte a parte del celeste viso» (vv. 40-41) e «Scorgono allor che quanto fuora appare / è solo ombra di bene ombra di bello» (vv. 53-54). 183 COMENTÁRIO A CAMÕES, vOl . 3 criece y haze maior en ella su belleza, quanto es maior la divina que la umana, y por esto su amor viene tanto intenso, ardiente, y eicaz, que roba los sentido [sic], la fantesí, y toda la mente, como haría la misma belleza divina, quando retirarse a sí en contenplación, la alma umana y tanto aquella imagen de la persona amada se adora en la mente del amante por divina, quanto su belleza de la alma y del cuerpo es más excelente, y consemeiante a la belleza divina. (1568: 114v) Citamos da primeira tradução para espanhol do hebreu sefardita Guedeliah ibn Yahia, à qual se seguiram aquela de Carlos Montesa (1584) e inalmente a de Garcilaso de la Vega el Inca (1590)20. A «hermosura del alma» é assim deinida por Castiglione21: «A toda cosa, en in, da grandísimo ornamento esta alta y divina hermosura [...], en especial en los humanos, de la hermosura de los cuales la más cercana causa pienso yo que sea la hermosura del alma, la cual como participante de aquella verdadera hermosura divina, hace resplandeciente y hermoso todo lo que toca» (1997: 492). A expressão passa, naturalmente, para a linguagem mística, por exemplo em frei Juan de la Cruz: «mas guarda que oyendo decir hermosura divina no te venga imaginación de alguna belleza corporal, oh mi amado, mas entiende, si pudieres, una claridad ajena de todo cuerpo [...]. Por qué causa cubrían sus rostros los seraines sino de espanto del resplandor de aquella hermosura y magniicencia y gloria que reverberaba sus ojos?» (Mira y Gómez de Mercado 2012: II 801). 3. Na última parte da ode, da X à XIII estrofes, à contemplação neoplatónica da divina fermosura substitui-se a relexão puramente literária sobre 20 Os Dialoghi de Leão Hebreu (Manuppella 1983; Giovannozzi 2008) foram publicados póstumos em 1535 por Antonio Blado d’Assola em Roma. Mariano Lenzi, na sua dedicatória a Aurelia Petrucci, atribui-os a «Maestro Leone». Alguns dias depois, saiu outra edição, organizada por Leonardo Marso d’Avezzano, com o título De amore humano et divino (Roma, Benedetto Giunti), que apenas contém o II Diálogo. Houve portanto duas edições, uma e outra incompletas (falta o IV Diálogo, a que Leonardo Marso alude), embora em proporções diferentes (Pescatori 2008: 496, 500). 21 Lembre-se que Castiglione menciona em três cartas os Dialoghi de Leão Hebreu (Pescatori 2008: 501, nota 3; Novoa 2009: 50). 184 AChEgAS AO COMENTÁRIO dA OdE Pode um deSejo imenSo a possibilidade de descrever adequadamente o objecto de contemplação, que Camões acaba por designar mediante a locução, de origem petrarquiana, Aquele não sei quê (v. 64). Nos versos «Um não sei quê suave, respirando, / causaria um admirado e novo espanto» (vv. 31-32), da primeira e da terceira versões da canção Manda-me Amor que cante docemente, bem como nos versos «Que dias há que n’alma me tem posto / um não sei quê, que nasce não sei onde, / vem não sei como, e dói não sei por quê», do soneto Busque Amor novas artes, novo engenho (Rimas: 118)22, a mesma fórmula designa o enamoramento. No caso da ode Pode um desejo imenso, por se encontrar no im do catálogo que ocupa as duas estrofes precedentes, o emprego semântico é mais próximo daquele que se lê em Castiglione: Muchas otras cosas, respondió el conde, sin la hermosura, nos enamoran hartas veces, como las buenas costumbres, el saber y el hablar, los ademanes y aquel no sé qué del gesto y mil otras cosas, las cuales quizá por alguna vida las podríamos también llamar hermosuras. (1997: 128) Na esteira de Castiglione, o seu tradutor Juan Boscán desenvolve uma enumeração semelhante no Museo de Leandro, «El andar, el mirar, el estar queda, / andavan en tal son, que descubrian / un cierto no sé qué, tan admirable» (Boscán 1999: 249-250), e na canção Claros y frescos rios escreve, «Tengo en el alma puesto / su gesto tan hermoso / y aquel saber estar adondequiera: / el recoger honesto, / el alegre reposo, / el no sé qué de no sé qué manera / [...] / y aquel grave mirar dissimulando» (153). Camões, num outro passo da citada canção, encara o problema de dizer o indizível mediante o recurso a um tópico tradicional: «em lugar do sentido, que perdia, / não sei quem me escrevia / dentro n’alma, com as letras da memória, / o mais deste processo»23. Também neste caso faz votos que a própria alma seja capaz, graças à mulher, de usar as partes da 22 Faria e Sousa sublinha «la gala con que el P. aqui juntó con gran ciencia de Amor este no saber, repetido quatro vezes, cada una por diferente modo» (Rimas varias I 1685, 1: 45). 23 Primeira e segunda versão (vv. 83-86) da canção Manda-me Amor que cante docemente (Lírica de Camões 3 I 1995: 271, 274). Sobre este assunto, ver Perugi 2006. 185 COMENTÁRIO A CAMÕES, vOl . 3 divina. Contudo, a imagem de escrita automática seria aqui por demais genérica, uma vez que o autor pretende encarar o problema sob o ponto de vista do código linguístico. Concretamente, Camões denuncia os limites de um certo ilão do petrarquismo, só capaz de pintar mortais fermosuras (v. 28). Para cantar aquilo que a toscana poesia nunca via (v. 70), e mais em geral, aquela imagem / que as gentes nunca vêm (v. 20), é preciso levantar não visto canto (v. 81), que esteja à altura de competir com os mais prestigiados autores modernos, tais como Garcilaso de la Vega e Torquato Tasso. O anúncio deste programa, que diicilmente aludirá ao canto épico, assenta na emblemática rima em (L)aura (restaura / Laura, vv. 69-70), que Camões, no caso em apreço, retoma provavelmente de um soneto de Lodovico Dolce, resposta «per le rime» a um outro de Benedetto Varchi 24. Reproduzo aqui ambos os sonetos: Benedetto Varchi Risposta di Lodovico Dolce La bella donna, che tra Bice e Laura non men forse di lor pregiata e colta, s’asside in ciel dal mortal velo sciolta, e ’l paradiso tutto ingemma e innaura; Quei che cantò molti anni e pianse Laura a par di cui questa altra ornata e colta, sen va fenice, e dal mortale sciolta nel divin Sol le sue bellezze innaura; di sì folti sospir condensa l’aura veggendo il suo fedel, a Dio rivolta, che con ella pietoso i preghi ascolta, e ’l pianto che già mai non si restaura. in voi l’eletto stil, ch’addolcì l’aura, dal cielo infuse e di lassuso ascolta la lingua vostra all’armonia rivolta, che ’l già spento valor tra noi restaura; Del pio fallir di lui fra lieta e trista chiede perdon tacendo, e parte vede ricco seggio adornar più d’altro chiaro; poi fermi gl’occhi in quella eterna vista del gran Bembo ode il pianto e ’l volto vede, non men di lui quaggiù pregiato e chiaro. or confortate lui, che qui sé attrista; e turba in cielo altrui, ch’a tanto amaro solo il vostro alto stil, Dolce, richiede. E dice a voi: Quel caro, che sé attrista, fedel conforta, ch’a sì lungo amaro mio stil, che vive in te solo richiede. (Varchi 1557: 45) 24 Benedetto Varchi (1503-1565) reuniu um grande número de sonetos, tanto próprios como de correspondentes, publicando-os em duas partes em 1555 e 1557; ver Tanturli 2004. 186 AChEgAS AO COMENTÁRIO dA OdE Pode um deSejo imenSo Como o soneto de Dolce deixa claro, a perífrase camoniana «toda a toscana poesia / que mais Febo restaura» (vv. 68-69) alude, em primeiro lugar, a Pietro Bembo, embora o verbo «restaura» seja aqui referido a Varchi, e no incipit de Varchi encontra-se precisamente o par «Bice e Laura». Abstracção feita da rima rara em -aura, é Bernardo Cappello quem melhor ilustra a relação estabelecida entre Febo, Laura, Petrarca e Bembo. Pietro Bembo, ouvidor privilegiado de Febo, divindade da poesia, é o único que pode ser comparado, no domínio da poesia erótica, ao «grande Tosco», ou seja, a Petrarca: Tu, sacro Bembo, che sovente ascolti Febo, a cui nulla men, ch’a te ’l suo canto, piacciano i versi tuoi leggiadri e colti: Bembo, che solo porti il pregio e ’l vanto col degno Tosco che di Laura scrisse25, di quanti per amor sparser mai pianto. (Rime 101, 16-21) ‘Sagrado é o teu nome, Bembo, que costumas ouvir o canto de Febo; e como tu gostas do seu canto, assim ele gosta dos teus versos elegantes e cultos. De entre todos os cantores de amor, tu somente, ó Bembo, és digno de ser comparado àquele poeta toscano que celebrou Laura’. Com efeito, nenhum poeta, excepção feita a Petrarca, foi, é ou será igualável a Bembo26. Noutro soneto, composto em morte de Bembo, Bernardo Cappello enumera por ordem cronológica as três cidades privilegiadas por Febo por terem dado origem aos três maiores poetas, a saber, Smirne (Homero), Mântua (Virgílio) e Florença (Petrarca), às quais cabe então acrescentar Veneza, pátria de Bembo, herdeiro das três línguas mais prestigiosas (grego, latim, italiano): «Febo, ch’al Mincio, e poscia a l’Arno diede / l’onor, ch’a Smirna avea donato pria, / te fece per costui, Venezia mia, / de le tre lingue più gradite erede» (Rime 205, 5-8). 25 Cf. «Febo e le Muse, a cui punto non sete / men caro del gran Tosco» (Rime 133, 12-13; Giovanni Della Casa, a quem o soneto é dedicado, não é menos querido de Febo e das Musas, do que o grande Tosco). 26 «al sacro Bembo, al qual, fuor che ’l gran Tosco / che fece Laura eterna, egual giamai / non fu, non è, né più ia per inanzi» (Rime 182, 9-11). 187 COMENTÁRIO A CAMÕES, vOl . 3 4. A chamada rima interna (ou, para usar do termo italiano, rimalmezzo) é colocada não em im de verso, como normalmente é o caso da rima, mas antes numa área mais ou menos central do verso, coincidindo nomeadamente com a cesura. Na poesia ‘ilustre’, a partir dos poetas sicilianos, o tipo mais frequente de rima interna é usado em decassílabo e geralmente colocado no inal de um primeiro hemistíquio que pode ser quer tetrassílabo, quer hexassílabo27. No Cancioneiro de Petrarca, composto de 366 composições, entre as quais 31 canções e 7 baladas, a rima interna apenas se encontra em 6 canções e numa balada. Excepção feita à canção 29 e à balada 149, que representam dois casos particulares28, restam cinco exemplos, dois dos quais apenas implicam o primeiro verso do comiato29. Em Petrarca a rima interna constitui, pois, devido à sua raridade, um traço métrico marcante30, um daqueles procedimentos que, por isso mesmo, os petrarquistas se esforçavam por reproduzir. Procurando deinir a atitude de Camões para com os cinco exemplos imitáveis que se encontram em Petrarca, limitar-nos-emos a examinar o ‘corpus mínimo’ de canções, odes e elegias, editado por Azevedo Filho, atendendo que as duas últimas formas métricas são alheias à recolha petrarquiana. Na canção 135 de Petrarca, Qual più diversa e nova, cada estrofe é composta por 15 versos, o último dos quais apresenta regularmente uma rima interna, deste modo: «arde, et more, et riprende i nervi suoi, / et vive poi - con la fenice a prova» (vv. 14-15; a rima interna é assinalada por hífen). A mesma estrutura caracteriza a oração à Virgem, poema que fecha o Cancioneiro: «soccorri a la mia guerra, / bench’i’ sia terra, - et tu del ciel regina» (vv. 12-13). Camões retoma essa estrutura no inal de cada uma das 5 estrofes que compõem aquela que na edição de Leodegário A. Azevedo Filho é a IV canção, Já a roxa menhã (e) clara (Lírica de Camões 3 I 1995: 187 27 Informação desenvolvida em Menichetti 1993: 540-543. A primeira, com duas rimas internas em cada estrofe, é a célebre canção a que Emmanuel Pereira Filho (1974) chamou provençalesca, pontualmente imitada por Camões em Tão suave, tão fresca e tão fermosa (Rimas: 262-263). Na segunda a rima interna só aparece na ripresa, isto é, no verso inicial. 29 Cf. «Canzon, chi tua ragion chiamasse obscura, / di’: - Non ò cura, - perché tosto spero» (119, 106-107); «girmen con ella - in sul carro de Helia» (206, 59). 30 Não se esqueça que o derradeiro verso do próprio Cancioneiro apresenta rima interna: «homo et verace Dio, / ch’accolga ’l mïo - spirto ultimo in pace» (366, 136-137). 28 188 AChEgAS AO COMENTÁRIO dA OdE Pode um deSejo imenSo ss.). Como em Petrarca, a rima interna remata o primeiro hemistíquio de quatro sílabas: «com ũa suave e doce melodia / o louro dia - estão manifestando». É também este o caso de cada uma das treze estrofes da ode que estamos a comentar, cujo último par de versos é composto por um quebrado e um decassílabo: com olhos imortais / que faz que leia mais - do que vê escrito (vv. 6-7). Uma canção num total de nove, uma ode num total de seis: quanto à presença da rima interna dentro do ‘corpus mínimo’, Camões parece ter imitado a sobriedade petrarquiana. Isto não justiica, porém, o facto de nenhum dos editores e comentadores ter até aqui assinalado o hífen, quer no plano tipográico, quer na análise métrica. Porém, o fenómeno é importante, e antes de mais para a ixação do texto crítico. No primeiro verso do comiato dessa canção que é a IV para Azevedo Filho (v. 75), o facto de o texto de Costa Pimpão (Rimas: 209) relectir a lição originária (sem a marcar tipograicamente, como aliás é seu costume) tem que ser atribuído ao acaso, pois a segunda edição das Rimas (1598) é o único dos testemunhos a preservar, ou a reconstruir, a rima interna. A prova de não ser tida em qualquer consideração pelos editores é o texto crítico de Azevedo Filho que, iel ao seu manuscrito de base, o Cancioneiro de Luís Franco, não se dá conta de que nele a rima interna é deslocada para a oitava sílaba, enquanto em todos os demais casos cai sobre a quarta (Lírica de Camões 3 I 1995: 189; cf. Perugi 2007). A rima interna é também um dado importante do ponto de vista cultural, e não apenas para a leitura ou apreciação do poema. Para além da métrica dita ‘ilustre’, vejamos na edição de Costa Pimpão um passo da écloga Que grandes variedades vão fazendo, que foi considerada autêntica por Azevedo Filho (Lírica de Camões 5 I 2001: 53), mas sem que este estudioso tivesse editado o seu texto. Trata-se de uma écloga polimétrica, e a certo momento (v. 157), depois de Almeno ter pronunciado uma sequência de decassílabos e quebrados, Agrário muda de metro: Fermosa manhã clara e deleitosa, que como fresca rosa na verdura, te mostras bela e pura, marchetando as Ninfas, espalhando seus cabelos no verdes montes belos; tu só fazes, quando a sombra desfazes, triste e escura, fermosa a espessura e fresca a fonte, 189 COMENTÁRIO A CAMÕES, vOl . 3 fermoso o alto monte e o rochedo, fermoso o arvoredo e deleitoso, enim, tudo fermoso. (Rimas: 323) E assim continua sucessivamente por mais de duas páginas. Parece, à primeira vista, uma sequência de versos soltos, antes de o leitor se aperceber que a palavra inal de cada verso rima, no verso seguinte, com outra acentuada na sexta sílaba, antes da cesura. Não é, repetimos, apenas um traço métrico a ser graicamente assinalado. Na II égloga de Garcilaso, igualmente polimétrica31, dá-se uma mudança de metro análoga na resposta de Salicio a Albanio, redigida em rimalmezzo: Albanio, si tu mal comunicaras con otro que pensaras - que tu pena juzgaba como ajena, - o qu’este fuego nunca probó, ni el fuego - peligroso de que tú estás quejoso, - yo conieso que fuera bueno aqueso - que ora haces (Vega 2007: 158) A intervenção estende-se ao longo de um diálogo que vai até ao v. 385. A rima interna caracteriza ainda, nesta écloga, o monólogo de Camila (ib.:177-179, vv. 720-765) e o diálogo de Albanio com Nemoroso e Salicio (ib.:185-186, vv. 934-955). A partir do verso 956, «Albanio’s discourse breaks down further and now we ind the extreme examples of disconnected speech and low-level language in the eclogue; in fact, what we have is a frottola, a poetic form in rimalmezzo characterised by its popular speech, broken statements, and obscure meaning, and which was often used by Italian poets to portray, in a dramatic or quasi-dramatic way, either highly emotional states of mind or the disconnected language of 31 A polimetria na poesia pastoral já se encontra em Giusto de’ Conti, Poliziano, Tansillo. Cf. Fernández-Morera 1982: 57, nota 15. 190 AChEgAS AO COMENTÁRIO dA OdE Pode um deSejo imenSo rustics» (Fernández-Morera 1982: 59)32 . O termo frottola alude ao próprio antecedente petrarquiano33, verdadeiro arquétipo desta forma métrica34. Esse metro também caracteriza, nos séculos XV e XVI, as farse allegorico-morali. Como se vê, um simples traço métrico pode acarretar consigo implicações estilísticas e literárias importantes. Na poesia quinhentista portuguesa, o modelo de Sannazaro foi cultivado, entre outros, por frei Agostinho da Cruz: «Revestem-se de especial interesse os dois esquemas que detêm o segundo lugar nas preferências do frade: a combinação terza rima + rimalmezzo, para além de ter sido empregue por Sannazaro, fora também praticada nas éclogas de Sá de Miranda, de Andrade Caminha e de Bernardes» (Anastácio 1999: 94). bIblIOgRAfIA 1. TExTOS lITERÁRIOS dE REfERêNCIA Boscán, Juan, Obras completas, ed. Carlos Clavería, Madrid, Cátedra, 1999. Cappello, Bernardo, Rime, tesi di laurea di E. Albini [rel. Cesare Bozzetti], Università di Pavia, 1969-1970. Castiglione, Baltasar de, El Cortesano, Universidad Nacional Autónoma de México, 1997 [«La traducción al castellano, hecha por Juan Boscán, es de Barcelona (Pedro Monpezat, 1534) [...], cuya tercera edición es la que ahora utilizamos»]. Cod[ice] Isold[iano], Le rime del Codice Isoldiano (Bologna, Univ. 1739), ed. Lodovico Frati, Bologna, Romagnoli-Dall’Acqua, 1913, 2 vols. Cornazano, Antonio, Canzoniere, tesi di laurea di A. Comboni [rel. Cesare Bozzetti], Università di Pavia, 1985-1986. Della Casa, Giovanni, Rime, ed. Roberto Fedi, Roma, Salerno, 1978. 32 O próprio Sannazaro, na Arcadia, emprega a frottola. Cf. na edição de Enrico Carrara (1972) as éclogas 1, 2, e 10. 33 Cf. Mai non vo’ più cantar com’io soleva (Canz. 105), em que a rima interna aparece em dez dos quinze versos de que cada estrofe se compõe, designada como canção frottolata. 34 Uma frottola que começa, Di ridere ho gran voglia, foi atribuída a Petrarca. Cf. Santagata, ed. Canz.: 491-492. 191 COMENTÁRIO A CAMÕES, vOl . 3 Domenichi, Ludovico, Rime, ed. Roberto Gigliucci, Liverpool University Press, 2004. Franco, Veronica, v. Stampa, Gaspara. Gallo, Filenio, Rime, ed. Maria Antonietta Grignani, Firenze, Olschki, 1973. Gonzaga, Curzio, Rime, ed. Giovanna Barbero, Roma, Verso l’arte Edizioni, 1998. Gradenigo, Giorgio, Rime e lettere, ed. Maria Teresa Acquaro Graziosi, Roma, Bonacci, 1994. Guarini, Giovan Battista, Rime, id., Opere poetiche, Venetia, G. B. Ciotti, 1621. Guidiccioni, Giovanni, Francesco Beccuti, Rime, ed. Ezio Chiorboli, Bari, Laterza, 1912. [Hebreu, Leão / León Hebreo], Los Diálogos de Amor de Mestre León Abarbanel [...] de nuevo traduzidos en lengua castellana [...], en Venetia, con licenza delli Superiori, 1568. [Hebreu, Leão / León Hebreo], La traduzión del Indio de los tres Diálogos de Amor de León Hebreo, hecha de Italiano en Español por Garcilasso Inga de la Vega, natural de la gran Ciudad del Cuzco, cabeça de los Reynos y Provincias del Piru, Madrid, 1590; reimpr. Buenos Aires, Austral, 1947. [Hebreu, Leão / León Hebreo], Philographia universal de todo el mundo, de los diálogos de León Hebreo, traduzida de italiano en español [...] por Micer Carlos Montesa [...], Çaragoça, Lorenço y Diego de Robles, 1584. Hebreu, Leão, Diálogos de Amor, vol. 1, Texto italiano, notas e documentos, vol. 2, Versão portuguesa e bibliograia, texto ixado, anotado e traduzido por Giacinto Manuppella, Lisboa, Instituto Nacional de Investigação Cientíica, 1983. [Hebreu, Leão] Leone Ebreo, Dialoghi d’Amore, ed. Delina Giovannozzi, Roma, Bari, Laterza, 2008. Mira y Gómez de Mercado, María Dolores, Actualización, estudio y edición del Diálogo sobre la necesidad de la oración vocal, obras virtuosas y santas ceremonias de Fray Juan de la Cruz (1555), Universidad de Almería, 2012, 2 vols. Molino, M. Girolamo, Rime, tesi di laurea di R. Bianchi [rel. Cesare Bozzetti], Università di Pavia, 1988-1989. Molza, Francesco Maria, La Ninfa Tiberina, ed. Stefano Bianchi, Milano, Mursia, 1991. Petrarca, Francesco, Canzoniere, ed. Marco Santagata, Milano, Mondadori, 1996, 22004. 192 AChEgAS AO COMENTÁRIO dA OdE Pode um deSejo imenSo Pigna, Giovan Battista, Il ben divino, ed. Neuro Bonifazi, Bologna, Commissione per i Testi di Lingua, 1965. Pignatelli, Ascanio, Rime, ed. Maurizio Slawinski, Torino, Res, 1996. Poeti del Cinquecento, t. 1, Poeti lirici, burleschi, satirici e didascalici, ed. Guglielmo Gorni et al., Milano, Napoli, Ricciardi, 2001. Sannazaro, Iacopo, Opere, ed. Enrico Carrara, Torino, 1972. Sentences de Sextius, éd. P. de Lasteyrie, Paris, Pagnerre, 1843. Stampa, Gaspara, Veronica Franco, Rime, ed. Abdelkader Salza, Bari, Laterza, 1913. Tasso, Bernardo, Rime, vol. 1, I tre libri degli Amori, ed. Domenico Chiodo, Torino, Res, 1995. Tasso, Torquato, Rime, id., Opere, ed. Bruno Maier, Milano, Rizzoli, 1963, 2 vols. Tebaldeo, Antonio, Rime, ed. Tania Basile, J.-J. Marchand, Modena, Panini, 1992. Trissino, Giovan Giorgio, Rime, ed. Amedeo Quondam, Vicenza, Neri Pozza, 1981. Valvasone, Erasmo di, Rime, ed. Giorgio Cerboni Baiardi, Valvasone, Centro culturale E. di Valvasone, 1993. Varchi, Benedetto, De’ sonetti di M. Benedetto Varchi colle risposte, e proposte di diversi. Parte seconda. In Fiorenza, appresso Lorenzo Torrentino, 1557. Vega, Garcilaso de la, Obra poética y textos en prosa, ed. Bienvenido Morros, Barcelona, Crítica, 2007. Venier, Domenico, Rime, ed. Monica Bianco, Dottorato di Ricerca, Università degli Studi di Padova, 31 dicembre 2000. 2. ESTudOS Anastácio, Vanda, «Amenos desertos: em torno das éclogas de Frei Agostinho da Cruz», Lusitania Sacra, 11, 1999: 87-110. Danzi, Massimo, La biblioteca del cardinal Pietro Bembo, Genève, Droz, 2005. Fernández-Morera, Dario, The Lyre and the Oaten Flute. Garcilaso and the Pastoral, London, Tamesis, 1982. Menichetti, Aldo, Metrica italiana. Fondamenti metrici, prosodia, rima, Padova, Antenore, 1993. Novoa, James W. Nelson, «Appunti sulla genesi redazionale dei Dialoghi d’Amore di Leone Ebreo alla luce della critica testuale attuale e la 193 COMENTÁRIO A CAMÕES, vOl . 3 tradizione manoscritta del suo terzo dialogo», Quaderni d’Italianistica, 30, 2009: 45-66. Pereira Filho, Emmanuel, Uma forma provençalesca na lírica de Camões, Rio de Janeiro, Gernasa, 1974. Perugi, Maurizio, «As três versões da canção camoniana Manda-me Amor. Um exercício de crítica das variantes», Estudos Italianos em Portugal, n. s., 1, 2006: 41-87. Perugi, Maurizio, «Entre métrica e crítica textual: a propósito de dois poemas camonianos ( Já a roxa menhã clara e Pode um desejo intenso)», Edição de Texto. II Congresso Virtual do Departamento de Literaturas Românicas. Textual Editing. Second Virtual Congress of Romance Literature Department, ed. Ângela Correia, Cristina Sobral, Lisboa [16 a 20 de Abril de 2007], CD-ROM. Pescatori, Rossella, «I Dialoghi d’Amore di Leone Ebreo. Una nuova traduzione inglese. Considerazioni sul testo e sulla lingua», Bruniana & Campanelliana, 14, 2008: 495-508. Spina, Segismundo, «Variações de um aposentado», in Estudos universitários de língua e literatura. Homenagem ao Prof. Dr. Leodegário A. de Azevedo Filho, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1993: 385-389. Tanturli, Giuliano, «Una gestazione e un parto gemellare: la prima e la seconda parte dei sonetti di Benedetto Varchi», Italique, 7, 2004: 43-87. 194 a quem dar ão de Pindo aS mor ador aS: uM CONTRIbuTO A quem darão de Pindo as moradoras: um contributo para a coniguração da ode encomiástica Soledad Pérez-Abadín Barro 1. A OdE COMO ENCóMIO: bREvE pERSpECTIvA hISTóRICA Pela sua matéria e pelo seu tom, a Ode a D. Manuel de Portugal encontra-se enraizada na tradição da ode pindárica, nos termos em que foi adaptada por Horácio numa das modalidades dos seus Carmina e depois transmitida à poesia vernacular. Com o propósito de situar o poema de Camões no seu quadro histórico, traçar-se-ão as linhas fundamentais desta variedade que alcançou ampla difusão europeia1. A lírica coral grega está representada pelos epinicia de Píndaro, destinados a celebrar as vitórias dos atletas nos jogos Olímpicos. A forma triádica característica desses poemas, divididos em estrofe, anti-estrofe e épodo, preserva a relação com um acompanhamento musical e coreográico originário. O seu componente celebrativo justiica o recurso a elementos hínicos, bem como a implicação do público, o que é directamente determinado pela ocasião e pelas circunstâncias da lírica coral, arte de uma comunidade para a qual o poeta é seu intérprete e portavoz. Naquele que toma a palavra, concorrem as facetas de poeta, sacerdote e profeta que conta acontecimentos de interesse colectivo e reveste de projecção universal sucessos individuais, sem eludir as referências aos seus sentimentos, à sua inspiração e aos seus propósitos artísticos e também aos seus rivais, que são instrumentos do seu mister, como depositário da glória da Grécia. Esta voz de laudator, eventualmente moralizadora, tem como correlato um laudandus, função desempenhada pelos atletas vencedores de competições. Em consonância com esse destinatário, articulam-se os núcleos do poe- 1 Dos numerosos trabalhos dedicados à ode nas diferentes literaturas clássicas e europeias, remete-se para: Shafer (1918), Carducci (1921), Highbarger (1935), McEuen (1939), Shuster (1940), Williamson (1951), Maclean (1952), Fraenkel (1959), Maddison (1960), Chamard (1961), Marmier (1962), Gentili (1965, 1981), Heath-Stubbs (1969), Higginbothan (1969), Nisbet, Hubbard (1970), McGuinness (1971), Fowler (1973), Jump (1974), Bayet (1975), Race (1986), López Bueno (1993), Pérez-Abadín Barro (1995). 195 COMENTÁRIO A CAMÕES, vOl . 3 ma que, depois do exórdio dirigido ao auditório, se refere à ocasião que suscitou a ode, com elogios ao vencedor que serão retomados no epílogo, precedido por digressões mitológicas e metapoéticas. O desenvolvimento deste propósito cinge-se a uma cuidada dispositio, triádica ou linear, que contradiz a desordem que já se atribuiu a estas composições. Funda-se assim um género cujo legado será transmitido à poesia europeia através de Horácio, o qual, sem deixar de reconhecer o magistério do poeta tebano, plasma diferenças e peculiaridades na imagem contrastiva do cisne e da abelha, que simboliza elevação e arrebatamento em confronto com restrição e laboriosidade (Carm. IV 2). Tais reivindicações não obstam à luência da sua veia pindárica, manifestada nas odes romanas do III livro (1-6) ou nas odes triunfais do IV livro, secções dedicadas ao canto das glórias do Império e ao louvor de mandatários e heróis com o tom e os procedimentos próprios da lírica coral, eludindo sempre o esquema triádico. A Roma imperial de Augusto, que em tempo de guerra civil aspira restabelecer os antigos valores nacionais, exalta um fundo político, contemplado sob o prisma do moralista que extrai dos acontecimentos políticos relexões aplicáveis à conduta individual. Secundando as reformas do Princeps, conia-lhe o restabelecimento dos mores Romani (III 1-6) e elogia os seus feitos proclamando-o um deus (IV 6, Carmen saeculare). O panegírico do imperador também se manifesta nas odes que registam diversos feitos do seu mandato, como a vitória naval de Ácio (I 37) ou a pax Augusta e os êxitos militares que possibilitaram a expansão de Roma (I 2; IV 4; IV 5; IV 14). Às laudes de Augusto, o IV livro associa a proclamação da capacidade imortalizadora da poesia, ao modo da ampliicatio dos enunciados da ode que encerra o III livro, manifestando o propósito de consagrar a Augusto, com a própria obra, um monumentum aere perennius. Esta vertente de cariz pindárico alterna, no conjunto dos Carmina, com a ode moral e apelativa, de tom sereno e ligeiro, feitura luida e aparente simplicidade. Ao assumir o modelo horaciano, os poetas renascentistas ixam-se neste protótipo, sem abolir a variante elevada que nos seus fundamentos mantém por deinição características da ode horaciana como substrato adaptado, com os aditamentos pertinentes a diversas situações e propósitos. Na busca humanística de formas poéticas comparáveis às da lírica antiga, as experiências neolatinas ofereceram um precedente à tarefa levada a cabo por Bernardo Tasso, Garcilaso de la Vega, Pierre de Ronsard 196 a quem dar ão de Pindo aS mor ador aS: uM CONTRIbuTO ou pelos poetas isabelinos que penetraram no classicismo, explorando a implantação das formas poéticas antigas nas diferentes línguas nacionais. A ode italiana inicia-se com as experiências pindáricas de Trissino, Alamanni e Minturno, as quais precedem as inovações que empreende Bernardo Tasso no propósito de aclimatar a ode horaciana. Os oito Inni de Alamanni (1532-1533) adoptam a disposição triádica em ballata, contra-ballata e stanza, núcleos de estrutura semelhante à stanza divisa, carentes de enlaces ou funções interestróicas que justiiquem a tripartição. Para além da estrofe, Alamanni retoma, do epinício pindárico, a tenção laudatória de heróis contemporâneos, como Francisco I, a quem é dedicado esse conjunto de composições, ou Margarita de Navarra. Por imitação do modelo, anima esses panegíricos um sentimento moral, realçado pela exaltação das virtudes dos seus protagonistas, cantadas com o estilo sublime e a técnica associativa e de digressão própria do poeta grego. Mesmo assim, Minturno, que traduziu a I Olímpica, recorre à tripartição em volta, rivolta e stanza nas suas duas odes à Conquista de Tunes por Carlos V (1535). Com as Canzoni de Chiabrera (1587-1588) consolida-se a ode pindárica de estrutura triádica, a que assiste o desígnio laudatório dos heróis italianos e uma particular forma heterométrica, talvez condicionada pela melodia musical que se propunham acompanhar. Na sequência dos Carmina de Horácio, Bernardo Tasso combina nos seus Amori uma certa variedade de categorias temáticas, entre odes de ocasião, de obséquio a personagens ilustres, civis e pessoais. Nestas últimas, a evidente marca horaciana concilia-se com uma atmosfera intimista que é adequada aos destinatários, família e amigos, a suscitar um discurso relexivo e moral com o mesmo cariz. Os aspectos retomados do modelo são actualizados em consonância com o exemplo da poesia humanista em latim, através de um processo que conduzirá à criação da ode religiosa imbuída pela espiritualidade coeva. Ao longo do século XVI, a obra de Horácio suscita um crescente interesse nas letras francesas, despertado pela primeira tradução das suas obras em 1501 e continuado pelas sucessivas edições, comentários e traduções que preparam o lorescimento do horacianismo no círculo da Pléiade. Caberia a este grupo poético a instauração e a difusão dos modelos antigos, em especial de Horácio. Os seus membros comungam das ideias horacianas sobre a poesia, proclamada como dom divino, ainado pelo trabalho que confere imortalidade a quem a cultiva. Retomam os temas e a técnica do 197 COMENTÁRIO A CAMÕES, vOl . 3 mestre e espelham uma noção homóloga de lirismo que outorga alcance geral aos sentimentos pessoais expressos no canto. Embora o verdadeiro promotor do género seja Ronsard, antecederam-no outros poetas que participam no seu projecto, tais como Peletier, que espelha esse enlace nas suas Oeuvres poêtiques, de 1547, e Du Bellay, que em De l’immortalité des poëtes entoa um exegi monumentum, imitação do poeta latino. Este grupo de composições encarna o ideário que os membros da Pléiade, inspirando-se em Horácio, partilhavam acerca do labor criativo do poeta. A Ronsard, devem-se os principais contributos para a ode francesa do século XVI, cujo cultivo é avalizado pelo conhecimento dos modelos greco-latinos e italianos. As suas odes relectem sobre o carácter efémero da beleza e a incerteza do amanhã, para oferecer conselhos hedonistas com frequentes notas descritivas da natureza. À veia horaciana, acrescenta-se o pindarismo a que dedica uma breve etapa da sua actividade criativa (1545-1551) com experiências que em última instância seguem a senda dos predecessores italianos. Esta vertente da sua produção está representada fundamentalmente pelas treze odes de tipo encomiástico e ocasional que elogiam a família real, membros da nobreza e diversas vitórias militares ou literárias, imitando a voz profética e o estilo ornamental do modelo. A sua importância decorre sobretudo de ulteriores repercussões, instaurando com irmeza o classicismo na poesia francesa, ao dotá-la de um novo tipo de composição, a ode formal sobre assuntos públicos. Entre os exemplos mais representativos, podem-se mencionar a Ode de la paix e a Ode à Michel de L’Hospital. Seguindo o exemplo do Horácio pindárico nas suas dedicatórias a Augusto, Mecenas, Agripa ou Polião, compõe odes heróicas em homenagem ao Rei de França, a sua irmã Marguerite, ao cardeal Du Bellay e a diversas personalidades ilustres. Outra secção compreende poemas que desenvolvem assuntos relacionados com a criação literária e o poeta. À Mercure e À Calliope têm como tema a natureza da inspiração, dom divino que se traduz no entusiasmo. Nas odes a Charles de Pisseleu, René d’Urvoy e Bertrand Berger, expõe a ideia pindárica, transmitida através de Horácio, da capacidade imortalizadora da poesia. Paralelamente à lesser ode horaciana ou anacreôntica, o tipo mais representativo de ode inglesa adapta-se ao modelo pindárico, do qual decorre a tendência para o tratamento de temas de alcance universal, especialmente religiosos e patrióticos, em estilo exaltado e com técnica complexa, adequados à ocasião do poema, habitualmente um acontecimento público de 198 a quem dar ão de Pindo aS mor ador aS: uM CONTRIbuTO relevo2 . Entre os factores que concorrem para a sua deinição, destacam-se também a morfologia própria da estrofe, a presença do destinatário e a preponderância de um acompanhamento musical ao qual, em etapas ulteriores, o texto se submeterá. Do epinício pindárico derivam a ode regular ou triádica e a irregular, que Cowley introduz em 1656, caracterizada pelo desenho independente de cada estrofe e pela variação em extensão, número de versos e esquema rimático. Este moldelo métrico serve de álveo a temas divinos e heróicos cantados com elevação e arrebatamento, transições súbitas e uma ousada linguagem igurada. Depois da emulação inicial da prática da Pléiade, a atenção logo passa a ser dirigida aos autores antigos e neolatinos, com preferência por Píndaro, que consolida a sua reputação a partir da época isabelina. O impulso que levaria à grande difusão da lírica de Horácio surge com Ben Jonson, criador da estrofe horaciana nas letras inglesas, e com os membros da sua escola, the sons of Ben, que continuam o labor do seu mestre. Na senda de predecessores como Spenser e Drayton, Jonson modela as suas odes a exemplo dos autores antigos, Píndaro e principalmente Horácio, inspirador das odes que manifestam a atitude do poeta perante a sua obra, bem como as faculdades imortalizadoras da poesia (Inviting a Friend to Supper) e de certos aspectos como a apóstrofe, os conselhos morais ou as referências metaliterárias. A vertente ocasional dos Carmina encontra a sua réplica na Ode to Sir William Sidney, on his Birthday que, recorrendo a um tipo de estrofe extensa, próxima da pindárica, combina o desejo de boa sorte com conselhos morais. Sem descurar as anteriores experiências da lírica europeia, Jonson remonta directamente ao poeta grego para modelar as suas odes pindáricas, divididas em Turn, Counter-Turn e Stand, que incorporam traços pindáricos muito característicos, de tom tendencialmente elevado, aliás de acordo com a estética metafísica. Títulos como Ode on the Death of Sir H. Morison, An Ode to James Earl of Desmond ou An Ode, or Song, by all the Muses in Celebration of her Majesties Birthday. 1630 manifestam o cariz circunstancial e encomiástico do género. De facto, pode-se reconhecer em Jonson o instaurador de um tipo de poema cerimonial, escrito para comemorar acontecimentos relacionados com o monarca e destinados à 2 A presente perspectiva histórica detém-se especialmente sobre a poesia inglesa, na qual a modalidade pindárica de tom elevado e propósitos encomiásticos e celebrativos granjeou maior importância do que noutras tradições europeias. 199 COMENTÁRIO A CAMÕES, vOl . 3 execução coral e instrumental, cujo auge, em Inglaterra, começa no período da Restauração (1660-1688) e se prolonga até ao século XIX. As odes de Milton recobrem mais uma etapa da trajectória do género, que vai sendo forjada com dois poemas que se complementam, L’ Allegro e Il Penseroso, gérmen das odes de abstracção moral. Em On the Morning of Christ’s Nativity, conluem as tradições inglesa e humanista, um conteúdo predominantemente bíblico e um invólucro pindárico que se manifesta no tom elevado, na riqueza idiomática, nas imagens ousadas e nas transições repentinas. De entre os seus seguidores, destaca-se Richard Crashaw, autor de uma ingente produção de odes religiosas, publicadas entre 1634 e 1652, em que as estrofes irregulares servem de veículo a uma exaltada espiritualidade católica. Com Abraham Cowley a ode conirma, no repertório de géneros poéticos ingleses, um lugar determinante para o êxito que alcançará a partir de meados do século XVII. Depois das odes horacianas de Poetical Blossoms (1633-1636), publica em 1656 a colecção de Poems, dividida nas secções Miscellanies, The Mistress, Pindarique Odes e Davideis. Alguns poemas das duas primeiras vão perilando a evolução até à forma poética típica de Cowley, ilustrada pela terceira delas, cujo título completo reza Pindarique Odes, Written in Imitation of the Stile and Manner of the Odes of Pindar. Com a sua práctica, enxerta na ode inglesa a elevação da invenção e a majestade do estilo do seu mestre, vertido na estrofe irregular que a partir de então se enraizará na poesia inglesa. Como ilustrativas da sua concepção poética, há que mencionar The Resurrection, na qual pretende reproduzir o método associativo de Píndaro; The Muse, em louvor de Hobbes; e The Extasie, descrição da experiência mística do poeta. Cowley e os seus seguidores propagam a noção de ode como poema de exaltação, de estilo sublime e sem efeitos formais que ponham freio à liberdade criativa, qual álveo ideal para conteúdos elevados e ocasiões solenes. O inluxo deste modelo e das suas sistematizações teóricas far-se-á sentir inclusivamente nas literaturas estrangeiras. A prática de John Dryden, um dos sucessivos cultores da ode irregular, consolida as potencialidades musicais desse género, adequadas à vertente ocasional que ilustra a Ode to the Memory of Mistress Anne Killigrew (1686). As composições escritas para a celebração do dia de Santa Cecília e executadas com acompanhamento musical admitem a classiicação de «cantata-ode», género que entrou na moda com a corte de Carlos II, talvez por inluência das árias italianas, e praticado por músicos tão representativos desse mo200 a quem dar ão de Pindo aS mor ador aS: uM CONTRIbuTO mento como Purcell ou Blow. No período compreendido entre 1683 e 1710, escreveram-se odes destinadas à celebração anual da festa de Santa Cecília, e Dryden colabora nessa comemoração com dois poemas, Harmony Ode e Alexander’s Feast, exemplo da fusão do texto com a música, complemento cerimonial que restabelece o signiicado originário da forma antiga. 2. E NTRE hORÁCIO E A OdE vERNACulAR : uMA ApROxIMAçãO TRANSTExTuAl Este panorama europeu enquadra o contributo camoniano, que se soma aos exemplos de poema encomiástico desenhado segundo um modelo híbrido com características pindáricas e horacianas. O padrão herdado adapta-se a uma atitude própria e a circunstâncias históricas e pessoais particulares que não se submetem a imperativos literários. O horacianismo que sustenta os diferentes níveis do poema capta-se nas ideias e procedimentos gerais e em passos especíicos. Em conformidade com o repertório temático dos Carmina, a Ode a D. Manuel de Portugal conigura-se como epinício de tradição pindárica que não elude relexões morais nem teóricas, amalgamando todos esses componentes colocados ao serviço do encómio do destinatário, bem como a proclamação das faculdades imortalizadoras da poesia. Formalmente, conforma-se com a atitude apelativa que caracteriza as odes do modelo latino, aplicando um padrão estrutural cíclico e a técnica descontínua recebida por Horácio de Píndaro3. Como fonte mais evidente, cita-se a ode I 12, Quem virum aut heroa (‘A que homem, a que herói’)4, da qual procede o arranque interrogativo. Quer nesta ode de Horácio, quer na ode VII de Camões, a pergunta envolve as Musas, mas em diferente grau, pois Clio actua como destinatária na ode I 12, ao passo que na ode portuguesa se formula uma questão geral, cujo destinatário, D. Manuel de Portugal, se desvela pouco depois, e em vez de dar às Musas um nome determinado o poeta recorre à perífrase de Pindo as moradoras (v. 1). 3 Para o substrato clássico na lírica do autor, ver entre outros Cidade (2003) e Spaggiari (1992). 4 Na sua introdução à ode I 12, Cristóbal (1997: 112) considera-a decorrente da Olímpica II 1 de Píndaro, também imitada na respectiva série de três interrogações (I 2, 25-29). Podem-se recordar outras odes de Horácio com início interrogativo (I 5; I 31). 201 COMENTÁRIO A CAMÕES, vOl . 3 Horácio alinha três perguntas consecutivamente (vv. 1-2, 3, 3-12, 13-16), com as quais interpela a musa Clio acerca dos deuses ou dos heróis dignos de serem celebrados com o seu canto, para progredir até à laudatio do César, depois de ter elogiado diversas iguras, começando por Júpiter. Camões distribui uma após outra três perguntas com total regularidade nas estrofes correspondentes, ligadas por anáfora e paralelismo: A quem darão (v. 1), A quem trarão (v. 8), A quem farão (v. 15). De forma metafórica, indaga acerca do objecto do poema, referente das coroas das Musas, das danças das Ninfas e dos cantos de Anion e Arion. A este último sintagma, junta-se a resposta, o nome próprio do destinatário, o que suscita a derivação para a poesia, o mecenato e a imortalidade, temas que apesar de horacianos se encontram ausentes do carmen I 12. Outras coincidências aproximam a Ode a D. Manuel de Portugal deste modelo latino, que nomeia o Pindo (v. 1) e relecte sobre a Fama com menção à musa Clio e enumeração de deuses, heróis e personagens históricas veneradas em Roma. A imagem da propagação da fama de Marcelo é plasmada por uma árvore em crescimento («crescit occulto velut arbor aevo / fama Marcelli», vv. 45-46; ‘Como uma árvore acresce o tempo oculto / a fama de Marcelo’), nada dissemelhante do motivo da hera trepadora em Camões. Contudo, a analogia fundamental estriba-se na dimensão metapoética de ambas as composições, que relectem sobre a capacidade laudatória da poesia com destinatário múltiplo, as iguras clássicas, ou único, D. Manuel de Portugal, que reúne na sua pessoa os elogios enumerados pelo poema latino. No ideário poético de Horácio, destaca-se a perdurabilidade da obra literária, assunto plenamente desenvolvido na ode que encerra os três primeiros livros, Exegi monumentum (Carm. III 30), e recorrente em obras posteriores (IV 8; IV 9)5. Ao proclamar-se capaz de imortalizar a glória do destinatário, o poeta está a impregnar a sua composição de um voluntário horacianismo, certeiramente adaptado à sua época, às circunstâncias e ao estilo. A tensão entre a voz épica e a lírica deriva essencialmente das recusationes com que Horácio reconhecia a sua incapacidade épica e a sua preferência 5 Imitando Píndaro (Ol. XI 4-6; Nem. VI 30-31; Nem. VII 11 ss.), a ode IV 8 reivindica a utilidade da poesia para imortalizar méritos e façanhas; em V 9 airmase que a poesia faz perdurar as personagens míticas, como os versos de Homero, Píndaro, Simónides, Alceu e também os do próprio Horácio (Cristóbal 1997). 202 a quem dar ão de Pindo aS mor ador aS: uM CONTRIbuTO pela lírica (Carm. I 6; I 19; II 12; III 3; IV 2). Sem aplicar estritamente este esquema, Camões confessa a humildade do seu canto: a meu tão baixo quão zeloso engenho (v. 25), O rudo canto meu (v. 29), a hera lorecente / para a minha até qui, de baixa estima (vv. 38-39). Em confronto com o modelo da recusatio, esta humilitas não implica uma renúncia da épica, pois apesar da sua rudeza esse canto fez ressuscitar as glórias lusitanas (V estrofe), e com o apoio de D. Manuel a sua humilde hera poder-se-á elevar para compor um poema imortal, proposta ambiciosa e correlata à reivindicação da ode IV 15 de Horácio, que proclama a capacidade da lírica para fazer brilhar façanhas destacadas com a grandeza épica6. A faceta do destinatário como mecenas evoca de forma inequívoca o livro de poesia de Horácio que se abre com uma dedicatória ao amigo e protector, na qual também recorre à imagem da hera («me doctarum hederae praemia frontium / dis miscent superis, me gelidum nemus», Carm. I 1, 29-30; ‘Porém a mim associa-me com os altos deuses / a hera, grinalda das fontes doutas’) e proclama o seu mérito como poeta lírico capaz de alcançar a altura dos astros (vv. 29-35)7. Por outro lado, e tendo em conta o relexo da condição de escritor do destinatário, recorde-se o encómio a Píndaro (IV 2), com implicações de índole metaliterária. De cariz horaciano, podem-se considerar, na ode de Camões, a exortação ao canto, modelada segundo os Carmina I 10 e I 21, a consideração das Musas como inspiradoras, imitando as muitas invocações que Horácio dirige a Melpómene (Carm. I 24; IV 6), Calíope (III 4) ou simplesmente à sua musa, que o desvia da épica para a lírica (III 3), bem como as referências ao 6 Em IV 15; IV 2 e em geral em todo o livro IV pindárico. Ver Cristóbal 1997: 369). 7 Se Augusto, igura puramente oicial, personiica a instituição do Império, outra das personagens históricas objecto de encómio, Mecenas, aparece nos Carmina na sua faceta de político (Carm. III 29) e protector, bem como de amigo ao qual muitas vezes são oferecidos os prudentes conselhos do poeta, com ele irmanado num destino comum (I 1; II 17; II 20; III 8; III 16; III 29). A empatia entre ambos resume-se no verso «serves animae dimidium meae» (I 3, 8; ‘preserva a outra metade da minha alma’). Este destinatário constitui outro dos factores envolvidos na demarcação estrutural do livro de poesia, pois a ele são dedicadas a ode que abre o primeiro livro e a recolha, a que encerra o segundo livro (II 20), as que vão até ao meio do primeiro (I 20) e do terceiro (III 16) e a que, a prescindir da ode seguinte de remate, encerra o conjunto dos três primeiros livros (III 29). 203 COMENTÁRIO A CAMÕES, vOl . 3 instrumento musical, a cítara sonora (v. 57), invocado com tanta frequência por Horácio, quer se trate da cítara (Carm. I 31, 20; III 1, 20), quer da lira (I 32; III 11). Os vestígios da língua latina aloram também nos motivos vegetais que remetem para vários exemplos dos Carmina. Louro e mirto, respectivos atributos de Júpiter e Vénus, coincidem na ode II 7 e na ode III 4, na qual o poeta é coroado de louro e mirto por pombas divinas (vv. 9-20). Mantém ainidades com ambos os exemplos o verso do triunfante louro ou mirto verde (v. 4). Horácio aduz o louro como árvore de Apolo (Carm. III 30; 15-16; IV 2, 9) ou insígnia da virtude (II 2, 23). Refere-se à hera como «doctarum [...] praemi frontium» (I 1, 29-30; ‘grinalda das fontes doutas’) e usa-a como simile do comportamento feminino: «nec Damalis novo / divelletur adultero / lascivis hederis ambitiosior» (I 36, 18-20; ‘porém nada a Damális, / unida como lasciva / hera a um novo amante, poderá separar dele’). É citada a par do mirto em I 25: «laeta quod pubes hedera virenti / gaudeat pulla magis atque myrto» (vv. 17-18; ‘porque a alegre juventude prefere / o mirto obscuro e a verdejante hera’). Acrescentem-se os versos da bucólica VIII de Virgílio em que hera e louro simbolizam a poesia e a vitória militar: «carmina coepta tuis, atque hanc sine tempora circum / inter uictricis hederam tibi serpere lauros» (vv. 11-12; ‘permite que em volta das tuas fontes / hera se enrole e com ela entrançado o louro vitorioso’). Com este passo, são também aparentadas a coroa de louro e mirto que as Musas depositarão nas têmporas de D. Manuel (I estrofe) e a conformidade do tronco, provavelmente um loureiro, e da hera, aplicando-se aos vínculos que ligam o nobre e o poeta (VI estrofe). É possível que os Carmina sugerissem a imagem da Fortuna volúvel, em consonância com as advertências em relação à mudança proferidas nas odes I 34; I 35; e III 29. Um destes poemas oferece um detalhe, o da «stantem columnam» (‘irme coluna’) dos tiranos susceptível de ser derrubada pela Fortuna (Carm. I 35, 14), adaptado com sinal inverso ao poema português, que identiica os mecenas como coluna dos poetas vencedora dessa força arbitrária. Uma ideia derivada, a queda das alturas (VII estrofe), encontra formulações horacianas nos exemplos do pinheiro ou dos cumes na ode II 108. Podem-se acrescentar a estas ideias gerais a 8 Imitada na ode XV de Luis de Léon: «y la fuerza sin ley que más se empina / al in la frente inclina; / que quien se opone al cielo, / cuando más alto sube, viene al suelo» (vv. 4-7). 204 a quem dar ão de Pindo aS mor ador aS: uM CONTRIbuTO da aurea mediocritas, latente no inciso que nosso século dourais (v. 56), a evocar um tema formulado na ode II 10, mas fundamentalmente no II épodo, bem como na IV bucólica de Virgílio. Mesmo assim, a Fama faz parte do catálogo temático dos Carmina, tal como o ilustra a ode IV 3 (v. 13 ss.). Finalmente, a hábil conjunção de motivos num io condutor, ramiicado entre o encómio do magnate e a oferta poética tributada, adapta a peculiar técnica associativa, de cariz pindárico, que Horácio desenvolve em grande parte dos seus poemas, dissociados entre o plano geral e o pessoal, e constituídos como agregado de sentenças, digressões, relexões morais, exempla mitológicos ou imagens que não desviam a atenção de um núcleo axial sempre emergente9. Este predomínio do modelo não exclui outras fontes, cuja presença se faz evidente em virtude da proximidade textual das reminiscências. Logo no início do poema, o sintagma alusivo de Pindo as moradoras (v. 1) traz à colação o verso da I elegia de Garcilaso, «con que de Pindo ya las moradoras» (v. 14), cujo sentido Fernando de Herrera esclarece nas suas Anotaciones: «Monte de Tesalia consagrado a Febo y a las Musas» (Herrera 1580: 572). Esta dívida explícita dilata-se com a transferência da imagem da hera que cresce apoiando-se no tronco (VI estrofe), tributária de um passo do exórdio da I égloga do poeta de Toledo: el árbol de victoria que ciñe estrechamente tu gloriosa frente dé lugar a la hiedra que se planta debajo de tu sombra y se levanta na qual, poco a poco, arrimada a tus loores. (vv. 35-40) Na vossa árvore, ornada de honra e glória, achou tronco excelente a hera lorecente para a minha até qui, de baixa estima; na qual, para trepar, se encosta e arrima; e nela subireis tão alto quanto aos ramos estendeis. (vv. 36-42) 9 Cristóbal 1997: 244-245. Podem-se aduzir como exemplo as odes III 4 (suma de experiência pessoal, mitos, sentenças e elogios a um terceiro, com a ideia condutora de que a força bruta não basta e a razão é necessária); III 11 (feita de associações inesperadas); III 19 (cadeia de motivos caprichosamente enlaçados); e IV 4 (epinício a Druso que aplica a técnica pindárica, com excursos e elementos secundários, até retomar o principal). 205 COMENTÁRIO A CAMÕES, vOl . 3 Não será por acaso que ambos os textos designam os poetas como «ingenio peregrino» (Garcilaso, v. 33) e engenhos peregrinos (Camões, v. 43). De forma mais difusa, as declarações de modéstia que redundam no encómio do destinatário remeterão para a III écloga: Aplica, pues, un rato los sentidos al bajo son de mi zampoña ruda, indigna de llegar a tus oídos. (vv. 41-43) a meu tão baixo quão zeloso engenho (v. 25) aquesta inculta parte de mi estilo. (vv. 35-36) O rudo canto meu, que ressuscita (v. 29) Por aquesta razón de ti escuchado, aunque me falten otras, ser merezco; lo que puedo te doy, y lo que he dado, con recibillo tú, yo me enriquezco. (vv. 49-52) A ode portuguesa faz-se eco de outros detalhes desta écloga de Garcilaso no que toca à referência às Musas, «Apolo y las hermanas todas nueve» (Garcilaso, v. 29), e de Pindo as moradoras (Camões, v. 1); à alusão ao rio infernal Letes, «las aguas del olvido» (Garcilaso, v. 16), e a lei Leteia (Camões, v. 35); ou ao tópico das armas e das letras, «tomando ora la espada, ora la pluma» (Garcilaso, v. 40) e peitos de Marte e Febo crespo e louro (Camões, v. 61). Poemas posteriores, alinhados pelo horacianismo, apresentam características comuns que, sem comprovar uma relação imediata, denunciam uma origem comum10. Destacam-se três canções de Fernando de Herrera em lira ou estrofes aliradas que proclamam as faculdades imortalizadoras da poesia, desaiando factores adversos como o tempo, o fado ou a morte, entre desculpas pela falta do talento adequado ao amigo e protector, ao qual se tributa afecto e agradecimento: «Ilustre Conde mío» (c. 1578), «Velleio si mi canto» (c. 1588), «Si alguna vez mi pena» (c. 1582). Estas composições participam na feitura temática da ode a D. Manuel de Portugal, merecedor 10 Pode-se recordar a cronologia de cada um dos poetas: Camões (1524?-1580), Herrera (ca. 1534-1597) e Luis de León (1526 ou 1529-1591). 206 a quem dar ão de Pindo aS mor ador aS: uM CONTRIbuTO de um canto que propagará a sua fama por todo o orbe, em correlação com o apoio recebido do mecenas, segundo se lê em alguns dos seus versos: Imitando os espritos já passados, gentis, altos, reais, honra benina dais a meu tão baixo quão zeloso engenho. Por Mecenas a vós celebro e tenho; e sacro o nome vosso farei, se algũa cousa em verso posso. (vv. 22-28) O rudo canto meu, que ressuscita as honras sepultadas, as palmas já passadas dos belicosos nossos Lusitanos, para tesouro dos futuros anos, convosco se defende da lei Leteia, à qual tudo se rende. (vv. 29-35) Pois, logo, enquanto a cítara sonora se estimar pelo mundo, com som douto e jucundo, e enquanto produzir o Tejo e o Douro peitos de Marte e Febo crespo e louro, tereis glória imortal, Senhor Dom Manuel de Portugal. (vv. 57-63) Os passos citados oferecem elementos temáticos e textuais que surgem nas três composições de Herrera, especialmente em Ilustre conde mío e Velleio si mi canto, baseadas na ideia de imortalidade. Al conde de Gelves é dedicada a D. Álvaro de Portugal, integrado na matéria como receptor dos louvores do poeta e de um futuro monumento que o imortalizará: 207 COMENTÁRIO A CAMÕES, vOl . 3 no penséys que el oluido pondrá en oscuridad mi nombre y fama. (vv. 16-17) No os pese que en mi canto vuestro valor se uea entretexido, aunque no sea tanto que aya mereçido çelebrar vuestro nombre esclareçido que en él os e compuesto vn immortal y sacro monumento, adonde está dispuesto a daros nueuo aliento después del trançe y vltimo tormento. (vv. 36-45) Aquel es venturoso a quien algún ingenio peregrino11 con aliento dichoso, se le mostró venino y de mortal lo haze ser divino. (vv. 56-60) Solo puede Talía biuir, que con el tiempo nunca muere, y quien por esta uía seguir sus pasos quiere, y quien loado de poetas fuere. (vv. 71-75) Velleio si mi canto apostrofa Pedro Vélez de Guevara, que como autor da Coena Romana partilha a condição de escritor com D. Manuel, ao que se alude em: por quem restituída / se vê da Poesia já perdida / a honra e glória igual 11 Cf. engenhos peregrinos (v. 43). 208 a quem dar ão de Pindo aS mor ador aS: uM CONTRIbuTO (vv. 18-20)12 . O tema da imortalidade transfere-se neste caso para a obra alheia, capaz de ressuscitar personagens da Antiguidade13 e de inspirar o talento de quem escreve, para levar a cabo com o mesmo propósito o louvor do seu amigo: Velleio si mi canto rinde al oluido ciego la victoria, yo no presumo tanto que vuestra insigne gloria ose offrecer a la immortal memoria. Mas el amor deuido a vuestro claro nombre y alabança (vv. 1-7) podría mi rudeza. (v. 13) ¡O vos afortunados Lucullo, Antonio, reyna generosa, que, yaziendo oluidados con muerte rigurosa, boluéis a luenga vida y venturosa! (vv. 26-30) Mas lo que en esta Cena vos celebráis, Velleio esclarecido, yra, de suerte agena, ni el fuego enfurecido podrá entregar jamás al hondo oluido. (vv. 41-45) 12 Alude-se aqui ao papel de D. Manuel na difusão da poesia nova (Silva 1994: 236). A enumeração (vv. 26-30) pode-se relacionar com a lista de mecenas, Octaviano, / Cipião, Alexandre e Graciano (vv. 53-54), eternizados pela dita condição. 13 209 COMENTÁRIO A CAMÕES, vOl . 3 Si alguna vez mi pena, em estrofes com oito versos, expõe no seu epílogo o propósito de fazer perdurar a fama do laudandus: haré qu’en vuestra gloria soberana siempre Talía hable, i que la bella Flora i los reinos la canten de l’Aurora. (vv. 109-112) Pode-se também registar a coincidente evocação da história de Portugal em «el lusitano orgullo quebrantado» (v. 21), verso de alusão a Alcácer-Quibir, e na referência às glórias passadas dos belicosos nossos Lusitanos (v. 32). A ode a D. Manuel de Portugal elabora uma imagem espacial de sentido moral e de cariz horaciano que Luis de León retoma na sua poesia. Camões coloca em contraponto as noções de ascensão e queda nos motivos da hera humilde que trepa pelos ramos do tronco (VI estrofe) e do confronto entre Fama e Fortuna: Sempre foram engenhos peregrinos da Fortuna envejados; que, quanto levantados por um braço nas asas são da Fama, tanto por outro a sorte, que os desama, co peso e gravidade os oprime da vil necessidade. (vv. 43-49) O contraste entre altura e profundidade, sugerindo o efeito de esmagamento, insinua o mito que Luis de León trata na XV ode, A don Pedro Portocarrero: y la fuerza sin ley que más se empina al in la frente inclina; que quien se opone al cielo, cuando más alto sube, viene al suelo. (vv. 3-7) 210 a quem dar ão de Pindo aS mor ador aS: uM CONTRIbuTO Testigo es maniiesto el parto de la Tierra mal osado, que, cuando tuvo puesto un monte encima de otro y levantado, al hondo derrocado, sin esperanza gime debajo su ediicio que le oprime. (vv. 8-14) El ánimo constante, armado de verdad, mil aceradas, mil puntas de diamante embota y enlaquece y, desplegadas las fuerzas encerradas, sobre el opuesto bando con poderoso pie se ensalza hollando. (vv. 36-42) Esse ascensus, que não provém da Fama mas da virtude, surge noutros passos da sua obra, como seja: Del vulgo se descuesta hollando sobre el oro; irme aspira a lo alto de la cuesta; ni violencia de ira, ni blando y dulce engaño le retira. (2, 21-25) Ilustre y tierna planta, dulce gozo de tronco generoso, creciendo te levanta a estado el más dichoso de cuantos dio ya el cielo venturoso. (4, 76-80) 211 COMENTÁRIO A CAMÕES, vOl . 3 Há que recordar também o XIX poema, A todos los santos, cujo arranque interrogativo deriva, como em A quem darão de Pindo as moradoras, do carmen, Quem uirum aut heroa (Carm. I 12): ¿Qué santo o qué gloriosa virtud, qué deidad que el cielo admira, ¡oh Musa poderosa!, en la cristiana lira, diremos (vv. 1-5) diré con más dulzura tu nombre, tu grandeza y hermosura. (vv. 89-90) mas, cuanto son peores, tanto resonarán más tus loores. (vv. 94-95) Esta perspectiva comparada poder-se-ia alargar a um contexto europeu que compreende diversas realizações do tema da imortalidade na obra de poetas como Bernardo Tasso, Pierre de Ronsard, que em À sa muse imita a ode Exegi monumentum, e António Ferreira, cuja dedicatória do livro II A D. Duarte mostra correspondências com a ode camoniana. Nesta resenha de conexões interdiscursivas da ode de Camões com os seus modelos e com manifestações paralelas que poderão remontar a uma tradição comum, não se pode descurar a dimensão metatextual, que permite relacioná-la com dois passos de Os Lusíadas e diz respeito à V estrofe. Esta menção suscita o problema da cronologia relativa, origem de duas hipóteses: que a ode foi escrita tendo em conta a publicação do poema épico (1572) ou então que se trata de um poema da juventude, composto quando o autor estava a começar a redacção da obra épica14. 14 Assim o crê Faria e Sousa: «No puedo averiguar si esto era al tiempo que le escribía, si después que le imprimió. Si era después, sería el año 1573, porque la impresión fue el de 1572. Si era antes, sería el año 1552, porque el de 1553 era ya partido para la India. Y esto es lo que yo creo, según lo dije en la Vida del P. que 212 a quem dar ão de Pindo aS mor ador aS: uM CONTRIbuTO O poema Os Lusíadas reaparece na VIII estrofe sob a forma de réplica de um fragmento do canto V (oitavas 94-96). Na ode, os heróis que pelo seu labor de mecenas merecem ser aclamados como imortais, Octaviano, / Cipião, Alexandre e Graciano (vv. 53-54), quase coincidem com os que se enumeram na oitava 95: «Dá a terra Lusitana Cipiões, / Césares, Alexandros, e dá Augustos». Sem dúvida, deve-se introduzir um matiz, o de que no poema épico estas personagens surgem, mais do que como mecenas, pela sua dedicação à escrita e à leitura de poesia, conforme o mostra o passo completo: Dá a terra Lusitana Cipiões, Césares, Alexandros, e dá Augustos; mas não lhe dá contudo aqueles dões cuja falta os faz duros e robustos. Octávio, entre as maiores opressões, compunha versos doutos e venustos [...] Vai César sojugando toda França e as armas não lhe impedem a ciência; mas, nũa mão a pena e noutra a lança, igualava de Cícero a eloquência. O que de Cipião se sabe e alcança é nas comédias grande experiência. Lia Alexandro a Homero de maneira que sempre se lhe sabe à cabeceira. (Lus. V 95-96) Este parentesco entre a ode e o poema épico é detectado por Faria e Sousa na sua edição das Rimas varias: «De Otaviano, y de Scipion, y de Alexandro, se acordó el P. [a este mismo propósito también] al in del c. 5. de su Lusiada» (II 1689, 3: 167). Cita de seguida os fragmentos de Os Lusíadas que referem Octaviano e remete para o seu comentário à obra. puse al principio de los Comentarios a la Lusiada» (II 1689, 3: 164). Aguiar e Silva (1994: 237) secunda esta explicação. 213 COMENTÁRIO A CAMÕES, vOl . 3 3. O dISCuRSO ENCOMIÁSTICO dA OdE dE CAMÕES A atitude apelativa e laudatória deine o discurso da ode a D. Manuel de Portugal, poema encomiástico que segue a tradição do epinício pindárico ou canto triunfal, conigurado como dedicatória. Tais características habilitá-lo-iam a encabeçar o conjunto de poemas ou um dos seus livros, numa hipotética ordenação polimétrica segundo o vario stile do Cancioneiro de Petrarca15. A relevante presença do destinatário condiz com o arquétipo clássico da ode, que tanto na sua vertente pindárica como horaciana dirige a uma segunda pessoa elogios ou conselhos que condensam os seus propósitos. Em conformidade com este modelo, um «eu» apostrofa um «tu» na qualidade de súbdito, com a justiicação de um tema que a ambos diz respeito, a poesia, determinante do vínculo que os une como escritor e protector. Tal situação comunicativa conirma-se através da actividade poética de D. Manuel de Portugal, referente real de um laudandus que por sua vez é interlocutor das relexões sobre a poesia, o mérito do mecenas e o privilégio imortalizador dos engenhos. A ele se dirigem as apóstrofes do poeta laudator, que ao proclamar no XXVI verso, Por Mecenas a vós celebro e tenho, assume a sua missão epidíctica, investida das capacidades proféticas adequadas à condição do vate que deseja e concede imortalidade ao seu senhor. A ode é introduzida por três estrofes que fazem referência ao culto universal que Musas, Ninfas e cantores míticos prestarão ao destinatário. Para atenuar a transcendência destas declarações, combinam-se interrogatio e anáfora, meios retóricos que se desprendem deste trecho de início, no qual um triplo A quem retarda a menção à personagem até ao verso que encerra o núcleo, Senhor Dom Manuel de Portugal (v. 21). Deste modo, um elogio oblíquo em forma de pergunta faz recair a atenção sobre a resposta protelada que o senão a vós (v. 18) enfatiza para realçar a sua exclusividade. Neste passo interrogativo, cada unidade estróica acumula recursos epidícticos. Na I estrofe as Musas são qualiicadas como tão doutas como belas (v. 2) e o prémio proposto consiste no triunfante louro ou mirto verde (v. 4) e 15 Para as Varias poesías de Hernando de Acuña, a falta de dados leva a extrair do próprio texto indícios de um ordo hipotético, tal como fez Cabello Porras (2007, 2008, 2011). Cf., para os problemas de ordenação da lírica de Camões, Lourenço 2007. 214 a quem dar ão de Pindo aS mor ador aS: uM CONTRIbuTO na gloriosa palma (v. 5) que nunca perde a presunção sublime (v. 6). Os epítetos, que corroboram o tom enfático proporcional à elevação do destinatário, assumem na II estrofe uma função fundamentalmente descritiva, com matiz valorativo, que culmina na enumeração cromática aplicada às lores: argênteas, ruivas, brancas e amarelas (v. 12). Começa-se a perceber a aura mítica de divinização que a estrofe seguinte conirma, ao citar cantores míticos, em Tebas Anion, / em Lesbos Arion (vv. 16-17), autores e intérpretes de géneros celebrativos, hinos, odes, cantos (v. 15). O elogio, tangencial e enigmático, nesta tripla interrogatio conformada como adivinhação, enquanto pergunta cifrada, e como profecia que anuncia honras futuras ao mecenas, expõe-se sem evasivas a partir do momento em que se nomeia o destinatário e se lhe reconhece o labor em benefício da poesia, como protector e inclusivamente como criador que introduziu inovações no panorama poético16. As formas verbais no futuro neutralizam o seu sentido temporal, equiparando-se ao tempo mítico que D. Manuel é exortado a restabelecer. A ideia formulada na propositio ampliica-se na IV estrofe, através de uma elucubração justiicativa das atribuições prévias: imitando personagens históricas da Antiguidade, o destinatário actua como mecenas. Um verbo de conteúdo epidíctico, celebro (v. 26), deine o desígnio da voz poética, que ao mesmo tempo recorre a fórmulas de modéstia através da adjectivação, ao referir-se ao seu tão baixo quão zeloso engenho (v. 25), em contraste com a enumeração trimembre, gentis, altos, reais (v. 23), que qualiica os espritos já passados (v. 22). A humilitas não é óbice para uma oferta que se soma aos galardões míticos prévios: e sacro o nome vosso / farei (vv. 27-28). Aliado a Musas e Ninfas, o escritor deseja honrar a igura do seu interlocutor e atribui-lhe faculdades sacralizadoras, ainda que esta aparente presunção logo seja moderada pela modéstia: se algũa cousa em verso posso (v. 28). Retomando a atitude prospectiva do primeiro trecho (darão, trarão, farão), o verbo no futuro, farei (v. 28), expressa uma intenção e um compromisso por parte de um poeta-vate. Jactância e humilitas preservam o seu equilíbrio na V estrofe, parênteses metaliterário no qual o eu reconhece ao seu rudo canto (v. 29) o poder 16 Diferentemente de Graça Moura (1987: 80) e fazendo-se eco de Faria e Sousa (II 1689, 3: 164), Aguiar e Silva (1994: 237) vê neste verso referências à implicação de D. Manuel de Portugal na difusão da poesia renascentista, juntamente com Sá de Miranda, o Duque de Aveiro e o Infante D. Luís. 215 COMENTÁRIO A CAMÕES, vOl . 3 de ressuscitar as glórias lusitanas do passado, com referência a Os Lusíadas (vv. 29-32 da ode). Antecipado por indícios verbais, como restituída (v. 18) e Imitando (v. 22), aplicados a D. Manuel, esse dote sobrenatural conota a noção de imortalidade, preparando assim o eixo temático da ode, pois relatar numa obra literária as façanhas nacionais garante o seu carácter perpétuo, para tesouro dos futuros anos (v. 33). De novo se anula o conceito de tempo, mediante a fusão do passado histórico e mítico de Portugal, do presente que actualiza essa época lendária e do futuro que reviverá essas façanhas transmitidas pelo livro. A digressão, alusiva à própria obra literária do escritor real, reconduz ao tema fundamental da ode, reconhecendo ao destinatário o mérito dessa perenidade, dado que o seu rudo canto lhe deve a imortalidade: convosco se defende / da lei Leteia, à qual tudo se rende (vv. 34-35). Por conseguinte, o suposto auto-louvor redunda no exaltado elogio de D. Manuel, depositário último dessa faculdade que faz reverter sobre o seu protegido. A dupla atenuatio mantém assim o tom de aparente modéstia por parte do poeta, que atribui ao mecenas, primeira litotes, o mérito de se sobrepor à lei da morte ou do esquecimento, segunda litotes equivalente à imortalidade. A laudatio, que foi sendo construída de forma progressiva, atinge o ponto culminante na VI estrofe, a qual exalta de forma directa as virtudes do nobre enquanto mentor e guia do eu poético. Alusões, augúrios, fórmulas de agradecimento e elogios são substituídos por uma quantidade de recursos epidícticos que visam enaltecer a igura do nobre. Para este im contribui a imagem arbórea do tronco excelente (v. 37), apoio e suporte da humilde hera lorecente do poeta (v. 38), que ao trepar por ele e pelos seus ramos o eleva à imortalidade. O contraste entre a excelência do destinatário e a humildade do poeta, que auto-culpa o seu estro de baixa estima (v. 39), estreita a compenetração que já sugere a imagem clássica da hera enredada no tronco, agora adaptada ao sentimento de amizade de ordem hierárquica, pois o amparo recebido é devolvido com sinais de agradecimento ao superior. O eu, que apresenta a sua missão como poeta em nome do destinatário, formula uma nova proposta que redunda em seu benefício: e nela subireis / tão alto quanto aos ramos estendeis (vv. 41-42). Como nas ofertas da dedicatória e na promessa de sacralização, quem fala converte-se de novo em vate para prognosticar uma perenidade, antecipando a noção da Fama sobre a qual gravita o trecho inal do poema. 216 a quem dar ão de Pindo aS mor ador aS: uM CONTRIbuTO O discurso apelativo interrompe-se com uma digressão de duas estrofes acerca dos avatares da Fortuna, oposta à Fama (VII estrofe), contudo vencida pelos mecenas (VIII estrofe). A dicotomia entre as duas forças a que são submetidos os engenhos peregrinos consubstancia-se no vitupério da Fortuna, que por inveja castiga os engenhos peregrinos anteriormente elevados. São sucessivamente nomeadas algumas personagens históricas (Octaviano, / Cipião, Alexandre e Graciano, vv. 53-54), qualiicadas como altos corações (v. 50) que actuam como coluna / da ciência gentil (vv. 52-53). Tais elogios revertem sobre a igura do destinatário, relegada para este parênteses de generalização que apresenta a sua justiicação na apóstrofe e vós, que nosso século dourais (v. 56), igualando-o aos seus predecessores da Antiguidade. O tom encomiástico mantém-se na estrofe inal, que recupera as considerações sobre o próprio canto, a cítara sonora (v. 57) de som douto e jucundo (v. 59), numa alusão ao estilo culto. Um último inciso patriótico, e enquanto produzir o Tejo e o Douro / peitos de Marte e Febo crespo e louro (vv. 60-61), precede a proposta de glória imortal (v. 62), relexo das faculdades do poeta, bem como dos méritos do destinatário e da sua pátria numa menção que encerra o poema: Senhor Dom Manuel de Portugal (v. 63). Na ode alteraram-se diversos procedimentos de elogio, convergentes nesse vós que é D. Manuel, receptor indirecto da laudatio dos mecenas antigos e das expressões de auto-louvor de um vate com faculdades proféticas e imortalizadoras graças à sua acção protectora. A pessoa do mentor dota de sentido histórico o tempo actual, partilhado com quem fala numa fusão perfeita, através do tema da imortalidade. Todos os elementos redundam no encómio dessa pessoa, com a elevação adequada à sua posição. Este propósito central do poema faz-se explícito no cabeçalho dos testemunhos manuscritos, A D. Manuel de Portugal, e nos dois versos idênticos que rematam a introdução e a ode, Senhor Dom Manuel de Portugal (vv. 21, 63), para lhe dar o sentido de dedicatória do livro de poesia ou de uma das suas secções. O estilo sublime, conforme à tradição do epinício pindárico, denota a dimensão pública ou colectiva da ode, harmonizada com o tom íntimo que o eu mostra para exprimir agradecimento e amizade ao protector, de acordo com as duas vertentes, pública e privada, que ilustram as odes de Horácio. 217 COMENTÁRIO A CAMÕES, vOl . 3 4. EpílOgO: EMulANdO A TRAdIçãO Independentemente da data de elaboração, a ode de Camões mostra um domínio pleno do género por parte do autor, conhecedor da poesia antiga e também da dos seus predecessores italianos, espanhóis e portugueses, bem como dos recursos de um género plenamente adaptado aos seus propósitos. A marca horaciana da métrica, a modelização, o tom, os temas e motivos e a técnica demonstram a destreza do poeta, que fundamenta no modelo os seus óbvios contributos. O processo de assimilação implica desvios do ditado, com o propósito de actualizar e personalizar convenções genéricas, submetendo-as a uma intensa reelaboração. Portanto, apesar de o poema respeitar as normas da ode latina, sabe-se sobrepor às suas pautas e aos seus tópicos para ediicar um encómio a uma personalidade poderosa, com notas autobiográicas relativas à própria obra do autor e aos seus vínculos pessoais com o destinatário. Ao mesmo tempo, o peso desse presente neutraliza-se em nome de uma universalidade que determina o seu classicismo atemporal. bIblIOgRAfIA 1. TExTOS lITERÁRIOS dE REfERêNCIA Ferreira, António, Poemas lusitanos, ed. T. F. Earle, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2000, 2008. Herrera, Fernando de, Poesía castellana original completa, ed. Cristóbal Cuevas, Madrid, Cátedra, 1985. Minturno, Antonio, L’arte poetica, Venetia, Gio. Andrea Valuassori, 1564; München, Wilhelm Fink, 1970. León, Fray Luis de, Poesía, ed. Antonio Ramajo Caño, Barcelona, Galaxia Gutenberg, Círculo de Lectores, 2006. Portugal, D. Manuel de, Poesia. I. Prophana, ed. Fernando de Sá Fardilha, Porto, Instituto de Cultura Portuguesa, FLUP, 1991. Ronsard, Pierre de, Oeuvres complètes, ed. Jean Céard, Daniel Ménager, Michel Simonin, Paris, Gallimard, 1993, 2 vols. Tasso, Bernardo, Rime, ed. Domenico Chiodo, Torino, Res, 1995, 2 vols. Vega, Garcilaso de la, Obras completas, ed. de Elias L. Rivers, Madrid, Castalia, 1981. 218 a quem dar ão de Pindo aS mor ador aS: uM CONTRIbuTO Vega, Garcilaso de la, Obra poética y textos en prosa, ed. Bienvenido Morros, Barcelona, Crítica, 1995. 2. ESTudOS Azevedo Filho, Leodegário Amarante de, Introdução à lírica de Camões, Lisboa, Ministério da Educação, 1990. Bayet, Jean, Literatura latina, Barcelona, Airel, 1975. Beltrami, Pietro G., La metrica italiana, Bologna, Il Mulino, 2011, 5.ª ed. Cabello Porras, gregorio, «Las Varias poesías de Hernando de Acuña (1591): de un diseño estructural renacentista a una impresión manierista», Analecta Malacitana, 30, 2, 2007: 395-434. Cabello Porras, gregorio, «Las Varias poesías (1591) de Hernando de Acuña: de Garcilaso a Boscán. El tránsito del humanismo militar a la nueva lengua poética», Dicenda, 26, 2008: 5-61. Cabello Porras, gregorio, «La deconstrucción de la dispositio impresa de las Varias poesías de Acuña (1591): la subyacente estructuración trimembre de un proyecto editorial malogrado», Huir procuro el encarecimiento: La poesía de Hernando de Acuña, ed. gregorio Cabello Porras, Soledad Pérez-Abadín Barro, Santiago de Compostela, USC Editora-Académica, 2011: 43-187. Carducci, Giosuè, «Dello svolgimento dell’ode in Italia» [1902], Opere, I, Bologna, N. Zanichelli, 1921: 363-442. Chamard, Henri, Histoire de la Pléiade, I [1939], Paris, Didier, 1961. Cidade, Hernâni, Luís de Camões. O lírico, Lisboa, Presença, 2003. Collinge, N. E., The Structure of Horace’s Odes, London, Oxford University, 1961. Cristóbal, Vicente, ed., Horacio, Odas y epodos, Madrid, Cátedra, 1994, 1997. Dasilva, Xosé Manuel, «Um modelo para a editoração de poesia clássica: Leodegário A. de Azevedo Filho e a obra lírica de Camões», Moenia. Revista Lucense de Lingüística & Literatura, 2, 1996: 395-420. Dasilva, Xosé Manuel, «O valor decisivo dos manuscritos para o cânone camoniano: alguns exemplos a partir da poesia espanhola», I Congresso Internacional de Estudos Camonianos. Anais, Rio de Janeiro, UERJ, SBLL, 1999: 237-86. Dasilva, Xosé Manuel,«Carolina Michaëlis e a inauguração da modernidade nos estudos camonianos», Revista da Faculdade de Letras. Línguas e Literaturas, 18, 2001: 93-106. 219 COMENTÁRIO A CAMÕES, vOl . 3 Fowler, Roger, «Ode», A Dictionary of Modern Critical Terms, London, Henley & Boston, Routledge & Kegan Paul, 1973: 131-133. Fraenkel, Eduard, Horace, Oxford, Clarendon, 1959. Fraga, Maria do Céu, Os géneros maiores na poesia lírica de Camões, Coimbra, CIEC, 2003. Gentili, Bruno, «Aspetti del rapporto poeta, committente, uditorio nella lirica corale greca», Studi Urbinati, 39, 1965: 70-88. Gentili, Bruno, «Poeta-comitente-público», Ranuccio Bianchi Bandinelli, Historia y civilización de los griegos. Grecia en la época de Pericles, Barcelona, Bosch, 1981: 213-251. Heath-Stubbs, John., The Ode, London, Oxford University, 1969. Herrera, Fernando de, Anotaciones a la poesía de Garcilaso [1580], ed. Inoria Pepe, José María Reyes, Madrid, Cátedra, 2001. Higginbothan, John, Greek and Latin Literature (A Comparative Study), London, Methuen, 1969. Highbarger, Ernest L., «The Pindaric style of Horace», Transactions and Proceedings of the American Philological Association, 66, 1935: 222-255. Jump, John D., The Ode, London, Methuen, 1974. La espada y la pluma. Il mondo militare nella Lombardia spagnola cinquecentesca. Atti del Convegno Internazionale di Pavia, 16, 17, 18 ottobre 1997, Viareggio, Mauro Baroni, 2000. López Bueno, Begoña, ed., La oda, Sevilla, Universidad de Sevilla, 1993. Maclean, Norman, «From action to image: theories of the lyric in the Eighteenth century», in Critics and Criticism, ed. Ronald S. Crane, Chicago, University of Chicago, 1952: 408-460. Maddison, Carol, Apollo and the Nine. A History of the Ode, Baltimore, Johns Hopkins University, 1960. Marmier, Jean, Horace en France, au dix-septième siècle, Paris, PUF, 1962. Marnoto, Rita, O petrarquismo português do «Cancioneiro Geral» a Camões, Lisboa, IN-CM, 2015. McEuen, Kathryn A., Classical Inluence upon the Tribe of Ben, Cedar Rapids, Iowa, The Torch Press, 1939. McGuinness, Rosamond, English Court Odes (1600-1820), Oxford, Clarendon, 1971. Moura, Vasco Graça, Os penhascos e a serpente e outros ensaios camonianos, Lisboa, Quetzal, 1987. 220 a quem dar ão de Pindo aS mor ador aS: uM CONTRIbuTO Navarro Durán, Rosa, «Entretanto / que el sol al mundo alumbre..., una hipérbole fosilizada», Bulletin Hispanique, 85, 1-2, 1983: 5-19. Nisbet, R. G. M., Margaret Hubbard, A Commentary on Horace: Odes. Book I, Oxford, Clarendon, 1970. Pérez-Abadín Barro, Soledad, La oda en la poesía española del siglo XVI, Universidade de Santiago de Compostela, 1995. Pérez-Abadín Barro, Soledad, Resonare silvas. La tradición bucólica en la poesía del siglo XVI, Universidade de Santiago de Compostela, 2004. Pérez-Abadín Barro, Soledad, Los espacios poéticos de la tradición. Géneros y modelos en el Siglo de Oro, Málaga, Anejo 93 de Analecta Malacitana, 2014. Race, William H., Pindar, Boston, Twayne, 1986. Ramajo Caño, Antonio, «Una fórmula inmortalizadora: ‘dum’... ‘mientras’ (‘en tanto que’)...», Dicenda. Cuadernos de Filología Hispánica, 19, 2001: 293-302. Shafer, Robert, The English Ode to 1660: An Essay in Literary History, Princeton University, 1918. Shuster, George N., The English Ode from Milton to Keats, New York, Columbia University, 1940. Silva, Vítor Manuel de Aguiar e, Camões. Labirintos e fascínios, Lisboa, Cotovia, 1994. Silva, Vítor Manuel de Aguiar e, «Camões e a comunidade luso-castelhana nos séculos XVI e XVII (1572-1648)», A lira dourada e a tuba canora, Lisboa, Cotovia, 2008: 55-92. Spaggiari, Barbara, «Herança clássica e inovação no género poético da Ode», Mesa redonda. Tradição e Vanguarda. XIII Encontro de Professores Universitários Brasileiros de Literatura Portuguesa, Rio de Janeiro, UFRJ, FJB, FCB-P, 1992: 346-349. Tracy, H. L., «Thought-Sequence in the Ode», Studies in Honour of Gilbert Norwood. Phoenix, Supp. vol. 1, Toronto, 1952: 203-213. Williamson, Edward, Bernardo Tasso, Roma, Edizioni di Storia e Letteratura, 1951. Trabalho inserido no Proyecto de I+D La poesía hispano-portuguesa de los siglos XVI y XVII: contactos, conluencias, recepción (FFI2015-70917-P), do «Programa Estatal de Fomento de la Investigación Cientíica y Técnica de Excelencia, Subprograma Estatal de Generación del Conocimiento (MINECO, Gobierno de España)». 221 Algumas observações acerca da ode IV e da ode IX Barbara Spaggiari Iv OdE As edições Quanto à tradição impressa da IV ode, a maior parte dos editores escolhe como texto-base a segunda edição das Rimas (1598), introduzindo porém um certo número de correcções ou inovações1. Faria e Sousa (Rimas varias II 1689, 3: 139-147), por exemplo, apresenta algumas lições que não coincidem com nenhum dos três testemunhos que actualmente se conhecem, que são a primeira edição das Rimas (1595: 48-49v), a segunda (1598: 56v-58) e o Manuscrito de Juromenha (16-17v). Mais detalhadamente: v. 12 v. 62 v. 63 e se mays tenho inda entregarey e mais se tenho mais te entregarei e se mays tenho, mays entregarey Rimas 1595, Rimas 1598 Manuscrito de Juromenha Faria e Sousa Rimas varias Tomaime vos Rimas 1595, Rimas 1598, Manuscrito de Juromenha Vós me tomay Faria e Sousa Rimas varias E assi disi e Disse Rimas 1595, Rimas 1598 Manuscrito de Juromenha Faria e Sousa Rimas varias Como Faria e Sousa não aduz qualquer explicação sobre o assunto, pode-se supor que se trate de intervenções para ‘melhoria’ do texto, mais 1 Quanto à discussão das variantes, reenvia-se para o comentário anteriormente feito a cada verso. Lembre-se que as três variantes das Rimas 1598 estão conirmadas pela lição do Manuscrito de Juromenha. 223 COMENTÁRIO A CAMÕES, vOl . 3 do que lições tiradas de qualquer outro manuscrito hoje perdido. Têm relevo apenas formal as restantes divergências: v. 29 v. 39 v. 49 A a porta Por o Por o A porta Pello Pello Costa Pimpão segue como sempre a segunda edição (Rimas 1598), à excepção de três lugares em que prefere recuperar a lição da primeira edição (Rimas 1595), sem fornecer qualquer explicação sobre essa opção. Ora, os três lugares repescados da princeps correspondem a outras tantas lições manifestamente erróneas das Rimas de 1595: v. 32 v. 47 v. 68 inocências se inlama Elisa insolencias se infama illesa Rimas 1595 Rimas 1595 Rimas 1595 Rimas 1598 Rimas 1598 Rimas 1598 Não deixa de surpreender, além disso, que Costa Pimpão se tenha desviado do texto-base preferencial da sua edição, Rimas 1598, precisamente no caso de um texto em que a segunda edição mostra ser verdadeiramente superior à primeira. É da mesma opinião Aguiar e Silva, que no seu estudo sobre a IV ode se baseia na edição de Hernâni Cidade, decorrente de Rimas 1598, acrescentando em nota: «A edição de Costa Pimpão não acolhe — mal, em meu entender — as correcções da edição de 1598» (2008: 153). De acordo com aquela que é uma constante da sua edição, Leodegário A. de Azevedo Filho é o primeiro crítico a acolher a versão do único manuscrito que transmitiu a ode, o Manuscrito de Juromenha: Ao que admitimos, em face do exame de crítica interna do ms. Jur., nele foram recolhidas lições antigas. Entretanto, por ser um códice tardio (ins do século XVI ou princípios do século XVII), há quem pense que o Ms. Jur. (e pensam sempre a priori) seja simples cópia de RH ou de RI, erro que deve ser urgentemente rectiicado. Com efeito, no citado códice, a Ode se faz anteceder da seguinte rubrica: «Com pequena diferença da que anda impressa». A rubrica é importante, pois nos mostra que o copista trasladou o texto de outro manuscrito, talvez contemporâneo do Poeta, afastando-se assim da 224 A lguMAS ObSERvAçÕES ACERCA dA OdE Iv E dA OdE Ix tradição impressa que se formava naquela época. Portanto, o texto do Ms. Jur, que certamente remete a longa tradição manuscrita anterior, será o nosso texto-base. (Lírica de Camões 3 II 1997: 157) A rubrica, que na realidade reza «Com pouca diferensa da que anda impressa», não tem contudo qualquer valor de prova, porque foi registada por uma mão do século XIX, com toda a probabilidade a do Visconde de Juromenha, que fez várias apostilhas ao códice. São erros de leitura do Manuscrito de Juromenha na edição de Azevedo Filho: v. 12 v. 13 v. 59 v. 60 v. 71 v. 77 mais entregarei pois a natureza irosa Que com mal de mal sabe que vida lhe é É digno E assi em vez de em vez de em vez de em vez de em vez de em vez de mais te entregarei pois que natura iroza Que em mal de mal sabe quedalhe he que he digno asi No v. 14, surge razão em vez de rezão no aparato (Lírica de Camões 3 II 1997: 162). No v. 18 (ib., p. 163, comentário), a lição do Manuscrito de Juromenha é realmente masia e quãto, ou seja, mas já em quanto, contra mais que em quanto dos outros testemunhos. No v. 28, o texto crítico da p. 156 traz a lição com a, enquanto no aparato, p. 166, surge ca: no Manuscrito de Juromenha lê-se ea, ou seja, e a. No v. 42, o Manuscrito de Juromenha traz a lição deRoma, não deu Roma, como indicado no texto, p. 156, e no comentário, p. 171. No v. 66, o Manuscrito de Juromenha traz a lição acude (corrigido a partir de acuda), em vez de acudas como igura tanto no texto crítico, p. 156, como no comentário, p. 179. Além disso, o esquema métrico indicado (aBaBcB; p. 183) não corresponde ao da ode IV, que na realidade é aBaBcC. A mulher-fera No primeiro verso, o sintagma fermosa fera, com referência à amada cruel que não corresponde ao amor do poeta, funciona como catalisador de um grupo de poemas centrados sobre o tema da liberdade perdida. Para além da IV ode, a este pequeno ciclo da mulher-fera pertence igualmente 225 COMENTÁRIO A CAMÕES, vOl . 3 o soneto que começa, «Aquela fera humana que enriquece / sua presunçosa tirania» (Rimas: 137). «Aquela fera humana» é um decalque directo do módulo petrarquesco «questa» / «quella fera», em expressões como «questa humil fera», «quella fera bella et cruda», «questa fera angelica», sempre com deíctico inicial. No mesmo soneto, Camões introduz, no primeiro terceto, o tema da batalha de amor, da qual o amante só pode sair vencido e prisioneiro: «Ora, enim, sublimai vossa vitória, / Senhora, com vencer-me e cativar-me» (vv. 8-9). Tem o seu correspondente na IV estrofe da ode, na qual a mulher-fera celebra o seu triunfo sobre os vencidos. Outro texto que se pode trazer à colação é a II ode, Tão suave, tão fresca, tão fermosa (Rimas: 262-263), na realidade uma canção, como o demonstrou Emmanuel Pereira Filho (1974). Os atributos «fermosa, mansa fera» (v. 5) são da Ninfa que na III estrofe mostrará a verdadeira natureza escondida da sua beleza: Ligeira, bela Ninfa, linda, irosa, não creio que seguiu Sátiro, cujo brando coração d’amores comovesse fera irada, que assi fosse fugindo e desprezando este tormento, onde Amor mostrou tão próspero começo. (Rimas: 262) A compacticidade da inspiração é ulteriormente comprovada pela presença, em posição rimática, de «irosa», a que responde, à distância de dois versos, «fera irada», numa oposição conceptual com a «mansa fera» do quinto verso desta II ode. Ora, o uso de «irosa» em rima pode ser confrontado com a IV ode, Pois natureza irosa (v. 13). Aliás, não se pode ignorar o texto que Faria e Sousa editou como VIII elegia (Rimas varias II 1689, 4: 58-61), intervindo logo no seu primeiro verso para corrigir a lição «Felicia», que é a oferecida pelos testemunhos, em «Belisa», senhal camoniano. Apesar de se tratar de uma composição claramente apócrifa, como o mostram, além do mais, os manuscritos que a atribuem a Francisco de Andrade, na parte inicial da elegia um bloco de seis tercetos, que começa por «Fermosa fera», constitui o melhor comentário ao tema da mulher-fera e das partes contrárias que a natureza lhe atribuiu: 226 A lguMAS ObSERvAçÕES ACERCA dA OdE Iv E dA OdE Ix Fermosa fera, a quem está rendida de amor a que he mays livre liberdade, ganhada mays, se mays por ti perdida: Quam contrario parece na beldade, que os coraçoens cativa com brandura alguma nodoa aver de crueldade! Quam contrario parece em fermosura, que deyxa muito atraz quanto he humano, esquiva condição, ou alma dura!2 (Rimas varias II 1689, 4: 58, vv. 4-12) O tema da mulher-fera provém em linha directa de Petrarca3, que o trata em lugares nodais do seu Cancioneiro. Na sextina A qualunque animale alberga in terra, o sintagma «sì aspra fera» (Canz. 22, 20) identiica Laura como animal selvagem («fera») e além disso cruel («aspra»): «Non credo che pascesse mai per selva / sì aspra fera, o di nocte o di giorno, / come costei» (vv. 19-21). Na canção das metamorfoses, Nel dolce tempo de la prima etade (Canz. 23), que vem logo a seguir à sextina A qualunque animale alberga in terra, surge pela primeira vez o oximoro «quella fera bella et cruda» (23, 149). A beleza, que é relexo divino, é acompanhada pela crueldade típica do animal, naquele paradoxo vivo que é Laura, objecto de um amor não correspondido. A canção de aniversário que começa, Ne la stagion che ’l ciel rapido inclina (Canz. 50), inclui uma apóstrofe de quatro versos ao deus Amor para o recriminar pela sua ineicácia. De facto, se por um lado Cupido leva o poeta a seguir os vestígios da fera que o consome, por outro lado não é capaz, ele 2 Recorde-se o passo paralelo de Os Lusíadas em que Actéon, confrontado com duas alternativas, prefere a fealdade selvagem dos animais à beleza feminina: «que, por seguir feio animal fero, / foge da gente e bela forma humana» (Lus. IX 26, 3-4). Noutros termos, Actéon prefere a caça nos bosques (Diana) ao amor por uma mulher (Vénus) e é precisamente aí que reside a sua culpa. 3 E através de Petrarca, provém do Dante pétreo, como precisamente o observa Rosanna Bettarini no seu comentário (ad loc.). 227 COMENTÁRIO A CAMÕES, vOl . 3 próprio, de a capturar, porque ela se esconde e lhe foge. A reciprocidade do sentimento amoroso não é portanto conseguida4. Na canção Chiare, fresche et dolci acque (Canz. 126), a mente do poeta abre-se a uma frágil esperança: «Tempo verrà anchor forse / ch’a l’usato soggiorno / torni la fera bella e mansüeta» (vv. 27-29), com «mansüeta», no sentido de dócil, que se opõe a «cruda», cruel, selvagem. Reenvia para um outro lugar do Cancioneiro, desta feita um soneto: Questa humil fera, un cor di tigre o d’orsa, che ’n vista humana e ’n forma d’angel vène, in riso e ’n pianto, fra paura et spene mi rota sì ch’ogni mio stato inforsa.5 (Canz. 152, 1-4) A fera na aparência terna e benévola (humil ), mas na realidade com coração de tigre ou de ursa, apresenta-se sob aspecto humano e com uma beleza digna de um anjo6. Também «angelica innocente» é a fera de Qual più diversa et nova, a canção dos mirabilia: «et gli occhi vaghi ien cagion ch’io pèra, / di questa fera angelica innocente» (135, 44-45). 4 «Ahi crudo Amor, ma tu allor più mi ’nforme / a seguir d’una fera che mi strugge, / la voce e i passi et l’orme, / et lei non stringi che s’appiatta et fugge» (Canz. 50, 39-41). 5 Trata-se do soneto das «varïetati», como o escreve o seu décimo verso, «tante varïetati omai soffrire». É composto «di stati d’animo luttuanti, di scontro estremo di contrari», de acordo com uma característica própria de toda a sequência acrescentada pela ‘forma’ Chigi, «dominata dal numero ‘due’ tematico [...]. Un ‘due’ che è spacco tra cielo e terra, come mostra in dall’inizio la ‘varietà’ annunciatrice di tutto il testo, fondata su un oxymoron indistricabile e incarnato nel deittico, “Questa humil fera...”, intorno al quale si aggregano altre lacerazioni, angel contro fera, humana contro tigre e orsa, vista esterna contro forma interiore, asprezza contro mansuetudine (vv. 1-2)», numa tensão binária que subjaz a todo o texto, «tigre... orsa, vista humana... forma d’angel, m’accoglie... mi smorsa, fragile... stanca, ino al raddoppio termico-cromatico delle coppie verbali antitetiche e giustapposte, arde e agghiaccia, arrossa e (i)nbianca», observa Rosanna Bettarini no seu comentário (ad loc.). 6 «Quanto alla vista ed alla igura è uomo, ma la forma, cioè la bellezza, eccede l’umana, ché è angelica; e se gli angeli prendessero igura umana, tale la prenderebbero», nota Lodovico Castelvetro no seu comentário ao Cancioneiro (I 348-349). 228 A lguMAS ObSERvAçÕES ACERCA dA OdE Iv E dA OdE Ix Na senda de Petrarca, o tema da mulher-fera percorre a lírica dos séculos XV e XVI, entrelaçando-se com outros tópicos petrarquescos ou plasmando as minúcias típicas dos maneiristas. Observem-se os exemplos seguidamente apresentados: — Lorenzo de’ Medici: Più che mai bella e men che già mai fera mostrommi Amor la mia cara inimica,7 quando e pensier’ del giorno e la fatica tolto avea il pigro sonno della sera. (Canzoniere 52, 1-4) — Tebaldeo: Deh, maledetto sia chi amando spera, né chi mai mette la sua affezione in donna: in donna non, ma in aspra fera! (Rime 73 (dubbia), 52-54) — Matteo Maria Boiardo: Gentil mia fera e snella, agile in vista, candida e ligiera, sendo cotanto bella, come esser puote in te mai mente altera né de pietà ribella? (Amorum libri 50, 22-26) 7 Propõe-se neste passo um outro oximoro caro a Petrarca, o da «dolce mia nemica», que no Cancioneiro ocorre seis vezes. A matriz remonta a Dante, Tutti li mei penser, «la mia nemica» (v. 13), já antecedido pelo trovador italiano Sordello da Goito, com «dolza enemia» (Er encontra˙l temps de mai, vv. 41-42 e Bel m’es ab motz, v. 33). 229 COMENTÁRIO A CAMÕES, vOl . 3 — Seraino Aquilano: Ma certo errò natura a far tal iera; ché se voleva far cosa sì cruda non dovea dargli sì pietosa ciera. (Rime son. [dubbi] 13, 12-14) — Torquato Tasso, Aminta: Ho visto al pianto mio risponder per pietate i sassi e l’onde, [...] ma non ho visto mai, né spero di vedere, compassion ne la crudele e bella, che non so s’io mi chiami o donna o fera: ma niega d’esser donna, poiché niega pietate a chi non la negaro le cose inanimate. (Aminta, Atto 1, sc. 2, 1-2, 5-12) — Luigi Groto: Innamorata dell’Auttore. Una donna, una diva, anzi una iera, che ha volto, et aria d’alba, occhi di sole sdegni d’assentio, di manna parole, nel dire humil, ne’ portamenti altera, che ha sembiante cortese, anima fera, guancie di rose, iato di viole, bellezze al mondo rare, asprezze sole, lingua di mel, riso di primavera. (Rime, I, 46 [n.° 28]) 230 A lguMAS ObSERvAçÕES ACERCA dA OdE Iv E dA OdE Ix Non sa chi sia la sua donna. Di ardor illustre, o dolce iamma mia t’amai, né però ancor so chi tu sia, se fera, come poi tanta hai beltade? Se dea, come poi tanta crudeltade? Se donna, come poi sì ferma stai in un pensier de non amarmi mai? Che sei dunque madonna? Se nè fera tu sei, nè dea, nè donna? Sei commista di tre quasi chimera dea al volto, donna all’habito, al cor fera? (Rime, II, 579 [n.° 135]) A mulher-Circe Na tradição poética, Circe é geralmente associada a Medeia, como acontece na elegia de Tibulo que assinalámos entre as possíveis fontes da IV ode: «Quicquid habet Circe, quicquid Medea veneni, / quicquid et herbarum Thessala terra gerit / [...] / si modo me placido videat Nemesis mea vultu, / mille alias herbas misceat illa, bibam» (II 4, 55-60; ‘Qualquer veneno que tenha Circe, que tenha Medeia, / qualquer erva que produza a terra de Tessália, / […] / se Némesis me olhar com o seu plácido rosto, / beberei a poção de mil outras ervas por ela preparada’). Em Camões, veja-se a VIII ode, a D. Francisco Coutinho: ũa horta produze várias ervas nos campos Indianos, as quais aquelas doutas e protervas Medeia e Circe nunca conheceram, posto que a lei da Mágica excederam. (Rimas: 274) No início dessa mesma elegia, Tibulo introduz o conceito de servitium amoroso prestado a uma domina, fala das cadeias e dos grilhões com que Amor o mantém prisioneiro, lamenta-se das chamas da paixão que o queimam e sublinha a crueldade da sua puella: «Hic mihi servitium video dominamque paratam: / iam mihi, libertas illa paterna, vale. / Servitium 231 COMENTÁRIO A CAMÕES, vOl . 3 sed triste datur, teneorque catenis, / et numquam misero vincla remittit Amor, / et seu quid merui seu nil peccavimus, urit. / Uror, io, remove, saeva puella, faces» (II 4, 1-6; ‘Aqui vejo prontos para mim escravidão e senhoria: digo pois adeus à liberdade dos meus pais. Triste é a escravidão que me é imposta: estou preso com correntes, e nunca Amor a mim infeliz alivia os laços; que o tenha merecido ou que tenha caído em erro, Amor queima, e eu ardo, e tu, impiedosa jovem, afasta as chamas). O tema do exclusus amator surge no verso: «Ne iaceam clausam lebilis ante domum» (II 22; ‘para que eu não ique a chorar diante da sua casa fechada’). A mulher-borboleta A inversão do topos tradicional confere à mulher amada um papel que normalmente estava reservado ao amante, de acordo com uma tradição que remonta, por via directa, às origens da lírica ocidental. Desta feita, passa a ser a mulher a queimar-se: que, sendo tão fermosa, / folgues de te queimar em lamas várias, / sem arder em nenhũa (vv. 15-17). Assente quer no repertório dos bestiários medievais, quer na poesia dos stilnovistas, a comparação do amante com a borboleta nocturna (mais precisamente a falena; it. «parpaglione», fr. «papillon») aigura-se de facto como exclusiva da lírica cortês, primeiro trovadoresca, depois siciliana e sículo-toscana. O motivo surge pela primeira (e única) vez na poesia provençal com Folquet de Marselha: Ab bel semblan que fals’Amors adutz s’atrai vas leis fols amanz e s’atura, co˙l parpaillos c’a tan folla natura que˙s fer el foc per la clartat que˙i lutz.8 ‘Pelo belo aspecto que aduz o falso Amor, o amante louco deixa-se atrair e aproxima-se dele, como a borboleta que tem uma natureza tão louca que se lança no fogo pela claridade que nele reluz’. 8 Le poesie, VII Sitot me soi a tart aperceubuz, 9-12; ‘Pelo belo aspecto que aduz o falso Amor, o amante louco deixa-se atrair e aproxima-se dele, como a borboleta que tem uma natureza tão louca que se lança no fogo pela claridade que nele reluz’. 232 A lguMAS ObSERvAçÕES ACERCA dA OdE Iv E dA OdE Ix Imita-o quase à letra um anónimo poeta siciliano, utilizando esse motivo nos tercetos do soneto: Ché similmente – vostra gran bieltate seguir mi face la folle natura del parpaglione che fere lo foco, ché vede i˙llui sì grande chiaritate che girando si mette˙n aventura, ov’ ha morire credendo aver gioco. (Sonetti anonimi del Vaticano Lat. 3793, XI 9-14: 63) Além de «parpaillos» = «parpaglione», notem-se as correspondências «folla natura» = «folle natura», «fer» = «fere», «foc» = «foco», «clartat» = «chiaritate», bem como a inovação de «morire» como «gioco». O mesmo tema e os mesmos sintagmas encontram-se, igualmente no âmbito da escola siciliana, num célebre soneto de Giacomo da Lentini: Sì como ’l parpaglion c’a tal natura non si rancura – de ferire al foco, m’avete fatto, gentil creatura: non date cura, – s’eo incendo e coco. Venendo a voi lo meo cor s’asigura. pensando tal chiarura – si ’a gioco (Poesie, son. 34, 1-6) Veja-se posteriormente Guittone d’Arezzo: Gioncell’a fonte, parpaglione a foco per ispesso tornare si consuma: favilla de desdegno a poco a poco soave core di forore alluma. (Rime, son. 167, 1-4) Neste caso, os sintagmas «a gioco» (v. 5) e «lo fere» (v. 11) são sucessivamente usados em rima. 233 COMENTÁRIO A CAMÕES, vOl . 3 Chiaro Davanzati dá mostras de um apreço particular pelo topos: Del parpaglione – aver mi par natura, che si mette a l’arsura per lo chiaror del foco a la stagione; così m’aven, di voi, bella, veggendo, che mi moro temendo, cherendo a voi merzede. (Rime, canz. 6, 37-42) Ché, quando guardo lo suo chiaro viso, fo come ’l parpaglione a la lumera, che va morire per sua claritate; ed io mirando lo suo gioco e riso, fo come quelli che mira la spera del sol: sua luce non ha claritate. (Rime, son. 7, 9-14) Il parpaglion che fere a la lumera per lo splendor, ché sì bella gli pare, s’aventa ad essa per la grande spera, tanto che si conduce a divampare: così facc’io, mirando vostra cera, madonna, e ’l vostro dolce ragionare, che diletando struggo come cera e non posso la voglia rifrenare. Così son divenuto parpaglione che more al foco per sua claritate, e per natura ha ’n sé quella cagione. (Rime, son. 25, 1-11) ché ’l vano asalto face il parpaglione bassare a lume per la chiaritate (Rime, son. 62, 12-13) 234 A lguMAS ObSERvAçÕES ACERCA dA OdE Iv E dA OdE Ix Por sua vez, Inghilfredi da Lucca escreve: e folle sicuranza mi fa del parpaglion risovenire che per clartà di foco va a morire. (Le rime, canz. Greve puo’ om piacere, 35-37) Também Dante da Maiano trabalha a imagem: Mante iate pò l’om divisare co gli occhi coa che col cor dicede, a˙ssemiglianza, como audi’ nomare, del parpaglione ch’a lo foco fede; (Rime, 36, 1-4) Neste soneto, tanto a palavra como a igura de semelhança são retomadas nos versos inais: «sì che l’affanno de la inamoranza, / in amar voi pugnando similmente / co ’l parpaglion, m’ha morto in disianza» (vv. 12-14). Para terminar esta panorâmica, recorde-se Il mare amoroso: che se vi spiace ch’io vi deggia amare, gittate via la vostra gran beltade, che mi fa forsenar, quando vi miro, sì come il parpaglion che fere al foco veggendo il gran splendor de la lumiera. (Il mare amoroso, vv. 77-81) Todos os exemplos até ao momento propostos são reconduzíveis à matriz sículo-provençal e têm em comum o uso de «parpaglion(e)» como palavra-chave. Ocorrem constantemente outros vocábulos, tais como «chiarità» (cf. prov. «clardat»), com as variantes «chiaritate», «chiarura», «chiaror», «claritate», «claro» («viso»); «splendor(e)»; «lum(i)era»; bem como os verbos «(que) lutz» e «alluma». A luz está ligada ao fogo (prov. «foc», it. «f(u)oco»), que necessariamente fere (cf. «fer», «fere», «fede», «ferir»). O amante-borboleta pode, pois, «morire», «incendiarsi», «consumarsi», «divampare» ‘prendere fuoco’ ou mesmo «cuocere». De resto, dois elementos acessórios completam o quadro, por um lado, a alusão ao facto 235 COMENTÁRIO A CAMÕES, vOl . 3 de a atracção da borboleta (= amante) pela luz (= amada) ser inerente à sua própria natureza, pelo que não é susceptível de ser controlada através da vontade; por outro lado, o reenvio para o «gioco» como última ilusão que conduz à morte. A partir de Dante e de Petrarca, o «parpaglione» sículo-toscano deixa lugar a uma verdadeira borboleta, qualiicada como «angelica» no Purgatorio 9 e como «semplicetta» no Cancioneiro de Petrarca. Trata-se, na obra de cada um dos poetas, de casos de hápax, palavras ou sintagmas que surgem uma única vez. Se em Dante não há sinais da antiga falena, em Petrarca pode-se facilmente descobrir um eco do motivo tradicional, apesar de sublimado num contexto diverso: Come talora al caldo tempo sòle semplicetta farfalla al lume avezza volar negli occhi altrui per sua vaghezza, onde aven ch’ella more, altri si dole: così sempre io corro al fatal mio sole degli occhi onde mi vèn tanta dolcezza che ’l fren de la ragion Amor non prezza, e chi discerne è vinto da chi vòle.10 (Canz. 141, 1-8) O adjectivo «semplicetta» provém de Dante, do verso do Purgatorio, «l’anima semplicetta che sa nulla» (XVI 88), com referência a quem não sabe decidir entre o bem e o mal, segundo a deinição de São Tomás. Ora, em Petrarca é atribuído à borboleta: «La farfalla ignara, inesperta, abituata a volare verso la luce, per suo piacere (o per il suo girovagare) suole volare negli occhi altrui, attirata dalla loro luce», comenta Bettarini (ed. Canz., ad loc.). 9 «non v’accorgete voi che noi siam vermi / nati a formar l’angelica farfalla, / che vola a la giustizia sanza schermi?» (X 124-126). 10 Comenta Bettarini: «La semplicetta e mirabile farfalla di questo sonetto mette in azione il tema di morte sotto il segno della fatalità di Amore. […] A questo modo l’antico tema lirico del papillon che, attratto dalla luce, sperimenta la mortale virtù del fuoco, già issato sulle soglie del Canzoniere nel sonetto Son animali […], dà materia alla similitudine spartita nelle due quartine» (ed. Canz., ad loc.). 236 A lguMAS ObSERvAçÕES ACERCA dA OdE Iv E dA OdE Ix Tacitamente, a comparação com a borboleta encontra-se também presente num dos sonetos iniciais do Cancioneiro, no qual são evocados alguns animais que, à semelhança do amante, se sentem atraídos pela luz, podendo mesmo ixar directamente o sol, como acontece com a águia, outros que a evitam, pelo que vivem de noite para fugirem do esplendor que cega, e outros ainda («altri»), como a borboleta: et altri, col desio folle che spera gioir forse nel foco, perché splende, provan l’altra vertù, quella che ’ncende; lasso, e ’l mio loco è ’n quest’ultima schera. (Canz. 19, 5-7) Recuperando estilemas trobadóricos, Petrarca sublinha o «desio folle» (cf. a «folla natura» de Folquet de Marselha), virtualmente oposto à «in’amors», que inculca na borboleta-amante a ilusão de poder gozar o fogo. Também «gioire» é um tecnicismo, construído a partir do provençal «joi», recompensa amorosa11. Não é pois o «gioco» dos sículo-toscanos, mas o «joi» dos trovadores a constituir o objectivo inal do seu voo. Na sua natural «follia», que é desejo desmesurado, a borboleta «semplicetta» não sabe distinguir as duas virtudes do fogo: por um lado, o clarão da luz que a atrai, por outro lado, o calor da chama que a queima. O «joi» loucamente esperado transforma-se então em morte12 . As duas tradições que acabaram de ser individuadas, uma trobadórico-siciliana-sículo-toscana («parpaglione»), outra constituída em hápax no eixo Dante-Petrarca («farfalla»), têm o seu ponto de encontro num dos autores que aloram regularmente no comentário à lírica de Camões, Seraino Aquilano: 11 A tradução proposta é forçosamente redutora, porque o conceito de «joi», no código dos trovadores, é bastante complexo e transmite toda uma ilosoia de vida e de poética. De facto, «joi» indica o máximo da perfeição, quer espiritual, quer física, susceptível de ser atingida no ápice de um itinerário iniciático que visa conquistar o amor perfeito. 12 Outras ocorrências do lema, aliás registadas em repertórios especíicos, com relevo para a série de lugares que circula na corrente cómico-realista com Rustico di Filippo, Burchiello, Pulci e Berni, ultrapassam o âmbito da nossa pesquisa. 237 COMENTÁRIO A CAMÕES, vOl . 3 Cerco mia libertà, mia alma, el core De’ quai col sguardo tuo m’hai privo e casso, Ma qual farfalla semplice mi spasso Che segue il lume, ove ’l corpo arde e more. (Rime, son. dubbi 21, vv. 5-8) O motivo da borboleta acrescenta-se, neste caso, a outros topoi da poesia erótica, todos estritamente ligados ao «sguardo», que constitui um elemento-chave de qualquer tratado do século XVI sobre amor. Alude-se, em particular, aos efeitos pelos quais os olhos são responsáveis, efeitos esses que se encontram em alguns poemas de Camões: a perda da liberdade (cf. por exemplo a IV ode: da doce liberdade desejada, v. 10), o exílio da alma que é separada do corpo (cf. o soneto Alma minha gentil que te partiste, Rimas: 156) e a alma que, ao afastar-se da prisão do corpo, vive com estabilidade na amada («esta alma que em vós mora / (enquanto da prisão se está apartando)», Rimas: 209, canção Já a roxa manhã clara). As privações que o amante tem de suportar por causa do olhar da amada não bastam, porém, para o afastar dos seus olhos, como a borboleta que na sua inexperiência («semplice») segue a luz daquela chama na qual o seu corpo está destinado a consumir-se, dando-lhe a morte. Outras ocorrências de «farfalla» na lírica do século XVI reenviam para poetas que, tal como Seraino Aquilano, se inscrevem entre as possíveis fontes de Camões. Observem-se os exemplos seguidamente apresentados de Sannazaro, Bembo e Tansillo: — Iacopo Sannazaro: Così ad ogni or, farfalla, al foco torno; così, fenice, al sole il nido allumo, e moro, e nasco mille volte il giorno. (Sonetti e canzoni 52, 12-14) — Pietro Bembo: E ’l divin chiaro sguardo sì mi piace, ch’io ritorno a perir de la sua vista, come farfalla al lume che la sface. (Rime 10, 12-14) 238 A lguMAS ObSERvAçÕES ACERCA dA OdE Iv E dA OdE Ix — Luigi Tansillo: Ogni lor guardo è iamma, ogni lor cenno. Né vedo, che per noi d’arder risparme fredda o languida età, valor né senno; anzi ogni cor gentil voria aver piume, per arder, qual farfalla, al vostro lume.13 (Canzoniere IV, stanze III, 52-56: I 245) Anda na obra de Tansillo um madrigal em que o topos da borboleta serve de suporte à estrutura de toda a composição. A luz dos olhos da amada é inicialmente comparada à luz do sol e a partir dessa primeira semelhança é desenvolvida a tradicional conclusão, reproposta num contexto que se quer positivo: Di me farfalla, pargoletta e frale, qual ia la gloria tra’ più vaghi augelli, ch’ebbi ardir di spiegar le piccol’ale al gran splendore de gli occhi e de’ capelli, ove Amor vinto regna, e col volo cercai morte sì degna? Qual pregio, udendo dire: – Ogni farfalla, spenta in sul gioire. intorno a picciol lume morir suole, quest’ebbe morte per gioir nel sole! (Il Canzoniere edito e inedito, Madrigale XII, 3: I 164-165) Num certo sentido, com Tansillo o círculo fecha-se. Se a borboleta é «pargoletta e frale», como o espírito em Dante, o vulto da mulher (não só os olhos, mas também os cabelos) brilha como o sol, segundo uma metáfora de Petrarca («il fatal mio sole», Canz. 141, 5) que depois se propaga à lírica maneirista. E se, normalmente, a borboleta morre, pensando no gozo, ao ser atraída pelo lume de uma pequena chama, neste caso o poeta pode-se 13 A mesma imagem volta a ser utilizada na VIII canção: «ma spiegherò le piume / a guisa di farfalla, al vostro lume» (vv. 25-26: I 123). 239 COMENTÁRIO A CAMÕES, vOl . 3 vangloriar de morrer para «gioir nel sole». A morte do amante na amada corresponde pois ao «joi» provençal. O «exclusus amator» Em âmbito latino, paraklausithyron, com a variante do lamento do exclusus amator, provém do LXVII poema de Catulo, dedicado à porta de uma adúltera: O dulci iucunda viro, iucunda parenti, salve, teque bona Iuppiter auctet ope, ianua, quam Balbo dicunt servisse benigne olim, cum sedes ipse senex tenuit, quamque ferunt rursus nato servisse maligne, postquam es porrecto facta marita sene. dic age de vobis, quare mutata feraris in dominum veterem deservisse idem. «Non (ita Caecilio placeam, cui tradita nunc sum) culpa mea est, quamquam dicitur esse mea, nec peccatum a me quisquam pote dicere quicquam: verum istis populis ianua quidque facit, qui, quacumque aliquid reperitur non bene factum, ad me omnes clamant: ianua, culpa tua est».14 (Cat. LXVII 1-14) A porta volta de novo a igurar, desta feita como protagonista activa, na primeira elegia de Propércio. Num monólogo, a porta lamenta-se de ser 14 Cat. LXVII 1-14; ‘Ó porta, tu que és tão cara a um terno esposo, tão cara a um pai, salvé, que Júpiter te encha de bens; porta, que dantes – diz-se – serviste honestamente Balbo, quando o velho em pessoa habitava a casa; e que, conta-se, de novo serviste o ilho, mas com maldade, depois que, morto o velho, te tornaste propriedade de jovens esposos. Diz, pois, porque se conta que mudaste a ponto de abandonar a tua antiga lealdade para com o dono. «Não (assim agrade a Cecílio, a quem agora pertenço), não é culpa minha, apesar de se dizer que é minha, e ninguém pode dizer que eu esteja errada: mas para esta gente, a porta é sempre a causa de tudo; mal há algo que não está bem, todos gritam contra mim: Porta, é tua culpa»’. 240 A lguMAS ObSERvAçÕES ACERCA dA OdE Iv E dA OdE Ix mantida obstinadamente fechada15 porque a dona se recusa a receber os seus amantes. Tem pois de suportar os insultos e os maus-tratos dos excluídos: Quae fueram magnis olim patefacta triumphis [...] nunc ego, nocturnis potorum saucia rixis, pulsata indignis saepe queror manibus et mihi non desunt turpes pendere corollae semper et exclusis signa iacere faces.16 Originariamente, o exclusus amator apresenta-se como elemento subsidiário do tema principal. A sua deinição, correspondente ao paraklausithyron grego, remonta a um verso do De rerum natura de Lucrécio: At lacrimans exclusus amator limina saepe Floribus et sertis operit postisque superbos Unguit amaracino et foribus miser oscula igit.17 A partir de Catulo e de Propércio, encontram-se numerosos exemplos do topos nos poetas elegíacos e sobretudo nas obras eróticas de Ovídio. 15 Trata-se de um caso de prosopopeia ou personiicação, a igura retórica através da qual «se atribuye la habla a cosa muda» (Herrera, Anotaciones: 347). Refere-se-lhe detalhadamente Fernando de Herrera a propósito do X soneto de Garcilaso, ¡Ó dulces prendas por mí mal halladas, inspirando-se, como habitualmente, em Scaligero (Poetices libri III, Idea, XLVIII, 126). Depois de citar os libelli de Ovídio (Am. I 1) e a porta de Propércio (Prop. I 16), Herrera propõe um excerto do Eliocriso enamorado de Mosquera de Figueroa, uma obra hoje desconhecida, que retoma e amplia a apóstrofe à porta inaugurada por Propércio numa sequência de oito tercetos: «Vos puertas, sois testigos de mis males, / i pudiérades ser también aora / remedio de mis penas desiguales. Ya da señal de luz la blanca Aurora, / puertas, dexadme ver a mis amores, / dexadme despertar a mi Señora […]» (Anotaciones: 348-349). 16 Prop. I 16, 1 e 5-8; ‘Eu que em tempos me abria aos grandes triunfos / [...] / agora, ferida pelas rixas nocturnas dos embriagados, / percutida por mãos indignas, tantas vezes me lamento; / nem me faltam torpes grinaldas penduradas / nem tochas abandonadas pelos enamorados excluídos em sinal da sua inútil vigília’. 17 Lucr. 4, 1177-1179; ‘Tantas vezes, porém, o amante rejeitado, chorando, cobre a sua soleira com lores e grinaldas, perfuma com manjerona a porta altiva e, infeliz, imprime os seus beijos sobre o batente.’ 241 COMENTÁRIO A CAMÕES, vOl . 3 — Nos Amores: Aspice (uti videas, inmitia claustra relaxa) Uda sit ut lacrimis ianua facta meis;18 Pervigilant ambo; terra requiescit uterque; ille fores dominae servat, at ille ducis. Militis oficium longa est via: mitte puellam. Strenuus exempto ine sequetur amans;19 Ergo ego sustinui, foribus tam sepe repulsus, ingenuum dura ponere corpus humo? Ergo ego nescio cui, quem tu complexa tenebas, excubui clausam servus ut ante domum? Vidi, cum foribus lassus prodiret amator invalidum referens emeritumque latus.20 — Na Ars amatoria: Ante fores iaceat, «crudelis ianua» dicat multaque summisse, multa minanter agat 21; 18 Am. 1. 6, 17-18; ‘Olha (para poderes ver, alassa a corrente cruel), olha como a porta está humedecida pelas minhas lágrimas’. 19 Am. 1. 9, 7-10; ‘Ambos passam a noite em vigília; ambos repousam estendidos no chão; um guarda a porta da sua amada, o outro a porta do seu comandante. O dever do soldado é um longo caminho; levas para outro lugar a jovem que ama, o amante valoroso segui-la-á até ao im do mundo’. 20 Am. 3. 11, 9-14; ‘Porque é que, tantas vezes rejeitado, consenti estender sobre a dura terra o meu corpo de homem livre? Porque é que então, como um escravo, montei guarda em frente das portas, que estavam fechadas, por causa não sei de que amante que tinhas nos teus braços? Vi-o, quando saiu cansado da tua casa, arrastando-se derreado e sem forças’. 21 Ars Am. 3, 581-582; ‘Que ique fora, e que diga «Porta cruel», e que diga muitas súplicas e ameaças alternadamente’. 242 A lguMAS ObSERvAçÕES ACERCA dA OdE Iv E dA OdE Ix Adde forem, et duro dicat tibi ianitor ore «Non potes», exclusum te quoque tanget amor;22 Quanto ao tratamento do tema por Camões na V estrofe da IV ode, o passo que lhe é mais aim talvez seja um excerto da Ars amatoria de Ovídio23: Tempus erit, quo tu, quae nunc excludis amantes, frigida deserta nocte iacebis anus, nec tua frangetur nocturna ianua rixa, sparsa nec invenies limina mane rosa24. A «docta puella» O campo de contacto da IV ode com a elegia latina não se limita ao tema do exclusus amator, desenvolvido na V estrofe, implicando igualmente a igura feminina destinatária do poema, ou seja, a puella. Na língua latina, puella abrange um leque de signiicados muito amplo, que vai desde menina pré-adolescente até prostituta paga, desde esposa legítima até mulher amada. Puella é por excelência a destinatária de poemas 22 Ars Am. 3, 587-588; ‘Arranja uma porta e um porteiro que te diga com ar inlexível «Não podes entrar», amor também te invadirá, uma vez que foste excluído’. 23 Antonio Ramajo Caño (2004) elabora uma espécie de inventário do topos do exclusus amator na literatura espanhola (com um parênteses dedicado a um soneto em castelhano atribuído a Camões). Apesar de não se tratar de um trabalho exaustivo, como o autor de resto anticipa, o artigo tem o mérito de pôr em relevo a extraordinária fortuna deste topos na poesia espanhola do século XVI. Fazem parte do catálogo Bartolomé de Torres Naharro, Diego Hurtado de Mendoza, Cristóbal Mosquera de Figueroa, Lupercio Leonardo de Argensola e o irmão Bartolomé, Luis de Góngora, Lope de Vega, Juan de Arguijo, Quevedo e Francisco de Rioja, isto apenas no Siglo de Oro. O soneto em causa, de autoria camoniana incerta, é Ventana venturosa do amañece, nele icando contida uma apóstrofe à janela, que substitui a tradicional porta. 24 Ars Am. 3, 69-72; ‘Virá um tempo em que tu, que agora rejeitas os amantes, / envelhecida e abandonada, icarás na cama ao frio da noite / e a tua porta já não será perturbada pelas rixas nocturnas, / nem encontrarás de manhã a tua soleira coberta de rosas’. Ver também: «Efice, nocturna frangatur ianua rixa» (Rem. am. 31; ‘Que uma porta seja desfeita numa rixa nocturna, eis o teu papel’). 243 COMENTÁRIO A CAMÕES, vOl . 3 elegíacos, mas a conjunção de docta puella surge apenas em Propércio (I 2, 27-28; II 3, 21-22, com referência a Cynthia)25. A própria natureza do género elegíaco requer que a puella seja uma cortesã culta e independente, porém forçada a explorar a sua beleza para obter meios de subsistência (graças a um amante assumido de momento, ou então a uma série de amantes). A cortesã é frequentemente uma escrava liberta por manumissão que possui (ou inge possuir) uma certa cultura. Na icção poética, anda associada e torna-se sinónimo de um amor livre, em contraposição com o amor conjugal. A puella da elegia é pois douta, na medida em que a sua destinatária é uma conhecedora de poesia. Os poetas elegíacos retomam esta igura feminina dos poetas neotéricos, como símbolo e ponto de referência de todo um género literário. O outro pólo é o poeta-amante. Flora e Pompeu A deusa Flora era originariamente venerada na Itália Central pelos povos oscos e sabélicos, como divindade das lores e das plantas, em particular do grão. Foi depois integrada entre as divindades romanas, mantendo essas mesmas características26. Nos calendários mais antigos não existe um dia especíico dedicado à sua festa, mas a deusa devia estar ligada à germinação do grão, como o sugerem dois testemunhos distintos que a citam em associação com a divindade Robigus e as festas em sua honra (Robigalia), que se organizavam no dia 25 de Abril (Var., Rust. I 1, 6; Plin., NH XVIII 284). Na época augusta, a deusa Flora era festejada a 28 de Abril, mas os jogos que lhe eram dedicados (Floralia) estendiam-se até 3 de Maio. Caracterizavam-se por uma lascívia extrema e todos os excessos 25 Cf. James 2003, bem como a rigorosa recensão de Setaioli 2003. Cf. Santo Agostinho, «lorentibus frumentis deam Floram [praefecerunt]» (De civ. D., IV 8; ‘[deputaram] a deusa Flora às searas férteis’); Corpus glossariorum latinorum, «Flora dea paganorum, quam lorentibus frumentis pagani praefecerunt» (V 201, 33; ‘Flora deusa dos pagãos, que eles deputaram às searas férteis’); Lactâncio, «quae loribus praesit, eamque oportet placari, ut fruges cum arboribus aut vitibus bene prospereque lorescerent» (Inst. I 20, 7; ‘que preside às lores, e se deve pois aplacar [com sacrifícios], para que as searas sejam fecundas e abundantes, bem como as árvores e as vinhas’); Ovídio, «Mater, ades, lorum, ludis celebranda iocosis» (Fast. V 183; ‘Vem mãe das lores, que vamos celebrar com jogos jucundos’). 26 244 A lguMAS ObSERvAçÕES ACERCA dA OdE Iv E dA OdE Ix eram tolerados, incluindo uma procissão de prostitutas e ludi scaenici em que os actores eram acompanhados por mulheres da má vida (Lact., Inst. I 20, 10; Ov., Fast. V 355 ss.). Por este motivo, Flora era deinida como ministra Veneris ou Veneris magistra e o seu culto encontrava-se de alguma forma ligado ao da deusa de Amor27. Deste mesmo enlace decorre igualmente a lenda de que Flora teria sido uma meretriz que deixou uma ingente riqueza, acumulada com a sua proissão, em herança ao povo romano, sob única condição de que todos os anos fosse festejado o seu natalício. A cortesã Flora, célebre aventureira romana amada por Pompeu, imortalizada por um retrato que estava no templo de Cástor e Pólux, não tem na sua origem nenhuma relação com a divindade das lores, excepção feita à homonímia. Mas a confusão entre as duas entidades era inevitável. Disso se dá perfeitamente conta João Franco Barreto na Micrologia camoniana: A estatua desta Deosa, feita por Praxiteles, estava posta em o templo de Castor, vestida de uma roupa coalhada toda de boninas, e na mam tinha algumas lores de fava e grãos. Alguns autores fazem diferença entre Flora, a mulher de Zeiro, que he Deosa, e entre Flora a meretrice, que deixou a erança ao povo Romano; mas de ordinario confundem uma com outra [...]. [P]ara o que he de saber, que esta Flora [da ode IV de Camões], foi outra meretrice celebre, amada do grande Pompeo, que he o capitam, que foi vencido em Thessalia, perque nella está o lugar de Pharsalia, adonde Cesar com inferior poder o venceo, e fugindo para o Egypto, per mandado do Rei o matou o prefeito de Achila. Desta Flora conta Plutarco, em a vida do mesmo Pompeo. (Barreto 1982: 341-342) Resta acrescentar que, na vida de Pompeu escrita por Plutarco (Pomp. 2, 5-8), a história amorosa de Flora não apresenta qualquer elemento 27 Também a ligação entre Flora e as Charites ou Gratiae em Ovídio (Fast. V 219) e em Marciano Capela («ipsa etiam fulcris redimicula nectere sueta / Flora decens trina anxia cum Charite est», IX 888; ‘Até a bela Flora, que gosta de entrelaçar com coroas os nossos tálamos, parece inquieta, e com ela a tríplice Carite’) a coloca em paralelo com Vénus. 245 COMENTÁRIO A CAMÕES, vOl . 3 susceptível de justiicar a sua presença como exemplum na ode de Camões. Pode-se ver o volgarizzamento do século XVI desses capítulos: Dicesi, che Flora meretrice essendo hoggimai ben vecchia, con animo grato & amorevole si ricordò sempre della prattica, ch’ella havea havuta con Pompeo, dicendo, che quando egli usava seco, mai non si partiva da lei, ch’ella non gli desse qualche morso. Narrasi oltra di ciò, ch’ella hebbe a dire, come Geminio famigliar di Pompeo, le havea più volte data grandissima noia, perch’egli era innamorato di lei: ma rispondendogli essa, che per rispetto di Pompeo mai non gli havrebbe fatto piacere, Geminio contò la cosa a Pompeo; il quale, poi c’hebbe compiaciuto a Geminio, non volle poi impacciarsi con Flora, anchorch’egli mostrasse pur tuttavia di volerle bene. Laqual cosa, Flora hebbe molto più per male, che alla condition sua non richiedeva, & per lo dolore, & martello che n’ hebbe, stette un pezzo male. Dicesi, che questa femina fu tanto bella, o in tanta riputatione ancora, che adornando Cecilio Metello il Tempio di Castore & Polluce di statue & di pitture, vi pose anco l’imagine di lei per rispetto della sua bellezza. (Plutarco, Vita di Pompeo 954 G – 955)28 Safo e Faonte Faonte era um jovem barqueiro que transportava pessoas da ilha de Lesbos para a costa da Ásia Menor quando havia festividades. A deusa Afrodite apresentou-se-lhe disfarçada de velha, sendo por isso irreconhecível. Faonte facultou-lhe transporte sem dela pretender qualquer recompensa, tendo recebido em contrapartida a oferta de uma planta. Dela fez um unguento graças ao qual se transformou num homem belíssimo, capaz de conquistar todas as mulheres29. Segundo os três principais testemunhos 28 Num outro passo, ao referir-se à reputação de Pompeu como mulherengo e amante de mulheres de outros homens, Plutarco acena de novo a Flora nestes termos: «Havendosi a credere ancora alla continenza sua, se Flora, meretrice publica non facesse testimonio in contrario». 29 Cf. o comentário de Sérvio a Virgílio: «votisque incendimus aras id est vota facientes. Dubitatur vero utrum Iovis aras, an Veneris dixerit. Varro enim templum Veneri ab Aenea conditum, ubi nunc Leucas est, dicit: quamvis Menander 246 A lguMAS ObSERvAçÕES ACERCA dA OdE Iv E dA OdE Ix (Eliano, Varrão e Paléfato), Faonte tinha nascido em Lesbos. Por sua vez, segundo Luciano provinha de Quios. Devemos a Crátino (fragm. 330, Athaen. II 69d) a história de acordo com a qual Afrodite teria escondido Faonte numa alface. Não sabemos o objectivo desse acto e se teve por efeito privá-lo da sua potência sexual (poder que era especiicamente atribuído à alface). Não é de excluir que esse traço especíico tenha sido introduzido pela comédia para colocar no mesmo plano Faonte e Adónis, um outro jovem de extraordinária beleza que acabou também ele por ser envolvido em alface, mas desta feita depois de morto. Parece, porém, que na origem de todo este entrecho esteja uma lenda ligada a Lesbos, ilha com a qual a certo ponto se relaciona o elemento cómico de Vénus que transporta Faonte envolvido na alface. A existência de uma comédia intitulada Phaon é pela primeira vez atestada por Platão ( fragm. 173-182). O curioso pormenor da alface30 encontra amplas explicações na literatura antiga e nos comentários, como bem se pode ver pela longa nota erudita de Faria e Sousa ao v. 51 da IV ode: Que Venus escondido para si teve hum tempo entre as alfaças. También es otro cuento él de que Venus tuvo un tiempo escondido, o embuelto et Turpilius comici a Phaone Lesbio id templum conditum dicunt. Qui cum esset navicularius, solitus a Lesbo in continentem proximos quosque mercede transvehere, Venerem mutatam in anuis formam gratis transvexit: quapropter ab ea donatus unguenti alabastro cum se in dies inditum ungueret, feminas in sui amorem trahebat, in quis fuit una, quae de monte Leucate cum potiri eius nequiret abiecisse se dicitur» (Aen. III 279; ‘incendiemos os altares para os sacrifícios, ou seja, fazendo ofertas votivas. É incerto se fale dos altares de Júpiter ou de Vénus. Para Varrão, de facto, é o templo construído por Eneas em honra de Vénus onde agora surge Leucádia; por sua vez, Menandro e Turpílio, autores de comédias, dizem que aquele é o templo fundado por Faonte de Lesbos. Sendo armador de barcos, transportava habitualmente de Lesbos para o continente, sob compensação, os habitantes do lugar; uma vez transportou gratuitamente Vénus, que tinha tomado a aparência de uma velha; dela, por esse serviço, recebeu como oferta um vaso com um unguento; e aplicando o unguento todos os dias, levava as mulheres a enamorarem-se dele; entre elas houve uma, conta-se, que se atirou do monte Lêucade, não o conseguindo conquistar’). 30 Eliano Var. hist. XII 18; Athen. II 69d; XIII 596e. 247 COMENTÁRIO A CAMÕES, vOl . 3 en lechugas (esso es alfaças) a Faón: que, todavía, parece le pareció bien después de averle hecho tan hermoso [...]. Alin, mi P. dixo esto con Alciato, Embl. 77. Inguina dente fero sufossum Cypris Adonim Lactuca folijs condidit exanimem. Véanse allí sus comentadores. Calímaco solía dezir (aludiendo a esta fábula) que los lascivos devían andar embueltos en lechugas, porque su frieldad reprime el ardor venéreo. Veo que se confunde esto con Adonis, y Faón, sino es que ambos eran uno: por que Venus embolvió a ambos en unas mismas sabanas. No me canso en esso: otros digan lo que desto saben, que yo sé bien que Eliano en el lib. 12 dize que Faón fue embuelto en lechugas por la verdulera Venus, y de allí lo cogería mi Maestro. Cassio lib. 12 cap. 13 de agricult. dize se llama Eunuco la lechuga, porque lo que en ella depositó Venus fueron los genitales. [...] Digo agora, que como la muerte se llama sueño (escusamos aqui erudiciones) y la lechuga provoca a sueño, quiso dezir Venus, embolviendo a este moço en ella, que avía dormido el sueño de la muerte; y como también mitiga el dolor, parece la aplicó al suyo para mitigarle: y como evita los sueños lascivos, y ella, y él tendrían mucho, dió a entender que ya no lo los tendrían estando él en las lechugas. (Rimas varias 1689 II, 3: 139-147) Plínio, referindo-se proliicamente aos três tipos de alface cultivados pelos gregos (NH XIX 38), no inal alude com uma certa distância à crença nas virtudes desta hortaliça, uma convicção que é partilhada pelos ilósofos pitagóricos: «Portentosum est, quod de ea traditur, radicem eius alterutrius sexus similitudinem referre, raro inventu, sed si viris contigerit mas, amabiles ieri; ob hoc et Phaonem Lesbium dilectum a Sappho, multa circa hoc non Magorum solum vanitate, sed etiam Pythagoricorum»31. 31 NH XXII 8; ‘Contam-se coisas prodigiosas: diz-se que a sua raiz se assemelha aos órgãos sexuais de um homem ou de uma mulher; é raro encontrar-se, mas se uma raiz «macho» aparece a homens, então são capazes de despertar o amor; por este motivo também Faonte de Lesbos foi amado por Safo, assunto que deu lugar a rumores insensatos não só da parte dos Magos, mas também dos Pitagóricos’. 248 A lguMAS ObSERvAçÕES ACERCA dA OdE Iv E dA OdE Ix Ao glosar um epigrama da Antologia grega32 , Jean Brodeau escreve: Estque lactucae species eunuchos & eunuchi33 quasi spadoniam34 dicas a Pythagoricis nominata. [v. 2] phyllois adonidos a quibusdam quoniam haec maxime refragetur Veneri. In lactuca denique occultatum a Venere Liberi patris rivalem Adonim ferunt, quod Allegoricos extricans Athenaeus illuc referendum censet, quod in Venerem hebetiores iant kai diouretikoi lactucis assidue vescentes.35 A propósito de Safo, o próprio Brodeau anota: Haec Phaonem Mitylenaeum perdite dilexisse ob Eryngium herbam ab eo inventam fertur, quae amabiles reddat. [...] De ejus morte habes apud Strabonem libro decimo, ex quo Ovidiana Sapphus epistola educet.36 Nos Adagia de Erasmo, fala-se dos hortos de Adónis e também das virtudes do alho-porro e da mandrágora: 32 Trata-se de um in folio com 632 páginas e epigramas editados por Henry Estienne (pp. 1-30), mais 3 páginas de índices. Contém apenas o texto grego, não a tradução latina. Em compensação, há abundantes notas em latim em pé de página, assinadas por Brod. e Vinc. 33 Cf. «eunucheion», espécie de alface (Plínio), nota de Brodeau, ad loc. 34 Cf. «spadonius», estéril (Plínio, dito do louro), «spado, spadonis», que signiica emasculado, castrado, eunuco (Lívio et alii); de animal, castrado ou estéril (Columella), nota de Brodeau, ad loc. 35 Brodeau 1600: 210; ‘Existe uma espécie de alface a que os Pitagóricos chamam «eunuchos» e «eunuchios», quase como se fosse «spadonia» [estéril; própria dos castrados, dos eunucos]. [v. 2] phyllois adonidos «com as folhas de Adónis», pois com elas se pode contrastar eicazmente o ardor de Vénus. Conta-se que Adónis foi enim escondido por Vénus na alface, ou seja − segundo Ateneu – para os Alegóricos há que referir que quem come muitas vezes alface acaba por se tornar mais débil ao fazer amor e é estimulado a urinar’. 36 Brodeau 1600: 404; ‘Diz-se que ela se enamorou perdidamente de Faonte de Mitilena por causa da erva eríngia [cardo-corredor] por ele encontrada, que tem o poder de despertar o amor. Da sua morte fala-se no décimo livro de Estrabão, do qual é tirada a epístola ovidiana Sapphus’. 249 COMENTÁRIO A CAMÕES, vOl . 3 Adonidis horti Adonidos kepoi, id est, Adonidis horti, de rebus leviculis dicebatur, parumque frugiferis, et ad brevem, praesentemque modo voluptatem idoneis. Pausan. testatur, Adonidis hortos olim in deliciis fuisse, lactucis potissimum ac foeniculis frequentes, in quibus semina haud aliter atque in testa deponi consueverint: eoque rem in proverbium abiisse, contra futiles, ac nugones homines, et voluptatibus ineptis natos: cuiusmodi sunt cantores, sophistae, poetae lascivi, cupediarii, atque id genus alii. Erant autem ii horti Veneri sacri, propter Adonidem eius amasium, primo aetatis lore praereptum, atque in lorem conversum.37 Cupidinum crumena porri folio vincta est Prasou phylloi to tov eronton dedetai balantion, id est, Porri folio amorum vincta est crumena. Dictum est autem ob eam causam, quia amor adsimilis sit ebrietati. Reddit enim calidos, et hilares, et effusos.38 Bibere mandragoram Inest vis somniica mandragorae, adeo ut enecet etiam largiore potu, si Plinio credimus, historiarum libro 20. capite 11. Dioscorides indicat radicem vino decoqui ad tertiam partem, ex eo colato sumi cyathum adversus insomnium. Datur et secandis, adversus intolerabilem cruciatum. [...] Eandem circeam appellant, quod radix 37 Erasmus Adagia: 27-28; ‘Os hortos de Adónis, dizia-se de coisas vãs, insigniicantes, e pouco frutuosas, apenas capazes de oferecer um prazer breve e imediato. Pausânias testemunha que noutros tempos os hortos de Adónis eram lugar de delícias, abundante sobretudo em alfaces e funchos, cujas sementes eram geralmente colocadas em vaso: e por isto a coisa passou a provérbio contra os homens inertes e frívolos, e nascidos para prazeres inoportunos, como são os músicos, os soistas, os poetas lascivos, os gulosos e outros do mesmo género. Estes hortos eram consagrados a Vénus, por causa do seu amante Adónis, colhido na lor dos anos e transformado em lor’. Com outro signiicado, mas do mesmo tipo, cf. «Tantali horti» (p. 458; ‘os hortos de Tântalo’), bem como «E Tantali horto fructus colligis» (p. 1046; ‘colhe frutos do horto de Tântalo’). 38 Erasmus Adagia: 114-115; ‘O alfobre dos desejos carnais liga-se à folha de alho-porro, ou seja, com folhas de alho-porro pode-se fechar o alfobre dos amores. [...] Diz-se, além do mais, por esto motivo, que o amor é semelhante à ebreidade: de facto, faz [os amantes] quentes, alegres, e livres de qualquer freio’. 250 A lguMAS ObSERvAçÕES ACERCA dA OdE Iv E dA OdE Ix illius amatoriis veneiciis credatur utilis. Unde qui cessant in oficio dormitantque, multam mandragoram bibisse dicuntur.39 A história do amor de Safo por Faonte é um capítulo ulterior desta lenda, que se conclui com o suicídio da poeta, a qual se atira ao mar do penedo de Lêucade por a sua paixão não ser correspondida. O termo ante quem para a formação desta parte do mito é constituído pela comédia Leucadia de Menandro. Na sua origem, o motivo encontra-se pois ligado ao género cómico, primeiro grego, depois latino. O tratamento que lhe é dado por Ovídio (Heroides XV), que nos oferece o testemunho mais desenvolvido acerca do amor de Safo por Faonte, pode provir, indirectamente, da comédia e talvez de uma biograia de Safo. A mesma história, na linha de Ovídio, encontra-se nas Silvae de Estácio (V 3, 154 ss.). A existência de uma Safo conhecida como mulher-‘pública’, ou seja como prostituta, introduz por vezes uma certa confusão na transmissão do mito. Procurou-se resolver o problema através da homonímia. Teriam existido, na mesma época, duas mulheres com o mesmo nome, Safo poeta e Safo cortesã. E não terá sido com certeza por acaso que Camões escolheu como exempla para a IV ode exactamente duas personagens, como Flora e Safo, que, pelo menos em algumas versões do mito, têm em comum o estatuto de meretriz. Ix OdE A tradição da IX ode suscita várias observações de carácter textual, que serão apresentadas caso a caso. 39 Erasmus Adagia: 1102; ‘Beber mandrágora: A mandrágora possui a capacidade de induzir o sono, a tal ponto que pode levar à morte, se bebida em quantidade excessiva; assim airma pelo menos Plínio, no XX livro das Histórias, capítulo 11. Dioscórides prescreve cozer a raiz em vinho até a reduzir a um terço, depois encher um copo com o sumo iltrado, contra a insónia. Dá-se também a quem deve ser operado, contra a dor intolerável. [...] Esta erba é também chamada circea, porque se pensa que a sua raiz é útil para as poções destinadas aos amantes. Pelo que, aqueles que faltam aos próprios deveres, e dormitam, diz-se que beberam muita mandrágora’. 251 COMENTÁRIO A CAMÕES, vOl . 3 Verso 2 Do ponto de vista textual, apresenta três lições diferentes: dos altos montes, quando reverdecem dos montes que ja agora / enverdecem dos altos montes e ia reverdecem Rimas 1598 Manuscrito de Juromenha Manuscrito apenso Se se considerar a proximidade com o modelo horaciano, as lições dos dois manuscritos, com já que reenvia para o latim «iam», parecem sem dúvida preferíveis ao quando da lição impressa. Note-se que o Manuscrito de Juromenha propõe enverdecem, não reverdecem, obrigando pois a admitir um hiato entre agora e enverdecem para manter o número de sílabas requerido por um verso decassilábico de tipo heróico, com acentos em sexta e décima sílabas. A variante do Manuscrito apenso é sem dúvida preferível, tanto por recuperar re- do redeunt latino, como em virtude da escansão do decassílabo que se costuma designar de gaita galega, com acentos em quarta, sétima e décima sílabas. Por sua vez, a lição de Rimas 1598 introduz uma nova variante métrica, propondo um decassílabo de tipo trovadoresco com acentos em quarta e décima. Esta tipologia, que se caracteriza pela diversidade da escansão do decassílabo nos vários testemunhos, encontra-se igualmente em muitos outros lugares da tradição lírica de Camões. Em geral, as variantes mais arcaicas ou mais especíicas (gaita galega, sáico) pertencem a redacções mais antigas e tendem a ser ‘normalizadas’ nas versões impressas. Veriica-se por vezes a necessidade de distinguir, dentro dos limites do possível, entre variantes redaccionais (de autor) e variantes de transmisão (do copista ou do tipógrafo). Verso 7 O Manuscrito de Juromenha oferece para este verso uma lição singular de grande interesse: de opa toda espalha a doce lora. O sujeito continua a ser Zéiro, como no verso precedente. O verbo espalhar signiica disseminar, derramar, conforme o atesta Barbosa: «Espalhar, ou espargir: Dispergere aliquid terra, marique» (s. v.; ‘espargir qualquer coisa por terra ou por mar’). O estudioso apresenta como exemplo: «Spargere humum rosis, & rosas humo» (s. v.; ‘espargir de terra as rosas, e de rosas a terra’). O substantivo «opa», de origem obscura, indica uma «espécie de capa ampla, com duas 252 A lguMAS ObSERvAçÕES ACERCA dA OdE Iv E dA OdE Ix aberturas por onde se eniam os braços, usada por membros de confrarias ou irmandades em cerimônias religiosas» (Houaiss: datação sec. XV). Finalmente, o substantivo lora, conjunto das espécies vegetais, plantas e lores, conclui esta imagem preciosa através da qual se quer aludir ao manto de lores que o sopro de Zéiro dissemina e espalha em torno de si. Como noutros casos, uma lição singular conservada no Manuscrito de Juromenha parece testemunhar, pelas suas características, uma variante redaccional (portanto de autor) anterior à que foi impressa. Azevedo Filho interpreta: «Flora, revestida de opa (camisola) ou manto verde que cobre os campos, assim se distrai na primavera» (Lírica de Camões 3 II 1997: 192). Considera que o signiicado de espalhar é distrair-se. Versos 8-9 Desde as origens da literatura ocidental, o rouxinol é paradigma de um canto de lamento e alição, entretecido de tristeza. Já em Homero o rouxinol chora (Od. XIX, 515-523), mas é com o mito de Tereu, na homónima tragédia de Sófocles, que se ixam os elementos centrais da lenda: o incesto, a violência, a tessitura como substituto da palavra; e por im o banquete servido com as carnes de Ítis, supremo ultrage à inocência. Na poesia latina, é de Ovídio a mais detalhada descrição da trágica história, ao passo que no manual mitológico preparado por Boccaccio iguram todos os protagonistas da história (Genealogiae deorum: De Thereo IX 8; De Ithy IX 9; De Progne et Phylomela XII 75). Nas literaturas românicas restam, como resíduo do mito, mas depurados dos antecedentes sombrios e sangrentos, só alguns topoi e sintagmas. No ápice deste processo de sedimentação, Procne é a andorinha, cujo chilreio evoca o lamento pelo ilho morto, ao passo que Filomena é o rouxinol, em cujo canto se misturam melodia e tristeza. É assim que os nomes próprios das desventuradas irmãs se tornam para todos os efeitos nomes comuns40. 40 Em Virgílio a «philomela» (rouxinol) chora porque o agricultor com o seu arado destruiu o ninho dos seus pequeninos, e são seis as palavras que insistem sobre o mesmo campo semântico da alição, do lamento e da tristeza (itálico nosso): «qualis populea maerens philomela sub umbra / amissos queritur fetus, quos durus arator / observans nido implumes detraxit; at illa / let noctem ramoque sedens miserabile carmen / integrat et maestis late loca questibus implet» (Georg. IV 511-515; ‘assim à sombra de um choupo um rouxinol infeliz lamenta os seus ilhos 253 COMENTÁRIO A CAMÕES, vOl . 3 No que diz respeito a este quadro geral, veriica-se um curioso desvio em âmbito francês. Se a literatura oitânica, desde a Idade Média até Ronsard, se mantém iel à tradição do lamento do rouxinol, para os trovadores provençais, por sua vez, o rouxinol é a ave de amor que com o seu canto anuncia a primavera, introduzindo uma nota de alegria no quadro do exórdio primaveril. O signiicado do seu canto oscila então entre o choro em recordação de uma dor experimentada e, no oposto, a alegria expressa na violenta explosão do gorjeio (Philomèle 2006). Verso 44 No verso 44 opõem-se duas lições, numa situação que, pela sua recorrência, tende a fazer-se modelo. A lição do Manuscrito apenso identiica-se com a de Rimas 1598, e ambas divergem da do Manuscrito de Juromenha. A divergência implica o nome próprio e, menos importante, o epíteto que o acompanha: ô Cresso tão famoso ó Crasso poderoso Manuscrito apenso, Rimas 1598 Manuscrito de Juromenha Sobre Creso, rei da Lídia dotado de fabulosas riquezas, não será o caso de nos determos porque a sua identidade é conirmada pelo episódio de Sólon a que a estrofe seguinte alude. Convirá porém observar que, por si, a lição do Manuscrito de Juromenha é adiáfora porque signiica exactamente a mesma coisa: poderoso, ou seja, que dispõe de grandes recursos e é muito rico, refere-se a Crasso, contemporâneo de César e de Pompeu, que foi não só o mais rico dos romanos, mas o oitavo homem mais rico de sempre em absoluto, segundo uma reconstrução feita pela revista americana Forbes, reconhecida Bíblia da economia. Trata-se pois de duas lições equivalentes, que colocam em cena personagens que são ambas exemplares, como se cada uma delas fosse uma antonomásia, a igura que substitui um nome por uma característica ou por outro nome, para aludir à posse de bens terrenos verdadeiramente perdidos, que o cruel arador lhe tirou implumes do ninho, enquanto em vão os guardava; e agora chora a noite e, no ramo, renova o seu plangente canto e enche as redondezas dos seus tristes lamentos’). 254 A lguMAS ObSERvAçÕES ACERCA dA OdE Iv E dA OdE Ix excepcionais. A prova encontra-se nos Adagia de Erasmo: «Apud Graecos opulentia Croesi, Lydorum regis, in proverbium abiit, praesertim nobilitata dicto Solonis. Apud Romanos item M. Crassi, cui cognomentum etiam Divitis additum est» 41. De facto, Marco Licínio Crasso, chamado Dives rico, foi um homem político e um general da república romana do século I a. C. que enriqueceu desmesuradamente com a aquisição dos bens dos proscritos de Cila, em particular imensos latifúndios. Pela terceira vez o Manuscrito de Juromenha, perante um mitónimo, distingue-se da tradição transmitida pelo Manuscrito apenso e por Rimas 1598, para oferecer variantes aparentemente dificiliores. Depois de ter corrigido Panopeia em Pasiteia no verso 13 e orizonte em Orionte no verso 35, apresenta uma nova intervenção de ‘melhoramento’: não Creso, que para os gregos simboliza um homem de imensa riqueza, mas Crasso, o seu homólogo e quase homónimo romano. O comportamento do Manuscrito de Juromenha é bastante coerente no tratamento dos mitónimos e revela (provavelmente ao nível do antígrafo) uma vontade de correcção bem clara. Que o erudito introdutor dos ‘melhoramentos’ no texto não deva ser identiicado com o copista, demonstram-no certas banalizações e, sobretudo, a lição do verso 64, acerca do qual se dirá. Verso 64 Pirithoo, do Manuscrito apenso e de Rimas 1598, opõe-se a <s>peritoo do Manuscrito de Juromenha. Evidentemente que o copista do Manuscrito de Juromenha não conhecia o mito de Teseu e Pirítoo, e mostra interpretar, pelo menos num primeiro relance, o ousado <e>spirito como o espírito corajoso, ou seja, a alma que conserva, além-túmulo, vestígios do seu antigo valor. As formas spirito, sprito, espirito, esprito, todas derivadas do latim «spiritum» (sopro), encontram-se amplamente atestadas na linguagem poética do século XVI, podendo ter valor quer proparoxítono, (e)spírito, quer paroxítono, (e) spirito, como o mostram esprito, sprito. Quanto à fonte horaciana, note-se que Pirítoo surge numa outra ode que começa Descende caelo et dic, age, tibia: «amatorem trecentae / Pirithoum 41 S. v. Croeso, Crasso ditior; ‘mais rico do que Creso, ou do que Crasso. Para os gregos, a riqueza de Creso, rei dos lídios, passou a ser proverbial, nobilitada sobretudo pela sentença de Sólon. Para os romanos analogamente [passou a ser proverbial a riqueza de] M. Crasso, a quem foi dada a alcunha de Rico’. 255 COMENTÁRIO A CAMÕES, vOl . 3 cohibent catenae» 42 . Pirítoo é de facto utilizado como último dos três exempla em negativo que simbolizam a luxúria ou a força destruidora de amor. O primeiro é Orionte, que induz em engano a casta Diana («temptator Orion Dianae»). O segundo é Tício, que procura violentar Latona e ica encarcerado no Tártaro, tendo por eterno suplício o consumo do seu fígado pelos animais («incontinentis... Tytii iecur», v. 77). O terceiro é precisamente Pirítoo, também ele para sempre prisioneiro dos Infernos porque culpado de um amor ilícito com Perséfone, mulher de Hades. Os três epítetos, temptator, incontinens e amator, sublinham os excessos de um comportamento ditado pela luxúria, o que acentua a culpa das três personagens porquanto incapazes de dominar as próprias pulsões animais. Verso 65 A lição escura e tenebrosa, do Manuscrito apenso e de Rimas 1598, opõe-se a escura e tam medrosa do Manuscrito de Juromenha. O adjectivo medroso é usado na acepção, bastante rara, de que causa medo, medonho. Para tenebroso, são dois os signiicados possíveis, escuro, imerso nas trevas, mas também que provoca horror, terrível, medonho. Os dois adjectivos são pois parcialmente sobreponíveis, no que toca ao sentido de medonho. Contudo, tenebroso tem um signiicado de base que se liga às trevas e à falta de luz. Além disso, tendo quatro sílabas, ocupa a segunda parte do par de adjectivos sem necessidade de recorrer a tam para que o número de sílabas seja respeitado. bIblIOgRAfIA 1. TExTOS lITERÁRIOS dE REfERêNCIA Bembo, Pietro, Prose e Rime, ed. Carlo Dionisotti, Torino, UTET, 1966. Boiardo, Matteo Maria, Opere. Amorum libri. Pastorale. Lettere, ed. Pier Vincenzo Mengaldo, Bari, Laterza, 1962. Chiaro Davanzati, Rime, ed. Aldo Menichetti, Bologna, Commissione dei Testi di Lingua, 1965. 42 Carm. III 4, 79-80; ‘trezentas cadeias prendem Pirítoo, demasiado entregue aos amores’. 256 A lguMAS ObSERvAçÕES ACERCA dA OdE Iv E dA OdE Ix Dante da Maiano, Rime, ed. Rosanna Bettarini, Firenze, Le Monnier, 1969. Erasmo Adagia = Adagia optimorum utriusque linguae scriptorum omnia, quaecumque ad hanc usque diem exierunt, Pauli Manutii studio atque industria [...] Cum plurimis, ac locupletissimis indicibus [...], Ursellis, ex Oficina Cornelii Sutorii, impensis Lazari Zetzneri, 1603 [Oberursel: Cornelius Sutor]. Primeira edição da obra: Florentiæ, Apud Iuntas, 1575 [Florença, Giunti]. Folquet de Marselha - Paolo Squillacioti, Le poesie di Folchetto di Marsiglia, Pisa, Pacini, 1999. Giacomo da Lentini, Poesie, ed. Roberto Antonelli, Roma, Bulzoni, 1979. Groto = Le rime di Luigi Groto, Cieco d’Adria, ed. Barbara Spaggiari, Adria, Apogeo, 2014, 2 vols. Guittone d’Arezzo, Le rime, ed. Francesco Egidi, Bari, Laterza, 1940. Inghilfredi - Annalisa Marin, Le rime di Inghilfredi, Firenze, Olschki, 1978. Il mare amoroso, ed. Emilio Vuolo, Roma, Istituto di Filologia Moderna, Università di Roma, 1962. Lorenzo de’ Medici, Rime, ed. Paolo Orvieto, Roma, Salerno, 1992. Petrarca, Francesco - Le rime del Petrarca brevemente esposte per Lodovico Castelvetro, In Venezia, Presso Antonio Zatta, 1756, 2 vols. Petrarca, Francesco, Canzoniere, ed. Marco Santagata, Milano, Arnaldo Mondadori, 1996, 22004. Petrarca, Francesco, Canzoniere, Rerum vulgarium fragmenta, ed. Rosanna Bettarini, Torino, Einaudi, 2005, 2 vols. Plutarco Vita di Pompeo - Vite di Plutarco Cheroneo de gli huomini illustri Greci et Romani, nuovamente tradotte per M. Lodovico Domenichi [...],Venetia, Felice Valgriso, 1587. Sannazaro, Jacopo, Sonetti e canzoni, id., Opere volgari, ed. Alfredo Mauro, Bari, Laterza, 1961. Seraino Aquilano, Rime, ed. M. Menghini, Bologna, Romagnoli-Dall’Acqua, 1894. Sicilianos - Bruno Panvini, Le rime della scuola siciliana, Firenze, Olhscki, 1962. Sonetti anonimi del Vaticano Lat. 3793, ed. Paolo Gresti, Firenze, Accademia della Crusca, 1992. Sordello da Goito, Le poesie, ed. Marco Boni, Bologna, Palmaverde, 1954. Tansillo, Luigi, Il Canzoniere edito e inedito, ed. Erasmo Pércopo, Napoli, 1926, 2 vols.; reed. Napoli, Liguori, 1996, 2003. 257 COMENTÁRIO A CAMÕES, vOl . 3 Tasso, Torquato, Aminta, introduzione di Mario Fubini, note di Bruno Maier, premessa al testo, cronologia e bibliograia di Ettore Barelli, Milano, Rizzoli BUR, 2013. Tebaldeo, Antonio, Rime, ed. Tania Basile, J. Jacques Marchand, Modena, Panini, 1992. Vega, Garcilaso de la, Obra poética y textos en prosa, ed. Bienvenido Morros, Barcelona, Crítica, 1995. 2. ESTudOS Barbosa - Dictionarium Lusitanicolatinum [...] Per Augustinum Barbosam Lusitanum [...], Bracharæ, Typis, & expensis Fructuosi Laurentij de Basto, 1611. Barreto, João Franco, Micrologia camoniana, prefácio Aníbal Pinto de Castro, leitura e integração do texto Luís Fernando de Carvalho Dias, Fernando F. Portugal, Lisboa, IN-CM, BN, 2008. Brodeau 1600 – Epigrammatvm graecorum annotatio nibus Ioannis Brodaeitvronensis, nec non Vincentii Obsopoei, & Graecis in pleraque epigrammata scholiis illustratorum Libri VII, accesserunt Henrici Stephani in quosdam Anthologiae epigrammatum locos Annotationes, Francofurti, apud Andreae Wecheli heredes Claudium Marnum & Iohannem Aubrium. Anno MDC. Herrera, Fernando de, Anotaciones a la poesía de Garcilaso, ed. Inoria Pepe, José-María Reyes, Madrid, Cátedra, 2001. Houaiss, Antônio, Mauro de Salles Villar, Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, Rio de Janeiro, Objetiva, 2001 (em volume e em CD-ROM); 1.a reimpressão com alterações, 2004; última versão, incluindo o novo acordo ortográico, Rio de Janeiro, Objetiva, 2009 (em volume e em CD-ROM); ed. port. em 6 vols., ed. lit. Fr. Manuel de Melo Franco, Lisboa, Círculo de Leitores, 2002-2003; ed. port. em 3 vols. (ed. lit. Fr. Manuel de Melo Franco - Instituto Antônio Houaiss de Lexicograia); Lisboa, Temas e Debates, 2003. James, Sharon L., Learned Girls and Male Persuasion. Gender and Reading in Roman Love Eleg y, Berkeley, University of California Press, 2003. Pereira Filho, Emmanuel, Uma forma provençalesca na lírica de Camões, Rio de Janeiro, Gernasa, 1974. 258 A lguMAS ObSERvAçÕES ACERCA dA OdE Iv E dA OdE Ix Philomèle. Figures du rossignol dans la tradition littéraire et artistique, ed. Véronique Gély, Jean-Louis Haquette, Anne Tomiche, Clermont-Ferrand, Université Blaise-Pascal, Presses Universitaires, 2006. Ramajo Caño, Antonio, «Cerrásteme la puerta rigurosa: exclusus amator, un tópico clásico en las letras españolas», Revista de Literatura, 66, 132, 2004: 321-348. Sérvio - Servii grammatici qui feruntur in Vergilii carmina commentarii, recens. Georgius Thilo et Hermannus Hagen, Hildesheim, G. Olms, 1961, 3 vols. Setaioli, Aldo, «L’amore egoista. A proposito di un libro americano sull’elegia augustea», rec., International Journal of the Classical Tradition, Fall 2003: 243-258. Silva, Vítor Aguiar e, Camões. Labirintos e fascínios, Lisboa, Cotovia, 1994. Silva, Vítor Aguiar e, A lira dourada e a tuba canora. Novos ensaios camonianos, Lisboa, Cotovia, 2008. 259 Autores Vasco Graça Moura (1942-2014) foi ensaísta, tradutor, poeta, romancista, cronista, gestor cultural e político. De entre as funções que desempenhou, destacam-se as de Director da Imprensa-Nacional Casa da Moeda, deputado no Parlamento Europeu, Comissário de Portugal para a Exposição Universal de Sevilha, Comissário-geral para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, Comissário para a Exposição Internacional de Génova ou, mais recentemente, Presidente do Centro Cultural de Belém. Traduziu Dante, Petrarca, Shakespeare, Ronsard, Rilke, Gottfried Benn, Walter Benjamin, García Lorca, Enzensberger ou Seamus Heaney, além de tantos outros autores. Foi agraciado com numerosas distinções. Na sua obra de crítico literário, destacam-se os ensaios dedicados a Luís de Camões. Professora catedrática de Filologia Românica, Barbara Spaggiari leccionou nas Universidades de Florença e de Perugia, tendo obtido a «Habilitation à diriger des recherches» (HDR) em Língua e Literatura Portuguesas na Universidade da Sorbonne-Nouvelle. A sua investigação desenvolve-se no âmbito da crítica textual e da edição de textos, tendo por objecto as línguas românicas, nomeadamente o occitano, o catalão e o português. Colabora com o CIEC e com o Centre d’Études Lusophones da Universidade de Genebra. Mais recentemente publicou Fundamentos de crítica textual (em colaboração com Maurizio Perugi, Rio de Janeiro, Lucerna, 2004), Obras de André Falcão de Resende (Lisboa, Colibri, 2009, 2 vols.), Camilo Pessanha, Clepsidra (Lisboa, IN-CM, 2014) e Le Rime di Luigi Groto, Cieco d’Adria (Adria, Apogeo, 2014, 2 vols.). Maurizio Perugi é Professor Catedrático de Filologia Românica, Emérito, da Universidade de Genebra. De entre as suas publicações destacam-se as edições críticas de Arnaut Daniel (Firenze, 2015), da Vie de Saint-Alexis (Genève, 2000) e do Laudario perugino (Perugia, 20111). É autor de vários ensaios sobre a Idade Média e a época moderna (trovadores occitanos, Roman de Renart, Dante, Petrarca, Camões, Pascoli, Fernando Pessoa / 261 Ricardo Reis). É director responsável de Filologia e Literatura, revista do Centre d’Études Lusophones (Genebra). Soledad Pérez-Abadín Barro, doutorada em Filologia Hispânica e Catedrática de Literatura Espanhola da Universidade de Santiago de Compostela, dedicou grande parte do seu trabalho de investigação à poesia do século XVI. Os seus dois últimos livros, La coniguración de un poemario bucólico: «Églogas pastoriles» de Pedro de Padilla (2012) e Los espacios poéticos de la tradición: géneros y modelos en el Siglo de Oro (2014), resumem as linhas-mestras da sua trajectória: os géneros poéticos, a tradição literária e a revalorização dos chamados autores menores. 262