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6º Encontro da ABCP 29/07 a 01/08/2007, Unicamp, Campinas, SP Área Temática: - Cultura Política e Democracia Articulações entre Estado e sociedade civil na Nova República: um estudo comparativo entre Organizações Sociais e Conselhos José Veríssimo Romão Netto Universidade de São Paulo Olívia Perez Universidade de São Paulo 1 Resumo: De acordo com a Constituição de 1988, diversas práticas de gestão compartilhada de políticas públicas entre Estado e sociedade civil estão em pleno desenvolvimento no Brasil. Duas dessas práticas estão garantidas em leis que regulamentam a Carta Magna de 1988: os Conselhos Gestores e as instituições chamadas de Organizações Sociais. Ambas são percepções conceituais da mesma sociedade civil, compreendida como o lócus da civilidade. Apenas esta sociedade civil teria o poder, para estas teorias, de orientar as ações do Estado (Cohen e Arato, 2000; Bresser Pereira e Grau, 1999). Enquanto tais práticas de gestão democrática são teoricamente consideradas de forma quase análoga, nosso principal objetivo é compará-las, ou seja: como se apresentam, hoje em dia, as relações entre governo e sociedade civil nessas instituições de gestão e participação democráticas no Brasil? Introdução Na década de 1970, durante o regime militar, as reivindicações sociais por necessidades básicas e por direito à participação dos cidadãos nas formulações das políticas públicas intensificaram-se no Brasil. A enorme diversidade desses movimentos que agiam sob diferentes perspectivas e objetivos foram reunidas sob o conceito de novos movimentos sociais, os quais se intensificaram no final da década de 1970 e ao longo da década de 1980, e estavam no bojo do processo da reabertura democrática (Sader, 1988). Concomitantemente, o Estado que se erigia na década de 80 entrou em profunda crise fiscal (Bresser Pereira, 1995). Para atender parte destas reivindicações, bem como amenizar as conseqüências de sua crise fiscal, o Estado estabeleceu novas formas de inserção de organizações populares em sua estrutura, tanto nos processos de decisões sobre políticas públicas quanto no processo de execução destas. Fruto do complexo processo de reabertura democrática no Brasil, em 1988 o Congresso Nacional consagrou uma nova Constituição. De acordo com esta Carta, o Brasil é uma democracia representativa, com instrumentos de gestão direta e participativa, o que definiu e possibilitou a experimentação de novos 2 procedimentos de gestão das políticas sociais, como os Conselhos Gestores de Políticas Públicas e as Organizações Sociais (OSs), por exemplo. 1 Os conselhos gestores, chamados também de conselhos deliberativos, conselhos de direitos, conselho de políticas públicas, ou espaços públicos de cogestão são previstos em legislação nacional, tendo caráter obrigatório e sua existência é condição sine qua non para a transferência de recursos públicos da União para Estados e Municípios. Tais conselhos têm a função de propor e fiscalizar políticas públicas em áreas específicas junto ao poder público. Já as Organizações Sociais (OS) são associações civis sem fins lucrativos ou fundações que recebem título de OS do poder público para absorver competências, patrimônio e servidores de entes públicos extintos, além de poderem exercer atividades socialmente relevantes não exclusivas do Estado, mas por esse incentivadas mediante repasses de recursos previstos em contrato de gestão. Ambas as práticas de associação entre Estado e sociedade civil - seja como forma de controle e planejamento de políticas públicas, seja como setor público não estatal na reforma do aparato do Estado – encontram-se no mesmo arcabouço histórico-normativo: aquele que fundamentou as grandes alianças democráticas na América Latina a partir dos anos 1970. Apresentadas, brevemente, algumas formas que tomaram as relações entre Estado e sociedade civil na Nova República, pode-se perguntar: como se apresentam, hoje em dia, os contornos legais das relações entre Estado e sociedade civil no Brasil, especialmente na atuação das Organizações Sociais e do Conselho Municipal de Saúde do município de São Paulo? 2 1 O Parágrafo Único do Título Primeiro da Constituição Federal brasileira de 1988 sanciona: “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição” 2 A área de saúde foi a escolhida para este artigo devido ao longo e contundente histórico dos movimentos sociais ligados a esta política pública. 3 A proposta deste artigo é que se analisem, a partir de estudos referenciais, legislações e estatutos pertinentes a cada uma das instituições acima descritas, suas respectivas concepções de sociedade civil e suas relações com o Estado. Sociedade civil e Estado A democracia,contemporaneamente, tem sido associada ao republicanismo (Cardoso, 2004; Janine Ribeiro, 2001a, 2001b; Bresser Pereira, 1999). A partir dessa perspectiva normativa abre-se a possibilidade de que a democracia não se esgote em um processo de mediação entre Estado, indivíduos privados e mercado, sendo elemento constitutivo de todo o processo de formação da sociedade; processo no qual a sociedade civil tem papel relevante. Diversos pensadores, ao longo de séculos, vêm refletindo acerca do que seja esta sociedade civil. Entre os filósofos contratualistas, o termo surge em Hobbes como sinônimo de Estado, ou de sociedade política, em contraposição ao “estado de natureza”. Adam Smith se esforçou em distinguir com clareza a separação entre Estado e sociedade civil, e colocou o primeiro a serviço da sociedade organizada pelo mercado. Hegel, contudo, é quem de maneira mais clara fez a separação conceitual entre os dois conceitos, e fundou o termo moderno de sociedade civil, no qual o estado de natureza se transforma em sociedade civil ou em “sociedade burguesa”, que deve ser operada pela racionalidade do Estado. Karl Marx deu grande importância para o conceito na medida em que o Estado deixa de ser a racionalidade em si, e a burguesia passa a deter todo o poder político e a determinar o Estado. Bobbio afirma que a sociedade civil pode ser conceituada negativamente como a “esfera das relações sociais não reguladas pelo Estado”, o lugar de onde surgem e se desenvolvem os conflitos econômicos, sociais, ideológicos e religiosos, e as instituições econômicas têm a função de resolvê-los ou media-los (Bresser Pereira, 1999). A partir da década de 70 do século passado as discussões sobre o papel histórico e a conceituação normativa de sociedade civil recuperam importância quando as lutas na América Latina passam a utilizar-se do conceito para compreender e fortalecer as alianças entre movimentos sociais, organizações não 4 governamentais, clero, associações de trabalhadores, profissionais liberais, empresários e intelectuais em pro da democratização desses países. Assim, seguem-se discussões acerca de como deva ser percebida, contemporaneamente, a sociedade civil. Taylor (1991, apud Costa, 1997) define sociedade civil como uma rede de associações autônomas e independentes do Estado, que agrupam cidadãos em torno de interesses comuns e podem ter efeito sobre a política. Sérgio Costa (1997) propõe um “conceito operacional”, no qual a sociedade civil seria um conjunto de associações e formas organizativas, afora sindicatos e associações de interesses, constituídas por voluntários e destinadas a proteger o “mundo da vida” 3 habermasiano. Este último autor, Jürgen Habermas, foi quem, de maneira mais contundente, influiu nas reflexões dos demais a partir da década de 1970, e contribuiu para o debate da conceituação do uso normativo do termo sociedade civil, tratando, de maneira mais específica, do conceito de esfera pública. Para ele, a infra-estrutura dos espaços públicos, políticos e da sociedade civil assumem o papel estratégico de garantir a força integradora e a autonomia da prática de entendimento entre os cidadãos (Habermas, 1995). Habermas marcou o conceito de esfera pública com a idéia de um espaço para interação face-a-face diferenciado do Estado, onde os indivíduos possam interatuar uns com os outros, debatendo as decisões tomadas pelas autoridades políticas. Nestes espaços também se debate o conteúdo moral das diferentes relações existentes no âmbito social e são apresentadas demandas ao Estado. No interior de uma esfera pública democrática, as pessoas discutem e deliberam acerca de questões políticas, adotando estratégias para tornar as autoridades políticas sensíveis às suas deliberações. Nesta dinâmica está 3 O “mundo da vida” é um termo utilizado por Habermas para se referir às práticas comunicativas e argumentativas da vida privada e da cultura, sendo considerado o “habitat” natural dos espaços societários das instituições sociais como a família, associações de bairro, comunidades de base, sindicatos e das organizações culturais, artísticas e científicas. Este “mundo da vida” está em oposição ao “mundo sistêmico”, o qual se orienta pela ação instrumental ou estratégica, sob a forma de ação técnica que aplica, racionalmente, meios para a obtenção de fins, através do uso do poder econômico e político. O objetivo central do “mundo sistêmico” é o êxito, o sucesso, a dominação (Habermas, 1987). 5 presente a idéia de que o uso público da razão estabelece uma relação entre participação e argumentação públicas, processos que se realizam na forma institucionalizada das deliberações nas instituições parlamentares ou na rede de comunicação dos espaços públicos políticos (Habermas, 1987). Nesta seara de reflexões - que definiu publicidade como fluxo comunicativo – Cohen e Arato (2000) enfatizam a questão dos atores sociais e suas instituições, sob nova teorização do que chamaram de “moderna sociedade civil”. A novidade na reflexão desses autores é que ao conceito habermasiano de esfera pública – que trata de uma esfera normativa estritamente discursiva – se acresceu uma dimensão institucional. Esta esfera seria a possibilitadora da integração entre as instituições do aparelho do Estado, historicamente forjadas, a um conceito normativo de sociedade civil. Assim, dizem Cohen e Arato: Aceptamos el argumento de que diferentes modelos de organización democrática son compatibles con el principio ético del discurso de la legitimidad democrática. Esta compatibilidad no necessita considerarse solo en términos de una oposición entre la democracia representativa y la directa. Los requisitos de lo principio de la legitimidad democrática pueden cumplirse, en principio por lo menos, mediante una democracia directa de consejos organizada piramidalmente, así como por um tipo representativo de democracia cuyas autoridades delegadas son controladas por esferas públicas viables con acceso general e poder real. Pero, en outro eje, el principio es compatible con una forma de organización política federalista, así como con una organizada, siguiendo lineamientos centralistas. Finalmente, incluso puede ser compatible con esferas de vida que no están organizadas discursiva o democráticamente, siempre que la necessidade de principios organiacionales no discursivos e los limites entre ellos y las organizaciones democráticas sean estabelecidos y conformados en processos discursivos (Cohen e Arato, 2000, p 457). Esta concepção permitiu que se equacionassem os campos normativo e histórico de reflexões acerca das principais práticas e tendências de associação civil, uma vez que se somou uma ética da razão pública do discurso às estruturas do Estado através de instituições intermediárias, como os conselhos, por exemplo. 6 No Brasil, a esta perspectiva normativo-institucional filiou-se toda uma geração de analistas da sociedade, principalmente aqueles que viveram e se dedicaram ao estudo e avaliação do período de transição do regime autoritário para o democrático (1964-1985) (Sader, 1988; Dagnino, 2004; Avritzer e Costa, 2004). Durante a ditadura militar no Brasil (1964-1985) os canais de participação política eram parcialmente fechados, levando setores da população a organizarse paralelamente ao aparato estatal. Nos escritos de intelectuais engajados e no discurso ativista, Estado e sociedade civil passaram a ser consideradas esferas dissociadas. De acordo com Lahuerta (2001), o conceito de sociedade civil, da forma como foi concebido nos anos 70, ganhou uma enorme autonomia da idéia de Estado. A sociedade civil passou a ser considerada um “outro” em relação ao poder público. O país parecia estar polarizado entre o Estado e a sociedade civil. O imaginário que despreza o público como esfera de consolidação de direitos teve como conseqüência a idéia de que somente a sociedade civil poderia conseguir atender as necessidades dos cidadãos. Segundo Lahuerta: O paradoxo é que a perspectiva de negar o autoritarismo do Estado engendrou uma recusa a qualquer autoridade. Uma das conseqüências desse caldo de cultura foi que a aversão ao público, ao estatal e ao político, como se fossem sinônimos de autoritarismo... (Lahuerta, 2001, pp 87e 88). Contribuindo para a separação entre as concepções de Estado e sociedade civil no trato com as questões sociais, podemos citar a ineficácia do Estado na melhora efetiva dos padrões de pobreza e desigualdade presentes no Brasil. Segundo Oliveira (1993), após o período do “milagre” econômico (década de 1970), a exclusão social intensificou-se, levando a participação da sociedade civil a tornar-se sinônimo de civilidade e eficiência distributiva. 7 Estes setores da população, que vinham se organizando e fortalecendo, buscaram canais mais visíveis de expressão para suas reivindicações. Isto ocorreu, inicialmente, através das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), dos clubes de mães, das Pastorais da Igreja Católica, das associações de bairros, dos grupos de educação popular, dos movimentos de carestia, sindicatos, partidos políticos, entre outros (Sader, 1988). Estes movimentos sociais apropriaram-se, então, de referenciais normativos comuns como cidadania, democracia, participação e sociedade civil para justificar sua atuação. (Dagnino, 2004). A partir da década de 1990, com a Carta Magna já consagrada nos termos desta perspectiva ora discutida, novos experimentos de gestão compartilhada entre a sociedade civil e o Estado tiveram início no Brasil. Primeiramente experiências como os conselhos gestores de políticas públicas, iniciadas já com a criação e início da implementação do Sistema Único de Saúde (SUS). Em um segundo momento, surgem experimentos como as Organizações Sociais (OSs) e as Organizações Sociais de Interesse Público (OSCIPs), nos quais à tese da nova sociedade civil somou-se a da reforma do Estado. Conselho Gestor de Saúde e suas interfaces com o Estado Historicamente, com a regulamentação da Constituição de 1988, a descentralização e a participação são assumidas como princípios na Regulamentação do Sistema Único e Descentralizado de Saúde (SUS, sobretudo na lei 8.142 de 28 de dezembro de 1990). Assim, os debates ganharam seus contornos institucionais, estabelecendose a descentralização com direção única (conceito básico do Sistema Único de Saúde – SUS), o atendimento integral, universal e a participação da comunidade, exercida principalmente por meio dos conselhos gestores. De acordo com o artigo 198: “As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes: (...) inciso III- participação da comunidade”. Legalmente, a lei 8.142, de 28 de dezembro de 1990 estabelece que o SUS contará em cada esfera 8 de governo (federal, estadual e municipal) com as seguintes instâncias colegiadas: as conferências de saúde e os conselhos de saúde. O Conselho de Saúde é um órgão colegiado, deliberativo e permanente do Sistema Único de Saúde (SUS) e concretiza a participação e controle social pela sociedade organizada na administração da Saúde. Devem ser o lócus onde se manifestam os interesses dos diferentes segmentos sociais, visando a possibilitar a negociação entre propostas que pretendem direcionar os recursos da saúde para objetivos diferentes. É um dos conselhos mais estudados (cf. Labra, 2005; e Romão Netto, 2006) e referência quanto se trata do tema. A concepção de que a criação dos conselhos gestores possibilita o compartilhamento de decisões entre a população e o governo, e, dessa forma, a democracia representativa é transformada e aprimorada, perpassa os estudos sobre o tema, no Brasil (Gohn, 2003). Segundo a autora: “Eles constituem, no início deste novo milênio, a principal novidade em termos de políticas públicas” (ibid, p07). A defesa desse instrumento é clara nas reflexões de Santos e Avritzer (2002), apoiados na democracia deliberativa. Pensando especialmente no Orçamento Participativo (OP), os autores demonstram como essas experiências estão contribuindo para a ampliação da discussão e o alargamento da possibilidade de influência dos cidadãos nas políticas públicas. Todas essas experiências, incluindo os conselhos gestores, são consideradas capazes de romper com a cultura e a política autoritária e clientelista do Brasil (Santos, 2002). Os autores acreditam que os espaços públicos de co-gestão são um dos campos em que está sendo reinventada a emancipação social. Numa perspectiva mais ampla, Telles (1994), baseada nos escritos de Arendt, entende os espaços públicos como conquistas em que homens e mulheres constroem um sentido de pertencimento e podem se identificar como cidadãos. A autora também considera que: 9 Nos movimentos sociais, nos grupos organizados, nas associações civis (...) será preciso enxergar mais do que um potencial defensivo contra o conservadorismo excludente da sociedade brasileira. Mas, sobretudo, ver neles, ou através deles, as possibilidades de se definir as relações entre modernidade e cidadania. (ibid, p45). Segundo a pesquisa realizada pelo IBGE (2001) existem 5 426 conselhos de saúde num total de 5 560 municípios do Brasil, e 635 entre 645 municípios do Estado de São Paulo. Entre os municípios do Estado de São Paulo, 379 relataram que as reuniões ocorrem com muita freqüência; em 159 as reuniões são freqüentes; 18 ocorrem com pouca freqüência; 68 irregularmente; e 11 não realizaram reuniões no ano de 2001. E ainda, 567 são paritários, enquanto 57 não são. O Conselho de Saúde Municipal de São Paulo O Conselho de Saúde do Município de São Paulo (CMS/SP) surgiu, segundo a página do Conselho na Internet, em 1989 no governo da Prefeita Luiza Erundina de Souza (1989-1992) através da Portaria SMS nº 1.166 de 29 de junho de 1989, mas sem formalidade legal. Só adquirindo conformação legal no governo do Prefeito Celso Pitta (1997-2000) através da Lei nº 12.546 de 7 de janeiro de 1998, e decretos posteriores. Contudo, após longo período de divergências, a retomada do CMS/SP aconteceu no ano de 1999 com a realização da IX Conferência Municipal de Saúde. Conflitos entre membros da sociedade civil e governo são constantes, especialmente pelo fato do Secretário Municipal da Saúde participar Conselho na condição de membro nato e presidente, com direito a voz e apenas ao voto de qualidade, exercido em caso de empate. Além disso, a última eleição para conselheiro de saúde no município de São Paulo (período 2008/2009) foi anulada pela Secretaria Municipal da Saúde sob a alegação de problemas na condução do processo eleitoral. Mais de 20 recursos administrativos foram impetrados por 10 munícipes e entidades que participaram do pleito. Todos questionaram aspectos legais, como falta de transparência, descumprimento de prazos, ausência de clareza nas regras gerais, entre outros. Mas frente a todas estas tentativas de normatização das atividades dos Conselhos de Saúde, resta uma questão premente: de qual parcela da sociedade civil se trata quando se fala em eleições no CMS? Reforma do Estado e Sociedade Civil: a experiência das Organizações Sociais Hoje em dia é lugar comum entre os pesquisadores da América Latina o consenso de que a partir da década de 1980 se estabeleceu uma crise fiscal nessa região. Estas análises se originaram no campo da pesquisa econômica e a associaram a diversas causas, como à abrupta queda da renda per capita da população, à disparada das taxas de inflação, à queda dos salários reais e dos padrões de consumo, e à queda dos investimentos e das poupanças nacionais (Bresser Pereira, 1993). O Brasil não foi exceção à regra na região. Bresser Pereira diagnosticou uma crise no Brasil na segunda metade da década de 1980. Diferentemente, porém, o pesquisador não limitou sua percepção a uma crise econômica, mas submeteu a crise fiscal nacional como variável dependente àquela que alcunhou de crise do Estado (Bresser Pereira, 1995). Esta crise do Estado ter-se-ia iniciado em 1979 com o segundo choque do petróleo, e pode ser definida fundamentalmente pelas: 1) crise fiscal do Estado perda do crédito público e poupança pública negativa; 2) crise do modo de intervenção da economia e do social - o esgotamento do modelo protecionista de substituição de importações; 3) crise do aparelho do Estado - clientelismo, profissionalização incompleta e enrijecimento burocrático extremo; e 4) pela crise sócio-política, que foi o colapso da coalizão política entre militares, empresariado e sociedade, a qual sustentou o regime autoritário (ibid, ibidem). 11 Em suas análises sobre a crise do Estado e a necessidades de reformas que ela trazia, Bresser Pereira argumenta a necessidade de que a sociedade civil brasileira teria potencial único para auxiliar na resolução dos problemas. Isto porque, em sua perspectiva histórica do conceito, a sociedade civil é vista como estando “fora do Estado”, e sendo “um complexo campo de lutas ideológicas em que classes, grupos de interesses e indivíduos isoladamente buscam alcançar hegemonia, reformar o Estado e influenciar suas políticas. [E completa que] Este conceito histórico ao invés de normativo de sociedade civil não lhe retira o caráter ético. É na sociedade civil e através dela que os valores éticos e civilizatórios se afirmam, na medida em que grupos que se pretendem portadores desses valores (e possivelmente o são) dela fazem parte e sobre ela buscam exercer sua influência ... [assim] A democratização será, precisamente, o processo através do qual a sociedade se organiza, se estrutura, ganha forças e, gradualmente, passa a se impor ao Estado” (ibid, pp 100,101). Desta maneira, uma sociedade politicamente organizada seria composta de, além da esfera do mercado, de uma esfera estatal e outra da sociedade civil; todas se interpenetrando, mas esta última portando o sistema de valores e crenças, de princípios éticos e valores morais da sociedade, único sistema capaz de reformar o Estado. Assim foi justificada teoricamente a possibilidade de uma nova forma de gerenciamento da coisa pública (Bresser Pereira, 1995; Bresser Pereira e Grau, 1999, Bresser Pereira, 1999), e deste projeto consolida-se, na década de 1990, a figura jurídica das Organizações Sociais (OSs, Lei 9.637/98): fundações ou associações civis sem fins lucrativos que se prestam a absorver competências, patrimônios e servidores de entes públicos extintos, como também podem exercer atividades socialmente relevantes, que não sejam competência exclusiva do Poder 12 Público, mas por este incentivada mediante repasse de recursos em instrumento próprio a este tipo de acordo entre sociedade civil e Estado, denominado Contrato de Gestão. As OSs estão aptas a absorver competências de políticas públicas nas áreas de saúde, cultura, ciência e tecnologia, ensino e preservação do meio ambiente (Oliveira e Romão, 2006; Ferrari e Ferrari, 2007). As OSs, de acordo com a Lei federal que as regula (9.637/98), devem ser pessoas jurídicas privadas, sem fins lucrativos, que não distribuam benefícios entre seus associados, invistam seus excedentes financeiros no desenvolvimentos de suas próprias atividades, garantam a existência de órgãos superiores de deliberação e coordenação de acordo com a composição descrita em Lei, publiquem anualmente seus relatórios financeiros, prevejam aceitação de novos associados (no caso de associações civis), e reinvistam seu patrimônio em outra OS em caso de falência. Os controles das organizações sociais se dão de diversas maneiras: endógenos, exógenos, de resultados e social. O controle externo das contas dessas entidades é feito pelo Poder Legislativo, com auxílio do Tribunal de Contas; pelo titular da pasta da política pública na qual a entidade está pleiteando o título de OS; e pelo poder Judiciário, através da possibilidade de ações populares movidas por cidadãos contra ações executadas pelas OS. Já o controle interno é previsto na Lei 9.637/98 quando determina, no inciso I, alínea d do art. 2¹: a “previsão de participação, no órgão colegiado de deliberação superior, de representantes do poder público e de membros da comunidade, de notória capacidade profissional e idoneidade moral”. O contrato de gestão é o instrumento que regula o controle de resultados, normatizando, de acordo com o primeiro artigo da referida Lei, a “ênfase no atendimento do cidadão cliente” e a “ênfase nos resultados, qualitativos e quantitativos nos prazos pactuados”. O controle de resultados, levado a termo pela instituição pública responsável pela execução do contrato de gestão (usualmente a Secretaria ou Ministério responsável) deve ocorrer mediante a apresentação, por 13 parte da OS, de relatórios periódicos, de acordo com modelos pré-estabelecidos na Lei. Por último, o controle social é aquele que pode ser realizado por qualquer cidadão individualmente ou organizado em associações que representem parcelas dos interesses da população. A Lei 9.637/98 prevê, para instauração deste controle social, ato do Poder Executivo chamado de Programa Nacional de Publicização (PNP) que garanta o “controle das ações [das OSs] de forma transparente”. 4 Conclusão Apesar da tentação de se querer, prima facie, categorizar diferentemente estas duas qualidades de instituições híbridas entre poder Público e sociedade civil, demonstrou-se que historicamente elas emergem de um arcabouço sóciocultural no qual se estavam formando grandes alianças nacionais entre diversos setores da sociedade brasileira contra o regime militar que estava em voga no país, bem como contra as conseqüências sócio-econômicas que este havia gerado. Para tanto, e não menos importante, foi fundamental a junção da insatisfação destes atores políticos com projetos teórico-normativos acerca de qual seria, tanto naquele momento quanto no futuro da nação, o papel daquela sociedade civil que se erigia contra os desmandos autoritários dos militares. Passadas mais de duas décadas da democratização do regime político nacional, e com a solidificação das instituições políticas híbridas entre Estado e sociedade civil que frutificaram das ações políticas e das reflexões normativas daquela época, se pode traçar um quadro esquemático de como operam, hoje em dia, estes dois grandes projetos de sociedade que ora se desenharam: o que preconizava o controle social sobre as ações do Estado, e aquele que via na sociedade civil um importante parceiro na regulação fiscal do aparelho do Estado. 4 O PNP nunca foi objeto de Decreto regulamentador, foi apenas estabelecido em Lei. 14 Comparação geral entre CMS e OS Categoria CMS OS Composição do Conselho/órgão colegiado superior de deliberação Sociedade civil (representantes de ONGs e universidades eleitos em foros específicos e regionalizados), prestadores de serviços ao Estado, servidores públicos na área de saúde Indivíduos de notório saber na área da política pública específica, membros da ONG que se qualificou como OS, representantes do Poder Público Composição Diretoria Executiva Cargo comissionado pelo chefe da pasta da Secretaria Municipal de Saúde Indicada e contratada pelo órgão colegiado superior de deliberação Civis individualmente, ONGs, servidores públicos Podem-se qualificar como OS associações civis sem fins lucrativos ou fundações não há Pelo chefe da respectiva pasta de política pública, pelo Poder Judiciário, pelo Tribunal de Contas Controle Civil* Através da ação direta da associação ou indivíduo em foro próprio para contestação, como a Conferência Municipal de Saúde, as Conferências Distritais ou as reuniões das próprias associações Qualquer ação civil já existente (consulta popular, denúncia, requerimento diretamente à OS), publicação das atividades das OS em DO e páginas na internet Controle Interno Participação no órgão colegiado superior de deliberação de Publicação dos pareceres do CMS em membros do Poder Público e DO personalidades de notório saber da comunidade Personalidade Jurídica dos Participantes Controle Estatal/Público Controle de Resultados Eleições/Seleção de quem participa não há Através de instrumento contratual (Contrato de Gestão) assinado entre o Poder Público e representante do órgão colegiado superior de deliberação, instrumento que prevê ênfase no atendimento do cidadão-cliente, bem como nos prazos e resultados quantitativos e qualitativos das ações da OS A cargo da organização (divulgação e regras eleitorais) dos próprios cidadãos/instituições envolvidos no processo Solicitação de instituição sem fins lucrativos/fundação para o chefe da pasta da referida política pública. Uma vez aprovada a qualificação como OS, esta pode ser nomeada para a execução da política pelo chefe da pasta (Secretário/Ministro) * Em ambos os casos não há legislações específicas que regulem esses tipos de ação civil 15 Como se pode perceber há diversas situações, tanto em uma experiência quanto em outra, que podem justificar investigações mais aprofundadas de como se estabelecem as relações entre a sociedade civil e o Estado nestes dois desenhos institucionais. Como característica marcante, pode-se observar, em ambos os casos, a presença acentuada do Estado em esferas fundamentais de decisões e encaminhamentos dessas organizações civis. No CMS/SP a nomeação do Secretário Executivo é feita pelo Secretário Municipal de Saúde, que, por sua vez, é quem preside o Conselho. Nas OSs tanto a presença de representantes do poder público no órgão deliberativo superior das organizações quanto o fato de que estas, após serem qualificadas como OSs, possam ser escolhidas livremente pelo chefe da pasta da política pública para executar determinada política, também podem fortalecer de maneira desigual a participação do Estado nas atividades e decisões das organizações civis. Outra propriedade notória nas duas instituições é a falta de mecanismos legais que regulamentem a entrada dos atores civis em cena: no caso do CMS esta entrada sendo deixada à mercê da própria organização da sociedade civil, e, por oposição, no caso das OS a cargo da avaliação de técnicos do governo da vez. Poder-se-ia argumentar que as duas conjunturas, em situações limite, poderiam trabalhar em favor de interesses corporativos tanto de lobbies com mais recursos políticos, quanto em favor do partido do governo ou de seus aliados. Destarte, apesar do avanço dos esforços de institucionalização destes espaços híbridos entre Estado e sociedade civil no Brasil, e passados os anos de disputas ideológicas mais acirradas acerca dos rumos da democracia no país, seria interessante e necessário que se restabelecesse um debate sobre essas instituições, no qual se fizesse uma avaliação ponderada e assertiva no sentido de se encontrar o melhor desenho possível para elas. 16 Bibliografia BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 05 de outubro de 1988. São Paulo: Atlas, 2004. _______. Decreto Nº 99.438, de 7 de agosto de 1990. _______. Lei n. 8.069, 13 jul. 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, p. 13563, 16 jul.1990. _____. Lei n. 8.742, 7 de dezembro de 1993. Lei Orgânica da Assistência Social. _____. Lei n. 9.394, 20 dez. 1996. Estabelece as Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Brasília, 1996. _____. Lei 9.637/98. Dispõe sobre a qualificação de entidades como Organizações Sociais, a criação do Programa Nacional de Publicização, a extinção dos órgãos e entidades que menciona e a absorção de suas atividades por Organizações Sociais, e da outras providencias. _____. Lei n. 8.142, 28 dez. 1990. Dispõe sobre a participação da comunidade na gestão do Sistema Único de Saúde (SUS) e sobre as transferências intergovernamentais de recursos financeiros na área da saúde e dá outras providências. _____. Lei n. 8.742, 7 dez. 1993. Dispõe sobre a organização da Assistência Social e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, 08 dez. 1993. _____. Resolução CNS Nº 333, de 4 de novembro de 2003. Trata dos conselhos de saúde. SÃO PAULO. Constituição do Estado de São Paulo. ___________. Lei estadual 8356/93, alterada pela Lei 8983 de 13/12/94. Cria o Conselho Estadual de Saúde e dá providências correlatas. _____________. Decreto nº 38.576, de 5 de novembro de 1999. Dá nova regulamentação à Lei nº 12.546, de 07 de janeiro de 1998; dispõe sobre a Conferência Municipal de Saúde, Conselho Municipal de Saúde, Conselhos Regionais de Saúde, Conselhos Distritais de Saúde, Conselhos Gestores das Unidades de Saúde e dá outras providências. ___________. Lei Municipal Nº 12.546, de 7 de janeiro de 1998. Dispõe sobre o Conselho Municipal de Saúde, e dá outras providências. 17 AVRITZER, L. e COSTA, Sérgio. Teoria crítica, democracia e esfera pública: concepções e usos na América Latina. Dados - Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, v. 47, p. 703-728, 2004. BRESSER-PEREIRA, Luiz Carlos. Uma interpretação da América Latina: a crise do Estado in Novos Estudos CEBRAP, 37, Novembro, 1993: 37-57. __________. Estado, sociedade civil e legitimidade democrática in Lua Nova – Revista de Cultura e Política, n 36, 1995: 85-104. __________. 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