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EDITORES Odair Correa Bueno | Ana Eugênia de Carvalho Campos | Maria Santina de Castro Morini Formigas em ambientes urbanos no Brasil EDITORES Odair Correa Bueno | Ana Eugênia de Carvalho Campos | Maria Santina de Castro Morini Formigas em ambientes urbanos no Brasil 1a edição - 2017 Bauru/SP Rua Machado de Assis, 10-35 Vl. América | CEP 17014-038 | Bauru, SP Fone/fax (14) 3313-7968 | www.canal6.com.br Conselho Editorial Profª Drª Cássia Letícia Carrara Domiciano Profª Drª Janira Fainer Bastos Prof. Dr. José Carlos Plácido da Silva Prof. Dr. Luís Carlos Paschoarelli Prof. Dr. Marco Antônio dos Reis Pereira Profª Drª Maria Angélica Seabra Rodrigues Martins Foto da capa - Instituto Biológico Marcia M. Rebouças F725 Formigas em ambientes urbanos no Brasil / Odair Correa Bueno, Ana Eugênia de Carvalho Campos e Maria Santina de Castro Morini (Editores). –– Bauru, SP: Canal 6, 2017. 685 p.; 26,5 cm. ISBN 978-85-7917-456-8 1. Formigas. 2. Brasil. 3. Ambientes urbanos. I. Bueno, Odair Correa. II. Campos, Ana Eugênia de Carvalho. III. Morini, Maria Santina de Castro. IV. Título. CDD: 577.34 Copyright© Canal 6, 2017 COLEÇÕES DE FORMIGAS URBANAS RODRIGO M. FEITOSA Resumo Coleções biológicas desempenham um papel fundamental no estudo dos seres vivos. Quando bem organizados, os dados disponíveis em coleções fornecem informações essenciais para estudos em diversas áreas do conhecimento. Entre estas, incluem-se aquelas diretamente relacionadas ao bem-estar humano. Formigas urbanas são organismos de interesse prioritário no que diz respeito à sua importância econômica e sanitária. Neste sentido, coleções mirmecológicas representativas de faunas urbanas são uma ferramenta de grande importância para a compreensão dos fatores envolvidos na relação destes insetos com os seres humanos. Neste capítulo, abordaremos a importância da Taxonomia e das coleções científicas, aliadas a boas práticas de curadoria, para o aumento da compreensão dos mecanismos de dispersão e estratégias reprodutivas de formigas urbanas. Sistemática e coleções biológicas A Sistemática é o ramo das Ciências Biológicas que estuda a diversidade dos seres vivos e os organiza em sistemas classificatórios (MARQUES; LAMAS, 2006). Neste contexto, insere-se na definição de Sistemática a ciência que lida diretamente com a coleta, processamento, curadoria e descrição da vida: a Taxonomia. Atualmente, o paradigma da COLEÇÕES DE FORMIGAS URBANAS 111 Sistemática é que seus sistemas classificatórios sejam concordantes com a evolução dos grupos biológicos, de tal forma que uma classificação ou, especificamente, o nome de um táxon (produto da Taxonomia), seja a forma mais rápida de acesso a toda informação disponível a seu respeito na literatura. Só é possível preservar ou controlar aquilo que se conhece e, por isso, o primeiro estágio para a conservação e manejo da biodiversidade é descrevê-la, mapeá-la e medi-la (MARGULES; PRESSEY, 2000). O número estimado de espécies viventes hoje é de cerca de 10 a 15 milhões, mas apenas dois milhões foram formalmente nomeadas (BEEBER et al., 2007). Assim, a resposta para a questão básica de quantas espécies habitam nosso planeta ainda está muito longe de ser respondida. Neste sentido, o trabalho do taxonomista é essencial, especialmente quando consideramos o fato de que estamos enfrentando a maior crise de biodiversidade da história da Terra (WHEELER et al., 2004). Museus, herbários e universidades em todo o mundo são depositários de uma vasta quantidade de espécimes reunidos em suas dependências por séculos. Pesquisadores e entusiastas do mundo natural têm coletado e acumulado espécimes biológicos para exposição pública por cerca de 300 anos, desde que o Czar russo Pedro “O Grande” inaugurou o primeiro museu de história natural em 1719, o Kunstkammer, contendo desde pequenos insetos até seres humanos com deformidades físicas, considerados de alto potencial para atração do público (PYKE; EHRLICH, 2009). Atualmente, estima-se que existam de 2,5 a 3 bilhões de espécimes depositados em coleções científicas (O’CONNELL et al., 2004). Este vasto número de espécimes constitui um inestimável registro da diversidade da vida na Terra e, por meio da Taxonomia e Sistemática, representa a base para a maior parte da pesquisa realizada em biologia (RENNER; RICKLEFS, 1994; WINKER, 2004). Embora seja praticamente consenso na comunidade científica o reconhecimento de que coleções biológicas contêm uma enormidade de informações, com potencial ilimitado para estudos nas mais diversas áreas de conhecimento, esta mesma comunidade e, principalmente, as instituições de fomento à pesquisa são de certa forma relutantes quando se trata de reconhecer a importância de se investir na criação e manutenção destas coleções. O suporte financeiro para a pesquisa em taxonomia e sistemática tem declinado vertiginosamente nas últimas décadas (DALTON, 2003). O declínio no investimento nestas áreas fundamentais da pesquisa tem inevitavelmente resultado em uma diminuição no número 112 FORMIGAS EM AMBIENTES URBANOS de taxonomistas e sistematas e, consequentemente, nos recursos para a manutenção das coleções biológicas existentes (GROPP, 2003). Sendo assim, um desafio para os taxonomistas da atualidade, tanto os mais experientes quanto aqueles em início de formação, é complementar suas atividades básicas com técnicas mais recentes e inovadoras de pesquisa, que tenham um maior apelo junto aos órgãos financiadores e à comunidade científica. Este investimento pessoal na atualização profissional já é uma realidade entre taxonomistas da maior parte das instituições, tanto que uma das áreas da pesquisa biológica que mais tem avançado é a chamada “Taxonomia Integrativa”, que nada mais é do que a boa e velha Taxonomia (tradicionalmente apoiada na morfologia dos organismos) aliada a técnicas mais recentes de delimitação de espécies e inferências de relações de parentesco, como a biologia molecular, citogenética, morfometria geométrica, filogenômica, entre outras (SCHLICK-STEINER et al., 2010). Este investimento na formação pessoal deve ser encarado não apenas como uma atualização profissional, mas como uma forma de aumentar significativamente a contribuição científica dos estudos realizados em Taxonomia. Ainda, considerando os profissionais em início de formação, esta é uma oportunidade para se tornar competitivo no meio científico, cada vez mais concorrido, assim como uma maneira de captar recursos para a manutenção das atividades básicas da pesquisa em sistemática, incluindo a ampliação e curadoria das coleções biológicas, fundamentais para o desenvolvimento científico em biologia. Formigas no contexto das coleções biológicas Como visto, o desafio de descrever a diversidade ainda desconhecida da vida é algo que pesa consideravelmente sobre os ombros dos taxonomistas. Neste aspecto, a Mirmecologia pode ser considerada uma área privilegiada da Zoologia, pois trata de grupos inseridos em uma categoria taxonômica relativamente pouco abrangente, a família Formicidae, ainda que COLEÇÕES DE FORMIGAS URBANAS 113 aí esteja incluída uma biodiversidade considerável, sendo estimadas cerca de 20 mil espécies (WILSON; HÖLLDOBLER, 2005). Ainda, existe na Mirmecologia um número significativamente elevado de pesquisadores em atividade no mundo, em comparação a outras especialidades que lidam com categorias taxonômicas semelhantes. Tais fatores contribuíram significativamente para o conhecimento hoje acumulado acerca do grupo, embora muito ainda precise ser feito para que tenhamos uma compreensão completa sobre a real diversidade das formigas que habitam o planeta. O estado relativamente avançado em que a sistemática de formigas se encontra hoje nem sempre foi uma realidade. Para tornar acessível o grande conjunto de informações hoje disponíveis a respeito da identidade, morfologia, distribuição e evolução das formigas, foi necessário o esforço de gerações de taxonomistas, tendo como principais recursos as coleções biológicas. Lattke (2003) menciona que as coleções são entidades vivas, que sobrevivem e melhoram por meio da adição contínua de novos espécimes. Na prática, coleções mirmecológicas, assim como coleções de qualquer outro grupo biológico, são de extrema importância por duas razões principais. A primeira é porque nelas se encontram depositados os espécimes-tipo da Mirmecologia. Espécimes-tipo são os exemplares que representam fisicamente novos conceitos de espécies (ou de outros táxons infra-específicos) e que fundamentam a aplicação correta dos respectivos nomes científicos; ou seja, são os indivíduos nos quais o autor se baseou originalmente para a descrição de uma espécie ou subespécie. Para deixar ainda mais evidente a importância dos espécimes-tipo e das coleções que os abrigam, basta pensar que estes exemplares, ou pelo menos os tipos ditos primários (holótipos, neótipos e lectótipos), são o elo entre um táxon e o seu nome científico e, consequentemente, a toda informação disponível na literatura a seu respeito. Em resumo, os espécimes-tipo são a garantia da estabilidade na nomenclatura zoológica. Assim, qualquer estudo revisional realizado no âmbito da taxonomia de um determinado grupo deve obrigatoriamente levar em consideração o exame dos espécimes-tipo. A segunda função fundamental de coleções mirmecológicas é servir como fonte de consulta, neste caso, coleções de referência. As coleções de referência normalmente abrigam espécimes representativos da fauna de um determinado local ou região e são importantes bases de informação para pesquisadores das mais diferentes áreas interessados em identificar 114 FORMIGAS EM AMBIENTES URBANOS formigas coletadas em localidades representadas nestas coleções. Neste caso, a identificação é feita por meio de comparação direta com exemplares já identificados presentes nas coleções. Teoricamente, não há nada que impeça que espécimes-tipo sejam usados como referência para identificações. Contudo, dada a importância histórica e científica que estes espécimes carregam, é essencial que os mesmos não sejam manipulados frequentemente e que isso seja feito apenas no contexto de uma revisão taxonômica e por pesquisadores experientes. Não menos relevante é a importância dos espécimes de status comum depositados em coleções de abrangência local ou regional. Estes acervos são uma inestimável fonte de novidades taxonômicas por abrigarem espécies pouco ou não representadas em grandes coleções, o que lhes confere grande importância científica. De fato, é comum na rotina taxonômica a descrição de espécies com base em exemplares obtidos de acervos regionais. Ao conjunto de atividades inerentes à administração, organização e manutenção de uma coleção, damos o nome de “curadoria” ou “curadoria científica”. No contexto de uma coleção mirmecológica, as atividades de curadoria envolvem desde a coleta, passando pelo processamento até a manutenção do material acondicionado. A coleta de material leva em conta as técnicas adequadas para a captura de formigas de acordo com os objetivos do estudo em questão, incluindo levantamentos padronizados (como os normalmente realizados sob um delineamento amostral fixo em estudos de cunho ecológico) ou coletas ditas qualitativas, cujo principal interesse é a ampliação da representatividade de uma coleção ou ainda a busca por espécies de interesse taxonômico. A fase denominada processamento envolve a triagem, fixação (em via seca ou líquida), rotulagem (ou etiquetagem), identificação, organização e acondicionamento dos espécimes capturados, sendo de absoluta importância para garantir a qualidade do acervo. Já a fase de manutenção da coleção é de longo prazo e inclui a verificação constante das condições dos exemplares, a reposição das substâncias fixadoras e/ou preservantes, limpeza e recuperação de espécimes danificados e a manutenção preventiva da estrutura da coleção, incluindo a substituição de caixas, gavetas e armários comprometidos e a manutenção constante dos equipamentos de controle de umidade e temperatura, no caso de coleções climatizadas. COLEÇÕES DE FORMIGAS URBANAS 115 O controle da entrada e saída de material e o acesso aos espécimes por pesquisadores ou visitantes são funções administrativas que também cabem ao curador. A prática constante das atividades de curadoria de uma coleção é o que diferencia coleções mirmecológicas funcionais, nas quais o material está em sua maior parte organizado e disponível para estudo, de coleções que atuam como mero “depósito de formigas”, nas quais a falta de organização ou estrutura impede o acesso ao material de interesse, que acaba ficando indisponível para estudo ou vem a se perder com o tempo. A perda de um lote de material depositado em uma coleção pode parecer uma eventualidade natural na rotina científica. De fato, existe uma prática comumente observada em muitas instituições de pesquisa ou laboratórios na qual o material é deliberadamente descartado ao final de um determinado estudo ou pesquisa. De imediato, é possível questionar esta prática do ponto de vista ético e legal. Estudos nas mais diversas áreas da biologia que envolvam a coleta de organismos na natureza são normalmente financiados por agências estaduais ou federais de fomento à pesquisa; em outras palavras, a coleta e o processamento do material biológico (no presente caso, as formigas) são financiados com dinheiro público. O descarte deliberado de material biológico após um estudo implica, num sentido prático, em desperdício de recursos e de testemunhos do patrimônio genético de uma nação, já que os espécimes não comporão um lote disponível numa coleção científica. Além disso, do ponto de vista ético, pode-se questionar se não terá sido vão o motivo pelo qual os organismos foram privados de sua vida. Isto se aplica não apenas ao material testemunho efetivamente utilizado no estudo, ou seja, aqueles poucos exemplares escolhidos numa série numerosa que são de fato submetidos ao processamento para representar as unidades taxonômicas do estudo. Estas questões se aplicam também às chamadas “réplicas”, ou seja, ao material excedente nas amostras originais, não processado. Estes espécimes excedentes são extremamente comuns em estudos com formigas, que são insetos sociais e geralmente vivem em estruturas coloniais de população numerosa. Do ponto de vista científico, o descarte proposital de material é ainda mais problemático. Um dos princípios básicos para qualquer estudo científico é a replicabilidade (DRUMMOND, 2009). Para garantir a validade e, especialmente, a confiabilidade de um trabalho científico é necessário que o autor forneça informações que permitam que o estudo possa ser replicado nas mesmas condições em que foi feito originalmente, o que teoricamente permite que os resultados 116 FORMIGAS EM AMBIENTES URBANOS alcançados possam ser testados e, assim, falseados ou não. No caso de um determinado estudo, que tenha seus resultados amplamente embasados em um conjunto de espécies que foram coletadas, processadas e identificadas pelos autores, mas que foram subsequentemente descartadas, não será possível de forma alguma acessar a informação original que levou os autores às suas conclusões. Tal prática não pode e nem deve ser considerada pesquisa científica em biologia. Assim, é essencial que autores se assegurem de depositar o material testemunho de seus estudos em local onde os espécimes serão apropriadamente acondicionados e ficarão acessíveis por tempo indeterminado, ainda que numa coleção de instituição diferente daquela em que a pesquisa foi conduzida. Apenas assim terão a garantia de que os espécimes estarão bem preservados e disponíveis para estudos futuros, incluídos aqueles que venham testar seus resultados, ou para pesquisas com outras finalidades. A curadoria de coleções requer grande especialização por parte dos responsáveis, tanto quanto às técnicas de manutenção e administração quanto à capacidade de interpretação científica e compreensão da importância dos exemplares depositados num acervo. Este material deve ser encarado como patrimônio da humanidade, já que as coleções abrigam o testemunho mais evidente da nossa biodiversidade, e o vem fazendo há séculos (DE VIVO et al., 2014). Coleções de formigas urbanas e sua importância científica Como insetos sociais dominantes na maioria dos ecossistemas terrestres, as formigas são perfeitamente adaptáveis a condições nas quais outros organismos teriam extrema dificuldade em se estabelecer, incluindo os ambientes urbanos (LACH et al., 2010). Nestes ambientes, algumas espécies (normalmente espalhadas pelo mundo por meio das atividades comerciais humanas) podem entrar em conflito direto com interesses humanos quando, por exemplo, passam a ser vetores potenciais de microrganismos patogênicos em ambientes hospitalares, ou mesmo causando incômodo em ambientes residenciais nos casos de grandes infestações (BACK, 1937). COLEÇÕES DE FORMIGAS URBANAS 117 Jamais, na história da Mirmecologia brasileira, tivemos tantos profissionais trabalhando com nossa fauna sob os mais variados aspectos, no campo e no laboratório. Não só os projetos de pesquisadores lotados em universidades públicas e particulares, mas também a iniciativa privada, através da coleta para fins de estudos de impacto ambiental, tem obtido espécimes que são preparados e depositados nas coleções mirmecológicas em todo o país. Essas coleções são muito variáveis em escopo, recursos, acessibilidade, qualidade e representatividade geográfica e taxonômica. Considerando as coleções mirmecológicas mais representativas do país (veja BACCARO et al., 2015) e que abrigam um grande acervo de formigas urbanas, destaca-se o Museu de Zoologia da Universidade de São Paulo (MZSP) na capital paulista, que abriga espécimes coletados desde o início do século XX, e a coleção de formigas do Laboratório de Mirmecologia da Comissão Executiva do Plano da Lavoura Cacaueira (CEPLAC) em Ilhéus, BA, com um representativo acervo de formigas formado desde a primeira metade da década de 1980. Com relação às coleções nacionais especializadas em formigas urbanas, ou aquelas em que estas formigas são significativamente bem representadas, é forçoso mencionar duas instituições paulistas, o Centro de Estudos de Insetos Sociais do Instituto de Biociências de Rio Claro da UNESP - Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho e a Unidade Laboratorial de Referência em Pragas Urbanas do Instituto Biológico, na capital. Estudos com formigas urbanas no Brasil tiveram início no final da década de 1980, envolvendo principalmente espécies exóticas em hospitais no estado de São Paulo (FOWLER et al., 1993; BUENO; FOWLER, 1994), seguidos por trabalhos no sudeste da Bahia (DELABIE et al., 1995) e na Região Sul (SILVA; LOECK, 1999). Atualmente, grupos de pesquisa dedicados ao levantamento de formigas em ambientes urbanos encontram-se bem representados em praticamente todas as regiões do país. Com o avanço das pesquisas nesta área foi possível traçar o perfil das espécies de formigas de maior prevalência em ambientes urbanos no Brasil, entre as quais se destacam: Tapinoma melanocephalum, Paratrechina longicornis, Nylanderia fulva, Monomorium floricola, Monomorium pharaonis, Pheidole megacephala, Wasmannia auropunctata, Linepithema humile, além de várias espécies dos gêneros Pheidole, Camponotus, Solenopsis e Crematogaster (CAMPOS-FARINHA et al., 2002). 118 FORMIGAS EM AMBIENTES URBANOS Por mais que esta relação não seja imediatamente perceptível, a importância das coleções biológicas para o estudo de formigas urbanas é absolutamente fundamental. Como testemunhos do histórico de coletas das formigas no mundo e base da nossa compreensão sobre a evolução da vida na Terra, as coleções mirmecológicas são o ponto de partida para estudos sobre mecanismos de dispersão, estratégias reprodutivas e outros aspectos da biologia de formigas urbanas. Mapear a origem de uma espécie exótica que tenha atingido o status de praga e traçar a sequência de invasões desta espécie é definitivamente o passo mais importante na busca pela compreensão dos mecanismos de dispersão de espécies urbanas (WETTERER, 2008). Ao avaliar a ocorrência nativa e exótica de espécies de formigas urbanas, os pesquisadores devem considerar um conjunto de evidências indicativas de sua região de origem, o que inevitavelmente inclui: (1) o levantamento de registros de ocorrência antigos restritos a uma única região contínua; (2) o súbito surgimento e posterior dispersão de registros descontínuos às localidades de ocorrência previamente conhecidas; e (3) a ocorrência exclusiva ou predominante da espécie em regiões costeiras e/ou altamente antropizadas, que representa um forte indício de invasão. Embora muitas das informações necessárias para a compreensão destes mecanismos possam ser obtidas por meio de levantamentos bibliográficos, é virtualmente impossível obter um panorama completo da sequência de registros de ocorrência de uma espécie ao longo do tempo sem recorrer aos dados de procedência do material depositado em coleções, por meio do exame das informações contidas nas etiquetas dos exemplares. Mesmo os dados da literatura são idealmente baseados em material testemunho depositado em coleções. Assim, é evidente que o avanço no estudo das estratégias de dispersão de formigas urbanas passa obrigatoriamente pelo acesso às coleções biológicas. Um exemplo claro da importância das coleções mirmecológicas no estudo da dispersão de formigas urbanas é o trabalho de Wetterer (2008). Neste estudo, o autor avaliou a origem e a sequência de invasões da espécie mais amplamente distribuída de formigas urbanas do planeta, T. melanocephalum, a formiga-fantasma. Após um exaustivo levantamento bibliográfico e o exame de dados de procedência de espécimes depositados em diversas coleções do mundo, Wetterer obteve mais de 1.500 registros provenientes de 154 regiões geográficas (países, arquipélagos, estados, departamentos e províncias). Além do mapeamento completo da distribuição da espécie, o estudo revelou os primeiros registros de ocorrência COLEÇÕES DE FORMIGAS URBANAS 119 para T. melanocephalum em 29 regiões geográficas do mundo e, por meio do rastreamento dos registros através do tempo, o autor sugere que a espécie tenha como provável região de origem o sudeste da Ásia. O estudo de Wetterer abriu as portas para uma melhor compreensão sobre quais são os fatores envolvidos na dispersão dos propágulos de colônias de T. melanocephalum e também quais são as condições ambientais que favorecem a chegada destas formigas. Com o padrão de dispersão do organismo invasor detectado e conhecido, torna-se possível elaborar estratégias para a prevenção de invasões biológicas. Embora esteja claro o papel das coleções para o avanço das pesquisas sobre formigas urbanas, uma preocupação deve ser levantada com relação à confiabilidade das identificações das espécies depositadas nos acervos biológicos. Como visto, é perfeitamente possível embasar estratégias de controle, ou mesmo planos preventivos contra invasões biológicas, em registros históricos do material depositado em coleções científicas. Contudo, de nada adianta uma espécie potencialmente invasora estar presente em uma coleção se os espécimes que a representam não estiverem acessíveis para estudo ou, no pior dos cenários, estiverem erroneamente identificados. Erros em cascata na literatura decorrentes de identificações equivocadas de espécies podem ter consequências drásticas, especialmente em se tratando de organismos de importância econômica e/ou médico-sanitária, como as formigas urbanas. Embora normalmente subestimado, o processo de disseminação de erros em cascata na literatura biológica pode se originar de problemas taxonômicos considerados triviais, como a desatualização da classificação taxonômica em um estudo ou, como mencionado, a atribuição de nomes científicos equivocados em uma coleção de referência. De imediato, tais problemas afetam diretamente as hipóteses e ideias propostas em estudos das mais variadas áreas do conhecimento. Contudo, com o tempo, os erros acumulados na literatura tornam-se um grave problema prático que afeta de modo significativo nosso conhecimento a respeito da estrutura e funcionamento dos ecossistemas e nossa capacidade de interpretar os processos naturais. Ainda, as informações equivocadas perpetuadas na literatura podem ter grave impacto na eficiência de programas para controle de pragas agrícolas ou insetos vetores de doenças, com resultados potencialmente catastróficos (veja BORTOLUS, 2008). 120 FORMIGAS EM AMBIENTES URBANOS Também fundamental é a necessidade de conscientização entre os pesquisadores de todo o mundo quanto à importância da coleta de formigas urbanas. Existe uma tendência natural entre pesquisadores em investir na coleta de organismos em locais remotos, pouco acessíveis, especialmente localizados no interior das áreas continentais dos trópicos. Essa tendência tem como estímulo a ideia de que a fronteira para o conhecimento da biodiversidade ainda desconhecida do planeta está em locais pouco ou nunca explorados previamente. Embora coerente, este raciocínio leva muitos pesquisadores a negligenciar as faunas locais ou mesmo deixar de investir em expedições de coleta para regiões próximas a grandes centros urbanos. O que muitos pesquisadores ignoram é o fato de que esta prática acaba resultando em uma subamostragem de espécies de interesse científico prioritário, como é o caso das formigas de importância econômica e sanitária. Isso resulta na baixa representatividade destas espécies em coleções, o que, como vimos, constitui um grande empecilho para o aumento do nosso conhecimento acerca das formigas urbanas. Essa discussão nos traz às questões levantadas no início deste capítulo. Todo e qualquer avanço no conhecimento a respeito da história dos organismos na Terra, o que obviamente inclui as formigas urbanas, depende fundamentalmente de boas práticas científicas, das informações resultantes dos esforços de taxonomistas de todo o mundo e de suas principais ferramentas de trabalho, as coleções biológicas. Agradecimentos O presente capítulo foi extremamente beneficiado pelos comentários e sugestões de Alexandre C. Ferreira (Universidade Federal do Paraná), Gabriela P. Camacho (Universidade Federal do Paraná) e Orlando Tobias Silveira (Museu Paraense Emílio Goeldi). Grande parte das impressões aqui deixadas são fruto dos 12 anos de convívio, observação e admiração ao trabalho de curadoria e museologia realizados pelo meu mentor científico, Dr. Carlos Roberto F. Brandão, a quem dedico este capítulo. Deixo, ainda, um agradecimento especial aos editores Odair Correa Bueno, Ana COLEÇÕES DE FORMIGAS URBANAS 121 Eugênia Campos e Maria Santina de C. Morini pelo convite e pela confiança. Durante a produção do capítulo o autor recebeu financiamento do Conselho Nacional de Pesquisa e Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq (processo 130642/2016-9). Referências BACCARO, F.B.; FEITOSA, R.M.; FERNANDEZ, F.; FERNANDES, I.O.; IZZO, T.J.; SOUZA, J.L.P.; SOLAR, R. Guia para os gêneros de formigas do Brasil. Manaus: Editora Inpa, Manaus, 2015. 388p. BACK, E. A. House ants. USDA leaflet. v.147, p.8, 1937. 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