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O CONVENTO DA ENCARNAÇÃO DAS COMENDADEIRAS DE SÃO BENTO DE AVIS ANDRÉ MARTINS DA SILVA NOVEMBRO DE 2017 O CONVENTO DA ENCARNAÇÃO DAS COMENDADEIRAS DE SÃO BENTO DE AVIS por André Martins da Silva* andre.msilva@scml.pt https://fcsh-unl.academia.edu/AndreMartinsdaSilva Separata de Cadernos Culturais – Lumiar - Olivais - Telheiras, 2ª Série N.º 10, de Novembro de 2017, edição do Centro Cultural Eça de Queiroz sob direcção de Fernando Andrade Lemos e José António Silva. SILVA, André Martins da – O Convento da Encarnação das Comendadeiras de São Bento de Avis. Cadernos Culturais – Telheiras - Lumiar - Olivais. ISBN 978-989-8180-12-4. 2ª Série Nº 10 (Novembro 2017), pp. 1733 * – Técnico Superior do Serviço de Públicos e Desenvolvimento Cultural da Direcção da Cultura da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa. Guia-Intérprete e Historiador de Arte. 205 O Convento de Nossa Senhora da Encarnação1 Fig. 1 – O Convento da Encarnação visto do Miradouro de São Pedro de Alcântara. Fotografia do autor. Apesar de se erguer em local de destaque na colina de Sant’Ana, impondo-se perante o edificado circundante numa posição sobranceira à baixa lisboeta, o Convento da Encarnação permaneceu largamente desconhecido pelo público em geral, tendo, também, recebido relativamente pouca atenção por parte dos investigadores. Para este desconhecimento terá 1 Nos documentos que aqui publicamos segue-se a seguinte metodologia de transcrição paleográfica: respeito pela estrutura do texto original, tanto ao nível da pontuação como da ortografia (mantendo-se maiúsculas e minúsculas tal como estão no original e não se actualizando caracteres, por exemplo a letra U pela V ou a letra J pela I, entre outras); fins de linha assinalados com uma barra inclinada à direita e fins de página com duas barras inclinadas à direita; partes de texto que foram excluídas por razões de economia da transcrição, assinaladas por reticências entre parêntesis rectos; informação que foi acrescentada por razões de clareza, não se encontrando no documento original, entre parêntesis rectos; tudo o que foi transcrito está entre aspas e em itálico e as letras acrescentadas por motivo de desenvolvimento de abreviaturas estão em formato normal. O sinal de igual e o hífen correspondem a hifenizações, sendo usados de acordo com a forma em que se encontram no original. contribuído, por um lado, a atenção limitada que a arte do período filipino obteve até há relativamente poucos anos, desconsiderada que era devido ao seu entendimento como produto de um ocupante estrangeiro e, como tal, merecedora de enfoques mais superficiais. Por outro lado, o até há pouco tempo dificultoso acesso ao espaço terá sido outro factor, situação que se tem vindo a minimizar graças às visitas à zona conventual – guiadas pelos técnicos do Serviço de Públicos e Desenvolvimento Cultural da Direcção da Cultura da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa –, ao que se acrescentam outras actividades culturais promovidas pela Instituição. Facilitadas com a entrega dos Recolhimentos da Capital2 à Santa Casa, estas visitas guiadas contribuíram, ainda, para uma atenção redobrada ao Convento da Encarnação por parte dos guias que as conduzem, o que tem permitido trazer à luz informações de interesse. Tivemos também oportunidade de estudar este convento no âmbito do Mestrado em História das Artes da Época Moderna e da Expansão, da FCSHNOVA, por ocasião do nosso trabalho final da unidade curricular de Arte Monástico-Conventual da Época Moderna em Portugal, leccionada pelo Professor Doutor Carlos Moura, a quem agradecemos pelo enquadramento e encaminhamento ao longo do mesmo. Na sequência de todo o esforço que de alguns anos a esta parte vem a ser desenvolvido à volta do Convento da Encarnação, vimos assim partilhar alguma da informação a que chegámos, no seguimento do repto lançado pelo Centro Cultural Eça de Queirós, na pessoa do seu coordenador, o Senhor Professor Fernando Andrade Lemos, a quem aproveitamos para manifestar o nosso agradecimento e respeitosa amizade. 2 Os Recolhimentos da Capital, incluindo a Encarnação, foram entregues à Santa Casa da Misericórdia de Lisboa em 2011, até então à guarda da Segurança Social. São cinco, a saber: Encarnação, Santos-o-Novo, Grilo, São Cristóvão e Merceeiras. 17 Em 1833, Luís Gonzaga Pereira situava em 15 de Setembro de 1630 a instalação da comunidade no local, data durante muito tempo depreendida como próxima do momento de arranque das obras, como é expectável. Segundo o mesmo autor, o convento terá sido reconstruído depois de 1734, a mando de D. João V, no rescaldo de um violento incêndio que o consumiu3. Depois disto, o convento foi referido por vários olisipógrafos, como Norberto de Araújo ou Fernando de Almeida, porém carece ainda de um estudo de cariz monográfico, que, através de uma abordagem profunda, permita elucidar – de uma forma detalhada e bem fundamentada – a sua real dimensão histórico-artística. Mais recentemente, o Convento da Encarnação foi abordado por Adélia Caldas no âmbito do Projecto Lx Conventos4, que partilhou algumas conclusões no colóquio organizado pela ocasião e tomou a seu cargo a redacção da respectiva ficha de inventário5. Ao longo das páginas que se seguem, procuraremos minimizar temporariamente o referido desconhecimento que recaiu sobre o monumento, até este receber o estudo detalhado que verdadeiramente merece. Com efeito, este interessantíssimo convento seiscentista foi ocupado até finais do século XIX por membros da mais distinta nobreza feminina portuguesa – dignidade em grande medida devida à sua afectação à Ordem de Avis – fundado que foi no ano de 1614 para “[…] ha=/uerem de recolherse nelle as pessoas de mayor qualidade deste Rej=/no, pera depois poderem cazár”6. Estas conseguiram, por isso mesmo, chamar a si a colaboração de gerações sucessivas de arquitectos cimeiros, tais como Baltazar Álvares, Mateus do Couto, João Antunes, Custódio Vieira ou Manuel Caetano de Sousa, que foram somando os seus contributos a partir de 1625, quando o convento se instalou na colina de Sant’Ana. A fundação de um convento 3 PEREIRA, Luís Gonzaga – Monumentos sacros em Lisboa em 1833, p. 245 e segs. 4 Vd. http://lxconventos.cm-lisboa.pt/ 5 Vd. CALDAS, Adélia – Convento de Nossa Senhora da Encarnação, In Lx Conventos (código LxConv040), (http://patrimoniocultural.cmlisboa.pt/lxconventos/ficha_imprimir.aspx?id=617) 6 Documento de 1641. AN/TT - MCO Secretaria da Mesa e Comum das Ordens – MCO 055, doc. 7 A fundação do Convento de Nossa Senhora da Encarnação deve-se à vontade da Infanta D. Maria, filha do rei D. Manuel I, que, em 18 de Julho de 1577, doente e consciente da possibilidade de morrer – como efectivamente morreu – passou a escrito as suas últimas vontades. Uma das mulheres mais ricas do seu tempo, D. Maria foi amiúde pretendida para fins matrimoniais nunca concretizados, o que lhe valeu o epíteto de A sempre-noiva. Através do seu testamento distribuiu muita da riqueza que tinha, tendo, além de outras doações pias, manifestado a intenção de fundar “[…] hum moesteiro de freiras da ordem de sam / Bento, no lugar que ao geral & padres de Sam Bento (de cuja obe-/diencia as freiras hão de ser) parecer bem […]”, no qual não haja “[…] nun-/ca mais, nem menos freiras, que sesenta & duas, & vinte seruido-/ras: deste numero de freiras, as vinte & cinco seram de nobre ge-/ração, & se receberaõ sem dote, nomeadas por el Rey meu senhor […] a que peço por me fa/zer merce queira ser padroeiro & protector deste mosteiro, pera / que (se nosso Senhor me leuar sem o eu edificar) dee Sua Alteza ordem para os ditos padres de sam Bento o edeficarem, a quem mando se / entregue hum conto & meo de juro, que he o dote com que doto / e fundo o tal moesteiro”. Acrescenta ainda que “A inuocação desta casa sera, nossa Senhora da Encarnação: Os / estatutos & modo da vida, sejão os da ordem onde mais refor-/mada a ouuer”7. É muito provável que a preferência da Infanta por esta invocação se deva à ligação onomástica com o seu próprio nome, Maria, na linha de uma tradição que sabemos ter uso naquela e noutras épocas. A título de exemplo, o santo patrono do seu meio-irmão, o Rei D. João III, era S. João Baptista, como se vê nalguma iconografia régia, designadamente o painel do coro-alto da Igreja da Madre de Deus, de Cristóvão Lopes. Ao testamento a infanta anexará depois um codicilo, que achou por bem acrescentar “porque vão no dito testamento algũas cou-/sas, que a meu parecer não vão bem declaradas pola pressa com / que // que o fiz”8. E esclarece: “Declaro que o moesteiro que deixo no meu testamento que se / faça de freiras da ordem de sam 7 8 Treslado do Testamento da Iffante, que Deos tem. Treslado do Testamento da Iffante, que Deos tem. 18 Bento, que quero que seja fei-/to aqui em Lisboa, & que se busque pera isso hum sitio que se / compre à custa de minha fazenda, que seja muito alegre e saa-/dio, & tenha muita agoa dentro: & os meus testamenteiros [o Cardeal D. Henrique, o Arcebispo de Lisboa e o Governador de Lisboa] / com o Geral e padres da dita ordem, mandarão buscar este si-/tio […]”9. A infanta pretendia também distribuir as relíquias em sua posse pelos mosteiros que tinha fundado: “Mando que se as reliquias que tenho, ao tempo que nosso Senhor / me leuar as não tiuer já dadas, que as repartão meus testamenteiros / por o moesteiro de nossa Senhora da Luz, & por o moesteiro de / santa // santa Ilena de Monte caluario que fiz em Euora, & polo moesteiro / que mando fazer de freiras da ordem de sam Bento nesta cidade / de Lisboa, & pera cada moesteiro destes mandarão meus testa-/menteiros fazer seu relicario de prata muito bem feito em que se / metão estas reliquias”10. Ignoramos se o relicário chegou a ser feito e sequer se as relíquias foram entregues à Encarnação. Resumindo, no testamento a Infanta define a ordem religiosa a que a casa estaria afecta e o seu número de ocupantes, pedindo ao rei que sustentasse 25 freiras e assegurasse a fundação do convento. Estipula uma soma para custear a construção, define a invocação e exige o rigor da observância. Impõe, ainda, que as ocupantes sejam cristãs velhas e define uma tença para o seu sustento. Acrescenta, depois, que a casa teria que ser fundada em Lisboa, num local adquirido à custa da sua fazenda. Pese embora o grande cuidado que a infanta manifesta no seu testamento, prevendo praticamente tudo o que seria necessário para dar cumprimento à fundação, a obra só vem efectivamente a iniciar-se muito depois, já no reinado de Filipe II de Portugal. Ora, como sabemos, um ano depois da morte da infanta, o Rei D. Sebastião – a quem, recorde-se, tinha pedido para ser patrono do convento – morreu no desastre militar de Alcácer-Quibir, cujo contexto subsequente contribuiu sobremaneira não só para o atraso do início dos trabalhos, mas também para alteração das orientações fundacionais estipuladas pela Infanta D. Maria. Quando se começa a tratar de fazer cumprir a sua vontade, na alvorada do século XVII, os desígnios são já outros. 9 Efectivamente, as primeiras décadas da dinastia filipina conheceram um fulgor construtivo de grande importância política, particularmente focado na capital. O Paço da Ribeira, epicentro do poder político português, recebeu uma nova capela palatina (i.e. um novo espaço de celebração da liturgia real), bem como o imponente torreão do Terzi, marca visível e expressão do poder do novo rei. Renovou-se integralmente São Vicente de Fora, encomenda de D. Afonso Henriques e portanto fortemente conotado com a fundação da Nacionalidade, aproximando-se assim Filipe II à pessoa do próprio rei-fundador. A refundação incluiu mesmo um novo panteão dinástico, naturalmente ligado ao poder político dos reis, e absorveu uma capela de origem sebastianina então em construção do Terreiro do Paço, precisamente dedicada a S. Sebastião. Neste âmbito, e dentro da renovação espiritual trazida pela reforma tridentina, várias ordens religiosas vão beneficiar, também, do ímpeto construtivo. Concluiu-se a casa-mãe da Companhia de Jesus, a Casa-Professa de São Roque, em fase de construção quando Filipe II subiu ao trono português, obra que o rei apoiou com artistas a seu cargo enviados para o efeito. A mesma ordem religiosa recebeu pouco depois um novo colégio, o de Santo Antão-o-Novo, ao passo que outras congregações receberam novos mosteiros, como por exemplo São Bento da Saúde (beneditino) ou o Desterro (cisterciense), entre várias casas religiosas edificadas em Lisboa e não só. As ordens militares não foram esquecidas e viramse favorecidas por iguais privilégios, onde a Corte frequentemente interveio, movida por objectivos políticos concretos. Com efeito, a fundação do Convento da Encarnação enquadra-se num contexto mais vasto de renovação das principais casas afectas às ordens militares, ocorrido entre finais do século XVI e inícios do XVII, indelevelmente associado à afirmação da nova dinastia. Este conjunto de trabalhos determinou intervenções importantes nas casas-mãe das ordens militares cujo mestrado cabia ao rei: Cristo, Santiago e Avis, ou seja, o Convento de Cristo, o de Palmela e o de Avis, respectivamente. Segundo Miguel Soromenho, “a continuidade cronológica das obras, a dimensão afim dos programas arquitectónicos e o acompanhamento Treslado do Testamento da Iffante, que Deos tem. Treslado do Testamento da Iffante, que Deos tem. 10 19 directo das mais altas instâncias falam-nos de uma política sistemática, cujo objectivo lógico seria o de fidelizar algumas das mais importantes estruturas de poder do Portugal do Antigo Regime”11. Trabalhou-se também para erguer casas destinadas às familiares dos cavaleiros pertencentes às ordens em que o matrimónio era permitido, Santiago e Avis. Em 1609, cinco anos antes da fundação do Convento da Encarnação, arrancaram as obras do novo Convento de Santos-o-Novo, com um propósito em tudo igual ao daquele, mas destinado às donas da Ordem de Santiago. Como noutros casos (e.g. São Vicente de Fora) foi basicamente uma refundação, herdeiro que era de um anterior Convento de Santos-o-Novo fundado por D. João II (hoje inexistente), por sua vez sucessor do Convento de Santos-o-Velho. Efectivamente, não é – de todo – por mera coincidência que Santos-o-Novo e a Encarnação são obras contemporâneas. Enquadram-se num conjunto de iniciativas construtivas que incluiu importantes intervenções nas casas-mãe e nos alojamentos para as donas, cujo objectivo central não é favorecê-las, mas é, pois, favorecer os cavaleiros seus familiares, providenciando-lhes um local onde recolher as mulheres e filhas, com uma finalidade política específica: fidelizálos à nova dinastia. Com efeito, trata-se de duas obras cujos paralelismos são não só funcionais mas também cronológicos, formais e estruturais, sendo também frequentes as referências documentais que fazem menções cruzadas a ambas, ou encontrarem-se os mesmos arquitectos a trabalhar nos dois sítios. Basicamente, Santos-o-Novo e a Encarnação desempenham exactamente a mesma função, mas a favor de ordens militares diferentes, ocupando igual papel dentro das respectivas estruturas. Se a primeira referência à obra da Encarnação é de 160112, a de Santos-o-Novo encontra-se no ano de 1605, incluindo documentação de ordem financeira enviada ao rei e exortações à urgência de se dar início aos trabalhos, devido à falta de aposentos para as donas13. Muito graças ao empenho dos envolvidos na refundação, como a comendadeira D. Ana de Lencastre e o Marquês SOROMENHO, Miguel – Os grandes programas arquitectónicos filipinos para as Ordens Militares e o Mosteiro de Santos-o-Novo. In Revista Monumentos. No. 15, p.19 12 Os aspectos cronológicos da fundação da Encarnação serão desenvolvidos mais adiante. 13 SOROMENHO, Miguel – op.cit., p.20 de Castelo Rodrigo, D. Cristóvão de Moura, Santos-oNovo acabou por conhecer um avanço construtivo numa fase relativamente inicial da sua fundação, logo a partir do lançamento da primeira pedra a 9 de Fevereiro de 1609, dia de Santa Apolónia14. Poucos anos depois, corria o ano de 1617, Mateus do Couto surge documentado como olheiro da obra, o que – conforme chamou à atenção Paulo Santos Costa – afasta a possibilidade de lhe ser atribuída a autoria do projecto, pois o cargo de olheiro corresponde ao que hoje chamaríamos um supervisor, portanto “um executante do trabalho por outrem projectado”15. É, no entanto, um dado importante, pois o mesmo nome surge também na Encarnação. Por razões de ordem financeira, o Convento de Santos-o-Novo nunca passou de menos de metade do inicialmente projectado, pesem embora as ainda assim impressionantes dimensões do conjunto. Já a Encarnação, devido à escassez financeira relacionada com a difícil gestão da fazenda da Infanta D. Maria, problema pouco depois agravado pelas guerras dos Trinta Anos e da Restauração, acabou por ser fundada e iniciada décadas depois, com as respectivas obras a arrastarem-se pelo século XVII adentro, tal como se veio a verificar em Santos. Construído a favor da Ordem de Avis, com expressa intervenção por parte dos poderes régios, movidos por intenções concretas, o Convento da Encarnação constitui uma tipologia rara de casa monásticoconventual. Foi um convento feminino, adstrito a uma ordem religioso-militar, por natureza de cariz masculino, obviamente. Tal como muitas outras ordens militares, os cavaleiros da Ordem de Avis não tinham, durante praticamente toda a Idade Média, permissão para contraírem matrimónio. Esta situação só se alterou em finais do século XV, quando o famoso Papa Alexandre VI Bórgia lhes concedeu autorização para se casarem. Dos riscos da vida bélica a que estavam sujeitos adveio a necessidade de casas conventuais que albergassem as mulheres e filhas, quando o homem estava longe ao serviço do rei ou quando morria em batalha. Se a Ordem de Santiago respondeu a esta necessidade 11 SOROMENHO, Miguel – op.cit., p.20 COSTA, Paulo Santos – O projecto inicial e o projecto final. In Revista Monumentos. No. 15, p.27 14 15 20 desde o século XII, com um recolhimento existente em Arruda16, transferido no século seguinte para Lisboa, ignoramos onde se recolheram as donas da Ordem de Avis entre finais do século XV e a construção do Convento da Encarnação. A mera presença na Encarnação de património anterior ao século XVII não é por si só indicadora da existência de um anterior convento, pois é provável que fosse comum que, ao entrarem, as donas trouxessem dos seus oratórios privados imagens de santos da sua devoção pessoal. Além de outras pinturas, refira-se a título de exemplo um Menino entre os Doutores de Cristóvão de Figueiredo, levado da Encarnação para o Museu Nacional de Arte Antiga17, que em última análise não será proveniente deste convento, pois antecede-o. O papel deste convento dentro da estrutura da Ordem de Avis é uma questão fundamental para o compreender, pois distingue-o da esmagadora maioria das demais casas monástico-conventuais. As habitantes viviam num regime bastante mais permissivo que o normal, muito distante da rigorosa observância exigida pela Infanta D. Maria. Socorrendo-nos da conhecida História dos Moesteiros, Conventos e Casas Religiosas de Lisboa, “a obrigaçam que constitue o estado religioso temperou o Pontifice de maneyra que o voto de castidade de que professam he conjugal, e assim ficam livres para poderem contrair matrimonio […]. No voto da pobreza estam tambem dispensadas, porque podem possuir bens e por morte dispor delles como lhe parecer. A obediência tambem as nam obriga a culpa; sam porem sogeytas a pena se nam cumprirem o que lhes manda a Regra e a Prelada. A clausura que tem lhes permitte sahir do mosteyro com licença da Prelada, a qual se lhes concede pera visitar as parentas proximas e tambem pera irem a algumas igrejas e a outros mosteyros”18. O nível de conforto era de tal ordem distinto da maioria dos conventos que poderiam inclusivamente ter criadagem, “conforme lhes he necessario e as posses lhe permittem”19. O número de ocupantes documentadas em 1708 fala claramente por si: o convento era habitado por 1 comendadeira, 17 professas, 17 moças de coro, 9 seculares e 93 criadas20! Havia disponíveis 25 lugares para freiras professas, de nomeação régia e providos pelo rei, ao passo que as moças de coro eram obrigadas a trazer um dote ao entrarem. As seculares recolheriam durante a ausência do marido ou enquanto aguardavam pelo casamento. À cabeça estava uma comendadeira, nomeada pelo rei. Os estatutos do convento previam que a prelada do convento seria perpétua e teria este título, pois assim a chamava Sua Santidade nos breves de fundação21. No reinado de D. João V está documentada a existência de uma vice-comendadeira. Esta organização dava ao Convento da Encarnação uma estrutura interna distinta de grande parte das casas monástico-conventuais. Estava, naturalmente, provido com vários dos habituais espaços especializados da vida cenobítica, tais como claustro, igreja, casa do capítulo, portaria, casa da roda, etc., mas, por outro lado, não tinha refeitório ou enfermaria, pois não comiam em comunidade e se adoecessem recuperavam nas suas habitações individuais. E este é, pois, o ponto que provavelmente mais distingue a Encarnação: é um espaço conventual que se encontra divido em várias unidades habitacionais, onde as habitantes se recolheriam e viveriam com alguma autonomia e em economia própria. Para além dos domicílios individuais, o convento tinha dois dormitórios para as religiosas22, sabendo-se que pelo menos um deles estava encostado à muralha fernandina, pois uma ruína de parte desta levou uma parede do dormitório com ela23. A comodidade em que viviam é curiosamente espelhada numa petição para saída do convento, que aqui transcrevemos parcialmente: “Fes petiçaõ a Vossa Magestade neste Tribunal da Meza da Consciencia E / ordens dona Maria da Cunha professa no Mosteiro de nossa senhora / da Encarnaçaõ da Ordem d Aviz, em que diz que ella tras 20 MATA, Joel Silva Ferreira – O Convento e as religiosas da Ordem de Santiago. In Revista Monumentos. No. 15, p.15 17 Número de inventário 1575 Pint 18 História dos Moesteiros, Conventos e Casas Religiosas de Lisboa, Tomo II, pp. 431-432 19 História dos Moesteiros, Conventos e Casas Religiosas de Lisboa, Tomo II, p. 432 16 História dos Moesteiros, Conventos e Casas Religiosas de Lisboa, Tomo II, p. 440 21 AN/TT – MCO Secretaria da Mesa e Comum das Ordens – MCO 055, doc. 16 22 História dos Moesteiros, Conventos e Casas Religiosas de Lisboa, Tomo II, p.440 23 Documento de 1644. AN/TT – MCO Secretaria da Mesa e Comum das Ordens – MCO 055, doc. 27 21 há / muitos tempos grandes estimulos na sua alma de ser capucha / em algũm dos mosteiros Recolectos desta Cidade, e porque no do / sancto sacramento se uiue com grande Rigor, a saber, naõ comendo / carne, jejuando sete mezes continuos, naõ vsando de linho no inte-/rior, naõ tendo cama, indo a matinas sempre a mea noite, tendo duas horas de oraçaõ mental cada dia, naõ sendo uistas de pessoas / de fora, nem ainda de pays, e mays, seruindosse por ssy sem / criadas, nem seruidoras, e com tanta pobreza que naõ tem / mais que hũ pobre habito de burel branco, com outros muitos Rigores particulares que naquela Casa se obseruaõ. O que tudo he / pello contrario na Encarnaçaõ porque nem tem profissão solémne / que lhe impida o casar, antes o podem fazer segundo a sua regra, nem tem clausura, saindo como saem a uisitar seus paren-/tes, nem tem jejuns, nem abstinencias, nem aspereza de uestido, e se seruem com prata, nem tem pobreza pois saõ obri/gadas a ter Renda propria, e quantas mais tanto melhor para / sostentarem estado e criadas […]”24. Os anos iniciais na Ermida de São Mateus Se em 1577 a Infanta D. Maria manifestou a sua vontade no sentido de mandar edificar o convento, só em 1601 é que os poderes políticos se começaram a mexer para a concretizar. Excluindo o testamento da Infanta, data de 8 de Dezembro deste ano a referência mais recuada que conhecemos relativamente ao Convento da Encarnação, especificamente uma carta régia de Filipe III de Espanha25 sobre o local onde deveria ser fundado. Quatro anos depois, uma outra carta dá indicações ao agente em Roma, D. José de Melo, no sentido de conseguir bulas papais para que se procedesse à fundação, e é apontada para fundadora D. Luísa das Chagas de Noronha, religiosa no Convento da Esperança de Lisboa26, vindo a ser, mais tarde, a primeira comendadeira da Encarnação. Em 1612, Paulo V emite um breve para que se fundasse o convento em casas particulares27, passando, a 8 de Outubro do mesmo ano, um segundo breve “[…] 24 Documento de 1649. AN/TT – MCO Secretaria da Mesa e Comum das Ordens – MCO 055, doc. 38 25 Continuação do Inventário do supprimido Convento de Nossa Senhora da Encarnação da Ordem de São Bento de Avis (Cartório), fól.16 f. In Inventário de extinção do Convento de Nossa Senhora da Encarnação de Lisboa. 26 Continuação do Inventário (…) (Cartório), fól. 8 f 27 Continuação do Inventário (…) (Cartório), fól. 2 f alcançado, a instancia d’ / El Rei Fellippe de Castella, / a favor do mosteiro, sobre a fun/dação e Commutação da ulti-/ma vontade da Infante Dona / Maria”28. Esta comutação disse respeito à entrega do convento não ao ramo feminino da Ordem de São Bento, mas sim à Ordem Militar de São Bento de Avis29, uma alteração absolutamente fundamental para entender a história da Encarnação. Especificamente solicitada pelo poder régio, esta comutação deve ser compreendida à luz da conjuntura em que então se vivia e no âmbito de uma campanha construtiva então em marcha, a favor das ordens militares. Uma referência documental de 1646 indica que “[…] se deu prinçipio a este Mosteiro no anno d 614 […]”30, data fundacional já apontada por outros autores, como Adélia Caldas31. Neste mesmo ano, a 2 de Julho, o Arcebispo de Lisboa emitiu uma patente “[…] mandando a / Madre Soror Madanella do Or/to, Prioreza do Convento da / Esperança, que deixe sair d’/elle a Madre Soror Luiza das / Chagas para ir ás Casa do / Conde de Monsanto, junto / á Ermida de Sam Matheus, / que sam destinadas para o // Mosteiro da Ordem de Sam / Bento d’Aviz”32. Sucederam-se, no mesmo ano, autorizações para saídas de várias freiras de espaços monásticoconventuais como Odivelas, Anunciada, Esperança e N.ª Sr.ª dos Poderes de Vialonga, com vista à integração na comunidade inicial da Encarnação33. Sendo a comendadeira um cargo de nomeação régia, D. Luísa das Chagas de Noronha tomou posse no ano seguinte, por “Carta d’El Rei / D Felippe II, de 22 agosto 1615 / pela qual nomeou Commen/dadeira do Mosteiro da En-/carnação, da Ordem de Sam / Bento d’Aviz a D. Luiza / de Noronha, a quem foi lan-/ Continuação do Inventário (…) (Cartório), fól. 3 f Um documento de 1646 informa que “[…] sua sanctidade dispensou a instançia de Vossa Magestade / que o llegado que deixou a senhora Iffante Dona Maria, que Deos tem / para nesta Cidade se fundar hũ mosteiro de freiras da Ordem de saõ / Bento, se comprisse e comutasse, em freiras da ordem de sam / Bento d Auiz […]”. AN/TT – MCO Secretaria da Mesa e Comum das Ordens – MCO 055, doc. sem n.º 30 AN/TT – MCO Secretaria da Mesa e Comum das Ordens – MCO 055, doc. sem n.º 31 CALDAS, Adélia – Convento de Nossa Senhora da Encarnação, In Lx Conventos (código LxConv040), (http://patrimoniocultural.cmlisboa.pt/lxconventos/ficha_imprimir.aspx?id=617) 32 Continuação do Inventário (…) (Cartório), fól. 11 f / fól. 11 v 33 Continuação do Inventário (…) (Cartório), fól. 11 v / fól. 12 f 28 29 22 çado o habito da Ordem, e se / deu posse do cargo pelo Bis-/po Frei Jeronymo de / Gouvêa”34. A partir deste ano começam a aparecer diplomas régios mandando lançar hábito a várias nobres, incluindo familiares do próprio Conde de Monsanto, o que comprova o estado activo da casa pelo menos a partir de 161535, não nos tendo sido possível localizar nenhum lançamento de hábito documentado em 1614. Mesmo a própria prelada só o recebeu em 1615. A comunidade inicial instalou-se temporariamente no Paço dos Condes de Monsanto, a Este da Praça do Rossio, perto do Poço do Borratém e junto à Ermida de São Mateus, que, ao que parece, foi servindo de igreja conventual, pois sabemos que foi lá que várias das donas de Avis professaram. Foi preciso aguardar mais uma década para que se localizasse uma casa definitiva. Fig. 2 – Localização da Ermida de São Mateus, a Este da Praça do Rossio. Planta da cidade de Lisboa (pormenor). João Nunes Tinoco, 1650 Biblioteca Nacional de Portugal; cota do exemplar digitalizado: cc-1647-a A instalação na colina de Sant’Ana e construção do edifício Fundada a comunidade conventual, num espaço assumidamente de cariz provisório, tratou-se, então, de localizar um sítio para proceder à construção do convento definitivo. Para dar cumprimento a este desígnio, foram propostos vários locais alternativos, com participação directa da coroa. Logo em 1619, Filipe II de Portugal dá indicações ao Vice-rei, o Marquês de Alenquer, para que avalie os Paços de Xabregas, onde se pretendia 34 35 Continuação do Inventário (…) (Cartório), fól. 12 v Continuação do Inventário (…) (Cartório), fól. 47 f / fól. 19 f edificar o convento36. Apesar de a documentação não o indicar, certamente que a avaliação foi negativa, pois em 1623 há nova carta régia, sugerindo como alternativas as Escolas Gerais, os Fiéis de Deus ou o Chafariz de Arroios37. Documentação publicada por Carla Alferes Pinto explica-nos o motivo da recusa dos três locais38. A propriedade nas Escolas Gerais não tinha nada que a favorecesse, a dos Fiéis de Deus era demasiado pequena e a de Arroios era devassa e muito cara. Adicionalmente, nenhuma das três tinha água suficiente, algo que a Infanta D. Maria tinha exigido em testamento. O mesmo documento publicado pela autora sugere ao rei a instalação do convento numa quinta a S. Sebastião da Pedreira, que de igual maneira não se veio a concretizar. Finalmente, a 22 de Maio de 1624, o rei ordena que sejam vistas as casas de D. Aleixo de Meneses39, onde o convento se viria a fixar. Trata-se, pois, de um dado de especial importância, uma vez que em 3 de Novembro de 1626 surge um acórdão “[…] ordenando / que se tapasse o passadiço / do terreiro de D. Aleixo de Me-/nezes, o que foi requerido pela / comendadeira do Mosteiro de / S. Bento d’Aviz, que ali se / fundára”40. Isto é, àquela data o convento já estava seguramente situado na colina de Sant’Ana. Como também sabemos que no ano anterior houve uma “[…] Consulta da Me-/za da Consciencia e Ordens so/bre o dinheiro que faltou no Co/fre applicado ás Obras do / Mosteiro d’Aviz […]”41 – o que leva a crer no desenvolvimento de trabalhos à época – podemos afirmar com um bom grau de certeza que a construção do Convento de Nossa Senhora da Encarnação se iniciou no ano de 1625. Mais tardia foi a instalação da comunidade, geralmente apontada para 15 de Setembro de 1630, no seguimento da informação emanada pois Luís Gonzaga Pereira42. No entanto, temos conhecimento da existência de uma vistoria a 16 de Setembro de 1630, feita pelos deputados da Mesa, por certo Continuação do Inventário (…) (Cartório), fól. 16 f Continuação do Inventário (…) (Cartório), fól. 16 v 38 PINTO, Carla Alferes – O Mecenato da Infanta D. Maria de Portugal (1521-1577). Vol 2. pp. 12-14 39 Continuação do Inventário (…) (Cartório), fól. 18 v 40 Continuação do Inventário (…) (Cartório), fól. 18 v 41 Continuação do Inventário (…) (Cartório), fól. 19 f 42 PEREIRA, Luís Gonzaga – Monumentos sacros em Lisboa em 1833, p.245 36 37 23 com o intuito de ver a adequação do imóvel às necessidades das futuras ocupantes, indicando a comendadeira que “[…] logo se mandasse pas-/sar a ellas [às casas de D. Aleixo] com as religiosas […]”43. Ou seja, a instalação da comunidade terá ocorrido muito perto de 15 de Setembro de 1630, é um facto, mas pouco depois dessa data, ainda assim. Nos anos que se seguiram sucederam-se mais referências a trabalhos no conjunto. É provável que as obras anteriormente referidas tenham sido essencialmente de adaptação das antigas casas de D. Aleixo e que o convento propriamente dito tenha sido edificado a partir da instalação da comunidade, dados os meros 5 anos decorridos entre a escolha do local e a entrada das ocupantes. Em 1634 há uma consulta à Mesa da Consciência e Ordens relativamente à construção do convento com a fazenda da Infanta44, que muito provavelmente se revelou insuficiente uma vez que nos anos seguintes há referências a empréstimos contraídos para financiar a construção do edifício, comprovando a continuidade dos trabalhos. A falta de financiamento parece ter sido uma constante ao longo da história do convento, surgindo documentada com frequência. Três anos depois, contraiu-se um empréstimo destinado a obras através de um instrumento de obrigação, no qual se admitia, no entanto, haver já outras dívidas45, e isto depois de uma petição ao Arcebispo de Lisboa no sentido de serem atribuídas rendas destinadas à fábrica do convento46. Estando adstrito à Ordem de Avis, a atribuição da condução dos trabalhos aos vários artistas que foram ocupando o cargo de Arquitecto das Ordens Militares parece ser um dado relativamente seguro. Em 1625, aquando do início dos trabalhos, tal posto cabia a Baltazar Álvares, tendo passado em 1629 para Mateus do Couto, tio47. Tal como em Santos-o-Novo, não há documentação que coloque Álvares nos primeiros anos da Encarnação, o que não impede que o risco do edifício santiaguista lhe seja atribuído de forma consensual pelos especialistas48, sendo também relativamente segura a sua passagem pelo convento Continuação do Inventário (…) (Cartório), fól. 18 f Continuação do Inventário (…) (Cartório), fól. 25 v 45 Continuação do Inventário (…) (Cartório), fól. 91 f 46 Continuação do Inventário (…) (Cartório), fól. 46 v 47 COSTA, Paulo Santos – O projecto inicial e o projecto final. In Revista Monumentos. No. 15, p.28 48 Vd. COSTA, Paulo Santos – op. cit., pp.25-32 e SOROMENHO, Miguel – Os grandes programas arquitectónicos filipinos para as Ordens Militares e o Mosteiro de Santos-o-Novo. In Revista Monumentos. No. 15, pp. 19-23 homólogo da Ordem de Avis49, ainda que tenha ficado no cargo durante pouco tempo depois do início dos trabalhos. Quanto a Mateus do Couto, documentação revelada por Miguel Soromenho indicava já que o arquitecto tinha estado presente aquando das fundações de Santos-oNovo e da Encarnação50. A esta referência acrescentam-se as menções a trabalhos no edifício da colina de Sant’Ana, acompanhados pelo arquitecto: No ano de 1641, “Donna Joanna de Noronha Vigaria do mosteiro da Encarnaçaõ / da ordem de Saõ Bento de Auijs, se queixou a Vossa Magestade do preiuizo / que ao ditto mosteiro resulta das cazas que iunto a elle faz Dona Tereja / Ximenes, com as quais naõ só lhe tira grande parte da uista / de que necessita mais que os outros conuentos, por estar no meo desta cida=/de, E careçer por este respeito, das çerras, E órtas, que os outros mos=/teiros tem, mas porque com a altura, em que a ditta obra se pos se aue=/zinharaõ tanto as uistas de huma, E outra parte, que fica sendo / grande a deuassidaõ, que no dito mosteiro se padeçe; o que lhe he de / grande preiuizo, assi em respeito das cazas que a ditta Donna Tereja faz, / serem de pessoas seculáres, E que ao diante se poderaõ alugár, E resulta=/rem de uizinhança taõ chegada grandes inconuenientes, a authori=/dade E recolhimento das religiosas do ditto mosteiro, como porque se en=/costaõ ao muro da clausura, com o que poderaõ dellas entrár no di=/to mosteiro, o que Matheus do Couto, architeto de Vossa Magestade, que fes a plan=/ta inclusa, testefica, acressentando, que se se leuantarem as paredes / na altura necessaria, pera se impedir este danno, se ficará tomando / ao mosteiro a principál uista que tem […]”51. Tivemos a boa fortuna de localizar a referida planta, assinada pela mão de Mateus do Couto, cuja estrutura aproveitamos para aqui reproduzir graficamente52. 43 44 SOROMENHO, Miguel – A arquitectura do ciclo filipino. p. 43 SOROMENHO, Miguel – Os grandes programas arquitectónicos filipinos para as Ordens Militares e o Mosteiro de Santos-o-Novo. In Revista Monumentos. No. 15, p.20 51 AN/TT – MCO Secretaria da Mesa e Comum das Ordens – MCO 055, doc. 7 52 AN/TT – MCO Secretaria da Mesa e Comum das Ordens – MCO 055, doc. 8 e segs 49 50 24 Dormitorio das Religiosas Sjsterna do mosteiro jardim do mosteiro Rua da Barroqua Casas de donna Tareja Fig. 3 – Reprodução digital de planta da autoria de Mateus do Couto, tio, assinada e datada de 1641. Reprodução digital do autor. Original em AN/TT – MCO Secretaria da Mesa e Comum das Ordens – MCO 055, doc. 8 e segs. A esta, Mateus do Couto acrescentou algumas notas, dizendo basicamente o mesmo que o anterior excerto. O arquitecto identificou também – para além das casas de D. Tareja –, o jardim do convento, o dormitório das religiosas, a cisterna e uma rua, a Rua da Barroca. Havendo dois “Mateus do Couto” documentados, tio e sobrinho, valerá a pena esclarecer que em causa estaria Mateus do Couto, tio, pois em 1661 este, já idoso, solicitava através de uma petição que o cargo de arquitecto das ordens fosse entregue a Mateus do Couto seu sobrinho quando morresse53, significando isto que pelo menos até este ano foi o tio quem desempenhou o cargo. É possível tentar-se uma sobreposição desta planta ao edificado actual. Como Couto refere a importância de se preservar a vista do convento, com certeza que a zona em causa ficaria na sua vertente Oeste, virada para a Baixa, onde inclusivamente existe um pequeno jardim, certamente o referido pelo arquitecto. 2 N 1 b a c d 3 Espaços na actualidade: 1 - Igreja 2 - Claustro 3 - Portaria Possível localização dos espaços identificados por Mateus do Couto: a - Dormitório das religiosas b - Jardim c - Cisterna d - Rua da Barroqua e - Casas de Dona Tareja O espaço onde “encaixa” a cisterna foi comprovadamente um torreão da muralha fernandina. Terá sido reutilizado para armazenamento de água? Fica por aprofundar… Este aproveitamento do edificado pré-existente deu origem a problemas, sabendo-se que logo em 1644, nem quinze anos feitos da instalação da comunidade, um troço da muralha desabou levando parte do dormitório das freiras com ela. Na sequência do desastre, provocado por uma tempestade, pediu-se que o veador das obras, Gonçalo Pires de Carvalho, acudisse ao muro da cidade com a maior brevidade possível54. É também por volta desta altura que é fundada a Irmandade das Escravas do Santíssimo Sacramento, mais concretamente no ano de 1643, que ainda hoje tem a seu cargo o património móvel e integrado do Convento a Encarnação. A falta de financiamento parece ter sido uma constante ao longo do século XVII, em grande medida relacionada com a complicada gestão da fazenda da Infanta D. Maria, com a difícil situação económica que se vivia em Espanha durante a primeira metade do século XVII, agravada ainda pela Guerra dos Trinta Anos (1618-1648) e depois pela Guerra da Restauração (1640-1668), que conjuntamente ditaram a condução dos meios financeiros e humanos para outras necessidades de maior urgência. De facto, zonas de maior investimento decorativo, como é o caso da igreja, tiveram que esperar por tempos mais desafogados para serem concluídas. Sabe-se que entre 1641 e 1646 as obras comuns do convento chegaram mesmo a estar paradas, havendo denúncias que o dinheiro estaria a ser empregue noutras coisas, como o embelezamento do quarto da comendadeira, em detrimento dos trabalhos para benefício de toda a comunidade. Chamou-se à atenção que – tal como se fazia em Santos-o-Novo – devia-se dar prioridade às obras de bem comum e só depois avançar para o restante55. Para obter financiamento fez-se um apelo ao rei, informando que o convento mal podia sustentar 7 freiras, quanto mais as 60 e poucas que a Infanta previu no seu testamento. Pediu-se que fosse e Fig. 4 – Proposta de sobreposição da planta de Mateus do Couto ao edificado actual. Google Maps (adaptado). SOROMENHO, Miguel – Os grandes programas arquitectónicos filipinos para as Ordens Militares e o Mosteiro de Santos-o-Novo. In Revista Monumentos. No. 15, p.23, nota 12 53 54 AN/TT – MCO Secretaria da Mesa e Comum das Ordens – MCO 055, doc. 27 55 AN/TT – MCO Secretaria da Mesa e Comum das Ordens – MCO 055, doc. sem n.º 25 disponibilizado dinheiro do juro da Marquesa de Laguna, que fora repartido por alguns conventos56, e dinheiro da Comenda de Juromenha, recentemente vagada por morte do Conde de Vimioso. As obras do convento encontravam-se em estado de necessidade e incompletude57. Uma das campanhas urgentes era precisamente a conclusão da igreja, referindo uma petição de 1656, feita pela Comendadeira D. Joana de Noronha, que “[…] ao presente estaõ em grande aperto por estar a Igreja por / forrar […]”58. Teve que aguardar até finais do século XVII para receber o seu revestimento e algumas parcelas só chegaram já no século XVIII, como o retábulo da capela-mor. Parece que a fortuna também não ajudou nada e alguns desastres contribuíram para agravar a situação. Para além do já mencionado desabamento de parte da muralha da cidade, uma outra ruína documentada dános notícia de um claustro e das dificuldades em que viveria a comunidade. Sensibilizava-se assim o rei para “[…] a mizeria e aperto em que se / vive naquelle Mosteiro, assim pella lemitação da / fazenda, como pellas ruinas que teve de Muros / que derrubaraõ parede de hũ Claustro que estava feito / e o durmitorio que ha pouco cahio; e porque Vossa Alteza / Como Padroeiro e Protector deve acudir lhe con to/do o cuidado […]”59. Seria tentador associar este claustro a uma arcaria ainda hoje existente, situada no espaço que Mateus do Couto idenficou como o jardim, mas não nos parece que a sua relação planimétrica com a localização da igreja e posição na encosta de Sant’Ana o permitissem, ainda que a análise formal à referida arcaria autorize a sua atribuição a meados do século XVII e, eventualmente, ao risco deste arquitecto. Fig. 5 – Arcaria do jardim conventual. Mateus do Couto, tio (?). Meados do século XVII (?). Fotografia do autor. O aperto em que o convento vivia terá forçado a contracção de empréstimos, que tomam alguma frequência em finais da centúria, vários deles explicitamente associados à necessidade de custear obras. De facto, também há empréstimos documentados sem o estarem, no entanto, entre o que os estão contam-se pelo menos os de 167460, 167861 e 167962, ao que se soma uma petição movida em 1678 pela comendadeira e mais religiosas do convento relativa ao dinheiro que se arrecadava com destino às obras63. Parte dos empréstimos foi certamente canalizada para o financiamento da decoração da igreja, que apresenta um programa decorativo datável grosso modo de finais do século XVII, com capelas laterais64 valorizadas através da tardo-seiscentista talha dourada em estilo nacional e um vasto programa pictórico da autoria do pintor régio de D. Pedro II, Bento Coelho da Silveira. Sabemos que em 1691 foi autorizado um empréstimo “[…] pera se poder acabar a obra da Cap=/pella Mór, a qual por muitas Rezois he=/ra precizo findar se logo”65. Os trabalhos avançaram imediatamente e, ainda no mesmo ano, “[…] dandosse comprimento a Rezolluçaõ / de Vossa Magestade se mandou o Arquiteto das / ordeñs Joaõ Continuação do Inventário (…) (Cartório), fól. 91 v. Continuação do Inventário (…) (Cartório), fól. 92 f. 62 Continuação do Inventário (…) (Cartório), fól. 91 v. 63 Continuação do Inventário (…) (Cartório), fól. 39 f. 64 Para imagens da igreja do convento, remetemos o caro leitor para os conteúdos disponíveis no SIPA (www.monumentos.gov.pt IPA.00002535) e na página Flickr da Biblioteca de Arte da Fundação Calouste Gulbenkian (www.flickr.com/photos/biblarte/albums/72157624411964947). 65 AN/TT – MCO Secretaria da Mesa e Comum das Ordens – MCO 055, doc. 145 60 61 56 Documento de 1658. AN/TT – MCO Secretaria da Mesa e Comum das Ordens – MCO 055, doc. 49 57 Documento de 1657. AN/TT – MCO Secretaria da Mesa e Comum das Ordens – MCO 055, doc. 50 58 AN/TT – MCO Secretaria da Mesa e Comum das Ordens – MCO 055, doc. 51 59 Documento de 1669. AN/TT – MCO Secretaria da Mesa e Comum das Ordens – MCO 055, doc. 67 26 Antunes fosse uer a Cap=/pella Môr do Conuento de Nossa Senhora da En=/carnassaõ, e orsaçe o que podera fazer de / custo, o que satisfes; Dizendo que / por ordem de Vossa Magestade fora a Igreja da Encar=/naçaõ ver, e orsar a obra que se intentaua / fazer na Cappella Môr da dita Igreja e con=/forme a planta, e prefil que fizera pera / a dita Cappella, fizera orsamento muito / miudamente de toda a obra que pertençe a ella / assim dos dezentulhos que se tiraraõ dos / alicerçes, e paredes da Cappella, e caza / de Trebuna aBobodas madeiramentos telha=/dos pedrarias dos conhais, simalhas delles / e pedrarias do Arco, Cruzeiro, portais, jene=/las, e mais pedrarias dos pedestais em / que se hauia de sentar o Retabello, Ban=/queta de Altar de pedraria, degraós prebi=/terios, Lagedos do pauimento da Cappella / Retabello da Caza da Trebuna, Caixilhos / dos paineis que uão nos lados da Cappella / tudo de madeira de bordo emtalhada, e dou=/rado desta obra, e pinturas dos paineis / finalmente tudo acabado em sua perfeição […]”66. Tratase de uma referência documental de particular importância, pois não só comprova a passagem de João Antunes pela Encarnação, como significa que ao arquitecto das ordens correspondia, efectivamente, a coordenação do trabalho no seu todo, incluindo a decordação dos interiores, para o que poderia recorrer a outros artistas, como se verá mais adiante. A Mesa da Consciência e Ordens manifestou-se ao rei a favor da execução da obra, apesar de considerar o orçamento demasiado caro. Por sua vez, o rei anuiu à realização dos trabalhos, pois temos menções aos mesmos em 169267, bem como “Um Caderno feito no anno / de 1695, sendo Commenda-/deira do Mosteiro da Encar-/nação D. Isabel Thereza de / Menezes, no qual se acham / os nomes dos subscriptores e / as quantias com que subscre/veram para a obra da Capella / Mór, e o mais que se fez no di-//to mosteiro”68, o que aponta para a necessidade de se recorrer a financiamento externo e permite estabelecer que a obra da capela-mor do Convento da Encarnação, dirigida por João Antunes, teve provavelmente lugar entre 1691 e 1695. No entanto, por alguma razão que somos incapazes de esclarecer, o mais certo é não ter sido totalmente concluída, pois o anónimo memorialista da História dos AN/TT – MCO Secretaria da Mesa e Comum das Ordens – MCO 055, doc. 146 67 AN/TT – MCO Secretaria da Mesa e Comum das Ordens – MCO 055, doc. 50 e segs 68 Continuação do Inventário (…) (Cartório), fóls. 41 v. e 42 f. 66 Moesteiros (…) de Lisboa regista que “E toda a mays pedraria que vay por bayxo da ditta simalha até ao pavimento sam almofadas embotidas. O tecto he em meya laranja, de estuque, que será ornado de muyto boa pintura. Falta ainda à capella [mor] o retabolo que nam deyxará de ser de tam boa obra que diga muyto bem com aquella de que a igreja está ornada”69. Isto diz-nos duas coisas: em 1708 a capela-mor já tinha a pedraria ainda hoje in situ, certamente de João Antunes, mas estava ainda desprovida de retábulo, cuja concepção só se veio a verificar após a sua morte. O convento no século XVIII Ao longo do reinado de D. João V estão documentadas obras com alguma frequência, numa primeira fase devidas em grande medida à continuação de trabalhos trazidos do século anterior, como foram a conclusão da capela-mor e do claustro. Depreende-se que o volume dos mesmos terá levado a Corte a disciplinar gastos, pois em 1716 foi emitido um alvará fixando em 100.000 réis o valor máximo que se poderia gastar anualmente70. A História dos Moesteiros (…) de Lisboa documenta obras a decorrer no claustro em 1708, cujo autor nos informa que o convento “Nam tem grandes claustros mas tem principiado hum com bastante grandeza, porque em cada lanço tem nove arcos todos de pedraria com varandas por cima, e no claustro ha já tres capellas, e haverá mays como se acabar, com que virá o claustro a ficar muyto fermoso”71. Em termos estruturais (nove arcos com varandas por cima), a descrição enquadra-se bastante bem com o que actualmente ainda se vê, o que significa que à data desta memória a obra estaria já num estado bastante avançado e portanto certamente que vinha do século anterior. 69 História dos Moesteiros, Conventos e Casas Religiosas de Lisboa, Tomo II, p.434 70 Continuação do Inventário (…) (Cartório), fól. 110 v. e 111 f. 71 História dos Moesteiros, Conventos e Casas Religiosas de Lisboa, Tomo II, p.440 27 Fig. 6 – Vista da arcaria do claustro. Circa 1708. Fotografia do autor. No decénio de 1720, o então Arquitecto das Ordens Militares, João Baptista Barros, interveio no claustro72. Foi chamado devido à “[…] grande ne=/cessidade, que havia de se lagear o claustro do dito / Convento, o qual por ser de ladrilho, actualmente / se achava damnificado, e se handava com consertos / nelle, vistas as informações do Arquiteto das / ordens, se mandou por este Tribunal fazer a ditta / obra do lageado; e achando-se que em hũ dos lados / do ditto claustro hũas cazas velhas, no tempo prezente / sem serventia algũa, impediaõ a circulaçaõ do / mesmo claustro de tal sorte, que nas occazioes / de procissaõ, chegava esta aquella parte e voltava / para trâz, se mandou juntamente demulir / as dittas casas, para effeito de focar corrente / aquella circulaçaõ; fazendo porem o mestre // da obra mediçaõ áos vaõs de todos os lados do ditto / claustro, e achando na parte da demuliçaõ grande / desigualdade, e ficar a obra muito imprefeita, fez / a sobreditta Vigaria, e vice Comendadeyra [D. Anna Maria de Atayde e Castro] a saber / a este Tribunal o Referido, declarando que para / aquella obra ficar de todo prefeita, e as naves / do ditto claustro com a mesma igualdade era necessario Licença do Senado da Camera para se / tomar seis, ou sette palmos de vaõ em hũ becco / sem sahida, que ficava contiguo ao lado do claustro / que necessitava daquella largura […]”73. Estes trabalhos resultaram num dos vários aumentos que o convento conheceu ao longo dos tempos, neste caso pedido também devido à indecência Continuação do Inventário (…) (Cartório), fól. 168 f. Documento de 1729. AN/TT - MCO Secretaria da Mesa e Comum das Ordens – MCO 055, doc. 272 f. e v. 72 73 que seria um convento de religiosas ter vizinhança a paredes meias, sublinhando-se mesmo que o Convento da Encarnação “era o unico de Religiozas, que tivesse / vizinhança de fora mística asy”74. O facto de se poderem criar mais aposentos era outra vantagem. No século anterior o convento também tinha sido aumentado, após pedido da Comendadeira D. Joana de Noronha, em 1658, para adquirir as casas de Vicência de Castro, adjacentes ao edifício75. Ainda na década de 20 há uma referência de 1729 (ao que acresce outra do ano seguinte), ao valor deixado em testamento por D. Inês Clara Fialho de Macedo, destinada ao “guisamento” de uma capela instituída na igreja pela testadora76, pese embora o facto de praticamente todas as capelas laterais serem formalmente associáveis a um período anterior a este ano. Porém, sabemos que efectivamente foi instituída, pois entre 1806 e 1832 há recibos da celebração de missas na capela instituída por D. Inês77. Trata-se de uma questão que deverá ser melhor esclarecida futuramente. No início da década de 1730, a capela-mor foi finalmente concluída. O douramento do retábulo foi acordado entre o mestre Jerónimo da Silva e a Vicecomendadeira D. Anna Maria de Athayde e Castro em 12 de Outubro de 1727, pelo valor de um conto de réis78. Acordado mas talvez não imediatamente feito, pois dois anos depois a comendadeira requere ao Senado da Câmara que permitisse tomar uma parcela do Beco da Índia, de modo a fazer a capela-mor da igreja79, o que permite apontar a execução do actual retábulo para a década de 1730, datação que nos parece ser autorizada pela análise formal ao mesmo, pese embora o facto de as colunas se apresentarem ainda muito apegadas ao barroco nacional. Também da década de 30 serão escadório conventual, as respectivas sobreportas e o dossel que resguarda a entrada conventual. Em 1731 o Rei 74 AN/TT - MCO Secretaria da Mesa e Comum das Ordens – MCO 055, doc. 272 v. 75 Continuação do Inventário (…) (Cartório), fól. 38 v. 76 Continuação do Inventário (…) (Cartório), fól. 118 f. e 118 v; 119 v. e 120 f. 77 Continuação do Inventário (…) (Cartório), fól. 89 v. 78 Curiosamente o mesmo documento acrescenta que a vigária vendeu a Jerónimo da Silva uma propriedade localizada à frente do convento. Continuação do Inventário (…) (Cartório), fóls. 168 v. e 169 f. 79 Continuação do Inventário (…) (Cartório), fól. 169 f. e v. 28 D. João V pôs à disposição alguns operários das Reais Obras de Mafra80, o que certamente explica a aparência claramente mafrense das referidas zonas e as permite associar cronologicamente a este ano, ou mais provavelmente às obras feitas na sequência do incêndio ocorrido em 1734, dado o pouco tempo decorrido. Nesta altura sabemos que está activo no convento um tal mestre pedreiro Pedro Gomes, documentado nos dois anos referidos81. Efectivamente, mal se poderia adivinhar que todo o trabalho feito até então seria colocado seriamente em risco num curto espaço de tempo, com o incêndio de 1734 e o terramoto de 1755, que naturalmente forçaram a necessidade de mais obras. Depois do fogo as religiosas e a vigária recolheramse ao Convento de Santos-o-Novo, onde habitaram até a Encarnação estar em condições de ser reocupada. Os estragos deverão ter sido graves, não só porque se viram obrigadas a sair mas também porque temos notícia da “[…] obra, que Vossa Magestade foi servido mandar fazer no / Real Mosteyro de Nossa Senhora da Encarnação / da ordem de São Bento de Aviz, por cauza do fogo / que nelle houve, e totalmente o aRuinou […]”82. Sentimo-nos tentados a colocar algumas reticências neste “totalmente o aRuinou”, pois basta uma visita ao espaço para perceber que ainda tem bastante património anterior a 1734, designadamente grande parte da decoração da igreja, a estrutura do claustro e a decoração de várias das suas capelas. Para recuperação do convento ardido, logo no ano seguinte ficou decidido “[…] que o Mosteiro da Encarnação desta ci/dade se Reedificasse das Ruinas que padeceo com o fogo, confor/me a planta, de que estâ encarregado de fazer o Capitão Enginhei/ro Custodio Vieyra; e hey por bem aplicar para a ditta obra, / os Rendimentos das Comendas vagas, que se acharem Livres / devidas da Ordem de São Bento de Aviz, â qual pertence / o ditto Mosteiro, e que dos Caydos, que se acharem no Cofre, / ou estiverem devendo os Rendeiros dellas se apliquem tam-/bem para a mesma obra, e pagamento das propriedades, que se ham de comprar para ella. […]”83. Prosseguem então os trabalhos no conjunto, impostos pela voracidade das chamas. Refez-se o coro, para o qual Vieira recorreu aos serviços de Jerónimo da Silva, o que comprova o seu papel não só de autor da planta mas também de coordenador: “Diz Jeronimo da Sylva que por hordem do cappitam Cos-/todio Vieira pintou no Conuento da Encarnação desta / Cidade, o Coro que de nouo se fes em parte da Igreja, e junta/mente varias portas, e janellas, grade da Escada noua / pulpito, e uarias pesas pera o mesmo Coro, e nelle hum / tecto engeçado, e uarios Romendos de Couzas velhas […]”84. Manuel Pereira dos Santos pintou também várias figuras e ornatos para o mesmo coro85, e o carpinteiro Francisco de Lima concebeu uma roda de bordo, uma grade igualmente para o coro, um púlpito redondo, de pé torneado e portátil, e várias portas para os confessionários e para o comungatório. Já os trabalhos de pedreiro, ficaram a cargo do anteriormente referido Pedro Gomes86. A noção de uma acção que se repete, inferida através da expressão “de novo”87, permite pensar num possível coro pré-existente, eventualmente perdido no incêndio, ainda que não tenhamos localizado qualquer documentação que o comprove. De qualquer maneira, esta referência documental permite-nos, pois, datar a obra do actual coro de circa 1735 e associá-la ao risco de Custódio Vieira. Da traça deste arquitecto e engenheiro militar será também, muito possivelmente, o escadório conventual. 84 Continuação do Inventário (…) (Cartório), fól. 46 f. AN/TT - Mesa da Consciência e Ordens Mç 240 Cx 486 doc. sem n.º 82 Documento de 1748. AN/TT - MCO Secretaria da Mesa e Comum das Ordens – MCO 055, doc. 338 83 AN/TT - Mesa da Consciência e Ordens Mç 240 Cx 486 doc. sem n.º 80 81 Documento de 1734. AN/TT - Mesa da Consciência e Ordens Mç 240 Cx 486 doc. sem n.º 85 Documento de 1735. AN/TT - Mesa da Consciência e Ordens Mç 240 Cx 486 doc. sem n.º 86 Documento de 1734. AN/TT - Mesa da Consciência e Ordens Mç 240 Cx 486 doc. sem n.º 87 “De novo. Outra vez”, “Edificar de novo”, In BLUTEAU, Rafael Vocabulario portuguez e latino. Coimbra: Collegio das Artes da Companhia de Jesu, Vol. 5, p. 761 29 aos danos provocados pelo fogo, designadamente molduras de alguns painéis e vários tectos que faltava engessar88. É possível que o tecto pintado do escadório tenha sido feito por si por volta desta altura, pois surge várias vezes documentado, hipótese para consolidar ou refutar posteriormente através de uma comparação com a obra conhecida do pintor. Fig. 9 – Tecto do escadório conventual. Jerónimo da Silva (?), 1735-44 (?). Fotografia do autor. Figs. 7 e 8 – Escadório conventual Custódio Vieira (?), 1735-1744 Fotografia do autor Depreende-se que as obras exigidas pelo incêndio se terão demorado pelo menos até meados da década de 40, havendo notícia ainda em 1744 de pintura a ser feita por Jerónimo da Silva, explicitamente associada Naturalmente, nada deixaria adivinhar que, pouco mais de 10 anos depois, todo este trabalho seria violentamente comprometido por uma segunda vez, com grande terramoto do 1º de Novembro de 1755. Os danos provocados foram de tal ordem que, cerca de um mês depois, “dizem a Comendadeira e Religiozas do Mosteiro da Incarnação / da Ordem de S. Bento de Avis, que o prezente terremoto aRui/nou muito o dito Mosteiro, Rachando e abrindo todas as abobodas e pa/redes delle, e cahindo muitas cazas, e paredes de outras que tudo o / faz innabitavel pella grande Roina que amiasa, e pera que esta não se/ja maior he presizo que se acuda com prontidão a apontoarse e te/lharse a Igreja e Coros pera que não seja maior a perda das pintu/ras e talhas douradas, e asim Recorre a Vossa Magestade pera que seja ser/vido ordenar que pela consignação aplicada as obras do dito Mosteiro / se lhe acuda logo, pondose os pontoes e mais Reparos necesarios pera / que não venha ao chão”89. No dia 27 de Fevereiro de 1758 o futuro Marquês de Pombal ordena que a comendadeira 88 Documento de 1744. AN/TT - Mesa da Consciência e Ordens Mç 240 Cx 486 doc. sem n.º 89 AN/TT – Mesa da Consciência e Ordens; Mç 239, Cx 485. doc. sem n.º 30 e a comunidade regressem ao convento90, cujas obras de reparação não estavam já concluídas como têm afirmado alguns autores91, muito pelo contrário. Com efeito, as descrições dos estragos com 1755 remetemnos para danos impossíveis de reparar no espaço de apenas 3 anos e, por outro lado, estão documentadas campanhas de trabalhos explicitamente associadas a recuperações devido ao sismo pelo menos até finais da década de 1770. Ainda que tenha havido pedidos anteriores, destacando a grande necessidade da intervenção, o grosso dos trabalhos de reparação só decorreu a partir de finais da década de 1760. A 21 de Maio de 1768, sendo comendadeira D. Mariana Henriques de Bourbon, as obras foram autorizadas após vários pedidos com carácter de urgência, depois de o arquitecto Manuel Caetano de Sousa ter inspeccionado o edifício a 20 de Abril do mesmo ano e ter advertido para a necessidade de trabalhos urgentes92. Já durante o mandato da comendadeira seguinte, D. Anna Ritta de Noronha, as obras são finalmente iniciadas, corria agora o ano de 177193. São referidas ruínas no dormitório e nalgumas casas, a que se terá acorrido no ano posterior. Grande parte dos trabalhos terão sido assegurados pelos mestres pedreiro e carpinteiro António Luís e Henrique Luís, respectivamente, pois são referidos com frequência na documentação ao longo da década94. A referências documentais incluem, ainda, menções explícitas ao acompanhamento por parte de Manuel Caetano de Sousa95, a quem, desta feita, coube a coordenação dos trabalhos. Acrescentam-se vários documentos de pagamento assinados por si, o que comprova o cargo que ocupava. Os trabalhos estenderam-se durante a década praticamente toda, estando registados pelo menos até 177996. No século seguinte, sobretudo após a extinção das ordens religiosas em 1834, as condições de vida no Continuação do Inventário (…) (Cartório), fól. 133 v. e 134 f. CORTEZ, Maria do Carmo – Convento da Encarnação, In SANTANA, Francisco; SUCENA, Eduardo – Dicionário da História de Lisboa. p. 336 92 AN/TT – Mesa da Consciência e Ordens; Mç 239, Cx 485. doc. sem n.º 93 AN/TT – Mesa da Consciência e Ordens; Mç 239, Cx 485. doc. sem n.º 94 AN/TT – Mesa da Consciência e Ordens; Mç 239, Cx 485. doc. sem n.º 95 AN/TT – Mesa da Consciência e Ordens; Mç 239, Cx 485. doc. sem n.º 96 AN/TT – Mesa da Consciência e Ordens; Mç 239, Cx 485. doc. sem n.º 90 91 convento foram-se degradando. Como é sabido, a extinção recaiu sobre as ordens masculinas, tendo sido permitida a continuação das casas religiosas femininas até à morte da última freira. Sendo um convento feminino mas dependente de uma ordem masculina, a partir de 1834 deixaram de entrar todos os rendimentos provenientes da Ordem de Avis. No mesmo ano é nomeada uma comissão administrativa97, estando documentada a nomeação de uma comendadeira pelo rei ainda em 183798. Em suma… Na conclusão desta breve abordagem ao Convento da Encarnação, valerá a pena fazer uma síntese das principais ilações que conseguimos aferir. Em primeiro lugar, é possível perceber que houve um envolvimento directo das mais altas instâncias do poder régio, participando na escolha do local, nomeando as comendadeiras e intervindo junto do papado, não só no sentido de obter as necessárias autorizações mas também a comutação da última vontade da Infanta D. Maria. Este envolvimento deve ser entendido à luz do contexto da época, sendo devido a motivações políticas concretas, directamente relacionadas com a afirmação da nova dinastia. Por outro lado, se para o início deste convento a historiografia detinha até ao momento apenas as datas de 1614 e 1630, enquanto momentos de fundação e entrada da comunidade, respectivamente, podemos agora acrescentar o ano de 1625, quando quase certamente arrancaram as obras na colina de Sant’Ana. É provável que as obras à volta desta data tenham dito respeito essencialmente a melhoramentos e adaptações nas antigas casas de D. Aleixo de Menezes, e só a partir de meados e sobretudo finais do século se tenham procedido aos trabalhos de construção do convento propriamente dito. Esta leitura deriva da (em várias ocasiões) documentada falta de fundos para financiar a construção; da contração de empréstimos, que tomam um ritmo particularmente frequente em finais do século; da análise formal do património integrado da igreja (cujos programas pictórico e de entalhamento são grosso modo de finais do XVII, como já foi referido) e do facto de a História dos Moesteiros (…) de Lisboa documentar a estrutura do claustro 97 98 Continuação do Inventário (…) (Cartório), fól. 166 v. Continuação do Inventário (…) (Cartório), fól. 123 f. 31 num estado já relativamente avançado em 1708. Quer isto dizer que, apesar dos danos provocados em 1734 e 1755, houve efectivamente zonas que resistiram, designadamente a arcaria do claustro, a decoração de várias das suas capelas e grande parte do recheio da igreja. Porém, o tecto desta perdeu-se no sismo, o coro e o escadório foram feitos cerca de duas décadas antes na sequência do fogo, e certamente que muitos domicílios também foram gravemente afectados, atendendo às descrições dos estragos. Praticamente todas as intervenções passavam pela comendadeira e pela Mesa da Consciência e Ordens, carecendo depois de autorização régia, em virtude do estatuto do rei enquanto Mestre da Ordem de Avis e padroeiro do convento. Ao longo dos tempos são frequentes as chamadas de atenção ao monarca reinante, dizendo-lhe que este estatuto o obrigava a acudir ao convento. Os trabalhos seriam então conduzidos pelo arquitecto das ordens, sendo vários os detentores deste cargo que se encontram documentados na Encarnação. O arquitecto das ordens poderia recorrer à colaboração de outros artistas, cujo trabalho coordenaria, como vimos. A quase sempre constante falta de financiamento não deixa de suscitar uma certa ironia, tendo em conta o estatuto social das ocupantes. Foi necessário contrair empréstimos, recorrer a subscritores externos e apelar ao rei para que, muito vagarosamente, os trabalhos fossem avançando. O caso da igreja é sintomático. Trata-se do elemento mais importante de qualquer casa monástico-conventual e que, simultaneamente, exige o maior esforço financeiro. O convento foi iniciado em 1625, em meados do século a igreja continuava por forrar e só o vem a ser entre finais do século XVII e primeira metade do XVIII. Haveria naturalmente muito mais a ser dito neste trabalho, onde apenas se teceu uma abordagem superficial àquilo que são os cerca de 400 anos de história do Convento da Encarnação, através do que foi essencialmente um esforço de levantamento documental. O estudo deste monumento fica a carecer ainda de muita reflexão prolongada e análise comparativa, e é por isso mesmo que chegamos ao fim da presente publicação com uma única certeza: ainda há muito trabalho para ser feito. Bibliografia AGUIAR, José Pinto – No Convento da Encarnação Uma visita dos “amigos de Lisboa”. Separata do “Olisipo”, 1954 BLUTEAU, Rafael – Vocabulario portuguez e latino. Coimbra: Collegio das Artes da Companhia de Jesu, 1712-1728 FRANCO, José Eduardo et al. (coord.) – Dicionário Histórico das Ordens e Instituições Afins em Portugal. Lisboa: Editora Gradiva, 2010 ISBN 9789896163693 História dos Moesteiros, Conventos e Casas Religiosas de Lisboa, Tomo II. Lisboa: Câmara Municipal de Lisboa, 1972. LOBO RAMALHO, Robélia de Sousa – Guia de Portugal artístico. Lisboa: Associação dos Arqueólogos Portugueses, 1933 PEREIRA, Luís Gonzaga – Monumentos sacros em Lisboa em 1833. Lisboa, Oficinas gráficas da Biblioteca Nacional, 1927 PEREIRA, Paulo (coord.) – História da Arte Portuguesa. Lisboa, Círculo de Leitores: 2007 ISBN 978-972-42-3963-7 PINTO, Carla Alferes – O Mecenato da Infanta D. Maria de Portugal (1521-1577) [texto policopiado]. 2 vols. 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