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RESUMO: Este texto parte da arte e da biografia de Arthur Bispo do Rosario (1909-1989) para investigar a posição que o sistema brasileiro de arte outorga à produção nacional, desvelando possíveis paradoxos na ‘afirmação’ da arte brasileira que se enxerga em certa crítica. Questionando o próprio ‘lugar’ artítico da produção de Bispo do Rosario, o texto busca repensar, portanto, não apenas a insercao da arte brasileira no panorama mundial, mas, especialmente, as formas empregadas pela propria crítica brasileira para buscar essa insercao. Palavras-chave: arte brasileira, crítica de arte, internacionalizacao.

2017 Número 9 Reitor Ricardo Marcelo Fonseca Vice-Reitora Graziela Bolzón de Muniz Revista Versalete - 2017 - v. 5, n. 9 Publicação Semestral do Curso de Letras da UFPR http://www.humanas.ufpr.br/portal/letrasgraduacao/ www.revistaversalete.ufpr.br Editoras Janice I. Nodari, Ruth Bohunovski e Sandra M. Stroparo Corpo Editorial Alice Leal (Universidade de Viena), Ángel Pérez Martínez (Universidad del Pacífico), Bernardo G. L. Brandão (UFPR), Caetano W. Galindo (UFPR), Dirce Waltrick do Amarante (UFSC), Francisco C. Fogaça (UFPR), Isabel C. Jasinski (UFPR), Janice I. Nodari (UFPR),Jeniffer I. A. de Albuquerque (UTFPR), João Arthur Pugsley Grahl (UFPR), Jonathan Degenève (Université Paris III), Juan M. Carrasco González (Universidad de Extremadura, Espanha), Luiz E. Fritoli (UFPR), Luiz M. S. Gardenal (UFPR), Marcelo C. Sandmann (UFPR), María Beatriz Taboada (Universidad Autónoma de Entre Ríos), Marina C. Legroski, Martín Ramos Díaz (Universidad de Quintana Roo), Miguel Ángel Fernández Argüello (Universidad Nacional de Asunción), Naira de Almeida Nascimento (UTFPR), Patrícia de Araújo Rodrigues (UFPR), Paulo Henriques Britto (PUC), Perfecto E. Cuadrado (Universitat de les Illes Balears), Piotr Kilanowski (UFPR), Renata P. de S. Telles (UFPR), Rossana A. Finau (UTFPR), Thiago V. Mariano (UFPR), Rebeca P. Queluz (doutoranda, UFPR), Marília C. P. Lara (mestranda, UFPR). Pareceristas ad hoc Ana Carolina Torquato, Ana Carolina W. da Silva, André Kangussu, André P. Pelinser, Andrea Knöple, Andressa D'Ávila, Andressa Medeiros, Angelita Martens, Anna Carolina Legroski, Aristeu Mazuroski Jr., Caetano W. Galindo, Camila Marchioro, Claudiana Soerensen, Crislaine L. Franco, Daniela Z. Machado, Diamila M. Santos, Diego G. do Valle, Eduarda R. D. da Matta,Eliana S. G. Edmundo, Ewerton Kaviski, Fernanda B. Boechat, Francine F. Osaki, Francisco R. S. Innocêncio, Gabriella Hóllas, Geisa Mueller, Jaqueline Koehler, Jeniffer I. Albuquerque, Julia R. do Nascimento, Juliano Petroski, Jussara Jurach, Kaio C. Carmona, Letícia Malloy, Luciane T. da Costa, Luiz Rogério Camargo, Luiza Souza, Maria Júlia Furtado, Maria Luísa C. Fumaneri, Marina C. Legroski, Marina Grochocki, Phelipe de L. Cerdeira, Pollianna Milan, Raphael P. Lautenschlager, Raquel I. Bueno, Rebeca P. Queluz, Renata P. S. Telles, Roberto B. de Menezes, Rosália R. E. Pirolli, Sandra M. Stroparo, Selmo R. Figueiredo Junior, Simone Petry, Sylvain A. O. Bureau, Tatiane V. R. de Carvalho, Wagner M. Pereira, Wesley Thales de A. Rocha. Revista Versalete R. General Carneiro, 460, 11º andar, sala 1117 tel./fax (41) 3360-5097 Curitiba - Paraná - Brasil www.revistaversalete.ufpr.br versalete.revista@gmail.com Volume 5, Número 9, ago.- dez. 2017 Revisão e formatação dos textos Carolina Bigaiski Spring, Gabriela Ribeiro, Giovani Tridapalli Kurz, Letícia Pilger da Silva, Pamela Cristine de Oliveira, Paula Lorena S. Melo, Thais R. Cons, Valentina Thibes Dalfovo. Revisão dos textos em: Inglês: Janice I. Nodari Editoração Eletrônica Rodrigo Madalozzo Bordini (SCH) Design Francis Haisi UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ. SISTEMA DE BIBLIOTECAS. BIBLIOTECA DE CIÊNCIAS HUMANAS E EDUCAÇÃO _____________________________________________________________________________ REVISTA Versalete / Curso de Letras da Universidade Federal do Paraná; editoração: Janice I. Nodari, Ruth Bohunovski e Sandra M. Stroparo, v.5, n.9 (2017). Curitiba, PR : UFPR, 2017. Periódico eletrônico: http://www.revistaversalete.ufpr.br Semestral ISSN: 2318-1028 1. Linguística – Periódicos eletrônicos. 2. Literatura – Periódicos eletrônicos. 3. Tradução e interpretação – Periódicos eletrônicos. I. Universidade Federal do Paraná. Curso de Letras. II. Nodari, Janice I.; III Bohunovski, Ruth; IV. Stroparo, Sandra M. CDD 20.ed. 400 _____________________________________________________________________________ Sirlei do Rocio Gdulla CRB-9ª/985 APRESENTAÇÃO Percebemos agora que desde o nosso número 4, de junho de 2015, não deixamos de fazer apresentações com algum tipo de menção à situação política e à educação no país, seja no texto propriamente dito, seja na logo, símbolo resultante da "Batalha do Centro Cívico", de abril de 2015: "Menos Bala, mais giz." Este número não será diferente. Não podemos deixar de nos manifestar sobre o descalabro da política brasileira e como ela tem repercutido na educação e na cultura do país. E, repetindo o que dissemos no último número: enquanto isso, tentamos fazer nosso trabalho. Para não assumirmos sozinhas o discurso do espanto e da revolta, emprestamos a voz para o reitor de nossa universidade, o professor Ricardo Marcelo Fonseca, que no último 15 de outubro escreveu uma mensagem para os professores, tratando do momento atual e... de liberdade. É importante para nós, professores e alunos. Linguística, Literatura e Tradução estão contempladas neste número. Como um dos pontos altos entre os artigos, temos a tradução de um texto do professor Michal Starke, da Universidade de Tromsø, Noruega, apresentando a Nanossintaxe aos linguistas brasileiros. Nas seções especiais, o nosso Professor Convidado é Fábio Akcelrud Durão, da UNICAMP, que discute os mecanismos particulares da arte brasileira a partir da obra de Arthur Bispo do Rosário. Nosso Autor Convidado é o poeta e tradutor Ismar Tirelli, respondendo, muito divertidamente, ao nosso Questionário Proust. Boa leitura. Janice I. Nodari, Ruth Bohunovsky e Sandra M. Stroparo Editoras MINHA MENSAGEM ÀS/AOS PROFESSORES/AS DA UNIVERSIDADE PÚBLICA Ao felicitar cada um e cada uma a propósito desse dia 15 de outubro, dia do professor/a, gostaria de me remeter a essa missão tão grande para a qual nos dedicamos todos os dias: nós de certa maneira moldamos o futuro e “formamos” (essa palavra é tão emblemática!) os jovens. Para isso é que existimos. Se é verdade, como diz Guimarães Rosa, que “o homem nasceu para aprender, aprender tanto quanto a vida lhe permita”, nós existimos para realizar destinos. E fazer isso sempre abertos/as e sempre humildes, já que, como também dizia esse grande escritor brasileiro, “mestre não é quem sempre ensina, mas quem de repente aprende”. Mas estou seguro que vivemos momentos de perigo para a Universidade brasileira e exatamente por isso eu gostaria de ressaltar para a nossa comunidade acadêmica, nesse dia tão especial, o valor que nesses tempos mais está em questão: nossa liberdade. Liberdade de subsistirmos (em tempos de arrocho orçamentário), liberdade de nos dirigirmos autonomamente (em tempos de mentalidades policialescas e moralistas), mas sobretudo falo da liberdade de expressarmos nosso pensamento, em toda a sua riqueza e sua pluralidade. Ao contrário do que pensávamos há poucos anos, isso tem sido insidiosamente colocado em questão em nosso dia a dia, como que se pretendesse negar a liberdade desse nosso espaço: o movimento da escola sem partido, a retomada de um inquisitório “index” de autores “perigosos”, com o consequente patrulhamento da circulação de certas ideias ou a relativização da dimensão laica do ensino e do conhecimento são apenas exemplos pontuais. E o pior: isso tudo geralmente tem sido acompanhado de uma campanha, dos mais diversos grupos, para detratar injustamente nosso espaço como sendo estritamente sectário, ineficiente e corrompido. Por isso que, nesse dia, quero exaltar a importância de não renunciarmos jamais à liberdade do espaço universitário. Esse é o nosso maior valor e nosso maior patrimônio. Temos que lutar, com unhas e dentes, pela manutenção de uma radical pluralidade no nosso ambiente, sobretudo em momentos de acirramento de posições como esse que vivemos. Temos que nesse ponto dar exemplo para a política e para a sociedade. Temos que ouvir respeitosamente a fala do dissenso. Sem isso, a Universidade perece e aquilo que temos de melhor se esvai. Mas ao mesmo tempo, temos que nos posicionar e saber o que defendemos: um ambiente que respeite, valorize e cultive essa mesma liberdade; que contribua para uma cultura de cada vez mais direitos e de cidadania mais qualificada para todos/as; que vá, sem elitismo, em busca da efetivação da inclusão de parcelas histórica e socialmente vulneradas (como, por exemplo, as parcelas LGBTI, negros e negras, indígenas, quilombolas e mulheres); que jamais se coloque – na contramão do generoso legado que embala a razão de ser da Universidade – na direção do obscurantismo, do preconceito e da ignorância. Isso nada tem a ver com posicionamento ideológico à esquerda ou à direita ou com preferências políticas circunstanciais: tem a ver simplesmente com a preservação de um ambiente civilizacional e democrático em que a Universidade possa desenvolver o seu papel histórico. Somos, como Universidade, uma das principais reservas da cultura, em tempos onde campeia a barbárie. E se é verdade, como diz Walter Benjamin, que “assim como o próprio bem cultural não é isento de barbárie, tampouco o é o processo de transmissão em que foi passado adiante”, a nossa tarefa mais urgente agora é justamente a de buscar separar a cultura da barbárie e denunciá-la. Devemos incrementar o nosso pluralismo e valorizar a nossa liberdade ao mesmo tempo em que não devemos ceder um palmo àqueles que demonstrarem estar contra a universidade, contra a ideia de liberdade em que ela se baseia e contra a cultura de direitos na qual, de acordo com a nossa Constituição, estamos fundados. Professoras e professores: sejamos os/as porta vozes desses valores e dessa resistência, pois isso significa, nesses tempos perigosos, sermos os defensores/as da própria Universidade Pública! Professor Ricardo Marcelo Fonseca Reitor da Universidade Federal do Paraná Em 15 de outubro de 2017. SUMÁRIO SUMMARY ESTUDOS LINGUÍSTICOS LINGUISTIC STUDIES Abordagens de leitura no ensino brasileiro: um breve percurso desde os anos 1950 até os dias atuais. Reading approaches in Brazilian education: a brief path from the 1950s to the current days. 12 Geraldo Abreu Aspecto verbal e tempo cíclico: o tempo e as formas verbais na literatura de Jorge Luis Borges. Verbal aspect and cyclic time: time and verbal forms in Jorge Luis Borges literature. 33 Rafael Severo Schiites Estratégias de interação discursiva em artigos de opinião da revista americana The New Yorker. Discursive interaction strategies in opinion articles in The New Yorker magazine. 51 José Orlando Cardoso do Monte Júnior Um útero à disposição da sociedade. A womb to the service of society. 72 Guida Fernanda Proença Bittencourt Explorando o apagamento de vogais átonas finais no português brasileiro. Exploring elision of word final unstressed vowels in Brazilian Portuguese. 87 Rebeca Lessmann O licenciamento de IPNs pelo operador Nem em português. NPIs licensing by the operator Nem in Brazilian Portuguese. 102 Shehrazad Elis Ramos Daoud Uma breve introdução a uma nova abordagem para a linguagem. A short primer to a new approach to language. 115 Michal Starke ESTUDOS LITERÁRIOS LITERARY STUDIES A memória e a violência em “Roda-de-pau”, de Dinorath do Valle. The memory and the violence in “Roda-de-pau”, by Dinorath do Valle. 130 Pâmela Coca dos Santos Ramos A imagética da terra em Jorge de Lima e João Cabral de Melo Neto. Earth’s imagery in Jorge de Lima and João Cabral de Melo Neto.. 146 Ana Maria Vasconcelos Martins de Castro Os anões: o papel do leitor na literatura de Veronica Stigger. Os anões: the role of the reader in Veronica Stigger’s literature. 163 Damásio Marques da Silva A educação sentimental e a história como composição. Sentimental education and history as composition. 184 Murilo da Silva Coelho O louco socorro: uma leitura da narrativa roseana à luz do pensamento de Michel Foucault. The crazy help: a reading of Guimarães Rosa’s narrative by the light of Michel Foucault. 202 Bruno Felipe Marques Pinheiro Emily Silva dos Santos A poeta e a casa: uma cartografia íntima dos versos de Ana Martins Marques. The poet and the house: an intimate cartography of Ana Martins Marques’ verses. 219 Diamila Medeiros Apontamentos sobre o uso do elemento histórico no romance O castelo de Otranto. Notes on the use of the historical elemento in the novel The castle of Otranto. 238 Sérgio Luiz Ferreira de Freitas A poética das máscaras de Ezra Pound: uma análise do poema “Cino” para a compreensão de sua primeira poesia. The poetics of masks by Ezra Pound: an analysis of the poem “Cino” for the understanding of his first poetry. 258 Rodolfo Brandão de Proença Jaruga Susan Sontag: adaptadora e artista em A dama do mar. Susan Sontag: adapter and artist in Lady from the sea. 280 Helena Cecilia Carnieri Staehler ESTUDOS DA TRADUÇÃO TRANSLATION STUDIES Traduzindo o verso livre de T.S. Eliot. Translating T.S. Eliot’s free verse. 299 Eduardo Friedman PROFESSOR CONVIDADO GUEST PROFESSOR Arthur Bispo do Rosário: a artimanha da arte brasileira. Arthur Bispo do Rosário: the cunning of Brazilian art. 313 Fabio Akcelrud Durão AUTOR CONVIDADO GUEST AUTHOR Questionário Proust Proust Questionnaire 338 Ismar Tirelli Neto ESTUDOS LINGUÍSTICOS LINGUISTIC STUDIES Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE ABORDAGENS DE LEITURA NO ENSINO BRASILEIRO: UM BREVE PERCURSO DESDE OS ANOS 1950 ATÉ OS DIAS ATUAIS READING APPROACHES IN BRAZILIAN EDUCATION: A BRIEF PATH FROM THE 1950s TO THE CURRENT DAYS Geraldo Abreu1 RESUMO: O processo de leitura é complexo e envolve aspectos físicos, cognitivos, sociais, pessoais e motivacionais que devem ser levados em consideração durante a compreensão. Muitos estudiosos tentaram defini-lo sob variadas concepções, ora dando ênfase às palavras e seus significados, ora à capacidade cognitiva dos leitores e sua capacidade para depreender informações. Nos dias atuais, visa-se à capacidade crítica dos leitores, que abarca todos os aspectos mencionados em busca de uma leitura proativa e reflexiva. Assim, este trabalho pretende apresentar uma pequena revisão das distintas concepções de leitura utilizadas para o ensino em línguas estrangeiras, partindo das que se focam na superfície dos textos, passando pelas que se concentram na capacidade cognitiva dos leitores e chegando à que faz a mescla das anteriores, acrescentando a exploração da criticidade dos indivíduos. Palavras-chave: Leitura; Aprendizado; Psicolinguística. ABSTRACT: The reading process is complex and involves physical, cognitive, social, personal, and motivational aspects that must be taken into consideration during comprehension. Many scholars have tried to define it under varying conceptions, sometimes emphasizing words and their meanings, sometimes the cognitive capacity of readers and their ability to grasp information. In the present day, the critical capacity of the readers, which covers all the aspects mentioned, is the aim, in the search for a proactive and reflective reading. Thus, this work intends to present a brief review of the different conceptions of reading used for teaching foreign languages, starting from those that focus on the text surface, passing through the ones focusing on the cognitive ability of readers and arriving at the one that mixes the previous ones, adding the exploration of the individuals’ criticality. Keywords: Reading; Learning; Psycholinguistics. 1 Mestrando em Linguística Aplicada, UFMG. ABREU, G. Abordagens de Leitura... 12 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE 1. INTRODUÇÃO A busca por uma definição final do processo de leitura tem sido feita há décadas por distintos estudiosos filiados às mais variadas escolas, o que deu origem a diversas nomenclaturas e modelos teóricos. Em vista disso e dando atenção especial aos trabalhos de Kleiman (1995; 2001; 2004), Cassany (2006) e Cassany e Castellà (2010), este artigo visa a descrever as teorias mais evidentes que orientaram e orientam o ensino de leitura em línguas estrangeiras no contexto da educação básica no Brasil e que, ao longo do tempo, vêm sendo utilizadas por professores em salas de aula. Com o auxílio da literatura já elaborada sobre o tema, como o estudo de Ezequiel Silva (1999), Vilson Leffa (1999), Xavier Conde (2002) e Daniel Cassany e Cristina Aliagas (2007), além das obras já citadas, elaboramos um curto percurso sobre as abordagens do ensino da leitura no Brasil desde os anos 1950 e 1960, com as concepções behavioristas de leitura. Passamos com maior detalhamento pelas concepções psicolinguísticas que receberam grande dedicação por parte de pesquisadores nos anos 1970, que, segundo Kleiman (2004), foi o período de maior produtividade das pesquisas sobre o tema e que aportou grandes contribuições para o ensino brasileiro. Chegamos, por fim, a uma perspectiva de leitura mais atual abordada por Cassany (2006) e Cassany e Castellà (2010): a sociocultural, que agrega à interpretação textual o caráter social, cultural e crítico, e cujos estudos no Brasil ainda são incipientes e carecem de mais dedicação e observância por parte de pesquisadores. ABREU, G. Abordagens de Leitura... 13 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE 2. ABORDAGENS NOS ANOS 1950 E 1960 Nos anos 1950 e 1960 predominaram no Brasil perspectivas de leitura behavioristas, que influenciavam e ainda influenciam práticas pedagógicas. Segundo Kleiman (2001), nessa visão mais simplificada, a leitura se dá através da decodificação dos sinais gráficos e sonoros (relação letra-som), da extração do significado exclusivamente das palavras do texto e, principalmente, da aquisição de hábitos a partir de estímulos-respostas. A autora reitera que “[os estudos behavioristas] previam um leitor que precisava receber um estímulo visual, uma letra, para uni-la a um estímulo visual anterior e assim formar uma sílaba, procedendo dessa forma em todos os níveis de significação: letra por letra até completar uma sílaba, sílaba por sílaba, até completar uma palavra, palavra por palavra até completar uma frase e assim sucessivamente” (KLEIMAN, 2001, p.16). Baseando-nos em Silva (1999), destacamos três concepções inseridas nessa visão do processo de leitura. A primeira, conhecida como método silábico, basicamente consiste em (a) traduzir a escrita em fala. Nela, o foco está em ler textos em voz alta traduzindo sinais gráficos em sons. Reforça-se a capacidade dos alunos, a partir de estímulos visuais (o texto), em unir letra por letra, sílaba por sílaba até formar unidades maiores da língua e assim por diante. Em outros termos, para o autor, sob essa concepção “ler é ler em voz alta, obedecendo às regras de entoação das frases, apresentando boa postura expressiva, formando unidades frasais entre os enunciados orais, obedecendo às pausas de pontuação, etc.” (SILVA, 1999, p. 12). Vemos que o respeito aos sinais gráficos e a relação letra-som são avaliados; desta forma a leitura adequada seria alcançada sempre e quando o aluno respeitar a pronunciação correta das palavras. ABREU, G. Abordagens de Leitura... 14 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE A segunda consiste em (b) dar respostas corretas e protocolares. Para Silva (1999), o estímulo é o texto e a resposta é a leitura. Aqui, a leitura é feita de maneira linear para que respostas, previamente estabelecidas pelos professores ou pelos livros didáticos, sejam encontradas. Caso o aluno acerte, ele será premiado (estimulado) de forma pública frente aos colegas de classe ou de maneira particular através das correções em seus cadernos; por outro lado, caso alguma resposta não esperada seja dada, o leitor será reprochado (não estimulado). E a última, que nos parece uma continuidade da segunda, diz respeito à leitura como meio único para (c) encontrar o tema central (significado) do texto. Ou seja, há uma resposta única que desconsidera as interpretações oferecidas pelos conhecimentos pessoais dos leitores. Em geral, as respostas são feitas com transcrições de trechos dos textos e, caso o aluno não obtenha ou depreenda o tema central, sua resposta será desconsiderada. Para Silva (1999), “esta concepção alça o leitor ao papel de um saca-rolhas ou de um detector que deve localizar no ‘complicado mapa’ onde está localizada a parte essencial do texto” (p. 13). Essa perspectiva tem debilidades que foram conhecidas com o passar dos anos: a primeira é que sua adoção leva à ideia de aluno como um receptáculo vazio que necessita ser completado com conhecimento que, por sua vez, será provido pelo professor e pelo texto. A segunda é que ensinar a leitura sob essa visão leva à formação de leitores não autônomos, acríticos e facilmente manipuláveis. A terceira é que essa concepção desconsidera interpretações textuais devidas à multiplicidade de significados que um texto carrega. Por fim, ela desconsidera, também, o contexto de produção e o do aluno e sua capacidade cognitiva para depreender as mensagens do texto, algo que será revisto nas perspectivas de que trataremos a seguir. ABREU, G. Abordagens de Leitura... 15 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE 3. PERSPECTIVAS A PARTIR DOS ANOS 1970 Nos anos 1970, havia, e ainda há atualmente em 2017, a necessidade de melhorar os níveis de leitura em língua materna dos alunos das escolas brasileiras, principalmente por pressão da mídia. De acordo com Kleiman (2004), “os estudos sobre a leitura em língua materna tiveram um grande desenvolvimento, sem dúvida impulsionados pela mídia, que, a cada ano, depois dos resultados do vestibular, noticiava uma nova ‘crise de leitura’ no Brasil” (p. 14). É inegável que as provas de ingresso no ensino superior brasileiro (antes, os vestibulares e, agora, também o ENEM) ditavam, e ditam, em grande medida, as práticas de ensino, e que as escolas organizam seus currículos de modo a adequar-se às suas exigências. Assim, desde a década de 1970 estudiosos brasileiros e do mundo viam a necessidade de encontrar “fórmulas” para melhorar os níveis de leitura dos estudantes, seja em língua materna ou em línguas estrangeiras. Diante desta necessidade, o país viu a influência de teorias e propostas metodológicas que visavam a explicar e explorar os mecanismos de aprendizado e aquisição da leitura. Como afirma Kleiman (2004), nessa época, segunda metade dos anos 1970, havia o predomínio dos estudos provenientes das ciências psicológicas, nos quais os sujeitos passaram a ocupar lugar de destaque já que seus processos cognitivos eram objeto de investigação e, possivelmente, o meio para explicar o processo de aquisição da leitura. Portanto, nessas novas concepções, o leitor começa a ser visto como sujeito ativo em relação ao texto, ainda que apenas por suas capacidades cognitivas. Até aquele momento a capacidade crítica não havia começado a ocupar lugar de destaque, como veremos adiante. Nos estudos das ciências psicológicas destaca-se uma vertente que tem importância para compreender o processo de leitura: a Psicolinguística, que visa a ABREU, G. Abordagens de Leitura... 16 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE explicar como se dá a aquisição e a deterioração da linguagem na espécie humana, através de fatores psicológicos e neurológicos que dotam o homem de sua capacidade de uso, compreensão, comunicação e produção. Portanto, o foco desta vertente é o processo cerebral que faz com que nos entendamos enquanto humanos. Para Conde (2002): A psicolinguística é uma disciplina que busca descobrir, por um lado, como se produz e se compreende a linguagem e, por outro, como ela é adquirida e perdida. Mostra, portanto, interesse pelos processos implicados no uso da linguagem. É, ademais, CIÊNCIA EXPERIMENTAL: exige que suas hipóteses e conclusões sejam contrastadas sistematicamente com dados da observação da conduta real dos falantes em situações diversas. (CONDE, 2002, p. 09, grifo no original)2 Reparemos que a Psicolinguística se debruça, também, sobre as situações reais de interação entre falantes, algo que antes não era foco dos estudos, o que implica a observação dos conhecimentos de distintas naturezas (linguísticos, cognitivos e sociais) trazidos (conhecimentos prévios) e construídos (conhecimentos que se formam durante a interação) que se colocam em uso durante essa interação. 3.1. MODELOS PSICOLINGUÍSTICOS DE LEITURA Dentro dos estudos da Psicolinguística surgiram modelos que buscavam explicar como se dava o processo de leitura e que, ainda que fossem modelos não pensados para sala de aula, acabaram por influenciar métodos de ensino. Entre esses, está o Modelo de Processamento Serial de Gough que possui caráter altamente descritivo em No original: “La psicolingüística es una disciplina que trata de descubrir cómo se produce y se comprende el lenguaje por un lado y cómo se adquiere y se pierde el lenguaje por otro. Muestra, por tanto, interés por los procesos implicados en el uso del lenguaje. Es, además, CIENCIA EXPERIMENTAL: exige que sus hipótesis y conclusiones sean contrastadas sistemáticamente con datos de la observación de la conducta real de los hablantes en situaciones diversas”. (CONDE, 2002, p. 09, grifo no original) 2 ABREU, G. Abordagens de Leitura... 17 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE relação a cada estágio do processamento da leitura e segundo Kleiman (2001, p. 23), “leva a extremos inaceitáveis desde o ponto de vista empírico, o sequenciamento dos processos envolvidos na decodificação (na leitura, segundo Gough)”. Pela observação da autora, percebemos que Gough admitia a leitura como sinônimo de decodificação, algo que nos remete aos métodos anteriores à década de 1970. Isso é compreensível, visto que ainda eram incipientes os novos estudos sobre a leitura e esses ainda sofriam influências de visões anteriores. Para exemplificar o caráter descritivo dos processos, observemos essa síntese que a autora elabora do modelo de Gough: “Esse modelo destacava eventos tais como: fixação ocular e movimento sacádico3, representação icônica do percepto visual, identificação das letras, mapeamento das letras com a representação fonêmica abstrata da palavra, busca da entrada lexical (acessível mediante a representação fonêmica abstrata dos caracteres), também serialmente, palavra por palavra (da esquerda para a direita)” (KLEIMAN, 2001, p. 24). Outro modelo que deve ser abordado é o Modelo de Sistemas de Comunicação de Ruddell, que se aproxima ao de Gough primeiro por entender a leitura como decodificação de unidades linguísticas e, segundo, por buscar descrever os processos ocorridos durante a leitura. Kleiman (2001) o sintetiza da seguinte maneira: Para Ruddell a leitura é um desempenho psicolingüístico complexo que consiste na decodificação de unidades lingüísticas escritas no processamento das unidades lingüísticas ao longo de dimensões estruturais e semânticas, e na interpretação dos dados semânticos segundo os objetivos do leitor. No modelo o input visual inicia o processo de decodificação no qual os sistemas grafêmico, fonêmico e morfêmico são utilizados. O material analisado é agrupado em constituintes, e armazenado na memória imediata (em fatias ou “chunks”)4 para servir de input a regras transformacionais. (KLEIMAN, 2001, p. 27, grifos no original) Movimento rápido feito com o olho entre pontos de fixação, por exemplo, entre duas palavras para, depois, haver a fixação em uma delas. 4 Neste trabalho adotamos o termo memória de trabalho, em vez de memória imediata, além do termo frames em vez de chunks, como pode ser observado em trabalhos de outros autores. 3 ABREU, G. Abordagens de Leitura... 18 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE Esses modelos buscam capturar a complexidade da leitura através de aspectos cognitivos, no entanto, constroem suas bases em textos impressos, ou seja, o protagonismo é do material de leitura. Para eles, o leitor elabora processos psicológicos para sua compreensão, porém esses dependem mais da capacidade percepto-visual do indivíduo e sua relação com as letras que de sua memória e seus conhecimentos adquiridos. Nesse sentido, importa mais o que os sinais gráficos aportam ao leitor do que o que o leitor aporta aos sinais gráficos. Em uma comparação rápida desses modelos, podemos destacar que o de Rudell (1976) diminuiu o grau de caracterização dos processos percepto-visuais, ainda que esses ocupem lugar de destaque; ademais começa a obter protagonismo a capacidade do leitor de armazenar dados em sua memória imediata (memória de trabalho) e de interpretar dados, segundo seus objetivos. O modelo de Gough (1976) parece ser mais focado em automatismos visuais; já no de Rudell, esses automatismos são o estopim para o armazenamento e o processamento de dados. É notável que os dois entendem a leitura como decodificação, pois os sinais gráficos e a capacidade percepto-visual, o mapeamento das letras, estruturas textuais, levam a processos psicolinguísticos mais complexos, como a compreensão textual. Esses dois modelos dão origem à abordagem de leitura Bottom-up ou Ascendente, ou seja, abordagens que preconizam o texto como impulsionador dos processos cognitivos no momento da leitura. Basicamente, ler seria um processo cognitivo de extração de significados acionado pelo conteúdo do texto, ou como Leffa (1999) define com bastante objetividade: “as atividades executadas pelo leitor são determinadas pelo que está escrito na página.” (p. 06) Após a atenção exaustiva dada ao texto nos dois modelos anteriores, o tema não necessitava mais de tanto foco dos estudiosos. Assim, Goodman (1973, apud LEFFA 1999; KLEIMAN, 2001) elabora o Modelo de Testagem de Hipóteses. Neste, o processo de leitura é elaborado quando o leitor reconstrói mensagens do autor através de seus ABREU, G. Abordagens de Leitura... 19 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE conhecimentos prévios, de hipóteses, inferências, adivinhações e experiências. Segundo Leffa (1999), a leitura para Goodman envolve os seguintes níveis de informação: “conhecimentos linguísticos, textuais e enciclopédicos, além de fatores afetivos (preferências por determinados tópicos, motivação, estilos de leitura etc.)” (p. 11). Kleiman (2001) define esses níveis de informação da seguinte maneira: “[...] informação grafo-fônica que inclui a informação gráfica, fonológica, bem como a interrelação entre ambas; a informação sintática, que tem como unidades funcionais padrões sentenciais, marcadores desses padrões e regras transformacionais supridas pelo leitor; e a informação semântica, que inclui tanto vocabulário quanto conceitos e experiência do leitor.” (p. 29) A autora, ademais, destaca que, para que o leitor utilize esses níveis de forma concomitante, são necessárias habilidades que propiciem o processamento, como: (a) “scanning”5, (b) busca na memória de pistas fonológicas, informações sintáticas e semânticas, (c) acionamentos de conhecimentos prévios (enciclopédicos, de mundo, socioculturais, linguísticos, etc.) que são armazenados na memória de curto e longo prazo através de pacotes de conhecimento ou esquemas, (d) testagem sintática e semântica das pistas textuais e (e) regressão ocular (em caso de inconsistências na evolução da leitura). Posteriormente, essas habilidades constituirão um conjunto de estratégias cognitivas que levam à elaboração de significados. Em suma, no modelo de Goodman, a leitura é um processo não linear (ao contrário do que é observado nos modelos behavioristas) e não padronizado, em que importa menos o texto e mais a capacidade cognitiva do leitor, que envolve seleção de dados armazenados na memória e a capacidade de antecipar e prever informações através da ativação de conhecimentos prévios. Ler é utilizar estratégias de inferenciação (previsão, dedução, etc.) e autocorreção. Portanto, o leitor construirá sentido através de seu armazenamento de informações. Assim, é do leitor a função de 5 Capacidade de buscar informações relevantes sem que a leitura palavra por palavra seja feita. ABREU, G. Abordagens de Leitura... 20 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE antecipar-se aos elementos textuais e agregar-lhes sentido. Esse modelo dá origem à abordagem Top-down ou Descendente de leitura, ou seja, como visto, é da soma de processos cognitivos que se desprendem os sentidos do texto e não o contrário, como ocorre na abordagem Bottom-up. 3.2. PERSPECTIVA INTERACIONISTA DE LEITURA A partir da visão de que o modelo Bottom-up excluía os conhecimentos prévios do leitor e de que o modelo Top-down desconsidera as pistas linguísticas deixadas pelo autor, surge a concepção Interacionista (ou Interativa) de leitura. Nela, os dois processos ocorrem de forma simultânea, não hierarquizada e se completam mutuamente em caso de inconsistências do texto ou de limitações do leitor. O processo Bottom-up é responsável pelo processamento percepto-visual, linguístico, e das pistas deixadas pelo autor como seu estilo e sua retórica, enquanto o Top-down se dedica a explorar os conhecimentos prévios do leitor para antecipar informações, elaborar hipóteses, recuperar inferências etc. Além disso, esses processos se retroalimentam sempre que ocorrem problemas de compreensão, acionando diferentes pacotes de conhecimento para auxiliar na depreensão de significados. Além da interação entre diversos níveis de conhecimento, essa perspectiva, a partir de uma visão pragmática, pode ser vista como uma relação entre o leitor e o autor. Para Kleiman (1995), o leitor “formula, aceita ou rejeita suas hipóteses” (p. 64); por outro lado, “o autor deve deixar suficientes pistas em seu texto a fim de possibilitar ao leitor a reconstrução do caminho que ele percorreu.” (p. 66) Segundo Leffa (1999), nesta “abordagem conciliadora”, o significado do texto se constrói tanto com a decodificação das palavras do texto (Bottom-up/Ascendente), quanto com a bagagem que o leitor aporta a ele (Top-down/Descendente), ou seja, a leitura acontece a partir da combinação texto e leitor e da interação entre esses dois ABREU, G. Abordagens de Leitura... 21 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE elementos. Para Leffa (1999), “as abordagens conciliadoras [...] pretendem não apenas conciliar o texto com o leitor, mas descrever a leitura como um processo interativo/transacional, com ênfase na relação com o outro.” (p. 01). Segundo Kleiman (2008), “[nessa perspectiva] o leitor passa a ser um sujeito cognitivo, que deixa de ser receptor de conhecimento apenas e passa a ser um (re)criador de significado.” (p. 19) Em suma, o leitor deixou de ser um receptáculo vazio que apenas recebe estímulos do texto e passou a ser um contribuinte de significados apoiado em seus conhecimentos e nas pistas textuais. Em vista disso, a leitura se torna um processo contínuo e mutável de construção de significados. O texto impresso e suas pistas têm papel importante, mas não exclusivo, pois os conhecimentos socioculturais do leitor passam a cobrar protagonismo no processo de construção de sentidos, como veremos a seguir nos trabalhos de Cassany (2006) e Cassany e Castellà (2010). 4. AS ABORDAGENS DE LEITURA SEGUNDO DANIEL CASSANY Em seu trabalho, especificamente desenvolvido para o ensino da leitura, Cassany (2006) define e explora três distintas abordagens de leitura, de maneira bastante didática e objetiva, em uma proposta para compreendermos como a leitura pode ser trabalhada em sala de aula. O autor não tem a intenção de descrever a especificidade dos processos envolvidos no momento da leitura, pois não pretende estabelecer um modelo de leitura, mas sim apresentar três concepções práticas, baseadas nos modelos vistos anteriormente. Ademais, a proposta de Cassany nos permite perceber como os modelos vistos podem influenciar práticas docentes e, consequentemente, a formação leitora dos estudantes. Sua proposta de classificação parte de uma visão simplista da leitura, com foco no código escrito, passando por uma visão mais elaborada, baseada na capacidade do leitor de explorar seus conhecimentos prévios, até uma concepção baseada nas práticas letradas críticas. ABREU, G. Abordagens de Leitura... 22 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE 4.1. A CONCEPÇÃO LINGUÍSTICA Quanto ao processo de leitura, esta concepção é a que apresenta características mais rudimentares, embora ainda seja uma das mais utilizadas nas salas de aula. É “uma visão mecânica, que dá foco à capacidade de decodificar a prosa de modo literal”6 (CASSANY, 2006, p. 21, tradução nossa). Como observaremos, ela está ligada ao behaviorismo tanto por suas características teóricas quanto por sua prática no ensino. Podemos explicá-la da seguinte maneira: depois de (re)conhecer os sinais gráficos da página impressa através do movimento sacádico dos olhos, identificamos as palavras, aplicamos regras sintáticas para criação da coerência local e, por fim, recuperamos as acepções comuns das palavras. Para Cassany & Aliagas (2007), “segundo a visão linguística, o conteúdo do texto é o resultado de aplicar esses processos de decodificação”7 (p. 15, tradução nossa). Deste modo, o significado do texto se constrói através do processamento do valor semântico das palavras e sua relação com as outras palavras do texto. Além do mais, o texto possui significado estável, de fácil entendimento para distintos leitores e independe dos leitores ou do contexto de leitura e produção. Ou seja, a leitura está relacionada simplesmente à decodificação e desconsidera os conhecimentos socioculturais dos leitores. Para Cassany (2006), nesta concepção de leitura, “[u]Uma mesma pessoa que lesse o escrito em momentos e lugares diferentes também deveria No original: “una visión mecánica, que pone el acento en la capacidad de descodificar la prosa de modo literal.” (CASSANY, 2006, p. 21). 7 No original: “En resumen, según la mirada lingüística, el contenido del texto es el resultado de aplicar estos procesos de descodificación.” (CASSANY & ALIAGAS, 2007, p. 15). 6 ABREU, G. Abordagens de Leitura... 23 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE obter o mesmo significado, posto que este depende das acepções que o dicionário atribui às palavras, e estas não se modificam facilmente”8 (p. 25, tradução nossa). Podemos ver que todo o significado é provido pelo texto e suas unidades léxicas; o que o leitor deve fazer é recuperar as regras sintáticas e semânticas de cada palavra, relacionando-as com as palavras anteriores e posteriores (CASSANY, 2006). Ler é um processo automático, linear e uniforme feito por leitores que possuam conhecimentos sobre as regras que regulam a língua, características também observadas nas concepções dos anos 1950 e 1960. Como já visto, o significado de um texto não reside apenas em suas palavras, visto que esta visão é simplista e redutora de um processo bastante complexo. Vejamos, a seguir, outras concepções que expandem a concepção linguística de leitura. 4.2. A CONCEPÇÃO PSICOLINGUÍSTICA DE LEITURA Os textos com os quais temos contato no dia a dia não trazem todas as informações explícitas. Muitas vezes, eles ocultam informações, ora por questões de espaço físico ou por obviedade, ora por questões ideológicas ou intenções escusas. É importante saber que, por essas razões, durante a leitura nós nos antecipamos ao texto, elaborando previsões e deduções através do aporte dos nossos conhecimentos prévios. Assim, fazemos inferências, pois, do contrário, todo texto seria imenso e cansativo. Segundo Cassany (2006), “A comunicação humana é inteligente e funciona de maneira econômica e prática: basta dizer uma pequena parte do que queremos comunicar para que o interlocutor compreenda tudo; produzindo poucas palavras — No original: “Una misma persona que leyera el escrito en momentos y lugares diversos también debería obtener el mismo significado, puesto que éste depende de las acepciones que el diccionario atribuye a las palabras, y éstas no se modifican fácilmente.” (CASSANY, 2006, p. 25). 8 ABREU, G. Abordagens de Leitura... 24 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE bem escolhidas — podemos conseguir que o leitor infira tudo.”9 (p. 05, tradução nossa, grifo no original). Assim, nesta concepção, ler é “[...] desenvolver várias destrezas mentais ou processos cognitivos: antecipar o que dirá um escrito, aportar nossos conhecimentos prévios, fazer hipóteses e verificá-las, elaborar inferências para compreender o que se sugere, construir um significado, etc.”10 (CASSANY, 2006, p. 21, tradução nossa). Para o autor, o significado se constrói e a decodificação é apenas o primeiro estágio de um processo psicológico muito mais complexo, que inclui mais dois processos que desenvolvemos durante a leitura: (a) reconstruir a base do texto através do que foi dito e do que pressupomos, ou seja, necessitamos recuperar a argumentação implícita através das inferências; e (b) estabelecer um modelo da situação e do contexto imediato ao escrito (emissor, lugar, meio, circunstâncias, etc.). Ainda, segundo o autor, esses processos implicam a inferência de informações implícitas, locais ou globais que, por sua vez, são produzidas a partir de conhecimentos armazenados em nossa memória. Esse processo culminará na formação de enunciados novos a partir de informações provenientes de conhecimentos que já possuímos. De acordo com a concepção psicolinguística, é através desses processos cognitivos que entendemos coisas que não foram ditas no texto, compreendemos os sentidos que não correspondem a sua acepção semântica e deduzimos, prevemos e completamos dados do contexto imediato e amplo do texto, relacionando-os ao enunciado linguístico. Para tanto, o leitor deve explorar, dentre outras faculdades cognitivas, sua capacidade inferencial. No original: “La comunicación humana es inteligente y funciona de manera económica y práctica: basta con decir una pequeña parte de lo que queremos comunicar para que el interlocutor comprenda todo; con producir unas pocas palabras — bien elegidas — podemos conseguir que el lector infiera todo.” (CASSANY, 2006, p. 05). 10 No original: “Desarrollar varias destrezas mentales o procesos cognitivos: anticipar lo que dirá un escrito, aportar nuestros conocimientos previos, hacer hipótesis y verificarlas, elaborar inferencias para comprender lo que sólo se sugiere, construir un significado, etc.” (CASSANY, 2006, p. 21). 9 ABREU, G. Abordagens de Leitura... 25 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE Pode-se perceber o destaque que damos às inferências dentre as outras capacidades cognitivas envolvidas no momento da leitura. Em termos gerais, nós as entendemos como nossa capacidade para preencher lacunas e compreender significados que vão além do que as palavras descrevem, recorrendo ao contexto de produção, à forma de divulgação, à busca pela percepção da intenção do autor (suas ideologias, valores, pontos de vista, sentidos), aos aspectos gráficos, à percepção social e a informações extratextuais, o que se dá através do aporte dos nossos conhecimentos prévios socioculturais e linguísticos, além, claro, de nossa capacidade cognitiva. Ademais, acreditamos que as inferências nos servem como ponte entre as concepções de leitura linguística, psicolinguística e sociocultural, justamente por defendermos que o indivíduo só é capaz de elaborá-las através de seus conhecimentos prévios linguísticos e socioculturais. Por fim, Cassany (2006) resume a concepção psicolinguística da seguinte maneira: “[...] ler não só exige conhecer as unidades e as regras combinatórias do idioma. Também requer desenvolver as habilidades cognitivas implicadas no ato de compreender: aportar conhecimento prévio, fazer inferências, formular hipóteses e saber verificá-las ou reformulá-las, etc.”11 (p. 06, tradução nossa). O autor reitera ainda que as contribuições da psicolinguística sobre as destrezas cognitivas são importantes, pois temos descrições sobre a leitura adequada, sobre como nossa mente funciona para compreender, sobre como formulamos hipóteses e fazemos inferências (CASSANY, 2006). No entanto, aborda pouco ou quase nada o componente sociocultural e as formas como cada comunidade em particular adota a leitura em seu contexto específico. Por exemplo, não consegue explicar as diferenças entre as leituras feitas por um brasileiro e um europeu de uma mesma notícia sobre os No original: “[...] leer no sólo exige conocer las unidades y las reglas combinatorias del idioma. También requiere desarrollar las habilidades cognitivas implicadas en el acto de comprender: aportar conocimiento previo, hacer inferencias, formular hipótesis y saberlas verificar o reformular, etc.” (CASSANY, 2006, p. 06). 11 ABREU, G. Abordagens de Leitura... 26 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE preparativos do carnaval no Brasil. Certamente as percepções serão diferentes entre esses leitores; inclusive elas serão diferentes até mesmo entre brasileiros, dependendo de sua relação com essa festa. Segundo o autor, “[l]eitores diferentes entendem um texto de maneira diversa — ou parcialmente diversa — porque aportam dados prévios variados, posto que sua experiência de mundo e os conhecimentos acumulados em sua memória também variam. Uma mesma pessoa pode obter significados diferentes de um mesmo texto se o lê em diferentes circunstâncias, nas quais mude seu conhecimento prévio.”12 (CASSANY, 2006, p. 06, tradução nossa). Portanto, acreditamos que os processos cognitivos, em especial a capacidade inferencial, têm participação essencial na compreensão. Todavia, sozinhos, não são suficientes para explicar a complexidade da apreensão que ocorre durante a leitura. Assim, faz-se necessário focalizar outro fator determinante: o componente sociocultural, que veremos a seguir. 4.3. A CONCEPÇÃO SOCIOCULTURAL DE LEITURA Esta concepção é colocada por Cassany e Castellá (2010) dentro de uma perspectiva crítica de leitura, segundo a qual o leitor deve perceber que o texto se constrói em contextos sociais, políticos e culturais. Igualmente, ele deve interpretar esses contextos e posicionar-se criticamente sobre eles. O autor destaca que “ler e escrever não só são processos cognitivos ou atos de (de)codificação, mas também tarefas sociais, práticas culturais enraizadas historicamente em uma comunidade de No original: “Lectores diferentes entienden un texto de manera diversa —o parcialmente diversa— porque aportan datos previos variados, puesto que su experiencia del mundo y los conocimientos acumulados en su memoria también varían. Una misma persona puede obtener significados diferentes de un mismo texto, si lo lee en diferentes circunstancias, en las que cambie su conocimiento previo.” (CASSANY, 2006, p. 06). 12 ABREU, G. Abordagens de Leitura... 27 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE falantes.”13 (p. 354, tradução nossa). O autor compreende a leitura não somente como um processo de (de)codificação ou cognitivo; ele a entende como uma prática cultural e seu significado depende de fatores como o contexto sociocultural. Nesta concepção, acredita-se que tanto a leitura linguística quanto a psicolinguística têm origem social e não se discute se o significado é depreendido a partir de palavras ou da mente do leitor. (CASSANY, 2006) Há três pontos indissociáveis que são a base desta concepção. O primeiro é que tanto o significado das palavras quanto os conhecimentos prévios têm origem social. Para Cassany (2006), “talvez as palavras induzam o significado, talvez o leitor utilize suas capacidades inferenciais para construí-lo; no entanto, tudo vem da comunidade.”14 (p. 03, tradução nossa). Este primeiro ponto tem base na teoria sociocultural de aprendizado, segundo a qual o funcionamento mental dos indivíduos não pode ser estudado isoladamente, mas deve levar em consideração processos sociais nos quais eles se inserem, pois sua relação com o meio irá influenciar diretamente a formação cognitiva onde são armazenados todos os conhecimentos prévios, incluídos os linguísticos e os socioculturais. (VYGOTSKY, 1998) O segundo ponto dessa concepção diz que nenhum discurso surge do nada — pelo contrário, qualquer escrito tem origem social, contexto histórico, há um indivíduo que o escreve, uma instituição que o executa, ou seja, há ideologias que devem ser captadas no momento da leitura, ora expressas de forma explícita, ora de forma implícita. Para Cassany (2006), “o discurso não surge do nada. Sempre há alguém por trás. O discurso reflete seus pontos de vista, sua visão de mundo. Compreender o No original: “leer y escribir no solo son procesos cognitivos o actos de (des)codificación, sino también tareas sociales, prácticas culturales enraizadas históricamente en una comunidad de hablantes." (CASSANY e CASTELLÀ, 2010, p, 354). 14 No original: “Quizá́ las palabras induzcan el significado, quizá́ el lector utilice sus capacidades inferenciales para construirlo, pero todo procede de la comunidad.” (CASSANY, 2006, p. 03). 13 ABREU, G. Abordagens de Leitura... 28 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE discurso é compreender esta visão do mundo.”15 (p. 06, tradução nossa). Portanto, o discurso sempre reflete a intenção, os pontos de vista, a percepção do mundo, etc. de quem o profere. O terceiro ponto reitera que discurso, autor e leitor não são elementos isolados, já que as práticas de leitura se desenvolvem em âmbitos sociais com normas e tradições das quais os indivíduos fazem parte. Qualquer que seja o discurso, trará relações de poder intrínsecas, terá um contexto social por trás, terá objetivos a serem cumpridos, terá uma função na instituição da qual faz parte e reproduzirá papéis sociais dessa instituição (CASSANY; ALIAGAS, 2007). O autor, por sua vez, tem uma profissão que tem funções sociais, muitas vezes não explicitadas pelo discurso. O leitor também tem propósitos sociais, sejam políticos, pessoais, religiosos ou culturais. Assim sendo, o discurso é utilizado de formas particulares em cada comunidade, instituição, situação, etc., a depender dos propósitos sociais do autor e do leitor. Para Cassany (2006), “[o] papel que adotam o autor e o leitor varia; a estrutura do texto ou as formas de cortesia são as específicas de cada caso, o raciocínio e a retórica também são particulares da cultura, assim como o léxico e o estilo são sociais.”16 (p. 07, tradução nossa). Em resumo, para Cassany, a orientação sociocultural não entende a leitura apenas como um processo percepto-visual ou psicológico realizado através da decodificação de unidades linguísticas e das capacidades cognitivas. Vai além disso, mas reparemos que não os desconsidera: é uma prática cultural que faz parte de uma comunidade específica com particularidades sociais e históricas. Depreender significados de um texto é reconhecer essas particularidades, reconhecer quais funções um texto exerce em determinada comunidade, em determinado contexto e No original: “el discurso no surge de la nada. Siempre hay alguien detrás. El discurso refleja sus puntos de vista, su visión del mundo. Comprender el discurso es comprender esta visión del mundo.” (CASSANY, 2006.. p. 06). 16 No original: “El rol que adoptan el autor y el lector varia; la estructura del texto o las formas de cortesía son las especı́ficas de cada caso, el razonamiento y la retó rica tambié n son particulares de la cultura, ası́́ como el lé xico y el estilo son sociales.” (CASSANY, 2006, p. 07). 15 ABREU, G. Abordagens de Leitura... 29 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE quais as intenções do discurso. Para tanto, é necessário que o leitor utilize seus conhecimentos — não só linguísticos, mas também socioculturais. Esses dois últimos pontos têm base na teoria da Análise Crítica do Discurso desenvolvida por Norman Fairclough e abordada por Magalhães (2001) e Cassany (2006). Segundo essa teoria, o texto deve ser entendido como um evento discursivo e, como tal, ele é revestido por aspectos sociais ligados a formações ideológicas e formas de hegemonia, características encontradas na concepção defendida por Cassany. As concepções linguística, psicolinguística e sociocultural não são, de maneira nenhuma, excludentes, mas sim complementares e, como destaca o autor (CASSANY, 2006), o melhor seria combiná-las em uma prática integradora, explorando o entorno do aprendiz, a capacidade de decodificação individual, a capacidade de inferenciação, mas sem desconsiderar os valores ideológicos que perpassam os textos. Podemos dizer que elas conseguem englobar de maneira bastante consistente as formas distintas de entender o processo de leitura, desde concepções mais antigas às mais atuais. Vimos que a concepção linguística resume e abarca de forma clara os preceitos das teorias antecedentes às décadas de 1950 e 1960 e que a concepção psicolinguística, por sua vez, explica de maneira prática os preceitos da Psicolinguística e se relaciona de maneira direta à concepção interacionista de leitura. Por fim, a concepção sociocultural, que não descarta as duas primeiras, amplia as visões sobre o processo de leitura e inclui nele o fator crítico. 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS Buscamos neste trabalho apresentar de forma sucinta algumas das abordagens que permeiam o ensino da leitura em línguas estrangeiras no Brasil. Ele não pretende ser um guia final, mas sim mostrar as mudanças nas concepções de leitura vividas no ABREU, G. Abordagens de Leitura... 30 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE país, desde a década de 1950, em que o foco era a superfície do texto, passando pelos estudos psicolinguísticos, proeminentes nos anos 1970, nos quais os conhecimentos prévios dos indivíduos ganham força. Chegamos afinal aos dias atuais com a concepção sociocultural de leitura, que não descarta as demais, mas sim propõe utilizá-las de forma concomitante, agregando às interpretações a noção de que todo texto se constrói em contextos sociais, políticos e culturais e que devem ser entendidos durante a leitura. Acreditamos que a mescla dessas abordagens é a melhor maneira para o ensino da leitura em sala de aula, devendo, assim, os professores elaborarem análises sobre os objetivos, perspectivas pessoais dos aprendizes e seus contextos sociais para alcançar altos níveis de interpretação textual. REFERÊNCIAS CASSANY, Daniel. Tras las líneas. Sobre la lectura contemporánea. 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In Linguagem em (dis)curso, Santa Catarina, v. 8, n. 3, pp. 487-575, set. 2008. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/ld/v8n3/05.pdf>. Acesso em: 16 dez. 2016. ABREU, G. Abordagens de Leitura... 31 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE LEFFA, Vilson J. “Perspectivas no estudo da leitura: Texto, leitor e interação social”. In LEFFA, Vilson J.; PEREIRA Aracy, E. (Org.). O ensino da leitura e produção textual: alternativas de renovação. Pelotas: Educart, 1999. MAGALHÃES, Célia Maria. A análise crítica do discurso enquanto teoria e método de estudo. In: MAGALHÃES, Célia Maria (Org.). Reflexões sobre a Análise Crítica do Discurso. Belo Horizonte: Faculdade de Letras da UFMG, 2001. Cap. 1. p. 15-30. SILVA, Ezequiel Theodoro da. “Concepções de leitura e suas consequências no ensino” in Perspectiva, Florianopólis, v. 17, n. 31, pp. 11-19, jan. 1999. VYGOTSKY, Lev S. A formação social da mente. 6. ed. São Paulo: Livraria Martins Fontes, 1998. Recebido em: 16/06/2017 Aceito em: 17/09/2017 ABREU, G. Abordagens de Leitura... 32 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE ASPECTO VERBAL E TEMPO CÍCLICO: O TEMPO E AS FORMAS VERBAIS NA LITERATURA DE JORGE LUIS BORGES VERBAL ASPECT AND CYCLIC TIME: TIME AND VERBAL FORMS IN JORGE LUIS BORGES’ LITERATURE Rafael Severo Schiites1 RESUMO: O objetivo deste trabalho é verificar como as marcas discursivas do enunciador, no tocante ao sistema verbal, instauram um efeito de sentido do simulacro de tempo cíclico no conto Las ruinas circulares, do escritor argentino Jorge Luis Borges. Para tanto, as noções sobre o sistema verbal de Francisco Matte Bon (1995) e Maria Vargas (2011) e as discussões de Émile Benveniste (2006) sobre a Teoria da Enunciação formam nosso arcabouço teórico. Nossos pressupostos metodológicos constam do Método Qualitativo e do Paradigma Indiciário. Palavras-chave: verbo; linguística da enunciação; linguística textual. ABSTRACT: The objective of this work is to verify how the discursive marks of the enunciator, regarding the verbal system, establish a sense effect of the cyclical time simulacrum in the short story Las ruinas circulares, by the Argentinian writer Jorge Luis Borges. For this purpose, the notions of the verbal system of Francisco Matte Bon (1995) and Maria Vargas (2011) and the discussions of Émile Benveniste (2006) on the Theory of Enunciation are part of our theoretical framework. Our methodological assumptions are drawn from the Qualitative Method and from the Indiciary Paradigm. Keywords: verb; linguistics of enunciation; textual linguistics. 1. INTRODUÇÃO Nas tendências atuais do ensino de línguas, tanto estrangeira quanto materna, as concepções teóricas que consideram o verbo não somente no âmbito da expressão da 1 Mestrando, UFSM. SCHIITES, R. S. Aspecto verbal e... 33 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE ação, estado ou fenômeno, tiveram influência sobre as práticas em sala de aula. De acordo com estas teorias, Maria Valíria Vargas (2011, p. 10) defende que “as categorias de tempo, aspecto e modo são fundamentais para a construção de sentido dos enunciados”, e que se deve considerar os interlocutores no quadro enunciativo e no seu contexto de uso. Estas formas verbais geralmente aparecerão inseridas em unidades enunciativas mais amplas, os textos2, nas quais terão determinadas funções. O estudo destas unidades também sofreu diversas transformações, devido ao surgimento das teorias comunicativas. A partir disto, passou-se a considerar o texto não apenas no nível oracional, mas também no nível enunciativo, o que permitiu a problematização de questões referentes às condições de produção e recepção. De acordo com estas premissas, podemos postular que o texto deve ser estudado como um meio de interação3 entre interlocutores, em determinadas condições espaçotemporais. Em um âmbito mais pessoal, desde o término da monografia de conclusão de curso, intitulada Verbo, microconto e enunciação: uma perspectiva para um trabalho enunciativo sobre as formas verbais em sala de aula (SCHIITES, 2016)4, sentia-se a necessidade de um maior aprofundamento sobre um dos efeitos de sentido que verificamos em nossa pesquisa: a noção de tempo cíclico5. Tal noção, que remonta à Antiguidade, está vinculada à concepção de tempo como ordem mensurável do Beaugrande (1997, p. 10) define o texto como “evento comunicativo no qual convergem ações linguísticas, sociais e cognitivas”. 3 Nossa concepção de interação se alinha com as ideias de Bakhtin/Voloshinov (2014), pois consideramos tal fenômeno como uma realidade fundamental da língua. 4 Esta monografia foi defendida e concluída pelo autor deste artigo no ano de 2016 e tinha por objetivo analisar a articulação da estrutura da narrativa por meio das formas verbais em sete microcontos do escritor Augusto Monterroso, combinadas com outros mecanismos linguísticos e discutir as possíveis contribuições deste procedimento analítico no processo didático sobre o sistema verbal, nas categorias tempo, modo e aspecto, em classes de Espanhol Língua Estrangeira, o que também resultou na elaboração de uma sequência didática. 5 Além de Platão, outros filósofos problematizaram a questão do tempo enquanto circularidade, porém, para este artigo, optamos por esta noção mais geral, já que conceberemos tempo cíclico como um efeito de sentido presente na construção verbal. 2 SCHIITES, R. S. Aspecto verbal e... 34 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE movimento e ao conceito cíclico do mundo e da vida do homem (metempsicose). Platão definiu tempo como “a imagem móvel da eternidade”, assinalando que na forma dos períodos planetários, do ciclo constante das estações ou das gerações vivas e de qualquer espécie de mudança, ele reproduz no movimento a imutabilidade do ser eterno (ABBAGNANO, 1998, p. 944). Na referida monografia, em um corpus de sete microcontos do escritor Augusto Monterroso, concluiu-se que no microconto La cucaracha soñadora este efeito de sentido estava diretamente relacionado ao uso reiterado da forma verbal soñar no pretérito imperfecto del indicativo por parte do enunciador. Ou seja, tais marcas sugerem uma noção de tempo circular, já que, devido ao seu aspecto imperfectivo, suscitam uma ideia de ações que se repetem em um passado surreal (no mundo dos sonhos) e não linear. Considerando tais discussões, neste artigo verificaremos como as marcas do enunciador, no tocante às formas verbais, contribuem para a construção de um efeito de tempo cíclico em materialidades discursivas de maior extensão. Para tanto, nosso corpus constará do conto Las ruínas circulares6, de Jorge Luis Borges, e consideramos a hipótese de que não só as formas verbais de aspecto imperfectivo per se suscitariam um simulacro de percepção de tempo circular, mas também suas relações com outras formas verbais e outros elementos discursivos como, por exemplo, a reiteração de formas discursivas e a imprecisão dos marcadores temporais. Ressaltamos que a ideia de circularidade temporal aplicada à literatura borgeana não é algo inédito, porém, nos propomos a discutir como as marcas discursivas referentes ao sistema verbal contribuem para uma possível construção do referido efeito de sentido na interpretação desta materialidade literária por parte dos enunciatários. Por fim, acreditamos na relevância deste trabalho para a área de Letras no sentido de mostrar possíveis intersecções entre as áreas de Linguística e de Literatura, Este conto é parte integrante da obra El jardin de los senderos que se bifurcan (1941), que mais tarde foi incluída na obra Ficciones (2011), juntamente com a obra Artificios (1944). 6 SCHIITES, R. S. Aspecto verbal e... 35 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE já que propomos a análise de um texto do domínio literário. A pesquisa deste tipo de textos se faz pertinente devido ao caráter humanizante (OCEM, 2006, p. 53) proporcionado por eles, e que nos permite discutir o lugar do ser humano no universo. Neste sentido, Morin (2003) destaca que o estudo da linguagem, sob a sua forma mais consumada, que é a literária e a poética, leva-nos diretamente ao caráter mais original da condição humana. 2. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA Para compor um arcabouço teórico que nos permita um estudo das formas verbais em um nível enunciativo-discursivo, subdividimos esta sessão em: 2.1. Sistema Verbal, para delimitarmos nosso escopo teórico referente a esta categoria discursiva; e 2.2. Linguística da Enunciação, para discutirmos os conceitos fundamentadores dessa pesquisa no âmbito do locus do sujeito na linguagem. 2.1. SISTEMA VERBAL Consideramos o sistema verbal como a ferramenta da qual o enunciador faz uso para dar estatuto das coisas que quer dizer e para transformar os fenômenos extralinguísticos em elementos de uma construção linguística (MATTE BON, 1995). A partir de tal definição, entendemos as formas verbais como elementos fundamentais na (re)construção do sentido dos enunciados, que devem ser analisadas em sua construção morfossintática, em sua função discursiva e em relação aos locutores/interlocutores no momento da enunciação. Neste sentido, se tomamos o verbo como um elemento discursivo relevante na (re)significação das unidades enunciativas, constataremos que as marcas linguísticas referentes às categorias tempo, modo e aspecto terão impacto sobre os possíveis efeitos de sentido provenientes deste SCHIITES, R. S. Aspecto verbal e... 36 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE discurso. Em outros termos, a reincidência de uma determinada marca de aspecto verbal no conto irá influenciar na maneira como os enunciatários interpretarão os diversos aspectos desta materialidade literária. Neste trabalho, porém, iremos focar nos efeitos que emanam das marcas aspectuais do verbo, uma categoria não dêitica que diz respeito ao modo como o sujeito percebe a realização das ações e dos fatos (VARGAS, 2011). Por meio desta categoria assinalamos se a ação enunciada é conclusa (perfeita), sendo levada até o fim, ou se tal ação é inconclusa (imperfeita), durando um período indeterminado de tempo. Convém aclarar que, no tocante à língua espanhola, as formas verbais de aspecto perfectivo são, entre outras, as formas compostas e o pretérito indefinido del indicativo, por meio do qual o enunciador informa sobre fatos ou eventos pontuais anteriores ao instante de enunciação, sem criar nenhum tipo de perspectiva específica (MATTE BON, 1995). Em outras palavras, podemos afirmar que tais formas verbais indicam que os fatos extralinguísticos expressados têm um início e um fim anteriores ao momento da ocorrência do enunciado, mesmo que nem sempre as coordenadas temporais estejam explicitadas nos enunciados. Por exemplo, no início do conto A la deriva, do escritor uruguaio Horácio Quiroga, podemos perceber um efeito de sentido de uma narrativa temporal de uma sequência de acontecimentos no seguinte fragmento: “El hombre pisó algo blanduzco, y en seguida sintió la mordedura adelante. Saltó adelante, y al volverse con un juramento, vió una yararacusú que arrolada sobre si misma esperaba el ataque. (…)” (QUIROGA, 2002 [1999], p. 29). Neste fragmento, as formas verbais no pretérito indefinido del indicativo indicam este encadeamento de fatos pontuais, o que se faz evidente pela presença dos marcadores “y en seguida” e “y al volverse com um juramento”, sem que se perceba algum envolvimento aparente do narrador frente ao que ocorre com a personagem da trama, e tal efeito de sentido poderá ser visualizado ao longo de todo o conto. Em SCHIITES, R. S. Aspecto verbal e... 37 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE linhas gerais, as formas verbais perfectivas são empregadas para dar um efeito de sentido de pontualidade e imparcialidade perante o que é enunciado. Por sua vez, as formas de aspecto imperfectivo constam do presente del indicativo7, pretérito imperfecto del indicativo e as demais formas simples (GÓMEZTORREGO, 2007). O pretérito imperfeito do indicativo se caracteriza por ser um tempo marcado cronologicamente em um momento anterior ao instante de enunciação, mas com usos frequentemente relacionados ao presente e ao futuro. Estas formas são comumente usadas pelo enunciador para apresentar acontecimentos passados, criando uma perspectiva ou marco contextual para outros fatos relatados, ou alguma situação que se pretende evocar (MATTE BON, 1995). Por exemplo, no início do microconto La fe y las montañas, de Augusto Monterroso, temos uma espécie de descrição contextual, conforme o seguinte fragmento: Al principio la Fe movía montañas sólo cuando era absolutamente necesario, con lo que el paisaje permanecía igual a sí mismo durante milenios. Pero cuando la Fe comenzó a propagarse y a la gente le pareció divertida la idea de mover montañas, éstas no hacían sino cambiar de sitio (…). (MONTERROSO, 1969, p. 19) Ao início deste fragmento, podemos notar que as formas verbais no imperfecto del indicativo criam um marco contextual (um tempo longínquo onde a Fé só movia montanhas quando era necessário) para toda a narrativa que virá a seguir, cujo nó desencadeador será a propagação desta fé que consideramos ser apresentada como um personagem da trama devido ao uso da inicial em caixa alta. Para finalizar esta sessão, podemos afirmar que as constatações anteriores nos permitem articular as categorias verbais com o segundo eixo teórico que orienta esta pesquisa: a Linguística da Enunciação (doravante LE). Conforme nos apresenta Francisco Matte Bon: “El presente del indicativo (…) se caracteriza por ser el tiempo menos marcado de los que existen en el español. Este tiempo está estrechamente relacionado con un presente cronológico bastante amplio que rebasa los límites del momento mismo de la enunciación; (…)” (MATTE BON, 1995, p. 14). 7 SCHIITES, R. S. Aspecto verbal e... 38 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE 2.2. LINGUÍSTICA DA ENUNCIAÇÃO Linguística da Enunciação é o ramo da Linguística que se dedica ao estudo dos fenômenos enunciativos e das marcas discursivas do sujeito no enunciado, e considera a enunciação como um momento único e irrepetível. Neste sentido, a enunciação é definida por Émile Benveniste (2006, p. 82) como “este colocar em funcionamento a língua por um ato individual de utilização”. Nesta definição, podemos notar a ênfase que o autor dá não só ao estudo da língua em seu contexto de uso, como também ao lugar da subjetividade8 na língua, na medida em que ela só pode ser manifestada por um locutor, definido como o sujeito discursivo que coloca a língua em funcionamento. Sendo assim, ao produto deste ato de enunciação chamamos de enunciado. A partir desta característica, podemos colocar o que se denomina quadro figurativo da enunciação, no qual são colocadas duas figuras necessárias no discurso, uma origem (eu) e outra fim da enunciação (tu). No que tange a este trabalho, estas noções serão pertinentes devido às possíveis intersecções entre os pressupostos sobre o Sistema Verbal, problematizados anteriormente, e os conceitos benvenisteanos. O que possibilita articular tais perspectivas teóricas é o fato de que ambas consideram, dentro de seus respectivos objetos de estudo, o sujeito como uma entidade presente no discurso e ambas se propõem a discutir as marcas discursivas que permitem a interpretação dos interlocutores em contextos de interação. Entendemos por subjetividade a capacidade do locutor/enunciador para se reconhecer e se declarar como sujeito (BENVENISTE, 2006, p. 286). 8 SCHIITES, R. S. Aspecto verbal e... 39 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE 3. METODOLOGIA Esta pesquisa consiste de um trabalho de revisão bibliográfica9 que constará de dois eixos metodológicos: o método qualitativo-quantitativo e o paradigma indiciário. 3.1. MÉTODO QUALITATIVO-QUANTITATIVO Com relação ao nosso primeiro pressuposto metodológico, optamos por uma combinação entre procedimentos analíticos de base quantitativa e qualitativa. O método qualitativo ocupa um lugar de destaque no âmbito das ciências humanas, sobretudo na área da educação. Tal afirmação é pertinente uma vez que a metodologia propõe uma abordagem que considere a compreensão e a interpretação de dados em detrimento da mera descrição ou explicação de um fenômeno na construção de saberes (TOZONI-REIS, 2010). Escolhemos uma pesquisa qualitativa para este trabalho devido à possibilidade de explicar os fenômenos provenientes das marcas enunciativo-discursivas dos enunciadores por meio dos conceitos apresentados em nossa fundamentação teórica. Por outra parte, ainda que este trabalho não consista da mera quantificação de formas verbais, a reincidência e a reiteração de uma determinada categoria verbal, por exemplo um determinado aspecto verbal, deverão ser consideradas, e por esse motivo apresentaremos, em um primeiro momento, uma tabela na qual quantificamos as formas verbais. Em outras palavras, acreditamos que os dados de base quantitativa Um trabalho de revisão bibliográfica constitui-se em uma busca de dados em bibliografias especializadas para a produção de conhecimento. Nesta pesquisa, a revisão bibliográfica se dá no momento em que buscamos autores, teorias e conceitos para realizar uma pesquisa na qual possamos discutir como as marcas discursivas podem ser relevantes na construção da noção de tempo cíclico como um efeito de sentido da enunciação. 9 SCHIITES, R. S. Aspecto verbal e... 40 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE darão maior consistência ao nosso procedimento analítico. Neste sentido, convém assinalar que a predominância de um determinado tipo de formas verbais influenciará na construção de um possível efeito de sentido deste discurso literário por parte dos enunciatários. Tais fatos são relevantes porque iremos investigar se, a exemplo da monografia do autor desta pesquisa, as formas de aspecto imperfectivo teriam um maior peso na construção da circularidade temporal. Em suma, trabalhamos com a hipótese de que um simulacro da concepção de tempo cíclico no conto de Borges se construiria a partir das marcas aspectuais do sistema verbal e da reiteração de formas verbais e, para contemplar tais discussões, dividimos nosso processo analítico em três etapas. Na primeira etapa será apresentada uma tabela quantitativa na qual iremos detalhar quais formas verbais são predominantes, também comparando a incidência dos verbos de aspecto perfectivo e imperfectivo. Na segunda etapa iremos discutir como estes resultados influenciam na construção da temporalidade circular, usando alguns exemplos do próprio corpus da pesquisa. Por fim, na terceira e última etapa, trabalharemos a questão das possíveis reiterações e sua influência na construção do já citado efeito de sentido. 3.2. PARADIGMA INDICIÁRIO O Paradigma Indiciário é um modelo epistemológico que propõe uma investigação minuciosa que articule conhecimentos de diversas naturezas, como meio de interpretação da realidade e, de acordo com o historiador italiano Carlo Ginzburg (1989), surge no âmbito das ciências humanas no final do século XIX. O historiador (GINZBURG, 1989) enfatiza que a característica primordial deste saber é a capacidade de, a partir de dados aparentemente negligenciáveis, remontar a uma realidade complexa não experimentável diretamente. Estes pressupostos metodológicos servem como base teórica para as nossas análises linguísticas e fundamentam nossa pesquisa SCHIITES, R. S. Aspecto verbal e... 41 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE na medida em que, para investigar o fenômeno das marcas discursivas no que tange às categorias verbais e da noção de tempo cíclico em Las ruinas circulares, não nos limitaremos apenas à materialidade linguística deste conto, e teremos como suporte argumentativo exemplos de outras obras de Jorge Luis Borges. 4. RESULTADOS E DISCUSSÕES Segundo nossa quantificação das formas verbais do conto Las ruinas circulares, as formas mais predominantes são o pretérito indefinido del indicativo, seguido do pretérito imperfecto del indicativo, conforme a seguinte tabela: Forma verbal Aspecto Quantidade indefinido del Perfectivo 84 imperfecto del Imperfectivo 72 Presente del indicativo Perfectivo 13 Perífrasis verbal Haber + verbo particípio Perfectivo 8 Pretérito perfecto compuesto Perfectivo 5 Pretérito indicativo Pretérito indicativo A forte presença de marcas discursivas sugere ao interlocutor uma narrativa de uma sequência de fatos ocorridos em um ponto anterior ao instante de enunciação. Porém, no caso desta materialidade literária enquanto discurso, não podemos visualizar um efeito de sentido de precisão temporal. Este simulacro de imprecisão se faz evidente pelo tipo de marcadores temporais usados como, por exemplo, “en la unánime noche” (parágrafo 1), “A las nueve o diez noches” (parágrafo 4), “una tarde” (parágrafo 4), “Casi imediatamente” (parágrafo 5). É importante notar que as formas SCHIITES, R. S. Aspecto verbal e... 42 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE verbais predominantes nesta materialidade são de aspecto perfectivo, ou seja, lhes seriam atribuídas comumente uma perspectiva de ações pontuais acabadas. Porém, relacionados a estes marcadores, a pontualidade dos fatos dá lugar a uma ideia de ambiguidade temporal, o que não seria compatível com uma perspectiva de tempo linear, como podemos observar na seguinte sequência enunciativa, que aparece logo ao início do conto: Nadie lo vio desembarcar en la unánime noche, nadie vio la canoa de bambú sumiéndose en el fango sagrado, pero a los pocos días nadie ignoraba que el hombre taciturno venía del Sur y que su patria era una de las infinitas aldeas que están aguas arriba (…) (BORGES, 2011[1941], p. 57). Tal efeito também é presente na descrição do espaço e do personagem, ao qual o enunciador se refere como “el hombre” ou “el forasteiro” ao longo de toda a narrativa. Acreditamos que o uso destes marcadores, vinculado às formas verbais de pretérito indefinido, é um dos elementos que contribuem para que os enunciatários percebam um efeito de simulacro de circularidade temporal, já que não remetem a um instante preciso na linha do tempo. Outra tendência que podemos visualizar no que tange às marcas discursivas do sistema verbal se relaciona ao uso do pretérito indefinido e do presente do indicativo para a narração das ações de personagem, e do pretérito imperfecto para as descrições espaciais e de estado mental do personagem. Estas descrições de estado mental referem-se, principalmente, às reflexões do narrador no que diz respeito ao mundo interior do personagem e aos sonhos, que são um elemento importante na trama dessa narrativa, conforme a seguinte sequência enunciativa: Al principio, los sueños eran caóticos; después, fueron de naturaleza dialéctica. El forastero se soñaba en el centro de un anfiteatro circular que era de algún modo el templo incendiado: nubes de alumnos taciturnos fatigaban las gradas; las caras de los últimos pendían a muchos siglos de distancia y a una altura estelar, pero eran de todo precisas. (BORGES, 2011 [1941], p. 58). SCHIITES, R. S. Aspecto verbal e... 43 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE No fragmento acima, podemos notar o efeito de ambiguidade e indeterminação também aplicado à descrição espacial dentro deste “mundo dos sonhos” do personagem. Tal efeito se põe em evidência se atentamos, para além das formas verbais, à expressão “de algún modo”, que causa nos interlocutores uma espécie de estranheza quanto ao espaço, que seria algo entre o “anfiteatro circular” e o “templo incendiado”. Podemos notar que em alguns parágrafos, especialmente aqueles que remetem de alguma maneira aos sonhos do personagem principal, predominam as formas do pretérito de aspecto imperfectivo, com uma incidência maior do pretérito imperfecto del indicativo, que, segundo Matte Bon (1995), são frequentemente empregadas para narrar fatos sucedidos em sonhos. Tal mecanismo linguístico também é empregado em La cucaracha soñadora, de Augusto Monterroso: Era una vez una Cucaracha llamada Gregorio Samsa que soñaba que era una Cucaracha llamada Franz Kafka que soñaba que era un escritor que escribía acerca de un empleado llamado Gregorio Samsa que soñaba que era una Cucaracha. (MONTERROSO, 1969, p. 51). Em Verbo, microconto e enunciação: uma perspectiva para um trabalho enunciativo sobre as formas verbais em sala de aula, concluímos que, neste microconto, a predominância e a reiteração de formas verbais de aspecto imperfectivo, vinculadas à ausência de pontuação e ao sequenciamento da aparição dos personagens sugerem um simulacro de concepção de tempo cíclico. Tal fato mostra que o uso de formas verbais de aspecto imperfectivo é comum em materialidades discursivas nas quais um dos possíveis efeitos de sentido que podem ser vislumbrados é o do simulacro de uma concepção circular de tempo. Outro elemento que julgamos importante para a construção do já citado efeito de sentido está relacionado ao uso reiterado de certas formas verbais, que, a exemplo SCHIITES, R. S. Aspecto verbal e... 44 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE do microconto discutido anteriormente, no caso do conto de Borges, também se confirma no tocante às marcas discursivas do enunciado relacionadas ao sistema verbal. Em outras palavras, em Las ruinas circulares também verificamos que alguns verbos aparecem não só frequentemente ao longo do texto, como também aparecem em uma sequência não muito distante, o que colabora com um simulacro de tempo cíclico. Podemos visualizar tal artifício discursivo já ao final do primeiro parágrafo da obra, com o verbo saber conjugado em pretérito imperfecto del indicativo aparecendo três vezes ao longo da sequência enunciativa a seguir: Sabía que ese templo era el lugar que requería su invencible propósito; sabía que los árboles incesantes no habían logrado estrangular, rio abajo, las ruinas de templo propicio, también de dioses incendiados y muertos; sabía que su inmediata obligación era el sueño. (BORGES, 2011 [1941], p. 58). O mecanismo da reiteração de formas verbais será comum ao longo deste conto de Borges, e outra forma verbal emblemática neste sentido é a forma verbal “soñar”, como poderemos visualizar no seguinte trecho da obra: “Lo soñó activo, caluroso, secreto, del grandor de un puño, color granate en la penumbra de un cuerpo humano aun sin cara ni sexo; con minucioso amor lo soñó, durante catorce lúcidas noches” (BORGES, 2011 [1941], p. 60). Nesta sequência enunciativa temos a forma verbal em terceira pessoa do singular, conjugada no pretérito indefinido del indicativo, separada por somente um punticoma. É importante notar que este mesmo verbo também aparece no período anterior ao fragmento (“Casi imediatamente, soñó um corazón que latia”), o que reforçaria este efeito de tempo cíclico, já que a percepção humana do tempo nos sonhos não obedece à lógica de linearidade temporal. A frequência da reiteração desta forma verbal, que semanticamente já carrega uma significação de quebra do tempo linear, por parte do enunciador é emblemática, já que tal forma aparece aproximadamente treze vezes ao longo deste conto. SCHIITES, R. S. Aspecto verbal e... 45 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE Por outra parte, podemos considerar como outro tipo de reiteração quando uma mesma forma verbal assume uma função morfológica diferente em um mesmo período, o que proporciona ao interlocutor uma espécie de jogo de palavras, como o seguinte trecho: “En el sueño del hombre que soñaba, el soñado se desperto (...)” (BORGES, 2011 [1941], p. 62). Neste mesmo enunciado temos três diferentes palavras que se inserem em um mesmo campo semântico: “sueño” (substantivo), “soñaba” (verbo pret. imperf) e “soñado” (substantivo). Por meio do emprego destas três palavras desta sequência enunciativa, o enunciador cria este jogo de palavras, que não só cria um efeito sonoro por meio dos fonemas /S/ e /Ñ/, como também sugere esta concepção de tempo cíclico presente na trama do romance de modo mais explícito, já que podemos entender que o homem que dormia (que soñaba) era o mesmo homem que dormia no sonho (el soñado). Por fim, outra forma verbal frequente nesta materialidade literária é o verbo “comprender" conjugado da terceira pessoa do singular (pois se refere ao personagem principal da trama) em pretérito indefinido del indicativo, que, além de aparecer duas vezes no quarto parágrafo em sequências enunciativas subsequentes, aparece ao final do conto: “Con alivio, con humillación, con terror, comprendió que él también era una apariencia, que otro estaba soñándolo” (BORGES, 2011 [1941], p. 64). Neste enunciado que encerra o conto, temos o simulacro de circularidade temporal sugerido de modo mais contundente e enfático, o que se dá pelo uso desta forma verbal em aspecto perfectivo, ou seja, um efeito de pontualidade ao fato narrado. Em outras palavras, o fenômeno mental da compreensão deste personagem e de sua situação (que ele também era uma aparência) se dá em um instante determinado, ainda que não especificado com exatidão ao longo da trama. É importante ressaltar que marcas discursivas similares também se fazem presente em SCHIITES, R. S. Aspecto verbal e... 46 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE outras obras do escritor argentino como, por exemplo, Biografía de Tadeo Isidoro Cruz (1949) e El muerto (1949)10. Porém, não somente nesta sequência enunciativa como também ao longo de todo o texto, temos um jogo entre formas de aspecto perfectivo e outras de aspecto imperfectivo (no caso do fragmento acima, “era” e “estaba soñandolo”) que dão um efeito de sentido de continuidade e de repetição nesta espécie de mundo interior do personagem. É importante perceber que, ao longo de todo o conto, este simulacro de tempo cíclico não se constrói apenas por meio das marcas verbais de aspecto imperfectivo. 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS Considerando as discussões propostas neste trabalho, pudemos comprovar a relevância da análise das formas verbais, enquanto entidades enunciativo-discursivas, na (re)construção de possíveis sentidos para uma determinada materialidade linguística. Sendo o verbo uma ferramenta do enunciador na conversão de fatos extralinguísticos em elementos de uma composição linguística, é conveniente assinalar que um estudo das três citadas categorias verbais pode servir de base argumentativa para algumas questões, não somente da área de Linguística, como também da Literatura. Dito isso, podemos afirmar que, por meio dessa pesquisa, podese vislumbrar, ainda que se respeite o escopo teórico de ambas as áreas, algumas intersecções entre estes campos de estudo, o que rende discussões pertinentes no que diz respeito à análise linguística de textos literários. No tocante à nossa hipótese de relacionar o efeito de sentido do simulacro de uma noção de tempo cíclico às formas verbais de aspecto perfectivo, tal como 10 Estes dois contos fazem parte da obra El Aleph, publicada pela primeira vez no ano de 1949. SCHIITES, R. S. Aspecto verbal e... 47 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE pudemos confirmar na análise feita em nosso trabalho anterior sobre o microconto La cucaracha soñadora, de Augusto Monterroso, não se confirmou integralmente para esta pesquisa. Acreditamos que isto se deve, primeiramente, à diferença de extensão de ambas as materialidades linguísticas, o que acarretaria em diferentes estratégias discursivas por parte do enunciador. Neste sentido, também podemos concluir que este mesmo efeito de sentido também pode estar atrelado ao uso de formas verbais de aspecto perfectivo, como podemos visualizar ao longo da etapa dos resultados e discussões. Também pudemos visualizar que a reiteração de formas verbais, ora idênticas, ora similares, configura-se em aspecto relevante na instauração de uma ideia de circularidade temporal. No caso da materialidade linguística analisada, pudemos constatar que estas repetições e reiterações vinculadas a outros mecanismos discursivos como, por exemplo, o uso de determinados complementos circunstanciais, causam um efeito de quebra de linearidade temporal. Finalizando esta discussão, cabe agora questionar sobre as implicações didáticas deste tipo de análise de uma materialidade literária em língua espanhola. Neste âmbito, podemos dizer que, ainda que nossa análise não tenha dado conta deste aspecto específico, este trabalho destaca as escolhas verbais do enunciador como primordiais na construção de diversos efeitos de sentido que terão influência na forma de recepção deste texto por seus interlocutores. Salientamos esta pertinência de um estudo linguístico sobre textos literários, já que tal materialidade proporciona uma (auto)crítica sobre quem somos enquanto seres humanos, por “sua construção discursiva ser a menos pragmática, a que menos se baseia em uma aplicação prática” (OCEM, 2006, p. 49), e por se configurar como um lugar de interação entre interlocutores. SCHIITES, R. S. Aspecto verbal e... 48 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE REFERÊNCIAS ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia/Nicola Abbagnano. (1971). Trad. Alfredo Bosi. São Paulo: Martins Fontes, 1998. BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem: Problemas fundamentais do método sociológico na linguagem. São Paulo: Hucitec, 2014. BEAUGRANDE, Robert de. New foundations for a Science of Text and Discourse: cognition, communication and the Freedom of Access to Knowledge and Society. Norwood: Ablex, 1997. BENVENISTE, Émile. Problemas de linguística geral I e II. 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Aspecto verbal e... 50 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE ESTRATÉGIAS DE INTERAÇÃO DISCURSIVA EM ARTIGOS DE OPINIÃO DA REVISTA AMERICANA THE NEW YORKER DISCURSIVE INTERACTION STRATEGIES IN OPINION ARTICLES IN THE NEW YORKER MAGAZINE José Orlando Cardoso do Monte Júnior1 RESUMO: Analisamos quatro artigos de opinião publicados na revista americana The New Yorker a fim de investigar marcas de interação discursiva na modalidade escrita da língua inglesa. Os textos foram publicados entre 2013 e 2016 e tratam de assuntos relacionados às cenas política, social e cultural norte-americanas. Três deles (“Life and Undeath”, “Stop Humiliating Teachers” e “The Limits of ‘Grit’”) são de autoria do crítico cultural americano David Denby; o outro (“The Semiotics of ‘Rose Gold’”), é da jornalista e escritora britânica Rebecca Mead. A imagem discursiva do enunciador (seu ethos), construída na interação com seu destinatário presumido, constitui nosso tema global. As evidências linguísticas que fundamentam nossa pesquisa apontam para a recorrência de traços interacionais no discurso argumentativo. Por meio da análise de nosso corpus, propomos que as estratégias de interação dialógica devem informar o desenvolvimento do conhecimento necessário à recepção e à produção de textos argumentativos, o que discutimos à luz de estudos do discurso desenvolvidos por Dominique Maingueneau (2008; 2011) e Ken Hyland (2005), entre outros. Palavras-chave: interação discursiva; língua inglesa; análise do discurso. ABSTRACT: We analyzed four opinion articles published in the American magazine The New Yorker in order to investigate discursive interaction markers in the written form of the English language. The texts were published between 2013 and 2016 and deal with issues related to North American political, social and cultural scenes. Three of them (“Life and Undeath”, “Stop Humiliating Teachers”, and “The Limits of 'Grit”) are authored by American cultural critic David Denby, and the other (“The Semiotics of ‘Rose Gold’”) was written by the British journalist and writer Rebecca Mead. The linguistic evidence on which our research is based points to the recurrence of interactional traits in argumentative discourse. Through the analysis of our corpus, we propose that dialogic interaction strategies should inform the development of the necessary knowledge for the reception and production of argumentative texts, which we discuss by the light of discourse studies developed by Dominique Maingueneau (2008; 2011) and Ken Hyland (2005), among others. Keywords: discursive interaction; English language; discourse analysis. 1 Doutorando em Letras, UFPR. MONTE JÚNIOR, J. O. C. do. Estratégias de Interação... 51 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE 1. INTRODUÇÃO A relação entre o fenômeno da linguagem e as condicionantes socioculturais de seu desenvolvimento no tempo e no espaço é tópico imprescindível de todo debate linguístico na contemporaneidade. Mais do que isso, tal relação de dependência já é parte constituinte dos estudos linguísticos. No entanto, ainda não são abundantes os trabalhos em que esse aspecto fundamental da comunicação verbal humana seja tratado por meio da investigação dos mecanismos internos aos textos que evidenciam empiricamente a união primordial entre o discurso e suas condições de produção e uso. Em textos argumentativos, tais mecanismos traduzem-se principalmente em elementos pragmático-discursivos por meio dos quais o enunciador constrói sua relação com o interlocutor, real ou presumido: a eficácia da argumentação está diretamente relacionada à habilidade do enunciador em prever as possíveis expectativas e reações de sua audiência. Com base nessas ideias, pretendemos discutir aqui especialmente: (1) As estratégias de interação discursiva que integram a atitude do enunciador de um texto em relação ao seu destinatário; (2) O ethos discursivo que é manifesto a partir do texto devido ao uso dessas estratégias; e (3) As formas linguísticas específicas que tais estratégias podem assumir em textos argumentativos produzidos em inglês; o que fazemos, aqui, concentrando-nos em quatro artigos de opinião produzidos por dois articulistas para a revista americana The New Yorker. MONTE JÚNIOR, J. O. C. do. Estratégias de Interação... 52 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE Nosso corpus é constituído de três artigos do jornalista e crítico cultural americano David Denby, e de um artigo da jornalista e escritora inglesa Rebecca Mead, todos publicados na revista The New Yorker entre 2013 e 2016. A seleção desses textos se justifica pelo fato de cada um deles servir de amostra do uso abundante e eficiente, que tanto Denby quanto Mead fazem, de estratégias dialógicas — ou interacionais, nos termos de Geoff Thompson (2001) e Ken Hyland (2005), nossas principais referências metodológicas. Pretendemos, por meio da explicitação dessas estratégias, estabelecer uma identidade discursiva (um ethos) para os dois articulistas, os quais, cada um a sua maneira, com semelhanças e diferenças, buscam a criação e manutenção de um relacionamento colaborativo com os destinatários (o pathos) que parecem ter em mente. Com isso, esperamos oferecer ao nosso leitor a oportunidade de observar como o reconhecimento e a explicitação da presença de um interlocutor na materialidade linguística do discurso pode se converter em uma ferramenta valiosa no uso dos recursos interacionais específicos de que a língua inglesa, como de resto qualquer outra língua, dispõe. Nosso interesse pela análise de marcas de interação em textos argumentativos da esfera jornalística de língua inglesa é motivado, também, pela percepção, compartilhada por Xiaoli Fu e Ken Hyland (2004), de que os discursos em inglês disponíveis ao público em geral, como os da imprensa escrita, não tiveram, ainda, seus mecanismos interacionais de persuasão tão escrutinados pelos estudos aplicados do discurso quanto os da esfera acadêmica, por exemplo: Há muito para os estudantes aprenderem nas maneiras como os autores se engajam com seus leitores e procuram aumentar o poder de persuasão de seus textos. Ao chamar a atenção para essas características, os professores podem sensibilizar os alunos em relação às práticas persuasivas contemporâneas nos MONTE JÚNIOR, J. O. C. do. Estratégias de Interação... 53 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE discursos públicos e ajudá-los a se tornarem leitores mais críticos e escritores eficazes.”2 (FU & HYLAND, 2014, p. 142, tradução nossa) A análise das marcas de interação discursiva na modalidade escrita de uma determinada língua está diretamente relacionada à observação dos indícios linguísticos da imagem que o enunciador de um texto constrói diante de seu destinatário. A essa imagem Maingueneau (2008; 2011) relaciona o conceito de ethos discursivo. Para o autor, a constituição do ethos se trata, em última instância, da identificação do sujeito inscrito no interior do discurso com uma certa representação social, determinada pelo conjunto de características que são histórica e coletivamente atribuídas a diferentes grupos de indivíduos com base em “situações estereotípicas associadas a comportamentos.” (MAINGUENEAU, p. 18, 2011) Ora, a imprensa, tanto nos gêneros escritos quanto em seus formatos audiovisuais, representa um dos principais veículos de criação e disseminação de estereótipos e dos ethe a eles relacionados. E uma posição central é ocupada, nesse panorama, pelos veículos midiáticos de língua inglesa. A sociedade norte-americana, em especial — e, consequentemente, a comunidade global influenciada pelo expansionismo sócio-econômico-cultural dos Estados Unidos — tem no discurso da imprensa um dos pilares de sua identidade. Concomitantemente, o crescimento do acesso à Internet, fenômeno iniciado há mais de duas décadas, alterou consideravelmente a relação do resto do mundo com a língua inglesa. Mais do que o idioma predominante na circulação de informação e na produção de conhecimentos das mais diversas naturezas, o inglês passou a delimitar um espaço de intersecção entre usuários de outras línguas oriundos de diferentes culturas — e de diferentes regimes de ethe. No original: “There is much for students to learn from the ways authors engage with their readers and seek to enhance the persuasiveness of their texts. By drawing attention to these features, teachers may be able to raise students’ awareness of contemporary persuasive practices in public discourses and to help them become more critical readers and effective writers.” (FU & HYLAND, 2014, p. 142) 2 MONTE JÚNIOR, J. O. C. do. Estratégias de Interação... 54 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE Nossa proposta volta-se para a análise de textos produzidos por dois formadores de opinião atuantes em um veículo estadunidense, ambos ocupados da discussão de questões socioculturais relevantes para seu país (e, presumivelmente, para todos os usuários de inglês e “consumidores” da cultura de língua inglesa espalhados pelo mundo). Somos motivados pelo desejo de pôr em evidência as marcas linguísticas que caracterizam um discurso habitado pelas múltiplas formas que o ethos discursivo pode assumir, considerando as implicações discursivas do uso continuado de representações sociais, no sentido de compreender os valores, comportamentos e identidades que elas veiculam. 2. LINGUA(GEM) E INTERAÇÃO O ato de falar ou escrever nunca é completamente controlado pelo falante/escritor, o qual, na busca pela legitimação daquilo que fala/escreve, acaba respondendo e adiantando respostas de seus interlocutores virtuais (ou mesmo reais), na tentativa constante de estabelecer sua posição na arena de vozes circunscrita pelo discurso social. Na esteira dessas ideias linguísticas do Círculo de Bakhtin, Faraco e Negri (1998) sugerem: Pode-se dizer que há, em todo gesto enunciativo, uma orientação dialógica, isto é, todo enunciado, emergindo sempre no ambiente dialogicamente agitado e cheio de tensões das vozes sociais, se põe (explícita ou implicitamente) como uma resposta a outros enunciados, concordando com eles ou deles discordando, reacentuando-os ou fundindo-se com eles; parafraseando-os ou parodiando-os. (FARACO & NEGRI, 1998, p. 167, grifos do original) Essa concepção da lingua(gem) tem uma consequência importante para o tipo de problema que investigamos aqui: a identidade discursiva que individualiza um enunciador é manifesta linguisticamente nas marcas de interação dos enunciados que ele produz. A opção por expressar as ideias no texto dialogicamente torna o processo MONTE JÚNIOR, J. O. C. do. Estratégias de Interação... 55 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE discursivo mais centrado no destinatário e, portanto, mais eficaz do ponto de vista comunicativo. Ancorados nessa concepção interativa da escrita, propomos uma análise de textos focada na ilustração daquilo que Carlos Alberto Faraco nos diz sobre o que a heteroglossia dialogizada discutida por Mikhail Bakhtin3 significa para a produção e interpretação de signos linguísticos: “o material semiótico pode ser o mesmo, mas sua significação no ato social concreto de enunciação, dependendo da voz social em que está ancorado, será diferente.” (FARACO, 2009, p. 52, grifo nosso) A voz a que Faraco (2009) alude evoca o conceito de ethos discursivo, tal como caracterizado em Maingueneau (2008): Em última instância, a questão do ethos está ligada à da construção da identidade. Cada tomada de palavra implica, ao mesmo tempo, levar em conta representações que os parceiros fazem um do outro e a estratégia de fala de um locutor que orienta o discurso de forma a sugerir através dele certa identidade. (pp. 59-60) Maingueneau defende uma concepção de ethos ligada à relação que se desenrola entre os interlocutores durante uma situação de comunicação: [O] ethos é fundamentalmente um processo interativo de influência sobre o outro [...]. Além da persuasão pelos argumentos, a noção de ethos permite refletir sobre o processo mais geral da adesão dos sujeitos a determinado posicionamento [...]. A meu ver, a noção de ethos é interessante por causa do laço crucial que mantém com a reflexividade enunciativa, mas também porque permite articular corpo e discurso em uma dimensão diferente da oposição empírica entre oral e escrito. A instância subjetiva que se manifesta por meio do discurso não pode ser concebida como um estatuto, mas como uma “voz”. (MAINGUENEAU, 2008, pp. 63-64) Ao conceber o ethos em termos de um “posicionamento” ou uma “voz” que “se constitui por meio do discurso” (MAINGUENEAU, 2008, p. 63), Maingueneau se alinha A saber: “Aquilo a que chamamos de língua é também e principalmente um conjunto indefinido de vozes sociais. A multidão de vozes sociais caracteriza o que tecnicamente se tem designado de heteroglossia (ou plurilinguismo).” (FARACO, 2009, p. 57, grifos do original) 3 MONTE JÚNIOR, J. O. C. do. Estratégias de Interação... 56 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE a outras abordagens da relação intradiscursiva entre parceiros de interação. Paul Kei Matsuda (2015), por exemplo, fala de uma “identidade construída e negociada pelo discurso, que é capturada por conceitos como ethos e voz”4 (p. 144, tradução nossa). Douglas Biber e Edward Finegan (1989), e Hyland (2005) trabalham com a ideia de um posicionamento, ou postura (‘stance’, em inglês) assumida pelo falante/escritor em relação àquilo que diz/escreve e àquele que o ouve/lê. Essas abordagens compartilham a ideia de que a identidade discursiva é orquestrada na inter-relação entre a materialidade linguística do texto e o nível tácito do discurso que é engendrado pelas escolhas léxico-gramaticais feitas por seu produtor com vistas a engajar a audiência. Por meio de indícios encontrados na materialidade linguística de um texto, o destinatário poderá construir e incorporar uma imagem discursiva do enunciador. Segundo Maingueneau (2011), essa imagem cumpre o papel de “fiador” do discurso: Todo texto escrito, mesmo que o negue, tem uma “vocalidade” que pode se manifestar numa multiplicidade de “tons”, estando eles, por sua vez, associados a uma caracterização do corpo do enunciador (e, bem entendido, não do corpo do enunciador extra discursivo), a um “fiador”, construído pelo destinatário a partir de índices liberados na enunciação. (MAINGUENEAU, 2011, pp. 17-18) Matsuda (2001) define essa “vocalidade” como “o efeito do uso de um amálgama entre elementos discursivos e não-discursivos que usuários da língua escolhem, deliberadamente ou não”5 (p. 40, tradução nossa). Por meio de suas escolhas (de palavras, de argumentos, de modos de organização textual), um enunciador veiculará de si uma impressão, uma atitude, já que “a identidade discursiva do escritor — que é No original: “Identity as constructed and negotiated through discourse, which is captured by concepts such as ethos and voice.” (MATSUDA, 2015, p. 144) 5 No original: “The amalgamative effect of the use of discursive and non-discursive features that language users choose, deliberately or otherwise.” (MATSUDA, 2001, p. 40) 4 MONTE JÚNIOR, J. O. C. do. Estratégias de Interação... 57 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE criada por suas escolhas e pelas manifestações textuais dessas escolhas — é, em última instância, percebida pelo leitor”6 (MATSUDA, 2015, p. 145, tradução nossa). Nessa perspectiva, então, a recepção de um texto integra um processo de atribuição de uma imagem ao enunciador a qual definirá o grau de engajamento do destinatário com o discurso e, portanto, o grau da eficácia desse discurso. Hyland (2005) argumenta que quando a postura do enunciador é inclusiva em relação ao interlocutor presumido, ou seja, quando há diálogo com a audiência do texto, as chances de engajamento aumentam consideravelmente, o que indica que a interatividade é um recurso persuasivo importante. E é exatamente este aspecto que nossa análise de artigos da revista The New Yorker pretende investigar: como os articuladores trabalham recorrentemente certos elementos na construção dos sentidos pretendidos, ao mesmo tempo em que constroem uma imagem para si. Essa imagem (ou ethos), como pretendemos demonstrar, está sempre próxima de um relacionamento dialógico com os traços identitários presumidos no interlocutor (seu pathos) e com as contingências do contexto sociocultural em que os artigos são produzidos. 3. AOS TEXTOS: ANÁLISE E DISCUSSÃO O excerto a seguir pertence ao artigo7 intitulado “Life and Undeath”, uma resenha crítica de David Denby do filme Guerra Mundial Z (World War Z, PFISTER, 2013)8: No original: “The writer’s discursive identity — which is created by the writer’s choices and the textual manifestations of those choices — is ultimately perceived by the reader.” (MATSUDA, 2015, p. 145) 7 Os artigos analisados neste trabalho e outros de David Denby e Rebecca Mead podem ser lidos, na íntegra, no site da revista The New Yorker na Internet: http://www.newyorker.com/. 8 Apresentamos versões traduzidas (por nós) dos excertos analisados apenas para referência: pensamos que a natureza do trabalho aqui proposto prescinde de tradução, uma vez que a investigação do ethos depende essencialmente da consideração das escolhas e do trabalho com a 6 MONTE JÚNIOR, J. O. C. do. Estratégias de Interação... 58 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE (1) After seeing “World War Z,” I walked through Times Square, and, as I made my way to the subway, I wondered why the movie — which is, after all, just a very expensive zombie flick — had excited and disturbed me so much. On Broadway, there were no zombies in immediate sight, only a happy and friendly crowd. Yet I felt a vague uneasiness at the sheer number of people milling about — a sense that they could all be transformed into something malevolent or frightened. Absurd? Mere paranoia? Maybe, but who hasn’t felt a tinge of paranoia while walking on crowded streets, particularly streets thronged with barkers for standup comics? The movie […] evokes the hectic density of modern life; it stirs fears of plague and anarchy, and the feeling that everything is constantly accelerating. At times, it has the tone and the tempo of panic. [...] These scenes suggest how quickly a major American city can fall into chaos. But what’s causing the behavior? A viral outbreak? At first, no one uses the word “zombie” — it seems too silly.9 (The New Yorker, 01/07/2013, grifos nossos) Logo de início, tem-se uma narrativa em primeira pessoa que tenta transportar o destinatário do texto para o ambiente imediato do enunciador (“[...] I walked through Times Square, and, as I made my way to the subway, I wondered [...]”). A escolha por essa cenografia dá ao destinatário acesso à subjetividade que é construída e atribuída ao enunciador enquanto este se movimenta pelo espaço discursivo que é construído no/pelo texto (“On Broadway, there were no zombies in immediate sight, only a happy and friendly crowd”). língua inglesa feitos pelos autores dos textos que integram o corpus de nossa pesquisa. Portanto, a consulta a nossas sugestões de tradução deve levar em conta que o trabalho de tradução em si compreende escolhas léxico-gramaticais que alteram consideravelmente os efeitos de sentido dos textos originais. 9 Tradução nossa: “Depois de assistir a Guerra Mundial Z, atravessei a Times Square, e, enquanto me dirigia ao metrô, fiquei me perguntando por que o filme — que é, afinal de contas, só uma fita de zumbis muito cara, havia me entusiasmado e perturbado tanto. Na Broadway, não havia zumbis à vista, apenas uma alegre e agradável multidão. Ainda assim, senti um leve mal-estar com aquela gente toda andando para lá e para cá — uma sensação de que elas poderiam se transformar em algo malévolo ou assustado. Absurdo? Pura paranoia? Talvez, mas quem já não sentiu uma pontinha de paranoia ao andar por ruas movimentadas, particularmente ruas apinhadas de anunciantes de shows de comédia? O filme [...] evoca a densidade frenética da vida moderna; incita o medo de pragas e da anarquia, e a sensação de que tudo está em constante aceleração. Às vezes, [o filme] tem o tom e o ritmo do pânico [...]. Essas cenas sugerem a rapidez com que uma grande cidade americana pode cair no caos. Mas o que está causando esse comportamento? O surto de um vírus? A princípio, ninguém usa a palavra ‘zumbi’ — parece bobo demais”. MONTE JÚNIOR, J. O. C. do. Estratégias de Interação... 59 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE Ainda sobre o excerto (1), queremos apontar para outro elemento comum aos textos de Denby: “Absurd? Mere paranoia? Maybe, but who hasn’t felt a tinge of paranoia while walking on crowded streets, particularly streets thronged with barkers for standup comics? […] But what’s causing the behavior? A viral outbreak?”. As sequências de questionamentos reproduzem possíveis reações do interlocutor ao que fora dito no texto sobre as sensações que o filme produzira no articulista. As perguntas estão aliadas ao uso de um vocabulário que marca a abertura do fiador discursivo à exposição de suas mais sutis impressões (o adjetivo “vague” (vago) e o substantivo “tinge” (toque/traço), por exemplo, parecem-nos reveladores disso). É uma espécie de convite do fiador do discurso a habitar seu mundo (incluído mesmo seu mundo físico, seu espaço geográfico), de modo a abrir para o interlocutor um canal por meio do qual este possa incorporar o ethos do sujeito que enuncia. Isso ilustra de modo interessante a ideia de que “o ethos implica uma maneira de se mover no espaço social, uma disciplina tácita do corpo apreendida através de um comportamento” (MAINGUENEAU, 2011, p. 18), o que, por sua vez, ilustra a noção de que a adesão do destinatário ao mundo ético que o discurso constrói se dá na medida em que “o destinatário a identifica [a maneira de se mover no espaço social] apoiandose num conjunto de representações sociais avaliadas positiva ou negativamente” (p. 18). Esta, aliás, é outra faceta do ethos que emana do texto de Denby exemplificado no excerto (1): a representação que o enunciador faz de si no sentido de posicionar-se entre os habitantes do cenário urbano da cidade de Nova York, o que é ativado por meio das imagens construídas em passagens como as seguintes: “[…] as I walked through Times Square […] as I made my way to the subway […] on Broadway, there were no zombies in immediate sight […] while walking on crowded streets […] how quickly a major American city can fall into chaos […]”. Denby mantém coerência com o discurso que, ao longo do tempo, vem sendo identificado como parte do ethos da New Yorker. A revista dedica boa parte de seu MONTE JÚNIOR, J. O. C. do. Estratégias de Interação... 60 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE espaço editorial à cena sociocultural da cidade de sua origem. E sendo Nova York uma cidade da maior relevância no que se trata de representações socioculturais do modelo de desenvolvimento historicamente atribuído à sociedade norte-americana, a inclusão de Denby nesse panorama parece revelar o cumprimento de um expediente do fiador de seu texto: a incorporação, pelo receptor do discurso, das representações que se pretende associar ao cidadão nova-iorquino típico — ou à faceta dele correspondente ao sujeito que dialoga com o interlocutor presumido do texto. Sobre o desejo expresso pelo sujeito de fazer do destinatário do discurso parte de seu mundo ético, de seu estilo de vida (“[...] who hasn’t felt a tinge of paranoia while walking on crowded streets, particularly streets thronged with barkers for standup comics?”), Maingueneau (2011) relata o que se segue: “As ‘ideias’ suscitam a adesão por meio de uma maneira de dizer que é também uma maneira de ser. Apanhado num ethos envolvente e invisível, o coenunciador faz mais que decifrar conteúdos: ele participa do mundo configurado pela enunciação, ele cede a uma identidade.” (MAINGUENEAU, 2011, p. 29) O mundo construído no/pelo discurso (“Times Square”; “Broadway”; “crowded streets”; “the hectic density of modern life”; “a major American city”) habitado pelas personagens que o enunciador encontra em seu trajeto pelo espaço (“a happy and friendly crowd”; “the sheer number of people”), é o mundo de representações sociais ao qual o destinatário cede no momento em que incorpora o ethos subjacente ao discurso. Se no excerto (1) Denby trabalha no sentido de incorporar seu interlocutor ao lugar social que ocupa, em (2), abaixo, é possível observar outras formas que a interação discursiva pode assumir. O excerto pertence ao artigo intitulado “Stop Humiliating Teachers”10, um comentário de Denby sobre representações populares da profissão docente: 10 “Pare(m) de humilhar professores”. MONTE JÚNIOR, J. O. C. do. Estratégias de Interação... 61 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE (2) Everyone celebrates his or her personal memory of individual teachers, yet, as a culture, we snap at the run-down heels of the profession […]. We have been in such a panic for more than a decade, during which time the attacks on public-school teachers have been particularly virulent […]. Our teachers are mediocre as a mass; we have to make a serious effort to toss out the bad ones before they do any more damage. And so on [...]. There’s an element of this rage at bad teachers that’s hard to talk about, and so it’s often avoided: the dismaying truth that we don’t know how to educate poor inner-city and rural kids in this country […]. Our view of American public education in general has been warped by our knowledge of […] failing kids in inner-city and rural schools. In particular, the system as a whole has been described by “reformers” as approaching breakdown. But this is nonsense. There are actually many good schools in the United States — in cities, in suburbs, in rural areas.11 (The New Yorker, 11/02/2016, grifos nossos) Tanto o enunciador como o destinatário do texto são incluídos entre as vozes que disseminam as representações do sistema educacional e dos professores na sociedade americana (“as a culture, we [...]”, “Our view of […]”). No entanto, essa adesão de Denby a outras vozes (que incluiria a do destinatário) é, claramente, um recurso argumentativo que prepara o terreno para a veiculação de sua absoluta discordância em relação a essas ideias: “But this is nonsense. There are actually many good schools in the United States”. Contando com a conivência do interlocutor do texto, cuja identidade fora construída paralelamente à sua (“we”, “our”), o articulista consegue mais facilmente conduzi-lo a outra visão do tema do artigo, sem que isso pareça um ataque às opiniões que o interlocutor trouxe consigo para a leitura. Tradução nossa: “Todo mundo guarda lembranças de professores especiais, mas, como um traço de nossa cultura, estamos acostumados a implicar com essa profissão [...]. Estamos em estado de pânico há mais de uma década, período em que os ataques contra professores de escolas públicas foram particularmente virulentos [...]. Nossos professores são todos medíocres; temos que fazer de tudo para eliminar os professores ruins antes que eles causem mais danos. E assim por diante [...]. Há um elemento dessa revolta contra maus professores que é difícil de abordar e por isso, muitas vezes evitado: a verdade desalentadora de que não sabemos como educar crianças pobres de cidades rurais ou do interior neste país. Nossa visão geral da educação pública americana tem sido distorcida pelo nosso conhecimento sobre [...] crianças repetentes em escolas rurais e do interior. Em particular, o sistema como um todo tem sido descrito por "reformadores" como algo à beira de uma ruptura. Mas isso é um absurdo. Na verdade, existem muitas boas escolas nos Estados Unidos — nas cidades, nos subúrbios, nas áreas rurais.” 11 MONTE JÚNIOR, J. O. C. do. Estratégias de Interação... 62 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE Em outros textos de Denby, o estabelecimento dessa conexão “pessoal” com o interlocutor é expresso linguisticamente pelo recurso à autorreferenciação: (3) Speaking for myself, the most important element in my social capital as an upper-middle-class New York guy was, indeed, capital — my parents carried me for a number of years as I fumbled my way to a career as a journalist and critic. Did I have grit? I suppose so, but their support made persistence possible.12 (The New Yorker, 21/06/2016, grifos nossos) No excerto (3), retirado do artigo “The Limits of ‘Grit’”, apontamos, ainda, para outro elemento comum aos textos de Denby: a pergunta “Did I have grit?” é claramente atribuída ao destinatário presumido do texto e reproduz uma possível reação dele às considerações de Denby sobre seu processo de formação profissional. A pergunta é respondida com a expressão “I suppose so”, que marca uma concessão hesitante do enunciador à intervenção do interlocutor, mas que é, no entanto, seguida de um contra-argumento, introduzido pelo operador argumentativo but. Para Fu & Hyland (2014), esse tipo de pergunta retórica, quando atribuída ao interlocutor, numa estratégia clara de simulação de diálogo, não só funciona para atraí-lo para o interior do texto e incorporá-lo à argumentação, como o faz estabelecendo uma relação de solidariedade entre enunciador e destinatário. Segundo os mesmos autores, trata-se de uma tentativa de criar empatia e afinidade e demonstrar que enunciador e destinatário conversam em pé de igualdade, já que aquele leva os pontos de vista deste em consideração. (FU & HYLAND, 2014, p. 130) Passemos, agora, a um excerto de um artigo de Rebecca Mead, no qual apontaremos alguns elementos que iremos, depois, contrapor e/ou aproximar da análise que vimos fazendo do discurso de David Denby. Vejamos um trecho do artigo intitulado “The Semiotics of ‘Rose Gold’”, em que Mead, por ocasião do lançamento de Tradução nossa: “Falando por mim, o elemento mais importante do meu capital social como um jovem novaiorquino de classe média alta era, justamente, o capital — meus pais me sustentaram por alguns anos enquanto eu tateava meu caminho em direção a uma carreira como jornalista e crítico. Se eu tinha determinação? Suponho que sim, mas o apoio deles fez a persistência possível.” 12 MONTE JÚNIOR, J. O. C. do. Estratégias de Interação... 63 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE um novo modelo de smartphone pela companhia americana de tecnologia Apple, tece considerações a respeito dos efeitos de sentido associáveis às cores: (4) The announcement, last week, that, with its new generation of iPhones, Apple would be offering a model that was “rose gold” in color made the news that it was meant to: “The internet has lost its damn mind about the new pink iPhone,” read Buzzfeed’s headline. The phone, with its rubicund sheen, was instantly coveted. “I don’t care at all about whatever they are talking about. Gimmie the pink phone, ”tweeted Roxane Gay, the feminist author. In other quarters, the color was met with a sense of mystification. Christina Warren, writing at Mashable, wondered whether Apple had opted for the appellation of “rose gold” as a way to avoid using the overtly girly “p” word. “I’m just going to say it: it’s pink,” she wrote.13 (The New Yorker, 14/09/2015) O parágrafo inicial do artigo é transcrito integralmente em (4), acima, porque as três citações de discurso alheio entre aspas chamam nossa atenção para um traço comum nos artigos de Rebecca Mead: o recurso à intertextualidade. Tal recurso, constitutiva e explicitamente dialógico e motivador de diferentes efeitos, promove, aqui, a separação clara entre a voz que organiza o andamento do texto e as vozes aludidas por ela por meio das citações. As falas de terceiros marcam textual e discursivamente o contraste, percebido pela articulista, entre o uso da expressão “rose gold” pela Apple e o fato de que, a despeito disso, certa fatia do público se referiu à cor do novo iPhone pelo uso da palavra mais usual “pink” em comentários na internet. Vejamos, então, que consequências essa separação produz no parágrafo seguinte do texto: Tradução nossa: “O anúncio, na semana passada, de que, com sua nova geração de iPhones, a Apple ofereceria um modelo na cor ‘ouro-rosê’ (‘rose gold’), conquistou as manchetes que pretendia: ‘A internet enlouqueceu com o novo iPhone cor-de-rosa (‘pink’)’, dizia a manchete do Buzzfeed’s. O telefone, com sua luminosidade corada, virou objeto instantâneo de cobiça. ‘Eu não me importo nem um pouco com o que estão dizendo. Me vê o telefone cor-de-rosa’ (‘pink’), twitou Roxane Gay, a autora feminista. Em outras vizinhanças, a cor foi recebida com um senso de mistificação. Christina Warren, escrevendo no Mashable, perguntou-se se a Apple teria optado pela alcunha ‘rose gold’ como um modo de evitar o uso daquela excessivamente feminina palavra que começa com ‘p’. ‘Vou dizer logo: é pink’, escreveu ela.” 13 MONTE JÚNIOR, J. O. C. do. Estratégias de Interação... 64 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE (5) […] the term “rose gold” refers to an alloy of gold to which copper has been added. In appearance, rose gold is warm and flush — what yellow gold would look like if it suddenly suffered an embarrassment. The phone may be new, but rose gold has been around for a while […]. Eighteenth-century jewelers used it in quatre-couleur gold, which consisted of greenish, whitish, and pinkish iterations of the element from which decorative inlays were fashioned.14 (The New Yorker, 14/09/2015, grifos nossos) Em (5), é iniciado aquilo de que Mead vai se ocupar ao longo de quase todo o texto: uma recuperação de contextos histórico-sociais que teriam contribuído para a construção dos sentidos atribuíveis aos itens lexicais “rose” e “gold” nas esferas de circulação da língua inglesa. Essa demonstração de conhecimento histórico é parte daquilo que resultará no estabelecimento de um traço identitário relevante para a voz da articulista. Por exemplo, na sentença “The phone may be new, but rose gold has been around for a while”, Mead muda os rumos do texto no sentido de contrapor as reações da internet ao lançamento do novo iPhone ao conhecimento histórico-cultural de que ela lançará mão para marcar sua posição fora dos limites do grupo de indivíduos para os quais o uso da cor ouro-rosê representa algo novo. A modalização desse movimento pelo uso do verbo modal may para marcar uma estrutura de concessão (“The phone may be new [...]”) e o contraste marcado pelo operador argumentativo but entre as duas orações atestam o afastamento da articulista do referido grupo: ela sabe que há algo relacionado à cor do produto (e, especialmente, ao fato de a cor ser referida como “rose gold” ao invés de “pink”) que não é nova nem trivial (“[...] [it] has been around for a while”). Vejamos como o texto prossegue: Tradução nossa: […] o termo ‘rose gold’ (‘ouro rosê’) refere-se a uma liga de ouro à qual foi adicionado cobre. Na aparência, o rose gold é cálido e corado — aquilo com que o amarelo-ouro se pareceria caso sofresse um constrangimento súbito. O telefone pode ser novo, mas o rose gold está por aí há um bom tempo. Joalheiros do século XVIII o usaram no ouro quatre-couleur, que consistia de iterações esverdeadas, esbranquiçadas e rosadas do elemento a partir do qual tacos de madeira decorativa eram formados. 14 MONTE JÚNIOR, J. O. C. do. Estratégias de Interação... 65 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE (6) Valuable, rare, durable, and impervious to tarnish, gold has always lent itself easily to metaphor. The Ancient Greeks conceived of a primordial prosperity as a golden age. The golden ratio is a mathematical formula of pleasing harmony […]. Rose gold, however, has quite a different symbolic valence. Deliberately adulterated, it is gold that has an inclination to be something else. [...] It is gold for people who already have enough gold gold.15 (The New Yorker, 14/09/2015) A abordagem semiótica da cor do iPhone recobre o excerto acima de um tom analítico, o que delimita uma identidade para a articulista: alguém capaz de concatenar ideias em torno de um fato social que, no discurso de outras vozes (trazidas para o interior do texto nas citações do primeiro parágrafo), suscita tão somente uma simplificação semântica, por assim dizer, que é típica do senso comum: “I’m just going to say it: it’s pink”. E o fato de que essas outras vozes são apresentadas pelo recurso à heterogeneidade mostrada (com o uso de aspas) reforça a marcação de uma fronteira, já que isso “[...] remete a um alhures, a um exterior explicitamente especificado [...], determina automaticamente, pela diferença, um interior, aquele do discurso; ou seja, a designação de um exterior específico é, através de cada marca de distância, uma operação de constituição de identidade para o discurso.” (AUTHIERREVUZ, 1990, p. 31) Desse modo, agrega-se valor à imagem discursiva de Mead pelo contraste que ela própria estabelece entre sua voz e o senso comum, que teria recebido o lançamento do novo iPhone “with a sense of mystification”, atribuível aos que carecem de conhecimento histórico-cultural. É desse tipo de estofo que a articulista faz uso para esclarecer que a expressão “rose gold” veicula sentidos específicos, muito diferentes daqueles relacionados à palavra “pink” em inglês (“Rose gold [...] has quite a Tradução nossa: “Valioso, raro, durável e impermeável a manchas, o ouro sempre se prestou facilmente à metáfora. Os gregos antigos concebiam uma prosperidade primordial como uma idade de ouro. O número de ouro é uma fórmula matemática de harmonia agradável [...]. O ouro rosê (rose gold), no entanto, tem uma valência simbólica bastante diferente. Deliberadamente adulterado, é ouro que tem uma inclinação para ser outra coisa. [...] É ouro para pessoas que já têm ouro-ouro (gold gold) suficiente.” 15 MONTE JÚNIOR, J. O. C. do. Estratégias de Interação... 66 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE different symbolic valence”). O acesso a esse aspecto da significação, no entanto, depende do arcabouço cultural que informa os significados das expressões na língua. Concomitantemente, Mead toma emprestado da exposição desse conhecimento um certo estatuto que ajuda a compor sua identidade discursiva — seu ethos. A heterogeneidade de perspectivas que, no texto de Mead, separa senso comum de análise fundamentada se estende para uma heterogeneidade de registros que tem como efeito possível a constituição, para o texto, de uma cenografia também ela heterogênea. Vejamos como isso acontece no trecho a seguir: (7) Flattering to most skin tones — a youthful-seeming blush is highlighted, or perhaps induced, by rose gold — the shade has spread to fashion, accessories, and beauty. This follows an earlier enthusiasm for other metallics: silver, gold, bronze […]. For two thousand dollars, you can get a floor-length, fishtail version of Herve Leger’s iconic bandage dress in rose gold […]. You can get rose-goldtinted sunglasses from Michael Kors, rose-gold-colored lip gloss from Wet n Wild, and, if you carefully follow a D.I.Y. tutorial on YouTube, rose-gold colored hair. If you’re getting married, you can have not only a rose-gold wedding ring, but also rose-gold-colored place settings, with napkins, candlesticks, and vases fabricated in the color formerly known as salmon.16 (The New Yorker, 14/09/2015, grifos nossos) O pronome you é usado aqui em sua função impessoal (For two thousand dollars, you can get... = Por dois mil dólares, pode-se/você pode comprar...). Esse uso está associado a uma enumeração de produtos disponibilizados na cor rose gold por diferentes grifes, imprimindo no texto uma característica marcante do discurso Tradução nossa: “Favorável à maioria dos tons de pele — um rubor de efeito rejuvenescedor é realçado, ou talvez induzido, pelo ouro rosê — a tendência se espalhou para o vestuário, para os acessórios e para a beleza. Isso se segue a um entusiasmo anterior por outros metais: prata, ouro, bronze [...]. Por dois mil dólares, você pode ter uma versão longa com cauda de peixe do icônico vestido bandagem de Herve Leger em ouro rosê [...]. Você pode ter os óculos de sol ouro rosê aquarelados de Michael Kors, o brilho labial ouro rosê da Wet n Wild, e, se você seguir cuidadosamente um tutorial “faça você mesmo” no YouTube, cabelos tingidos de ouro rosê. Se você vai se casar, você pode ter não apenas uma aliança de casamento na cor ouro rosê, mas também talheres, guardanapos, castiçais e vasos fabricados na cor antes conhecida como salmão.” 16 MONTE JÚNIOR, J. O. C. do. Estratégias de Interação... 67 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE publicitário, cujas características interativas (e altamente persuasivas) são incorporadas ao texto. Sobre o uso do you impessoal em inglês, Ronald Langacker (2011) comenta: “suspeito que o you singular impessoal envolva uma elaborada construção mental da qual um dos componentes é um diálogo virtual, em que o orador está apresentando os fatos da vida a um interlocutor imaginado.”17 (LANGACKER, 2011, p. 196, tradução nossa, grifo no original). O destaque que Langacker dá à função dialógica de you nos interessa aqui: ao interpelar o destinatário de seu artigo, Rebecca Mead assume uma determinada representação mental dele. Essa representação do interlocutor (que ajuda a compor um pathos para o texto) é trabalhada discursivamente para incorporálo ao mundo de sentidos construído em torno do uso da cor rose gold em diferentes contextos (“You can get rose-gold-tinted sunglasses from Michael Kors [...]. If you’re getting married, you can have not only [...] but also [...]”). Nesse sentido, o referente de you assume um caráter ambíguo e, portanto, nada trivial: o pronome expressa impessoalidade, mas é, ao mesmo tempo, dotado de força perlocucionária na maneira como é dirigido diretamente ao interlocutor. Isso sem falar em sua associação, no artigo de Mead, com os sentidos dos verbos get e have, que “encarnam” linguisticamente o fim idealizado pela publicidade: a compra. O uso argumentativo de pronomes é observável novamente no fechamento do artigo: (8) […] the burnished, blushing prevalence of the metal can certainly be understood to have cautionary indications for our current moment. It’s a time marked by overheated, precarious global economies; injudicious, unsustainable disparities of wealth; and a metastatic consumer culture, in which a technology company can make fifty billion dollars in a fiscal quarter, largely on the strength of persuading people who already have a phone — that company’s phone — that No original: “I suspect that singular impersonal you involves an elaborate mental construction one component of which is a virtual dialog, where the speaker is presenting the facts of life to an imagined interlocutor.” (LANGACKER, 2011, p. 196) 17 MONTE JÚNIOR, J. O. C. do. Estratégias de Interação... 68 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE they need to buy a slightly different version. As Apple knows better than anyone, we live in a rose-gilded age.18 (The New Yorker, 14/04/2015, grifos nossos) Se em (7) o pronome you é usado na incorporação do ethos publicitário para evidenciar os efeitos comerciais decorrentes do uso de rose gold como elemento de atribuição de sentidos a produtos (e a seus consumidores), em (8), logo acima, o uso dos pronomes serve para traçar fronteiras entre os espaços discursivos habitados pela articuladora do texto, seus interlocutores e terceiros. Em “our current moment” e “we live in a rose-gilded age”, os pronomes de primeira pessoa do plural cumprem expediente análogo àquele que identificamos em textos de David Denby: our e we unem enunciador e destinatário em uma mesma entidade, promovendo a incorporação do destinatário ao ethos do texto, tornando-o, de alguma maneira, coautor do que é dito. Já em “on the strength of persuading people who already have a phone — that company’s phone — that they need to buy a slightly different version”, o pronome de terceira pessoa do plural they correferencia anaforicamente “people who already have a phone”, de modo que, nas duas referências a consumidores da Apple, (identificados como indivíduos suscetíveis de comprar o que não precisam por serem persuadidos a fazê-lo [“As Apple knows better than anyone...”]) nem a articuladora nem o interlocutor do texto são incluídos, poupando ambos da carga potencialmente negativa que é atribuída a people e they. Tradução nossa: “[…] a prevalência desse metal polido e corado pode certamente ser entendida como uma advertência de nosso momento atual. É um tempo marcado por economias globais superaquecidas e precárias; imprudentes e insustentáveis disparidades de riqueza; e uma cultura de consumo metastática, em que uma empresa de tecnologia pode fazer cinquenta bilhões de dólares em um trimestre fiscal, em grande parte devido à sua capacidade de persuadir pessoas que já têm um telefone — um telefone dessa empresa — de que precisam comprar uma versão ligeiramente diferente. Como a Apple sabe melhor do que ninguém, nós vivemos em uma era pintada de rosa dourado.” 18 MONTE JÚNIOR, J. O. C. do. Estratégias de Interação... 69 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE 4. CONCLUSÃO Em textos argumentativos, o caráter constitutivamente interacional da lingua(gem) pode ser traduzido discursivamente na encenação de um diálogo solidário e colaborativo entre enunciador e destinatário. Os artigos de David Denby e Rebecca Mead demonstram que esse diálogo é fundamental para compensar a distância entre os contextos de produção e de recepção do discurso escrito, na medida em que a força de persuasão dos textos analisados mostrou-se dependente, em boa medida, do trabalho empregado pelos articulistas na conversão de seus destinatários presumidos em interlocutores de fato. Como esperamos ter demonstrado, a investigação da identidade discursiva (o ethos) que um enunciador projeta em relação a seus interlocutores potenciais pode se apoiar na análise de diferentes elementos e níveis linguísticos de um conjunto de seus textos. Optamos, no entanto, por reconhecer a recorrência, em nosso pequeno corpus, das marcas de interação explícita de que se valem David Denby e Rebecca Mead na construção da estrutura argumentativa de seus artigos: Denby propõe as perguntas virtuais do interlocutor e tenta integrá-lo às representações socioculturais de seu universo discursivo; Mead interpela diretamente seu destinatário, hipotetizando a percepção dele, ao mesmo tempo em que delineia fronteiras entre sua voz e as outras vozes que coabitam o heteroglótico e dialogizado discurso social. REFERÊNCIAS AUTHIER-REVUZ, Jacqueline. “Heterogeneidade(s) enunciativa(s)”. In Cadernos de Estudos Linguísticos, no 19, jul./dez. Campinas: Editora da Unicamp, 1990, pp. 25-42. BIBER, Douglas; FINEGAN, Edward. “Styles of stance in English: Lexical and grammatical marking of evidentiality and affect”. In Text & Talk, vol. 9, no 1, 1989, pp. 93-124. MONTE JÚNIOR, J. O. C. do. Estratégias de Interação... 70 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE DENBY, David. “Life and undeath”. In The New Yorker, 1 jul. 2013. Disponível em: <http://www.newyorker.com/magazine/2013/07/01/life-and-undeath>. Acesso em: 22/10/2017. _______. “Stop humiliating teachers”. In The New Yorker, 11 fev. 2016. Disponível em: <http://www.newyorker.com/culture/cultural-comment/stop-humiliating-teachers>. Acesso em: 22/10/2017. _______. “The limits of ‘Grit”’. In The New Yorker, 21 jun. 2016. Disponível em: <http://www.newyorker.com/culture/culture-desk/the-limits-of-grit>. Acesso em: 22/10/2017. FARACO, Carlos Alberto; NEGRI, Lígia. “O falante: que bicho é esse, afinal?” In Revista Letras, nº 49. Curitiba: Editora UFPR, 1998, pp. 159-170. FARACO, Carlos Alberto. Linguagem & diálogo: As ideias linguísticas do círculo de Bakhtin. São Paulo: Parábola Editorial, 2009. 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THOMPSON, Geoff. “Interaction in academic writing: Learning to argue with the reader”. In Applied Linguistics, no 22 (1), 2001, pp. 58-78. Recebido em: 06/07/2017 Aceito em: 03/09/2017 MONTE JÚNIOR, J. O. C. do. Estratégias de Interação... 71 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE UM ÚTERO À DISPOSIÇÃO DA SOCIEDADE A WOMB TO THE SERVICE OF SOCIETY Guida Fernanda Proença Bittencourt1 RESUMO: Mobilizando as noções da Análise do Discurso francesa, especialmente a de Formações Discursivas, pretendemos lançar um gesto analítico para a sustentação oral proferida em ação pela descriminalização da antecipação terapêutica de feto anencéfalo (ADPF 54), que tramitou no Supremo Tribunal Federal. As perguntas que orientam essa investigação são: como a identidade da mulher é construída? Pelo viés da alteridade, qual é o papel da identidade masculina nesse jogo? Nesse sentido, apontamos para a emergência de um discurso de gênero que se constitui pelo espelhamento, pelo movimento relacional. Palavras-chave: gênero; discurso jurídico; identidade da mulher. ABSTRACT: Starting from the notions of the French Discourse Analysis, especially in regards to the Discursive Formations, we intend to propose an analytical gesture for oral arguments made in lawsuit for the decriminalization of therapeutic anticipation of anencephalic fetus (ADPF 54), which was processed in the Supreme Court. The questions that guide this research are: how is the feminine identity constructed? Under the reference of alterity, what is the role of the masculine identity in this game? Accordingly, we point to the emergence of a discourse of gender that is constituted by mirroring, by the relational movement. Keywords: gender; legal discourse; woman’s identity. 1. INTRODUÇÃO Na recente discussão sobre a chamada interrupção da gestação de fetos anencéfalos, o então advogado e agora ministro do STF, Luís Roberto Barroso2, em sua Doutora, UFPR. Destaque-se que ao longo de sua carreira como advogado e jurista, manifestou-se publicamente em relação a temas bastante controversos na sociedade como, por exemplo, a descriminalização ou 1 2 BITTENCOURT, G. F. P. Um útero à... 72 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE defesa oral proferida na corte suprema em prol da liberação da antecipação terapêutica, chama a atenção para a funcionalização do corpo feminino3. Trata-se da Ação de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (doravante ADPF), que tramitou no Supremo Tribunal Federal (STF) sob o n. 54, julgada em abril de 2012, provida por 8 votos a 2, resultando na descriminalização da antecipação terapêutica da gestação de fetos anencéfalos. Dentre outras coisas, destaca o jurista, que na ocasião representava a Confederação Nacional dos Trabalhadores em Saúde, que qualquer ingerência do Estado sobre o corpo feminino, em especial na manutenção ou não de uma gestação, implicaria na reprodução de uma visão funcionalista sobre a mulher, transformando-a em mero útero à disposição da sociedade. O corpo da mulher é, sob esse viés, instrumento a serviço de um Outro. Essa manifestação lança luz sobre uma temática ainda bastante incipiente: a detenção de poderes próprios sobre corpo feminino (corpo de si), como um lugar de subjetivação e construção de uma identidade pacífica, afastada de conflitos de outras ordens, de disputas que não são as suas. O corpo da mulher, então, se revela como um espaço de disputas discursivas: desde os impedimentos e restrições na iniciação sexual, o tabu da virgindade, passando pelas reprovações da exposição do corpo e da liberdade sexual, até o limite da exclusão da voz da mulher na decisão sobre o aborto. O Estado, a religião, a escola e demais instituições legitimadas — por alguma ordem — pautam a temática relegando a voz da mulher a um plano outro que não o decisório, que não o da disposição sobre si, que não o da existência plena cuja regulamentação do comércio de maconha e a descriminalização do aborto em quaisquer casos até a 12ª semana. 3 Transcrição não fidedigna da sustentação oral disponível em: <http://noticias.r7.com/economia/noticias/o-direito-da-mulher-de-nao-ser-um-utero-adisposicao-da-sociedade-20120417.html>, ou, pela reprodução fidedigna em vídeo em <https://www.youtube.com/watch?v=plUKobkpBB4>. BITTENCOURT, G. F. P. Um útero à... 73 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE identidade lhe diga respeito integralmente. Até mesmo instituições policiais detêm direitos sobre o corpo e as decisões da mulher (especialmente no que tange ao abortamento voluntário). Vê-se a existência de um corpo sem voz. Infindáveis contra discursos virtuais se opõem ao gozo do corpo feminino como lugar de si, passando a ser lugar de um Outro. Uma alteridade desautorizada e uma topografia de disputas. Partimos da ideia de que as disputas são constitutivas dos discursos. Nesse sentido, a construção de identidade é também eminentemente discursiva. Para Pierre Bourdieu (1996, p. 23), “as trocas linguísticas — relações de comunicação por excelência — são também relações de poder simbólico onde se atualizam as relações de força entre os locutores ou seus respectivos grupos”, e retomando o raciocínio, afirma que “no texto jurídico estão em jogo lutas, pois a leitura é uma maneira de apropriação da força simbólica que nele se encontra em estado potencial” (BOURDIEU, 2007, p. 213). Quando fala sobre “A polêmica como interincompreensão”, em artigo assim batizado, Dominique Maingueneau (2008) também faz render a disputa no discurso, não em termos de ataque e defesa, mas de uma dialética que é sua própria existência. Michel Foucault (2009) abrange ainda mais o lugar da disputa. Para ele, o discurso — como a psicanálise nos mostrou — não é simplesmente aquilo que manifesta (ou oculta) o desejo; é — também, aquilo que é o objeto do desejo; e isto a história não cessa de nos ensinar — “o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual nos queremos apoderar” (FOUCAULT, 2009, p. 09). O corpo nesse cenário é o símbolo de uma identidade em questão, que se forja pela disputa dos discursos mais autorizados, pelos discursos insertos em ordens privilegiadas, pelas trocas de poder que passam ao largo do próprio objeto em questão: o corpo feminino. Para além de uma discussão acerca da saúde pública ou da gestão particular do seu corpo, no que se refere ao aborto voluntário ou à interrupção BITTENCOURT, G. F. P. Um útero à... 74 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE da gestação por quaisquer motivações da mulher, trata-se de um jogo de disputa de poder, na manutenção de um domínio. Com vistas a ancorar essa discussão, propomos nesse trabalho debater os elementos trazidos pelo atual ministro quando da sustentação oral na ADPF n. 54/DF, à luz da Análise do Discurso (AD) de linha francesa, buscando abordar a temática da construção ideológica de um corpo de si, como símbolo de uma identidade e de uma existência plenas. O advogado dirige-se à corte nos seguintes termos: “Senhores ministros: desde a noite dos tempos, muitos séculos de opressão feminina nos contemplam nessa manhã” (BARROSO, 2012, s/p). E justamente esse caminhar histórico-discursivo é que subjaz à questão de fundo, e que nos interessa para a discussão proposta. 2. DISPOSITIVO TEÓRICO-METODOLÓGICO As condições de produção — sustentação oral proferida no STF em ação que discute a descriminalização do aborto de fetos anencefálicos — se faz importante, uma vez que para a AD, a produção de efeitos de sentido está condicionada à ancoragem histórica do discurso. Dito isso, é necessário não perder de vista, especialmente, o fato de que o sujeito do discurso atua na função de advogado da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Saúde, em cuja demanda atuam como partes adversas, ou seja, contrários à descriminalização, representantes de entidades religiosas. Contudo, apesar da interferência de discursos de orientações religiosas diversas — Discurso Religioso4 — ressalta o sujeito do discurso “respeito às crenças sinceras e não violentas” (BARROSO, 2012, s/p). Vale ressaltar que nossa opção metodológica faz a distinção entre discurso e Discurso: para o primeiro, grafado com minúsculas, reservamos a materialização, o texto — como interface do Discurso com o mundo. Assim, o segundo, grafado com a inicial em maiúscula, refere-se ao Discurso enquanto ente abstrato, regulado por formações ideológicas e discursivas específicas, e constrito por 4 BITTENCOURT, G. F. P. Um útero à... 75 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE É de se ressaltar que a base da fundamentação em defesa da descriminalização passa pela questão da saúde pública, vez que, como apurado no processo, diariamente muitas mulheres morrem em consequência da realização de abortos clandestinos sem os cuidados médicos necessários5, em que pese essa questão tenha sido abordada apenas paralelamente, justamente pelo interveniente representante dos da saúde. Apenas para destacar o corte de classes6 é que tal ponto é recuperado: “Tudo sem mencionar o dramático problema de saúde pública e a imensa discriminação contra as mulheres pobres. A criminalização é seletiva e o corte é de classe. De acordo com o Ministério da Saúde, dia sim, dia não uma mulher morre de aborto clandestino no país. Todas pobres.” (BARROSO, 2012, s/p) Além disso, cumpre dizer que este estudo cinge-se a desvelar os contraDiscursos presentes na manifestação ora em análise, de modo expresso ou virtual, objetivando demonstrar sob o viés da AD de linha francesa as formações discursivas a que se vinculam e o modo de operação do orador com tais Formações Discursivas. Por essa razão destacamos o diálogo direto com o Discurso Religioso. elas. Nesse estudo, estarão presentes, especialmente, o Discurso Religioso e o Discurso Jurídico. Arriscamos uma proposta: esses tais Discursos, pensando numa metáfora bastante corrente para linguistas, diria respeito à competência, ao passo que o discurso seria a manifestação de um desempenho, menos vinculado, pois, à regulação de um Discurso específico, e mais perto da ideia de um discurso subjetivo (com todas as ressalvas possíveis a esse termo, especialmente no quadro teórico da AD, cujo pressuposto é um sujeito [parcialmente] assujeitado). Tal proposta já foi compartilhada no XXI Seminário do Cellip, na comunicação “Discurso Religioso: Lugar e ideologia”, 2014. 5 A morte que é objeto de destaque para o sujeito do discurso é do feto anencefálico, quando levada a termo a gestação, citamos: “O parto para ela não será uma celebração da vida, mas um ritual de morte. Essa mulher não sairá da maternidade com um berço, mas com um pequeno caixão. E terá de tomar remédios para secar o leite que produziu para ninguém.” (BARROSO, 2012, s/p) 6 Não sem razão o corte de classe é destacado. Da constatação óbvia da inscrição do sujeito em uma historicidade subjetivadora (importando para isso, inclusive a “forma de recrutamento com seus modos de seleção e ideias básicas e a qualificação profissional de detentores de um tipo específico de saber” [PORTANOVA, 2003, p. 71]) surgem duas consequências: 1) as motivações das sentenças estão relacionadas à classe, a formação, a idade e à coloração ideológica do juiz; e 2) restam desmentidas as ideias de neutralidade e equidade. Àquele que se diz neutro vincula-se, de fato, a valores de conservação. Para Portanova, esses valores se ancoram no capitalismo, no machismo e no racismo que insistem em resistir ao tempo. BITTENCOURT, G. F. P. Um útero à... 76 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE A AD empresta de Foucault (2010) a noção de formação discursiva (FD7) que aparece, como um sistema de formação com regulamentação restritiva das possibilidades virtuais de existência de um dado enunciado em dadas condições. Foucault (2010) especializa (ou reparte) os grupos de discurso em conjuntos conforme estes se apõem na mesma FD, afirmando que se trata de um “conjunto de enunciados que se apoia em um mesmo sistema de formação” (p. 132) e exemplifica: “é assim que poderei falar do discurso clínico, do discurso econômico, do discurso da história natural, do discurso psiquiátrico” (p. 122) e do discurso jurídico e religioso. Veremos também, neste estudo, a emergência de um Discurso de gênero, centrado no papel da mulher. Isso nos interessa na medida em que a AD tenta fornecer um conjunto de fatores a partir dos quais o número de leituras possíveis se restringe: o pertencimento de um enunciado (ou palavra) a uma FD limita as interpretações possíveis do enunciado (e da palavra); o pertencimento de um enunciado (ou de uma palavra) a um gênero e não a outro configura-se, por sua vez como um limite para sua interpretação. (POSSENTI, 2009, p. 13) Ora, é justamente a noção de FD que determina o que pode e deve ser dito dentro de uma Formação Ideológica (FI), a partir de um lugar dado em um espaço sócio-histórico determinado (cf. Foucault e Pêcheux). O que vemos no objeto da nossa análise é o entrecruzamento desses Discursos e o valor de uma palavra como mulher (e também aborto), por exemplo, a partir da verificação da FD de origem do discurso. Trata-se, pois, de um discurso eminentemente argumentativo com fins de persuasão. É um advogado que tenta convencer a corte a dar provimento ao pedido e A ideia de formação discursiva, proposta por Foucault (2010), é ainda polêmica e controversa, mas, contraditoriamente e talvez por isso mesmo, basilar para a Análise do Discurso, já que permite compreender o processo de produção dos sentidos, a sua relação com a ideologia, de modo que oferece ao analista a possibilidade de estabelecer regularidades — regras e coerções — no funcionamento dos discursos. (ORLANDI, 2001) 7 BITTENCOURT, G. F. P. Um útero à... 77 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE como consequência, afastar a tese contrária: “Cada um em busca do argumento que possa conquistar maior adesão social.” (BARROSO, 2012, s/p) Sendo assim, observaremos as estratégias do sujeito do discurso na operação das FD’s que se colocam como dominantes no debate da interrupção terapêutica, objetivando a construção de uma identidade de mulher a partir do seu corpo. É, pois, esse arsenal teórico que pretendemos mobilizar para o confronto com o discurso na próxima seção. 3. A MATERIALIDADE LINGUAGEIRA O primeiro destaque que nos parece rico é oriundo dos seguintes trechos, citados da transcrição livre: “O direito de não ser um útero à disposição da sociedade, mas de ser uma pessoa plena, com liberdade de ser, pensar e escolher. Senhores ministros: desde a noite dos tempos, muitos séculos de opressão feminina nos contemplam nessa manhã.” (BARROSO, 2012, s/p, destaques nossos) Vemos que o sujeito do discurso se vale de um Discurso de Gênero, construindo uma figura de mulher vitimizada pela sua própria história, cujos direitos fundamentais — “não ser propriedade do marido, educar-se, votar e ser votada” (BARROSO, 2012, s/p), compor o mercado de trabalho — só lhe foram outorgados e reconhecidos mediante um processo de luta-conquista. Nada foi, senão, por concessão mediante o pleito. Concessão essa realizada por aqueles que detinham o domínio do Discurso, o poder de voz e de decisão — os homens. O efeito de sentido possível é o de reverter o quadro de opressão. Admitir a vedação ao aborto, nesse caso (e pelo discurso posto), seria não apenas corroborar uma opressão, mas infligi-la mesmo, operando novo ato opressor. Pela oposição direito x opressão, o enunciador apresenta sua tese em defesa da permissão de que a mulher seja “plena, com liberdade de ser, pensar e escolher.” (ibid.) BITTENCOURT, G. F. P. Um útero à... 78 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE “Noite dos tempos” é uma imagem bastante poética criada pelo sujeito do discurso, cujo efeito possível equipara as trevas da violência simbólica (cf. BOURDIEU, 2007) praticada contra a mulher e se opõe no discurso a outra imagem forte: a manhã, iluminada por um sol dado pela possível a revisão desse lugar opressor/oprimido, possível pelo julgamento dos ministros. Dizer que a mulher tem o direito de não ser meramente um útero, uma função reprodutiva, acarreta dizer que, frente ao estado de coisas ela assim o é. Reconhecer o direito à plenitude de sua vida e corpo implica na ideia de que esse direito ainda não está assegurado, excluindo, portanto, a mulher de um universo de pensar e escolher livremente. O pleito contém em si a informação de que ainda não se tem o pleiteado. O sujeito do discurso traz à superfície da discursividade o diálogo com outros discursos dominantes, como o machismo: “(...) Se os homens engravidassem, a interrupção da gestação — não apenas do feto anencefálico, mas qualquer gestação — já teria sido descriminalizada há muito tempo, como observou, com a sensibilidade costumeira, o ministro Carlos Ayres.” (BARROSO, 2012, s/p) Nesse momento, o sujeito do discurso resgata esses elementos e os coloca em diálogo com a mais forte imagem: se homem engravidasse o aborto seria legal. O confronto desses dois trechos revela a adesão do sujeito do discurso a uma FD de dado Discurso Feminista, cuja maior bandeira seja a igualdade de gênero. Essa FD emerge, mas de modo tangencial, posto que a adesão expressa a esse Discurso poderia implicar numa resistência maior dos ministros na adesão à tese principal, por se tratar ainda de um Discurso marginal e bastante estigmatizado. A construção de um argumento baseado na hipótese com o consequente (Se p então q: “... se homem engravidasse então...”), cria o efeito de sentido da funcionalização do corpo da mulher, posto que equivale a dizer que o homem dispõe do seu próprio corpo a partir de seus desejos, mas que tal comportamento, tal benefício é sonegado à mulher. Eles poderiam escolher, elas não. A estrutura BITTENCOURT, G. F. P. Um útero à... 79 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE argumentativa utilizada reforça o tipo de argumento, criando um efeito de sentido de verdade universalizante. O discurso de funcionalização é retomado quando o sujeito do discurso afirma que estamos diante de um esforço de Estado para “obrigar a mulher a manter a gestação que ela não deseja” (BARROSO, 2012, s/p), sob pena de, em caso da prática do aborto voluntário, — pensado e decidido pela mulher — responder ação penal perdendo a ficha limpa de bons antecedentes criminais, igualada a um ladrão, um assassino, um estuprador, podendo inclusive ser presa8. A máquina pública — desde a polícia nas delegacias, passando pelo Ministério Público, o judiciário e a estrutura prisional — está movida e a serviço de obrigar a mulher a manter uma gestação que ela não deseja. A mulher, nesse sentido, é receptáculo da vontade do Estado, seu corpo é mero aparelho e seu psiquismo não é levado em consideração quando da sua avaliação íntima. A mulher é máquina de parir. O desejo não lhe pertence, mas pertence a um Outro, cuja existência se manifesta pelas instituições, pela polícia, pela religião, pelo judiciário. O opressor não é então um sujeito que se delimita num tipo, mas ao contrário, se manifesta em várias roupagens, escapando de um locus e ocupando toda uma topografia. Citamos: “Mas a verdade é que se o feto não tem viabilidade sem o corpo da mãe, e se a mãe não deseja tê-lo, obrigá-la a levar a gestação a termo significa funcionalizála, instrumentalizá-la a um projeto de vida que não é o seu. Ela estará sendo tratada como um meio e não como um fim em si, em violação à sua dignidade.” (BARROSO, 2012, s/p, destaque nosso) Vemos que se cria uma oposição virtual homem/mulher pelas expressões obrigá-la, funcionalizá-la, instrumentalizá-la, tratá-la como meio e não fim. Alguém obriga, funcionaliza, instrumentaliza. A elipse do sujeito opressor recobre o homem, Vemos no Jornal do Dia online (<http://www.jornaldodiase.com.br/noticias_ler.php?id=6682>), notícia veiculada em data de 23/07/2013 sobre mulher condenada a um ano de prisão pelo crime de aborto. 8 BITTENCOURT, G. F. P. Um útero à... 80 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE que detentor de poderes mágicos, obriga e instrumentaliza a mulher, tratando-a como um meio e não como fim em si. Nesse sentido, por um processo de espelhamento, constrói-se uma identidade de homem. O homem é esse alguém que. O homem é quem detém a voz última sobre o seu próprio corpo (porque se homem engravidasse o aborto seria permitido) e ainda, sobre o corpo da mulher, de tal modo que pode obrigá-la a manter uma gravidez que não deseja, pode instrumentalizá-la ao abrigá-la a comprar um projeto de vida que não é o seu. A mulher pede para que seja “uma pessoa plena para ser e pensar”, o homem o é. Tal efeito de sentido é corroborado pelo trecho que citamos: “Levar ou não esta gestação a termo tem de ser uma escolha da mulher! Esta é a sua tragédia pessoal, a sua dor. Cada pessoa, nessa vida, deve poder decidir como lidar com o próprio sofrimento. O Estado não tem o direito de querer tomar essa decisão pela mulher. Viola a dignidade da pessoa humana submetê-la a um sofrimento inútil e indesejado” (BARROSO, 2012, s/p, destaques nossos). A inclusão de tragédia pessoal, dor, sofrimento deslocam também a discussão para o universo psíquico da mulher. Além da violência física, destaca o sujeito do discurso a ideia de uma tortura psíquica ao submetê-la a encarnar algo que não deseje. Pela discursividade, a voz do corpo passa necessariamente pela via do psiquismo: é disso que trata a dignidade da pessoa humana. Vemos que o sujeito do discurso se ocupa de incluir a mulher no conjunto de pessoas. Aqui a oposição virtual homem/mulher se confunde com a inclusão da mulher no ‘cada pessoa’ e ‘pessoa humana’. Uma inclusão que gera o efeito de sentido de que a mulher está fora desse conjunto, já que sua dignidade não é respeitada. É o que destaca o sujeito do discurso no início de sua fala, quando afirma que (...) meu primeiro pensamento vai para as mulheres, para a condição feminina, que atravessou muitas gerações em busca de igualdade e de proteção dos seus BITTENCOURT, G. F. P. Um útero à... 81 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE direitos fundamentais. O direito de não ser propriedade do marido, de educar-se, de votar e ser votada, de ingressar no mercado de trabalho. O direito à liberdade sexual conquistada derrotando todos os preconceitos. E agora, perante esse tribunal, um capítulo decisivo dos seus direitos reprodutivos. (BARROSO, 2012, s/p) Direito de não ser propriedade é a própria coisificação da mulher. Pela discursividade, se assume que a mulher teve de lutar para não ser coisa do outro. Vêse que a identidade plena da mulher como “pessoa humana” vai lhe sendo autorizada paulatinamente e em partes, restando pendente quanto aos seus direitos reprodutivos, ou seja, quanto ao seu próprio corpo. À mulher não lhe foi permitido adonar-se do seu próprio corpo, e, nesse sentido, ele é ainda coisa dos outros. “Mas se este tribunal reconhecer a plenitude dos direitos reprodutivos da mulher, este será um dia para jamais esquecer. O marco zero de uma nova era para a condição feminina no Brasil.” (BARROSO, 2012, s/p) Observemos que o uso do condicional em “se este Tribunal reconhecer a plenitude dos direitos” acarreta o raciocínio de que ainda não é reconhecida a plenitude de direitos da mulher, visto que ainda é direito do outro “obrigar a mulher a manter a gestação que ela não deseja.” 4. SENTIDOS E FUNCIONAMENTO DISCURSIVO Para a AD (cf. Pêcheux, 1997 e 2009; Maingueneau, 20089), sentido é um efeito de sentido, ou seja, não se admite que a cada forma corresponda um sentido. O sentido é um efeito da enunciação, que se dá entre interlocutores, isto é, na ocorrência de material verbal em condições de produção definidas. Não ignoramos que as filiações teóricas de ambos os autores os levam a um manejo diferente das bases teóricas. Para mais, Oliveira (2013) oferece um panorama de vários autores e suas perspectivas teóricas nos estudos do discurso. 9 BITTENCOURT, G. F. P. Um útero à... 82 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE O mesmo enunciado, como sói acontecer, funciona de modos diferentes a partir de como se liga a uma dada FD: “Todo enunciado é intrinsecamente suscetível de tornar-se outro, diferente de si mesmo, se deslocar discursivamente de sentido para derivar para um outro (a não ser que a proibição da interpretação própria ao logicamente estável se exerça sobre ele explicitamente).” (PÊCHEUX, 1997, p. 53) Vemos que na sustentação oral o sujeito do discurso mescla o uso do vocábulo aborto com a expressão interrupção da gestação. A primeira sofre um tipo de estigma que inviabiliza a discussão do tema, justamente — mas não apenas — pelo atravessamento do Discurso Religioso. A segunda expressão, por outro lado, afasta-se do estigma, podendo inaugurar uma discursividade que possibilita que outros atravessamentos se deem. O sujeito do discurso desfaz a sinonímia ao longo do discurso, afirmando que “interrupção de gestação não é aborto”, com a finalidade de buscar os sentidos derivados e fazer escorregar os sentidos, ancorando cada uma das expressões a FDs diversas, para ao fim poder dizer, feito os deslizes de sentido, que a interrupção pode se dar em quaisquer casos até a 12ª semana: Essa é a posição adotada por todos os países democráticos e desenvolvidos do mundo, que descriminalizaram não apenas a interrupção em caso de anencefalia, mas em qualquer caso, até a décima segunda semana de gestação. Entre eles: Canadá, Estados Unidos, França, Reino Unido, Alemanha, Itália, Holanda, Japão, Rússia, Espanha, Portugal, Dinamarca, Suécia. Praticamente todos os países da Europa. A criminalização antes do ponto da viabilidade fetal, hoje, é um fenômeno do mundo subdesenvolvido (África, países árabes, América Latina). Estamos atrasados. E com pressa. (BARROSO, 2012, s/p) 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS Tentamos demonstrar os efeitos de sentido possíveis criados a partir da materialidade linguística do discurso. Embora a discussão seja apenas inaugural, verifica-se a existência de um discurso de gênero que permeia a construção de uma BITTENCOURT, G. F. P. Um útero à... 83 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE identidade de mulher e pela oposição, pelo jogo relacional, a identidade masculina, em face da mulher. Vê-se um jogo de dominação e poder, de pertencimento e reificação ainda presentes e reconhecidos no discurso: pelo pedido do direito infere-se a sua ausência. A imagem inicial da dualidade noite e dia (noite dos tempos x [séculos de opressão nos contemplam nessa] manhã), se recria pela via do opressor e oprimido e, especialmente, ganha sentido na oposição “pessoa humana” dotada de uma dignidade versus coisa passível de possuimento por parte de um outro. O outro que aqui se opõe à mulher é, por um lado o homem enquanto possuidor e opressor; mas por outro, escapa de uma singularidade personalíssima e envolve uma coletividade. Um ser disforme, mas poderoso: a sociedade, ou melhor, as instituições sociais, os aparelhos ideológicos. A forma de manifestação é a polícia, a Igreja, o Judiciário, o aparato prisional. Nesse sentido, abordar (e encarar) esse aparato é jogar luzes à “noite dos tempos”, cumprindo uma função ideologizante de militância. Para além das questões técnicas abordadas nos autos da ADPF n. 54, o sujeito do discurso optou por humanizar a discussão, revelando as relações havidas entre 1) a mulher e o homem e, 2) a mulher e a sociedade como um todo. Aliás, essa oposição pode sugerir uma assimilação entre os membros oponentes, de modo que restaria a mulher excluída da rede social, tendo o homem como representante exclusivo das estruturas sociais. Vale dizer que as abordagens técnicas também foram feitas, cercadas, contudo, por elementos discursivos apaixonados (estratégias patemizantes), trazendo para a superfície do discurso as possíveis motivações para o alijamento da mulher de seu próprio corpo. Lembremos que o sujeito do discurso toma a palavra em nome dos profissionais da área da saúde. Não vemos nessa ocasião, porém, qualquer menção à temática da saúde pública concretamente, mas, no discurso vemos a emergência da temática da BITTENCOURT, G. F. P. Um útero à... 84 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE saúde psíquica da mulher e, paralelamente, da saúde de uma sociedade que carece de garantir igualdade entre gêneros para desfazer a opressão secular contra a mulher. O sujeito do discurso evita confrontações diretas e com isso foge de resistências maiores que cercam o tema. Tangencia questões críticas, como a da religião e do machismo, objetivando, ao fim e ao cabo, que o corpo da mulher seja lugar de si, seja lugar alheio a outras disputas, mas de satisfação plena da subjetivação individual. Nesse sentido, ao projetar um tempo em que a mulher seja dona de si, do seu psiquismo e do seu corpo, fala também de uma projeção de um homem distante da posição de opressor, mas que, pela alteridade, seja também dono somente de si e do seu psiquismo, estabelecendo uma relação equilibrada e igual com a mulher. “Ou a escolha é da mulher ou não haverá igualdade.” (BARROSO, 2012, s/p) REFERÊNCIAS BARROSO, Luis Roberto. Sustentação Oral, ADPF 54, 2012. BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas lingüísticas: O que falar quer dizer. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1996. ______. Sobre o poder simbólico. In _____. O poder simbólico. Lisboa: DIFEL, 2007. FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. 18ª ed. São Paulo: Loyola, 2009. ______. A arqueologia do saber. 7ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010. MAINGUENEAU, Dominique. Gênese dos discursos. Trad. Sírio Possenti. São Paulo: Parábola, 2008. OLIVEIRA, Luciano Amaral. (Org.) Estudos do Discurso: Perspectivas teóricas. 1ª ed. São Paulo: Parábola, 2013. ORLANDI, E. Análise de discurso: princípios e procedimentos. Campinas: Pontes, 2001. PÊCHEUX, M. Semântica e Discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Campinas, São Paulo: Editora da Unicamp, 2009. ______. O discurso: estrutura ou acontecimento. Trad. Eni Orlandi. 2ª ed. Campinas, SP: Pontes, 1997. BITTENCOURT, G. F. P. Um útero à... 85 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE PORTANOVA, Rui. Motivações ideológicas da sentença. 5ª ed. Livraria do Advogado: Porto Alegre, 2003. POSSENTI, Sírio. Questões para analistas do discurso. São Paulo: Parábola Editorial, 2009. Recebido em: 07/08/2017 Aceito em: 05/09/2017 BITTENCOURT, G. F. P. Um útero à... 86 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE EXPLORANDO O APAGAMENTO DE VOGAIS ÁTONAS FINAIS NO PORTUGUÊS BRASILEIRO EXPLORING ELISION OF WORD-FINAL UNSTRESSED VOWELS IN BRAZILIAN PORTUGUESE Rebeca Lessmann1 RESUMO: Este trabalho contribui para a pesquisa voltada ao apagamento e produção de vogais átonas finais (VAF) no português brasileiro (PB). A partir de trabalhos como os de Meneses (2012) e de Dubiela (2016), um teste de produção foi elaborado e rodado com oito informantes do sexo feminino naturais de Curitiba (PR). Os resultados dos testes sustentam parcialmente as hipóteses levantadas no trabalho. Palavras-chave: fonética acústica; vogais átonas finais; apagamento. ABSTRACT: This paper focuses on elision and production of unstressed vowels in word-final position in Brazilian Portuguese. Based on studies such as Meneses (2012) and Dubiela (2016), a production test was developed and applied to eight female speakers from Curitiba (PR). The results partially support the hypotheses raised. Keywords: acoustic phonetics; word-final vowels; elision. 1. INTRODUÇÃO A tonicidade é um aspecto suprassegmental relevante para compreender as vogais do português brasileiro (PB). Estudos como os de Joaquim Mattoso Camara Jr. (1971) e Leda Bisol (2003) sustentam que vogais mais distantes do acento tônico da 1 Graduanda, UFPR. LESSMANN, R.. Explorando o apagamento... 87 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE palavra progressivamente perdem traços distintivos na comparação entre um fonema e outro. Assim, em uma análise fonológica2 da língua, o PB seria composto por um quadro vocálico de 7 vogais tônicas, 5 vogais pretônicas, 4 vogais pós-tônicas não finais e, por fim, 3 vogais átonas finais (VAF), que são /ɐ, ɪ, ʊ/. Esse processo de diminuição do quadro vocálico é chamado, pelos autores citados acima, de neutralização. Ainda numa abordagem fonológica da língua, entende-se que as palavras do PB nunca terminam em sons consonantais, mas sempre em vogais — com exceção de alguns sons consonantais fricativos e líquidos3. Esta concepção, inclusive, é quadro comum em um entendimento geral dos falantes sobre o PB. O evento linguístico que sustenta isso é a transposição de certos traços linguísticos de uma língua para outra no processo de aprendizagem de segunda língua. Como observa Ubiratã Alves (2008), por exemplo, falantes de PB frequentemente adicionam vogais epentéticas a consoantes finais em palavras do Inglês. No entanto, partindo de uma análise fonética, estudos como os de Francisco Meneses (2012) e de Mateus Dubiela (2016) mostram que as vogais podem tornar-se desvozeadas4 — ou seja, realizadas sem vibração de pregas vocais — ou, ainda, podem ser apagadas. Dessa forma, a tonicidade no PB não apenas levaria à diferenciação entre vogais átonas e tônicas, como também permitiria o apagamento das vogais mais tênues, especialmente das vogais átonas finais. Como mostram os autores, esse fato não é condicionado por uma ou outra variedade dialetal do PB. Para fins experimentais, aqui se pressupõe uma distinção entre fonologia e fonética. Câmara Jr (1971) sustenta fonologicamente a existência de um arquifonema nasal /N/. No entanto, estudos como o de Cristófaro-Silva (2003) argumentam que, em língua portuguesa, a nasalidade se constitui por meio de vogais nasais ou de forma homorgânica à consoante seguinte à VAF. 4 Para fins de análise dos dados, este trabalho considera os termos “desvozeamento” e “ensurdecimento” como indistintos, diferentemente de autores como Meneses (2012). Assim, este trabalho usa a oposição dos termos “surda” e “sonora” para caracterizar as vogais átonas, como em Dias e Seara (2013). 2 3 LESSMANN, R.. Explorando o apagamento... 88 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE Mesmo que tal evento seja conhecido, são poucos os trabalhos experimentais voltados para as átonas finais do PB e são ainda mais escassos os trabalhos com átonas finais produzidas por falantes de Curitiba (PR). Assim, a partir da análise acústica de dados colhidos por um experimento de produção, este artigo pretende trazer uma compreensão inicial sobre a produção das vogais átonas finais no falar de Curitiba (PR). A análise se baseará em três hipóteses, formuladas a partir dos estudos apresentados na seção seguinte, que são (i) As VAF altas — [ɪ] e [ʊ] — exibem maior tendência ao apagamento do que a vogal [ɐ]; (ii) as vogais altas têm menor duração relativa do que a vogal baixa; e (iii) a sonoridade do contexto seguinte influencia o apagamento das VAF: quando a consoante seguinte à VAF for surda, espera-se o apagamento da VAF; quando for sonora, espera-se a manutenção da VAF. O experimento de produção e os métodos empregados para a coleta de dados são apresentados na seção Metodologia, seguida pela seção de Análise e Discussão dos Dados, na qual é apresentada uma análise descritiva dos dados e resultados encontrados. Na seção Considerações Finais, uma aproximação básica é feita entre os dados e uma perspectiva que considera a língua um sistema adaptativo complexo — ou seja, um sistema que pode sofrer mudanças significativas devido a flutuações na interação de diversas variáveis, segundo definição de Stephen Lansing (2003). 2. PRESSUPOSTOS TEÓRICOS Este trabalho busca fazer uma caracterização acústica das vogais átonas finais /ɐ, ɪ, ʊ/, especialmente de seu apagamento. A justificativa para um trabalho de análise acústica desses sons é apresentado por Eva Dias e Izabel Seara (2013): “Outro fenômeno que ocorre no PB, em especial em posições não acentuadas, é o apagamento LESSMANN, R.. Explorando o apagamento... 89 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE de segmentos vocálicos. Alguns estudos sobre o fenômeno foram feitos com base em análises de oitiva5, por isso, é importante realizar estudos que observem o fenômeno acusticamente.” (DIAS; SEARA, 2013, p. 74) Como mencionado anteriormente, o processo de neutralização das vogais ocorre devido à perda de traços distintivos entre fonemas em posições átonas, tornando-os indistintos fonologicamente. Foneticamente, essa neutralização é perceptível pela redução do movimento articulatório e consequente efeito auditivo. Assim, na literatura, convencionou-se buscar parâmetros de distinção de traços vocálicos na posição tônica dessas vogais (CAMARA JR, 1977, apud OLIVEIRA; SILVA, 2014). Como reforça Bisol (2003), a redução das vogais tônicas para as vogais átonas se traduz na conversão de um sistema de sete vogais para três vogais — /ɐ, ɪ, ʊ/. Na análise acústica, tal evento é visível pela imprecisão no traçado dos formantes — ou até mesmo sua ausência — e pela forma de onda de menor amplitude, quando comparada à das vogais tônicas. Além disso, pelo processo de redução das vogais em posição átona é possível encontrar outras configurações desses sons na análise acústica. O trabalho de Meneses (2012), por exemplo, relatou a ocorrência de vogais desvozeadas — ou seja, vogais que não apresentam barra de sonoridade no espectrograma, correlato acústico da vibração de pregas — em palavras nas quais esses sons eram vizinhos à fricativa alveolar surda /s/. O autor coletou dados de seis informantes naturais de Vitória da Conquista (BA) e encontrou um percentual semelhante de vogais vozeadas e desvozeadas, sendo estes 39% e 38% respectivamente. Além disso, o autor observou que as vogais altas desvozearam mais do que as vogais baixas, fato esse também observado nos trabalhos de Maria do Carmo Viegas e Alan Oliveira (2008), Dias e Seara (2013) e Dubiela (2016). Os primeiros mencionam que “as vogais mais altas, mais reduzidas, são as primeiras atingidas em um processo de redução e apagamento A “análise de oitiva” parte da investigação auditiva para discriminar e caracterizar os fones. Para mais informações, ver Silva (2010). 5 LESSMANN, R.. Explorando o apagamento... 90 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE gradual das vogais.” (VIEGAS; OLIVEIRA, 2008, p. 313). Além disso, Dias e Seara (2013) comentam, baseados no trabalho de Anne-Marie Delforge (2008), que a predominância de eventos linguísticos ligados às vogais altas em detrimento da vogal baixa se dá pelo fato de que as primeiras têm menor duração intrínseca, e por isso são mais facilmente influenciadas pela articulação de outros sons, como as consoantes vizinhas. Sendo assim, formulam-se a primeira e a segunda hipóteses a serem testadas neste trabalho: (i) As VAF altas — [ɪ] e [ʊ] — exibem maior tendência ao apagamento do que a vogal [ɐ] e; (ii) as vogais altas têm menor duração relativa do que a vogal baixa. A propósito dos trabalhos citados acima, a concepção de apagamento utilizada por Dias e Seara (2013) é semelhante àquela utilizada por Meneses (2012) para definir desvozeamento — processo que implica a produção das vogais átonas finais sem a presença da barra de sonoridade e, portanto, sem vibração das pregas vocais. No entanto, as autoras complementam que apagamento também abrange “a ausência de elementos vocálicos no sinal da fala” (DIAS; SEARA, 2013, p.72). Sendo assim, utilizarei o termo “apagamento” para trabalhar com as vogais átonas finais. O trabalho de análise acústica de Dubiela (2016) observou, dentre seus objetivos, a possível influência do contexto consonantal sobre a realização das vogais átonas finais em falantes de Curitiba. Nesse sentido, Dias e Seara (2013) verificam, além das conclusões anteriores, que o apagamento das VAFs ocorre mais recorrentemente diante de consoantes surdas do que diante de consoantes sonoras, por um processo de assimilação da sonoridade. Assim, formula-se a terceira hipótese deste trabalho: (iii) a sonoridade do contexto seguinte influencia o apagamento das VAF: quando a consoante seguinte à VAF for surda, espera-se o apagamento da VAF; quando for sonora, espera-se a manutenção da VAF. LESSMANN, R.. Explorando o apagamento... 91 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE 3. METODOLOGIA Para testar as hipóteses levantadas, um teste de produção foi elaborado e dividido em duas fases. A primeira delas, um teste piloto, colheu dados de duas informantes para certificar se o método utilizado era adequado ao experimento. Em seguida, um teste definitivo foi rodado com outras seis informantes. O teste de produção se deu pela leitura de duas narrativas curtas de 300 e 260 palavras cada. Observo que a escolha pelo uso de narrativas ao invés de sentenças-veículo, como fazem os trabalhos anteriormente citados, se deu por duas razões centrais. A primeira, de preservar as vogais analisadas de possíveis hiperarticulações causadas pela atenção dada pela informante aos sons que devem ser produzidos, pois tal atenção poderia camuflar ou inibir possíveis apagamentos devido à sensibilidade das VAFs. A segunda, para despistar o indivíduo dos dados efetivamente almejados para análise posterior, assim a leitura se torna o mais natural e tranquila possível para a informante. Cada narrativa continha palavras-alvo estrategicamente posicionadas para testar as hipóteses formuladas. Eram estas 18 palavras-alvo, todas substantivas dissílabas do tipo [‘C1V1C2V2#C3] onde C1 é qualquer consoante do PB; V1 é qualquer vogal oral do PB; C2 é uma dentre as 6 consoantes oclusivas do PB — /p, b, t, d, k, g/; V2 é uma dentre as três vogais átonas finais do PB — /ɐ, ɪ, ʊ/; C3 é uma consoante surda ou sonora e # marca a fronteira de palavra. Dessa forma, as palavras-alvo foram escolhidas para expor as três VAF do PB à alternância de sonoridade (surda ou sonora) da consoante seguinte — posição C3 — permitindo a coleta de 36 dados diferentes. A manutenção do som em posição C2 por uma das consoantes oclusivas do PB se justifica para facilitar a separação entre os sons em análise posterior. LESSMANN, R.. Explorando o apagamento... 92 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE A seguir, foi selecionado um trecho da segunda narrativa. Os segmentos sublinhados são exemplos das 18 palavras-alvo inseridas no texto. “[...] Assim que me viu, ele se assustou e acabou derrubando o copo no chão, fazendo um caco de vidro maior arranhar meu pé descalço. Para piorar a situação, o gato tentou fugir escalando um dos quadros da parede (o que mostrava um lobo e uma mãe loba junto de seus filhotes). O resultado foi um rasgo enorme feito por suas garras no lobo da pintura. [...]” Cada narrativa foi lida 3 ou 4 vezes por cada informante6, além de uma leitura prévia à coleta, para familiarização dos sujeitos com as narrativas, e que não foi gravada. Para este experimento, foram selecionadas 08 informantes do sexo feminino com idades entre 18 e 30 anos. Além disso, todas estavam cursando ou haviam concluído o ensino superior. A escolha da variável sexo das informantes se deu, em suma, por questões de ordem prática, como a disponibilidade e acesso delas para o dia do teste. A maioria das informantes são naturais de Curitiba-PR, com exceção de duas que vivem na cidade há mais de 4 anos (ambas são de Santa Catarina)7. As gravações do teste foram realizadas em cabine com tratamento acústico, tanto no laboratório de fonética da UFPR (teste piloto) quanto no laboratório de fonética da UTFPR (teste definitivo). A gravação foi realizada com um notebook HP por meio do programa de gravação Audacity. Os dados foram amostrados a uma taxa de 44100 Hz. Os arquivos de áudio foram salvos em formato WAV e analisados através do programa Praat8. A única informante a fazer três repetições de cada narrativa foi a Informante II, devido à disponibilidade da informante. As outras informantes realizaram 4 repetições de cada narrativa. 7 Como Meneses (2012) e Dubiela (2016) sustentam o não condicionamento dialetal do apagamento, a vivência prévia das Informantes II e VIII em outras cidades não entram como variável relevante neste experimento. Por isso, seus dados também foram considerados. 8 A análise acústica utiliza-se de softwares, como o Praat, como ferramentas para a investigação do detalhe fonético. Para mais informações, ver Silva (2010). 6 LESSMANN, R.. Explorando o apagamento... 93 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE O total de dados coletados foi de 1209, considerando as 36 palavras-alvo, as 04 leituras de cada narrativa e as 08 informantes. No entanto, 59 dados não puderam ser analisados devido a falhas na gravação ou problemas na leitura, por exemplo, quando uma informante “pulava” o dado, o que impossibilitou sua análise. Dessa forma, foram analisados 1150 dados. 4. ANÁLISE DOS DADOS A partir da coleta de dados e subsequente análise, foi possível perceber que o método para o teste de produção se adequou às necessidades do experimento e as hipóteses puderam ser testadas por meio dele. As duas narrativas produzidas para a leitura contribuíram para aliviar a tensão das informantes, fato recorrente em gravações, trazendo mais naturalidade e menos monitoramento para a leitura. No entanto, nota-se que, neste experimento, o método poderia ter sido melhor aproveitado com um número maior de dados coletados, pois, devido ao fato de a narrativa ser um método de coleta que permite uma maior flutuação na leitura, vários dados não puderam ser realizados, seja por interrupções na leitura ou pela não produção dos dados almejados para a análise9. A seguir, apresento exemplos tanto da manutenção quanto do apagamento das VAFs, para esclarecer o procedimento escolhido para a análise. As Figuras 1 e 2 apresentam parte da sequência “gata de estimação”. Ambas as produções são da mesma informante, mas em repetições diferentes. Na Figura 1, percebe-se um apagamento, pois, na porção do sinal selecionada em rosa, não há ciclos indicadores de presença de uma vogal, onde se esperaria sua ocorrência. Da mesma forma, não é Exemplos frequentes que ocorreram nos dados, para justificar seu descarte, foram: casos de má captação do sinal pelo microfone, prejudicando a visualização do dado; casos de sobrecarga (overload) do sinal na gravação; casos de não produção da palavra-alvo para o experimento; casos de parada e repetição da palavra-alvo, de forma a hiperarticular os fones; casos de troca da sílaba tônica, tornando a palavra-alva paroxítona em oxítona. 9 LESSMANN, R.. Explorando o apagamento... 94 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE possível identificar formantes ou barra de sonoridade característicos da vogal. Por isso, podemos afirmar que houve apagamento da vogal átona final neste dado. FIGURA 1 — TRECHO DA SEQUÊNCIA “GATA DE”, COM O APAGAMENTO DA VAF. FONTE: O autor (2016) Já na Figura 2, vemos, no trecho indicado em rosa, ciclos regulares na forma de onda. Da mesma forma, no espectrograma, é possível distinguir um evento acústico contínuo, com uma estrutura de formantes bem definida. Portanto, podemos dizer que houve a produção de uma VAF. FIGURA 2 — TRECHO DA SEQUÊNCIA “GATA DE”, COM A PRESENÇA DA VAF. FONTE: O autor (2016). LESSMANN, R.. Explorando o apagamento... 95 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE A partir dessas considerações para a análise dos dados, foi possível observar inicialmente que, dos 1150 dados analisados, 325 deles (ou 28% do total) exibem apagamento da vogal átona final. A tabela a seguir mostra a relação de apagamentos por informante. TABELA 1: APAGAMENTO DA VOGAL ÁTONA FINAL EM FUNÇÃO DA INFORMANTE INFORMANTE APAGAMENTOS (absolutos) APAGAMENTOS (relativos) Dados I 54 de 149 36% Dados II 40 de 114 35% Dados III 29 de 154 18,83% Dados IV 17 de 155 10,80% Dados V 13 de 144 9% Dados VI 52 de 141 36,88% Dados VII 55 de 151 36,42% Dados VIII 65 de 142 45,77% Total 325 de 1150 28,18% A primeira questão relevante para se observar na Tabela 1 diz respeito à variabilidade entre apagamento e produção das VAFs em função das informantes. Observa-se que as informantes I, II, VI e VII realizam uma quantidade muito semelhante de apagamentos relativos, que gira em torno dos 36%. De todos os sujeitos do experimento, a Informante V é a que menos produz apagamentos, com uma diferença de 36% para a informante com mais apagamentos (Informante VIII). Essa variabilidade é comentada mais detidamente ao fim desta seção. A partir dos dados selecionados das oito informantes, foram testadas as hipóteses (i) as vogais átonas finais altas exibem maior tendência ao apagamento do que a vogal baixa; (ii) as vogais altas têm menor duração relativa do que a vogal baixa; LESSMANN, R.. Explorando o apagamento... 96 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE e (iii) as vogais átonas finais deverão sofrer apagamento de modo mais recorrente diante de consoantes surdas do que diante de consoantes sonoras. Para testar a primeira hipótese, apresento a Tabela 2 que seleciona os dados relevantes para tal, a partir das variáveis qualidade da vogal em função do apagamento. TABELA 2: APAGAMENTO DA VOGAL ÁTONA FINAL EM FUNÇÃO DA QUALIDADE DA VOGAL VAF /i/ /a/ /u/ NÚMERO TOTAL DE DADOS 395 362 393 APAGAMENTOS (absolutos) 154 26 146 APAGAMENTOS (relativos) 39% 7% 37% Os dados apontam para conclusões previamente relatadas por estudos como os de Meneses (2012), Dias e Seara (2013) e Dubiela (2016), com a maior ocorrência de apagamentos nas vogais altas em comparação com a vogal baixa. Uma explicação esperada para esse resultado seria a de que as vogais altas têm menor duração relativa se comparadas com a vogal baixa, e por isso seriam mais facilmente apagadas. Para testar essa hipótese, formulada no ponto (ii), a seguir apresento a Tabela 3 com a variante duração relativa da VAF pela qualidade da vogal. TABELA 3: MÉDIA DA DURAÇÃO RELATIVA DA VAF EM FUNÇÃO DA QUALIDADE DA VOGAL /i/ MÉDIA DA DURAÇÃO RELATIVA (em relação à palavra) 16,3 % /a/ 17,4 % /u/ 16,1 % VAF Como é possível ver na tabela, a duração média de cada vogal átona final é muito semelhante entre si, ainda que /a/ tenha duração relativa maior do que as vogais altas. LESSMANN, R.. Explorando o apagamento... 97 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE Essa diferença, no entanto, possivelmente não é relevante, com uma diferença de 1% da vogal baixa para as vogais altas. Os resultados, portanto, não confirmam a segunda hipótese, que supõe que as vogais altas têm menor duração relativa quando comparadas à vogal baixa. Por fim, a Tabela 4 a seguir seleciona a variável sonoridade de C3 em função do número total de dados e apagamentos relativos. TABELA 4: APAGAMENTO DA VOGAL ÁTONA FINAL EM FUNÇÃO DA SONORIDADE DE C3 CONTEXTO SEGUINTE NÚMERO TOTAL DE DADOS APAGAMENTOS (absolutos) APAGAMENTOS (relativos) Consoante Sonora Consoante Surda 589 499 130 151 22% 30% Nos dados, as vogais átonas finais de fato sofrem processo de apagamento mais recorrentemente diante de consoantes surdas, assim como mostram os trabalhos de Meneses (2012) e Dubiela (2016), por exemplo. No entanto, é significativo pontuar que a sonoridade da consoante seguinte à VAF não é uma variável suficiente por si só para caracterizar o apagamento desses sons, pois nem todas as VAFs seguidas de contexto surdo foram apagadas. Da mesma forma, nem todas as VAFs seguidas de contexto sonoro foram mantidas. Sendo assim, não é possível afirmar que o contexto seguinte seja categórico para condicionar o apagamento. Nesse sentido, parece haver a interação entre mais de uma variável no sistema vocálico para favorecer o apagamento das VAF. Tal argumento é reforçado pela aparente variabilidade de produção e apagamentos para cada informante, como mostra a Tabela 1. Esse fato sugere a presença e interação de mais variáveis para determinar o apagamento ou produção, sendo uma variável isolada insuficiente para tal caracterização. LESSMANN, R.. Explorando o apagamento... 98 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE O trabalho conduzido até aqui, de cunho descritivo, considerou as três hipóteses previamente levantadas. Os resultados do experimento corroboram a primeira hipótese, assim como os trabalhos citados nos pressupostos teóricos. A segunda hipótese, à princípio, não foi confirmada e novos estudos devem ser conduzidos sobre a duração relativa das VAFs. Por fim, a terceira hipótese foi parcialmente confirmada, com a observação de que parece haver uma interação entre mais de uma variável para favorecer o apagamento das VAFs. 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS Os dados aqui apresentados e analisados não devem ser tomados como definitivos em si para caracterizar o comportamento das VAFs produzidas por falantes de Curitiba, uma vez que fazem parte de um corpus maior que ainda está sendo analisado. O estudo aqui apresentado é um pequeno passo em direção à caracterização acústica das VAFs. Portanto, mais análises serão feitas com os dados do experimento previamente apresentado. Um próximo passo em relação à análise seria, por exemplo, cruzar informações das variáveis qualidade da vogal e vozeamento da consoante seguinte para rodar testes estatísticos, já que o trabalho apresentado até aqui constitui-se de uma análise descritiva dos resultados encontrados para o apagamento das VAFs, mas não estatística.10 Outras questões podem ser investigadas sobre a interação das variáveis, como, por exemplo, pontes entre eventos linguísticos estudados pela fonologia e pela morfologia. No entanto mais análises precisam ser feitas para chegar a conclusões adequadas aos eventos linguísticos da produção e apagamento de VAFs. A variabilidade nos resultados e a aparente interação entre variáveis sugerem a abordagem do sistema linguístico como um sistema adaptativo complexo, como A análise estatística está em andamento, pois a análise descritiva dos dados das oito informantes foi recentemente finalizada. 10 LESSMANN, R.. Explorando o apagamento... 99 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE explicitado por Lansing (2003). Segundo o autor, esse tipo de sistema resultaria da interação entre variáveis diversas. Nos últimos anos, os estudos de sistemas como estes têm buscado entender de que modos os sistemas retornam ao seu equilíbrio após perturbação decorrentes de sua não-linearidade. Nesse sentido, a partir das considerações aqui feitas, sugere-se a futuros trabalhos com as vogais átonas finais não a busca por conclusões categóricas, mas a abordagem que considera a dinamicidade e interação entre variáveis. REFERÊNCIAS ALVES, Ubiratã Kickhöfel. A aquisição das seqüências finais de obstruintes do inglês (L2) por falantes do sul do Brasil: análise via teoria da otimidade. 2008. 337 f. Tese de Doutorado em Letras. Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2008. BISOL, Leda. “A neutralização das átonas”. Revista Letras, Curitiba, nº 61, especial. Editora UFPR, pp. 273-283, 2003. CAMARA JR., Joaquim Mattoso. Estrutura da Língua Portuguesa. Petrópolis: Editora Vozes, 1971. CRISTÓFARO-SILVA, Thaís. Fonética e fonologia do português: roteiro de estudos e guia de exercícios. 7ª ed. São Paulo: Contexto, 2003. DELFORGE, Ann Marie. “Gestural Alignment Constraints and Unstressed Vowel devoicing in Andean Spanish”. 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OLIVEIRA, Beatriz de; SILVA, Sara Farias da. “Redução das Vogais Átonas Finais no Falar de um “Manezinho””. uox, nº 02, 2014/1, pp. 31-41. SILVA, Adelaide H. P. O estatuto da análise acústica nos estudos fônicos. Cadernos de Letras da UFF. Dossiê: Letras e cognição, nº 41, 2010, pp. 213-229. VIEGAS, Maria do Carmo; OLIVEIRA, Alan Jardel. “Apagamento da vogal átona final em Itaúna/MG e atuação lexical”. Revista da ABRALIN, v. 7, nº 2, jul-dez, 2008, pp. 303-322. Recebido em: 09/08/2017 Aceito em: 20/09/2017 LESSMANN, R.. Explorando o apagamento... 101 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE O LICENCIAMENTO DE IPNs PELO OPERADOR NEM EM PORTUGUÊS BRASILEIRO NPIs LICENSING BY THE OPERATOR NEM IN BRAZILIAN PORTUGUESE Shehrazad Elis Ramos Daoud1 RESUMO: O presente estudo pretende discutir o licenciamento de alguns dos chamados itens de polaridade negativa (IPNs) pelo operador de negação nem em português brasileiro (PB). Para isso, distinguimos duas instâncias desse operador — conjunção de coordenação e elemento adverbial —, e apresentamos uma possível categorização dos IPNs analisados, separando-os em itens de polaridade forte e itens de polaridade fraca. Como conclusão, afirmamos que o operador nem enquanto elemento adverbial somente é capaz de licenciar itens de polaridade fraca. Palavras-chave: itens de polaridade negativa; operador de negação nem; descrição linguística. ABSTRACT: This study aims at discussing the licensing of some of the so-called negative polarity items (NPIs) by the negative operator nem in Brazilian Portuguese (PB). In order to do so, we first distinguish two instances of this operator — coordination conjunction and adverbial element —, and then present a possible categorization for NPIs that corresponds to weak polarity items and strong polarity items. Our conclusion is that the negative operator nem, when working as an adverbial element, is able to license weak polarity items but cannot license strong polarity items. Keywords: negative polarity items; negative operator nem; language description. 1. INTRODUÇÃO Neste trabalho, discutimos alguns aspectos da interação do operador de negação nem com itens de polaridade negativa (IPNs) no português brasileiro (PB), buscando estabelecer em quais situações o licenciamento de IPNs pelo operador nem é possível. 1 Graduanda, UFPR. DAOUD, S. E. R. O licenciamento de... 102 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE Para isso, apresentamos as características do fenômeno da polaridade negativa bem como os usos do operador nem. O fenômeno da polaridade negativa costuma ser descrito como a demanda de um item ou expressão por um contexto específico, que prototipicamente é o contexto negativo2, de forma que a ocorrência desse item3 ou expressão depende desse contexto para ocorrer. Isso é exemplificado pelo dado a seguir, em que a ocorrência do item patavina é licenciada pelo contexto criado pelo operador de negação não: (1) O Pedro não entendeu patavina. (1’) *O Pedro entendeu patavina. A discussão sobre quais expressões fazem parte do fenômeno da polaridade negativa em português é feita em trabalhos como o de Rodolfo Ilari (1984), Luisandro Mendes de Souza et al. (2008) e João Peres (2013), a partir dos quais selecionamos os IPNs utilizados neste estudo. Ilari (1984) apresenta uma série de potenciais exemplos de expressões de polaridade negativa (que trata como locuções negativas polares) do português, como, por exemplo, sofrer um arranhão, dar um pio, dizer uma palavra, tocar na comida, ser flor que se cheire, patavina, bulhufas. Conforme o autor aponta, “estes predicados são interpretados idiomaticamente, não de maneira literalcomposicional” (ILARI, 1984, p. 84). Não sofrer um arranhão, por exemplo, “não é apenas o contrário ou contraditório de sofrer um arranhão; significa sair ileso” (ILARI, 1984, p. 85). Ainda conforme o autor, “essa idiomaticidade desaparece quando as expressões são usadas na forma afirmativa” (ILARI 1984, p. 85): (2) (3) Ele sofreu um arranhão. Ele tem um tostão furado. Veremos adiante que há outros contextos de licenciamento de IPNs. Nos dados que se seguem, utilizaremos o símbolo “*” já assumindo a impossibilidade da interpretação relevante para nossa discussão, i.e., idiomática, sem ignorar a possibilidade de tais dados serem aceitáveis com leitura composicional, conforme discutido anteriormente. 2 3 DAOUD, S. E. R. O licenciamento de... 103 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE Dado o contexto afirmativo dos dados (2-3), a leitura das expressões é composicional, de modo que (2) pode ser parafraseado como o número de arranhões que ele sofreu é igual a um, enquanto no dado (3) “fala-se de uma moeda de um tostão que tem um furo” (ILARI 1984, p. 85). Peres (2013) também apresenta expressões que fazem parte do conjunto de IPNs do português, como ser coisa que se faça e ver um palmo à frente do nariz. (4) (5) Ninguém podia ver um palmo à frente do nariz. Ele não podia ver um palmo à frente do nariz. Em (4) e (5), a expressão ver um palmo à frente do nariz é legitimada pelos elementos negativos ninguém e não, respectivamente. Já os dados (6-7) mostram que a leitura idiomática dessa expressão é barrada em contextos afirmativos: (6) (7) *A Flávia via um palmo à frente do nariz. *Ele viu um palmo à frente do nariz. Conforme aponta Shehrazad Daoud (2017, p. 26), de modo similar ao que se observa para ver um palmo à frente do nariz, o IPN patavina pode ser legitimado pelo elemento negativo ninguém (cf. (8), que pode ser parafraseado por ninguém entendeu nada), mas não é licenciado em contextos afirmativos (9-10): (8) (9) (10) Ninguém entendeu patavina. *Alguém entendeu patavina. *Maria entendeu patavina. Apesar de a negação ser considerada como o contexto prototípico para o licenciamento de IPNs, é possível observar que esses itens podem ocorrer em situações nas quais não há a presença de um elemento negativo, de maneira que a DAOUD, S. E. R. O licenciamento de... 104 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE polaridade não é simplesmente negativa, mas relativa a outro valor que não é positivo, conforme os exemplos abaixo: (11) (12) (13) Duvido que o João tenha tocado na comida durante o almoço. Duvido que elas tenham dito uma palavra sobre o acontecido. Duvido que os estudantes tenham entendido patavina sobre o assunto. Os dados (11-13) mostram que há “contextos afirmativos que normalmente licenciam IPN, como sob o escopo de um verbo de atitude proposicional negativo, a exemplo de ‘duvidar’” (MENDES DE SOUZA et al., 2008). Uma vez delineadas as características do fenômeno da polaridade negativa, é preciso estabelecer quais são os usos do operador nem que levaremos em conta neste estudo. Para isso, seguiremos a descrição de Maria Helena Neves (2000), que afirma que o operador pode funcionar tanto como elemento adverbial quanto como conjunção coordenativa, conforme (14) e (15), respectivamente: (14) A patroa quer dar umas voltinhas, nem quer saber de jogo. (15) Mas como o sujeito era distinto, não telefonou nem procurou pessoalmente Monticelli. (NEVES, 2000, p. 287) Essa diferença é relevante para este trabalho, pois defenderemos que, enquanto o operador nem correspondente a uma conjunção coordenativa é capaz de licenciar qualquer IPN, o operador nem como elemento adverbial somente licencia um grupo de IPNs. 2. OS DOIS USOS DO OPERADOR NEM E O LICENCIAMENTO DE IPNS Conforme apresentamos na seção anterior, os IPNs são assim chamados porque somente aparecerem em contextos nos quais uma expressão cria o contexto DAOUD, S. E. R. O licenciamento de... 105 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE específico, que prototipicamente é o negativo. Assim, em (16), o IPN “bulhufas” depende do contexto negativo criado por não e, em (17), do contexto criado por sem: (16) A Flávia não entende bulhufas sobre como preparar lasanhas. (17) A Flávia saiu do curso sem entender bulhufas sobre como preparar lasanhas. Já quando a expressão negativa é o operador nem, como nos dados (18-19), “diferentemente do que acontece na presença dos operadores ‘não’ e ‘sem’, os IPNs não são licenciados” (DAOUD, no prelo): (18) (19) *A Maria nem entendeu patavina (do assunto). *A Maria nem entendeu bulhufas (do assunto). Os dados apontam que há, por um lado, uma distinção entre os operadores não e sem, e, por outro, com nem, quando se trata de licenciamento de IPNs. Se “investigar a natureza das locuções de polaridade negativa é em grande parte investigar a natureza dos contextos que facultam (ou impedem) sua ocorrência”, conforme aponta Ilari (1984, p. 91), acreditamos que verificar quando o operador nem é capaz de licenciar IPNs pode contribuir para o entendimento da natureza dos próprios IPNs. Apesar da inaceitabilidade de dados como (18-19), seria precipitado afirmar que o operador nem nunca pode ocorrer com IPNs em PB. Uma primeira evidência de que esse quadro é mais intrincado é dada pelos exemplos (20-23), nos quais a presença de outro operador negativo em posição pré-verbal faz com que o uso de nem com IPNs passe a ser adequado: (20) (21) Ela fez a prova sem estudar nem entender patavina de álgebra. Ela fez a prova sem estudar nem entender bulhufas de álgebra. DAOUD, S. E. R. O licenciamento de... 106 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE (22) Não gosto nada daquilo, nem entendo patavina da poesia impossível do João Cabral de Melo Neto.4 (23) Não gosto nada daquilo, nem entendo bulhufas da poesia impossível do João Cabral de Melo Neto. (DAOUD 2017, p. 45) A partir deste ponto, faz-se necessário fazer uso da distinção do operador nem conjunção de coordenação e nem elemento adverbial, uma vez que a conjunção nem em coocorrência com os operadores não e sem, conforme (20-23), bem como a construção de tipo nem... nem, que também é utilizada na coordenação, parecem permitir o licenciamento de IPNs: (24) (25) Nem a Ana e nem a Paula entenderam patavina daquele assunto. Nem a Ana e nem a Paula entenderam bulhufas daquele assunto. Através dos dados apresentados até o momento, poderíamos ser levados a dizer que o nem elemento adverbial, conforme os dados (18-19), não é capaz de licenciar IPNs enquanto as formas de coordenação com nem (não... nem, sem... nem e nem... nem) seriam adequadas para esse licenciamento. Apesar de dar conta dos dados (18-25), essa descrição não parece ser a mais adequada, tendo em vista dados como (26): (26) Nem (mesmo) os candidatos fazem a mínima ideia de suas propostas. O dado em (26) apresenta uma expressão de polaridade negativa (fazer a mínima ideia) que é licenciada pelo operador nem elemento adverbial. Dessa forma, cabe observar qual propriedade distingue os IPNs que podem e que não podem ser licenciados pelo operador nem elemento adverbial. Seguindo Henriette De Swart (2001), argumentamos em favor da hipótese de que alguns IPNs impõem restrições de contexto mais estritas do que outros. Nesse sentido, cabe identificar IPNs pertencentes tanto ao grupo mais restritivo (itens de Dado encontrado a partir de pesquisa no site de buscas Google® e disponível em: <http://sushileblon2.blogs.sapo.pt/322393.html>. Acesso: 27 jun. 2017. 4 DAOUD, S. E. R. O licenciamento de... 107 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE polaridade forte) quanto ao grupo menos restritivo (itens de polaridade fraca) para, então, verificar se o operador nem adverbial tem comportamento distinto em relação a esses grupos. Focaremos a análise no nem adverbial em razão de termos concluído, através dos dados (18-19), em contraste com os dados (20-26), que é esse o uso de nem que apresenta comportamento peculiar em relação aos IPNs. Para identificarmos exemplares de IPNs dos dois grupos em PB, é preciso estabelecer o que caracteriza um item de polaridade forte e um item de polaridade fraca. Tendo isso em vista, descreveremos, com base em Mendes de Souza et al. (2008) e De Swart (2001) as seguintes propriedades: monotonicidade decrescente e denotação de função anti-aditiva. Essas propriedades vêm sendo utilizadas para descrever a distribuição dos IPNs, dado que há contextos em que não está presente uma expressão intrinsecamente negativa e que também permitem o uso de IPNs: (27) Menos de cinco clientes tocaram na comida que servimos. (28) Quando se trata de um assunto difícil como esse, poucas pessoas conseguem ver um palmo à frente do nariz. (29) Menos de seis funcionários dessa empresa são flor que se cheire. (30) Poucas pessoas fazem a mínima ideia daquilo que defendem. Para dar conta do licenciamento de certos IPNs em construções como (27-30), recorre-se, então, à noção de monotonicidade decrescente (MD), que seria a propriedade responsável pelo licenciamento de IPNs. A monotonicidade decrescente, conforme define De Swart (2001), remonta à teoria das funções, sendo caracterizada por permitir a inferência dos subconjuntos. A formalização da MD é dada em (31): (31) Monotonicidade decrescente: Se f(A) e A’ ⸦ A então f(A’) (de SWART, 2001, p. 112) Isso significa, em linhas gerais, que “expressões de MD licenciam raciocínios do todo para a parte, isto é, do superconjunto para o subconjunto” (MENDES DE SOUZA et DAOUD, S. E. R. O licenciamento de... 108 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE al. 2008, p. 33). Além disso, consideramos que “quantificadores são predicados de dois argumentos que estabelecem algum tipo de relação entre eles (que pode ser de inclusão, união ou intersecção entre os conjuntos denotados pelos argumentos)” (MENDES DE SOUZA et al. 2008, p. 33). Voltando aos dados (27-30), podemos utilizar a noção de MD definida em (31) para definir se menos de e poucos são expressões de MD: (32) (33) a. Menos de dez alunos saíram. b. Menos de dez alunos saíram tarde. a. Poucas pessoas chegaram. b. Poucas pessoas chegaram cedo. Em (32b) consideramos ‘saíram tarde’ como um subconjunto de ‘saíram’ e a inferência é verificada, da mesma forma que acontece em (33b), em que consideramos ‘chegaram cedo’ como um subconjunto de ‘chegaram’ e a inferência se verifica. Assim, é possível dizer que em (32) se menos de dez alunos saíram, então menos de dez alunos saíram tarde, enquanto que em (33) se poucas pessoas chegaram, então poucas pessoas chegaram cedo. Dessa forma, em ambos os casos (32-33) é possível ir do superconjunto para o subconjunto. O que se pode concluir, então, é que as expressões em questão têm a propriedade de MD. Também podemos concluir que os IPNs nos dados (27-30) são licenciados em contextos com a propriedade de MD, não necessariamente negativos. O que mostraremos, a seguir, é que os IPNs nos dados (1819) têm um comportamento particular em relação a esse licenciamento. (34) (35) (36) (37) *Poucas pessoas explicaram patavina. *Menos de dez alunos entenderam patavina. *Poucas pessoas falaram bulhufas. *Menos de dez alunos falaram bulhufas. Levando em conta as considerações de De Swart (2001) para dados do francês, argumentaremos que o contraste entre os dados (18-19), de um lado, e (26), de outro, DAOUD, S. E. R. O licenciamento de... 109 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE deve-se ao fato de IPNs como patavina e bulhufas imporem restrições mais fortes sobre seu contexto de ocorrência. Assim, ao invés de serem licenciadas em qualquer contexto de MD, “eles demandam uma função anti-aditiva” (DE SWART 2001, p. 114). Conforme a autora, as expressões que denotam funções anti-aditivas seriam um subconjunto das expressões que têm a propriedade da monotonia decrescente. Dessa forma, a propriedade de anti-aditividade é mais restrita do que a propriedade de MD, pois toda expressão capaz de denotar função anti-aditiva é igualmente capaz de denotar MD, porém a recíproca não é verdadeira. As funções anti-aditivas teriam a seguinte propriedade: (38) anti-aditividade f(A∪B) é equivalente a f(A) ∩ f(B) (de SWART, 2001, p. 114) Nessa configuração, de acordo com a autora, a união de dois argumentos ∪ é expressa nas línguas naturais pela disjunção ou, enquanto a interseção ∩ é expressa pela conjunção e. Reproduzimos, abaixo, os exemplos trazidos pela autora, que demonstram que, em inglês, without (sem) e not (não) têm a propriedade de denotar funções anti-aditivas, enquanto few (poucos), que é uma expressão de MD, não tem essa mesma propriedade: (39) a. Mary does not call or write. b. Mary does not call and Mary does not write. 5 c. He travels without a passport or a ticket. d. He travels without a passport and he travels without a ticket. e. Few students smoke or drink. f. Few students smoke and few students drink. (DE SWART, 2001, p. 114) a. Mary (AUX) não ligar ou escrever, ‘Mary não liga ou escreve’; b. Mary (AUX) não ligar e Mary (AUX) não escrever, ‘Mary não liga e Mary não escreve; c. Ele viaja sem um passaporte ou uma passagem, ‘Ele viaja sem passaporte ou passagem’; d. Ele viaja sem um passaporte e ele viaja sem passagem, ‘Ele viaja sem passaporte ou passagem’; e. Poucos estudantes fumam ou bebem, ‘Poucos estudantes fumam ou bebem’; f. Poucos estudantes fumam e poucos estudantes bebem, ‘Poucos estudantes fumam e poucos estudantes bebem’. 5 DAOUD, S. E. R. O licenciamento de... 110 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE Nos exemplos (39a-d), “há a equivalência entre a disjunção de argumentos no interior da função e a conjunção de dois sintagmas em que a função foi aplicada a cada um dos dois argumentos separadamente” (DE SWART 2001, p. 115, tradução nossa)6, ao passo que em (39e-f) a inferência só é possível em um sentido, de maneira que há a denotação de uma função decrescente, porém não anti-aditiva. Considerando isso, testamos os itens não, sem, poucos e menos de x, e os exemplos a seguir mostram que essas expressões têm as mesmas propriedades observadas para o inglês: (40) a. Eles não foram aprovados ou fizeram a rematrícula. b. Eles não foram aprovados e eles não fizeram a rematrícula. c. A Maria viajou sem dinheiro ou documentos. d. A Maria viajou sem dinheiro e a Maria viajou sem documentos. e. Poucas pessoas fumam ou bebem. f. Poucas pessoas fumam e poucas pessoas bebem. g. Menos de dez alunos colaram ou reprovaram. h. Menos de dez alunos colaram e menos de dez alunos reprovaram. Podemos dizer, então, que IPNs que ocorrem apenas em contextos anti-aditivos são itens de polaridade forte enquanto que IPNs que ocorrem em qualquer contexto de MD são itens de polaridade fraca. Como vimos, os IPNs bulhufas e patavina não são licenciados por expressões como menos de x e poucos, mas são permitidos quando coocorrem com não e sem. Assim, essas expressões são itens de polaridade forte, ao passo que tocar na comida, ver um palmo à frente do nariz, ser flor que se cheire e fazer a mínima ideia são itens de polaridade fraca. Uma vez que discutimos a distribuição dos itens de polaridade forte e fraca com base nas noções de monotonicidade decrescente e anti-aditividade, a questão que permanece é verificar se o operador nem adverbial apresenta um comportamento distinto quando coocorre com itens de polaridade forte e fraca. A partir dos dados (1819), constatamos que nem adverbial não cria um contexto capaz de licenciar bulhufas e No original: “il y a équivalence entre la disjonction d'arguments à l'intérieur de la fonction et la conjonction de deux phrases où la fonction a été appliquée à chacun des deux arguments séparément.” (DE SWART 2001, p. 115). 6 DAOUD, S. E. R. O licenciamento de... 111 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE patavina. Por outro lado, os dados a seguir mostram que itens de polaridade fraca são licenciados pelo operador em questão: (41) As crianças nem (mesmo/sequer) tocaram na comida. (42) Nem (mesmo/sequer) Maria (que é esperta) conseguia ver um palmo à frente do nariz de tão difícil que era o assunto. (43) Isso aí nem é flor que se cheire.7 (44) O vizinho nem é flor que se cheire.8 (45) Nem (mesmo/sequer) os melhores alunos fazem a mínima ideia de que vai cair na prova. A partir do conjunto de dados (41-45), nossa conclusão é que o operador nem adverbial denota MD (cf. 46) e, dessa forma, é capaz de licenciar itens de polaridade fraca, porém, por não denotar anti-aditividade, não licencia itens de polaridade forte. (46) a. A Flávia nem (sequer) chegou. b. A Flávia nem (sequer) chegou tarde. Em (46), há a inferência do subconjunto a partir do superconjunto, logo, se (46a) é verdadeira, (46b) é necessariamente verdadeira também, como se espera em contextos de MD. Já o dado (47) a seguir pode ajudar a demonstrar a não antiaditividade de nem adverbial, pois de (27a) se pode inferir (47b), mas não o contrário: (47) a. Nem (sequer) dez alunos foram aprovados ou apareceram para o exame. b. Nem (sequer) dez alunos foram aprovados e nem (sequer) dez alunos apareceram para o exame. Consideramos que nossa discussão é adequada enquanto observação empírica, pois apresentamos uma propriedade a partir da qual se pode distinguir dois grupos de IPNs e utilizamos essa distinção para descrever o comportamento de nem em relação a Dado encontrado a partir de pesquisa no site de buscas Google® e disponível em: <https://goo.gl/HfZHj5> Acesso: 27jun. 2017. 8 Dado encontrado a partir de pesquisa no site de buscas Google® e disponível em: <https://goo.gl/wS6zr7> Acesso: 27 jun. 2017. 7 DAOUD, S. E. R. O licenciamento de... 112 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE cada um dos grupos de itens de polaridade (forte e fraca). Se faz necessário observar, no entanto, “que não é o caso que essa descrição necessariamente explique o funcionamento do sistema por trás dos IPNs” (DAOUD, 2017, p. 51), isto é, em termos descritivos, as noções de monotonicidade decrescente e anti-aditividade parecem dar conta da interação do operador nem adverbial com IPNs, porém, disso não decorre que as regras gramaticais responsáveis por esse efeito estejam restritas à monotonicidade decrescente e à anti-aditividade, uma vez que a literatura sobre polaridade negativa mostra que este é um fenômeno complexo, e que tais noções não são suficientes para explicar toda a distribuição dos IPNs9. 3. CONSIDERAÇÕES FINAIS Neste trabalho, vimos que os IPNs podem ser divididos em dois grupos: itens de polaridade forte e itens de polaridade fraca, que são licenciados, respectivamente, em contextos anti-aditivos e de monotonicidade decrescente. O contexto anti-aditivo seria um subtipo mais restrito de monotonicidade decrescente e, dessa maneira, seria capaz de licenciar tanto itens de polaridade forte como itens de polaridade fraca, enquanto o contrário não se verifica. Vimos, também, que o nem adverbial somente é capaz de licenciar IPNs do último grupo e concluímos que o nem adverbial funcionaria como uma expressão de MD, porém incapaz de denotar anti-aditividade. REFERÊNCIAS DAOUD, Shehrazad Elis Ramos. Aspectos da negação sintática com o operador NEM em português brasileiro. 2017. 65 f. Monografia (Graduação) — Curso de Letras, UFPR, Curitiba, 2017. Algumas das diversas análises já realizadas para o fenômeno podem ser encontradas em: GIANNAKIDOU, A, The landscape of polarity items Ph.D. thesis, University de Groningen, 1997; LADUSAW, W. A., Polarity Sensitivity as Inherent Scope Relations, Garlandv, 1979; KRIFKA, M. The Semantics and Pragmatics of Polarity Items, 1995. 9 DAOUD, S. E. R. O licenciamento de... 113 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE ______________. “Primeiras reflexões a respeito da negação sintática com o operador ‘nem’ em Português Brasileiro”. In Cadernos da XIX Semana de Letras da UFPR vol. II, no prelo. (2017) DE SWART, Henriette. “Négation et coordination: la conjonction ni”. In BOK-BENNEMA, R., DE JONGE, B., KAMPERS-MANHE, B., MODENDJIK, A. (ed.). Adverbial modification, Rodopi: Ed. Amsterdam, 2001, pp. 109-124. GIANNAKIDOU, Anastasia, The landscape of polarity items Ph.D. 1997. 238 f. Tese em Linguística (University de Groningen — GRODIL), Groningen dissertations in linguistics, Groningen 1997. ILARI, Rodolfo. “Locuções negativas polares: Reflexões sobre um tema de todo mundo”. In Linguística: Questões e Controvérsias. Série estudos 10. Fac. Integrada de Uberaba, 1984, pp. 83-97. KRIFKA, Manfred. “The Semantics and Pragmatics of Polarity Items”. In Linguistic Analysis. v. 25, n. 34. 1995, pp. 209-257. LADUSAW, William A.. Polarity Sensitivity as Inherent Scope Relations. 1979. 236 f. Tese em linguística (University of Texas at Austin). Garland Publisher New York, Garlandv, 1979. MENDES DE SOUZA. Luisandro.; GRITTI, Letícia. L.; et al. “Um estudo sobre os itens de polaridade negativa no PB e seu licenciamento”. In Working Papers in Linguística, Florianópolis v. 9, n. 2, Florianópolis, jul-dez, 2008, pp. 23-40. NEVES, Maria Helena de Moura. Gramática de usos do português. São Paulo: Unesp, 2000. PERES, João Andrade. “Negação”. In RAPOSO, E. B. P. et al. (Coord.). Gramática do Português. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2013, pp. 459-498. Recebido em: 10/08/2017 Aceito em: 11/09/2017 DAOUD, S. E. R. O licenciamento de... 114 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE UMA BREVE INTRODUÇÃO A UMA NOVA ABORDAGEM PARA A LINGUAGEM A SHORT PRIMER TO A NEW APPROACH TO LANGUAGE1 Michal Starke2 Tradução e apresentação de: Valdilena Rammé (UNILA) Diogo Simão (UFPR) RESUMO: A Nanossintaxe é uma abordagem inovadora para a arquitetura da linguagem, desenvolvida no intuito de trazer (mais) sentido para uma nova imagem empírica emergente nestes últimos anos de pesquisa sintática. É um projeto de larga escala, que aborda uma grande variedade de problemas, desde grandes questões como a modularidade da linguagem, até detalhes mais finos, como a derivação da alomorfia em padrões irregulares de determinadas línguas e sua interação com estruturas sintáticas. Palavras-chave: Nanossintaxe; Linguagem; Teoria. ABSTRACT: Nanosyntax is a novel approach to the architecture of language, designed to make (better) sense of the new empirical picture emerging from recent years of syntactic research. It is a large-scale project, addressing a wide array of issues, ranging from big ones such as the modularity of language, to fine details, such as the derivation of allomorphy in irregular patterns of given languages and its interaction with syntactic structures. Keywords: Nanosyntax; Language; Theory. Este texto foi previamente publicado na revista Nordlyd, v. 36, n. 1, pp. 01-06, 2010. Traduzido e publicado com a autorização do autor. Disponível em: <http://septentrio.uit.no/index.php/nordlyd/article/view/213> 2 Michal Starke é professor na Universidade de Tromsø, Noruega, e também trabalha como pesquisador no Center for Advanced Study in Theoretical Linguistics — CASTL, ligado à mesma instituição. É comumente referido como o precursor da linha de pesquisa conhecida como Nanossintaxe. 1 STARKE, M. Uma breve introdução... 115 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE APRESENTAÇÃO O artigo de Michal Starke “A short primer to a new approach to language”, aqui traduzido, apresenta uma nova visão sobre a arquitetura da gramática que vem sendo desenvolvida na última década e meia sob o nome de Nanossintaxe. Este quadro teórico surge como um desdobramento de pesquisas originalmente desenvolvidas dentro do Programa Minimalista (CHOMSKY, 1995) e da Cartografia (CINQUE, 2002; CINQUE & RIZZI, 2010). Starke, da Universidade de Tromsø, Noruega, é apontado como seu fundador. Nosso objetivo com esta tradução é, assim, apresentar a proposta de Starke aos leitores, aos estudantes de Letras e aos linguistas brasileiros. De forma breve, é possível dizer que a proposta central de Starke se fundamenta na possibilidade de uma representação sintática articulada a partir de elementos muito menores que palavras e morfemas, daí o nome Nanossintaxe. O texto a seguir, deste modo, apresenta e defende tal hipótese através de uma síntese feita a partir de argumentos teóricos e empíricos resultantes das mais diferentes pesquisas desenvolvidas nesta área nos últimos anos. Como veremos, além dessa possibilidade de representação sintática, a Nanossintaxe de Starke trabalha com várias outras hipóteses. Entre elas, por exemplo, encontra-se a noção de que não somente terminais sintáticos, mas também nós não terminais sejam locus de inserção. Logo, propõe-se o Princípio de Inserção Sintagmática, i.e., sintagmas inteiros são selecionados para inserção ou combinação, termo mais usado na Nanossintaxe. Ainda, a partir de um trabalho de Ramchand (2006), uma nova proposta tem sido bastante difundida: a de que os módulos sintático e semântico devem convergir em um único sistema gerativo. Ou seja, tanto a sintaxe quanto a semântica operariam sobre os mesmos elementos primitivos e segundo os STARKE, M. Uma breve introdução... 116 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE mesmos princípios (poderíamos dizer, então, que a Nanossintaxe proposta por Starke e Ramchand tem, essencialmente, uma interface sintático-semântica). Tendo em vista o potencial que tal teoria apresenta para o estabelecimento de novas formas de enxergar os problemas tradicionais da linguística, alguns pesquisadores brasileiros já vêm desenvolvendo trabalhos dentro deste quadro. Entre eles, podemos mencionar a tese de doutorado de Marcos Eroni Pires (2016)3, a dissertação de mestrado de Thayse L. Ferreira (2017)4 e a dissertação de mestrado e a tese de doutorado de Valdilena Rammé (2012; 2017)5. Desta maneira, acreditamos que a necessidade de um texto introdutório sobre a Nanossintaxe em português se tornou imperativa. Uma vez que o texto de Starke (2005) exibe clareza e concisão na apresentação e no tratamento dos conceitos, dos princípios e das propostas basilares da Nanossintaxe, além de mencionar os principais trabalhos de pesquisa dentro desta linha ao redor do mundo, confiamos que sua leitura será de grande proveito para os(as) leitores(as) brasileiros(as). Por fim, inserimos, em alguns momentos específicos do texto, notas com comentários e reflexões sobre nossas decisões no que diz respeito à tradução de alguns termos (como lexicalization e spell out, por exemplo, que se tornaram ambas, para nós, ‘lexicalização’). Ocorre que, na passagem de uma língua para outra, alguns conceitos ou termos relativamente bem estabelecidos em outros idiomas podem ter uma interpretação ambígua ou ser de difícil compreensão. Julgamos necessário, PIRES, Marcos Eroni. Nanossintaxe dos domínios verbal e preposicional nas construções de inversão locativa do português. 2016. 184f. Tese de Doutorado - Instituto de Estudos da Linguagem. Universidade Estadual de Campinas. Campinas. 4 FERREIRA, Thayse Letícia. O processo de causativização de inergativos e inacusativos no Português Brasileiro: por uma abordagem nanossintática. 2017. 182f. Dissertação de Mestrado – Centro de Educação e Ciências Humanas. Universidade Federal de São Carlos. São Carlos. 5 RAMMÉ, Valdilena. A expressão do deslocamento nas línguas naturais. 2012. 144f. Dissertação de Mestrado – Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes. Universidade Federal do Paraná. Curitiba; e RAMMÉ, Valdilena. Mudança semântica no PB: reanálise restringida pela hierarquia funcionalconceitual universal. 2017. 296f. Tese de Doutorado – Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes. Universidade Federal do Paraná. Curitiba. 3 STARKE, M. Uma breve introdução... 117 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE portanto, comentar rapidamente, quando for o caso de a nossa tradução apresentar alguma possível confusão, qual a escolha feita por nós e sua justificativa, para que haja um maior entendimento do texto. Apresentações, ressalvas e explicações feitas, vamos ao Starke e à Nanossintaxe. 1. OS ÁTOMOS DA LINGUAGEM SÃO MENORES DO QUE PENSÁVAMOS A premissa que leva ao projeto nanossintático é muito simples: a pesquisa em Sintaxe produziu belas generalizações empíricas nos últimos 30 anos, e essas generalizações levaram a uma profunda mudança no tipo de representações mentais ("estruturas sintáticas") que são atribuídas aos falantes. Essa profunda mudança permaneceu, entretanto, dentro do domínio empírico e notacional, desconectada da teoria sintática propriamente dita: a teoria usada nas novas estruturas é em grande parte semelhante à teoria usada há 20 anos (apesar das mudanças terminológicas). Tal teoria não é, porém, adequada para os novos resultados. A questão inicial era, na verdade, bem simples: o que o novo quadro empírico está nos dizendo? O que aprendemos com essas belas generalizações? A resposta, que descobriríamos depois, é surpreendentemente simples, embora carregue consequências profundas: as novas estruturas sintáticas são muito maiores, e continuam crescendo. Como resultado, seus ingredientes (seus nós terminais) estão se tornando muito menores. Isso acaba por contradizer um princípio fundamental do campo: a suposição profundamente enraizada de que os ingredientes da estrutura sintática (os nós terminais) são itens lexicais, "palavras" ou "morfemas". A contradição decorre do fato de que a ortodoxia vê a sintaxe como uma maneira de organizar itens lexicais. Contudo, à medida que as estruturas sintáticas cresceram, seus terminais não só se tornaram "muito menores", como também se tornaram submorfêmicos — menores do que morfemas individuais. STARKE, M. Uma breve introdução... 118 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE Consequentemente, os terminais não podem ser itens lexicais (morfemas ou palavras) e, portanto, a sintaxe não pode ser um dispositivo para arranjar itens lexicais em estruturas. O campo está, portanto, em uma posição em que seus pressupostos fundamentais encontram-se em conflito com os resultados de suas melhores pesquisas. Logo, precisamos reconsiderar a ortodoxia, questionando a própria premissa de que a sintaxe opera com itens lexicais. A Nanossintaxe é o resultado deste questionamento. 2. DIFERENÇAS EM TAMANHO Uma consequência imediata de os terminais serem submorfêmicos é que muitos — talvez a maioria — dos morfemas cobrirão (se combinarão com) vários terminais. Portanto, eles corresponderão a uma subárvore inteira ao invés de corresponderem a um terminal. Isso quer dizer que o léxico contém subárvores, ou, em outras palavras, árvores sintáticas, emparelhadas com informações fonológicas e conceituais. Deste modo, as entradas lexicais devem ter minimamente a forma <informação fonológica, árvore sintática, informação conceitual>, e a lexicalização6 se torna uma operação que combina a árvore construída pela sintaxe com as (sub)árvores armazenadas dentro de entradas lexicais (STARKE, 2002). Por outro lado, agora, a sintaxe precisa aplicar uniformemente os mesmos princípios a traços, "morfemas", "palavras" e "frases", pois todos eles são constituintes de uma rica árvore sintática, com traços no lugar de terminais e todos os outros como não terminais. Na Nanossintaxe, o termo “lexicalização” é usado como um equivalente de spell out, i.e., dizemos que um item lexicaliza uma construção da sintaxe quando este item é capaz de se combinar de maneira satisfatória a todos os traços da árvore criada, acrescentando, assim, conteúdo fonológico e conceitual-enciclopédico à estrutura sintática. Por este motivo, usaremos o termo “lexicalização” tanto para a tradução de spell out, como de lexicalization. 6 STARKE, M. Uma breve introdução... 119 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE Com esta visão, os resultados da pesquisa em Sintaxe fazem sentido, isto é, entende-se a natureza submorfêmica dos terminais: se os itens lexicais correspondem a constituintes inteiros, é evidente que os ingredientes desses constituintes são menores que os itens lexicais. Esta hipótese também oferece uma abordagem radicalmente diferente da arquitetura da linguagem: ao contrário de todas as outras abordagens, não há nenhum léxico alimentando a sintaxe. A sintaxe é um sistema inteiramente pré-lexical e o léxico é uma forma de interpretar a sintaxe (e de mapeá-la para outras representações — como representações conceituais e representações gestuais (fonológicas)). Empiricamente, esta visão também nos leva a muitos caminhos de pesquisa novos e animadores. Por exemplo, uma vez que os itens lexicais não estejam mais confinados a terminais, eles podem ter tamanhos sintáticos diferentes — i.e., itens lexicais diferentes podem corresponder a porções de estrutura sintática diferentes. Esta observação básica nos fornece uma nova ferramenta para entender vários contrastes sintáticos e tem levado a vários programas de pesquisa. Neste sentido, um caminho que explorei foi a observação de que elementos lexicais de vários tamanhos levam a diferentes categorias sintáticas (substantivos eventivos são "maiores" do que substantivos não-eventivos, verbos são maiores do que substantivos que são, por sua vez, maiores do que adjetivos, etc.). Sendo viável, essa linha de pesquisa levaria a uma teoria não-paroquial de categorias sintáticas — uma conquista muito procurada.7 A maior parte da pesquisa atual dentro da Nanossintaxe se concentra em duas outras consequências da hipótese de "tamanhos diferentes para itens lexicais diferentes". Em primeiro lugar, os morfemas agora têm estrutura sintática interna e, portanto, é possível capturar, de acordo com princípios, seus comportamentos variáveis, bem como a interação entre seus ingredientes e o resto da sintaxe. Veja também, para discussões relacionadas com essa linha de pensamento: LUNDQUIST, Björn. Nominalizations and Participles in Swedish. Ph.D. thesis, University of Tromsø, 2008. 7 STARKE, M. Uma breve introdução... 120 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE Observou-se, desde o princípio, que a Nanossintaxe permite uma abordagem elegante para o fenômeno do sincretismo (STARKE, 2002). Se a combinação entre árvores sintáticas e árvores armazenadas nos itens lexicais não é um perfeito mapeamento de um para um (ou seja, uma árvore armazenada no léxico corresponde a uma subárvore da sintaxe quando ambas são exatamente idênticas), mas sim uma combinação que permite subconjuntos, então qualquer entrada lexical poderá se combinar com uma gama de árvores sintáticas, resultando em uma teoria restrita de sincretismo. A combinação deve seguir, portanto, ao longo das linhas de: (1) Uma árvore armazenada no léxico se combina com um nó sintático se e somente se a árvore armazenada no léxico contiver o nó sintático. A formulação em (1) se baseia na percepção de que qualquer subárvore da árvore armazenada no léxico também está armazenada no léxico e, portanto, é uma combinação potencial para qualquer arranjo que a sintaxe tenha construído. Como consequência de (1), a árvore lexical sempre será um superconjunto — apropriado ou não — da sintaxe que ela lexicaliza. O princípio de correspondência em (1) é, assim, às vezes, chamado informalmente de Princípio do Superconjunto. O primeiro argumento empírico para (1) foi baseado no sufixo inglês -ed (STARKE 2002; STARKE 2005). Este sufixo tem tanto uma "leitura" ativa (hedanc-ed — “ele dançou”; hefold-ed thesheet — “ele dobrou a folha”8) e uma "leitura" passiva (The sheetswerefold-ed — “As folhas foram dobradas”), e ambas correspondem a uma sintaxe muito diferente. A relação entre estas duas sintaxes diferentes é, todavia, entendida como uma relação de subconjunto/superconjunto: uma passiva é uma versão deficiente da ativa, em que a deficiência é muitas vezes expressa 8No inglês, o item -ed é utilizado tanto para flexionar o verbo no pretérito perfeito simples, quanto nos particípios regulares. Na falta de um equivalente em português, deixamos os exemplos originais do inglês. STARKE, M. Uma breve introdução... 121 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE estruturalmente (por exemplo, falta de "vP" na passiva). Se a representação lexical de -ed corresponder à estrutura ativa maior, o princípio de combinação em (1) permitirá que ele especifique a estrutura do subconjunto deficiente das passivas também. Logo, esta hipótese deriva o fato de o sufixo -ed ser sincrético entre uma leitura ativa e uma passiva. Neste trabalho inicial, a abordagem do sufixo -ed foi estendida à distinção entre passados, simples e perfeitos, e passivas, verbais e adjetivais (ambasestado-Reestado-T9). Ramchand (2006) é outro exemplo dessa lógica, mostrando que os quebra-cabeças tradicionais em relação às classes verbais recebem uma solução elegante ao aplicarmos o Princípio do Superconjunto (que Ramchand também chama de "subassociação") a uma estrutura sintática do tipo [iniciador [processo [resultado]]]. 3. CONCORRÊNCIA EM TAMANHO O segundo aspecto de se ter "vários tamanhos de itens lexicais" está relacionado ao fato de que, agora, itens lexicais competirão entre si para lexicalizar as árvores que a sintaxe produzir. A situação mais simples é aquela em que um item lexical é maior do que seus concorrentes. No caso mais simples, um item lexical pode lexicalizar toda a árvore sintática de uma só vez, enquanto que cada um dos concorrentes menores pode lexicalizar uma filha dessa estrutura. Um exemplo desse padrão é encontrado nos plurais irregulares do inglês, como mice10: a árvore sintática [N plural] é lexicalizada por dois itens lexicais diferentes na palavra elephants, mas por um único item lexical 9Do inglês, “T-states”, ou “targetstates”, traduzidos como estados-alvo, e R-states ou “Resultantstates”, traduzidos como estados-resultantes. Segundo Kim (2004, p. 224), um estado-resultante “descreve o estado do argumento Tema depois da culminação do evento descrito pela sentença” (“(...)describes the state of the Theme argument of the verb after the culmination of the event described by the sentence”). Já um estado-alvo é a descrição da localização de um argumento Tema depois da culminação de um evento, como por exemplo, a “bola estar no telhado” que resulta da descrição “Mary jogou a bola no telhado” (Mary has thrown a ball onto the roof.) (KIM, 2004, p. 226). 10Do inglês, “ratos”. STARKE, M. Uma breve introdução... 122 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE em mice11. O item lexical mice codifica toda a árvore [N plural], mas tem dois concorrentes que poderiam colaborar na lexicalização da mesma árvore: mouse = N e ‘-s’ = plural, criando a palavra *mouse-s. A generalização descritiva é sempre a seguinte: (2) Teorema: o maior vence. Este teorema é uma consequência da atual arquitetura da Nanossintaxe. A lexicalização é tomada como um processo cíclico, com uma tentativa de inserção após cada operação de mergir. Além disso, cada lexicalização bem sucedida apaga e se sobrepõe às lexicalizações bem sucedidas anteriores. Uma vez que a operação mergir acontece de baixo para cima, a combinação maior sempre substituirá as combinações menores e, portanto, (2) emerge como um teorema. Outra ilustração desta situação é encontrada nos tempos passados irregulares: enquanto fold-ed12 usa dois itens lexicais diferentes para soletrar [V pretérito], formas como went ou flew13lexicalizam a árvore inteira [V passado] com um único item lexical. Novamente, a contraparte regular é bloqueada: *goed, *flied14. E, novamente, de forma descritiva, o item lexical correspondente à maior subárvore vence a competição — uma consequência da sobreposição cíclica. Outra situação central de competição é quando dois itens lexicais diferentes parecem ser capazes de lexicalizar um mesmo nó sintático de uma só vez. Este 11Em elephants temos o item elephant lexicalizando [N], enquanto que o morfema “-s” lexicaliza o conceito de [plural]: [N[elephant]] à [N[elephant]PLURAL[s]]. Já no caso de alguns plurais do inglês, um único elemento lexicaliza ambos os conceitos: [N[mouse]] à [N-S[mice]]. No português, “lápis”. 12 Ver Nota 2. 13 Went pode ser traduzido como “foi” e flew como “voou”. São exemplos de formas irregulares do pretérito perfeito simples e do particípio passado no inglês. 14 Seria de se esperar que a forma do pretérito perfeito simples e do particípio passado do verbo go, por exemplo, fosse go-ed. Contudo, como já mencionado, essas formas regulares são bloqueadas pela existência de uma forma como went que lexicaliza sozinha a raiz verbal e o traço “passado” normalmente associado a -ed. STARKE, M. Uma breve introdução... 123 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE fenômeno também é ilustrado por mice, went, flew, etc. No singular de mouse, por exemplo, existem dois concorrentes para a estrutura sintática 'N': mouse ([N]) propriamente dito e mice ([N plural]). Isso acontece porque o princípio (1) permite que uma subárvore de mice especifique a estrutura sintática, e [N plural] de fato contém a subárvore [N]. Aqui, a generalização descritiva é novamente clara: o competidor que codificar menos material sobressalente, não utilizado, é o vencedor. Como um rótulo conveniente, às vezes, chamo isso de Princípio Minimize o Lixo — mas isto é, na verdade, um exemplo de um princípio mais conhecido e difundido: o Princípio Elsewhere. O item lexical codificando menos "lixo" é menor e, portanto, se combina a menos ambientes (levando-se em conta (1)). Consequentemente, o item menor é mais especializado, ou "específico". Logo, MINIMIZE O LIXO equivale a "o mais específico vence", que é o PRINCÍPIO “ELSEWHERE”. (3) Em cada ciclo, se vários itens lexicais se combinam como nó raiz, o candidato com menos nós sobressalentes (não usados) vence a competição (consequência do Princípio Elsewhere). Estes três ingredientes (Princípio do Superconjunto, Lexicalização Cíclica, Princípio Elsewhere) produzem uma teoria elegante e surpreendentemente poderosa sobre morfossintaxe, sincretismos, alomorfias e, de forma geral, sobre a correspondência entre sintaxe e léxico. Starke (2002; 2005) também demonstra que essa abordagem ainda pode explicar toda a gama de formas irregulares que, em inglês, alternam com o morfema -ed na expressão do pretérito: a distribuição das formas -en, -ed e das formas opacas (por exemplo, sit / sat / sat) vem a ser uma consequência das árvores sintáticas que estes itens codificam, aliada aos dois princípios de concorrência apresentados acima. Não há necessidade de poder adicional, como regras específicas ao contexto na morfologia ou no léxico. STARKE, M. Uma breve introdução... 124 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE Esta lógica geral tem ilustrado uma variedade de intrincados padrões morfossintáticos. Caha (2009), analisando uma ampla gama de línguas, mostra que os sincretismos nos paradigmas de Caso das declinações nominais decorrem do aparato nanossintático. A lógica do superconjunto, juntamente com uma visão inovadora da estrutura subjacente aos Casos — que seria uma estrutura de traços cumulativos e privativos organizados em uma árvore sintática — permite derivar os sincretismos existentes, ao mesmo tempo em que exclui os sincretismos não testados. Isso leva Caha a uma nova abordagem da teoria de Casos, oferecendo novos insights sobre muitos fenômenos relacionados aos Casos. Da mesma forma, Taraldsen (no prelo) mostra que as diferenças de tamanho oferecem uma solução promissora para um problema tradicional de morfossintaxe: os sincretismos parciais dos marcadores de classe em Bantu, que sempre resistiram a uma abordagem em função de princípios. Taraldsen deriva com sucesso estes sincretismos do Princípio do Superconjunto, junto com uma visão articulada de suas estruturas sintáticas subjacentes. Uma série de outras linhas de pesquisa surgiram a partir da mesma lógica e estrutura (TARALDSEN & MEDOVÁ, 2007; SON & SVENONIUS 2008; PANTCHEVA 2009; etc). São muitas para sintetizar aqui. 4. UMA MANEIRA DE ENXERGAR A MODULARIDADE E AS INTERFACES Muitas outras avenidas para a pesquisa foram abertas pela Nanossintaxe, tanto na, quanto para além da, questão do tamanho. Dois exemplos proeminentes talvez valham menção. O aspecto de frase de saída da Nanossintaxe oferece enormemente uma avenida entre idiomas. Confinar itens lexicais em terminais é incompatível com o fato mais simples sobre idiomas: eles são expressões multiterminais armazenadas em locais como o léxico. Como resultado, não existem abordagens com credibilidade aos idiomas nas teorias que restringem a saída a terminais. A Nanossintaxe expressa a STARKE, M. Uma breve introdução... 125 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE propriedade de “multi-palavra” e de “multi-terminal” dos idiomas diretamente — simplesmente por armazenar todo o constituinte (por exemplo, um [VP = chutar o balde]) em uma entrada lexical. Claro, muitas questões sobre idiomas permanecem sem resolução (e também sem serem descritas), mas a ideia de frase de saída abre o caminho para um confronto produtivo com essas questões. Outro exemplo de uma nova direção que a Nanossintaxe e as frases de saída oferecem é a questão dos efeitos emoldurantes no reino da morfofonologia. Muitos fenômenos emoldurantes são casos em que um nó não terminal da morfossintaxe é marcado por uma restrição fonológica (por exemplo, o nó deve corresponder a “duas moras”, etc.). Em vários desses casos, o constituinte que está por trás da restrição do desenho fonológico não é uma “palavra” nem um “morfema”; é um nó intermediário na representação — um nó “frasal”. A questão é como expressar a correspondência entre o constituinte e o desenho fonológico. Essa questão tem sido um mistério, e é largamente deixado de lado em teorias tradicionais. A Nanossintaxe, entretanto, traz uma resposta: uma vez que árvores inteiras são armazenadas no léxico, a entrada lexical não vai ter problema em associar um constituinte fonológico (o desenho) com uma frase sintática. Fenômenos como os idiomas ou desenhos frasais podem ser lidados com a Nanossintaxe, mas não pela sintaxe tradicional; e isso constitui um argumento adicional importante para a abordagem nanossintática. Novas considerações, similarmente, garantem o relacionamento entre sintaxe e semântica — um tópico de muito interesse entre os pesquisadores dentro da Nanossintaxe. 5. CONCLUSÃO A Nanossintaxe oferece uma visão radicalmente nova da arquitetura da gramática. Ela parte do consenso de que “a sintaxe se projeta do léxico”. A sintaxe se STARKE, M. Uma breve introdução... 126 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE projeta de estruturas singulares e nada mais. Estruturas singulares são concatenadas juntas em novas árvores binárias (que são familiares), eventualmente atingindo o tamanho de um morfema, uma palavra e uma frase. A Sintaxe não se constrói por morfemas, ela constrói morfemas. Existe uma ideia, então, de que essa sintaxe é uma “linguagem-livre”: unidades estritamente relacionadas à linguagem como morfemas e palavras são simplesmente ausentes de sintaxe. Sintaxe é, antes, um agrupamento recursivo e abstrato de traços formais tais como “contável”, “singular”, “definido”, “eventivo”, “passado”, etc. sem nenhum conhecimento de palavras ou morfemas. É totalmente concebível, então, que a linguagem seja apenas uma das várias maneiras de interpretar uma estrutura abstrata — um resultado que talvez faça sentido nos resultados experimentais recentes da ciência cognitiva. Mas esse é um escopo que está bem além do que pretendemos neste texto. REFERÊNCIAS CAHA, Pavel. The Nanosyntax of Case. 2009. 334f. Ph. D thesis - Faculty of Humanities, Social Sciences and Education. University of Tromsø. Tromsø. CINQUE, Guglielmo. “Mapping Functional Structure: A project.” In: CINQUE, Guglielmo. Functional structure in DP and IP: The cartography of syntactic structures. New York: Oxford Univesity Press, 2002. pp. 3-14. CINQUE, Gulielmo & RIZZI, Luigi. Mapping Spatial PPs: The cartography of syntactic structures. Vol. 6. New York: Oxford University Press, 2010. CHOMSKY, Noam. The minimalist program. Cambridge, MA: MIT press, 1995. FERREIRA, Thayse Letícia. O processo de causativização de inergativos e inacusativos no Português Brasileiro: por uma abordagem nanossintática. 2017. 182f. Dissertação de Mestrado – Centro de Educação e Ciências Humanas. Universidade Federal de São Carlos. São Carlos. LUNDQUIST, Björn. Nominalizations and Participles in Swedish. Ph.D. thesis, University of Tromsø, 2008. STARKE, M. Uma breve introdução... 127 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE KIM, Min-Joo. Event-Structure and the Internally-Headed relative clause construction in Korean and Japanese. 2004. 300f. Dissertation – Graduate School of the University of Massachusetts Amherst. University of Massachusetts Amherst. Amherst. PANTCHEVA, Marina. Directional expressions cross-linguistically: Nanosyntax and lexicalization. Nordlyd 36(1), 2009, pp. 7-39. PIRES, Marcos Eroni. Nanossintaxe dos domínios verbal e preposicional nas construções de inversão locativa do português. 2016. 184f. Tese de Doutorado - Instituto de Estudos da Linguagem. Universidade Estadual de Campinas. Campinas. RAMCHAND, Gillian. Direct and indirect causation in Hindi/Urdu. Handout. Workshop on Clitics, University of Konstanz, Germany, 2006. RAMMÉ, Valdilena. A expressão do deslocamento nas línguas naturais. 2012. 144f. Dissertação de Mestrado – Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes. Universidade Federal do Paraná. Curitiba. ________. Mudança semântica no PB: reanálise restringida pela hierarquia funcional-conceitual universal. 2017. 296f. Tese de Doutorado – Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes. Universidade Federal do Paraná. Curitiba. SON, Minjeong; SVENONIUS, Peter. “Microparameters of crosslinguistic variation: Directed motion and resultatives”. In ABNER, NATASHE & BISHOP, Jason. Proceedings of the 27th West Coast Conference on Formal Linguistics. Cascadilla, Somerville, Ma, 2008, pp. 388–396. STARKE, Michal. The day syntax ate morphology. Class taught at the EGG summer school, Novi Sad, 2002. ________. Nanosyntax. Seminar taught at CASTL, University of Tromsø, 2005. TARALDSEN, Knut Tarald. The nanosyntax of Nguni noun class prefixes and concords. Lingua. (no prelo). TARALDSEN, Tarald; MEDOVÁ, Lucie. The Czech locative chameleon. In BAˇSI´C, Monika; PANTCHEVA, Marina; SON, Minjeong; SVENONIUS (ed.). Tromsø Working Papers on Language and Linguistics: Nordlyd 34.2, Special issue on Space, Motion, and Result. University of Tromsø, Tromsø, 2008, pp. 300-319. Available at <http://www.ub.uit.no/baser/nordlyd/>. Acesso em: 04/10/2017 Recebido em: 10/07/2017 Aceito em: 02/10/2017 STARKE, M. Uma breve introdução... 128 ESTUDOS LITERÁRIOS LITERARY STUDIES Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE A MEMÓRIA E A VIOLÊNCIA EM “RODA DE PAU”, DE DINORATH DO VALLE THE MEMORY AND THE VIOLENCE IN “RODA DE PAU”, BY DINORATH DO VALLE Pâmela Coca dos Santos Ramos1 RESUMO: Este artigo apresenta uma leitura analítico-interpretativa de “Roda de Pau”, conto do livro O vestido amarelo, de Dinorath do Valle. No conto, o protagonista Paulão interrompe seu trabalho para ir ao banheiro e, lá, relembra episódios violentos de sua vida familiar. Por isso, demora a voltar ao trabalho, e é demitido. Algo marcante na história narrada é a memória e sua relação com o desenvolvimento do tema (violência), que demanda procedimentos de construção que buscaremos aqui analisar e interpretar detalhadamente. Palavras-chave: Memória; Narrativa; Violência. ABSTRACT: This paper analyzes the short-story “Roda de Pau”, from the book O Vestido Amarelo, by Dinorath do Valle. The protagonist (Paulão) stops his work to go to the bathroom. There, he remembers violent moments of his life, takes too long to go back to his job, and ends up fired. Something important in the short-story is the memory and its connection to the development of the theme (the violence), which demands construction techniques we seek to analyze and interpret more deeply in this paper. Keywords: Memory; Narration; Violence. A escritora Dinorath do Valle viveu de 1926 a 2004. Foi professora, historiadora, jornalista, cronista no rádio e roteirista de cinema. Com sua obra literária ganhou prêmios como o 2º Concurso Nacional de Contos do Paraná, o Prêmio Governador do Estado de 1971, e o Prêmio Casa de Las Américas (Cuba) com o romance Pau-Brasil. Embora a obra de Dinorath do Valle seja rica, o livro de contos O vestido amarelo é, ainda, pouco difundido. Segundo Antônio Manoel dos Santos Silva: “O vestido 1 Graduanda, UNESP, bolsista IC, FAPESP. RAMOS, P. C. dos S. A memória e... 130 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE amarelo é de 1971, mas só em 1976 foi editado pela Artenova [...]. Parece-nos que o livro não vendeu muito, mas quem não o leu deixou de tomar contato com uma agilíssima e surpreendente linguagem [...]” (SILVA, 2006, p. 136). Em decorrência dessa pouca difusão, a produção literária da escritora, incluindo o livro de contos, tem ainda poucas leituras críticas. Levando tal fato em consideração, faremos nesse artigo uma leitura analíticointerpretativa do conto “Roda de Pau”, retirado do livro O vestido amarelo, de Dinorath do Valle. Nessa leitura, buscaremos nos aprofundar na construção da memória no conto, que é feita por um narrador de primeira pessoa protagonista e tece uma trama cheia de anacronias — característica já anteriormente constatada na escrita de Dinorath do Valle, conforme atesta o Dicionário Crítico de escritoras brasileiras, de Nelly Novaes Coelho: “Visceralmente alimentada de brasilidade, humanismo, universalismo e contemporaneidade, a ficção de Dinorath do Valle expressa as mais autênticas conquistas do moderno e do pós-moderno (os jogos experimentalistas de linguagem, a ruptura do tempo-espaço linear, a redescoberta do passado nacional e a denúncia dos males [...].)” (COELHO, 2002, p. 161, grifo nosso). Feita essa breve contextualização sobre a obra da autora, partiremos agora para a análise do conto que, por constituir-se de memórias e anacronias, exige a apresentação de sua trama. Entendendo por trama o “modo como a história narrada é organizada sob a forma de texto”, “a própria construção do texto narrativo, sua ‘arquitetura’” (FRANCO JR, 2003, p. 36), tentaremos expor como a memória e os recursos com os quais ela é construída são importantes para o desenvolvimento do tema. Para fazer essa apresentação da trama, falaremos sobre os diversos flashbacks que constroem a anacronia do conto e sobre o modo como eles se conectam entre si a partir da consciência do protagonista Paulão. Além disso, tentaremos mostrar como essa e outras técnicas para a construção da memória são importantes para o RAMOS, P. C. dos S. A memória e... 131 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE desenvolvimento da tematização e da narração. Técnica importante para a construção do tema do conto, o flashback (também chamado de analepse) é definido como: “recuos no tempo, que permitem a recuperação de fatos passados” (FRANCO JR, 2003, p. 47). Começaremos do início do conto, antes de os flashbacks acontecerem. Na fábula do conto, Paulão interrompe o seu trabalho para ir ao banheiro. Como espaço predominantemente fechado e doméstico, o banheiro é retratado recorrentemente ao longo da narrativa e liga seu momento presente fora do trabalho a memórias não só de sua infância, mas também de outras situações cotidianas como, por exemplo, aquelas vividas em seu contexto profissional, servindo como elemento disparador dos flashbacks. É por este papel disparador que esse espaço apresenta que Paulão, quando vai ao banheiro abandonado perto de seu local de trabalho, relembra alguns momentos do passado e é demitido por demorar demais para voltar para seu serviço. A trama inicia-se com os pensamentos de Paulão, que está em seu trabalho como chefe de uma equipe. Narrados em primeira pessoa, os pensamentos indicam que sua profissão é a de mestre de obras, já que comanda um grupo de pessoas que fazem serviços como “puxar enxada”, ferramenta utilizada em construções: “Penso, é uma rodeira dando voltas, ter que mandar deixa esperto [...]. Me chamam de senhor, não nasci pra puxar mas já puxei, subi pra carreiro, fico vendo trabalhar [...] sou chefe de turma, se param solto flechada de olho, disfarçam e emendam no enxadão. Quero todos emendados, medo emenda” (VALLE, 1976, p. 29). Sendo chefe, Paulão tem maior liberdade do que seus subordinados, controlados por ele através do medo, como podemos ver no trecho “[q]uero todos emendados, medo emenda”, onde emendar pode ser lido como sinônimo de corrigir (vemos, desde esta constatação, o papel que a violência representa para Paulão). Como a função de Paulão é supervisionar, quando ele sente vontade de ir ao banheiro, sai durante o RAMOS, P. C. dos S. A memória e... 132 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE expediente: “Estou com vontade fora de hora, para isso não tem hora, é que nem crescimento, a comida entubando quer desentubar” (VALLE, 1976, p. 29). Para isso, Paulão sai do ambiente de trabalho em busca de um banheiro e encontra, em uma casa sem cerca e aparentemente vazia, uma latrina dentro de uma casinha. O buraco no chão que forma a latrina era revestido de tábuas de madeira, o que faz menção ao título “Roda de Pau”. Podemos ver, em um trecho do conto, uma breve descrição desse tipo de banheiro: “Começou arrancando a porta da privada, atrapalhava, gostava que vissem. Amoleceu das do assoalho, as baratas cor-de-formiga correram, metade pra dentro, metade pra fora, dividem bem. O buraco ficou comprido, grande [...]” (VALLE, 1976, p. 31). Quando Paulão entra nesse banheiro, ele se lembra de um episódio que havia presenciado e que envolvera uma latrina do mesmo tipo: um senhor chamado Seu Salvador deixara cair sua carteira no buraco da casinha e o faz-tudo, chamado Euclides, resgatara o objeto de dentro do buraco. Essa lembrança nos leva ao início da apresentação das memórias de Paulão e ao primeiro flashback do conto, no qual o narrador de primeira pessoa protagonista toma a posição de narrador de primeira pessoa observador já que não faz parte do conflito central do acontecido no flashback. Torna-se, portanto, testemunha desse episódio. Como explica Friedman (2002, p. 177): “uma vez que o narrador-protagonista pode resumir ou apresentar de modo direto muito da mesma forma que a testemunha, a distância pode ser longa ou curta, ou ambas.” Podemos ver sua posição de narrador observador no seguinte trecho: “Teve um Seu Salvador de bigode de pelos duros entre o nariz e a boca, deixou cair a carteira não sei de que jeito, desceu a calça, a carteira e desembolsou em cima do buraco, essas privadas são perigosas pra quem usa carteira” (VALLE, 1976, p. 30). Após o término desse flashback, Paulão começa a ter lembranças de sua infância, do banheiro da casa em que então morava e da casa em si. Essas lembranças surgem da associação do antigo banheiro com o banheiro no qual ele se encontra no tempo RAMOS, P. C. dos S. A memória e... 133 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE presente da narrativa, quando se inicia esse segundo flashback, “[e]stava abafado, a casa longe e silenciosa. Um grilo acordou além da porta [...]” (VALLE, 1976, p. 33). Nessa nova lembrança, além da descrição da casa, temos a apresentação do pai de Paulão e o registro da revolta que o protagonista sentia em relação a ele. No trecho “[a] casa se sentiu mal e vomitou o pai que se vingou chutando. Saiu cambaleando de pião, fazendo manequinho a custa do ferrão, corpo rodando em floreio, bom de dar umas ducadas, deixar marcado, se eu tivesse coragem, crescesse!” (VALLE, 1976, p. 33), podemos ver através da memória que, ainda menino, Paulão, além de considerar seu pai violento e vingativo, manifesta uma vontade de bater no progenitor: “bom de dar umas ducadas, deixar marcado, se eu tivesse coragem, crescesse!” É por meio dessa vontade de bater em seu pai que o pensamento de Paulão toma outra direção e nos leva ao próximo flashback. No terceiro flashback, vemos outro momento da vida de Paulão: já mais velho, o narrador protagonista chega de seu trabalho e encontra seu pai batendo em sua mãe. Inconformado com a violência contra a sua mãe doente e ajudado por seus irmãos, Paulão bate em seu pai, concretizando o seu desejo de menino: Cheguei do serviço, eu fazia picareta, meu ombro tinha calombo-de-boi manso, o pai ‘stava dando na mãe, a sala escura. Entrei na cozinha, tinha um cacho de olhos boiando no ar que nem morcego, pendurados no fio-do-pavor, esperando hora de voar sem rumo. Eu disse: — Vamos lá, você segura que eu dou. O Tadeu ouviu com o olho e veio, resolvido. O Cido com aquela moleza, a Amélia cabisbaixa, o Tuca, ‘stava com doze anos mas tinha sede velha. Os ausentes, ausentes. Daí eu despontei na sala escura. A mãe babava de choro, ombro dela era um arquinho de brinquedo, dava dó, ‘stava doente já, no fim. Peguei o velho pelo ombro, dei uma chave-de-braço, paralisei: — Pode vim. Eles avançaram, bateram. A Amélia gritava e arranhava, o Tuca deu um pontapé como se ele fosse uma porta. Só o Cido amoleceu e despencou na beira da parede como sempre. Eu falei em cima do cabelo branco do velho: — Não bate mais na mãe que te acabo, velho puto. (VALLE, 1976, p. 34) RAMOS, P. C. dos S. A memória e... 134 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE Nesse trecho, além de conhecermos os irmãos e a mãe de Paulão, personagens do núcleo familiar do narrador protagonista, nos é revelado o medo que o pai de Paulão causava em toda a família por meio da metáfora “pendurados no fio-do-pavor”. É esse medo que a família tem do pai que nos leva ao quarto flashback. No quarto flashback, Paulão se lembra de um momento e de um sentimento específicos em sua infância: um momento em que estava no quintal de sua casa e sentiu um enorme medo de seu pai ao vê-lo saindo do banheiro. Nota-se que, novamente, o banheiro aparece como espaço destacado na narrativa e a memória o resgata associado à violência. Fiquei vendo tudo, olho na lagartixa, olho no verde, olho no pai, vejo pela nuca, medo fura. Ele saiu da privada abotoando, na camiseta porção de furos vigiando a gente de capitão, até carne dele de vigia. Medei, foi direto pra rua, não tem cerca, saio pela banda do maracujá, tempo de abelha, de rodela, de fruta-flor. Soltei o ar fechado no tampo do peito, de medo nem respiro, embexigo, o Pai Deus me livre! (VALLE, 1976, p. 34-35) Vemos também, nesse quarto flashback, o efeito que a escuridão da casa e da casinha do banheiro produziam em Paulão: “Esqueci formigas, grilo — casa de cinta na mão? [...] A porta estava mole, com pontapé amolece — porta e gente —, a da privada precisava. Lá dentro um escuro só, a gente sai no sol e a sombra vinga, cega. Só acostumando, tem tempo certo” (VALLE, 1976, p. 35). São essas sensações desconfortáveis que a escuridão e a sombra produzem no narrador protagonista que nos guiam ao quinto flashback. Paulão nos mostra, no quinto flashback, o efeito da ação de seu pai na casa quando agredia os filhos: “Quando o pai batia fechava tudo, quando acabava a mãe abria, arejava o ar, o grito calado, o olho vermelho de cada um fugindo vergonha” (VALLE, 1976, p. 35). Outra informação que temos, a partir dessa lembrança, é a de que a mãe evitava intervir e, quando intervinha, ela também apanhava e os filhos apanhavam com ainda mais vigor: RAMOS, P. C. dos S. A memória e... 135 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE A mãe não querendo no começo, entocava na cozinha, tuchava lenha no fogo [...]. Quando uma cintada pegava de mau jeito, grito diferente, berreiro maior, era a entrada dela, hora de noiva, pode demorar mas chega, se chega! Pulava na frente esquecia: — Não, não! Você mata ele! Entrando a mãe a surra aumentava. Soco, empurrão, o pai usava tudo, mão, pé, vara, correia, corda, toalha molhada, essa dói tempo, fica quente no lugar, em volta agulhinhas picotando. (VALLE, 1976, p. 35) Além de a violência ser intensificada como resultado da intervenção da mãe, a memória retratada no conto nos mostra que a violência também se intensificava nas situações em que o pai do protagonista falhava em sua tarefa de prover à família. Como resultado disso, o pai de Paulão acabava descontando a sua frustração naqueles para quem deveria prover: “Tinha ódio maior chegando sem arroz, sem leite, sempre um nenê esperando. [...] E a mãe esperando de fogo aceso, água fervendo” (VALLE, 1976, p. 35). É a figura da mãe registrada nesse trecho que nos guia ao próximo flashback. No sexto flashback, Paulão continua com as lembranças de sua infância e se lembra de seu cachorro, que se chamava Joli e que ele maltratava: “Puxava o pelo do Joli, desgraçado, pra que late? [...] Dou um pontapé quando chego, cachorro lazarento cheio de merda, empesteia as crianças. Magro, vira-lata, beirando idade de morrer, e pra que que não morre, a gente sossega!” (VALLE, 1976, pp. 35-36). Vemos, nesse trecho, uma descrição do cachorro da família de Paulão e a violência com a qual este o trata como uma reprodução da violência de seu próprio pai com a família. Ao bater em um cachorro indefeso, Paulão passa de vítima da violência à condição de agressor, assemelhando-se ao seu pai. A figura da mãe aparece na sequência, quando fica brava com Paulão por ele estar maltratando o cachorro novamente, espetando um arame em sua orelha e apertando-o: RAMOS, P. C. dos S. A memória e... 136 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE Peguei o arame, espetei a orelha, o Joli quis fugir, esperneou, latiu espremido, eu que espremo, tem que ficar, lazarento! Belisquei a tetinha dele, pra que cachorro tem teta, não dá de mamar! Puxei o rabo, arreganhou os dentes, risada triste, o Joli não morde, não me morde de jeito nenhum! [...] — Larga esse cachorro que te bato! A mãe me dá um estralo na orelha, enverga, fica ardendo, lá dentro nasce um zum comprido, ela dá outro do outro lado pra igualar, fico com dois, saio na carreira. (VALLE, 1976, p. 36) Após receber o castigo de sua mãe, vemos que Paulão foge dela e vai para a rua: “Vou pra rua, o Joli pro quintal, fugimos dos dois lados” (VALLE, 1976, p. 36). Insere-se então, na narrativa, um sétimo flashback, surgido a partir do pensamento de Paulão sobre sair de casa, no flashback seis, e constituído apenas de uma cena com duas falas: “— Tou na venda, Adelina. Não me enche o saco, vou, tá acabado.” / “— Se o Xavier mandar recado diz que saí, que fui na bocha, ele que empute” (VALLE, 1976, p. 36). As personagens Adelina e Xavier só serão identificadas mais adiante na trama da narrativa, sendo Adelina a esposa de Paulão e Xavier seu patrão. Após essa inserção (flashback sete), a narração volta ao flashback seis: Paulão sai para a rua e vê, no campinho, Zico e Nicodemo, decidindo ir para o quintal de um vizinho em busca de frutas, mas não conseguindo colher nenhuma. Volta, então, ao campinho, encontrando Zico e Nicodemo ainda lá, brincando de brigar. Paulão decide entrar na brincadeira dos meninos: O Nicodemo brinca com o Zico de judiar, corre daqui, corre dali, muito riso e pouco siso! Entro também [...], brinco e dou risada em preparo, ficam confiados, vou aos poucos, rolamos no chão, corremos de novo, acalco de leve, o Nicodemo se expõe, ajeito, dou a cabeçada de ferro que guardo em capacete de osso branco, o Nico abala tudo, fica puto que nem o velho, pera aí seu viado, te maceto! Corre pra mim feito cachorro de horta. (VALLE, 1976, p. 36) Nota-se, nesse trecho, a associação que Paulão faz entre a raiva e a violência e seu pai, quando compara o menino com quem brigava com seu pai: “Nico abala tudo, RAMOS, P. C. dos S. A memória e... 137 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE fica puto que nem o velho”. Essa briga faz emergir outra lembrança de Paulão que se insere neste flashback e que chamaremos de flashback oito, composto também de uma única cena, só que, dessa vez, constituída por apenas uma fala que retrata o ambiente profissional de Paulão: “— Não quero briga na turma, já disse! Vem perto que te capo, frouxo, negro brocha, não trabalha! Paulão taqui pra impor ordem, tá pensando que berimbau é gaita? Que lanterna é luz vermelha?” (VALLE, 1976, p. 36). Vemos aí, novamente, o papel que a violência exerce no trabalho de Paulão e evidencia-se aí como ela emerge nas diferentes situações relembradas ao longo do conto. A ligação da briga entre os meninos com essa fala de Paulão se dá ao constatarmos que esta é, na verdade, uma ordem direcionada aos seus subordinados, proibindo que briguem e registrando, também, o modo como sua autoridade sobre eles se baseia na violência e no medo. Voltando ao flashback seis, enquanto Paulão brinca com os meninos (Zico e Nicodemo), ele avista seu pai vindo na rua e, à medida que o vê se aproximando, lembra-se de cenas ocorridas nos locais pelos quais o seu pai passa no percurso de vinda ou, então, de cenas que surgem em sua mente por associação às atividades do pai fora de casa: O vulto do pai conheço de qualquer distância, vem rodando de pião, braços de fieira jogando roda, ferrão dos pés firmes na força do giro, rodada dele vem da garrafa, os amaldiçoados não fiam comida, fiam pinga! — Só que não posso te pagar hoje, vai somando faz conta corrente, caderneta como da venda, te devo doze. (VALLE, 1976, p. 37) Esse trecho é um exemplo das cenas que fragmentariamente surgem na mente de Paulão, quando criança, durante a espera pela chegada de seu pai. Além de nos mostrar outro comportamento negativo do pai de Paulão, o vício em bebidas alcoólicas, a lembrança nos revela o motivo do retorno da figura paterna: “O pai vem RAMOS, P. C. dos S. A memória e... 138 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE voltando foi ver se arrumava, ninguém empresta nem fia, cabeça e bucho quentes, tenho cisma!” (VALLE, 1976, p. 37). Durante todo o percurso do pai, Paulão teme o momento da chegada, pois prevê que será castigado, uma vez que o seu pai desaprovava a brincadeira: “Nem pude sentir direito, me escondi dentro da pele, me enfiei não tendo lugar, entrei em mim feito bicho que come o rabo, o pai me viu! Desgrudasse daquele parado, o pai não queria a gente molecando” (VALLE, 1976, p. 37). O pai de Paulão o leva, então, para dentro de casa e fecha as janelas para o começo da agressão: “Nem vi passar a rua, calçada, cerca, porta, braço na cara, corpo negaceando, não adianta, o pai acerta sempre!” (VALLE, 1976, p. 37). No entanto, há um intervalo entre esses acontecimentos e outra cena se insere: o flashback nove. Dessa vez, mais uma cena que se passa no ambiente profissional de Paulão: alguém é demitido por suspeita de roubo de ferramenta. Só então é que o sexto flashback retorna e a agressão vivida na infância é relatada: “Olhou ao redor, o pai nem piscava, foi fechando a janela e tirando a cinta, ajeitando o lado da fivela, girando no ar de machado, podasse [...] A dor ficou sem ir enrolada feito cobra [...]” (VALLE, 1976, p. 38). É quando o pai de Paulão o ameaça —“Cala que te mato! (de surra morre?)” (VALLE, 1976, p. 38) — que temos a conexão que insere o décimo flashback, no qual nos é apresentada a esposa de Paulão, Adelina: “Giro a casa na força de endireitar o errado, a Adelina na porta com o Nem que mama: — Chega, Paulo, vai machucar, ele é pequeno! Você mata o moleque!” (VALLE, 1976, p. 38). É essa fala de Adelina que nos leva de volta ao sexto flashback, que retorna com uma fala muito semelhante, só que, desta vez, proferida pela mãe de Paulão: “Chega, Júlio, ele nem comeu, faz mal, chega!” (VALLE, 1976, p. 38). A semelhança entre essas duas falas reforça a associação de Paulão com seu pai violento. E é essa associação que identifica o flashback do momento em que Paulão espanca seu filho como o ponto alto da narrativa, aquele no qual se dá a revelação da reprodução, por ele, do comportamento de seu pai. É aí que RAMOS, P. C. dos S. A memória e... 139 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE vemos que Paulão reproduz, em sua própria família, a violência que sofreu de seu pai, pensando ser este o modo correto de “endireitar o errado”, ou seja, o modo correto de educar. Fica-nos claro que o pai de Paulão, chamado Júlio, também pensa dessa forma quando sua mãe tenta intervir na agressão, registrada no flashback seis, porque Paulão está sangrando e o pai agressor responde à mulher que está educando: “— Larga, Júlio! Investiu. Larga que ‘stá sangrando, peste ruim, você mata o moleque! — Tou educando, merda!” (VALLE, 1976, p. 38). Com essa intervenção da mãe, a agressão se torna mais violenta, circunstância registrada pela personagem protagonista no flashback cinco. Júlio, frustrado por não ter conseguido comida e com a tentativa de intervenção feita pela esposa, se torna mais violento e bate em todos os membros da família, chegando a buscar, para nele bater, um de seus filhos que estava no banheiro (novamente o banheiro aparece como espaço privilegiado na narrativa): “Acabou suado, servição! Cambaleou sem intenção de ir ou vir, desses galeios de mastro, bateu ferrão com ferrão, soldadesco, pião no fim da rodada. Na porta deu um último golpe, o Martinho na privada, tem sempre um” (VALLE, 1976, p. 38). Após o fim das agressões, Paulão, cansado e com fome, consolase com o cachorro que, outrora, tinha maltratado: Agradei o Joli, busquei o furo na orelha, coitado, vem cá, Joli, qui! Qui! Tadinho! Ele veio, abanador, exibindo costelas contadas feito as minhas, dividido em pelos, manchas e impinges, duas bernas na orelha, o inflamado do furo, feliz, rindo — o Joli ri —. Cheirou meus pés, ajoelhou, beijou, o Joli não guarda raiva, é um santo, eu gosto dele! (VALLE, 1976, p. 39) Com essa última aparição do banheiro no flashback e com o momento em que Paulão diz gostar de Joli (o contrário do dito anteriormente, quando ele machuca e xinga o cachorro), o flashback seis se encerra, e a narrativa volta ao tempo presente com Paulão saindo do banheiro e pensando: “A privada ficou atrás. Não olho pra rever, RAMOS, P. C. dos S. A memória e... 140 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE relembrança machuca” (VALLE, 1976, p. 39). Dessa frase, podemos ler a privada como o elemento disparador das lembranças da violência sofrida no passado, já que o banheiro é um espaço recorrente nos vários flashbacks. Além disso, e com base nos flashbacks relatados, vemos nessa frase como a memória, ao interligar as violências do passado e do presente, pode ser algo que causa aversão e, até mesmo, algo prejudicial ao presente. Quando Paulão volta ao trabalho descobre, no fim do expediente, que um de seus subordinados fora avisar ao seu patrão que ele estivera fora durante muito tempo e, por causa disso, ele é demitido de seu emprego. É nesse momento que nos é introduzida a personagem Xavier: “Por mais que expliquei o Xavier não quis saber, disse: — É muito tempo pra uma necessidade. Tá afrouxando, Paulão. ‘Stá dispensado” (VALLE, 1976, p. 39). E é com a demissão de Paulão que a narrativa se encerra. Exploradas a fábula, a trama e o modo como o flashback, como técnica narrativa dominante, opera para recuperar, no conto, uma memória repleta de momentos de violência, há ainda aspectos a abordar da narrativa. Conforme dissemos anteriormente, vimos que o título pode fazer alusão ao banheiro, que aparece em vários momentos durante o conto. No entanto, agora apresentados os conteúdos dos flashbacks, que, em sua maioria, registram a violência que Paulão e sua família sofreram de seu pai ou então, no caso do flashback dez, a violência que Paulão pratica em seu filho, podemos ver que o título faz alusão, também, a esse circuito estabelecido entre as lembranças e ao ciclo de violência entre as gerações: o termo “roda” representa o ciclo e o termo “pau” funciona como metonímia para a violência. É esse ciclo, também, que nos permite classificar Paulão como uma personagem plana com tendência a redonda, segundo os conceitos de Forster, que diz: “O teste para uma personagem redonda está nela ser capaz de surpreender de modo convincente. Se ela nunca surpreende, é plana. Se não convence, é plana pretendendo ser redonda.” (FORSTER, 1969, p. 61). Paulão nos surpreende, como personagem, quando passa a RAMOS, P. C. dos S. A memória e... 141 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE opressor e agride sua família, já que a agressão cometida contra seu filho frustra a expectativa que o leitor tem quanto às ações de Paulão, pois seria de se esperar que ele, por ter sofrido tudo o que sofreu, buscasse não reproduzir a violência da qual fora vítima no passado. Tanto nos flashbacks quanto no presente, temos contato com as demais personagens que participam do conto: as personagens do núcleo familiar de Paulão (sua mãe; Júlio, seu pai; Cido, Martinha, Amélia e Tuca, seus irmãos; Adelina, sua esposa; Neca e um bebê, seus filhos;); as de seu núcleo profissional (Xavier, seu chefe; Narciso e Nicodemo, seus subordinados) e as do círculo social de Paulão, como pudemos ver no primeiro flashback, o da carteira perdida (seu Salvador; Euclides). Embora todas essas personagens (planas, segundo o grau de densidade psicológica) tenham algum papel nos momentos de violência abordados no conto, o pai de Paulão é a mais essencial para a construção do conflito dramático, que se dá na oposição entre a sua violência e o ambiente familiar. Essa importância do pai se dá em decorrência das frequentes agressões que ele comete contra a sua família e, do modo como essas agressões se refletem no comportamento de Paulão quando adulto. Notase que ambos os homens usam a violência como meio de “educação” nos trechos “Giro a casa na força de endireitar o errado” (VALLE, 1976, p. 38), parte do pensamento de Paulão, e na fala de Júlio quando sua esposa pede para que ele pare de bater no filho: “Tou educando, merda!” (p. 38). O tema do conto é a violência, manifesta sobretudo sob a forma de violência doméstica. Se isolarmos, porém, alguns dos flashbacks, identificaremos neles motivos dominantes que, por vezes, diferem da violência. No flashback do seu Salvador, por exemplo, o motivo dominante é a corrupção da dignidade humana, tendo em vista que a personagem Euclides chega a entrar no esgoto em busca da carteira cheia de dinheiro; e, no flashback em que Paulão bate em seu pai, temos como motivo dominante a vingança. RAMOS, P. C. dos S. A memória e... 142 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE Chegamos, por fim, ao último elemento que vamos explorar: o narrador. Conforme apontado anteriormente, quando explicitamos que o narrador pode ser visto não como protagonista em um dos flashbacks, e sim como testemunha, veremos, também, que em outros flashbacks a perspectiva do narrador protagonista (Paulão, homem adulto e pai de família) muda para uma perspectiva infantil. Esse fenômeno acontece em todos os flashbacks em que Paulão se lembra de sua infância. Nesses flashbacks, seu discurso adquire características infantis já que há uma mistura do tempo subjetivo da lembrança com tempo presente do narrador e, desse modo, a narrativa incorpora a visão da criança à ação dramática que constitui o flashback. Um bom exemplo dessa visão infantil é o trecho em que Paulão compara seu pai a um pião, e usa uma condicional para sublinhar o seu desejo de crescer: “Saiu cambaleando de pião [...] se eu tivesse coragem, crescesse” (VALLE, 1976, p. 34). Essa mistura dos tempos subjetivos da criança e do adulto no narrador se dá a partir da inserção dos flashbacks por meio da técnica do fluxo de consciência, definida por Alfredo Leme Coelho de Carvalho como “especialização de um determinado foco narrativo. [...] apresentação idealmente exata, não analisada, do que se passa na consciência de um ou mais personagens. [...] a consciência não é fragmentada em pedaços sucessivos, não há junturas, mas sim um fluxo contínuo. (CARVALHO, 2012, p. 57). A falta de junturas no conto de Dinorath do Valle é evidente, já que, como vimos na apresentação que fizemos da trama narrativa, além de não serem introduzidos pelo narrador, os flashbacks se conduzem uns aos outros por meio de alguma fala, ou espaço/ambiente comum entre eles, o que torna essencial a compreensão da trama. Na maioria dos flashbacks, o espaço do banheiro é o elemento disparador das lembranças, via associação. Em outros casos, o elemento é uma fala ou a presença de uma personagem que aparece no flashback anterior e no seguinte, estabelecendo a ligação entre tempos e situações distintas. RAMOS, P. C. dos S. A memória e... 143 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE Segundo Carvalho (2012), existem diversas técnicas de fluxo de consciência. Nesse caso, a que mais se encaixa à narrativa estudada, seguindo as definições do mesmo autor, é o solilóquio. Essa técnica se caracteriza pelo fato de o narrador contar a história para uma audiência inexistente, como evidencia Carvalho: “Nessa técnica há um fluxo de consciência apresentado com a presunção de uma audiência e sem a interferência do autor. [...] Os pensamentos são enunciados como se o fossem para ser ouvidos” (pp. 64-65, grifos do autor). Podemos ver essa presunção de audiência por meio de várias características no discurso do narrador. Uma delas é o questionamento “Sei mais ou sei menos?” (VALLE, 1976, p. 29), com que o conto se inicia e por meio do qual o narrador começa a dividir com o leitor os seus pensamentos. Podemos ver essa técnica do fluxo de consciência, também, nas explicações que o narrador busca fornecer ao leitor, como no trecho “Minha turma: turma de Paulão” (p. 29). Outra característica importante para caracterizamos o uso do fluxo de consciência é essa condução de um flashback a outro, que cria um efeito de circularidade no conto, reforçando seu título, enfatizando o tema do conto ao interligar os momentos de violência vividos, e nos mostrando que as memórias associam-se umas às outras, característica destacada por Carvalho: “Os pensamentos se sucedem de maneira associativa, e não em ordem lógica.” (CARVALHO, 2012, p. 6162). É o uso dessa técnica que ajuda na construção da trama complexa do conto, constituída de memórias e anacronias, e que nos revela a complexidade do narrador de Dinorath do Valle. Por meio do uso do fluxo de consciência e dos flashbacks na construção da memória, a escritora não só foi capaz de tocar em um tema terrível e ainda atual como a violência (na família, no trabalho — na vida, enfim) como, também, foi capaz de criticar essa violência sem desumanizar o seu personagem principal, mostrando que ele é vítima e continuador das agressões que sofreu, prendendo-se a um círculo que, quando não interrompido, tende a se reproduzir infinitamente. RAMOS, P. C. dos S. A memória e... 144 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE REFERÊNCIAS CARVALHO, Alfredo Leme Coelho de. Foco narrativo e fluxo de consciência. São Paulo: Editora Unesp, 2012. COELHO, Nelly Novaes. Dicionário crítico de escritoras brasileiras. São Paulo: Escrituras Editora, 2002, pp. 160-161. FRANCO Jr, Arnaldo. “Operadores de leitura da narrativa” In BONNICI, Thomas; ZOLIM, Lúcia. Teoria literária: abordagens históricas e tendências contemporâneas. 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A memória e... 145 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE A IMAGÉTICA DA TERRA EM JORGE DE LIMA E JOÃO CABRAL DE MELO NETO EARTH’S IMAGERY IN JORGE DE LIMA AND JOÃO CABRAL DE MELO NETO Ana Maria Vasconcelos Martins de Castro1 RESUMO: O presente trabalho se propõe a aproximar, pelo viés da fertilidade, as diferentes, e mesmo opostas, representações da terra na poesia de Jorge de Lima e de João Cabral de Melo Neto. Para isso, serão analisados quatro poemas: de Jorge de Lima, “Inverno” e “Maleita”, ambos de Novos poemas (1929); de João Cabral de Melo Neto, “Hospital da caatinga” e “Os reinos do amarelo”, ambos de A educação pela pedra (1965). Palavras-chave: Terra; Fertilidade; Poesia brasileira. ABSTRACT: This article aims to compare, by the bias of fertility, the different, even opposite, representations of earth in Jorge de Lima’s and João Cabral de Melo Neto’s poetry. For this purpose, four poems will be analyzed: Jorge de Lima’s “Inverno” and “Maleita”, both from Novos poemas (1929); João Cabral de Melo Neto’s “Hospital da caatinga” and “Os reinos do amarelo”, both from A educação pela pedra (1965). Keywords: Earth; Fertility; Brazilian poetry. 1. ENTRE A LAMA E A PEDRA Aproximáveis pelo espaço referencial a que se dirigiam em seus poemas, Jorge de Lima e João Cabral de Melo Neto apropriaram-se da imagem do sertão2 nordestino Doutoranda, UNICAMP. Também outras regiões nordestinas além do sertão propriamente dito são exploradas pelos dois poetas. No entanto, aqui tomamos “sertão” pela sua acepção mais genérica, em oposição a litoral: “Ainda que originalmente o termo ‘sertão’ possa ter designado ‘terras situadas no interior dos continentes’ e que apresentam aspectos de semiaridez, observa-se o uso daquela palavra sem a obrigatoriedade dessa característica biogeográfica, mesmo no período inicial das grandes 1 2 CASTRO, A. M. V. M. de. A imagética da... 146 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE de maneiras tão distintas quanto os lugares que ocupam no movimento modernista brasileiro. No entanto, são as reconfigurações imagéticas da terra, esgarçada em lamaçal ou constrita em deserto, que moldam internamente as relações de vida e morte tanto na economia literária de um quanto na do outro. Parece-nos produtivo, portanto, colocar em perspectiva enfoques tão diferentes justamente porque é o fruto desses extremos (da secura ou da umidade) o que cada poema vai colher: é o obstáculo à vida que vai responder as suas especificidades quando esta consegue brotar no chão do poema, e ali, se instala como parte da geografia interna do texto. Fruto podre ou disforme, subnutrido ou multiplicado, é sobre esta gama de singularidades que este estudo vai se debruçar. Aqui pretendemos analisar a terra de Lima e de Cabral, em vetores contrários, a partir de um centro comum: a (ora precária, ora profusa) fertilidade. Não sendo estanques, as categorias morte/vida — inicialmente atribuíveis respectivamente aos já mencionados deserto e lamaçal — se invertem, e assim exploraremos também a morte na chuva limiana, em sua face infestada de doenças, e a vida na aridez cabralina, ainda que pelo recorte da fragilidade ou da monstruosidade. Para guiar este estudo, escolhemos quatro poemas: o brejo fértil de Jorge de Lima no poema “Inverno” e a sua contrapartida negativa em “Maleita”, ambos de Novos poemas (1929); a afirmação da sobrevivência diante da hostilidade do deserto de João Cabral em “Hospital da caatinga” e a fecundidade difícil em “Os reinos do amarelo”, ambos de A educação pela pedra (1965). Pontualmente, recorreremos também a outros poemas dos dois autores. navegações e ‘descobertas’ dos lusos, nos séculos XIII e XIV. Já naquele tempo, o termo ‘sertão’ tanto servia para designar uma ‘região’, uma ‘área’ indefinida, um ‘lugar’ ou um ‘território’ qualquer, localizado longe do litoral, no interior ainda despovoado (entenda-se colonizado) ou mesmo desconhecido, não importando se ali houvesse ou não um deserto ou uma paisagem semiárida. Parece que esta última conotação é que se firmou como significado de ‘sertão’, consagrada pelos usos e costumes, desde a época colonial até nossos dias, isto é, com o significado de ‘terras no interior do continente’, e que não eram, necessariamente, semiáridas ou áridas, mas sim despovoadas. Entretanto, com o lançamento do livro Os sertões, de Euclides da Cunha, em 1902, cujo enfoque paisagístico central é o domínio do semiárido do Nordeste brasileiro, houve uma forte ‘identificação’ do termo ‘sertão’ com aquela paisagem. (...)” (ANTONIO FILHO, 2011, p. 86, destaques no original). CASTRO, A. M. V. M. de. A imagética da... 147 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE 2. O LAMAÇAL LIMIANO Em Jorge de Lima, o poema “Inverno” é uma marca do que podemos chamar de poética da esperança. Esta aparece já no título, que inicialmente se poderia pensar remeter a um cenário seco e infrutífero, no qual há uma exaltação à abundância, estado por sua vez comumente análogo à primavera — discrepância essa que demanda de nós uma breve explicação. Ao longo de nossa tradição literária, a imagem da terra fértil está estreitamente atrelada à da primavera e ao horizonte de recomeços que essa estação naturalmente representa. Imagem telúrica da fartura por excelência, historicamente é nessa época do ano em que a natureza é celebrada, nos mais diferentes registros artísticos — lembremo-nos das cantigas medievais ou dos quadros renascentistas, por exemplo —, por trazer novos frutos, novos amores, novos filhos. Em contrapartida, o inverno povoa o nosso imaginário como o oposto da fartura da estação que o sucede, remetendo, por sua vez, à escassez, reclusão e secura — oferecendo-se mesmo como uma das metáforas mais universais da morte. Contudo, toda esta construção simbólica que tomamos como universal é na realidade eminentemente europeia em sua origem. É claro que se ainda é da Europa a maior parte da nossa tradição literária, a simbologia que herdamos não poderia deixar de também o ser. Perpetuamos, portanto, parâmetros que não necessariamente correspondem a nossa realidade local. A aparente digressão é importante porque queremos estabelecer aqui que, para a realidade sertaneja, é o inverno a estação chuvosa por excelência, e é a chuva o que carrega consigo tanto a esperança quanto a possibilidade concreta de sobrevivência. Se tradicionalmente é a primavera que marca o esplendor da fertilidade nas cantigas medievais, por exemplo, é certo também que essa alegoria não cabe ao sertão, que antes de tudo conhece não quatro, mas duas estações. Alagoano, Jorge de Lima dá CASTRO, A. M. V. M. de. A imagética da... 148 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE ao inverno sua cor local, e o ressignifica de modo que ele parece brotar do espaço a que se refere. Assim, o ideário de hostilidade é reconfigurado pelo leitor, que de saída passa a entender o que o título realmente evoca e a contemplar uma paisagem de prosperidade, que o poeta celebra em seus versos curtos e interjetivos. É importante frisar que aqui o inverno não se impõe, por negatividade, na falta de ou no lugar de uma primavera, mas positivamente irrompe da própria lógica do espaço, à qual o leitor imediatamente adere. Assim, vamos ao poema: Inverno Zefa, chegou o inverno! Formigas de asas e tanajuras! Chegou o inverno! Lama e mais lama chuva e mais chuva, Zefa! Vai nascer tudo, Zefa, Vai haver verde, verde do bom, verde nos galhos, verde na terra, verde em ti, Zefa, que eu quero bem! Formigas de asas e tanajuras! O rio cheio, barrigas cheias, mulheres cheias, Zefa! Águas nas locas, pitus gostosos, carás, cabojés, e chuva e mais chuva! Vai nascer tudo milho, feijão, até de novo teu coração, Zefa! Formigas de asas e tanajuras! Chegou o inverno! Chuva e mais chuva! Vai casar, tudo, moça e viúva! Chegou o inverno Covas bem fundas pra enterrar cana: CASTRO, A. M. V. M. de. A imagética da... 149 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE cana caiana e flor de Cuba! Terra tão mole que as enxadas nelas se afundam com olho e tudo! Leite e mais leite pra requeijões! Cargas de imbu! Em junho o milho, milho e canjica pra São João! E tudo isto, Zefa... E mais gostoso que tudo isso: noites de frio, lá fora o escuro, lá fora a chuva, trovão, corisco, terras caídas, córgos gemendo, os caborés gemendo, os caborés piando, Zefa! Os cururus cantando, Zefa! Dentro da nossa casa de palha: carne de sol chia nas brasas, farinha d'água, café, cigarro, cachaça, Zefa... ...rede gemendo... Tempo gostoso! Vai nascer tudo! Lá fora a chuva, chuva e mais chuva, trovão, corisco, terras caídas e vento e chuva, chuva e mais chuva! Mas tudo isso, Zefa, vamos dizer, só com os poderes de Jesus Cristo! (LIMA, 1958, pp. 297-299) O poema se dirige a Zefa, a amada do poeta (que aparece também em outros textos de Jorge de Lima, como “Zefa lavadeira”, de Poemas negros), anunciando: CASTRO, A. M. V. M. de. A imagética da... 150 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE “chegou o inverno!”. As exclamações pontuam todo o texto, que é de pura celebração diante da boa nova. As repetições, dando ênfase à abundância, também marcam todo o poema: “Lama e mais lama, / chuva e mais chuva, Zefa!”, como se pela replicação não restassem espaços vazios. A anáfora de “verde”, por exemplo, espraia a cor não só pelo solo, mas pelo corpo da amada, ele próprio agora fértil: “Vai haver verde, / verde do bom, / verde nos galhos, / verde na terra, / verde em ti, Zefa, / que eu quero bem!” Há ainda a repetição de “cheio / cheias” no fim de três versos, enfatizando a polissemia do rio que deixou de estar seco, das barrigas que saciaram sua fome e das mulheres finalmente grávidas. Outras replicações dispostas ao longo do poema, como a do próprio verbo “nascer”, funcionam como uma conjuração de uma cornucópia, materializando a multiplicidade de germinações. O próprio texto é assim transformado na paisagem que ele descreve e exalta, cuja abundância não deixa lacunas ou espaços em branco. Mesmo as viúvas vão casar novamente, porque a morte não está no horizonte dessa poética da esperança: “Vai casar tudo, / moça e viúva!” A fartura do espaço externo preenche também a simplicidade da casa de palha, onde há carne, café, cigarro, cachaça e, entre reticências, uma rede gemendo, ecoando os pássaros que gemiam versos antes. Note-se que o poeta e a amada integram-se aos demais elementos, e o encontro amoroso de seus corpos é sugerido como parte natural desse rito de fecundidade. O impulso vital é tamanho que também a imagem — cristã — do renascimento será aludida: “Vai nascer tudo: / milho, feijão, / até de novo / teu coração, Zefa!” Sem contradição à experimentação dos corpos, o poema termina com uma louvação cristã, também típica do interior nordestino, na qual o poeta credita todas as benesses aos “poderes / de Jesus Cristo”. Luís Santa Cruz, em “Nota preliminar a Novos poemas”, defende que “[o] regionalismo modernista de Jorge de Lima foi antes de tudo religioso e popular” (In LIMA, 1958, p. 282). Complementamos dizendo que essa religiosidade não é austera, está intimamente atrelada aos prazeres, sendo mesmo a causa de todos CASTRO, A. M. V. M. de. A imagética da... 151 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE eles. A ligação com Deus surge como uma aliança com forças desproporcionais, para daí o poeta exercer uma ascensão vertiginosa de suas próprias forças, na qual Deus3 aparece como um vetor e um jacto para as abundâncias da vida, uma mola para o excesso. O conjunto do poema funciona como uma espécie de aboio de alegria, tal qual o canto entoado pelos vaqueiros ao gado, um chamamento à elevação dos humores do leitor, exaltação a que todos os elementos convergem. Trovões e relâmpagos, portanto, não participam de uma paisagem assustadora, de mau agouro ou de castigo, mas do próprio “tempo gostoso!” a que alude o poeta. A chuva, enfim, surge aqui como sinônimo de bênção. Em outros poemas, o elemento chega a se confundir com o próprio divino, como vemos no “Poema à bem-amada”, em que a chuva é extensão e identificação de Deus: “escutemos a chuva / que a chuva é Deus!” Em contrapartida, é a chuva também que expõe a precariedade do espaço e as doenças decorrentes disso, como no poema “Maleita”: Maleita Lá vem maroim, lá vem carapanã, lá vem muriçoca sambando com pium. A terra está suando poças d’água, a lagoa está dormindo, o caboclo está tremendo, está sambando com pium. Minha madrasta Maleita foi você que me enterrou. Quem sabe se por um figo que o destino beliscou? Manda um rabinho da seca de 77, meu São Sol, pra secar estas lagoas, pra esquentar esta maleita. Mas vem correndo um vento frio e até a água se arrepia. O caboclo está tremendo, está sambando com pium! (LIMA, 1958, pp. 296-297) Divergindo, por exemplo, do mais tradicional “Deus dos limites”, como o dos Irmãos Karamazov. Em Jorge de Lima a lógica é a oposta: com Deus, abrem-se as possibilidades. 3 CASTRO, A. M. V. M. de. A imagética da... 152 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE O poeta já diz não “formigas-de-asas e tanajuras!”, insetos de bom augúrio, mas “lá vem maroim, lá vem carapanã”, mosquitos vetores da moléstia. Em seguida, pede o poeta: “manda um rabinho da seca de 77, meu São Sol”, tentando um equilíbrio que o próprio solo sertanejo dificilmente oferece. O brejo não mais é retratado como a “terra tão mole / que as enxadas / nela se afundam” do poema anterior, mas como “[uma] terra [que] está suando poças d’água”, como se o próprio chão estivesse ardendo em febre. A terra suada e a água que se arrepia, extensões do corpo do caboclo que treme, devolvem a imagem da morte de que eles próprios, como metonímia da natureza local, são causa. Aqui se pode pensar em uma aproximação à mitologia do rei pescador, cuja infertilidade esteriliza toda a sua terra. Neste caso, os calafrios de febre e o suor brotam da terra como do próprio caboclo — o poeta doente cujo solo também padece. A imagem da morte do poeta — “Minha madrasta Maleita[,] foi você que me enterrou” — não deixa de dar a ver quem sobrevive na hostilidade daquele espaço: os mosquitos que carregam essa mesma morte. São eles, portanto, o fruto indesejado da mesma chuva e do mesmo frio que no poema anterior trouxeram toda sorte de benesses. Em vez da proteção divina de Cristo, aqui o poeta está sob o jugo da madrasta, da doença em si, que aparentemente tomou conta da terra. A vida indesejada (das muriçocas) corresponde à rainha indesejada, a maleita, tão atrelada à estação quanto seus frutos bons elencados exaustivamente em “Inverno”. A contrapartida é importante por mostrar a face mortal do tão exaltado inverno. Passemos à análise dos poemas de João Cabral de Melo Neto com essa dicotomia em mente, uma vez que lá partiremos do polo oposto: da hostilidade como origem para frutos aparentemente impossíveis, mas que persistem e cuja vontade de viver prevalece. A noção de elã vital, tal como a concebe Henri Bergson (2005), que CASTRO, A. M. V. M. de. A imagética da... 153 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE compreende a vida tanto como um impulso ou jacto4 (Jorge de Lima) quanto como um esforço5 (João Cabral), ajuda-nos a construir essa ponte entre as duas poéticas. Dirá Bergson: Todos os vivos se tocam e todos cedem ao mesmo formidável impulso. O animal encontra seu ponto de apoio na planta, o homem cavalga na animalidade e a humanidade inteira, no espaço e no tempo, é um imenso exército que galopa ao lado de cada um de nós, na nossa frente e atrás de nós, numa carga contagiante, capaz de pulverizar todas as resistências e franquear muitos obstáculos, talvez mesmo a morte. (BERGSON, 2005, p. 293) É no desejo de perseverar, de franquear a morte — que encontra maior ou menor folga conforme a terra que se entremeia — que os frutos dos dois poetas podem ser aproximados. 3. O AREAL CABRALINO Falávamos de primavera e inverno. Em João Cabral de Melo Neto, por sua vez, infere-se recorrentemente um verão, que dura boa parte do ano e que castiga mais do que abençoa, como se lê em “O sol em Pernambuco”, também de A educação pela pedra: “O sol em Pernambuco leva dois sóis, / sol de dois canos, de tiro repetido” (MELO NETO, 1975, p. 35). Franqueando a morte que esse verão tanto ameaça, para retomar a citação bergsoniana, e persistindo na temática da moléstia do segundo poema de Jorge de Lima, passemos para os aleijões poliformes que subvivem no “Hospital da caatinga”, de João Cabral: “Imaginemos pois um recipiente cheio de vapor em alta pressão e, aqui e ali, nas paredes do vaso, uma fissura por onde o vapor escapa em jato. O vapor lançado no ar condensa-se quase que por inteiro em gotículas que voltam a cair, e essa condensação e essa queda representam simplesmente a perda de algo, uma interrupção, um déficit. (...) Assim, de um imenso reservatório de vida devem lançar-se incessantemente jatos, cada um dos quais, tornando a cair, é um mundo. (...) E então veremos na atividade vital aquilo que subsiste do movimento direto no movimento invertido, uma realidade que se faz através daquela que se desfaz.”. (BERGSON, 2005, pp. 268-269) 5 “Ora, a vida manifestada por um organismo é, a nosso ver, um certo esforço para obter certas coisas da matéria bruta”. (BERGSON, 2005, p. 148) 4 CASTRO, A. M. V. M. de. A imagética da... 154 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE Hospital da caatinga O poema trata a Caatinga de hospital não porque esterilizada, sendo deserto; não por essa ponta do símile que liga deserto e hospital: seu nu asséptico. (Os areais lençol, o madapolão areal, os leitos duna, as dunas enfermaria, que o timol do vento e o sol formol vivem a desinfetar, de morte e vida.) 2. O poema trata a Caatinga de hospital pela ponta oposta do símile ambíguo; por não deserta e, sim, superpovoada; por se ligar a um hospital, mas nisso. Na verdade, superpovoa esse hospital para bicho, planta e tudo que subviva, a melhor mostra de estilos de aleijão que a vida para sobreviver se cria, assim como dos outros estilos que ela, a vida, vivida em condições de pouco, monta, se não cria: com o esquelético e o atrofiado, com o informe e o torto; estilo de que a catingueira dá o estilo com o seu aleijão poliforme, imaginoso; tantos estilos, que se toma o hospital por uma clínica ortopédica, ele todo. (MELO NETO, 1975, p. 29) De imediato, a (auto)referencialidade6 do poema, explícita desde seu primeiro verso, provoca um afastamento do leitor na medida em que este é levado a olhar o espaço poético como um objeto que pudesse ser pego e examinado por diferentes Talvez suposta autorreferencialidade, como discute Abel Barros Baptista em seu artigo “A ortopedia do símile”: “Eis, pois, o poema: se se refere a si mesmo, diz o contrário do que diz e o contrário do que faz; se se refere a outro, então esse outro não tem onde inscrever-se. Logo, o suposto metapoema ou suprime ou não entende o poema que refere. Conclui-se também que a possibilidade de o poema dizer algo sobre a Caatinga depende de não dizer nada sobre si mesmo (...). Sem sequer dispor da contrapartida de poder dizer algo sobre si mesmo não dizendo nada sobre a Caatinga.” (BAPTISTA, 2000, p. 278). Não será o caso de entrarmos nessa discussão, uma vez que, ainda que não autorreferencial, o fato de este ser um poema sobre um poema por si já cria o afastamento sobre o qual discutimos neste estudo. Cf. BAPTISTA, Abel Barros. “A ortopedia do símile”. In Colóquio Letras. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, n. 157/158, pp. 273-280, jul 2000. 6 CASTRO, A. M. V. M. de. A imagética da... 155 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE pontos de vista, ao contrário da imersão na espacialidade provocada pelo apelo emotivo dos poemas de Jorge de Lima. É importante frisar que o caráter metalinguístico desse poema não é um caso isolado. Mesmo ao tematizar o Nordeste, João Cabral não deixa de pensar majoritariamente a linguagem, e aqui citamos João Alexandre Barbosa, em seu A imitação da forma: “João Cabral não se desfaz, em nenhum momento, (...) do processo de indagação ao código que usa, constituindo-se, em seus limites, a sua mais radical experimentação de ordem metalinguística, por onde a apreensão da realidade, a imitação, se faz cada vez mais dependente da própria operação textual.” (BARBOSA, 1975, p. 215, grifo no original.) Cabral, portanto, mesmo ao falar da terra (ou de qualquer outra imagem), está também se referindo ao próprio processo da escrita. Assim, se é de criação que o poeta sempre está tratando, é de se esperar que algum tipo de vida nasça — consiga nascer — de seus areais hostis. Voltando ao poema, a primeira parte de “Hospital da caatinga” trata da “ponta do símile que liga / deserto e hospital” pela qual o poema não quer abordar os dois espaços: “seu nu asséptico”. Aqui Cabral realiza, pela relação de negatividade, a introdução da imagem que quer construir, algo (que ainda não sabemos o que seja) no lugar de um nu asséptico. Em contraposição ao modo imediato (como um jacto), pelo qual a imagem do inverno se coloca no poema de Jorge de Lima, sem repasses de confrontação com seu avesso, a primavera, a edificação deste algo ainda desconhecido pelo leitor se dá de forma gradual, tijolo por tijolo (por meio de um esforço). Na segunda parte, então, “pela ponta oposta do símile ambíguo”, o poema aproxima a caatinga ao hospital “por não ser deserta e sim, superpovoada; / (...) [por] tudo que subviva”. Aqui chegamos, talvez, ao que há de, ainda que precária, senão fertilidade propriamente dita, ao menos negação da total esterilidade da aridez. A então “clínica ortopédica” que se constitui de toda sorte de subvida mostra, ainda que pela difícil sobrevivência, aqueles que permanecem. Se, na primeira metade, CASTRO, A. M. V. M. de. A imagética da... 156 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE a assepsia do “sol formol” desinfeta quase indistintamente vida e morte, a segunda parte do poema mostra que a vida insiste e permanece, ainda que por formas atrofiadas e monstruosas. Em oposição ao não da primeira parte, há, na segunda, um sim que insiste em se reafirmar mesmo em meio à penúria. Em “Bifurcados de ‘habitar o tempo’”, outro poema de A educação pela pedra, a caatinga, que aparece algo como o mais grave dos desertos, fere a imaginação “com seu vazio em riste”7. Em “Hospital da caatinga”, no entanto, o “aleijão poliforme” da superpovoada caatinga é descrito como curiosamente “imaginoso”. Talvez a lâmina do vazio que fere a imaginação em “Bifurcados de ‘habitar o tempo’” não seja totalmente estéril ou esterilizante, mas, e aqui voltamos a Bergson, pelo contrário, seja o instrumento mesmo que molda a vida possível: A resistência da matéria bruta é o obstáculo que foi preciso contornar primeiro. A vida parece tê-lo conseguido a força de humildade, fazendo-se muito pequena e muito insinuante, (...) consentindo mesmo a seguir com elas uma parte do caminho, como a agulha da ferrovia quando adota durante alguns instantes a direção do trilho do qual quer soltar-se. (BERGSON, 2005, p. 108) O meio surge como obstáculo e ao mesmo tempo como formador das especificidades da vida que ali emerge. O elã vital, portanto, encontra nos elementos mais brutos que arrasta consigo uma contraparte que por sua vez passa a responder pelas formas específicas que a vida encontra para conseguir perpetuar — monstruosa, poliforme — no chão que de todo modo rejeitou “o timol do vento e o sol formol”. Bifurcados de “habitar o tempo”: “Viver seu tempo: para o que ir viver / num deserto literal ou de alpendres; / em ermos, que não distraiam de viver / a agulha de um só instante, plenamente. / Exceção aos desertos: o da Caatinga, / que não libera o homem, como outros, / para que ele imagine ouvir-se mundos / ouvindo-se a máquina bicho do corpo; / para que, só e entre coisas de vazio, / de vidro igual ao do que não existe, / o homem, como lhe sucede num deserto, / imagine sentir outras coisas ao sentir-se; / embora um deserto, a Caatinga atrai, / ata a imaginação; não a deixa livre, / para deixar-se, ser; a Caatinga a fere / e a ideia-fixa: com seu vazio riste. // Ele ocorre vazio, o tal tempo ao vivo; / e, como além de vazio, transparente, / habitar o invisível dá em habitar-se: / a ermida corpo, no deserto ou alpendre. / Desertos onde ir ver para habitar-se, / mas que logo surgem como viciosamente / a quem foi ir ao da Caatinga nordestina: / que não se quer deserto, reage a dentes”. (MELO NETO, 1975, p. 31) 7 CASTRO, A. M. V. M. de. A imagética da... 157 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE Há, voltando ao “Hospital da caatinga”, se não uma esperança, como em Jorge de Lima, uma afirmação de força de continuidade — à custa de muita negação, para, ao fim, terminar seu edifício também com uma negação da morte: “Em Cabral, o sertão nasce para anunciar a morte: sertão, serThânatos. Natureza desfalcada, palco de atores — bichos, homens, rios — em perpétua retirada, ele também não deixa de ser, por contraste, o emulador de uma afirmação vital: viver nele, apesar dele” (SECCHIN, 1999, p. 300). É essa emulação de uma afirmação vital que nos permite ver a lâmina também como um cinzel, que esculpe e define o talhe de sua criação imaginosa. No cenário de devastação, a vida insiste, nele, apesar dele, em continuar, como lemos no poema de Cabral a Graciliano Ramos: “e onde estão os solos inertes / de tantas condições caatinga / em que só cabe cultivar / o que é sinônimo da míngua”. Por fim, passemos da Caatinga para a Zona da Mata (de “terras fêmeas”, como diz o poeta no poema “O rio”; da “terra lauta”, como dirá neste outro poema agora): Os reinos do amarelo A terra lauta da Mata produz e exibe um amarelo rico (se não o dos metais): o amarelo do maracujá e os da manga, o do oiti-da-praia, do caju e do cajá; amarelo vegetal, alegre de sol livre, beirando o estridente, de tão alegre, e que o sol eleva de vegetal a mineral, polindo-o, até um aceso metal de pele. Só que fere a vista um amarelo outro, e a fere embora baço (sol não o acende): amarelo aquém do vegetal, e se animal, de um animal cobre: pobre, podremente. 2. Só que fere a vista um amarelo outro: se animal, de homem: de corpo humano; de corpo e vida; de tudo o que segrega (sarro ou suor, bile íntima ou ranho), CASTRO, A. M. V. M. de. A imagética da... 158 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE ou sofre (o amarelo de sentir triste, de ser analfabeto, de existir aguado): amarelo que no homem dali se adiciona o que há em ser pântano, ser-se fardo. Embora comum ali, esse amarelo humano ainda dá na vista (mais pelo prodígio): pelo que tardam a secar, e ao sol dali, tais poças de amarelo, de escarro vivo. (MELO NETO, 1975, p. 34) Em “Os reinos do amarelo”, o poeta dá início ao poema justamente falando da fertilidade da terra, que produz, senão ouro, o “amarelo vegetal” igualmente rico. O verão cabralino, que tantas vezes machuca ou mata, aqui parece estar sendo louvado: a imagem do sol é caracterizada como alegre por duas vezes, além de estridente e livre. No entanto, a partir do oitavo verso é anunciada uma modulação da percepção cromática, na qual o amarelo de “rico” passa a “baço”, e, agora “aquém do vegetal”, fere. Na segunda metade do poema, saberemos que se trata do amarelo humano tanto da escatologia do corpo quanto das agruras do intelecto e do espírito. A mudança do tom, de “estridente” para “baço”, pode ser percebida também na camada sonora: se, na primeira parte, os vegetais são exaltados com vogais anteriores e abertas, mais solares, a segunda parte recebe a gravidade dos sons vocálicos posteriores e fechados, mostrando o peso que o amarelo confere ao humano na sua acepção mais mundana. “Podremente”, esse animal — “se animal” (o que lembra a subvida de “Hospital da caatinga”) — é na verdade aqui humanizado, ainda que como um “aleijão poliforme”, para recuperar a imagem do poema anterior. A terra farta dos vegetais da primeira parte encontra seu duplo no fardo humano de ser pântano, mas o que encharca esse “existir aguado” são os líquidos involuntários do próprio corpo, vistos como repugnantes. Em uma poética do menos, a vida humana ganha um sinal de menor que quase absoluto. No entanto, esse poema pode ser visto sob diversos pontos de vista, e outra forma de interpretá-lo é ver que, acompanhando a recorrência na poética cabralina, o CASTRO, A. M. V. M. de. A imagética da... 159 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE humano aqui, embora repulsiva e precariamente, ganha concretude vital e, consequentemente, estatuto de ser vivente. É alguém. Não é por acaso que “vivo” volta a ser a caracterização para a fisicalidade do amarelo final, sendo mesmo a palavra que fecha o poema. O homem, portanto, aqui ganha materialidade — existência, ainda que aguada, ainda que monstruosa. Há uma progressiva escatologização do amarelo, mas é pelo escarro — vivo, insisto — e outros excrementos do corpo que o humano completa metafórica e efetivamente o ciclo de volta à terra: mimetiza, assim, ele próprio, uma espécie de chuva, a que tanto falta ao solo sertanejo, a que tanto é reiterada como faltante. É ao cuspir o seu existir aguado que o humano se reintegra à natureza difícil, chovendo talvez a única chuva possível. A descrição de tudo o que segrega ou sofre o humano na segunda parte do poema, em contraste com as belezas naturais elencadas na primeira parte, a princípio separam o homem da talvez harmoniosa e certamente exuberante natureza da terra lauta ali evocada. No entanto, pelo gesto final de retorno à terra, o aquém do vegetal reafirma seu lugar de ser também natural, de fruto e fonte do solo sertanejo, na sua incontornável dualidade de escatologia e fertilidade. Além disso, como sabemos, não é senão de excrementos que se compõe o adubo — lembremos as flores brotadas das fezes em “Antiode”8. É de vida, enfim, que se está falando aqui. 4. OS FRUTOS Gaston Bachelard, em seus dois livros sobre a terra, ajuda-nos a amarrar nossas análises. Ao discorrer sobre a terra e os devaneios da vontade, o filósofo se volta para o aspecto mais duro do elemento: “A terra, com efeito, ao contrário dos outros três Antiode: “Poesia te escrevia: / flor! Conhecendo / que és fezes. Fezes / como qualquer. / gerando cogumelos / (raros, fragéis, cogu- / melos) no úmido / calor de nossa boca. / (...) / Poesia, te escrevo / agora: fezes, as / fezes vivas que és. / (...) / Te escrevo / cuspe, cuspe, não / mais; (...)” (MELO NETO, 1975, p. 319). 8 CASTRO, A. M. V. M. de. A imagética da... 160 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE elementos, tem como primeira característica uma resistência. Os outros elementos podem ser hostis, mas não são sempre hostis. A resistência da matéria terrestre, pelo contrário, é imediata e constante.” (BACHELARD, 2001, p. 08). A resistência tratada nesta obra encontra eco no aspecto mais inóspito da terra sertaneja — a hostilidade e a aridez tão caras a Cabral. No entanto, posteriormente, em seu outro livro, agora sobre a terra e os devaneios do repouso, dirá Bachelard: Mas as imagens da profundeza não têm somente essa marca de hostilidade; têm também aspectos acolhedores, aspectos convidativos; e toda uma dinâmica de atração, de apelo um tanto imobilizado pelas grandes forças terrestres de resistência. Nosso primeiro estudo da imaginação terrestre, escrito sob o signo da preposição contra, deve pois ser completado por um estudo das imagens que estão sob o signo da preposição dentro. (BACHELARD, 1990, p. 02, grifo no original.) A outra faceta da terra, possivelmente mais úmida e acolhedora, ilumina parte do que afirmamos sobre a poesia de Jorge de Lima. Alargando a imagem da terra em confluência com outros elementos, entendemos que a poética de João Cabral une a terra ao ar, enquanto a de Jorge de Lima entrelaça-a à água. São essas reconfigurações imagéticas que dão formas singulares aos seus frutos. Se encontramos abundância no inverno limiano, é porque a hostilidade do sertão é possível de ser contornada, embora a doença espreite o regozijo dos corpos, porque também o inseto é um fruto legítimo do seu lugar. Se podemos encontrar lampejos de fertilidade na poesia de Cabral, por outro lado, é certo também que a aridez e a devastação são afirmações cabralinas constantes. Talvez esse percurso de esterilização aponte para um vazio resultante de alguma fartura anterior, como sugere a oitava parte de “Psicologia da composição”9: “onde foi maçã / resta uma fome”. No entanto, lembremos que a fome, se flerta perigosamente com a morte, é ainda desejo de perseverar. Psicologia da composição: “(...) Cultivar o deserto / como um pomar às avessas: // então, nada mais / destila; evapora; / onde foi maçã / resta uma fome; (...)” (MELO NETO, 1975, p. 327) 9 CASTRO, A. M. V. M. de. A imagética da... 161 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANTONIO FILHO, Fadel David. “Sobre a palavra ‘sertão’: origens, significados e usos no Brasil (do ponto de vista da ciência geográfica)”. In Revista Ciência Geográfica. Bauru, vol. XV, n. 1, jan/dez 2011, pp. 84-87. BACHELARD, Gaston. A terra e os devaneios da vontade: ensaio sobre a imaginação das forças. Trad. Maria Ermantina Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2001. ______. A terra e os devaneios do repouso: ensaio sobre as imagens da intimidade. Trad. Paulo Neves da Silva. São Paulo: Martins Fontes, 1990. BARBOSA, João Alexandre. A imitação da forma. Uma leitura de João Cabral de Melo Neto. São Paulo: Duas Cidades, 1975. BERGSON, Henri. A evolução criadora. São Paulo: Martins Fontes, 2005. LIMA Jorge de. Obra completa (org. Afrânio Coutinho). Rio de Janeiro: Ed. José Aguilar, 1958. MELO NETO, João Cabral de. Poesias completas. Rio de Janeiro: José Olympio, 1975. REVISTA COLÓQUIO LETRAS. Fundação Calouste Gulbenkian, n. 157/158, jul 2000. SECCHIN, Antonio Carlos. João Cabral: a poesia do menos e outros ensaios cabralinos. Rio de Janeiro: Topbooks, 1999. Recebido em: 16/07/2017 Aceito em: 03/09/2017 CASTRO, A. M. V. M. de. A imagética da... 162 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE OS ANÕES: O PAPEL DO LEITOR NA LITERATURA DE VERONICA STIGGER OS ANÕES: THE ROLE OF THE READER IN VERONICA STIGGER’S LITERATURE Damásio Marques da Silva1 RESUMO: O objetivo deste trabalho é analisar o papel do leitor na narrativa de Verônica Stigger, que exige uma participação ativa do leitor no preenchimento dos espaços vazios. Na tentativa de situar o leitor na concepção do produto, a ideia da Interação, de Wolfgang Iser (1999), apoia nossa investigação, além das concepções de livro de artista e das ideias de Haroldo de Campos (1969) acerca da provisoriedade do estético. Palavras-chave: Os anões; Veronica Stigger; Livro de Artista. ABSTRACT: The aim of this paper is to analyze the role of the reader in Veronica Stigger’s, narrative, which requires the reader’s active participation filling the blank spaces. To situate the reader in the conception of the product, Wolfgang Iser's idea of Interaction (1999) supports our research, as well as the concepts of artist’s books and Haroldo de Campos 's ideas (1969) on the transitoriness of the aesthetic. Keywords: Os anões; Veronica Stigger; Artist’s Book. 1. INTRODUÇÃO Na literatura pós-moderna, a leitura linear, como na narrativa clássica, não é mais a única possível. Ao contrário, nos deparamos hoje com narrativas altamente fragmentadas e/ou contaminadas por outras manifestações artísticas. Observe-se autores como Luiz Ruffato, com seu altamente estudado romance Eles eram muitos 1 Mestre, PUC-SP. SILVA, D. M. da. Os Anões: o papel... 163 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE cavalos, e toda a série do Inferno Provisório, ou as narrativas elípticas de Bernardo Carvalho. Na linha dos gêneros híbridos, podemos citar Valêncio Xavier, com narrativas permeadas por recortes de jornais, anúncios, fotografias, ou Joca Reiners Terron e Lourenço Mutarelli, com a inclusão da arte gráfica no romance. O homem pós-moderno, problemático, não é mais representado somente por meio de uma linguagem acabada. A linguagem fraturada e in-forme é uma das possibilidades de representação desse ser. Nessa perspectiva, encontra-se espaço para manifestação de outras linguagens e discursos artísticos na literatura, e da participação do corpo na recepção da obra. O corpo do livro, no contato com o leitor, se expande e manifesta novas sensações. Abre-se aí um grande campo para os chamados livros de artista que, em grande parte, exploram narrativas experimentais e formatos pouco convencionais. Tendo como objeto de leitura um produto como Os anões, de Veronica Stigger (2010), obra inserida nesse paradigma, coloca-se então o seguinte questionamento: Como a corporeidade do livro e as expansões de sua materialidade influenciam no processo de recepção de Os anões? Como tentativa de apontar possíveis respostas, levantaremos alguns pontos sobre o papel do leitor e as relações com o livro de artista na obra de Stigger. Nossa intenção é apresentar alguns caminhos para uma leitura exigente dessa categoria literária. 2. OS ANÕES: IMPRESSÕES INICIAIS Mario Bellatin (2010), na quarta capa do livro de Stigger, comenta que uma das características do livro contemporâneo é que “antes de ser uma leitura, ele é uma experiência”. Em Os anões, é uma experiência que começa na corporeidade do livro, na interação entre o espaço do livro, seu corpo mesmo, materialidade tátil e as expansões, percepções, sensações que podem trazer o livro e o texto, antes SILVA, D. M. da. Os Anões: o papel... 164 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE mesmo de abri-lo. Essa experiência se inicia já no manuseio do formato. Seu tamanho reduzido (12x16cm.), fora dos padrões convencionais, remete ao título do livro. A própria autora, em entrevista (STIGGER, 2010), identifica o formato diminuto como mais um personagem da obra, mais um anão. É uma literatura em que o tátil entra no jogo junto com o literário, pois suas páginas em papel cartonado, brilhantes, nas cores branca e preta, oferecem mais elementos táteis na experiência de recepção da obra. Antes mesmo do literário já se pode especular, a partir de seu formato não convencional, sobre o seu interior. Suas pequenas dimensões, com o arredondamento nas pontas, capas negras e folhas bem espessas, e o próprio manuseio do livro já despertam sensações diferentes das que um livro comum pode oferecer. Segundo Gary Frost, O manuseio hábil de livros começa com alguma consideração dos seus mecanismos de mobilidade [...]. É um fato curioso que as mãos tenham induzido a mente. [...] O livro tem sua escala física para permitir o virar de páginas e nós examinarmos o livro com as mãos antes de examinar o seu conteúdo. (FROST, 1997 apud SILVEIRA, 2008, p. 126-127)2 Figura 1 — Os anões (capa) SILVEIRA, Paulo. “Espacialidade e exacerbação do corpo”. In ______. A página violada: da ternura à injúria na construção do livro de artista. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2008. 2 SILVA, D. M. da. Os Anões: o papel... 165 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE A capa do livro, reproduzida acima, se comparado seu tamanho a uma caneta, dá uma ideia de suas dimensões. Nesse sentido, a experiência inicial do contato com o volume evidencia a participação corporal na recepção da obra. Primeiramente, o corpo que engloba o volume, quase como edição de bolso e a posteriori o contato de nosso corpo, como as mãos que o manuseiam e, nas palavras de Frost, induzem a mente. Depois da experiência tátil, a visão é o sentido exigido na apreciação física do livro. Um espetáculo visual que, antes mesmo da leitura do código linguístico, lança o olhar do leitor às páginas negras iniciais e finais, e às tarjas negras que refletem a imagem do leitor como num espelho, evidenciando a obrigatoriedade de sua participação como um coautor da obra. Figura 2 — Os anões, p. 02-03. SILVA, D. M. da. Os Anões: o papel... 166 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE Figura 3 — Os anões, p. 14-15. 3. NARRADOR E LEITOR A visão é sentido indispensável na leitura de Os anões, não só no processo de leitura do literário/linguístico, mas como participação no processo exegético. O rosto do leitor refletido nas tarjas negras que compõem as narrativas o evidencia como parte integrante; ele é parte constitutiva indispensável e é obrigado a participar, sua imagem o denuncia num papel tão importante como o do próprio narrador. Santiago (1989) afirma que se pode narrar de dentro ou de fora de uma ação; porém, o narrador contemporâneo narra uma experiência de uma ação ou de um olhar lançado. Nesse processo de observação, o narrador se aproxima de um outro observador, o leitor. “Ambos se encontram privados da exposição da própria experiência na ficção e são observadores atentos da experiência alheia [...], narrador e leitor se definem como expectadores de uma ação alheia que os empolga, emociona, seduz, etc.” (SANTIAGO, 1989, p. 44) Nesse sentido, o leitor de Os anões é antes de tudo um expectador. No miniconto “Teleférico”, um grupo de atores (150) se veste metade em azul, outra SILVA, D. M. da. Os Anões: o papel... 167 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE metade em vermelho e despencam do ar após chocarem-se os bondinhos que os carregam. O público delira com o espetáculo visual produzido. Em “Curtametragem” — e “Curta-metragem II” —, um homem se lança do patamar de um apartamento e a esposa, ao observá-lo da sacada do prédio, deixa cair-lhe os óculos e também se lança ao solo apenas com a intenção de recuperar o objeto. O leitor observa como ações cotidianas, tão banais, se transformam em violências absurdas, mas que passam despercebidas na rotina das grandes cidades. Como no caso de um grupo de amigos que se espanca antes de realizar um pedido no restaurante, ou a mãe que asfixia e mata a própria filha com fios de lã, no que havia começado como um gesto de carinho maternal. Em “Os anões”, primeiro conto da obra, e que a nomeia, um personagemnarrador, em primeira pessoa, junto com a clientela de uma confeitaria, participa do espancamento dos anões, porque estes furaram a fila. O grau do substantivo pode auxiliar na observação que narrador e leitor executam, pois parte da mera descrição de tamanho e passa para o uso afetivo ou pejorativo. A cena é narrada num contraste extremo entre delicadeza e selvageria: “Os dois eram tão pequenos que mal alcançavam o alto da bancada de doces. Ela dava saltinhos para tentar ver o que a confeitaria tinha de bom.” (STIGGER, 2010, p. 06). O uso do diminutivo vai gradualmente adquirindo novos sentidos. Da mera descrição de tamanho — “Ele se lambuzava de provinhas de doces, e ela ainda limpava a meleca açucarada que se depositara no canto de sua boca minúscula com um guardanapo xadrez todo dobradinho” (STIGGER, 2010, p. 08) — ao uso irônico do termo, quando os personagens se mostram irritados pela demora no atendimento causada pelos anões: “A senhora à nossa frente comentou comigo que cruzara com o casalzinho outro dia no supermercado [...]” (STIGGER, 2010, p. 08). Observe-se que ao mesmo tempo em que se descreve um espancamento, o diminutivo utilizado pode não somente denotar um tamanho reduzido das personagens ou seus membros, mas a SILVA, D. M. da. Os Anões: o papel... 168 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE delicadeza, indicando também a afetividade por parte do narrador: “Eu chutava com muita vontade a barriga da mulherzinha caída [...] Seu Aristides, exausto de tanto chutar o homenzinho, parou e fez sua neta também parar[...]” (STIGGER, 2010, p. 11-12). No entanto, não é a experiência como participante no linchamento que é narrada, mas a observação que se faz sobre esse ato de crueldade, e que se torna parte das ações banais do cotidiano. Na sequência, a micronarrativa “Teste” — “Que tal fazer, então, o mesmo teste com as gordinhas de cabelos crespos?” (STIGGER, 2010, p. 13) —, pode sugerir uma continuação da narrativa anterior. Seria esse teste o mesmo tratamento dado aos anões, agora sugerido para aplicação às gordinhas? Ou seria a elas aplicado algum teste de laboratório que não sabemos exatamente qual? Já em outros textos, como “Passo fundo”, por exemplo, a narrativa é apenas um bilhete de despedida e o leitor poderia se perguntar “a quem?”, “por quê?”, “o que acontecera antes daquele bilhete?”. O que completa esta narrativa? As perguntas sem respostas e os espaços vazios são pontos de entrada do leitor. Somente o leitor pode preencher as lacunas com suas possíveis respostas. É no processo de interação que esses vazios serão completados. A interação, segundo Wolfgang Iser (1999, p. 97), é a relação recíproca de leitura que “acopla o processamento do texto com o leitor; este, por sua vez é afetado por tal processo”. Iser comenta que na interação texto-leitor, para que a comunicação seja bemsucedida, a atividade do leitor deve ser controlada pelo texto. Esse processo comunicativo tem sucesso na construção de um sentido que "dificilmente poderá ser equiparado com referências já existentes, sendo, no entanto, capaz de questionar o significado de estruturas existentes de sentido e modificar experiências anteriormente feitas" (ISER, 1999, p. 104). Aqui, abre-se espaço importante para o não dito no texto. Lugar onde o leitor vai se manifestar e "ocupar as lacunas com suas projeções." (ISER, 1999, p. 106). As perguntas sem SILVA, D. M. da. Os Anões: o papel... 169 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE respostas no texto de Stigger, as lacunas e espaços em branco são os pontos de entrada das projeções do leitor. A interação se dá na complementação feita pelo leitor do que propositalmente não foi dito pelo narrador, num processo dialético assim descrito por Iser: [...] o processo de comunicação se põe em movimento, se regula não por causa de um código, mas mediante a dialética de mostrar e de ocultar. O nãodito estimula os atos de constituição, mas ao mesmo tempo essa produtividade é controlada pelo dito e este por sua vez deve se modificar quando por fim vem a luz aquilo a que se referia. (ISER, 1999, p. 106) Assim, o mostrado, o escrito, impulsiona e determina, em certo ponto, a manifestação do leitor nos espaços em branco. Os lugares vazios determinam pontos de entrada para que o leitor complete o texto, no que Iser (1999) chama de sistema de combinações. O lugar sistêmico são as lacunas, os lugares vazios, que designam [...] a possibilidade de a representação do leitor ocupar um determinado vazio no sistema do texto. Os lugares vazios indicam que não há necessidade de complemento, mas sim a necessidade de combinação (relés) condição para que os segmentos textuais possam ser conectados. (ISER, 1999, p. 126) Dessa forma, o leitor não vai somente completar o texto, pois nem sempre há essa necessidade, mas combinar texto-leitura-experiência. Iser (1999) cita os folhetins de Dickens como exemplos. A técnica de cortes ou de adiar a publicação do próximo capítulo nos diários criava expectativas sobre a continuação da trama. Assim ao formular perguntas como "o que acontecerá?", a participação do leitor é intensificada e por meio dessas perguntas os leitores se tornam coautores. Outra técnica citada por Iser (1999) é a introdução de novas personagens que induzem o leitor a fazer conexões entre a trama conhecida até então e as novas situações. Técnica essa perceptível no citado texto de Stigger, “Teste”, que foi colocado logo após a narrativa do linchamento dos anões. A introdução das personagens “gordinhas” desta narrativa logo na sequência do linchamento acrescida da SILVA, D. M. da. Os Anões: o papel... 170 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE pergunta formulada, leva o leitor a fazer tais conexões e combinações, que podem colocá-lo mesmo como um coautor. É nessa lacuna que a narração não se completa que “resulta todo complexo tecido de possíveis ligações que incentiva o leitor a que ele mesmo produza as conexões não totalmente formuladas.” (ISER, 1999, p. 140) São os lugares vazios que obrigam o leitor a participar da história narrada, conviver com as personagens, “pois a falta de informações sobre a continuidade da história relaciona o leitor aos personagens, sendo que o futuro destes lhe aparece ainda incerto, o que fundamenta um horizonte vazio em comum e assim a possibilidade de inter-relação” (ISER, 1999, p. 140). Em “Curta-metragem II”, por exemplo, a narrativa é construída como um roteiro de cinema e termina com as indicações de câmera e a entrada dos letreiros de créditos finais que direcionam o leitor à cena filmada e o aproximam do espectador, quase que o obrigando a visualizar o destino das personagens além da trama narrada. A tarja negra na página subsequente colabora com a imagem cinematográfica do término de uma película ao relacionar a imagem à tela negra do cinema. Figura 4 — Os anões, p. 52-53. SILVA, D. M. da. Os Anões: o papel... 171 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE Em Os anões, os lugares vazios são marcados não só por recursos linguísticos, como as perguntas, reticências e espaços, mas também por recursos gráficos como as tarjas negras ou grandes espaços em branco: [...] os lugares vazios condicionam as possibilidades de relacionamento. Mas eles não tem um determinado conteúdo, pois indicam as conexões exigidas dos segmentos textuais sem, todavia, ter a capacidade de realizá-las. E eles tampouco podem ser descritos, uma vez que, sendo "pausas do texto", nada são; desse "nada", entretanto, resulta o importante impulso da atividade constitutiva do leitor. (ISER, 1999, p. 144) O lugar vazio permite que o leitor participe da realização dos acontecimentos do texto, aja sobre ele. Segundo Iser (1999), no romance moderno — e aqui incluímos o conto e a crônica —, o número de lugares vazios aumenta, e, consequentemente, a participação do leitor também. Por outro lado, para Santiago (1989, p. 45), é a dificuldade de narrar a experiência pós-moderna (fraturada) que abre espaço para o não-dito. A incomunicabilidade se dá numa relação definida pelo olhar. Assim, nas mini narrativas de Stigger, é o leitor quem vai preencher as lacunas presentes por meio de sua leitura. O olhar não pode mais ser reconhecido como o conselho do narrador clássico benjaminiano, que narrava sempre numa instância utilitária. Na forma de narrar do pós-moderno contemporâneo, a visão é mediadora, portanto a crueldade apresentada em Os anões não aparece como forma de denúncia ou lição, mas como retrato, reflexão. Reflexo, pois a imagem do leitor refletida nas páginas o evidencia como parte do narrado: expectador, mas também cúmplice. Santiago (1989) define esse narrador como narrador-repórter, que narra enquanto observa e não como atuante. SILVA, D. M. da. Os Anões: o papel... 172 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE 4. ESTÉTICA DO PROVISÓRIO Para Haroldo de Campos (1969, p. 15), “uma das características fundamentais da arte contemporânea é a da provisoriedade do estético”. Segundo o autor, na civilização técnica em constante transformação, o relativo e o transitório são dimensões do ser na arte contemporânea. Não é mais possível uma arte que preze pela linearidade das formas acabadas. O ser problemático e fraturado do contemporâneo pode somente ser representado por formas instáveis, assim como é sua realidade, daí a necessidade de linguagens igualmente inacabadas em que a informação estética possua o caráter do provisório ou mesmo o intercâmbio de gêneros. Na comparação da estética com a física moderna, Campos (1969, p. 16) coloca a substituição da certeza pela probabilidade. Na poesia há então uma destruição das palavras poéticas e uma incorporação do coloquialismo, do jargão. O provisório entra como categoria de criação oposta à ideia de obra conclusa. Na música, por exemplo, Campos (1969, p. 20) cita Boulez que utilizava o silêncio como forma de compor, e a possível entrada por parte do intérprete em qualquer seção da partitura, havendo assim uma nova interpretação a cada leitura. Os anões permite uma entrada aleatória, tal qual a ideia de Boulez para a música. O leitor pode escolher a entrada na obra a partir da sugestão do sumário, que divide os textos em três categorias: “Pré-histórias”, “Histórias” e “Histórias da arte”. Pode ainda ignorar o sumário e entrar direto em qualquer um dos textos sem a necessidade de seguir uma ordem preestabelecida. A entrada do leitor em qualquer uma das partes não prejudica, pois não há linearidade e cada narrativa é independente. Todas as narrativas são curtíssimas, daí a ideia de anões, que são os próprios textos de extensão mínima, único elo que os une. SILVA, D. M. da. Os Anões: o papel... 173 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE Os gêneros apresentados na obra passam pelo conto, excertos de roteiro de cinema e anúncios de classificados e, mesmo a classificação sugerida no sumário não deve ser considerada tal como é apresentada, uma vez que não há uma ligação temática entre eles. Essa necessidade de colocar os textos em determinada categoria, embora não haja essa ligação, é uma das características do livro de artista: "um desejo de colocar cada coisa em seu lugar [...], às vezes como paródia da pretensão de objetividade das taxonomias científicas" (CADÔR, 2012, p. 37). Parece ser a classificação proposta por Stigger. Pode se tratar apenas de um exercício, uma tentativa de padronização, que sugere mais uma organização irônica. O silêncio, apontado por Campos na composição de partituras musicais, é parte integrante da obra de Stigger. As páginas negras ou as perguntas sem respostas funcionam como pontos de entrada para o leitor refletir e completar a linguagem utilizada pela autora. Os lugares vazios e as negações são indeterminações e regulam as interações texto-leitor. As normas sociais préestabelecidas, a consciência dessas normas pelo leitor é mais facilmente percebida quando estas são transgredidas, negadas. A negação produz um lugar vazio dinâmico no eixo paradigmático da leitura. Sendo agora realidade cancelada, ela marca um lugar vazio da norma selecionada; sendo o tema oculto do cancelamento ela marca a necessidade de desenvolver determinadas atitudes que permitam ao leitor desvendar o que a negação indica sem formulá-lo. (ISER, 1999, p. 171) Assim, no conto “Quand avez-vouz le plus souffert?”, quando a personagem quebra a norma social de que toda mãe deve cuidar do filho e proteger-lhe, matando a própria filha por asfixia, a negação dessa norma é índice de entrada do leitor no texto, que percebe essa transgressão e faz-lhe a devida referência por meio de seu repertório. SILVA, D. M. da. Os Anões: o papel... 174 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE Vale salientar que a participação do leitor se dá não só na forma da complementação no ato da leitura, mas também na prática já muito antiga das anotações. Alberto Manguel comenta, em Uma história da leitura (2006), que o advento do códice de pergaminho, sua popularização, permitiu a estudantes, viajantes, padres, transportarem as obras para leitura e consultar qualquer parte do texto com facilidade, pois, “[...] ambos os lados da folha podiam conter texto e as quatro margens de uma página de códice facilitavam a inclusão de glosas e comentários, permitindo ao leitor pôr seu dedo na história — participação que era muito mais difícil na leitura de um rolo" (MANGUEL, 2006, p. 75). Assim, o próximo leitor daquela obra encontraria o livro com complementações feitas pelas anotações do antigo leitor. Hoje, é bastante comum encontrar obras que já trazem o espaço destinado à manifestação do leitor na própria escritura, como participante da obra. A anotação do leitor é esperada pelo produtor, que já destina seu espaço. Se eu tivesse meu próprio dicionário, de Ni Brisant, sugere novos significados (poéticos) a palavras já muito usadas no cotidiano e apresenta páginas em branco entre alguns verbetes para que o próprio leitor estabeleça seus diferentes significados. Na obra Carteira — do mesmo autor, em parceria com Márcio Sno —, o expediente é o mesmo: entre as tirinhas já desenhadas, encontramos folhas com os quadrinhos vazios para que o leitor os complete com seus próprios textos verbo-visuais. SILVA, D. M. da. Os Anões: o papel... 175 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE Figura 5 - Se eu tivesse meu próprio dicionário, p. 70-71. Figura 6 - Carteira É possível imaginar também as páginas de Os anões para essa finalidade. Os espaços vazios podem ser complementados não só com o repertório de leitura, mas também com a escrita, nas anotações que o leitor pode realizar nesses grandes espaços em branco, pois não há apenas os espaços elípticos da escritura, mas grandes espaços físicos, como se pode observar na reprodução a seguir. SILVA, D. M. da. Os Anões: o papel... 176 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE Figura 7 — Os anões, p. 46-47. O leitor age na própria obra, participando, inclusive, da composição da própria forma. O papel do leitor é fundamental na literatura, assim como o do intérprete na peça musical, como nos demonstra Campos, pois ele, através de sua leitura, participa da forma da composição; opera, junto com o produtor, a informação. É parte importante e constitutiva da obra: No caso da obra de arte provável ou aberta a informação estética ficará, ademais, inseparável de seu consumo: entre realização e consumo da informação estética, então, se estabelece uma relação arbitrada no momento pelo intérprete-operador, cooperador da informação, e esta já não será a mesma numa segunda ou terceira (e assim por diante) execuções. (CAMPOS, 1969, p. 23, grifos nossos) Dessa forma, é o leitor que, ao completar a obra a partir de sua leitura, dálhe rosto e participa na composição da própria forma. Campos dá outro exemplo dessa operação da forma estética na pintura, com Yaacov Agam, cujos quadros em movimento exigem um diálogo entre quadro e espectador que influi sobre a transformação do quadro (se altera com a mudança do espectador, que pode também manipulá-lo). Campos retoma Butor na SILVA, D. M. da. Os Anões: o papel... 177 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE pergunta: “A transição da narrativa linear não nos levaria à busca de formas móveis?” (CAMPOS, 1969, p. 29). É possível que a forma móvel da qual Butor se questiona tenha em Os anões um modelo, por meio da presença de gêneros variados ou da inclusão de elementos visuais extraliterários. Campos inclui, no sentido de arte permutatória, a poesia concreta como um excelente exemplo no sentido de uma leitura que pode ser realizada na vertical, na horizontal ou em blocos. O leitor-operador é convidado a entrar no jogo. Os anões se coloca para o leitor como um jogo não muito diferente do jogo da poesia concreta. Não é no sentido da direção da leitura que se joga, mas na aleatoriedade dela e nas complementações de espaços, nas elipses deixadas propositalmente para que o leitor as complete, o que não é exclusividade de Stigger, mas marca da era digital. “A arte permutacional está inserida qual marca d’água na era tecnológica” (CAMPOS, 1969, p. 33). O jogo é parte da vida desse ser contemporâneo que, na era tecnológica, lê a partir de uma tela ao mesmo tempo em que ouve, enxerga e toca todo o mundo ao seu redor. 5. LIVRO DE ARTISTA O conceito de livro de artista é outro caminho para se pensar a obra de Stigger. Porém, poder-se-ia questionar se Os anões seria um verdadeiro livro de artista ou apenas uma edição de luxo. Pode ser que o formato diferenciado do papel cartonado, o tamanho reduzido, a inserção das tarjas negras e as cores preta e branca altamente brilhantes sejam considerados como intervenção de outra arte. Contudo, poderia também se pensar na intervenção da equipe da editoração no produto final da obra, sem a intervenção da autora, ou seja, o formato produzido pela equipe editorial como simples questão de escolha estética para fins comerciais. Em entrevista (STIGGER, 2010), Stigger admite o formato pensado SILVA, D. M. da. Os Anões: o papel... 178 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE antes do envio à editora: seu marido sugerira as dimensões reduzidas. A posição da autora como historiadora da arte na concepção do projeto, portanto, pode ter influenciado no produto final. A partir dessas observações, pode-se pensar na categoria de livro de artista como paradigma para iluminar a obra. Em uma das muitas definições sobre o livro de artista, Silveira aponta que Ele tem muito da arte, outro tanto da bibliotecnia, fortes elementos da comunicação visual e do projeto industrial, apropriações literárias, um pouco de gramática cinematográfica, algumas intenções políticas e quase quantos et cetceras se puder imaginar.” (SILVEIRA, 2008, p. 123) Há em Os anões elementos da comunicação visual, além das apropriações literárias. A junção desses elementos, associados ao seu formato diferenciado, seriam suficientes para enquadrá-lo nessa categoria. No entanto, o próprio conceito de livro de artista não é tão simples de definir. “Os livros de artista não se deixam encerrar facilmente em uma simples definição” (CADÔR, 1999, p. 22). Para Amir Brito Cadôr (1999), os livros de artista se assemelham aos monstros, criaturas híbridas, junção de animais diferentes ou metade homem metade animal, "um tipo de obra que não pertence a nenhuma das categorias artísticas (desenho, pintura, gravura), mas ainda assim faz parte das artes visuais; utiliza o livro, mas não se enquadra em um único gênero (romance, poesia, teatro) [...]” (CADÔR, 1999, p. 29). Sarah Bodman sugere a expressão ‘livros de arte’ como a que abrangeria diversas categorias: O termo arte amplia a definição de livro, podendo, imediatamente, incluir todos os fanzines, múltiplos, livres de luxe, livros de artista, panfletos, livros alterados/reconfigurados, obras escultóricas, exemplares únicos, downloads, e-books, livros utilizando telefones celulares como plataformas, blogs, Bluetooth, vídeos, podcasts, performances e quaisquer produções efêmeras, como crachás, adesivos, cartões-postais e, como esperávamos, até mesmo Liberature. (BODMAN, 2013, p. 138) SILVA, D. M. da. Os Anões: o papel... 179 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE O movimento liberature foi criado pelos escritores poloneses Katarzyna Bazarnik e Zenon Fagner e, segundo Bodman (2013), está mais ligado à ideia de “artista que produz livro”. Nessa concepção, têm igual valor todas as partes do livro: “texto, imagem, conceito, formato, apresentação e, o que é mais importante, a intenção original do criador” (BODMAN, 2013, p. 137). Anne Moeglin-Delacroix segue a mesma linha de pensamento ao definir o livro de artista: “Uma obra de artista visível que encontrou no livro sua forma de expressão adequada” (Idem, 2006, p. 407 apud CADÔR, 2012, p. 23). Segundo Cadôr, esta definição evita a confusão entre livro sobre artes ou livros ilustrados. “Livros de arte” é um termo muito abrangente e também essa definição abrigaria Os anões. A integração de outras linguagens artísticas ou outros discursos com o livro acontece na intenção representativa. A discussão aponta para o fato de que a palavra não é mais possível (sozinha) para representar o ser da era digital. A linguagem fragmentada deve trazer os elementos relacionados aos outros sentidos, numa leitura performática. O visual, o sonoro, o tátil, como na leitura diante da tela do computador, deve invadir o livro. “É preciso aceitar que os artistas usem todos os meios disponíveis para criar e distribuir seus livros” (BODMAN, 2013, p. 138). Assim como o autor tem liberdade para criar a partir da tela do computador, do celular, etc., o leitor também a tem para ler, seja numa tela ou num formato que permita sua intervenção. Para Manguel (2006), o fundamental do livro é ser um objeto pequeno para caber na mão e, ao mesmo tempo, portador de uma infinidade de maravilhas. A preocupação com o formato é antiga, desde os códices antigos até os livros de bolso da Companhia Penguin. Manguel (2006) comenta que em Roma a aparência da capa e do formato passou a ter grande importância. Capas em chapa de marfim decoradas eram dadas de presente e "logo, livreiros e empreendedores começaram a fazer pequenas coleções de poemas — pequenos livros de presente cujo mérito estava menos no SILVA, D. M. da. Os Anões: o papel... 180 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE conteúdo do que na elaborada ornamentação" (MANGUEL, 2006, p. 76). Eram os antepassados do livro de artista. Como livro de artista, Os anões se coloca como um meio de interação artista/autor-leitor, em que o corpo da obra em contato com o corpo do leitor e sua participação ativa geram um produto diferente a cada contato/entrada na obra. Paul Zumthor, ao citar a Recepção, que “mede a extensão corporal, espacial, social onde o texto é conhecido e em que produziu efeitos” (2000, p. 59) — isto é, o momento espaço-temporal e situacional em que a obra é recebida pelo leitor —, comenta que “Iser parte da idéia de que a maneira pela qual é lido o texto literário é que lhe confere seu estatuto estético; a leitura se define, ao mesmo tempo, como absorção e criação, processo de trocas dinâmicas que constituem a obra na consciência do leitor” (ZUMTHOR, 2000, p. 60). Nesse sentido, a recepção é fator preponderante para a forma, pois obra, leitor, espaço, tempo são determinantes em sua constituição. 6. CONSIDERAÇÕES FINAIS Distante da apresentação de respostas, nosso trabalho, antes, procura apontar caminhos para a leitura de uma obra tão complexa como a de um livro de artista numa narrativa pós-moderna contemporânea. Especificamente na produção de Stigger, personificada em Os anões, o formato incomum, a diagramação e a disposição do texto no volume do livro sugerem uma leitura diferente da convencional, em que o tátil entra em jogo como parte mesmo da decodificação. Na construção da narrativa, a ideia do narrador repórter de Santiago coloca o leitor em posição de igualdade com o próprio narrador, pois ambos observam a experiência do outro. É ainda o leitor o responsável pela própria estética da forma na concepção de arte permutável, de Haroldo de SILVA, D. M. da. Os Anões: o papel... 181 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE Campos. Na ideia do livro de artista, na de Interação, de Iser, ou na Recepção, de Zumthor, o leitor tem um papel preponderante e também o corpo do texto, com seus espaços, pelos quais o responsável pelo preenchimento é o próprio leitor, que o estabiliza provisoriamente, na constituição de uma forma. Em qualquer desses caminhos que se escolha para pensar Os anões, de Veronica Stigger, o leitor é parte constituinte importante. Na obra, o reflexo físico desse leitor denuncia isso, demonstra seu papel de operador. Completa e significa a obra. Preenche os espaços e tenta definir sua forma estética. O conceito de livro de artista ou, como o quer Bodman, livro de arte, demonstra que, talvez por mais uma exigência do leitor, só a palavra não é mais capaz de representar o homem pós-moderno contemporâneo, inserido na era digital, e a inclusão de outras linguagens se faz presente como elemento indispensável. A já antiga hibridização de gêneros apontava para um caminho na necessidade dessa tentativa de representação e na inserção de outras linguagens, outros discursos que se encontram integrados no volume do livro o apresentam como um novo produto. Objeto de si mesmo, o livro de artista, ademais de toda carga linguística do livro, agrega outros valores na sua concepção ao volume que o colocam como objeto artístico. Como livro de artista, a leitura de Os anões reivindica a imprescindibilidade do lugar do leitor em uma categoria de obra como essa. REFERÊNCIAS BELLATIN, Mario. In STIGGER, Veronica. Os anões. São Paulo: Cosac Naify, 2010. BODMAN, Sarah. “Os ‘livros’ são elétricos? Algumas possibilidades para o livro de artista no século XXI”. In DERDYK, Edith. Entre ser um e ser mil: o objeto livro e suas poéticas. São Paulo: Editora Senac, 2013. SILVA, D. M. da. Os Anões: o papel... 182 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE BRISANT, Ni. Se eu tivesse meu próprio dicionário. São Paulo: Edição do autor, 2017. ______; SNO, Márcio. Carteira. São Paulo: Edição dos autores, 2016. CADÔR, Amir Brito. Enciclopedismo em Livros de artista: um manual de construção da Enciclopédia Visual. 193f. Tese (doutorado) — Universidade Federal de Minas Gerais, Escola de Belas Artes, 2012. Disponível em: <http://www.bibliotecadigital.ufmg.br/dspace/handle/1843/JSSS-93RG8E>. Acesso em: 16 mai. 2017. CAMPOS, Haroldo de. A arte no horizonte do provável. São Paulo: Perspectiva, 1969. ISER, Wolfgang. O ato da leitura: uma teoria do efeito estético. v. 2. São Paulo: Editora 34, 1999. MANGUEL, Alberto. Uma história da leitura. São Paulo: Cia. das Letras, 2006. SANTIAGO, Silviano. “O narrador pós-moderno”. In ______. Nas malhas da letra. São Paulo: Cia. das Letras, 1989. SILVEIRA, Paulo. “Espacialidade e exacerbação do corpo”. In ______. A página violada: da ternura à injúria na construção do livro de artista. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2008. STIGGER, Veronica. Os anões. São Paulo: Cosac Naify, 2010. ______. Entrevista com Bruno Dorigatti. In Veronica Stigger e suas estranhas e pequenas histórias. Entrevista de 14/07/2010 para o site Saraiva Conteúdo. Disponível em: <http://www.saraivaconteudo.com.br/Entrevistas/Post/10354> Acesso em 02/06/2014. ZUMTHOR, Paul. Performance, recepção, leitura. São Paulo: EDUC, 2000. Recebido em: 09/08/2017 Aceito em: 29/09/2017 SILVA, D. M. da. Os Anões: o papel... 183 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE A EDUCAÇÃO SENTIMENTAL E A HISTÓRIA COMO COMPOSIÇÃO SENTIMENTAL EDUCATION AND HISTORY AS COMPOSITION Murilo da Silva Coelho1 RESUMO: Por meio da caracterização da juventude, feita por Franco Moretti, e da noção de personagem mediano, de György Lukács, demonstraremos como a vida do protagonista de A Educação Sentimental, Frédéric Moreau, se vincula com os acontecimentos históricos de 1848, ocorridos em Paris. Moreau, um burguês leviano, caminha parcialmente indiferente em meio às correntes ideológicas do seu tempo. No entanto, vai ser através da sua leviandade e do seu malogrado destino amoroso, de cunho idealista e romântico, que veremos surgir o triste quadro histórico que encena o desencanto de toda uma geração. Palavras-chave: juventude; história; composição. ABSTRACT: Through the characterization of youth, made by Franco Moretti, and the notion of the median character, by György Lukács, we shall demonstrate how the life of the main character in The Sentimental Education, Frédéric Moreau, joints with historical events from 1848, occurred in Paris. Moreau, a lightheaded bourgeois, walks partially indifferent amidst the ideological currents of his time. However, it will be through his levity and unsuccessful love destiny, of idealistic and romantic nature, that we shall see emerge the sad historical picture that enacts the disenchantment of a whole generation. Keywords: youth; history; composition. 1. INTRODUÇÃO A Educação Sentimental (doravante, Educação)2, de Gustave Flaubert, é um ótimo exemplo do que se convencionou chamar de romance de formação (Bildungsroman). E, ao lado disso, a Educação se relaciona também, de forma peculiar, com a história, pois em paralelo à formação ou educação sentimental do jovem 1 2 Doutorando, UFPR. Usaremos a edição de 2015 da obra. COELHO, M. da S. A Educação Sentimental... 184 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE Frédéric Moreau, se processa e irrompe a Revolução de 1848, ocorrida em Paris. Esta, como praticamente tudo no romance, é plasmada por Flaubert a partir de farta documentação e de um dedicado estudo prévio das fontes históricas acerca desse acontecimento. Temos, portanto, dois campos a considerar nesse artigo, sendo o primeiro deles referente ao romance de formação e ao que ele, em termos composicionais, implica. Por outro lado, temos a presença da História e da maneira como esta irrompe em meio à trama, articulando-se diretamente com o destino ou trajetória de Moreau. E no que diz respeito à articulação da História com a sua trajetória, podemos dizer que essa se faz, durante o romance, de diversas maneiras e em diversos pontos. Afinal, Moreau entra em contato com vários personagens que veiculam questões históricas prementes. Como, por exemplo, o Senhor Arnoux (burguês devasso, dissipador e sedutor que representa o lado sórdido, dúbio e decadente da burguesia então ascendente), o Senhor Dambreuse (aristocrata que migrou para a classe burguesa e que representa o ideário capitalista da alta burguesia), Deslauriers (um personagem pobre que representa a vontade de ascender socialmente pelas vias burguesas, mas cujas ambições malogram), Pellerin (artista cujas concepções teóricas são superiores ao seu talento e cuja arte se encontra a serviço do capital ou de qualquer outro status quo empossado) e, acima de tudo, Marie Arnoux (uma burguesa convencional, dependente do marido, mãe de família e suscetível ao embalo de uma leve aventura adúltera, mas, não obstante, a encarnação do ideal de amor romântico de Frédéric). Apesar de transitar por todos esses personagens e questões, nosso foco será nas relações de Frédéric com aqueles personagens que nos permitam problematizar, antes, a conexão dos acontecimentos históricos de 1848 com a trajetória pessoal de Frédéric. Portanto, ainda que lamentando o estreitamento do escopo, nos centraremos nas personagens Marie Arnoux, Dussardier e Sénécal para analisarmos como o malogro do ideal amoroso se vincula ao malogro do ideal revolucionário. COELHO, M. da S. A Educação Sentimental... 185 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE Dada a relevância de alguns termos para o desenvolvimento da nossa argumentação, como composição e personagem mediano, façamos uma breve excursão a O Romance Histórico de György Lukács (2011), pois vai ser nessa obra que ele vai elaborar tais noções. Comecemos com composição, mas lembrando que esse conceito se encontra disseminado na obra em questão, retornando em diversos momentos com matizes diferentes. Basicamente, podemos dizer, a partir de Arlenice Almeida da Silva (2011, p. 10-17), que a noção de composição engloba a noção de forma e aponta para a capacidade do texto literário de plasmar o contexto sócio-histórico no qual o escritor se encontra e, ao mesmo tempo, configurar esteticamente questões abstratas ou reflexivas em situações concretas e experienciáveis. Por meio da composição, o escritor transforma em ato as ideias que sua obra abarca, ou melhor, por meio da composição o autor transporta para o âmbito narrativo as questões sócio-históricas do seu tempo e do tempo que ele aborda em sua obra, mas faz isso antes através de ações e das disposições dos personagens na trama do que através de reflexões abstratas. Tratando da obra de Walter Scott, Lukács vai destacar a capacidade que este autor teve de transpor para sua obra as implicâncias sócio-históricas do seu tempo e de encontrar, por meio da figuração do passado histórico da Inglaterra, um elo entre o presente e o passado por meio da escolha e da disposição na trama dos seus personagens. Como nos diz Lukács: Ele [Walter Scott, o escritor] procura o ‘caminho do meio’ entre os extremos e esforça-se para demonstrar sua realidade histórica pela figuração ficcional das grandes crises da história inglesa. Essa tendência fundamental de sua figuração se expressa de imediato no modo como ele inventa a trama e escolhe a personagem principal. O ‘herói’ do romance scottiano é sempre um gentleman inglês mediano, mais ou menos medíocre. Em geral, este possui certa inteligência prática, porém não excepcional, certa firmeza moral e honestidade que beiram o sacrifício, mas jamais alcançam o nível de uma paixão humana arrebatadora, de uma devoção entusiasmada a uma causa grandiosa. (LUKÁCS, 2011, p. 49) COELHO, M. da S. A Educação Sentimental... 186 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE Ao abordar mais detidamente a obra de Walter Scott, Lukács vai desdobrar essa premissa crítica ao perceber que os personagens centrais de Scott não são protagonistas dos movimentos históricos nos quais se encontram envolvidos. Ou seja, estes personagens não são reis ou rainhas ou personalidades ilustres e ativas, mas, antes, são personagens medianos, homens do povo, destituídos de opiniões políticas demasiado assertivas. Lukács vê nisso uma grande qualidade, em termos composicionais, pois tal mediania permitiria aos personagens de Scott serem atravessados por todas as tendências ideológicas do seu tempo sem aderir ou protagonizar, necessariamente, qualquer delas (LUKÁCS, 2011, pp. 48-51). A vantagem composicional está justamente no fato de esses personagens permitirem o trânsito das questões históricas por suas vidas, viabilizando assim, para a configuração do romance, uma maior absorção do contexto histórico plasmado. Mas mais importante do que isso, ao menos para os nossos fins, é que Lukács não deixa de considerar a presença de personagens medianos naquilo que ele chama de o grande romance realista (cujo maior representante é Balzac). Acompanhemos então o que Lukács diz sobre o romance histórico clássico e sobre o grande romance realista: O romance histórico clássico — e, depois dele, o grande romance realista de temática contemporânea — escolhe personagens centrais que, apesar de seu caráter mediano (que já analisamos em detalhe), são perfeitamente apropriados para se situar na encruzilhada dos grandes embates sócio-históricos. As crises históricas figuradas são componentes imediatos dos destinos individuais das personagens principais e constituem, assim, parte orgânica da própria ação. Desse modo, os elementos individual e sócio-histórico estão inseparavelmente ligados um ao outro tanto na caracterização quanto na condução do enredo. (LUKÁCS, 2011, p. 246, grifos nossos) Portanto, a vantagem composicional de se escolher personagens medianos se encontra na possibilidade de estarem eles situados, nos termos de Lukács, na encruzilhada dos grandes embates sócio-históricos. Dada essa ligeira explanação COELHO, M. da S. A Educação Sentimental... 187 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE teórica, passemos para a consideração da Educação enquanto um romance de formação. 2. O ROMANCE DE FORMAÇÃO O protagonista da Educação, Frédéric Moreau, é um desses jovens provincianos, aparentemente promissores, mas sustentados a grande custo pela família. Frédéric, como Lucien de Rubempré e Eugène de Rastignac, viaja para Paris visando dar curso aos seus estudos. Mas chegando lá, se apaixona perdidamente por alguém, desiste dos estudos e é tragado pela voracidade da vida mundana parisiense. Todos os seus sonhos e aspirações, desde os mais singelos e inocentes até os mais objetivos, baldamse, sucessivamente: “Frédéric baixou a cabeça. Era o primeiro dos seus sonhos que caía por terra” (FLAUBERT, 2015, p. 33). Ao fim de sua errática e malfadada jornada, encontraremos um Frédéric frustrado, vislumbrando o sentido da sua vida em uma banalidade juvenil do seu passado, uma lembrança qualquer a propósito de um prostíbulo: “Afinal, foi o que tivemos de melhor! — disse Frédéric”. (ibid., p. 439). Até aqui, a Educação faz jus às definições mais generalizadas que permeiam o romance de formação e que giram em torno da caracterização de uma trajetória enviesada e problemática, empreendida por um jovem não raro esperançoso, mas cujas esperanças, ao cabo dessa trajetória, serão frustradas. Uma dessas possíveis definições do romance de formação, simples, mas precisa, é oferecida por Franco Moretti, que o encara como: “O conflito entre o ideal de autodeterminação e a demanda igualmente imperiosa de socialização” (MORETTI, 2000, p. 15, tradução nossa)3. Conflito entre o ideal de autodeterminação e as demandas sociais, isto é, conflito entre o eu e o mundo, o indivíduo e a sociedade. Nesse sentido, a definição de Moretti replica a raiz argumentativa do jovem Lukács No original: “The conflict between the ideal of self-determination and the equally imperious demands of socialization.” (MORETTI, 2000, p. 15) 3 COELHO, M. da S. A Educação Sentimental... 188 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE (2000), da Teoria do Romance, uma vez que este — lembrando que ele não se limita ao romance de formação — arrola como característica principal do romance, enquanto gênero, a disparidade entre a interioridade e o exterior, entre o eu e o mundo. Para o jovem Lukács, os heróis do romance são estas interioridades inflacionadas e problemáticas que perambulam em um mundo que lhes é hostil e alheio, um mundo totalmente indiferente aos seus anseios de continuidade (LUKÁCS, 2000). Na Educação, nós temos justamente isso, pois Frédéric parte da província para Paris, mas ao chegar lá encontra um mundo indiferente aos seus desejos, sonhos, planos e aspirações. Um mundo que o incomoda e com o qual ele sente dificuldades em estabelecer um elo de continuidade. Por exemplo, em dado momento, Frédéric se sente entediado, então decide ir a um baile, mas ao chegar lá, frustra-se: “Procurou divertir-se. Foi aos bailes da Ópera. Mas aquela alegria tumultuosa deixava-o gelado, mal entrava.” (FLAUBERT, 2015, p. 43). Temos também o momento em que ele tenta se casar com a Senhora Dambreuse, dando, assim, curso às suas ambições de ascensão burguesa, no entanto, aqui também, falha miseravelmente, e o narrador conclui: “Adeus sonhos, e toda a grande vida que teria levado.” (ibid., p. 398). Cenas como essas são recorrentes na obra, nos permitindo mesmo afirmar que elas funcionam como um marca-passo, algo sempre presente ao fim de cada uma das empreitadas de Moreau, pois sempre que ele tenta articular sua interioridade com o mundo social, malogra. Daí o teor amargo das seguintes frases: “Refugiamo-nos na mediocridade, por desesperar do belo que se sonhou.” (ibid., p. 282). E também: “Pertenço à raça dos deserdados, e morrerei com o meu tesouro sem saber se ele era um diamante verdadeiro ou artificial.” (ibid., p. 35). Dado isso, é válido lembrarmos que o subtítulo da Educação é História de um Jovem, sendo seu título completo, no original: L’Éducation Sentimentale, histoire d’un jeune homme. Esse subtítulo não é nada fortuito, principalmente quando levamos em consideração a interpretação dada por Moretti a respeito da presença do COELHO, M. da S. A Educação Sentimental... 189 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE Bildungsroman na cultura europeia. Em The Way of the World, Moretti (2000) diz que o Bildungsroman coloca no seu centro um tipo muito específico de personagem, o jovem, sendo que este jovem congrega em si a fase intermediária da vida humana, entre a infância e a velhice, fase tipicamente atribulada e polarizada entre grandes esperanças e ilusões perdidas, mas congrega também, simbolicamente, o avanço da própria modernidade europeia, igualmente atribulada e polarizada (MORETTI, 2000). Podemos então dizer que o jovem é encarado como um personagem intermediário ou mediano, replicando as aspirações e frustrações de toda uma era. Sob esta perspectiva, a juventude desses protagonistas de romances de formação pode ser considerada como um elemento compositivo, isto é, como uma escolha intencional e significativa por si própria, incrustada na forma do romance, e cuja presença já implica, em si, uma série de considerações. Se assim for, podemos inferir que a juventude humana e europeia, na Educação, caminha de mãos dadas, sendo que, ambas, são impulsionadas por esperanças e ilusões, mas estão igualmente fadadas às desesperanças e às desilusões. Sendo assim, o jovem Moreau, assim como seus confrades e coetâneos, como é o caso de Rastignac e Rubempré, podem ser lidos como encarnações composicionais das pulsões de uma era que abarca em si o entusiástico advento da modernidade. Mas a quais aspectos da modernidade nos referimos? Conceituar modernidade, em todas suas implicações, é uma empresa árdua que não cabe aqui. Portanto, optamos por nos concentrar, a partir de Hobsbawm e Moretti, em um pequeno quadro de ligeiras particularidades que sejam mais afins às características que abordaremos na Educação. No encalço de Hobsbawm, podemos considerar que a modernidade foi impulsionada por aquilo que ele chama de dupla revolução, a Revolução Francesa e a Revolução Industrial, sendo a primeira operada no campo político-ideológico e a segunda no campo tecnológico e econômico (HOBSBAWM, 2015a). Tais revoluções impulsionaram a humanidade, por um lado, à COELHO, M. da S. A Educação Sentimental... 190 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE Primavera dos Povos, isto é, às revoluções disseminadas por toda a Europa, cujo ápice é a data de 1848. Mas, por outro lado, impulsionaram também a burguesia e o capitalismo, transformando a burguesia na classe dominante e o capitalismo no modo de vida que havia de grassar nos tempos vindouros. Sobre a dupla revolução, Hobsbawm ainda diz que o legado ideológico da Revolução Francesa, que seria a conscientização das massas acerca dos seus grilhões e dos seus direitos à liberdade, malogrou justamente em 1848, pois, segundo ele: “A revolução industrial [inglesa] havia engolido a revolução política [francesa]”. (HOBSBAWM, 2015b, p. 23). Tal observação é muito importante, pois percebemos justamente isso na Educação, ou seja, o projeto político-ideológico da modernidade, que visava a uma civilização mais igualitária, é baldado, enquanto que o projeto econômico avança, resoluto. Já Moretti (2000), em sua caracterização da modernidade, frisa o seu aspecto entusiástico, sua sede de avanço e sua inquietude, pois percebe na modernidade esta permanente revolução em busca de novas formas e de novos modos de vida. É por esse motivo que Moretti articula modernidade e juventude, pois ambas são inquietas e moventes, ambas caminham olhando antes para o futuro do que para o passado “A juventude é, por assim dizer, a essência da modernidade, o signo de um mundo que busca seu sentido antes no futuro que no passado”. (MORETTI, 2000, p. 05, tradução nossa, grifo no original)4. E Moretti, assim como Hobsbawm, não ignora o efeito da dupla revolução, tanto para a modernidade quanto para a juventude presente nos romances de formação. Por esse motivo, diz que a dupla revolução é aquilo que lança a Europa na modernidade, mas sem uma cultura da modernidade. Ou seja, podemos dizer que lança a Europa na modernidade sem uma absorção efetiva dos princípios político-ideológicos enfeixados pelo aspecto ético-social propagado pela Revolução Francesa. Isso geraria, portanto, um descompasso fundamental entre o eu e o mundo, No original: “Youth is, so to speak, modernity’s ‘essence’, the sign of a world that seeks its meaning in the future rather than in the past.” (MORETTI, 2000, p. 05, destaque no original). 4 COELHO, M. da S. A Educação Sentimental... 191 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE uma vez que o mundo teria avançado com a Revolução Industrial, mas o eu não teria sido contemplado pelos princípios sociais da Revolução Francesa. Segundo Moretti: Sem aviso prévio, em meio aos sonhos e pesadelos da então chamada dupla revolução, a Europa mergulha na modernidade, mas sem possuir uma cultura da modernidade. Portanto, se a juventude alcança a centralidade simbólica desse período ao mesmo tempo em que eclode o grande momento narrativo do Bildungsroman, isso se dá porque a Europa sente necessidade de encontrar um sentido, não tanto para a juventude, mas para a modernidade. (MORETTI, 2000, p. 05, tradução nossa, grifos no original)5 Temos então, por um lado, a presença da dupla revolução como uma das forças motoras da modernidade. Por outro lado, temos o jovem como este personagem mediano, no meio da vida, que congrega em si as grandes esperanças e as ilusões perdidas de uma modernidade cujo projeto humanitário malogra, mas cujo projeto econômico e industrial ascende. Eis o plano de fundo sobre o qual se desdobra a trama da Educação, sendo nosso objetivo apontar como o plano de fundo, de caráter sóciohistórico, se articula com a trama, ou melhor, com o destino de Frédéric Moreau. Para tanto, nos cabe retomar e interpretar, em linhas gerais, as primeiras páginas da Educação. O romance começa com uma descrição de um porto de onde um barco a vapor, o La Ville-de-Montereau, está prestes a zarpar. Em meio à fumaça (que nos remete à revolução industrial e às máquinas), às mercadorias (que nos remetem ao capitalismo) e ao trânsito e vozeio de mercadores e passageiros, temos Frédéric Moreau, já dentro do La Ville-de-Montereau, ao lado do leme, mas completamente indiferente tanto à possibilidade de condução da embarcação quanto ao seu entorno. Frédéric está, antes, mergulhado em suas elucubrações românticas, ainda difusas, mas No original: “Virtually without notice, in the dreams and nightmares of the so called double revolution, Europe plunges into modernity, but without possessing a culture of modernity. If youth, therefore, achieves its symbolic centrality, and the great narrative of the Bildungsroman comes into being, this is because Europe has to attach a meaning, not so much to youth, as to modernity.” (MORETTI, 2000, p. 05, grifos no original) 5 COELHO, M. da S. A Educação Sentimental... 192 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE que ganham um contorno firme e obsessivo assim que ele se deparar com Ela (Marie Arnoux): Foi como uma aparição: Ela estava sentada, sozinha, no meio do banco; pelo menos ele não distinguiu mais ninguém, cego pela luz que lhe emanava dos olhos [...] Como se chamaria, onde morava, qual seria a sua vida, o seu passado? Desejava conhecer os móveis do quarto dela, todos os vestidos que ela usara, as pessoas que frequentava; e o próprio desejo carnal da posse desaparecia perante uma aspiração mais profunda, numa curiosidade dolorosa que não tinha limites. (FLAUBERT, 2015, p. 23) É muito relevante esta introdução para todo o romance, afinal, se encararmos que o La Ville-de-Montereau, como um barco a vapor, representa uma das forças mais notáveis do avanço da modernidade, ao menos em seu sentido industrial, poderemos nos deparar com boa parte da temática a ser explorada pela narrativa, uma vez que Frédéric vai ser, durante todo o correr do romance, justamente este personagem romanticamente apaixonado, obcecado por um ideal, mas igualmente alheio à lógica sócio-histórica, voraz e mecânica, que o abarca e que há de desencadear uma Revolução cuja origem é gestada no seio das massas, mas cujo resultado final vai ser o empossamento definitivo dos burgueses no poder e do capitalismo como modo de vida6. Pois quem avança, aqui, é Frédéric, mas avança dentro de um contexto maior que ele, um contexto capitalista e maquínico, movido a vapor. E quem avança também, no rastro do navio da modernidade, é a insatisfação das massas e a consequente gestação de um ideário revolucionário. Ao término, teremos, por um lado, o triunfo da máquina, da alta burguesia e do capital, por outro lado, teremos a desilusão revolucionária das massas e o desencanto amoroso de Moreau. E é no momento em que a desilusão revolucionária das massas se funde com o desencanto amoroso de Hobsbawm frisa que a Revolução de 1848 foi alimentada pela insatisfação das massas, decorrente de péssimas condições de vida (HOBSBAWM, 2015a), no entanto, também nos diz que: “1848 aparece como a revolução da moderna história da Europa que combina a maior promessa, a mais ampla extensão, o maior sucesso inicial imediato com o mais rápido e retumbante fracasso.” (HOBSBAWM, 2015b, p. 39) 6 COELHO, M. da S. A Educação Sentimental... 193 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE Moreau que o romance de formação e a história se tocam, se articulam em termos de composição. Tal articulação vincula, a um só tempo: o amor romântico, o ideário revolucionário e os seus respectivos malogros. Portanto, o amor e a revolução são colocados em um mesmo plano, isto é, ambos são ideais, ou seja, produtos de um idealismo que há de ser suplantado pelo aspecto maquínico e industrial do modelo de vida burguês. Mas antes de tocarmos nesse ponto nevrálgico, acompanhemos os passos de Frédéric rumo ao turbilhão da história. 3. A HISTÓRIA COMO TURBILHÃO Após muitas decepções em Paris, Frédéric retorna à província. Lá se encontra com Louise, uma camponesa que, ao que parece, lhe devota um amor sincero. Em dado momento, em uma cena de matizes idílicos, temos ambos deitados na grama, observando as nuvens, quando uma densa e negra nuvem atravessa o zênite indo da província para Paris: “ — ‘Vai para os lados de Paris — disse Louise; — gostaria de acompanhá-la, não é assim? — Eu [Frédéric]! Por quê?”. (FLAUBERT, 2015, p. 265). Apesar de Frédéric, pela primeira vez na vida, estar sentindo “uma espécie de íntima plenitude” (ibid., p. 265), ele vai, mesmo assim, abandonar seu bem-estar para seguir a agourenta nuvem negra até Paris. É nesse ponto que ele é, definitivamente, tragado pela vida mundana, e isso fica demarcado por meio das suas relações com as cortesãs (Madame Vatnaz e a Marechala). Mas ele é, igualmente, tragado pelos eventos históricos, isto é, a Revolução parisiense de 1848 que, no momento do seu retorno à capital, está em franca germinação. É importante frisarmos um aspecto relevante sobre a eclosão da Revolução: ela se dá no dia em que Frédéric marca um encontro amoroso com Marie, ao qual ela não vai, ou seja, a possibilidade de concretização do amor ideal é baldada, e Marie sai de cena para reaparecer só ao fim do romance. Frédéric fica perturbado com a ausência COELHO, M. da S. A Educação Sentimental... 194 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE inesperada de Marie, totalmente desnorteado, e é então que ele é absorvido pelos movimentos da Revolução, sendo que tais movimentos são configurados como um turbilhão ou remoinho insensato, mas ao mesmo tempo fascinante e envolvente que, graças à sua força centrípeta, arrasta Frédéric: “Um remoinho permanente fazia oscilar a multidão. Frédéric, apanhado entre duas massas compactas, não se mexia, aliás, fascinado, e divertindo-se imenso. Os que caíam feridos, os mortos ali estendidos não pareciam verdadeiros feridos, nem verdadeiros mortos. Parecia-lhe estar assistindo a um espetáculo.” (FLAUBERT, 2015, pp. 302-303) Já mais à frente, a Revolução se adensa e o turbilhão vai assumindo, cada vez mais, um caráter algo insano e despropositado: De repente, a Marselhesa vibrou. Hussonet e Frédéric debruçaram-se no corrimão. Era o povo, que se precipitou pela escadaria, num flutuar vertiginoso de cabeças descobertas, de capacetes, de barretes vermelhos, baionetas e ombros, com tamanho ímpeto que se viam desaparecer pessoas naquela massa ondulante que subia sem cessar, como um rio impelido pela maré do equinócio, num ulular prolongado, sob um impulso irresistível [...] Então, uma alegria frenética explodiu, como se, no lugar do trono, um futuro de felicidade sem-fim tivesse surgido. (FLAUBERT, 2015, pp. 304-305). É notável, no trecho acima, o caráter vertiginoso, contagioso e ensandecido da eclosão da Revolução. E nesse ponto podemos retomar as reflexões do jovem Lukács, expostas anteriormente. Afinal, para o Lukács de A Teoria do Romance, o mundo no qual os protagonistas dos romances perambulam é caracterizado como um descontínuo heterogêneo, isto é, uma massa desconforme com a qual os personagens não conseguem estabelecer um elo de continuidade (LUKÁCS, 2000). Em sua interpretação da Educação, Lukács frisa justamente este descompasso entre a interioridade inflacionada de Frédéric, completamente voltada para a efetivação do seu amor ideal com Marie, e um mundo que lhe seria alheio, hostil e vertiginoso. Sendo assim, a reincidência dos malogros de Frédéric é explicada por Lukács como sendo uma consequência inerente a tal descompasso entre um eu romântico com anseios de COELHO, M. da S. A Educação Sentimental... 195 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE continuidade e um mundo que lhe é descontínuo e heterogêneo7. O momento em que tal descontinuidade entre o eu e o mundo é colocada de forma mais direta, na Educação, é no seguinte trecho: “Frédéric, aberto a todas as fraquezas, foi contagiado pela demência universal.” (FLAUBERT, 2015, p. 314). Esse contágio da demência universal demarca, inclusive, o momento em que Frédéric se afasta de suas aspirações a um amor ideal, ao menos momentaneamente, e tenta, erraticamente, envolver-se com os difusos desdobramentos da Revolução. Mas é justamente aqui que conseguimos articular Frédéric com a História, afinal, sua condição pouco aderente a um mundo que lhe é indiferente o tornam um ótimo personagem mediano, destes que transitam em um mundo sem conseguir se ligar efetivamente a ele, mas que, não obstante, nos permitem entrever as forças sociais e históricas que contribuem para a configuração da história na Educação. 4. A HISTÓRIA COMO COMPOSIÇÃO Retomemos nossas considerações, pautadas em Lukács, acerca dos personagens medianos. Afinal, quando, em O Romance Histórico, o autor fala sobre personagens medianos na obra de Balzac, ele está aludindo, justamente, aos jovens Lucien de Rubempré e Eugène de Rastignac. Portanto, o autor se refere a protagonistas de romances de formação. Em Marxismo e Teoria da Literatura, Lukács fala diretamente sobre tais personagens e reitera a noção de composição a partir do uso de protagonistas medianos: Sobre a psicologia de um personagem como Frédéric, fundamentalmente em descompasso com a realidade imediata, Lukács diz: “Descomedidamente, a riqueza interna do puramente psicológico é elevada a única essencialidade, e, com uma inexorabilidade igualmente descomedida, revela-se a insignificância de sua existência no todo do mundo; o isolamento da alma, a sua insularidade em relação a todo apoio e todo vínculo, agrava-se até o descomedido, e ao mesmo tempo o fato de esse estado de alma depender justamente dessa situação do mundo é aclarado com luzes impenitentes. Aspira-se, composicionalmente, a um máximo de continuidade, pois somente na subjetividade imperturbada pelo exterior há existência; a realidade desintegra-se, contudo, em fragmentos absolutamente heterogêneos entre si...”. (LUKÁCS, 2000, p. 124). 7 COELHO, M. da S. A Educação Sentimental... 196 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE Trata-se apenas de encontrar aquela figura central em cujo destino se cruzam os extremos essenciais do mundo representado no romance, em torno da qual, em consequência, é possível construir todo um mundo, na totalidade das suas vivas contradições. Por exemplo: a situação social de Rastignac, um nobre arruinado, faz dele um mediador entre o mundo da Pensão Vauquer e aquele da aristocracia; e a irresolução interior de Lucien de Rubempré faz dele a mediação entre o mundo dos arrivistas aristocráticos e dos jornalistas e a aspiração à verdadeira arte, própria do cenáculo de D’Arthez. (LUKÁCS, 2010, p. 179, grifos nossos) Sendo assim, podemos dizer que, em termos de composição, os jovens podem ser vistos como esses personagens medianos que replicam as tendências sóciohistóricas de sua época sem, ao mesmo tempo, aderir completamente a elas, pois eles, antes, transitam entre elas. Estes jovens, pouco aderentes, ocupariam então uma posição central na trama e, ao seu redor, seria possível contemplarmos as convulsões históricas de um tempo, sendo que estas estariam organicamente conectadas com o destino individual da figura central: no nosso caso, o jovem Frédéric Moreau. Frisemos que Lukács (2010) não fala diretamente sobre o jovem enquanto uma escolha composicional, pois se atém à noção de que os protagonistas medianos é que seriam estes pontos nodais que congregam as múltiplas tendências ideológicas de um tempo. A juventude como a personificação da fase mediana da vida e, ao mesmo tempo, como representação do advento da modernidade, cabe a Moretti (2000). O pensamento de Moretti é aqui importante porque nos permite destacar a euforia da modernidade em consonância com a euforia da juventude e, assim, nos permite também, já a partir da Educação e apoiados na noção de personagens medianos, assomar a euforia idealista das massas revolucionárias em consonância com a euforia amorosa de Moreau, arrolando todos esses estados em uma mesma embarcação: aquela onde se dá o avanço da modernidade. Mas como dizíamos acima, esta modernidade é impulsionada por uma dupla revolução; logo, possui, digamos, uma dupla face, sendo uma a sua frente e a outra o seu avesso. E é na configuração desta COELHO, M. da S. A Educação Sentimental... 197 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE dupla face da modernidade que a história como composição se dá, uma vez que é aqui que as convulsões históricas se fundem no corpo da obra com o destino de Moreau. Voltemos-nos então para os personagens Dussardier e Sénécal. Primeiramente, Dussardier é aquele que encarna os ideais revolucionários em sua verve ética, genuinamente revolucionária, pois Dussardier é um personagem íntegro, um homem que brota das massas e que se mantém estável e fiel aos princípios revolucionários do início ao fim. Já Sénécal, apesar de ser também um revolucionário, é antes um revolucionário alimentado pelo ideário propagado pelos socialistas utópicos. Um estudioso que põe em cena a discursividade revolucionária daquele período. Diferentemente de Dussardier, Sénécal não vai se manter estável, pois ao fim do romance ele vai trocar de lado, isto é, ele vai abandonar os ideais revolucionários para se filiar à burguesia ascendente e fazer coro ao novo status quo que se instaura. A cena onde essa mudança se dá é fulcral para a Educação e é, justamente, o momento em que a história se funde composicionalmente com a vida de Frédéric. O que temos é o seguinte: após todos seus desencantos e, acima de tudo, o seu desencanto amoroso com Marie Arnoux, Frédéric resolve voltar para a província, ambicionando, quem sabe, se casar, enfim, com Louise. Mas chegando lá, uma nova decepção: Louise está casando com Deslauriers, o seu amigo de infância. Arrasado, Frédéric retorna para Paris. Chegando em Paris, que está sob as últimas convulsões da Revolução, Frédéric se depara com a seguinte cena: Envergonhado, vencido, esmagado, [Frédéric] voltou para a estação, e regressou a Paris [...] Eram cinco horas, caía uma chuva fina. Viam-se burgueses no passeio do lado da Ópera. As casas fronteiras estavam fechadas. Ninguém às janelas. A toda a largura do bulevar, galopavam os dragões, à rédea solta, inclinados sobre as montadas, de sabre desembainhado; as crinas dos capacetes e as grandes capas brancas, esvoaçando atrás deles, passavam sob a luz dos bicos de gás, que tremelicava ao vento, por entre a névoa. A multidão ficava olhando para eles, muda, aterrada. Entre as cargas de cavalaria, brigadas de policiais surgiam, para fazer refluir a multidão para as ruas laterais. Mas, nos degraus de Tortoni, um homem — Dussardier — que se destacava, de longe, pela elevada estatura, COELHO, M. da S. A Educação Sentimental... 198 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE permanecia tão imóvel como uma cariátide. Um dos policiais da frente, de tricórnio caído sobre os olhos, ameaçou-o com a espada. Então, ele [Dussardier], dando um passo à frente, pôs-se a gritar: — Viva a República! Tombou de costas, com os braços cruzados [Dussardier foi assassinado por um policial]. A multidão soltou um urro de raiva. O policial circulou os olhos em volta; e Frédéric, pávido, reconheceu Sénécal. (FLAUBERT, 2015, p. 430) É aqui que se funde o desencanto do ideal amoroso com o desencanto do ideal revolucionário, pois o assassinato de Dussardier por Sénécal demarca o fim da Revolução em seus princípios genuínos, fundindo-se com todos os desencantos de Frédéric. Coadunando, assim, a sua vida baldada com o fracasso da revolução e colocando, ambos, como movimentos românticos germinados nos avessos da modernidade, mas sufocados pela mesma, pois assim como Frédéric visa romper, por meio dos seus ideais românticos, com alguns dos grilhões da sua medíocre vida burguesa, as massas visam romper com os seus grilhões sociais e instaurar uma nova república, uma república para o povo, para as massas. Ambos são impulsionados por essa euforia da modernidade que se alastra das indústrias à utopia, dos navios a vapor à vida política; mas ambos, Frédéric e as massas, estão na rabeira desta euforia, pois são antes o seu avesso, ou melhor, um broto deste imenso processo histórico que há de suplantar o ideário Romântico e o ideário sócio-político gestado pela Revolução Francesa de 1789. Para retomarmos a imagem do navio da modernidade, digamos que o aspecto maquínico ou industrial da burguesia viaja, na proa, de mãos dadas com o capitalismo, enquanto que Frédéric, um burguês romântico e mal ajustado às demandas práticas da sua classe, viaja na popa, contribuindo, por meio de sua mediania ou mediocridade, com a configuração romanesca da insatisfação e do malogro revolucionário das massas, igualmente instalados na popa, mas em um cômodo menos privilegiado que o do burguês abastado que é Frédéric. COELHO, M. da S. A Educação Sentimental... 199 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS Em As Regras da Arte, Pierre Bourdieu (1996) também interpreta a Educação a partir do argumento de que Frédéric é um adolescente leviano, sem seriedade e indeterminado. Sua indeterminação o coloca no meio de dois campos de forças sociais, com os quais ele interage, mas aos quais ele não se vincula de fato: As ambições contraditórias que o levam sucessivamente para os dois pólos do espaço social, para a carreira artística ou para os negócios, e, paralelamente, para as duas mulheres que estão associadas a essas posições, são próprias de um ser sem gravidade (outra palavra para dizer seriedade), incapaz de opor a menor resistência às forças do campo [social]. (BOURDIEU, 1996, p. 33, grifos no original) Não obstante sua falta de seriedade, ou graças a ela, Frédéric torna possível a configuração das forças ou tendências históricas em conflito, sendo, nesse sentido, um personagem estratégico, agora nos termos de Lukács, para abordar as forças modeladoras da história. Nesse sentido, é surpreendente que Lukács tenha ignorado o aspecto histórico da Educação. Se dedicando à análise do romance histórico Salammbô, também de Flaubert, Lukács passa por cima da Educação e deixa de analisar a coerência composicional dessa obra. Afinal, como dizíamos acima, a composição também implica a presença do tempo histórico do escritor, no caso Flaubert, cujo tempo histórico, como mostrado pelo próprio Lukács a propósito de Salammbô, é um tempo de ressaca e de desencanto histórico, uma época prosaica onde o lado mais medíocre da vida burguesa já se instaurou (LUKÁCS, 2011). Se assim for, podemos dizer que o desencantado Flaubert criou um personagem mediano, Frédéric, com o qual abordou a história recente da França para assim explicar o desencanto do seu tempo. Herdeiro de uma época na qual os ideais revolucionários e os preceitos românticos já estão baldados, Flaubert revisita o passado como pré-história do seu COELHO, M. da S. A Educação Sentimental... 200 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE presente, plasmando, composicionalmente, as forças ou tendências históricas por meio do seu personagem mediano e sem gravidade, cujo eclipsar de seus ideais amorosos são justapostos com o eclipsar dos ideais revolucionários. Colocadas nesse mesmo plano, as ambições amorosas e revolucionárias são contrastadas, mas também fundidas enquanto frutos igualmente românticos e igualmente inviáveis em um mundo dominado pelos que se encontram na proa do navio da modernidade. REFERÊNCIAS BORDIEU, Pierre. As Regras da Arte. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. HOBSBAWM, Eric. A Era das Revoluções, 1789-1848. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2015a. ______. A Era do Capital, 1848-1875. 23ª ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 2015b. FLAUBERT, Gustave. A Educação Sentimental: História de um Jovem. Trad. Adolfo Casais Monteiro. São Paulo: Nova Alexandria, 2015. LUKÁCS, György. O Romance Histórico. Trad. Thomas Enderle. São Paulo: Boitempo, 2011. ______. A Teoria do Romance. 34ª ed. Trad. José Marcos Mariani de Macedo. São Paulo: Duas Cidades, 2000. ______. Marxismo e Teoria da Literatura. 2ª ed. Trad. Carlos Nelson Coutinho. São Paulo: Expressão Popular, 2010. MORETTI, Franco. The Way of the World. The Bildungsroman in the European culture. Trad. Albert Sbragia. New York: Verso, 2000. SILVA, Arlenice Almeida da. “A História e as Formas”. In LUKÁCS, György. O Romance Histórico. São Paulo, Boitempo, 2011. Recebido em: 09/08/2017 Aceito em: 11/09/2017 COELHO, M. da S. A Educação Sentimental... 201 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE O LOUCO SOCORRO: UMA LEITURA DA NARRATIVA ROSEANA À LUZ DO PENSAMENTO DE MICHEL FOUCAULT THE CRAZY HELP: A READING OF GUIMARÃES ROSA’S NARRATIVE BY THE LIGHT OF MICHEL FOUCAULT’S THOUGHT Bruno Felipe Marques Pinheiro1 Emilly Silva dos Santos2 RESUMO: Inscrevendo-nos em uma perspectiva filosófico-literária, com este trabalho pretendemos realizar uma análise do conto “Sorôco, sua mãe, sua filha”, publicado em 1962, por Guimarães Rosa. Para tanto, apropriaremo-nos da categoria alegórica “Loucura” aludida por Michel Foucault, que faz uma crítica às estruturas políticas e epistemológicas as quais presidem a racionalidade do mundo moderno. Após as análises empreendidas, percebemos que a loucura é expressa por meio do discurso silenciado ou valorizado, o que permite refletir sobre como nos binômios sociais há sempre a superioridade de um em detrimento de outro. Palavras-chave: loucura; Guimarães Rosa; perspectiva filosófico-literária. ABSTRACT: Inscribed in a philosophical-literary perspective, this work aims to analyze the short story "Sorôco, sua mãe, sua filha", published by Guimarães Rosa in 1962. We will use the allegorical category “Madness”, therefore, appropriating the term alluded by Michel Foucault who criticizes the political and epistemological structures that rule the rationality of the modern world. After the analysis, we conclude that madness is expressed through discourse, which is either silenced or valued, and also allows reflections on the superiority of one in detriment of another, which is always present in social binomials. Keywords: madness; Guimarães Rosa; philosophical-literary perspective. 1 2 Graduando, UFSE. Graduanda, UFSE. PINHEIRO, B. F. M. & SANTOS, E. da S. O Louco Socorro... 202 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE 1. GUIMARÃES ROSA E MICHEL FOUCAULT: AS VEREDAS DA LOUCURA O conto “Sorôco, sua mãe, sua filha”, escrito por Guimarães Rosa e publicado no livro Primeiras Estórias (1962), reflete sua tendência e busca pelo tema da loucura, uma vez que esta salta aos olhos como problemática central da história. Podemos apontar tal temática a partir de outros contos presentes no livro, como, por exemplo, “A terceira margem do rio”, “A menina de lá” e “Dirandira”, contribuindo para a construção da tessitura sociocultural na qual as personagens são formadas. Guimarães Rosa soube muito bem falar sobre a loucura e por meio dela contextualizar diversos aspectos sociais e psicológicos que permeiam o sertão mineiro e, mais especificamente, esse local onde a história se passa. Tais contos, pertencentes ao livro Primeiras Estórias, de antemão, correlacionam-se a partir de algumas semelhanças. Primeiro, porque as três narrativas se referem ao tema da loucura. Segundo, no conto em análise, o título menciona as três personagens principais, Sorôco (protagonista), sua mãe e sua filha (coadjuvantes). O conto “A terceira margem” também faz referência ao número três. Já em “Darandira”, inicia-se fazendo referência ao protagonista que passa pelo narrador, duas ou três pessoas. Logo, podemos relacionar essas semelhanças e sugerir que o escritor Guimarães Rosa constrói uma verdadeira metáfora para loucura, considerando-a como margem. Essas margens tomam um significado relevante, pois em nossa sociedade os loucos são considerados marginalizados, o que revela um aspecto social marcante não só do sertão mineiro, mas também do Brasil. Assim, o tema da loucura se constitui como o predominante em toda narrativa, seja de forma macro temática, seja micro. Dessa maneira, observamos uma relação mútua entre a ação e o conflito presentes na narrativa. A loucura passa a ser o conflito na ação gerada entre Sorôco e suas parentes, PINHEIRO, B. F. M. & SANTOS, E. da S. O Louco Socorro... 203 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE “ação e conflito se tornam equivalentes, uma vez que toda ação pressupõe conflito, e este, promove a ação, ou por meio dela se manifesta; em suma, ambos se implicam mutuamente.” (MOISÉS, 2006, p. 40) A relação entre ação e conflito perpassa toda a estrutura do conto, em suas quatro partes: introdução, complicação, clímax e desfecho. Corroborando com o que Paulo Ronái na introdução de Primeiras Histórias (1962) afirma, “o universo de Guimarães Rosa é, ao mesmo tempo, ordenado e caótico. Sua ordem, inacessível à nossa percepção, pauta nossas existências, preestabelecidas, imutáveis” (p. 12, grifo nosso). Esse universo conflituoso e alinhado pode também se correlacionar com o conceito de conto formulado por Massaud Moisés: (...) o conto é, pois, uma narrativa unívoca, univalente: constitui uma unidade dramática, uma célula dramática, visto gravitar ao redor de um só conflito, um só drama, uma só ação. Caracteriza-se assim, por conter unidade da ação, tomada esta como a consequência de atos praticados, pelos protagonistas, ou de acontecimentos que participam. A ação pode ser externa, quando as personagens se deslocam no espaço e no tempo, quando o conflito se localiza em sua mente. (MOISÉS, 2006, p. 40) Em “Sorôco, sua mãe, sua filha”, a história conta o sofrimento de Sorôco, um viúvo que se separa de sua mãe e sua filha, essas consideradas loucas. Na busca de tratamento, o único homem da família as coloca em um Expresso rumo a Barbacena em direção a um hospício. Na apresentação do conto, logo no título “Sorôco, sua mãe, sua filha”, como aponta Yudith Rosenbaum (2008), “gera [-se] de imediato um estranhamento do nome que carrega em si o oco, o buraco, a falta, a solidão, de um homem só que pede socorro, quase um anagrama da palavra socorro” (p. 154). Esse socorro nos remete a um estranhamento percebido na apresentação da narrativa, retomado no momento em que se explicita a loucura da mãe e da filha, loucura que deixa Sorôco encurralado e com a qual ele se vê obrigado a conviver até o momento em que não aguenta mais e PINHEIRO, B. F. M. & SANTOS, E. da S. O Louco Socorro... 204 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE faz, então, um pedido de socorro, que se torna explícito no conto no trecho: “daí, com os anos, elas pioravam, ele não dava mais conta, teve de chamar ajuda, que foi preciso. Tiveram que olhar em socorro dele, determinar de dar providências, de mercê.” (ROSA, 1962, p. 36) Pretende-se discutir neste artigo o pedido de socorro expresso de forma silenciosa por Sorôco, realizando uma análise a partir da interface entre o texto literário de Guimarães Rosa e a teoria sobre a loucura de Michel Foucault, no livro A História da Loucura, de 1961. Assumimos, aqui, uma perspectiva de análise de caráter filosófico-literário: “a princípio, portanto, tanto uma visão filosófica pode contribuir para o entendimento de uma obra literária, quanto uma obra literária pode já conter uma atmosfera que convide à filosofia, ou à reflexão filosófica, para o seu centro” (PINHEIRO, 2016, p. 1, grifo do autor). Foucault (1961), ao situar a loucura na história da humanidade, na publicação A História da Loucura (1961), retrata como a sociedade, em suas diversas constituições, tratou da loucura. O caminho explanado por Foucault, ao tratar da loucura como constitutiva da sociedade, aponta para esta como sendo uma construção sociohistórica engendrada em relações de poder-saber, as quais têm por função gerar elementos vários capazes de determinar os lugares sociais que o sujeito pode ou não ocupar. Nesse sentido, aquilo que é apontado pelo grupo social como loucura se torna, então, um parâmetro para moldar o dizer aceitável e o não aceitável. Neste horizonte de reflexões, faz-se necessário discutir quais parâmetros podem definir a sanidade e a loucura em determinado grupo social. Foucault, em A História da Loucura (1961), faz uma comparação do sonho com a loucura. O autor reflete sobre como é possível saber que o sonho não é real, e, por conseguinte, como saber que não se está sonhando quando se acredita que se está acordado. Poderíamos, portanto, questionar: como saber que os padrões de sanidade definidos por dado grupo social não são retratos de loucura, tornando o contrário verdadeiro? Foucault argumenta PINHEIRO, B. F. M. & SANTOS, E. da S. O Louco Socorro... 205 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE que a força de ilusões que cada homem carrega deixa sempre um resíduo de verdade (FOUCAULT, 1978[1961]). É nesse resíduo de verdade em que a loucura está imbricada, conforme advoga o filósofo ao dissertar que: (...) a loucura fascina porque é um saber. [...]. O louco o detém em sua parvície inocente. Enquanto o homem racional e sábio só percebe desse saber (a loucura) algumas figuras fragmentárias e por isso mesmo inquietantes — o louco o carrega inteiro em uma esfera intacta: essa bola de cristal, que para todos está vazia, a seus olhos está cheia de saber invisível. (FOUCAULT, 1978, pp. 20-21) Por isso, podemos relacionar essas figuras absurdas às descrições que Guimarães faz das personagens “sua mãe, sua filha”: Aí paravam. A filha — a moça — tinha pegado a cantar, levantando os braços, a cantiga não vigorava certa, nem no tom nem no se dizer das palavras — o nenhum. A moça punha os olhos no alto, que nem os santos e os espantados, vinha enfeitada de disparates, num aspecto de admiração. Assim com panos e papéis, de diversas cores, uma carapuça em cima dos espalhados cabelos, e enfunada em tantas roupas ainda de mais misturas, tiras e faixas, dependuradas virundangas: matéria de maluco. A velha só estava de preto, com um fichu preto, ela batia com a cabeça, nos docementes. Sem trato que diferentes, elas se assemelhavam. (ROSA, 1962, p. 37) A citação acima, além da descrição das personagens, nos chama a atenção para a expressão “matéria de maluco”. Percebemos, como há uma distância entre o lugar do “são” e daquele que é considerado “louco”, de modo que, entendemos, conforme Rosenbaum (2008, p. 155), que “o lugar da loucura aparece aqui entre o espanto e a sanidade e se apresenta por um cantar único e compreensivo.” No conto, a distância entre a sanidade e a loucura fica bem demarcada no seguinte trecho: “todos ficavam de parte, a chusma de gente não querendo afirmar as vistas, por causa daqueles trasmodos e despropósitos, de fazer risos, e por conta de Sorôco — para não parecer pouco caso.” (ROSA, 1962, p. 37) PINHEIRO, B. F. M. & SANTOS, E. da S. O Louco Socorro... 206 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE Nem tudo o que é pensado é passível de ser compartilhado com outros; o próprio narrador aponta neste conto a necessidade que os indivíduos têm de se colocar como sãos e competentes perante o seu círculo social. A produção discursiva que é aceita socialmente está engendrada em estratégias de polidez, bem como acontece com as pessoas que se encontravam na estação, o cidadão competente é aquele que percebe as posições do sujeito que pode ou não assumir no grupo social em que está alocado. Sendo assim, a sua produção discursiva é interpelada pelas formações discursivas as quais está filiado. Nesse sentido, é passível ser dito que nem mesmo aqueles que são considerados membros competentes de uma sociedade podem veicular, explicitamente, variados discursos, uma vez que existe uma espécie de consciência coletiva que rege os diálogos humanos. No entanto, em todo agrupamento social, eventualmente, há o desvirtuamento de um dos seus membros, que perde o posto de participante competente. No conto, trata-se das figuras da mãe e filha de Sorôco. É a loucura que faz com que o tempo e o espaço da narrativa sejam intrínsecos, que haja um deslocamento advindo da necessidade imposta pelo conflito entre as personagens no conto. “Para tanto, os ingredientes narrativos galvanizam-se numa única direção, ou seja, em torno de um único drama, ou ação.” (MOISÉS, 2006, p. 41) E aqui a loucura toma uma forma social, como mencionado anteriormente, e estritamente importante para ação/conflito da narrativa, pois “se tomarmos o cuidado de considerar os fatores sociais [...] o seu papel de formadores da estrutura, veremos que tanto eles quanto os psíquicos são decisivos para a análise literária.” (CANDIDO, 2006, p. 22) Dessa forma, este estudo se dividirá em duas partes: na primeira, refletiremos sobre a questão da loucura de “sua mãe, sua filha” como fator de implicação social/cultural, do mesmo modo que perceberemos a sociedade e a cultura como fatores que implicam na forma como a loucura é concebida. Na segunda parte, PINHEIRO, B. F. M. & SANTOS, E. da S. O Louco Socorro... 207 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE trataremos da relação binominal canto e silêncio/são e louco, como forma de silenciamento dos sujeitos. 2. SUA MÃE, SUA FILHA: DUAS LOUCAS? A obra de Foucault, A história da loucura na Idade Clássica, publicada em 1961 na França, traz o termo “loucura” em oposição à maneira como a história apresenta as diversas concepções sobre o assunto. Ao longo da análise realizada sobre o tema por Foucault, na obra mencionada, percebemos as implicações que as transformações sociais acarretam no que diz respeito à forma como a loucura é concebida, do mesmo modo, percebemos, que a concepção de loucura para determinada sociedade afeta a forma como o louco é tratado. O louco é aquele cujo discurso não pode circular como o dos outros. (FOUCAULT, 2014[1971]) Atentemo-nos para a visão de Foucault sobre a loucura a partir do século XVI, quando a criticidade passa a dominar o século, isso é interpretado pelo autor como consequência da valorização da razão. Ao destacar a razão, evidentemente, a loucura se torna sua antagonista e seu fundamento passa a ser visto como algo “natural” por parte da sociedade. A partir desse momento da história a loucura passa a denotar a falta de razão, a impossibilidade de pensar. Como qualquer outro problema que afeta as condições de produção do sujeito, os loucos passam a representar um peso econômico para o estado, situando assim a internação, ou seja, a segregação social. (FOUCAULT, 1978[1961]) É justamente isso que acontece no conto “Sorôco, sua mãe, sua filha”. Numa tentativa de segregação e aprisionamento do perfil de loucas, avó e neta são levadas ao hospício. E, chama-nos atenção o próprio carro preparado na véspera para levá-las ao hospício em Barbacena. PINHEIRO, B. F. M. & SANTOS, E. da S. O Louco Socorro... 208 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE Não era um vagão comum de passageiros, de primeira, só que mais vistoso, todo novo. A gente reparando, notava as diferenças. Assim repartido em dois, num dos cômodos as janelas sendo de grades, feito as de cadeia, para os presos. A gente sabia que, com pouco, ele ia rodar de volta, atrelado ao expresso dai de baixo, fazendo parte da composição. Ia servir para duas mulheres, para longe, para sempre. (ROSA, 1962, p. 36) A imagem do carro é constitutiva da relação de segregação das personagens consideradas loucas; isso é reiterado pelo trecho “o carro lembrava um canoão no seco, navio” (ROSA, 1962, p. 36). Aqui, “o navio representa a exclusão, o distanciamento, a separação. Os que nele vão se tornam socialmente ‘ninguém’, e ninguém, em particular, quer responsabilizar-se pela extradição.” (PERRONE-MÓISES, 2002, p. 212) Como se vê no trecho, era necessário que o povo se mostrasse contrastante com a realidade daquelas que seriam levadas “para longe, para sempre”, e a forma de se mostrar diferente era caracterizar o veículo que as transportaria para o internamento. A descrição feita pelo narrador distingue duas partes desse trem: i) o vagão preparado para as mulheres ditas “loucas” que é comparado a uma prisão; ii) o espaço destinado a passageiros comuns. No trecho “sempre chegava mais povo — o movimento. Aquilo quase no fim da esplanada, do lado do curral de embarque de bois, antes da guarita do guarda-chaves, perto do empilhado de lenha” (ROSA, 1962, p. 36), a expressão “curral de embarque de bois” também toma forma de uma representação e um distanciamento social para com as personagens no momento em que as consideram animais irracionais, provocando uma exclusão e separação. O internamento [...] se estendeu dos regulamentos mercantis elementares ao grande sonho burguês de uma cidade onde imperaria a síntese autoritária da natureza e da virtude. Daí a supor que o sentido do internamento se esgota numa obscura finalidade social que permite ao grupo eliminar os elementos que lhe são heterogêneos ou nocivos [...]. O internamento seria assim a eliminação espontânea dos “a-sociais.” (FOUCAULT, 1978[1961], p. 90) PINHEIRO, B. F. M. & SANTOS, E. da S. O Louco Socorro... 209 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE É por isso que no conto “Sorôco, sua mãe, sua filha” o protagonista, na luta para habituar-se à loucura das coadjuvantes, ao não suportar tal direção que sua vida toma, resolve mandá-las para o hospício. Percebemos, então, a loucura como elemento que está à espreita, como um fardo pesado, uma vez que segue uma não rota, interferindo, em certa medida, na vivência já normatizada de um determinado grupo social. Na época em que o conto está contextualizado, concebe-se a loucura como uma doença mental, um problema patológico; no entanto, esse fator não ameniza a visão que se tem do louco, que é visto como sujeito que promove a desordem. Entretanto, o momento da ida de “sua mãe, sua filha” para o hospício em Barbacena, desencadeia uma reviravolta, pois, à medida que estava chegando a hora do trem, as parentes de Sorôco precisavam entrar no carro. Antes de entrarem, de repente, a velha se desapareceu do braço de Sorôco, foi se sentar no degrau da escadinha do carro. — ela não faz nada, seu agente...” — a voz de Sorôco estava muito branda: — ela não acode, quando a gente chama...” A moça, aí tornou a cantar virada para o povo, ao ar, a cara dela era um repouso estatelado, não queria dar-se em espetáculo, mas representava de outrora grandezas, impossíveis.” (ROSA, 1962, p. 37) Nessa citação, podemos estabelecer mais uma relação com a teoria de Michel Foucault. O canto expresso pela filha de Sorôco pode representar uma desrazão. Nesse caso, com a valorização da Razão, a loucura não se encaixa no modelo racional de concepções; a loucura compromete o exercício do pensamento, é uma ameaça que sempre pode comprometer as relações de subjetividade e verdade, à medida que o exercício da razão também submete a loucura ao desaparecimento, posto que a loucura implica uma impossibilidade do raciocínio lógico, ou seja, uma desrazão. Por esse motivo, o canto expressado pela filha de Sorôco, e posteriormente, seguido por sua avó, é considerado irracional. PINHEIRO, B. F. M. & SANTOS, E. da S. O Louco Socorro... 210 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE Mas a gente viu a velha olhar para ela, com um encanto de pressentimento muito antigo — um amor extremoso. E, principando baixinho, mas depois puxando pela voz, ela pegou a cantar, também, tomando o exemplo, a cantiga mesma da outra, que ninguém não entendia. Agora elas cantavam junto, não paravam de cantar.” (ROSA, 1962, pp. 36-37) Em uma visão foucaultiana, a loucura é uma construção social e histórica; essa perspectiva é defendida também por Pelbart (1993), quando afirma que a relação do homem se modifica a partir de sua alteridade. Ou seja, segundo Pelbart, amparado na teoria de Foucault sobre a loucura, essa se torna uma espécie de alteridade no conto, uma vez que é concebida a partir da relação entre a avó e a neta e tem seu cume no canto proliferado pelas duas. Logo, “a loucura, enquanto fato [...] objeto de exclusão, de internamento e de intervenção, já teria representado o encobrimento e o desvanecimento de uma forma de alteridade, todavia mais extrema e irredutível: a Desrazão.” (PELBART, 1993, p. 94) Por isso, o canto da avó e da neta no conto de Guimarães se torna uma desrazão. Em toda a trajetória histórica da loucura um aspecto importante de definição do louco é o discurso proferido por ele. Foucault (2008) percebe os limiares do dizer razoável e do não razoável, ele utiliza a palavra “razoável” propositalmente por conta da aproximação lexical que esta possui com a palavra “razão”. O discurso da Razão é razoável e, portanto, aceito socialmente, do mesmo modo que o discurso da antirrazão é o não-razoável, não sendo aceito socialmente. Em todas as épocas circulam discursos que servem como parâmetro para o razoável e o não-razoável. Chamamos, neste estudo, de discurso aceitável ou não aceitável em determinada conjuntura social, visto que a loucura e a sanidade são medidas pelos discursos proferidos. O direito à voz é ofertado a quem domina o discurso do razoável, do aceitável, enquanto o silêncio é imposto a quem quebra com às regras desse discurso. PINHEIRO, B. F. M. & SANTOS, E. da S. O Louco Socorro... 211 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE Neste caso, no conto, o discurso proferido por Sorôco é razoável e aceitável, uma vez que esse é um homem são, sujeito ativo e competente do grupo social a que pertence, e ainda é reiterado pela descrição: “Ele hoje estava calçado de botinas, e de paletó, com chapéu grande, botara sua roupa melhor, os maltrapos. E estava reportado e atalhado, humilhoso. Todos diziam a ele seus respeitos, de dó.” (ROSA, 1962, p. 37) Por sua vez, o discurso da mãe e da filha é a antirazão (não-aceitável e nãorazoável), uma vez que são nominalizadas a partir da pessoa de Sorôco. O autor, além de situá-las de acordo com a condição social em que se encontravam, não lhes dando nome, ainda se refere a elas a partir de pronomes possessivos, ao invés de pessoais, como dito anteriormente, são chamadas de “sua mãe” e “sua filha”. O louco é assujeitado, não tem o controle sobre si, assim, não se pertence. E, se a oferta de silêncio não for aceita, existem outras medidas de silenciamento, seja por meio da segregação, sendo o anulamento das funções sociais, seja pela consequência do atestado de louco que determinado sujeito possui. Só é pelo direito de fala que é capaz de produzir e contribuir efetivamente com o grupo a que pertence, o que foge desse parâmetro deve ser abafado e excluído. 3. CANTO E SILÊNCIO: O SÃO E O LOUCO A descrição da personagem Sorôco, em oposição à caracterização das outras duas personagens, aponta um contraste entre a sanidade e a loucura por meio da voz. Enquanto ele é descrito como alguém de pouca voz — controlado — suas parentes recebem a descrição de alguém que não tem controle sobre si. A filha de Sorôco é a primeira a ser descrita com características que a assemelham ao louco, sendo caracterizada da seguinte forma: “a moça — tinha pegado a cantar, levantando os braços, a cantiga não vigorava certa, nem no tom nem no se dizer das palavras” (ROSA, 1962, p. 37). O discurso cantado pela menina se encontrava PINHEIRO, B. F. M. & SANTOS, E. da S. O Louco Socorro... 212 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE no limiar do não-aceitável, primeiro por suas palavras estarem no domínio do nãorazoável, segundo porque o dizer proferido por ela ia de encontro ao comportamento de sanidade estabelecido culturalmente para aquele grupo. Chegando ao ápice do conto, ao mesmo tempo filha e avô cantam uma cantiga que ninguém entendia: “agora, mesmo, a gente só escutava era o acorçoo do canto, das duas, aquela chirimia, que evocara: que era um constado de enormes diversidades desta vida, que podiam doer na gente, sem jurisprudência de motivo nem lugar, nenhum, mas pelo antes, pelo depois” (ROSA, 1962, p. 38). Isso nos leva a crer que essas personagens não eram desatinadas por princípio, mas em algum momento romperam com o fio condutor do pensamento razoável e se entregaram à verdade sobre elas mesmas. (FOUCAULT, 1978[1961]). O canto desordenado emitido pelas personagens, e não entendido pelos que estavam em volta delas, torna-se explícito pela diferença entre as duas e os outros. O canto delas era livre, não se importavam com o fato de o canto não ser compreendido, belo ou coerente, e isso demonstra a falta de controle das personagens sobre as suas atitudes. O descontrole das parentes de Sorôco era um disparate perante os seus, uma situação com a qual a sociedade não sabia lidar e que provocava incômodo e constrangimento por parte da comunidade. “O lugar físico dos ‘loucos’ e dos ‘são’ pode ser determinado, mas o canto ‘louco’ os irmana num ‘lugar nenhum’ que, como sempre, em Guimarães Rosa, parece designar o inconsciente, de onde felizmente, tanto podem vir os impulsos agressivos, quanto os impulsos amorosos” (PERRONE-MÓISES, 2002, p. 212, destaques no original). Esses impulsos, sejam amorosos ou agressivos, podem estar correlacionados com os binômios: canto e voz como são e louco. Para Foucault (2014[1971]), a sociedade se reflete à medida que enxerga a loucura como uma fenda para monstros adentrarem e agirem em determinado grupo e o meio encontrado pela sociedade para PINHEIRO, B. F. M. & SANTOS, E. da S. O Louco Socorro... 213 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE curar esses monstros é o silêncio da razão. No conto, o louco é silenciado e, por sua vez, excluído. A narrativa é construída a partir de binômios: pensamento racional e irracional; sanidade e loucura; voz e canto. Guimarães Rosa se utiliza da arte para expressar as mais variadas dicotomias, e a partir dessas revelar variadas facetas sobre a loucura, constituindo, assim, um distanciamento entre os sujeitos que ocupam uma posição conforme a norma social vigente em determinado grupo e excluindo os sujeitos que não obedecem a essa norma. Há um espaço social determinado para os que seguem a rota e para os transeuntes de uma não-rota é-se destinado não-lugar (como, por exemplo, o hospício). O procedimento de exclusão por meio do silenciamento se dá uma vez que o grupo não consegue se relacionar e não sabe lidar com a desordem provocada. No conto, isso é visível a partir do canto entoado por mãe e filha de Sorôco. Do mesmo modo, o não saber proceder do grupo tornava a convivência com elas pesada, carregada de responsabilidades, por isso precisavam ser silenciadas e excluídas. A manutenção da boa convivência do grupo dependia do silenciamento excludente, deixando confortáveis aqueles que possuíam compromisso com a razoabilidade de seus discursos. É perceptível a forma como este conto conduz o leitor pela mão e o leva ao desencadear da história, nem sempre compreendida. Em uma primeira leitura percebe-se a aproximação entre o leitor e a história, após algumas leituras, acaba sendo vísivel uma linha entre a sanidade e a loucura, essa de caráter tênue, e todos os homens estão sujeitos a atravessar essa linha. Talvez, o percurso entre a sanidade e a loucura dure apenas um canto. PINHEIRO, B. F. M. & SANTOS, E. da S. O Louco Socorro... 214 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE 4. O CANTO DE SOCORRO É LIBERTADOR! Nos trechos finais do conto há uma quebra de expectativa, e aqui Guimarães Rosa é sensacional, pois “um conto é significativo quando quebra seus próprios limites com essa explosão de energia espiritual que ilumina bruscamente algo que vai muito além da pequena e às vezes miserável história que conta.” (CORTÁZAR, 1993, p. 153) Essa quebra consiste em quando a mãe e a filha, ao partirem para o hospício, veem Sorôco voltar para casa; neste momento, há uma reviravolta no conto: Ele sacudiu, de um jeito arrebendado, descontecído, e virou, pra ir embora. Estava voltando para casa, como se estivesse indo para longe, fora de conta. Mas, parou, em tanto que se esquisitou, parecia que ia perder o de si parar de ser. Assim num excesso de espírito, fora de sentido. E foi o que não se podia prevenir: quem ia fazer siso aquilo? Num rompido — ele começou a cantar, alteado, forte, mas sozinho para si — e era a cantiga, mesma, de desatino, que as duas tanto tinham cantado. (ROSA, 1962, p. 39) Neste ponto da narrativa, o canto da mãe e filha de Sorôco o contagia de forma desacontecida, como chama o autor, ao ponto de o sofrimento dele pela partida das mulheres que mais amava desencadear uma empatia nos que estavam acompanhando a despedida e todos se tornam partícipes daquela dor. Assumem a fragilidade que os rodeia, em um rompante todos quebram com as regras que os certificavam como participantes competentes e compartilham do canto desconcertante. “E com vozes tão altas! Todos caminhando, com ele, Sorôco, e canta que cantando, atrás dele, os mais de detrás quase que morriam, ninguém deixasse de cantar.” (ROSA, 1962, p. 39) O canto no texto torna-se uma metáfora para libertação, o atestado de insanidade deixa de ser loucura e passa a ser alteridade, contagiando a todos na narrativa. O sofrimento de Sorôco desencadeia uma empatia nos que estavam acompanhando a despedida de sua filha e sua mãe, que estavam indo em direção à clausura, e todos se tornam partícipes daquela dor. PINHEIRO, B. F. M. & SANTOS, E. da S. O Louco Socorro... 215 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE Esse momento final mostra que, mesmo partilhando desse fio de loucura, as personagens inseridas no conto não partilhavam especificamente da loucura da avó e da neta, mas se compadeciam da voz de Sorôco; foi o canto dele que foi ouvido e compartilhado, não o canto de loucura, mas o canto de dor que gera liberdade. É essa liberdade de Sorôco que faz com que esse se assemelhe com sua mãe e filha. A loucura das duas contagia a todos, pois é uma espécie de alteridade. O cantar é um exercício da liberdade, que para Foucault, em As palavras e as coisas (2000[1967]), é um exercício de poder, ou seja, não há exercício de poder onde não há nenhuma possibilidade de ação. Ainda poderíamos considerar a construção formal e linguística do texto, como o uso do termo “a gente”, esse tomado durante toda narrativa como narradortestemunha, pois não é uma personagem do conto, mas narra acontecimentos de que participou. Ao utilizar esse tipo de narrador e o pronome em primeira pessoa. Guimarães Rosa subverte a narrativa. É como se uma pessoa no meio da multidão narrasse o conto, contribuindo desde o início do texto um ritmo e uma condução da leitura até o momento do canto final. A gente se esfriou, se afundou — um instantâneo A gente... e foi sem combinação em ninguém entendi o que se fizesse [...] Foi um caso sem comparação. A gente estava levando agora o Sorôco para a casa dele, de verdade. A gente, com ele, ia até aonde que ia aquela cantiga. (ROSA, 1962, p. 39) Mais uma vez, Guimarães Rosa extrapola os limites do conto, a ponto de usar o pronome “a gente”, uma variedade linguística coloquial, para representar, também, nós, leitores. Logo, o conto também possui os mesmos efeitos para o leitor como o romance “[é] verdade, na medida em que o romance acumula progressivamente seus efeitos no leitor, enquanto que um bom conto é incisivo, mordente, sem trégua desde as primeiras fases.” (CORTÁZAR, 1993, p. 152) PINHEIRO, B. F. M. & SANTOS, E. da S. O Louco Socorro... 216 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE Percebe-se que o “a gente” é um dos efeitos de sentido dado pela narrativa, isto é, exerce a função do espelho: o conto reflete suas nuances, e o leitor, por sua vez, refrata suas perspectivas. Logo, podemos compreender sua função à luz da teoria de Bakthin, de ser “o papel ativo do outro no processo de comunicação verbal.” (BAKHTIN, 2003, p. 292) O outro, neste caso, são os leitores, desde a apresentação do conto até o desfecho, esses se tornam testemunhas de todo enredo, e com o cantar de Sorôco os leitores se libertam e também são loucos, pois cantam uma cantiga irracional e incompreensível. Aqui, o louco exerce uma dupla função: “Proporciona divertimento às pessoas, ao mesmo tempo em que atrai e fascina, por deixá-las entrever, ainda que de modo nebuloso, uma verdade essencialmente humana.” (FERRAZ, 2000, p. 132) Há, ao fim do texto, um ritual3 reverso, os membros daquele grupo social rompem, por alguns minutos, com os rituais estabelecidos no quadro dos esquemas de restrições/coerções da sociedade referida, que determinam as propriedades singulares e os papéis preestabelecidos dos sujeitos que falam. Essa ruptura se dá para abrir espaço para uma forma outra de produção de discursos, discursos esses que em poucas linhas antes estavam limitados a espaços fechados de circulação. Assim, como a loucura a princípio é desprezada no conto, no desfecho passa a ser uma forma de liberdade/alteridade. Por fim, chegamos à conclusão que no conto por um impacto estético, todas as personagens, inclusive o leitor, são revestidos por uma memória coletiva. E a loucura se torna uma espécie de libertação/alteridade, seja política, ideológica ou social. Segundo Foucault (2014[1971]), o ritual diz respeito aos gestos, os comportamentos e todo o conjunto de signos que acompanham determinado tipo de discurso aceito. 3 PINHEIRO, B. F. M. & SANTOS, E. da S. O Louco Socorro... 217 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE REFERÊNCIAS BAKHTIN, Mikhail. “Gênero do Discurso”. In BAKHTIN, Mikhail. Estética da Criação Verbal. Estética da criação verbal. 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O Louco Socorro... 218 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE A POETA E A CASA: UMA CARTOGRAFIA ÍNTIMA DOS VERSOS DE ANA MARTINS MARQUES THE POET AND THE HOUSE: AN INTIMATE CARTOGRAPHY OF ANA MARTINS MARQUES’ VERSES Diamila Medeiros1 RESUMO: A poética de Ana Martins Marques tem uma série de elementos comuns que se apresentam em seus livros, entre eles, uma poesia do cotidiano calcada, sobretudo, na presença da casa, de seus cômodos e utensílios. Com base nisso, no presente artigo, pretendemos abordar a maneira através da qual se dá a construção dessa “poética da casa” e a forma como ela contribui para a compreensão de Marques como sendo uma poeta lírica. Palavras-chave: Poesia Contemporânea; Ana Martins Marques; Casa. ABSTRACT: Ana Martins Marques’ poetics presents a series of common elements that appear in her books. Among them, a poetic of the every-day which is mainly built on the presence of the house, its rooms and utensils stand out. Bearing that in mind, the present article intends to approach the way this construction of a “poetic of the house” occurs, and how it contributes to an understanding of Marques as a lyric poet. Keywords: Contemporary Poetry; Ana Martins Marques; House. (Espera: estou inventando uma língua para dizer o que preciso) * A cura está no tempo, dizem, mas, ela pensa, por que não no espaço? ou antes não há cura a vontade de partir antecede sempre a casa estamos para ir prestes, mas não prontos 1 Doutoranda, UFPR, bolsista CAPES/DS. MEDEIROS, D. A poeta e a casa... 219 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE só vigor e vontade lar, ela pensa, é sempre lá (talvez, lançar-ser) Ana Martins Marques (2017) Seduz pelo que é dentro ou será, quando se abra; pelo que pode ser dentro de suas paredes fechadas; pelo que dentro fizeram com seus vazios, com o nada; pelos espaços de dentro, não pelo que dentro guarda. João Cabral de Melo Neto (1960) 1. A POETA Ana Martins Marques é uma poeta mineira, nascida em 1977. Com cinco livros publicados, sendo dois deles escritos em diálogo com outros poetas, Marques já iniciou sua carreira recebendo prêmios literários: em 2007 e 2008, ganhou o Prêmio Cidade de Belo Horizonte, nas categorias “autor estreante de poesia” e “poesia”, respectivamente, e publicou o livro A vida submarina (2009) que reuniu a produção da poeta até aquele momento. Da arte das armadilhas (2011), seu segundo livro, recebeu o Prêmio Biblioteca Nacional de Literatura, também na categoria “poesia”. Além desses dois volumes, Marques publicou O livro das semelhanças (2015), Duas janelas (2016) — escrito em diálogo com o poeta Marcos Siscar —, e Como se fosse a casa (2017) — também em diálogo, mas, dessa vez, com o poeta Eduardo Jorge. A vida submarina é um livro relativamente volumoso, com cerca de cento e dez poemas, divididos em sete seções: “Barcos de papel”, “Arquitetura de interiores”, “A outra noite”, “Episteme & epiderme”, “Exercícios para a noite e o dia”, “Caderno de caligrafia” e “A vida submarina”. Os poemas são curtos e, majoritariamente, não ultrapassam uma página. E, embora não haja uma unidade temática mais perceptível MEDEIROS, D. A poeta e a casa... 220 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE — como é possível notar nos outros dois livros posteriores —, aqui a poeta já enuncia alguns de seus temas recorrentes: a viagem e os mapas, o universo marítimo, a casa e o cotidiano, e a própria poesia — numa intensa reflexão metapoética. Contudo, o que acaba por se destacar nos versos de Ana Martins Marques diz respeito a um lirismo que, apesar de figurar como uma tendência nas produções contemporâneas, não aparecia como uma das linhas de força da poesia, pelo menos desde os poetas marginais da década de 1970. Aspecto destacado por Wilberth Salgueiro, em seu texto “Notícia da atual poesia brasileira — dos anos 1980 em diante”: “Nota-se um forte retorno da poesia lírica (subjetiva, expressiva, sentimental), não mais nos moldes relaxados da poesia dos anos 1970, mas já incorporando a sobriedade dos anos 1980 e 90, como é o caso de Ana Martins Marques e Paulo Roberto Sodré.” (SALGUEIRO, 2013, p. 16) Entende-se como lírica certa voz poética que não se furta de aparecer no poema e mostrar sua subjetividade, seu olhar e suas próprias impressões acerca do mundo, contrapondo-se a uma ideia de dessubjetivação muito presente nas poéticas modernas, sobretudo do século XX, nas quais o eu e suas experiências singulares parecem se dissipar, abrindo espaço para que a própria linguagem possa ser a protagonista dos poemas. Obviamente, essa é uma maneira relativamente simplista de tratar o fenômeno poético e, em todos os tempos, encontraremos exceções que nos contradigam. Porém, a questão é pontuar certa mudança de estatuto do eu poético. Se no Romantismo o eu era o componente central do poema, no fim do século XIX e no início do século XX, principalmente, através do Simbolismo e das Vanguardas, o eu lírico quase desaparece, rompendo tanto com a identificação entre poeta e eu lírico, quanto com a própria identificação do leitor com a experiência trazida pelo poema. O restante do século XX é extremamente heterogêneo, no que concerne a esse estatuto do eu. Entretanto, o paradigma romântico acabou por se tornar algo um tanto quanto deslocado, fazendo com que a exposição exacerbada do eu figurasse como algo MEDEIROS, D. A poeta e a casa... 221 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE anacrônico. Entretanto, há outras formas de construir poemas carregados de subjetividade sem que eles se tornem um repositório melodramático de aflições individuais. Algo que vemos como potência na poesia contemporânea. Retomando a poética de Ana Martins Marques e sua relação com a subjetividade, é importante ressaltar a “sobriedade” nela apontada por Salgueiro (2013), já que, embora haja uma retomada do lirismo, não há em seus versos qualquer tipo de arroubo sentimental — o que já registrávamos acima. Trata-se de um eu que poderíamos classificar como discreto. Percebe-se suas impressões, sente-se — com muita facilidade — um impacto, uma identificação com o seu modo de olhar o mundo, entretanto, não se sabe — na maior parte do tempo — nem ao menos se há um eu lírico feminino ou masculino. Aliás, essa parece não ser sequer uma questão. Ou seja, existe ali um eu fortemente implicado, mas que não apresenta sentimentos exagerados ou emoções contrastantes. Trata-se de um eu que se relaciona placidamente com o mundo e as coisas do mundo, gerando um grau de plasticidade que aproxima a voz poética de uma experiência comum a muitos leitores. Nos livros posteriores da autora, o lirismo permanece, constituindo-se como marca essencial de sua dicção poética. Em Da arte das armadilhas, o número de seções e poemas diminui: têm-se aqui duas partes, denominadas “Interiores” e “Da arte das armadilhas”, compostas por dezessete e trinta e nove poemas, respectivamente. Há, nesse livro, um contraponto entre o dentro e o fora: a casa — dramatizada pelos poemas da primeira parte que versam sobre os setores e utensílios que a compõem —, e a viagem, tanto por outros espaços, como por outras culturas, outras mitologias e também a viagem pelo “outro”. Esse imbricamento de temáticas é expressado, de antemão, por uma espécie de poema epígrafe que antecede as duas seções: MEDEIROS, D. A poeta e a casa... 222 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE entre a casa e o acaso entre a jura e os jogos entre a volta e as voltas a morada e o mar penélopes e circes entre a ilha e o ir-se (MARQUES, 2011, p, 09) Entre o espaço da casa — que é o lugar da segurança — em oposição ao acaso do que se coloca do lado de fora; o juramento que também assegura, em contraste com a incerteza do jogo; a volta ao lar e as voltas que se dá durante a viagem; o conforto da moradia em oposição à aventura que o mar — signo tradicional da viagem, da fuga, da partida — proporciona; Penélope — figura essencial na poética de Marques, à qual a poeta dedica vários poemas —, a esposa de Odisseu, sinônimo da espera e da casa, em oposição à Circe, a feiticeira que seduz e aprisiona o herói grego num lugar distante do lar; a ilha — também a morada, a guarida, em oposição ao evadir-se, ao partir. É justamente entre esses dois paradigmas, dentro e fora, que se instaura esse livro e, de uma forma mais ampla, a poética de Ana Martins Marques. Importante também, no poema acima, é sua forma. A oposição entre dentro e fora se dá de maneira equivalente, à medida que a forma do poema coloca isso, como podemos notar, tanto pela repetição da estrutura em cada um dos dísticos, quanto pela quantidade de sílabas das palavras que apresentam uma variação mínima. Além disso, as palavras escolhidas têm semelhanças gráficas e sonoras: casa / acaso; jura / jogos; volta / voltas (aqui elas são inclusive homônimas, variando no sentido e na MEDEIROS, D. A poeta e a casa... 223 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE pluralidade); morada / mar; ilha / ir-se. A pequena diferença se daria no par Penélopes / Circes, entretanto, nosso conhecimento de literatura antiga, corrige isso e instaura também uma complementariedade: Penélope, a esposa, é o oposto de Circe, a amante, mas esta só se faz assim, porque existe a primeira. Penélope é, aliás, um signo importante na relação com o dentro e o fora. Em A vida submarina, há seis poemas que se apresentam distribuídos pelo livro e recebem uma numeração, de um a seis, ao lado do nome “Penélope”, enquanto na Arte das Armadilhas ela dá título a mais um poema e aparece no interior de mais dois. A personagem representa não só a espera condescendente, mas o sofrimento de quem tece e destece, dia-a-dia, a solidão da existência e da casa: “E ela também não disse / a solidão pode ter muitas formas / tantas quantas são as terras estrangeiras, / e ela é sempre hospitaleira.” (MARQUES, 2011, p. 134) Responsável por guardar e garantir que a casa esteja em ordem quando Odisseu finalmente retornar de sua aventura, Penélope está também no limiar: ela vive na casa, esperando, mas seus pensamentos estão em viagem, junto do herói, e empreende uma verdadeira “odisseia da espera” (ibid., p. 142), da qual, entretanto, não se tem um relato. Na terceira publicação de Ana Martins Marques, O livro das semelhanças — claramente o mais metapoético de todos —, as oposições entre dentro e fora permanecem. Dessa vez, entretanto, são dramatizadas pela própria estrutura do livro e por seus elementos tipográficos (capa, título, dedicatória — que são os nomes dos poemas) trazidos pela autora no primeiro poema do livro “Ideias para um livro” (que não pertence a nenhuma seção) e também na primeira parte do livro, denominada “Livro”, composta por vinte poemas. Na sequência, há mais três seções “Cartografias”, “Visitas ao lugar-comum” e o “Livros das Semelhanças”. Aqui, temos no total, mais quarenta e nove poemas. Os temas do mar e dos mapas permanecem, também ratificando a dicotomia dentro e fora. Além da constante referência aos temas gregos, literários e mitológicos. MEDEIROS, D. A poeta e a casa... 224 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE Os dois últimos livros de Ana Martins Marques, como já mencionado, foram escritos em parceria com outros dois poetas. Duas Janelas, com Marcos Siscar, tem doze poemas de cada um e integra uma coleção da Editora Luna toda composta por poemas feitos em colaboração entre dois poetas. Os temas abordados permanecem sendo o próprio fazer poético e a busca pela palavra poética, ao lado de certa poesia cotidiana, da casa e da rotina, o que é evocado pelo próprio título do livro. Como se fosse a casa: uma correspondência, feito em diálogo com Eduardo Jorge, foi escrito quando a poeta alugou, por um mês, o apartamento de Jorge, enquanto ele fazia uma viagem ao exterior. Esse volume saiu pela Relicário e, aparentemente, não integra uma coleção. Os poemas refletem, principalmente, acerca desse processo de ocupação de um espaço outro que não o seu. Parece que o primeiro dos dois livros consegue se efetivar melhor enquanto diálogo, no entanto, essa análise ficará para um próximo trabalho. Neste artigo, interessa refletir justamente sobre essa oposição entre dentro e fora na poesia de Ana Martins Marques, sobretudo, no que concerne a certa “poética da casa”, e do cotidiano presente em todos os seus livros e que contribui para a construção desse lirismo que se destacou até aqui. 2. A CASA Gaston Bachelard, filósofo conhecido pelas investigações acerca da poética do espaço, diz: “(...) a casa é nosso canto do mundo. Ela é, como se diz frequentemente, nosso primeiro universo. É um verdadeiro cosmos. Um cosmos em toda a acepção do termo. Até a mais modesta habitação, vista intimamente, é bela” (BACHELARD, 1978, p. 200). A casa tem, por excelência, esse teor de acolhimento e de intimidade, capaz de (re)criar um mundo que está dentro e, ao mesmo tempo, fora do mundo. Assim, a literatura interessada em refletir sobre as implicações nas relações com esse espaço MEDEIROS, D. A poeta e a casa... 225 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE estará sempre nesse limiar, o que se vê, de saída, no poema abaixo de Ana Martins Marques: porta a porta como toda fronteira é apenas para se atravessar rapidamente ela já não serve mais um corpo a corpo e já se está do outro lado dela nascem o fora e o dentro ela que é seu vazio. (MARQUES, 2009, p. 35) Esse poema integra a seção “Arquitetura de interiores” do livro A vida submarina. A ele se juntam vários outros que compõem um desenho dos cômodos e utensílios da casa e, ao mesmo tempo, dão nome aos poemas, como “Sala”, “Copa”, Telefone”, “Cortina”, “Piscina”. A porta, entretanto, é exatamente o limite entre dentro e fora que instaura a passagem do coletivo ao privado e, consequentemente, compõe esse cosmos, do qual fala Bachelard. O movimento de atravessá-la é rápido, ao mesmo tempo que sua utilidade também passa apressadamente — o que o poema mostra através do enjambement entre o terceiro e o quarto verso. Ou seja, assim que se passa pela porta ela deixa de ser importante e ainda, no entanto, é ela a responsável por fixar e delimitar o que é da casa e o que não é. Da mesma forma como a “Persiana”, poema que se constrói formalmente como se fosse a própria persiana: um desenho vertical que também se oferece como limiar, entre a luz de fora e o dentro da casa: a luz em leque desenha o dia vertical fenda aberta para o teatro consumado do sol. (MARQUES, 2009, p. 36) MEDEIROS, D. A poeta e a casa... 226 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE Há, ainda nessa seção — e na poética de Marques como um todo —, uma série de imagens do cotidiano de vários tipos: xícaras lascadas, vestidos no armário, papéis para rabiscar, contas a pagar, canteiros de manjericão, café solúvel, encanamentos, enfim, uma “poética da casa” que demonstra o quanto a poeta “(...) sabe desentranhar a poesia que há escondida nas coisas (...)” (BANDEIRA, 2009, p. 763), como diria Manuel Bandeira, referência importante para a poeta que surge inclusive em meio aos seus poemas (em um deles, “A imagem e a realidade” [MARQUES, 2015, p. 76], há uma epígrafe que registra o intertexto com o poeta modernista dizendo: “Refletido de um poema de Manuel Bandeira”). Aliás, a referência ao Modernismo é interessante, já que os poemas de Ana Martins Marques parecem ressoar certa estética do cotidiano colocada em voga por esse movimento e que produziu muitos ecos em nossa poesia, ao longo do século XX, sob diversas formas, em poetas como Ana Cristina César, Adélia Prado, Chacal, Cacaso, entre outros. Ítalo Moriconi registra essa característica: Para os modernistas, a poesia estava mais no momento que no poema em si, mais na vida que na elaboração codificada de uma arte cansada. O poema era o instrumento para obliquamente captar e com simplicidade revelar a poesia da “vida como ela é”. O poema era um stop para focalizar uma intensidade no tempo de um flash (...). (MORICONI, 2002, p. 11) Esses pequenos flashes da casa e da rotina, em A Vida submarina, entretanto, parecem ser permeados por duas impressões diferentes: tanto a de um espaço que já foi ocupado por mais pessoas e que agora guarda as lembranças dos momentos anteriores, quanto a de um espaço que abrigava um amor (ou a sensação do amor) e que este agora chegou ao fim. O lugar da casa responsável por trazer as memórias do passado é a “Cozinha”: MEDEIROS, D. A poeta e a casa... 227 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE nostálgicas de um tempo de intermináveis almoços banha de porco alho pão açúcar sujeira dias que vertiam leite vinhos fortes azeite mel rituais sangrentos de morte carne sangue e fogo alvoroço de primos cozinheiras e restos de cachorros as panelas de seu desuso observam a mulher sozinha o jornal do dia o café solúvel e duas xícaras irônicas no aparador. (MARQUES, 2009, p. 34) No poema, há como estratégia de construção a enumeração de vários elementos, comuns a qualquer casa, sobretudo, de alimentos, afinal, trata-se de uma cozinha. A nostalgia é sentida não pela própria voz poética, mas pelas panelas ociosas — usadas somente nesse passado no qual havia a presença de várias outras pessoas — que observam a casa. É claro que essa ideia de um ser inanimado que ganha atributos humanos pode ser encarada como uma mera projeção dessa voz que escreve o poema, entretanto, os objetos que ganham vida garantem à relação com a casa um teor mais orgânico, pungente. As panelas observam ainda que a mulher sozinha que lê o jornal tem duas xícaras no aparador, o que indica a suposição de que havia ali, naquele espaço, um amor que chegou ao fim. O que se vê espalhado por vários outros poemas, como o “Guarda-roupa” no qual um vestido de verão parece ter sido esquecido, ou no “Telefone”, ao lado do qual está “(...) caída num canto, aquela palavra / que você não disse” (MARQUES, 2009, p. 37). Há também, em outras seções, poemas que reverberam essa relação entre a casa e o fim do amor. “Jardim de inverno”, termina com os seguintes versos: “é realmente ridículo que eu / ainda pense em você / o pensamento é estúpido / como um síndico// às vezes me pergunto / por que as pessoas instalam em casa / um quadrado de coisas que morrem” (p. 69). E o poema “A casa”: MEDEIROS, D. A poeta e a casa... 228 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE A casa sonha um jardim de roseiras desordenadas sonha a madeira a cal a sesta sonha o vidro e sonha pequenos animais ariscos adormecendo nos cantos sonha a si mesma e aos quartos que não tem à noite enquanto nem eu nem você podemos dormir (porque o amor acabou, e o excesso de palavras por dizer tornou nossos corpos pesados, tão mais pesados do que eram naquele tempo em que ainda se visitavam, enquanto a sua boca falava dentro da minha sobre lugares que estavam à nossa espera, que envelheciam sem nós) a casa (todo o horror das mobílias, dos objetos que tocamos, dos lençóis sujos da falta do seu corpo, das coisas que testemunharam os dias felizes e os outros) sonha tempos vazios ainda sem nós ou depois de nós. (MARQUES, 2009, p. 52) No poema, a casa é também um ser vivo que sonha com um cenário mais cheio de vida, com animais que se movimentam e plantas que crescem, em oposição a esse par (“eu” e “você”) incapaz de dormir e sonhar, justamente, porque enfrenta o fim do amor e, com ele, o fim das perspectivas de um futuro juntos. Aliás, o sonho da casa é o principal, já que a poeta utiliza parêntesis para tratar desse amor que já não existe mais, num jogo duplo, onde os parêntesis servem tanto para minimizar a importância dos acontecimentos, quanto para dar uma rubrica, uma marca dos acontecimentos que permeiam a vida naquele ambiente. Os elementos da casa acabam tornando-se, assim, o símbolo do horror, porque são testemunhas de outros tempos felizes — como o eram as panelas do poema “Cozinha” — nos quais houve encontro e presença, em oposição à separação e à falta MEDEIROS, D. A poeta e a casa... 229 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE do presente. Então, o sonho da casa é finalmente com o vazio, no qual não haja o desamor. Em Da arte das armadilhas, a poeta parece se concentrar numa poética menor: aqui interessam ainda mais os pequenos objetos da casa que, novamente, denominam os poemas: “Açucareiro”, “Cadeira”, “Talheres”, “Relógio”. O primeiro deles ainda ressoa o tom de uma voz poética que não foi feliz no amor e que vê isso representado nas partes da casa: “De amargo / basta / o amor // Agridoce / ela disse // Mas a mim / pareceu amargo” (MARQUES, 2011, p. 13). Assim como o poema “Cômoda”: “E dela / o que restou / senão / sobre a cômoda / um par de brincos / que talvez não sejam dela?” (p. 17). No entanto, essa impressão do amor que acabou é mais fugidia do que em A arte das armadilhas, e os espaços e objetos da casa se prestam a modular também os encontros, como no belíssimo poema “Relógio”, no qual há uma estrutura recorrente, contrapondo dia e noite. Abaixo há o trecho final deste: (...) se desabotoas lentamente tua camisa branca: dia se nos despimos com ânsia criando em torno de nós um ardente círculo de panos: noite se um besouro verde brilhante bate repetidamente contra o vidro: dia se uma abelha ronda a sala desorientada pelo sexo: noite de que nos serviria um relógio? (MARQUES, 2011, pp. 26-27) MEDEIROS, D. A poeta e a casa... 230 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE O relógio marca o tempo, obviamente, mas não aqui. O objeto se faz presente, justamente, por sua inutilidade nessa casa, onde a marcação das horas não se dá através dos ponteiros de minutos e segundos, mas por meio dos gestos que compõem a rotina das pessoas que ali habitam. Essa rotina por sua vez é marcada pela escolha formal do poema: a mesma estrutura se repete, através do uso da partícula “se” que impõe uma variação, uma condição, e, através destas, o poema nos diz o horário, mas não muito precisamente, já que ele só pode apontar se é dia ou noite. Mais uma vez, a estrutura formal instaura uma complementariedade, tal como se viu no primeiro poema abordado aqui, que trazia as oposições entre dentro e fora. Como já mencionado, em O livro das semelhanças essa poética do dentro e fora se dá através dos movimentos entre as partes que compõem um livro e os poemas que, metalinguisticamente, refletem sobre isso, além dos mapas que se forjam através das viagens. Em Duas Janelas, a poética da casa aparece, novamente, mas de maneira mais difusa. O próprio título do livro vem de um poema no qual a poeta organiza algumas imagens do cotidiano da casa, mas sem se prolongar muito. Em Como se fosse a casa, entretanto, como o nome do livro já mostra de antemão, a poética da casa retorna com bastante vigor, porém, não é a casa, mas como se fosse, já que o livro é fruto do tempo em que Ana Martins Marques passou morando no apartamento de Eduardo Jorge. Os poemas refletem sobre o estranhamento de morar temporariamente em outro lugar e assimilar suas singularidades, como o regulamento do prédio e os lugares nos quais a luz do sol incide diariamente, e também nas implicações subjetivas que as mudanças nas relações com os espaços — incluindo-se a casa — desencadeiam, ou não. Um dos primeiros poemas do livro aponta justamente para essa questão: MEDEIROS, D. A poeta e a casa... 231 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE Ela comprou material de limpeza e umas cervejas e um whisky ela nunca bebe whisky e enquanto toma as cervejas pensando que não basta se mudar para mudar ela pensa na mulher que ela seria se morasse de fato ali se aprendesse mesmo a beber sem desmoronar dentro do próprio vestido se adestrasse os olhos naquela paisagem clara e áspera e incorporasse ao seu corpo os imensos barulhos da noite * Ela procura estudar o modo como a luz se distribui pelos cômodos a certas horas e dar-se conta dos pontos de convívio entre o dentro e o fora, o trânsito pesado nas horas comerciais a rapidez dos ruídos os acidentes de percurso sua imagem refletida que vem sujar ainda mais as janelas que ela não sabe limpar uma casa, uma membrana entre o corpo e a noite um filtro para as formas do mundo anteparo contra os golpes do dia, onde as vigas se põem a cantar ela aqui se sente mais exposta mais exterior do que interior como se a casa não fosse doméstica como se morar fosse uma afronta à intensidade do dia. (MARQUES, 2017, pp. 10-11) O eu lírico fala de si na terceira pessoa porque, em razão da mudança de casa, parece não haver a coincidência entre o corpo que habita aquele novo espaço e o eu que escreve, o que é perceptível em alguns versos que aparecem mais à frente no livro: “A mulher no reflexo / usa um de meus vestidos / foi ela que escreveu / o que escrevi” (MARQUES, 2017, p. 22). Parece haver, assim, não só um estranhamento da nova moradia, mas também que este se volta contra o próprio eu, num verdadeiro outrar-se. MEDEIROS, D. A poeta e a casa... 232 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE Há, nos versos acima, a descrição do processo de chegada na casa, como a compra de alguns artigos para ocupar esse novo espaço, a exemplo da curiosa aquisição do whisky, já que esse mesmo eu — que é colocado no poema como “ela” — nos revela que não toma essa bebida, como se a mudança de casa implicasse, automaticamente, na mudança de hábitos e gostos, o que o próprio poema aponta. Para Bachelard, “todo espaço verdadeiramente habitado traz a essência da noção de casa” (BACHELARD, 1978, p. 200), entretanto, nessa parte inicial do livro vemos justamente o processo de construção desse “habitar” efetivo, através da tomada da casa, que envolve perceber os sons — internos e externos — e as formas do ambiente. Para a voz poética que escreve o poema, a casa é “um filtro para as formas do mundo/ anteparo contra os golpes do dia”, porém isso ainda não se efetiva ali, pois essa ainda não é a casa, mas apenas como se fosse. Dessa forma, há o confronto com uma espécie de dramatização da própria noção de estranhamento que compõe o olhar poético. Isto é: na poesia, sempre se é levado a outras formas de confrontação com objetos já conhecidos; nesses poemas, há o embate com o olhar de estranhamento do eu lírico que não só defronta o mundo com olhos diferentes, mas que se confronta com um mundo diferente, afinal, ali é outra casa, outro cosmos, outro caos. E preencher esse novo espaço se constitui na produção mesma de uma nova subjetividade, na qual seja possível se reconhecer: “Apenas ficar aqui / por força ficar aqui / até que a palavra morar / faça sentido” (MARQUES, 2017, p. 21). Mas todo o desenvolvimento do livro — ignorando-se, deliberadamente, os poemas de Eduardo Jorge, já que estes não são nossos objetos aqui — parece levar para o reconhecimento não tanto do espaço específico daquela casa, mas da noção de habitar e da forma como essa noção pode compor um eu, resultando em uma nova subjetividade. Ou seja, toda a escrita do livro se dirige para o fortalecimento de um eu que afirma suas idiossincrasias usando como metáfora a ideia da casa. Anteriormente, MEDEIROS, D. A poeta e a casa... 233 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE em nenhum dos poemas, a casa parecia ter essa carga metafórica, ao contrário do que acontece no poema abaixo: Minha casa são meus retratos minha casa é meu martelo minha casa é meu manuscrito minha casa é meu colar de contas verdes de vidro tiraram-me tudo e no entanto me sobra muito minha casa é teu cabelo cinza meu casaco de feltro meu amor esfacelando-se minha casa é meu cansaço, minha miopia minha artrite, a criança que fui e sigo sendo, minha casa é a memória da casa demolida, o cão que eu não tive a parte que não entendo no poema que traduzi minha casa é o mar aberto minha casa é aquele mergulho aquele dia quando o pequeno cardume de peixes listrados de amarelo atravessou ali bem na nossa frente minha casa é a árvore em frente à casa o muro contra o qual nos beijamos minha casa é minha coleção de cacos meu hábito de perder as chaves a pequena canção de antes de eu nascer o modo como cresci e aquela canção não cresceu minha casa é meu passaporte minha casa é minha língua estrangeira fronteiras que me cruzaram minha casa é meu peso minha idade o nome da cidade em que te conheci MEDEIROS, D. A poeta e a casa... 234 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE a roupa que então vestias sim onde moro ainda minha casa é o cão de rua que não é meu, que apenas acontece de estar ali (MARQUES, 2017, pp. 42-44) A metáfora da casa não é uma escolha arbitrária: tanto por ser um dos temas essenciais de nossa poeta, quanto por ser um elemento culturalmente central. Recuperando ainda algumas ideias de Bachelard, verifica-se: (...) é necessário mostrar que a casa é um dos maiores poderes de integração para os pensamentos, as lembranças e os sonhos do homem. Nessa integração, o princípio que faz a ligação é o devaneio. O passado, o presente e o futuro dão à casa dinamismos diferentes, dinamismos que frequentemente intervém, às vezes se opondo, às vezes estimulando-se um ao outro. A casa, na vida do homem, afasta contingências, multiplica seus conselhos de continuidade. Sem ela, o homem seria um ser disperso. Ela mantém o homem através das tempestades do céu e das tempestades da vida. Ela é corpo e alma. É o primeiro mundo do ser humano. Antes de ser "atirado ao mundo", como o professam os metafísicos apressados, o homem é colocado no berço da casa. E sempre, em nossos devaneios, a casa é um grande berço. Uma metafísica concreta não pode deixar de lado esse fato, esse simples fato, na medida em que esse fato é um valor, um grande valor ao qual voltamos em nossos devaneios. O ser é imediatamente um valor. A vida começa bem; começa fechada, protegida, agasalhada no seio da casa. (BACHELARD, 1978, p. 201) Ou seja: se através do livro é possível acompanhar o processo de tentativa do eu poético de encontrar-se em meio ao espaço de uma nova casa, com esse penúltimo poema percebe-se que há, sim, um encontro, mas com uma nova forma de conceber-se, de subjetivar-se. Dessa forma, todas as potencialidades elencadas por Bachelard (1978), no que concerne à relação com a casa, são incorporadas por nosso eu metaforicamente no entendimento de sua própria singularidade, face a suas memórias, seus pertences, seus hábitos, seus pensamentos, sua linguagem, enfim, todo o complexo emaranhado de componentes que integram o eu dessa voz poética que se afirma através de uma “poética da casa”. MEDEIROS, D. A poeta e a casa... 235 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE Assim, é possível perceber o quanto a poesia de Ana Martins Marques se constitui com um forte apelo lírico, com um eu que se apresenta e se constrói junto de nossa própria leitura. A “poética da casa” nada tem a ver com uma poesia doméstica, pensando na conotação negativa desse termo; tem a relação com uma poesia de detalhes que é capaz de reconfigurar mesmo o espaço mais familiarizado e, ao mesmo tempo, potencializar o desconhecido. Ana Martins Marques faz uma cartografia dos elementos da intimidade e mostra como a subjetividade é construída na intersecção entre o dentro e o fora, entre a casa e o mundo. Em tempos difíceis como os nossos — como todos? — a poesia de detalhes cotidianos e pequenas delicadezas de Ana Martins Marques tem a energia dos grandes acontecimentos à medida que reconfigura o olhar de seus leitores e, assim, transfigura a banalidade da rotina. REFERÊNCIAS BACHELARD, Gaston. A filosofia do não; O novo espírito científico; A poética do espaço. Seleção de textos de José Américo Motta Pessanha. Trad. Joaquim José Moura Ramos (et al.). — São Paulo: Abril Cultural, 1978. BANDEIRA, Manuel. Poesia completa e prosa. 5ª. Edição. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2009. MARQUES, Ana Martins. A vida submarina. Belo Horizonte: Scriptum, 2009. ________. Da arte das armadilhas. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. ________. O livro das semelhanças. São Paulo: Companhia das Letras, 2015. MARQUES, Ana Martins; SISCAR, Marcos. Duas Janelas. São Paulo: Luna Parque, 2016. MARQUES, Ana Martins; JORGE, Eduardo. Como se fosse a casa: uma correspondência. Belo Horizonte: Relicário Edições, 2017. MORICONI, Ítalo. Como e por que ler a poesia brasileira do século XX. Rio de Janeiro: Objetiva, 2002. MEDEIROS, D. A poeta e a casa... 236 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE SALGUEIRO, Wilberth. “Notícia da atual poesia brasileira — dos anos 80 em diante” In O Eixo e a Roda: Revista de Literatura Brasileira, v. 22, n. 2. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2013, pp. 15-38. Recebido em: 10/08/2017 Aceito em: 17/09/2017 MEDEIROS, D. A poeta e a casa... 237 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE APONTAMENTOS SOBRE O USO DO ELEMENTO HISTÓRICO NO ROMANCE O CASTELO DE OTRANTO NOTES ON THE USE OF THE HISTORICAL ELEMENTO IN THE NOVEL THE CASTLE OF OTRANTO Sérgio Luiz Ferreira de Freitas1 RESUMO: O presente artigo tem como proposta apontar sob que critérios os críticos costumam avaliar a presença do elemento histórico no romance gótico O castelo de Otranto e propor uma leitura que nos possibilite um olhar que fuja do já tradicional lugar-comum que classifica o livro em questão como “pseudomedieval”. Para isso, tomar-se-á como componente de grande valor o prefácio da primeira edição do texto. Palavras-chave: Romance Histórico; Romance Gótico; Século XVIII. ABSTRACT: This article aims to point out under which criteria the critics usually evaluate the presence of the historical element in the gothic novel The castle of Otranto and propose a reading that allows us a perspective that goes beyond the already traditional commonplace that classifies the book in question as “pseudomedieval”. For this, the preface to the first edition will be taken as a valuable component. Keywords: Historical Novel; Gothic Novel; XVIII Century. 1. INTRODUÇÃO Considerado o fundador da literatura gótica, o romance O castelo de Otranto (1764), de Horace Walpole (1717-1797), inseriu-se no mundo das letras como uma contraproposta ao que se contemplava na produção literária neoclassicista de inspiração aristotélica no século XVIII. Prova dessa postura é vista já no famoso 1 Doutorando, UFPR. Freitas, S. L. F. de. Apontamentos sobre o... 238 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE prefácio da segunda edição do romance, no qual Walpole afirmou quais eram suas intenções com a produção de tal obra: Foi uma tentativa de mesclar duas formas de romances, a antiga e a moderna. Na primeira tudo era imaginação e improbabilidades; na última, sempre se pretende, e muitas vezes se consegue, copiar a natureza com fidelidade. Não que não haja invenção, mas os grandes recursos da fantasia parecem ter secado em virtude de uma adesão estrita demais à vida comum. (WALPOLE, 2010, p. 17) O desígnio de realizar essa mescla entre uma forma antiga e outra moderna no fazer literário, nos termos acima expostos, soa como um desconforto diante de uma produção artística demasiadamente baseada nos ideais iluministas em voga no período, o que resultaria em um olhar estrito “à vida comum”, ao mundano, à imitação do mundo natural observável e ao cientificamente apreensível. Sendo assim, o elemento sobrenatural — fantasmas, sombras sem donos, armaduras gigantescas vindas do além — e os cenários obscuros são característicos da literatura gótica e do texto de Walpole, tanto como uma valorização da imaginação por parte do autor ao evocar aquilo que está além do mundo diante de seus olhos, quanto como fatores desestabilizadores da razão dos personagens. No entanto, não foi apenas com a relação entre o mundo da imaginação em posição de desafio ao mundo da razão que o romance gótico lidou. Ao propor ocupar esse espaço de intermédio e de mistura de formas, Walpole também acabou lançando mão de recursos que viriam a criar aproximações entre o gótico e o romance histórico, ou seja, obras literárias que tomam como substrato da matéria narrada períodos passados, eventos e pessoas oriundas do que se convencionou chamar de “mundo real”. O próprio termo que nomeia a literatura de Walpole faz referência tanto ao tempo quanto ao espaço nos quais essas narrativas iniciais se desenrolavam: um período recuado na história, preferencialmente a Idade Média, assim como a ambientação em construções que evocavam esteticamente a época. Mesmo a presença Freitas, S. L. F. de. Apontamentos sobre o... 239 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE do sobrenatural está vinculada ao senso comum de uma possível mentalidade dessa fase da história anterior aos supostos grandes benefícios da razão lançados pelo Iluminismo. Inicialmente a aproximação entre o romance gótico e o romance histórico pode parecer óbvia, porém sua equivalência está longe de ser unânime. Nas páginas que se seguirão iremos nos ocupar dos diálogos possíveis entre essas duas formas narrativas, tomando como exemplo o romance de Walpole. 2. O ROMANCE HISTÓRICO Em O castelo de Otranto temos a narrativa que gira no entorno de Manfredo, soberano do principado de Otranto, ao sul da Itália, região do até então Reino da Sicília. Manfredo deseja, por meio de um sórdido plano, casar seu filho enfermiço, Conrado, com Isabela, filha do Marquês de Vicenza, esperando pôr fim a uma antiga profecia que prenunciava o término do exercício do poder de sua família. Para desespero de Manfredo seu filho morre no dia do casamento, minutos antes da cerimônia ter início: um elmo de tamanho monumental havia despedaçado o seu corpo. A partir desse momento, tentando contornar a maldição e salvar seu trono, Manfredo assume posturas que o tornam o vilão aristocrata e cruel que será incansavelmente reproduzido pelas obras que se colocam dentro desse segmento da literatura gótica. Em determinados momentos da narração encontramos pistas que nos dão a indicação de que os eventos ocorreram durante o período das Cruzadas. Para alguns estudiosos da literatura, a relação de O castelo de Otranto com o uso literário do elemento histórico começa e termina nesse ponto, indicando um vínculo superficial que evocaria a imagem das Cruzadas apenas como um pretexto (RIBEIRO, 1996). Tal Freitas, S. L. F. de. Apontamentos sobre o... 240 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE visão terminou por provocar certo receio em se aproximar o romance de Walpole do modelo do romance histórico. Para compreendermos que escolhas motivaram alguns críticos no não enquadramento de O castelo de Otranto nesse padrão narrativo, podemos recorrer ao esquema apresentado por Alcmeno Bastos em Introdução ao Romance Histórico (2007). No livro, o autor busca encontrar aqueles traços que poderiam auxiliar-nos na identificação, em meio a inúmeras discussões sobre o modelo, do que deveria haver em um texto literário para que este fosse considerado um romance histórico. Bastos elenca pontos a que chama de “definidores da historicidade do romance histórico” (2007, p. 106), sendo alguns deles: a) a matéria narrada deve ser predominantemente de extração histórica, […] b) não basta a um romance, para ser histórico, que a matéria narrada aluda de um modo apenas incidental a fatos e personagens reconhecidamente de procedência histórica. […] d) no nível imediato da textualidade, é imprescindível a presença de marcas registradas, isto é, nomes próprios (de pessoas, instituições, de eventos), datas históricas, topônimos, etc. que sejam reconhecíveis pelo leitor medianamente informado sobre a história de uma comunidade. […] e) a matéria narrada deve ser remota […] não como mera decorrência da adoção, pelo narrador, de um ponto de vista marcado pelo distanciamento temporal […] mas como resultante de procedimentos narrativos que focalizem como matéria consumada, reforçada pelo tom fechado do relato; […]. (BASTOS, 2007, pp. 106107) Em seu texto, Bastos demonstra consciência de que, apesar de amplamente utilizados pela crítica literária ocidental, tais parâmetros podem não constituir um suporte eficiente para a análise de determinadas obras literárias que se utilizam de aspectos históricos em sua construção2. Sendo assim, a tentativa do autor foi a de Em seu texto, Bastos afirma: “Dada a diversidade de caminhos trilhados pela ficção histórica contemporânea, o termo romance histórico já não é capaz, hoje, de dar conta do aproveitamento ficcional em prosa da matéria de extração histórica. Legítima criação do romantismo, identificou-se, talvez exageradamente, com o tipo de romance histórico praticado no período, a partir do modelo scottiano — o romance histórico clássico no entender de Lukács —, e apesar das diferenças observadas entre seus vários cultores. Daí o surgimento de termos alternativos, como ‘romance de fundação’ e ‘metaficção historiográfica.’” (BASTOS, 2007, pp. 78-79) 2 Freitas, S. L. F. de. Apontamentos sobre o... 241 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE reunir algumas conclusões que foram afirmadas e utilizadas por críticos que consolidaram um determinado modelo de romance histórico. Para isso, Bastos recapitulou os olhares críticos de alguns entusiastas desse tipo de produção literária, como György Lukács (1885-1971), Alessandro Manzoni (1785-1873), Luiz Costa Lima (1937-) e Wilson Martins (1921-2010). Dentre esses estudiosos, Lukács foi o que produziu a obra que mais norteou as análises que caminharam por essa seara: O romance histórico (1936-1937). Além de ser considerado uma referência incontornável para conhecermos os percursos críticos do romance histórico, o texto de Lukács será importante para nossa exposição, pois nele o autor assume um posicionamento em relação ao romance O castelo de Otranto que influenciou — e ainda influencia — a visão de alguns críticos acerca da presença do fator histórico na narrativa de Walpole. Logo no início de seu estudo, Lukács escreveu: O mais famoso ‘romance histórico’ do século XVIII, O castelo de Otranto, de Walpole, trata a história apenas como roupagem; somente importa aqui a exposição da curiosidade e da excentricidade do meio, e não o retrato fiel de uma época histórica concreta. (LUKÁCS, 2011, p. 33, grifo no original) Devemos perceber o uso das aspas feito por Lukács ao dizer que o texto de Walpole representa um “romance histórico”. Isso será para chamar a atenção do leitor para o fato de que, apesar de o romance em questão lidar com algum material de extração histórica, não será abarcado pelo modelo idealizado por Lukács, que verá em algumas narrativas publicadas apenas no século XIX os romances históricos por excelência (LUKÁCS, 2011). Nas páginas seguintes, o filósofo húngaro realiza um levantamento das condições que considerou necessárias para a formação desse tipo de narrativa tal como ele o concebe. Torna-se evidente que a filosofia proposta por parte do Iluminismo, culminando na Revolução Francesa, desenvolveu outro contexto no Freitas, S. L. F. de. Apontamentos sobre o... 242 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE cenário político do Ocidente e criou uma nova dinâmica social (LUKÁCS, 2011) que tornou possível a existência do romance histórico pensado por Lukács: Primeiro foi a Revolução Francesa, as guerras revolucionárias, a ascensão e queda de Napoleão que fizeram da história uma experiência das massas, e em escala europeia. Entre 1789 e 1814, as nações europeias viveram mais revoluções que em séculos inteiros. […] Se a essa experiência vem unir-se o reconhecimento de que tais revoluções ocorrem no mundo inteiro, fortalece-se extraordinariamente o sentimento de que existe uma história, de que essa história é um processo ininterrupto de mudanças e, por fim, de que ela interfere na vida de cada indivíduo. (LUKÁCS, 2011, p. 38) O autor parece apontar para o surgimento de uma consciência histórica por parte do homem comum, configurando o que chama de “experiência das massas”, advindas das revoluções que desestabilizaram a pirâmide da sociedade estamental. A noção que nasce nesse homem comum de que a história é um processo em que ele é também um agente — e não são apenas eventos longínquos, fechados em si e distantes do cotidiano —, cria um vínculo entre o passado e o presente, vínculo que, em certa medida, no modelo de Lukács, deve ser evidenciado pelo romance histórico como modo de reflexão dos processos de modificações sociais e seus fluxos. Será nesse tipo de literatura que o romancista que se propõe a desenvolvê-lo deverá optar pela representação de personagens medianos, e não mais os grandes heróis épicos (LUKÁCS, 2011), para dar conta da experiência histórica no nível cotidiano. Devemos notar que os paradigmas resumidos por Alcmeno Bastos e os propostos por Lukács possuem origens e observações distintas; no entanto, ambos se assemelham por estimularem uma ideia de romance histórico que vai além do simples uso de elementos de época como cenário. Juntos eles correspondem ao que há de mais tradicional em conceituação acerca do tema. Ao que podemos entender, sempre deve haver uma forma de relação desenvolta entre o passado narrado, a narrativa ficcional em si — seu enredo, seus personagens e eventos — e o efeito provocado pela obra no leitor do presente. Freitas, S. L. F. de. Apontamentos sobre o... 243 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE Foi sob o olhar de tais preceitos que o romance de Walpole recebeu o veredicto de ser superficialmente histórico. A avaliação de O castelo de Otranto realizada por Lukács, situando-o como uma obra na qual a história não passa de uma “roupagem”, foi repetida quase a exaustão. Tal posicionamento possivelmente demonstra o resultado de uma vinculação entre a visão de romance histórico empreendida por Lukács e a filiação marxista do crítico, que visivelmente valoriza a figuração de uma maior consciência histórica por parte de sujeitos das camadas mais populares, e não apenas de reis, príncipes e militares de alta patente. Apesar da possibilidade de observarmos um diálogo entre temas que giram no entorno das mudanças políticas e sociais proporcionadas pelas revoluções burguesas, como veremos adiante, Walpole não traduz em seu romance a esperada “experiência das massas”, identificada por Lukács como um dos principais motores do desenvolvimento do seu modelo de romance histórico. Longe de querer provar o contrário e propor uma inserção forçada do texto nesse modelo consolidado, a seguir buscaremos avaliar como Walpole utilizou determinados elementos discursivos para contar a história dos eventos obscuros que se passaram no principado de Otranto, aproximando-o ou afastando-o dos principais traços do modelo do romance histórico. 3. O PREFÁCIO PARA A PRIMEIRA EDIÇÃO DE O CASTELO DE OTRANTO As anedotas que envolvem os prefácios da primeira e da segunda edição de O castelo de Otranto são responsáveis por tornar a inauguração da literatura gótica um evento singular. O romance foi inicialmente lançado como se fosse a tradução de um antigo manuscrito italiano e trazia uma pequena introdução ao leitor, informando em suas primeiras linhas: Freitas, S. L. F. de. Apontamentos sobre o... 244 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE A presente obra foi descoberta na biblioteca de uma antiga família católica, no norte da Inglaterra. Foi impressa em Nápoles, em letras góticas, no ano de 1529. Não conta quanto tempo antes teria sido escrita. Os incidentes principais são tais que parecem situar-se nos tempos mais obscuros do cristianismo; mas a linguagem e a atitude não têm nada que favoreçam o barbarismo. (WALPOLE, 2010, p. 13) Algum tempo após o lançamento, a farsa foi desmascarada pelo próprio autor, que escreveu outro prefácio para a segunda edição, entregando-se: O modo favorável com que esta pequena obra foi recebida pelo público exige que o autor dê algumas explicações sobre sua composição. Antes, porém, de expor tais motivos, é conveniente que peça desculpas a seus leitores por lhes ter apresentado sua obra sob a figura emprestada de um tradutor. [...]; não pensava revelar tal segredo, até que juízes mais habilitados lhe garantissem que podia assumir sua autoria sem corar. (WALPOLE, 2010, p. 17) Para além do caráter anedótico do episódio, conscientemente ou não, ao simular a existência de um documento, Walpole terminou por inserir seu romance em um contexto de ficcionalização do discurso histórico que foi e ainda é utilizado por diversas produções literárias. Tal recurso ecoa nos herdeiros do gótico no mundo contemporâneo, se pensarmos no grande volume de filmes de terror lançados como sendo arquivos de vídeo originais — documentos fílmicos —, encontrados em lugares sinistros e que registram os horrores que teriam ocorrido com pessoas desaparecidas, os chamados found footage, popularizados pelo lançamento de Cannibal Holocaust (1980), na Itália. Em termos explícitos, o prefácio da primeira edição é um texto ficcional que imita um discurso documental, construído como uma forma de carta ao leitor, com o intuito de provocar neste o efeito do real ao insinuar a existência de um documento, em que estariam registrados os eventos que se desdobrariam a seguir. O suposto tradutor, porém, não se limitou à citação do documento, e o descreveu de modo a aprofundar ainda mais para seus leitores a ideia de que estavam diante de um relato Freitas, S. L. F. de. Apontamentos sobre o... 245 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE aparentemente verídico, detalhado e pertencente à história do que hoje reconhecemos como Itália. É neste prefácio que encontramos a maior parte dos referenciais históricos que teremos em toda a obra. Como pudemos observar no excerto exposto anteriormente, o tradutor teria encontrado o manuscrito em uma biblioteca antiga, e a data de sua publicação, como constava no papel, era a de 1529. Mais adiante, o mesmo tradutor diz crer que os acontecimentos registrados no documento teriam ocorrido “entre 1095, tempo da primeira cruzada, e 1234, data da última, ou não muito depois disso” (WALPOLE, 2010, p. 13). A datação no prefácio, somada a certos comentários que ocorrem no decorrer da narrativa, como a fala de Manfredo ao contar parte de sua história e de como assumiu o trono de Otranto, são as únicas oportunidades que temos para verificar com clareza a época na qual os eventos se passam. Observemos as palavras de Manfredo: — O senhor vem, se bem entendo, em nome do Marquês de Vicenza, para reclamar a senhora Isabela, sua filha, que se ligou diante da Santa Igreja a meu filho, por consentimento dos seus tutores legais; e exigir que entregue meus domínios ao senhor, que se considera o mais próximo em sangue ao príncipe Afonso, cuja alma descanse em Deus! Começarei pela última de suas exigências. Você deve estar a par, o seu senhor está a par, de que recebi o Principado de Otranto do meu pai, Dom Manuel, assim como ele o recebeu do seu pai, Dom Ricardo. Afonso, seu predecessor, ao morrer sem herdeiros na Terra Santa, legou os seus domínios ao meu avô Dom Ricardo, em consideração por seus leais serviços… (WALPOLE, 2014, p. 92) Quanto a esses personagens, o primeiro prefácio afirma: “Os nomes das personagens são evidentemente fictícios e, provavelmente, foram disfarçados intencionalmente” (WALPOLE, 2010, p. 13). Os modelos tradicionais de romance histórico, como vimos, prezam pela presença de alguns personagens cuja existência empírica seja de conhecimento comum. Tal não ocorre em O castelo de Otranto. Se olharmos para a formação dos reinos italianos ao longo da história encontraremos algumas semelhanças pontuais entre dois personagens do romance Freitas, S. L. F. de. Apontamentos sobre o... 246 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE com indivíduos históricos. O próprio Manfredo, no texto de Walpole, é um príncipe ilegítimo. Seu avô forja sua subida ao trono, herdado por Manfredo, que sabe de sua condição espúria. Em comparação, na história italiana, temos Manfredo (1231-1266), Rei da Sicília de 1258 até 1266, período posterior ao qual a história de Walpole se passa. A Sicília da época correspondia à parte sul da Itália, não apenas à ilha, o que englobava a região do principado de Otranto. O Manfredo histórico, assim como o ficcional, é conhecido por ter sido um rei ilegítimo, filho bastardo de Frederico II (DA COSTA, 2003), este reconhecido como o introdutor da arquitetura gótica na Sicília (COLETIVO, 1995). Mas as parecências não terminam aí. Enquanto o Manfredo do romance é pai de Conrado, no qual deposita a esperança na manutenção do poder familiar, o Manfredo a que chamaremos de real foi regente de Conradino da Germânia (1252-1268), que morreu tão jovem quanto o Conrado ficcional, em um evento trágico (BARLETTA, 2014). Apesar de Walpole não haver registrado essas coincidências, tais afinidades não parecem de todo desconexas, se levarmos em consideração a erudição do autor3. Voltemos nosso olhar para as manifestações do sobrenatural. De fato, isoladamente, a crença no sobrenatural não constitui prova de periodização histórica, mas o tradutor incorporado por Walpole utiliza-se dessa associação para reforçar o argumento que encaixa os eventos em um período que quer destacar: Milagres, visões, adivinhações, sonhos e outros eventos sobrenaturais foram banidos atualmente até mesmo dos romances. O mesmo não se dava quando o nosso autor estava escrevendo; muito menos quando a história estaria supostamente se passando. A crença em todas as espécies de prodígios era tão enraizada naquela idade de trevas, que um autor não seria fiel aos costumes da época se omitisse toda a menção a eles. Ele próprio não é obrigado a acreditar, mas deve retratar suas personagens como se essas acreditassem. (WALPOLE, 2010, p. 14) Não podemos nos esquecer de que Walpole também nomeou o seu tradutor inventado, William Marshall. Mais uma coincidência aparentemente planejada, esse foi o nome de um dos mais importantes guerreiros ingleses que participaram das Cruzadas, William Marshall, primeiro conde de Pembroke. Na história inglesa, recebeu o epíteto de "best knight that ever lived". 3 Freitas, S. L. F. de. Apontamentos sobre o... 247 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE É visível que, para o tradutor inventado por Walpole, está no horizonte de preocupações do hipotético autor do documento encontrado, uma representação fiel dos costumes e crenças de uma época. A presença do sobrenatural seria uma indicação dessa preocupação. Há a afirmação da postura intelectual do tradutor, uma marcação de mentalidade, feita por alguém que está na ponta historicamente posterior à consolidação do pensamento iluminista. Essa indicação também pode nos remeter a uma ideologia de época, se lembrarmos que Walpole pertence a um Estado que já havia se estabelecido enquanto protestante e, como afirma pela mão do tradutor fictício, os relatos sobre a história de Manfredo se passam “nos tempos mais sombrios do cristianismo”, tempos de domínio católico. Podemos concluir a confluência de duas linhas que justificam a presença do sobrenatural em O castelo de Otranto, todas formuladas por indicações do próprio Walpole: o elemento mental que faz parte da composição de uma época, como dito no primeiro prefácio, e a valorização da imaginação enquanto instrumento de criação artística. Esse mecanismo, criado pelo prefácio fictício do romance e pela utilização do sobrenatural, converte-se em uma literatura que opera nas fronteiras entre o real e o ficcional, ponto fulcral para os romances que lidam com elementos historiográficos. Por isso, o envolvimento dos dois prefácios é de suma importância para o entendimento do uso da matéria histórica em O castelo de Otranto. Quiçá, as palavras desafiadoras do tradutor talvez seja o piscar de olhos de Walpole para seu leitor se dar conta das regras desse jogo: Embora os mecanismos da ação sejam frutos da invenção e os nomes das personagens, imaginários, não deixo de crer que os aspetos essenciais desta história sejam verdadeiros. A ação se desenrola, sem dúvida alguma, em algum castelo existente. […] Os curiosos, que têm tempo livre para embrenhar-se em tais pesquisas, talvez possam descobrir nos escritores italianos a fundação a partir da qual nosso autor edificou a sua obra. Se acreditar que alguma catástrofe, Freitas, S. L. F. de. Apontamentos sobre o... 248 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE bastante semelhante à que ele descreve, deu origem a este livro, tal fato irá certamente contribuir para o interesse no autor e fazer de O castelo de Otranto uma história ainda mais emocionante. (WALPOLE, 2010, p. 16) Tais palavras saem da pena de um homem que se encontra em um contexto em que imaginação e razão, no sentido mais comum das palavras, começam a se afastar. No entanto, a imaginação, comumente apontada como algo ilusório, é o que vai dar conta de concatenar os elementos históricos, supostamente verídicos, em uma obra literária. O gosto pelo real imediato é desafiado pelo tradutor que, parecendo trazer um sorriso no rosto, convida seu leitor curioso e ávido por verdades a pesquisar, caso tenha tempo livre, se tais eventos e personagens são historicamente verificáveis. O lugar de O castelo de Otranto nesse debate pode ficar mais claro se evocarmos uma passagem do historiador Peter Burke (1997) em “As fronteiras instáveis entre história e ficção”. Após apontar como a linha divisória entre história e ficção nem sempre teve sua colocação em lugares óbvios, Burke volta sua análise para o período entre 1650 e 1750, e afirma: “[…] a fronteira entre os gêneros começou a se fechar na metade do século XVIII, ou, para variar a metáfora, houve uma divergência ou um ‘divórcio’ (como o chamou o crítico espanhol Feyjóo) entre história e ficção […]” (BURKE, 1997, p. 111). Esse processo de afastamento é bem definido e analisado por Edgar de Decca, em “O que é o romance histórico?”, que identifica a influência do Iluminismo no desenvolvimento da historiografia do século XIX e início do XX, ápice do processo iniciado no século XVII. Decca avalia que a História passa a se inspirar no modelo de física de Newton, moldado por questões de lógica, organização do raciocínio científico, e nos aponta a importância que documentos, cartas oficiais e objetos do gênero passaram a assumir na historiografia, com o intuito de marcar em definitivo a separação entre a narrativa ficcional, supostamente livre do embasamento documental, e a narrativa histórica (DECCA, 1997). Essas questões provavelmente já se colocavam diante de Walpole e de alguns de seus contemporâneos. Postas em perspectiva, demonstram que pode haver muito Freitas, S. L. F. de. Apontamentos sobre o... 249 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE mais do que um simples temor de acolhimento, por parte de Walpole, estando em 1764, ao criar um primeiro prefácio fictício. Se o temor fosse a única razão, talvez bastasse a publicação do romance sob um pseudônimo, sem a necessidade da criação de um prefácio cheio de mistério e um suposto documento. Isso é expressivo em seu desejo de criar um romance que misturaria características antigas (imaginação) e modernas (a imitação do real e do natural). A própria brincadeira com a veracidade histórica dos fatos está no seio das tragédias de Otranto, cujo enredo é repleto de reviravoltas, de verdades ocultadas e reveladas em momentos de tensão. 4. HISTÓRIA E POLÍTICA Até então, viemos comentando sobre alguns aspectos relacionais entre O castelo de Otranto e duas estruturas discursivas que, apesar de muito próximas, não são sinônimas: o romance histórico e a convenção de verdade histórica. Ao tratar de ambas, fizemos referência, predominantemente, ao elemento histórico passado, ou seja, aquele que ocorreu, em um sentido temporal, séculos antes da produção literária. Voltemos nosso olhar para os eventos que transcorreram no tempo da produção do autor. A conexão entre essas duas esferas no romance gótico está manifesta na leitura do Marquês de Sade (1740-1814). No prefácio de Os crimes do Amor (1800), o polêmico escritor afirma: Deveríamos, talvez, analisar aqui esses romances novos, cujo sortilégio e fantasmagoria compõem quase todo o seu mérito, escolhendo para começar O monge, superior em todos os sentidos aos estranhos arrebatamentos da brilhante imaginação de Radcliffe. Mas essa dissertação seria muito longa. Convenhamos apenas que esse gênero, apesar do que se possa dizer, não é certamente sem mérito. Ele se tornara o fruto indispensável dos abalos revolucionários de que a Europa inteira se ressentia. Para quem conhecera todos os infortúnios com que os maus podem cumular os homens, o romance se tornava tão difícil de fazer quanto monótono de ler; não havia um único indivíduo que não tivesse passado, em quatro ou cinco anos, por infortúnios que nem em um século o maior romancista da literatura poderia descrever; seria preciso, portanto, pedir auxílio Freitas, S. L. F. de. Apontamentos sobre o... 250 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE aos infernos para se compor títulos de interesse e encontrar no país das quimeras o que era corretamente sabido apenas folheando a história do homem nessa idade de ferro. (SADE, 2002, pp. 56–57) A leitura de Sade nos induz a uma conexão entre os efeitos das revoluções burguesas e a existência de certo posicionamento político dos romances góticos, principalmente em referência à Revolução Francesa. Os romances góticos seriam uma reação temerosa inglesa com relação aos movimentos agressivos promovidos pela revolução na França, e isso estaria figurado na representação de vilões aristocratas, autoritários, que regiam seus domínios com mãos de ferro e puniam violentamente qualquer manifestação contrária aos seus desmandos. Um mundo antigo, de estruturas medievais, marcado por crueldades e obscurantismos. É fato que o livro de Walpole é anterior aos movimentos franceses, mas sabemos que as estruturas para a revolução já estavam armadas. Não podemos nos esquecer de que a Inglaterra já havia realizado a sua reforma política na Revolução Gloriosa (16881689) que marcou o fim do absolutismo britânico e ampliou o papel do parlamento na sociedade. Em outras palavras, um século antes de a França eclodir sua revolução violenta, a Inglaterra já havia realizado um acordo entre a sua monarquia e a burguesia em uma revolução que, em comparação com o que ocorreu no exemplo francês, evitou grandes derramamentos de sangue, de todas as partes. Novamente, relembrando o primeiro prefácio de Walpole, encontramos o seguinte trecho: Assim mesmo, com todos os seus defeitos, não tenho dúvidas de que o leitor inglês ficará contente com esse livro. A compaixão que atravessa toda a obra, as lições de virtude que aí estão inculcadas e a intensa pureza dos sentimentos isentam esta obra das reprovações a que os romances estão tão frequentemente sujeitos. (WALPOLE, 2010, pp. 15–16) É uma das marcas da literatura gótica localizar suas histórias em países como a Itália — caso de O castelo de Otranto — e no sul da França — lugar em que se Freitas, S. L. F. de. Apontamentos sobre o... 251 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE desenrolam os capítulos iniciais de Os mistérios de Udolpho. Essa escolha não é aleatória. Ao tentar remontar uma Idade Média, construindo seus vilões nobres e aristocratas, é como se os escritores do gótico inglês olhassem para a Europa além do Canal da Mancha e dissessem para seu público que, apesar de distante temporalmente, algumas estruturas do medievo ainda sobreviviam e batiam em sua porta de maneira agressiva. Caso contrário, tais revoluções não seriam necessárias. Na parte inicial do estudo intitulado Gótico Tropical (2010), Daniel Serravalle de Sá investe na abordagem feita pelo Marquês de Sade e desenvolve algumas leituras que vinculam a produção gótica inglesa ao teor político das revoluções. Em determinado momento o autor reflete como o surgimento do romance gótico está atrelado a um ideal de imagem política e social: O desejo por liberdade política e religiosa fez os ingleses se interessarem pelo próprio passado, iniciando um processo de recuperação de ideias e de textos, os quais, se não podiam ser considerados inteiramente autóctones ou originais, ao menos poderiam ajudá-los na tentativa de se distinguir da herança latina. Rejeitando as tiranias de origem românica e o despotismo que identificavam na Ásia, os ingleses queriam se reconhecer numa herança democrática e antiescravista […]. (SÁ, 2010, p. 49) Mas não devemos considerar, a partir dessa leitura, que o romance gótico foi o exemplo por excelência de texto libertário. Ao analisarmos o lugar de Manfredo na narrativa, ele personifica o aristocrata cruel que faz tudo para se manter no poder. Não há personagens que pertençam às classes mais baixas da sociedade estamental no romance, de modo que se tomem como protagonistas. O único camponês que assume vulto na história, de nome Teodoro, descobre-se, ao final, herdeiro legítimo de Otranto, fato que está distante da experiência de massas valorizada por Lukács. No fim, o que temos é a retomada da ordem e o afastamento de quem tentou tomar o poder pela força: Freitas, S. L. F. de. Apontamentos sobre o... 252 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE Naquele instante um estrondo de trovão sacudiu o castelo até as suas fundações; a terra tremeu e o ruído de uma armadura que não podia pertencer a nenhum mortal fez-se ouvir às suas costas. Frederico e Jerônimo pensaram que o Dia do Juízo tinha chegado. O monge, arrastando Teodoro consigo, correu para o pátio. No instante em que Teodoro apareceu, as paredes do castelo atrás de Manfredo desabaram, impelidas por uma força poderosa, e a figura de Afonso, ampliado a uma imensa grandeza, apareceu no centro das ruínas. — Este é Teodoro, o legítimo herdeiro de Afonso! — disse a visão. [...] O padre calou-se. A desconsolada companhia retirou-se para a parte do castelo que ainda permanecia em pé. De manhã, Manfredo assinou sua abdicação ao principado, com a aprovação de Hipólita, e cada um deles tomou o hábito religioso num dos conventos vizinhos […]. (WALPOLE, 2014, pp. 149–152). A redenção do vilão só poderia ser alcançada através da dedicação exclusiva ao mundo sacerdotal pelo resto de seus dias. Ainda levando em conta aspectos morais, as personagens femininas do romance também são marcadas pela encenação da manutenção desses princípios. Matilda, filha de Manfredo, apesar de todas as malvadezas do pai, raramente sustenta posições que contrariam as decisões do patriarca, sempre fazendo referência ao respeito e obediência que deve a sua figura: — Jovem — disse ela, — embora dever filial e modéstia feminina condenem o passo que estou dando, ainda assim, a sagrada compaixão, superando todos os outros laços, justifica este ato. Fuja! As portas da prisão estão abertas: meu pai e seus criados saíram, mas podem retornar logo. Ponha-se a salvo e que os anjos do céu dirijam os seus passos! (WALPOLE, 2014, p. 97) Não poderia ser o contrário, tanto a Idade Média quanto o período de Walpole — aliás, ele mesmo aristocrata da já reformada Inglaterra — estavam mergulhados nesse parâmetro moral. Retornando ao estudo Gótico Tropical, seu autor confirma: “O foco dessas obras não era inflamar as controvérsias mas entreter o leitor e, ao final, […] confirmar a ordem burguesa, reafirmando, invariavelmente, o caminho político inglês” (SÁ, 2010, Freitas, S. L. F. de. Apontamentos sobre o... 253 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE p. 42). Apesar de podermos concordar com o aspecto de entretenimento com o qual a literatura gótica se veste, em O castelo de Otranto tal afirmação parece não proceder completamente. Walpole pode não ter alimentado o debate político, mas sim o debate que relaciona aspectos literários e a representação do real. Não se pode negar a afirmação da ordem burguesa presente no desenrolar do romance, mas também não pode passar despercebida a confluência de aspectos históricos que costuram uma retomada de cenários e procedimentos de um suposto passado medieval para contrapor e atestar uma moral política, burguesa e cristã protestante de seu próprio tempo e país. Exatamente por isso O castelo de Otranto vem sendo constantemente acusado de estar repleto de um pseudomedievalismo, por não corresponder a uma leitura convencionalizada do que seria uma representação fidedigna da Idade Média. 5. CONCLUSÕES Observemos a seguinte passagem de Valéria de Marco, influenciada por uma leitura mais ampla e menos dogmática do que representa o texto de Lukács: […] para julgar o acerto do romance não cabe utilizar como critério o grau de fidelidade histórica, o pseudo-historicismo. Critério é o texto compreender e representar o progresso como processo contraditório. Apagar ou elidir as contradições indicaria construir a história como evolução plena e retilínea […]. (MARCO, 1997, p. 196) Ao tentar produzir uma obra que misturasse fatores antigos e modernos, deve nos parecer que Walpole lidou com esse entendimento. A fidelidade histórica, ou a fidelidade ao real empírico, é algo que permanece no campo da incerteza na construção de seus prefácios, e ele demonstra o desejo de que seu leitor perceba isso. Da mesma forma, o uso feito pelo autor da matéria de extração histórica promove um encontro entre passado e presente, que se confundem, e isso não advém de uma Freitas, S. L. F. de. Apontamentos sobre o... 254 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE incompetência literária. Quando críticos analisam o romance acusando-o de guardar personagens vestidos com a moral e atitudes do século XVIII, trajados e colocados em um ambiente da Idade Média, talvez lhes escape que essa é a proposta do texto. Tal postura não pode ser encarada como a tentativa de ver no romance mais do que ele representa, além de seu tempo. Ao contrário, O castelo de Otranto é um romance devidamente do século XVIII e está localizado no momento em que, após o desenvolvimento do Iluminismo, o homem começou a se debater com esses entraves. Invariavelmente quando, nos estudos literários, queremos verificar o papel que o elemento histórico ocupa em um texto ficcional, recorremos ao aparato teórico do romance histórico. Os problemas de submeter os elementos históricos de O castelo de Otranto ao crivo de uma visão mais ortodoxa do romance histórico são dois: por ser uma leitura, pressupõe escolhas que poderão dar conta de determinados romances, mas de maneira alguma de todos; e, ao se dizer que O castelo de Otranto não é um romance histórico clássico, principalmente por não abarcar os aspectos de transformações sociais valorizados pelo modelo marxista de Lukács, a disposição tende a ser a de abandonar o texto em uma espécie de limbo catalográfico em vez de encará-lo em suas particularidades históricas. O livro de Walpole não é um romance histórico tradicional. O romance faz uma utilização do elemento histórico muito mais simbólica — os cenários obscuros; os castelos decadentes; os fantasmas de um passado que sempre retornam ao presente para lembrar aos vivos de suas origens; o aristocrata feudal do passado em contraposição a uma moral contemporânea — do que realista. O caráter simbólico dessa narrativa se traduz, principalmente, na não vinculação clara e objetiva entre personagens ficcionais e personagens empíricos — cuja relação clara seria pré-requisito do romance histórico listado no resumo de Alcmeno Bastos —, e na utilização da figura déspota de Manfredo, assim como a do castelo escuro e em ruínas, como símbolos de um passado que deveria ser abominado e ultrapassado. As intrigas e os mistérios do enredo assumem tamanha proporção que Freitas, S. L. F. de. Apontamentos sobre o... 255 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE passam a chamar mais a atenção do leitor do que os seus fatores históricos e o que eles representam na passagem do passado para o presente, mas isso não significa que esses fatores históricos foram negligenciados. Devemos, também, trabalhar com a hipótese de que não era preocupação de Walpole estabelecer uma relação fiel de figuração do passado, muito menos questionar a veracidade histórica de fatos. Ainda, se poderia levantar a afirmação de que o diálogo estabelecido com o componente histórico em O castelo de Otranto é mais extraliterário — por depender do prefácio ficcional e do segundo prefácio de Walpole para realizarmos a inserção mais precisa do elemento histórico — do que devidamente representado no texto do romance, o que representaria um equívoco. A escrita desses paratextos não foi gratuita, e chama a atenção de seu leitor para a ficcionalização do discurso histórico por ele empreendida, da contradição entre o que se diz real e o que se passa por real no texto ficcional. Por isso a compreensão do lugar ocupado pelo primeiro prefácio é de extrema importância para a avaliação do elemento histórico no romance. Walpole lida com referências do melodrama, assim como também lida com referências históricas e políticas que o colocam no lugar de intermédio — entre imaginação e empirismo — que deseja ocupar no segundo prefácio e que muitos críticos pareceram não levar em consideração. Com isso devemos assumir que, longe de ser inserido em uma categoria de romance histórico tradicional, O castelo de Otranto deve ser encarado de acordo com seus pressupostos de realidade e ficcionalidade, e não de fidelidade histórica. Sendo assim, os traços reunidos por Alcmeno Bastos podem servir não para o julgamento taxativo do uso do material histórico pelo romance, mas sim como ponto de partida para uma avaliação minuciosa das condições e variações do uso da matéria de extração histórica nessa obra. Freitas, S. L. F. de. Apontamentos sobre o... 256 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE REFERÊNCIAS BARLETTA, Laura. “Introdução”. In ECO, Umberto (Org.). 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Recebido em: 10/08/2017 Aceito em: 17/09/2017 Freitas, S. L. F. de. Apontamentos sobre o... 257 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE A POÉTICA DAS MÁSCARAS DE EZRA POUND: UMA ANÁLISE DO POEMA “CINO” PARA A COMPREENSÃO DE SUA PRIMEIRA POESIA THE POETICS OF MASKS BY EZRA POUND: AN ANALYSIS OF THE POEM “CINO” FOR THE UNDERSTANDING OF HIS FIRST POETRY Rodolfo Brandão de Proença Jaruga1 RESUMO: Este artigo discute a obra poética inicial de Ezra Pound, pré-imagista, com foco no uso do monólogo dramático como recurso expressivo de poéticas da tradição ocidental, em especial provençal e toscana medieval. A tradução do poema “Cino” e a análise de suas referências literárias mostram que Pound não imita necessariamente a voz e o estilo do poeta ficcionalizado em seus monólogos dramáticos, mas se vale de outros expedientes, mais sutis e sofisticados, que lidam com questões como intertextualidade e a relação entre narrativa histórica e de ficção. Palavras-chave: Ezra Pound; personae; monólogo dramático; intertextualidade. ABSTRACT: This article discusses the early and pre-imagistic poetical work of Ezra Pound, focusing on the dramatic monologue as a resource to express poetics of the western tradition, especially medieval Tuscan and Provençal. The translation of the poem Cino to the Brazilian Portuguese language and the analysis of its literary references reveal that Pound does not necessarily imitate the voice and style of the fictionalized poet in his dramatic monologues, but uses other subtler and more sophisticated techniques, which deal with matters such as intertextuality and the relation between fictional and historical narratives. Keywords: Ezra Pound; personae; dramatic monologue; intertextuality. 1. INTRODUÇÃO 1908 é o ano de publicação do primeiro livro de poemas de Ezra Pound, A Lume Spento, e também de sua chegada a Londres, onde atuou intensamente 1 Mestrando, UFPR. JARUGA, R. B. de P. A poética das... 258 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE pelos doze anos seguintes como editor, crítico e escritor2. 1920 é o ano de publicação de “Hugh Selwyn Mauberley”, último poema que Pound compôs antes de se dedicar exclusivamente aos Cantos, e também de sua despedida de Londres, rumo a Paris. Ao longo desses doze anos, Pound publicou mais de uma dúzia de livros de poemas3 e de uma centena de artigos e ensaios em vários periódicos. Muito embora seja comum delimitar este período como a primeira fase de sua obra4, em que os fundamentos do modernismo literário angloamericano estavam em gestação e desenvolvimento, as opiniões divergem quanto à qualidade e relevância dos livros e poemas iniciais (1908 a 1912), anteriores à assimilação da experiência das vanguardas europeias da década de mil novecentos e dez. Marjorie Perloff (1993, p. 278), por exemplo, considera Cathay (1915) a primeira publicação importante de Pound e, quando comenta poemas do multifacetado Lustra (1916), são estes de recorte claramente imagista. David Perkins, em sua monumental obra A History of Modern Poetry, sobre o modernismo anglo-americano, entende que antes de Ripostes (1912) os poemas de Pound só podem ser lidos com proveito no contexto de uma poética eduardiana (1976, p. 454). Hugh Witemeyer, ao escrever sobre a primeira poesia de Pound, também reconhece em Ripostes a transição de um estilo romântico para outro modernista (1999, p. 47). Dirceu Villa, dentre os poucos brasileiros que escreveram sobre o tema, expressa a opinião de que nos primeiros poemas, antes da “guinada vanguardista”, Pound ainda não tinha encontrado uma voz própria e sua poética estaria muito ligada a modelos vitorianos e pré-rafaelitas (2011, p. 10 e p. 42). Essas leituras, embora não Mario Faustino (1976), Augusto de Campos (1985) e Dirceu Villa (2011) descrevem o perfil de agitador cultural de Pound na Londres dos anos 1910. 3 A Lume Spento (1908), A Quinzaine for his Yule (1908), Personae (1909), Exultations (1909), Provença (1910), Canzoni (Londres, 1911), Rispostes (1912), Cathay (1915), Lustra (1916), Lustra, versão expandida e publicada nos EUA (1917), Quia Pauper Amavi (1919), The Fourth Canto (Londres, 1919), Hugh Selwyn Mauberley (1920), Umbra: The Early Poems (1920). 4 O Cambridge Companion to Ezra Pound, por exemplo, segue essa periodização. 2 JARUGA, R. B. de P. A poética das... 259 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE coincidam exatamente entre si, compartilham um lugar-comum da crítica: apenas a partir da experiência dos movimentos do Imagismo (1912) e do Vorticismo (1914) a poética de Ezra Pound apresenta unidade, consistência e, sobretudo, as características modernistas pelas quais sua obra é reconhecida: objetividade, precisão lexical, adensamento semântico, elisão sintática, fragmentariedade discursiva, incorporação de outros textos no corpo de seus próprios poemas, uso crítico e simultâneo de vários registros linguísticos e inserção de temas urbanos e cotidianos num topos poético neoclássico e de intensa intertextualidade. Esse período londrino de gênese do modernismo (1908-1920) costuma, portanto, ser subdividido, estabelecendo-se um subperíodo pré-imagista ou prémodernista (1908-1912) que abrange os poemas publicados em seis livros, A Lume Spento (1908), A Quinzaine for his Yule (1908), Personae (1909), Exultations (1909), Provença (1910) e Canzoni (1911). A obra em prosa dessa fase pré-modernista é o estudo de Pound sobre a poesia europeia medieval e renascentista intitulado The Spirit of Romance (1911), que certamente lança luzes sobre a sua primeira poesia. Seguindo a mesma lógica pode-se incluir nesse pacote pré-modernista a tradução das rimas completas de Guido Cavalcanti intitulada Sonnets and Ballate of Guido Cavalcanti (1912), que se amolda ao projeto literário expresso pelo conjunto. Esses livros perfazem assim a obra inicial de Ezra Pound, anterior às experiências das vanguardas londrinas da segunda década do século XX, cujos poemas são normalmente relegados — não sem injustiça — a segundo plano ou quando muito evocados arqueologicamente para explicar seus poemas posteriores, propriamente modernistas. Entretanto, um olhar atento sobre essa primeira produção pode nos mostrar um projeto poético consistente, com um propósito cultural definido e bastante “maduro” para um jovem poeta de 23 anos. Minha aposta é que os JARUGA, R. B. de P. A poética das... 260 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE procedimentos artísticos envolvidos nessa produção, que se perpetuaram e aprofundaram ao longo de toda sua obra, guardam relevância atual, seja por tratarem dos limites entre narrativa histórica e ficcional, seja porque compreendê-los nos permite reler sua obra posterior sob outro prisma. Em razão disso e com o objetivo maior de fortalecer a recepção de Ezra Pound no Brasil, a seguir irei delinear as características gerais de sua poesia inicial (2), traduzir o poema “Cino” publicado em seu primeiro livro (3) e analisá-lo com vistas a rediscutir seus aspectos intertextuais (4), para então, apresentar algumas conclusões sobre a poética das máscaras (5). 2. O BAILE DE MÁSCARAS Em Paris, Pound esteve por mais de três anos (1921 a 1924) redesenhando a abertura dos Cantos e dando forma ao corpus poético de sua primeira produção. Após esse breve interstício ele se instalou em Rapallo, nas cercanias de Gênova, onde viveu pelas duas décadas seguintes dedicado à escritura dos Cantos e dos vários textos em prosa e tradução que orbitam esse projeto literário. O início desta nova fase na vida de Pound é marcado não só pela publicação de A Draft of XVI Cantos (1925), a abertura definitiva da obra, mas também de Personae (1926), uma coletânea pessoal de seus poemas menores. Com esse duplo movimento, Pound não só consolidava o texto de abertura de seu longo poema, mas também selecionava e organizava sua obra poética pretérita. Os Cantos seguiram seu conturbado caminho de composição, que durou mais de quatro décadas. Personae, por sua vez, ainda hoje é a principal e mais difundida coleção dos poemas menores de Pound, que se manteve relativamente estável nas várias vezes em que foi revisado (BAECHLER & LITZ, 1990). O fato de essa coletânea se intitular Personae, recuperando o título de um livro seu de 1909, mostra o quanto a metáfora da máscara pareceuJARUGA, R. B. de P. A poética das... 261 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE lhe adequada para expressar o caráter dessa poesia, não só a de sua primeira juventude, mas a de toda aquela composta antes de 1920. Em Personae os poemas estão dispostos em conjuntos que correspondem aos principais livros publicados (Ripostes, Cathay, Lustra). Porém, os poemas da fase pré-imagista estão coligidos numa primeira seção mais geral denominada Poems of 1908-1911. Essa seção é composta de 42 poemas que, ancorados numa jovial erudição e se valendo de procedimentos tais como a adaptação e a dramatização, buscam apresentar poetas e poéticas do passado. Nesses poemas Pound evoca a figura de várias personagens, seja de poetas como Bertran de Born (“Sextina: Altaforte”) e François Villon (“Villonaud for this Yule”), ou de personagens históricas, como o bíblico Simão Zelotes (“Ballad of the Goodly Fere”). Há obras que se enquadram mais no conceito tradicional de tradução ou pastiche, como o poema baseado na obra de Heinrich Heine (“Translations and Adaptations from Heine”). Há também poetas anônimos, cuja voz pretende expressar a poética mais geral de uma época ou cultura, como no poema “E assim em Nínive” (“And thus in Nineveh”), do qual transcrevo em tradução os primeiros versos: Sim, eu sou poeta e sobre a minha tumba donzelas deitarão pétalas de rosas e os homens mirto, antes que a noite degole o dia com sua espada escura. Não! Não cabe a mim nem mesmo a ti fazer oposição, pois o costume é muito antigo e aqui em Nínive tenho visto muito poeta passar e ir habitar aquelas sombrias alcovas onde ninguém perturba nem seu sono nem seu canto. E muitos entoaram cantos com mais engenho e mais encanto do que eu. (POUND, 1990, p. 40, tradução minha5) No original: “Aye! I am a poet and upon my tomb / Shall maidens scatter rose leaves / And men myrtles, ere the night / Slays day with her dark sword. // 'Lo ! this thing is not mine / 5 JARUGA, R. B. de P. A poética das... 262 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE Embora Nínive seja uma das cidades assírias que caíram na influência política e comercial da Babilônia há alguns milênios, e nesse monólogo o poeta seja anônimo, as principais máscaras dos poemas pré-imagistas de Pound são de poetas medievais identificáveis, sobretudo provençais e toscanos. Atento a isso, Hugh Witemeyer, num difundido artigo intitulado “Early Poems”, relaciona os poemas do período pré-imagista aos estudos acadêmicos do jovem professor de literatura medieval. Com efeito, Pound havia estudado, entre 1901 e 1906, língua e literatura românica medieval na Universidade da Pensilvânia, Filadélfia, e no Hamilton College em Clinton, Nova York. Após adquirir o grau de mestre ministrou alguns cursos numa faculdade de Indiana (1907-1908) e num instituto de ensino superior em Londres (1909-1910). Daí o caráter didático, pontuado por Witemeyer, muitas vezes atribuído a esses poemas: Tal como o curso escolar The Spirit of Romance, vários de seus primeiros poemas buscam recriar o caráter (virtù) singular de algum escritor, ou geral de certa literatura, esquecida nos dias de hoje. Neste mesmo viés, os monólogos dramáticos ou personae de Pound têm funções tanto didáticas quanto expressivas. Eles pretendem direcionar o interesse do leitor à sensibilidade e realizações de figuras históricas fundamentais, mas pouco conhecidas, tais como as dos trovadores provençais. (WITEMEYER, 1999, p. 44) Witemeyer nota que a figura central desses poemas é quase sempre um homem, trovador, peregrino ou boêmio, artista rebelde ou amante em exílio, e que isso de certo modo reflete a imagem, ou autoimagem, do jovem Ezra. Embora este artigo de Witemeyer apresente uma boa síntese da obra poética pré-Cantos, há duas imprecisões, ou generalizações, em sua leitura, bastante Nor thine to hinder, / For the custom is full old, / And here in Nineveh have I beheld / Many a singer pass and take his place / In those dim halls where no man troubleth / His sleep or song. And many a one hath sung his songs / More craftily, more subtle-souled than I.” (POUND, 1990, p. 40) JARUGA, R. B. de P. A poética das... 263 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE comuns na crítica sobre os poemas pré-imagistas: a) ignora ou desconsidera o fato de alguns poemas não se constituírem a partir de máscaras; e b) sugere que o uso da máscara é um escrever ao estilo de. Augusto de Campos também difunde essa imprecisão, ao considerar todo e qualquer poema menor de Pound o exercício formal de emulação de estilo alheio, ou em suas palavras, que “as máscaras de Pound correspondem a pessoas reais de poetas que falam, em sua própria linguagem, através de Pound” (1985, p. 25, grifos meus). Porém, como já havia demonstrado Christophe Nagy (1969), há vários poemas que não se constituem a partir de máscaras, e apenas sete se moldam àquilo que poderíamos chamar de monólogo dramático — e estes não imitam necessariamente o estilo do poeta retratado. Com o objetivo de diferenciar as personae de Pound do monólogo dramático de Robert Browning, Nagy verifica que a voz de cada personagem dos poemas de Pound possui uma relação específica com o estilo poético do poeta retratado, mas que não se trata de uma simples imitação estilística. Além dessas particularidades, dentre os poemas do período encontram-se vários que não se constituem a partir de máscaras, mas as discutem, ou então problematizam a identidade poética e a relação com o passado histórico ou mítico (“The Tree”, “Threnos”, “On his Own Face on the Glass”). Isto fica claro no poema “Sobre a sua Própria Face num Espelho”, tradução de Mário Faustino (1976, p. 158): Oh face estranha aí no espelho! Companheiro libertino, sagrado anfitrião, Oh meu bufão varrido pela dor, Que responder? Oh vós miríade Que labutais, brincais, passais, Zombais, desafiais, vos contrapondo! Eu? Eu? Eu? E vós? JARUGA, R. B. de P. A poética das... 264 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE Evidentemente não se trata de um monólogo dramático e dificilmente se reconheceria alguma máscara neste poema. Pelo contrário, o poema aborda a questão da multifacetada identidade do poeta numa linguagem que, esta sim, é bastante afeita ao romantismo vitoriano. Entretanto, a interpretação mais comum e difundida sobre os poemas da fase pré-imagista é que todos eles emulam ou imitam vozes de outros poetas e que com este procedimento Pound estaria não só cumprindo uma função da crítica escolar, acadêmica, de recuperar uma tradição perdida, mas ao mesmo tempo estaria exercitando seu estro, sua habilidade técnica como fazedor de poemas. Kenneth Ruthven, autor do incontornável estudo A Guide to Ezra Pound’s Personae, interpreta o uso das máscaras como um exercício para a formação técnica do poeta: Muitos dos poemas iniciais de Pound podem ser chamados de “Um poema à maneira de Villon”, Rosseti ou Bertran de Born, e de uma dúzia de outros escritores. Através do pastiche, o principiante aprende como os efeitos característicos dos grandes poetas foram alcançados em termos de arranjos puramente verbais. Como resultado destes exercícios cuidadosamente planejados, seus próprios recursos técnicos serão ampliados e assim quando chegar o momento de escrever um trabalho original não será freado por incapacidade técnica. (RUTHVEN, 1969, p. 02) Há, de fato, um esforço do poeta para recuperar uma tradição poética, ou algumas tradições poéticas esquecidas, e também de adquirir habilidade no manejo de técnicas composicionais. Porém — e é isto que pretendo mostrar ao analisar “Cino” — os poemas não são mero exercício de recriação formal de estilo, mas de interpretação crítica de uma obra. Com efeito, a postura de Pound para com a personagem ou a tradição em que a personagem se inscreve é complexa, condicionada pelas tensões culturais de ao menos três sujeitos: a) a figura histórica objeto do poema; b) a personagem ficcional do poema, e c) o poeta arranjador Ezra Pound. As distâncias entre, e os deslocamentos de, essas JARUGA, R. B. de P. A poética das... 265 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE subjetividades potencializam os sentidos de cada poema e exigem do leitor um exercício radical de exegese histórica. Tome-se, por exemplo, “Sextina: Altaforte”, talvez o poema mais antologizado desse período. Transcrevo aqui apenas a epígrafe: Loquitur: En Bertran de Born. Dante Alighieri pôs este homem no inferno por incitar desordem. Eccovi! Judge Ye! Será que eu desenterrei o cara de novo? A cena ocorre em seu castelo, Altaforte. Papiols é o bobo-da-corte. “O Leopardo”, a insígnia de Ricardo Coração de Leão. (POUND, 1990, p. 26, tradução minha6) Apenas esta epígrafe daria um longo estudo sobre intertextualidade e o uso simultâneo de várias línguas e registros7. Mas meu objetivo ao transcrevê-la, além de mostrar um dos modos como Pound apresenta suas personagens, neste caso o poeta provençal Bertran de Born, inventor da sextina, é apontar que, já na epígrafe, a figura de de Born está numa perspectiva ficcional ou ao menos intertextual: Pound adverte o leitor de que, antes de se tornar uma personagem sua, de Born foi personagem de Alighieri (que o colocou bem no fundo do inferno). A epígrafe de “Sextina: Altaforte” já revela uma tensão entre a verdade do retrato histórico de uma personagem e a verdade de um retrato ficcional No original: “LOQUITUR: En Betrans de Born. / Dante Alighieri put this man in hell for that he was a stirrer-up of strife. / Eccovi! / Judge ye! / Have I dug him up again? / The scene is his castle, Altaforte. “Papiols” is his jongleur. “The / Leopard,” the device of Richard (Cœur de Lion).” (POUND, 1990, p. 26) 7 No primeiro verso: “Loquitur”, do latim, significa “fala”, na terceira pessoa do singular. “En”, do provençal, significa “Senhor”. No segundo, uma referência ao Inferno de Alighieri, onde Bertran de Born foi amigavelmente situado no fundo do oitavo círculo. No terceiro, do italiano, “eis-te aqui!” E após um enfático, mas reticente “Judge Ye!”, que preferi não traduzir, vem a capciosa pergunta “será que eu desenterrei Bertran de novo?” Apenas depois disso é que, como se descrevesse a cena de um drama, Pound explica que Altaforte é o castelo de Bertran e Papiols, o seu jongleur. Finaliza-se a epígrafe com menção à insígnia do Rei Ricardo I da Inglaterra, contra quem Bertran fez guerra ao lado de Enrique, o Jovem. 6 JARUGA, R. B. de P. A poética das... 266 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE desta “mesma” personagem. De fato, nos monólogos dramáticos do jovem Pound, a relação entre a personagem do poema (sua voz poética) e a personagem histórica (sua obra e seu estilo) se dá num nível de intensa crítica literária e histórica, criando uma rede interligada de discursos e poéticas que se filtram e organizam pelo ato historicamente situado do sujeito poeta (o próprio Pound) que os articula e enuncia. Em síntese, podemos dizer que a poesia inicial de Pound estabelece relações muito peculiares com a tradição poética ocidental e dessas relações surgem múltiplas vozes, que nem sempre coincidem com a voz poética da personagem retratada. Há poemas que trazem máscaras anônimas (“And thus in Nineveh”, “De Aegypto”), há outros que tratam do uso da máscara (“On his Own Face in a Glass”) ou de sua relação com o passado e a tradição poética (“The Three”, “Threnos”). Nestes poemas a linguagem não apresenta o nível de objetividade e adensamento de seus poemas posteriores. Parece, também, que sua obra inicial orbita em torno de um conjunto central de poemas, caracterizados por serem máscaras de poetas medievais (provençais e toscanos) e serem, de fato, monólogos dramáticos. Dentre estes está o poema “Cino”, que traduzo e analiso a seguir. 3. “CINO” TRADUZIDO O texto original está em Personae (POUND, 1990, p. 6). A seguir, a tradução: CINO Campanha italiana, 1309, em plena estrada Bá! Eu já cantei mulheres em três cidades Mas é tudo igual, E cantarei o sol. JARUGA, R. B. de P. A poética das... 267 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE Lábios, versos e você logo as engazupa, sonhos, versos e elas já são como pequenas joias, estranho encanto de alguma antiga divindade, corvos, noites, corpos e elas logo somem; viram almas da canção. Olhos, sonhos, lábios e a noite acaba. De volta à estrada uma vez mais, elas somem. Abandonadas em suas torres porque nos tornamos vento-que-corre, nos imaginam por aí e suspirando dizem, “Pudesse Cino, o ardoroso Cino e seus cansados olhos, galhardo Cino, de riso solto, Cino, o ousado, o festivo, o indefeso Cino, o mais forte de sua tribo, que sob o sol desvia as pedras do caminho, pudesse Cino do alaúde estar aqui”. Uma ou duas vezes por ano reticentemente assim palavreando: “Cino?” “Ah, quem, Cino Polnesi, você diz, aquele poeta?” “Ah sim, ele passou por nós alguma vez, camarada descarado, mas... (são tudo a mesma coisa esses malandros) Cazzo! Eram dele as canções ou de outro alguém as que cantava? Mas e você, Monsenhor, como a vai a sua cidade?” Mas e você, “Monsenhor”, pelo amor de Deus! Meus amigos exilados, Monsenhor, e você mais Cino-desterrado do que eu, ó Sinistro. Eu já cantei mulheres em três cidades mas é tudo a mesma coisa e cantarei o sol. ... eh ... a maioria tinha olho cinza, mas é tudo igual e cantarei o sol. “Phebapolo, concha de bronze, glória da égide de Zeus, bossa do escudo ferro-azul, tua alegria ilumina o Céu. JARUGA, R. B. de P. A poética das... 268 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE “Phebapolo, que o teu riso seja uma canção companheira e o teu fulgor nos acalante. Nuvens e lágrimas não nos alcancem. Seguindo a trilha mais recente que conduz aos jardins do sol...” *** Eu já cantei mulheres em três cidades mas é tudo a mesma coisa. Eu cantarei os pássaros brancos nas águas azuis do firmamento, as nuvens que são borrifo do mar. 4. CINO SI FO DA PISTOIA O poema “Cino” é um monólogo dramático relativamente breve composto num registro de base oral e coloquial com alguns poucos elementos arcaizantes seja no nível do léxico ou da sintaxe. A personagem, um poeta peregrino de nome Cino, parece estar contando a alguém a decisão de trocar as mulheres, como objeto de suas canções, pelo sol, argumentando que todas são iguais. A relação com as mulheres é descrita como passageira (segunda estrofe) e o poeta logo as imagina lembrando-se de si (terceira estrofe) ou conversando com alguém acerca de seu paradeiro (quarta estrofe). Há um tal Monsenhor (que aparece já na quarta estrofe), exilado como Cino, a quem este parece endereçarse (quinta estrofe), mas isso é impreciso. Na parte final do poema, Cino dá uma amostra de seu “Cântico ao Sol” e o poema acaba com uma coda, repetindo o mote geral do poema e introduzindo uma nova imagem natural. O poema inicia com uma interjeição, Bá!, ditando o tom e o registro em que o discurso da personagem se sustenta. Após a abrupta conclusão de que as JARUGA, R. B. de P. A poética das... 269 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE mulheres são todas iguais — razão por que é melhor compor canções sobre o sol — Cino argumenta que os seus relacionamentos com elas (lábios, corpos) sempre derivam em recordações (pequenas joias) e terminam como objeto de sua poesia (almas da canção). Estas duas estrofes funcionam como uma introdução, tanto ao tema (trocar as mulheres pelo sol) quanto à personalidade de Cino (jovial e galhofeira). Na terceira estrofe, Cino imagina o que pensariam ou sentiriam, após a sua partida, as várias mulheres com quem esteve. Elas lamentam a sua perda e, como cada qual tem uma experiência própria e pessoal com Cino, a imagem que elas fazem dele nem sempre coincide, daí a aparente contradição entre o “ousado”, o “galhardo”, o “triste” e “o mais forte de sua tribo”: são recordações de diversas mulheres costuradas, que criam uma atmosfera cômica. A introdução dessa segunda voz, uma voz coletiva e feminina imaginada por Cino, é sentida nos planos do ritmo e da rima. Sem muito esforço, é possível imaginálo imitando caricaturalmente o modo de falar dessas mulheres. Mas Cino não se limita a pintá-las sofrendo por sua ausência, ele dramatiza também o encontro de uma delas com um tal “Monsenhor”, ocasião em que a dama finge quase não se lembrar do poeta e chega a pôr em dúvida a autoria de suas canções. As hesitações da mulher, seus “ah, sim”, criam um ritmo sonoro-sintático bastante coloquial. O verso entre parênteses “(são tudo a mesma coisa esses malandros)” parece representar a fala de um terceiro, provavelmente do tal “Monsenhor”, mas poderia ser o pensamento da própria dama, ou, forçando um pouco a interpretação, a voz do arranjador do poema, a voz de Ezra Pound. A dama, ao fim da conversa, fingindo uma vez mais JARUGA, R. B. de P. A poética das... 270 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE desinteresse por Cino, desconversa e pergunta ao “Monsenhor” como andam as coisas em sua cidade.8 Na quinta estrofe, Cino se dirige ao tal Monsenhor. Não fica claro se este endereçamento está de fato ocorrendo no tempo do poema — isto é, se Cino está realmente falando tudo isso ao tal Monsenhor — ou se ele continua ironizando as mulheres e estende essa ironia a um imaginado Monsenhor, que seria exilado político como ele. A informação relevante desta estrofe é que Cino é um desterrado, o que explica o fato de ele estar peregrinando.9 E assim chegamos ao cântico do sol, anunciado no começo do poema. São duas estrofes e meia dedicadas a Febo Apolo, com esquema rítmico e rímico particulares, que destoam da fala de Cino. Surpreende, na primeira leitura, que o canto ao sol não seja ao astro redondo e natural que brilha sobre todos, mas ao deus grego que encarna os atributos da claridade e do pensamento. As imagens deste cântico são relativamente clássicas, sobretudo a do escudo de ferro azul com sua bossa dourada no centro, embora a primeira delas (em inglês, old tin pan) seja possível ler num viés irônico, de uma imagem que rebaixa o seu tema (velha panela de lata). A trilha que conduz aos jardins do sol, como se o poeta caminhasse rumo a um paraíso edênico, contrasta com a informação da epígrafe, de que Cino está na “grande estrada”, peregrinando. O poema finaliza com a repetição do tema principal — “eu já cantei mulheres em três cidades, mas são todas iguais, agora vou cantar o sol” — e com a introdução de uma nova imagem da natureza, em que se fundem céu e mar. Afora a epígrafe, em que poucos dados sobre a personagem são apresentados, Cino se revela à medida que fala das mulheres (o que é contraditório, pois justamente havia decidido não mais cantá-las). Contudo, a De acordo com Ruthven (1969, p. 50). “Polnesi”, no terceiro verso da estrofe é muito provavelmente uma variação dialetal de “bolonhês”. 9 De acordo com Ruthven (1969, p. 50), “sinistro” se refere a uma suposta origem bastarda do tal Monsenhor. 8 JARUGA, R. B. de P. A poética das... 271 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE figura de Cino que emerge do poema é imprecisa, esfumaçada, quase ambígua. Compreendemos que se trata de um poeta exilado, dado a relações mundanas com diversas mulheres, que decide alterar seu canto em razão de uma presumida frustração com a efemeridade dessas relações. É possível aproximálo da figura do poeta maldito de fim do século XIX, mas ainda assim nos faltam elementos para compreender quem é Cino. As coisas mudam de sentido, entretanto, quando aproximamos a personagem ficcional da figura histórica, quando comparamos a dicção e os versos do Cino ficcional aos da figura histórica em que se baseia: percebemos, então, que há uma distância muito grande entre eles. E a riqueza e potência deste poema (e dos outros monólogos dramáticos) estão, a meu ver, nesta diferença, nesta distância entre a personagem histórica e a ficcional. Guittoncino di ser Francesco dei Sigisbuldi (1270-1336), vulgo Cino, nascido em Pistoia, na Toscana, foi um jurista muito respeitado em sua época, magistrado e professor, autor de uma obra jurídica de grande relevância para a interpretação do Código Justiniano, que permaneceu como referência por alguns séculos. Foi também, e isto é o que nos importa, um dos expoentes da poesia vernácula toscana de estilo elevado de princípios do século XIV. Sua obra poética, composta de sonetos e canções, trata sobretudo do amor, algumas vezes endereçando-o a uma tal Selvaggia num modo semelhante ao de seus amigos Dante Alighieri e Guido Cavalcanti, com os quais conformou o Dolce Stil Nuovo. Sua sintaxe, embora direta, pode ser complexa e embebida de recursos retóricos e seu léxico é preciso e elevado. Giosue Carducci, no prefácio a Rime, livro que recolhe os poemas de Guittoncino, nos conta que ele estudou leis e jurisprudência na Universidade de Bolonha e que desde muito jovem exerceu cargos públicos relevantes na qualidade de magistrado. Pertencente à ala Branca dos Guelfos, teria sido JARUGA, R. B. de P. A poética das... 272 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE banido de Pistoia em 1307 quando os Negros tomaram a cidade, por um período de três anos. Em 1309 (data que consta na epígrafe), portanto, segundo a narrativa histórica de Carducci, Guittoncino estava exilado havia dois anos, peregrinando de corte em corte. Tresoldi (2011, p. XVI), consultando autores mais recentes (o ensaio de Carducci é de 1862), data o início do exílio de Guittoncino em 1301 e afirma que ele, ao deixar a Toscana, radicou-se por alguns anos em Bolonha, onde haveria conhecido ou fortalecido a amizade com Alighieri, que lá também esteve exilado, provavelmente a partir de 1304. De fato, a amizade entre os dois foi forte, e bastante estreitos os laços literários que os uniam, tanto que Alighieri refere várias vezes a si próprio no tratado De Vulgari Eloquentia como “o amigo de Cino” (1921, p. 411). Neste mesmo livro, Guittoncino é apontado como o “poeta do amor”, em contraposição ao próprio Alighieri, que se descreve como “poeta da retidão” (1921, p. 411)10. Conscientes de que operavam uma radical modificação na literatura italiana de sua época, os amigos escreveram versos epistolares, uma quinzena de sonetos, que endereçaram um ao outro. Dentre estes há dois que particularmente interessam à compreensão do poema que estamos analisando. Em data imprecisa, Alighieri escreveu um soneto a Guittoncino advertindo-lhe de que era inconstante no amor — pois sua poesia se dedicava a várias mulheres — e lhe aconselhou, na verdade lhe pediu, que corrigisse essa conduta. Em um soneto-resposta, Guittoncino lhe diz que a inconstância no amor era consequência do exílio, e que os amores que encontrara em seu caminho, embora prazerosos, não lograram amenizar a dor da distância de sua terra natal. 10 “Cino pistoriensem, amorem; amicum eius, rectitudinem” (Livro II, parágrafo 2). JARUGA, R. B. de P. A poética das... 273 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE DANTE A MESSER CINO DA PISTOIA Io mi credea del tutto esser partito da queste nostre rime, messer Cino, ché si conviene omai altro cammino la mia nave più lungi dal lito: ma perch’i’ ho di voi più volte udito che pigliar vi lasciate a ogni uncino, piacemi di prestate un pocolino questa penna lo stancato dito. Chi s’innamora sì come voi fate, or qua or là, e sé lega e dissolve, mostra ch’Amor leggermente il saetti. Però se leggier cor così vi volve, priego che con vertù il correggiate, sì che s’accordi i fatti a’ dolci detti. (ALIGHIERI, 1921, p. 178) MESSER CINO A DANTE Poi ch’io fui, Dante, dal mio natal sito per greve essilio fatto peregrino e lontanato dai piacer più fino che mai formasse ’l piacer infinito; Io son piangendo per lo mondo gito, sdegnato del morir come meschino: e se trovat’ho di lui alcun vicino, dett’ho che questo m’ha lo cor ferito. Nè dalle, prime braccia dispietate ne dal fermato sperar che m’assolve son mosso, perchè aita non aspetti. Un piacer sempre mi lega e dissolve, nel qual convien che a simil di biltate con molte donne sparte mi diletti. (ALIGHIERI, 1921, p. 178) No soneto de Alighieri leem-se, sobretudo nos terços finais, uma censura ao amor inconstante (Chi s’innamora sì come voi fate, or qua or là, e sé lega e dissolve), e um pedido de correção (priego che con vertù il correggiate). A resposta do poeta de Pistoia deixa claro que o exílio político (Poi ch’io fui, Dante, dal mio natal sito per greve essilio fatto peregrino) é o que faz o amor surgir e logo dissolver-se, um amor dedicado a mulheres de beleza semelhante com as JARUGA, R. B. de P. A poética das... 274 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE quais o poeta se deleita (che a simil di biltate con molte donne sparte mi diletti). É muito possível que o argumento do poema de Pound tenha se originado desses sonetos. Contudo, notam-se mais diferenças que semelhanças entre o Guittoncino histórico e o Cino ficcional. Com efeito, se aquele recusou o conselho de Alighieri e justificou sua conduta amorosa e poética com o exílio, a personagem de Pound decidiu abandonar a poética do amor, ao argumento de que todas as mulheres são iguais, e, em vez de concentrar seu estro numa só dama, apontou sua voz para a natureza e o mito. Embora haja uma ou outra correspondência estilística entre a fictícia voz de Cino e o estilo poético de Guittoncino (como o uso da interjeição “Deh!”, recorrente em seus sonetos, e traduzido no monólogo por “Bah!”11), todo o resto parece invenção, em especial a canção ao sol, inexistente em seu cancioneiro. Uma hipótese é que Pound esteja fazendo uma referência ao poema de Francisco de Assis (Cantico del Sole), compilado e traduzido em The Spirit of Romance (POUND, 1968, p. 101). Por outro lado, esta ode pagã ao sol — radicalmente distinta da de Francisco de Assis — estaria adiantando em pelo menos um século a ascensão da mitologia greco-romana como topos do renascimento italiano. Nos poemas de Guittoncino pude encontrar apenas duas menções a “Giove” e nenhuma a Febo Apolo. Deus, em contrapartida, é mencionado e evocado constantemente e, de fato, não se me afigura possível encontrar qualquer indício de paganismo nos poemas de Guittoncino. A despeito dessas possibilidades de leitura, o que me parece relevante é que o poema, lido na perspectiva de uma crítica histórica (que aqui apenas esbocei), lança luz sobre a complexidade e variedade do conceito de amor dos poetas do Stil Nuovo, frequentemente simplificado. De fato, é generalizada a O uso da interjeição “Deh” (provavelmente do latim Dee), nas funções exclamativa e vocativa, é bastante comum no período. Alighieri, por exemplo, usa-a ao menos uma dezena de vezes na Commedia. Entretanto a recorrência nos sonetos de Guittoncino é característica de sua poesia. 11 JARUGA, R. B. de P. A poética das... 275 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE noção de que a figura do amor e da mulher, dentre os poetas do Stil Nuovo, é muito similar e segue o padrão estabelecido por Guido Guizinelli — criador do soneto e precursor imediato de Guido Cavalcanti, Dante Alighieri e Guittoncino dei Sigisbuldi (AUERBACH, 2008, p. 61). Com efeito, Guizinelli haveria apresentado pela primeira vez a mulher como mediadora da graça e do conhecimento supremo, em contraposição à concepção provençal de um amor mais terreno e mundano. Porém, a figura da mulher na poesia de Guittoncino parece ser mais complexa ou ao menos não tão uniforme, variando da idealização neoplatônica até a concretude das relações mundanas. Daí a advertência que Dante Alighieri lhe fez; daí Ezra Pound pintá-lo como um cortesão provençal. A inconstância amorosa de Guittoncino, evidente no poema “Cino”, mostra como o conceito e a mística do amor não eram idênticos entre os poetas do Stil Nuovo. O poema de Pound, ao apresentar Cino como um poeta de amor terrenal — provençal, portanto — e cantor de mitos gregos — o que o aproxima de um artista renascentista — desloca a personagem do que seria o seu centro gravitacional histórico, forçando o leitor a interpretar criticamente a tradição poética em que estão inseridos a personagem, o próprio leitor e também o poeta arranjador Ezra Pound. Por sua vez, se levarmos a ironia de Cino às últimas consequências, concluiremos que a descrença no valor intrínseco do objeto dá espaço à crença no valor da voz e do olhar do poeta. A troca das mulheres pelo sol não é a única. Ao final do poema, Cino promove outra mudança de foco, desta vez voltando sua atenção aos pássaros brancos. Esse duplo movimento de mudança de “objeto poético” mostra que Cino (e por extensão o jovem Pound) descrê no valor das coisas elas próprias. Parece que não importa muito o que cantar, mas como cantar. O multifacetado Cino — descrito poliedricamente pelas mulheres que abandonou — é o que realmente importa, e não as coisas que canta. O que JARUGA, R. B. de P. A poética das... 276 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE singulariza a coisa não é a coisa ela mesma, mas a postura do poeta para com a coisa. Essa dessacralização do objeto poético é mais um traço da modernidade da poesia do jovem Pound. 5. À GUISA DE CONCLUSÃO: A INTERTEXTUALIDADE PELAS MÁSCARAS As máscaras de Ezra Pound não são um mero exercício de estilo ou de estudo de formas poéticas do passado; elas se constituem uma atividade de crítica literária com um forte viés historicista. Em seus monólogos dramáticos de poetas provençais e toscanos, há sempre uma distância entre a figura histórica e a personagem ficcionalizada, e esta distância, que concede um espaço de exegese ao leitor, é o espaço da crítica literária. Estes poemas de Ezra Pound jogam o tempo todo com os conceitos de ficção literária e verdade factual, operando desvios de sentido não apenas nos relatos históricos sobre a vida da personagem, mas também — e nisto se funda a poética das máscaras — desvios no estilo literário do poeta retratado. O leitor ideal desses poemas tem acesso aos textos originais do poeta dramatizado e forma uma opinião própria sobre essa obra antes de contrastá-la com a recriação dramática de Pound, que, como dito, não é ortodoxa, mas derivada de uma interpretação bastante singular dessa tradição. A compreensão dos monólogos dramáticos exige a remissão a outros textos. Com este expediente a voz do poeta arranjador, ou do eu-lírico por trás das máscaras (para usar uma expressão bastante cansada), não é evidente nas primeiras leituras. É necessário ler e reler vários monólogos, e também os outros poemas que orbitam esse conjunto central, para que o lugar da voz seja percebido. O poeta Ezra Pound, nestes poemas, não se revela pela voz, mas pela postura crítica — historicamente localizada — em relação à tradição poética ocidental, em especial à que antecedeu o Renascimento. Hugh Kenner, embora JARUGA, R. B. de P. A poética das... 277 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE estivesse interessado em outros aspectos da poesia de Pound, parece haver identificado algo semelhante quando fala em “despersonalização do eu-lírico mediante uma rede de tensões dramáticas” (1968, pp. 119-125). É notável, também, que o exercício crítico do poeta não se limite às formas poéticas; na verdade muito pouco trata da forma poética. O exercício crítico de Pound é sempre quanto à posição do poeta no mundo, à sua postura, ao seu modo de ver e agir sobre o mundo e a linguagem. REFERÊNCIAS ALIGHIERI, Dante. De Vulgari Eloquentia. Porto Alegre: Tiago Tresoldi Editore, 2011. __________. Tutte le Opere. Firenze: Editora G. Barbèra, 1921. AUERBACH, Erich. Dante, Poeta del Mundo Terrenal. Barcelona: Acantilado, 2008. BAECHLER, Lea; LITZ, A. Walton. “A Note on the Text”. In POUND, Ezra. Personae. New York: New Directions, 1990. CAMPOS, Augusto de. “Ezra Pound: Nec Spe Nec Metu”. In POUND, Ezra. Poesia. São Paulo: Hucitec, 1985. CAVALCANTI, Guido. Sonnets and Ballate of Guido Cavalcanti. Trad. Ezra Pound. London: Swift & Company, 1912. CARDUCCI, Giosue. “Prefazione”. In Cino da Pistoia, Le Rime. Milano: Instituto Editoriale Italiano, 1862. FAUSTINO, Mário. Poesia Experiência. São Paulo: Perspectiva, 1976. KENNER, Hugh. Poetry of Ezra Pound. New York: New Directions, 1968. POUND, Ezra. Personae. 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Recebido em: 10/08/2017 Aceito em: 30/08/2017 JARUGA, R. B. de P. A poética das... 279 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE SUSAN SONTAG: ADAPTADORA E ARTISTA EM A DAMA DO MAR SUSAN SONTAG: ADAPTER AND ARTIST IN LADY FROM THE SEA Helena Cecilia Carnieri Staehler1 RESUMO: Além da extensa obra ensaística de Susan Sontag, destaca-se em sua obra ficcional a adaptação de A dama do mar, de Henrik Ibsen. Este trabalho analisa as transformações propostas na reescritura criada para o diretor Robert Wilson. Além da linguagem contemporânea, em que sobressai o uso do discurso indireto em diálogos, Sontag acrescenta conteúdos folclóricos escandinavos. Utilizando a teoria de Patrice Pavis (2008) a respeito das concretizações textuais, é proposto um quadro de ramificações intertextuais a partir da obra. Palavras-chave: Susan Sontag; Henrik Ibsen; teatro contemporâneo. ABSTRACT: Alongside Susan Sontag´s extensive production of essays, the rewriting of The Lady from the Sea, by Henrik Ibsen, is highlighted among her fictional work. This paper analyzes the transformations brought to the play created for director Robert Wilson. Besides the use of contemporary language, such as indirect discourse in dialogue, Sontag adds Scandinavian folk stories to the text. Using Patrice Pavis´ (2008) theory on textual concretizations, a chart is proposed for the inter-textual branches stemming from the play. Keywords: Susan Sontag; Henrik Ibsen; contemporary theater. Susan Sontag começou a escrever sua obra ensaística na década de 1960 e, até sua morte em 2004, teve contato e estabeleceu parcerias com inúmeros artistas e intelectuais de vários países. Houve poucos assuntos intocados por ela, da política aos hábitos da sociedade, passando por profundas reflexões sobre a mídia (Sobre a fotografia) e a tragédia humana (Diante da dor dos outros). Em um de seus primeiros escritos teóricos de destaque, Against Interpretation (1966), ela questiona o consumo 1 Mestre, UFPR. STAEHLER, H. C. Susan Sontag: adaptadora... 280 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE da arte nos anos 1960 e prega um viés erótico para a fruição das obras, no sentido de uma absorção mais intuitiva, que substituiria as análises estéticas racionais. Sontag pode ser considerada o principal ícone de intelectual feminina do século 20 devido a uma construção ideológica que a tornou, de certa forma, refém de sua imagem. De toda sua produção, pode-se dizer que os romances e as peças de teatro são menos conhecidos, e, talvez, menos apreciados, dada a importância e assertividade de sua escrita ensaística. A relação de Susan Sontag com o teatro inclui a direção feita por ela de montagens representativas. Em Roma, dirigiu, no início dos anos 1980, uma das últimas peças de Luigi Pirandello, As You Desire Me. Nas palavras da autora, aquela era “mais uma peça sobre uma mulher em desespero que é, ou finge ser, indefesa” (SONTAG, 1993b, p. 116)2. Em Sarajevo, em 1993, Sontag conduziu uma montagem de Esperando Godot com atores locais enquanto a cidade era bombardeada. Sobre a contaminação de suas convicções político-ideológicas na escrita ficcional, o biógrafo Benjamin Moser3 diz o seguinte: Não é o feminismo que atrapalha Susan, é a ideia de querer falar como uma pessoa importante. Ela tinha costume de falar muito de alto para baixo. E isso atrapalhou certas produções ficcionais dela, mas também certas produções ensaísticas. Quando ela está na dúvida, é muito melhor do que quando está gritando alguma coisa ideológica ou política. Ela não entendia nada de política, o que achei estranho quando descobri. Ela só entendia de estética. E como enfiava política em tudo que escreveu, ficou ruim. Quando ela não fez isso, e ficou na posição da Clarice Lispector, do verdadeiro escritor, que duvida e procura, ela fica resplandecente. (MOSER, 2016, s/p) Durante a estreia francesa de Deafman Glance (O olhar do surdo), em 1971, Susan Sontag teve contato com o teatro de Robert Wilson, com quem faria parcerias marcantes. Aquela era a primeira circulação do diretor no exterior e, na época, Sontag No original: “Another play about a woman in despair who is, or is pretending to be, helpless.” Todas as traduções são minhas, a menos que esteja indicado tradutor nas referências bibliográficas. 3 MOSER, Benjamin. 27 abr. 2016. Entrevista concedida por telefone à autora, em português. Gravada e transcrita, não publicada. 2 STAEHLER, H. C. Susan Sontag: adaptadora... 281 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE morava em Paris. A ensaísta relatou em entrevista que já ansiava por esse tipo de experiência, ainda que instintivamente: Eu nunca tinha visto algo parecido, mas era algo que eu almejava ver, sem mesmo saber. Eu precisava experienciar o teatro com aquele ritmo, aquela intensidade, aquela beleza. Por que o trabalho de Wilson é importante? Ele é profundo e profundamente visionário. Traz a assinatura de uma grande criação artística. Eu não consigo pensar em outro conjunto de obra tão grande ou tão influente. Ser tão prolífico, ter uma paleta tão ampla, fazer tantas coisas diferentes é parte de sua genialidade. Sua carreira teatral é a maior de nossa era.4 (SONTAG apud HOLMBERG, 1996, pp. 06-07). A primeira criação conjunta com Robert Wilson veio em 1993, quando ele encenou uma peça escrita por ela, Alice in Bed. A estreia ocorreu em 15 de setembro de 1993 no Hebbel Theater de Berlim, com trilha sonora de Hans Peter Kuhn. O texto é um libelo feminista em que Sontag apresenta Alice James, irmã do escritor Henry James, como personagem histórico ficcionalizado. Há elementos com referentes na realidade, como o fato de a protagonista ter sofrido de depressão durante muitos anos e ficado acamada na Inglaterra, até a morte, no período em que o irmão se estabeleceu naquele país. Outros elementos entram na seara fantástica, com referências a Alice no país das maravilhas que incluem momentos de boa poesia — como no trecho seguinte: “A mente tem seus próprios inchaços e diminuições, e quem é que pode dizer qual é o tamanho correto.5” (SONTAG, 1993a, p. 85) Nessa peça, Alice James toma chá com mulheres escritoras — Emily Dickinson e Margaret Fuller, líder feminista — enquanto discute sua condição marcada pela depressão. É interessante que, escrevendo sobre essa peça, Sontag descreva o artista No original: “I had never seen anything like that before, but it was what I had always longed to see without knowing it. I needed to experience theatre with that rhythm, that intensity, that beauty. Why is Wilson´s work important? It´s profound and profoundly visionary. It has the signature of a major artistic creation. I can´t think of any body of work as large or as influential. To be so prolific, to have such a large palette, to do so many different things is part of his genius. His is the great theatre career of our time.” (SONTAG apud HOLMBERG, 1996, pp. 06-07) 5 No original: “For the mind has its own swellings and diminishings, and who is to say what is the right size.” (SONTAG, 1993a, p. 85) 4 STAEHLER, H. C. Susan Sontag: adaptadora... 282 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE como alguém necessariamente egoísta. “A obrigação de [as mulheres] serem fisicamente atraentes e pacientes (...) contradiz e precisa colidir com o egocentrismo e agressividade e a indiferença a si mesmo que um grande dom criativo requer para que possa florescer6” (SONTAG, 1993b, p. 113). É possível dizer que, ao menos em sua dramaturgia, sobressai essa característica agressiva de que ela mesma fala acima. Foi uma sugestão da própria Sontag a Robert Wilson realizar a adaptação de A dama do mar, o que ele concretizou com uma produção italiana cuja estreia aconteceu na cidade de Ferrara em 1998.7 O projeto rendeu não apenas uma montagem de porte dentro da carreira de Wilson, mas também uma adaptação textual que está entre as melhores produções artísticas de Sontag. Na opinião do biógrafo Benjamin Moser, o encontro de Sontag com Robert Wilson, que é considerado “um verdadeiro artista” por ele (enquanto ela não o seria) (MOSER, 2016), trouxe um ganho à produção ficcional de Sontag que foi estimulada nas colaborações com o encenador por “algo que ela achava melhor”. [Em A dama do mar] ela está na posição de homenagem. Ela venerava os grandes antepassados — como Ibsen. E Bob Wilson a influenciou muito, porque ele é um verdadeiro artista e ela não. Ele é dessas pessoas vulcânicas que têm um currículo que você nem imagina a quantidade de coisas que fez. Absolutamente inspirador, encantador, trabalhador. (MOSER, 2016, s/p) É fácil imaginar Susan Sontag lendo A dama do mar de Ibsen com lentes feministas. A seus olhos a grande questão colocada pela personagem Ellida ao final da peça — “Então é isso a liberdade?” — poderia soar como uma bela provocação. Porém, não se trata de uma pergunta de fácil resposta. O que é, afinal, a liberdade? Quem pode se considerar totalmente livre, seja de convenções ou pressões sociais, da escolha feita por outros em seu nome? No original: “For the obligation to be physically attractive and patient (...) contradicts and must collide with the egocentricity and aggressiveness and the indifference that a large creative gift requires in order to flourish.” (SONTAG, 1993b, p. 113) 7 Posteriormente a encenação foi montada em outros países, incluindo o Brasil, em 2013. 6 STAEHLER, H. C. Susan Sontag: adaptadora... 283 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE Em sua versão, Sontag mantém a macroestrutura do enredo, mas opta por transformações formais radicais. Ela reduz a peça de Ibsen de 5 longos atos para 17 cenas curtas. Para além da mudança radical do final — escancaradamente irônico, enquanto Ibsen o dotara de ironia muito sutil —, Sontag recria a peça dentro de um novo paradigma de mundo, de casamento e do próprio fazer teatral, conforme ela explica no artigo Rewriting The Lady From The Sea (1999): […] mais da metade do texto é novo, os personagens foram amplamente modificados, elementos essenciais da história (tais como a história pregressa do Estrangeiro) foram eliminados, o ritmo e o método de exposição dramática são diferentes, e o final foi mudado.8 (SONTAG, 1999, p. 89) No artigo, Sontag deixa claro que seu projeto de adaptação não partiu da noção de que a peça necessitasse de uma “atualização” para o presente, de forma que o frescor de um novo olhar contribuísse para sua apreciação pela plateia contemporânea. Esse seria, segundo ela, o caso de inúmeras transposições do teatro grego ou de clássicos como Shakespeare para um novo tempo e espaço. Já a sua reescritura de A dama do mar surgiu, conforme relata a autora, porque ela considerou o texto de Ibsen “profundamente falho.”9 (SONTAG, 1999, p. 89) A autora questiona a interpretação de Ellida como uma verdadeira “criatura do mar”, já que a personagem “sucumbe” às regras sociais impostas pelo casamento. Em Sontag, Ellida manifesta sua “vocação” selvagem, que já havia sido enunciada na primeira escolha de título por Ibsen (A sereia), e termina a peça apenas contida, mas não verdadeiramente transformada (“evoluída”, como quer o marido Hartwig), conforme o trecho a seguir, extraído do final da peça: No original: “More than half the text is new, the characters have been sharply modified, essential elements of the story (such as the past history of the Foreigner) have been eliminated, the rhythm and method of dramatic exposition are different, and the ending has been changed.” (SONTAG, 1999, p. 89) 9 No original: “I chose to change Ibsen´s play as much as I did because I find it ‘profoundly flawed’”. (SONTAG, 1999, p. 89) 8 STAEHLER, H. C. Susan Sontag: adaptadora... 284 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE ELLIDA — Eu podia pular no mar. Podia nadar e nadar. Podia nunca mais voltar. Acho que vou fazer isso. Agora mesmo. / Só vou terminar este último pedaço de bordado e então vou me levantar e vou até o mar me jogar. / Ou melhor, vou levar Hartwig até a praia comigo e apontar o horizonte para distraí-lo e aí esmago sua cabeça com uma pedra lisa e aí pularei no mar e nadarei, nadarei... HARTWIG — É tão maravilhoso, minha amada, ver você assim. Em paz comigo. Em paz com você mesma. ELLIDA — Hartwig? Hartwig, querido. Não cometi um erro? Hartwig — Que pergunta, minha Ellida. Minha esposa. Minha vida. Pelo contrário. Você aprendeu a se aclimatar. / Você... evoluiu. (SONTAG, 2013, p. 64) Apesar de o casal passar, ao longo da peça, de um diálogo indireto (em que um não dirige a palavra ao outro), para o discurso direto das últimas cenas, o encerramento transcrito acima revela que o desencontro entre eles se mantém. A ironia da reescritura de Sontag se manifesta nas últimas palavras. “Você evoluiu” parece zombar do final proposto por Ibsen — apesar de podermos ler a peça ibseniana também pelas lentes da ironia. Porém, essa é a opinião do marido Hartwig, enquanto Ellida planeja matá-lo apenas algumas linhas antes. O tema da necessidade de aclimatação da personagem é mantido. Sontag relata no referido artigo que Ibsen começou o projeto de A dama do mar com duas ideias opostas. Num primeiro momento, relembrando suas experiências com o folclore norueguês — durante o período inicial de sua escrita em que se dedicou a dramas históricos —, Ibsen cogitou que a personagem se assemelhasse ao protagonista selvagem Peer Gynt. Nesse caso, o título A sereia, cogitado primeiramente por ele, faria ainda mais sentido. Outras referências que, de acordo com Sontag, alimentariam essa versão inicial da peça seriam o mito de Eurídice, resgatada do inferno por Orfeu, e a fábula francesa de Ondine, ninfa de espírito livre. O primeiro manuscrito da peça, STAEHLER, H. C. Susan Sontag: adaptadora... 285 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE inacabado, data de 1880, mas ele seria radicalmente transformado até a publicação da obra, em 1888.10 A segunda opção de narrativa, selecionada por Ibsen, foi inserir a história de Ellida no contexto realista de um drama psicológico e moral comum ao restante de sua obra. Uma hipótese para o motivo dessa escolha poderia ser a repercussão negativa obtida pelo autor após a publicação de Casa de bonecas (1879). Ellida, que opta por ficar ao lado do marido, daria a chance ao autor de redimir-se pelo escândalo provocado pela radical Nora.11 (SONTAG, 1999) Um dos problemas apontados por Sontag é que, na versão levada a cabo por Ibsen, Ellida não se constrói como personagem crível, já que o “final feliz” não seria verdadeiro para com a história inicial, pela qual a protagonista é dotada de natureza selvagem e se encontra num tormento praticamente insolúvel devido à incapacidade de se aclimatar. Sontag considerou que a personagem Ellida está [...] por demais alienada para ser atraída de volta à prisão marital por conta de algumas palavras de um marido desesperado. Se Ellida é um personagem válido, é porque ela é realmente diferente. A mulher que aceita a oferta de liberdade de Hartwig, e o recompensa ao não deixar sua casa, não é o personagem em que Ibsen nos pede para acreditar.12 (SONTAG, 1999, p. 91) A reescritura foi planejada a partir desse incômodo de Sontag com a obra fonte, e o seu próprio resultado final lhe “agradou mais”, conforme ela relata: “Então aqui está uma nova peça [...] Eu acredito que ela seja fiel à parte mais forte da concepção original da história por Ibsen, bem como tornou-se um material ideal para a Conforme a introdução escrita por William Archer para a tradução da peça para o inglês de Frances E. Archer (1908). Disponível em <http://catalog.hathitrust.org/Record/008670796>. Acesso em: 18 out. 2015. 11 Na visão do conde Prozor, a personagem ibseniana que verdadeiramente dá essa resposta é Helena Alving, visto que ela opta por permanecer num casamento ruim. (PROZOR, s.d.) 12 No original: “[...] is too alienated to be seduced back into the marital prison by a few words from a despairing husband. If Ellida is a valid character, it is because she really is different. The woman who accepts Hartwig’s offer of liberty, and rewards him by not leaving, is not the character Ibsen has asked us to believe in.” (SONTAG, 1999, p. 91) 10 STAEHLER, H. C. Susan Sontag: adaptadora... 286 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE sensibilidade poética e antirrealista e o talento visionário de Robert Wilson.”13 (SONTAG, 1999, p. 91) Pensando na (in)coerência de Ellida, torna-se proposital a análise de Robert Abirached de que “o personagem de teatro apresenta um contorno psicológico que lhe dita credibilidade, mas é preciso que esse contorno não se torne um objeto de análise por parte do escritor. É mais um dado fundamental do personagem que será submetido à prova dos fatos” (ABIRACHED, 1994, p. 34). Ou, como lembra Décio de Almeida Prado, “no teatro [...] as personagens constituem praticamente a totalidade da obra: nada existe a não ser através delas” (PRADO, 2011, p. 84). Na Ellida de Ibsen, surge uma certa colisão entre “ação e contorno psicológico”, e podemos dizer que essa discrepância está na base do questionamento de Sontag. Na recriação que Sontag faz da peça, Ellida nunca se recupera totalmente de seu devaneio, já que, ao final, cogita matar o marido e fugir, conforme o trecho reproduzido anteriormente, ou seja, nunca “aprendeu a se aclimatar” (p. 64) como diz Hartwig. A autora insere em seu texto uma “colisão de discursos”, algo sobre o qual a teórica Anne Ubersfeld escreve em Para ler o teatro: cada personagem traz em suas falas um conjunto de ideias que pode ser considerado um discurso próprio, sendo que parte do conflito inerente à trama é o choque entre esses universos díspares sobre o palco (UBERSFELD, 2002). Percebe-se esse embate de visões entre Ellida e seu marido, Hartwig, no diálogo a seguir: ELLIDA — Eu me casei com você sem amá-lo, sim. Mas então você era gentil, você é gentil, e eu comecei a amá-lo. / E isso não quer dizer nada. / Você alguma vez já me desejou como ele me deseja? HARTWIG — Ellida! Você não se envergonha do que está dizendo? Somos marido e mulher! No original: “So, here is a new play. […] I believe it to be faithful to the strongest part of Ibsen´s original conception of the story. As well as ideal material for the poetic, anti-realistic sensibility and visionary talents of Robert Wilson.” (SONTAG, 1999, p. 91) 13 STAEHLER, H. C. Susan Sontag: adaptadora... 287 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE ELLIDA — Você nunca me desejou assim. / Hartwig, não posso ser o que você precisa. E isto não é... um casamento. HARTWIG (amargamente) — Não é mais. ELLIDA — Nunca foi! Pausa. Me deixe ir, Hartwig. (SONTAG, 2013, pp. 56-57) A Ellida de Sontag, obviamente, se mostra diferente da versão ibseniana. Em sua estrutura de monólogos direcionados ao público, a autora faz com que sua protagonista revele mais de seu mundo interior, enquanto a Ellida de Ibsen revela-se a partir de diálogos mantidos com o professor Arnholm, o marido Hartwig e ocasionalmente com os outros personagens. Em Ibsen, Ellida se acalma e se aclimata a partir da liberdade de escolha — é importante observar que sua apreensão da liberdade se dá a partir da evolução do marido, que sempre se mostrara cortês e que, no final, a libera. Já em Sontag, ficamos sem saber a motivação de Hartwig, que passa de uma atitude agressiva para a liberação. Seria descaso? Ou desespero? As duas Ellidas têm em comum a possibilidade de mergulhar na loucura ou permanecer no discurso racional e sereno representado pela sua permanência na família. Quando recebe a chance de escolha, a personagem de Sontag rapidamente opta pelo mais plausível, já que era um sentimento de terror o que a impelia ao desconhecido e selvagem, não um desejo racional e ponderado. “Serei uma criatura terrestre. Apenas uma criatura terrestre. Por você.” (SONTAG, 2013, p. 62), ela diz ao marido Hartwig. A ligação orgânica de Ellida com a natureza, bem como sua própria “natureza selvagem”, são metaforizadas por Sontag no resgate de uma lenda nórdica, inserida na Cena 2 de sua peça, sobre os “selkies”, ou humanos que se transformaram em focas. Uma mulher-foca é raptada e seduzida por um homem, e com ele tem filhos. Sua pele é trancada num baú, do qual o marido, um pescador, carrega todos os dias a chave. Um dia, porém, ele a esquece em casa. Quando chega apressado, percebe o inevitável: ela STAEHLER, H. C. Susan Sontag: adaptadora... 288 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE fugira. Ao sentir o cheiro de sua pele, a criatura ouviu o chamado selvagem do mar e correu para ele, deixando para trás os filhos.14 Outra grande ruptura está na Cena 12, onde há um poema em que uma mulher deixa o marido e dois filhos em troca de uma vida de aventuras no mar, atraída pelo amor de um aventureiro — a história ecoa a de Nora, que, no entanto, deixa os filhos para descobrir sua verdadeira identidade. Porém, poucas léguas adiante, a mulher lendária vê os pés fendidos do sedutor, símbolo demoníaco, e ele efetivamente afirma que o destino reservado aos dois é o inferno. Quebrando os mastros, ele carrega a mulher para o fundo do mar. (SONTAG, 2013, pp. 40-42) Esses dois acréscimos intertextuais (nas cenas 2 e 12) de Sontag contribuem para dotar a peça de mais simbolismo do que fizera Ibsen, que, na verdade, canalizara toda a possibilidade simbólica de sua peça para os personagens Ellida e Estrangeiro. O restante da trama e personagens se comportam realisticamente — entretanto, é necessário fazer uma ressalva para o comportamento da enteada Hilde, que poderia ser classificado como algo mais absurdo. No artigo em que relata seu trabalho de reescritura, Sontag menciona que usou “um método para que os personagens apresentassem a si mesmos e expusessem seus conflitos com os demais que, em seu formato explícito, é ao mesmo tempo mais arcaico e mais moderno [que o de Ibsen]15” (SONTAG, 1999, p. 91). Na lista de cenas da peça de Sontag, esse contexto expositivo é nomeado “monólogos”, recurso que, guardadas as devidas proporções, está estilisticamente próximo dos “diálogos entre surdos”, ou diálogos indiretos, presentes nas peças de Tchékhov (SZONDI, 2001, p. 53), visto que os personagens não direcionam as falas um ao outro e o conteúdo das réplicas não corresponde às falas. Sontag utiliza a versão da lenda típica das Ilhas Feroé, em que o homem é do vilarejo de Mikladalur, localidade inserida por ela no texto. (SONTAG, 2013, p. 11) 15 No original: “[...] using a method for the characters to present themselves and expound their conflicts to each other which, in its explicitness, its frontality, is both more archaic and more modern.” (SONTAG, 1998, p. 91) 14 STAEHLER, H. C. Susan Sontag: adaptadora... 289 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE Precursor do autor russo nessa quebra do diálogo realista, Ibsen instaura, como vimos, o diálogo rememorativo, em que o passado é desvelado aos ouvidos do público, por vezes, na conversa entre alguns personagens. Já no caso de Sontag, a autora direciona as falas diretamente para o público, epicizando o discurso com o uso de seus monólogos irônicos. Nas primeiras falas em que esse recurso ocorre, na cena 1, é apresentada a exposição do conflito e o contexto em que se insere o enredo. Ambos, Hartwig e Ellida, apresentam suas versões. Quando Ellida fala na cena 2, Hartwig faz pequenas interrupções, como se fossem provocações autoritárias. Em outros momentos de sua versão, existe diálogo, como na cena 16: ELLIDA — Se eu mandá-lo embora, se eu ficar para trás com você, Hartwig, pode me garantir que nunca me arrependerei? HARTWIG — Arrepender-se...? ELLIDA — Sim, sim, pois não dá para voltar atrás! Pode me garantir que nunca me arrependerei? HARTWIG — Não, Ellida... não posso. ELLIDA — Eu sabia. (SONTAG, 2013, pp. 54-55) Em Ibsen, a dupla mantém a afabilidade, apesar de, há três anos, não dividir o leito. Em Sontag, existe amargura e ressentimento, com falas repletas de ironia — como quando Hartwig explica o nome da mulher: “Foi batizada com o nome de um velho navio. Ellida. Não era nome para um cristão.”16 (SONTAG, 2013, p. 09). Ou quando Hartwig define a liberdade: “[...] é só uma faísca que se apaga antes mesmo que você possa gritar ‘veja aquele brilho!’ É o instante de você declarar que me rejeita e o escolhe... e acabou.” (SONTAG, 2013, p. 58) É interessante observar de forma gráfica a trajetória desta adaptação artística, incluindo possíveis diálogos que se ramificam a partir de cada etapa. Para isso, utilizase aqui a teoria de Patrice Pavis (2008) relativa à série de concretizações textuais sucessivas e encadeadas, conforme será explanado. A etimologia não está presente no texto de Ibsen. Realmente, Ellida era, na mitologia escandinava, o nome de um navio dotado de alma. 16 STAEHLER, H. C. Susan Sontag: adaptadora... 290 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE FIGURA 1: Série de concretizações conforme Patrice Pavis (2008). Conforme a teoria que pode ser visualizada no quadro, num processo de adaptação o texto e a cultura de origem (T0) requerem, antes de mais nada, uma tradução (T1), chamada por Pavis de “concretização textual”. A passagem deste para outro sistema sígnico e cultural (T4) requer, no caso do teatro, uma versão dramatúrgica (ou roteiro), em T2. A colocação no palco por um diretor é chamada de concretização cênica, ou T3. E o processo se completa somente com a recepção pelo espectador, em T4. A partir desse pensamento, uma encenação surge tanto como tradução intermidiática (da peça textual ao palco) quanto intercultural.17 No caso de A dama do Nas palavras de Patrice Pavis, “no teatro, na verdade, o fenômeno da tradução para a cena supera em muito aquele, bastante limitado, da tradução interlingual do texto dramático. Para tentar chegar ao âmago de alguns problemas de tradução específicos da cena e da encenação, será indispensável levar em conta duas evidências: primo, no teatro, a tradução passa pelo corpo dos atores e pelos ouvidos dos espectadores; secundo, não se traduz simplesmente um texto linguístico num outro; confronta-se, faz com que se comuniquem situações de enunciação e culturas heterogêneas, separadas pelo espaço e pelo tempo.” (PAVIS, 2011, p. 412) 17 STAEHLER, H. C. Susan Sontag: adaptadora... 291 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE mar, a ambientação passa da Noruega do século 19 para um tempo e espaço menos marcados. Abaixo é proposta uma utilização do quadro de Pavis para esta análise. Se aplicarmos o esquema de análise das concretizações textuais de Patrice Pavis, podemos obter um quadro como o que se segue: FIGURA 2: Concretizações de A dama do mar, a autora (2016). Como é visualmente destacado no quadro anterior, a cultura fonte presente no texto de Ibsen (T0) nos remete a inúmeras interconexões, algumas das quais estão apontadas nas ramificações indicadas a partir da obra. A dama do mar de Ibsen estabelece um diálogo com a obra pregressa e posterior do autor, com destaque para Casa de bonecas (1879) e Espectros (1881), já que nas três peças o enredo traz um casamento em dificuldades. Em cada uma dessas obras, a esposa toma uma atitude diferente, permanecendo na condição de casada (Helena Alving, resignada, e Ellida, STAEHLER, H. C. Susan Sontag: adaptadora... 292 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE feliz?) ou saindo de casa (Nora). Ainda, em relação ao relacionamento homem-mulher, é preciso mencionar a simpatia do autor ao então nascente movimento feminista. A própria cultura norueguesa é um diálogo importante da peça, visto que a trama é situada num vilarejo à beira de um fiorde daquele país. Em sua Introdução à peça, William Archer (1908) destaca trechos de correspondência de Ibsen que deixavam clara a intenção inicial do autor de abordar a cultura do interior da Noruega, o que efetivamente ocorre na peça. No primeiro manuscrito (1880), deixado incompleto, Ellida seria a filha de um pastor seduzida por um homem de princípios morais duvidosos, de quem ela fora forçada a se afastar. Conforme explica Archer: [...] depois do casamento, ela [a protagonista inicial] acabou sentindo que, por ignorância e preconceito, havia sido dura demais com ele, e passou a achar que ‘essencialmente — em sua imaginação — fora com ele que ela estivera casada esse tempo todo’. Isso se assemelha muito ao que Ellida sente na peça; mas sua história se tornaria muito mais estranha e romântica.18 (ARCHER, 1908, p. xxiv) O histórico das traduções da peça do norueguês para idiomas mais disseminados, como o inglês e o francês faz parte da concretização textual seguinte do nosso quadro (em T1). As três principais versões pelas quais A dama do mar se tornaria conhecida foram escritas na virada do século por Eleanor Marx-Aveling (filha de Karl Marx) e Frances Archer19, e por Rolf Fjelde já nos anos 1970. No português do Brasil, dispomos de uma versão de Dea Caminha (1959), que pode ser considerada um tanto arcaica, motivo pelo qual este trabalho se baseia no texto de Fjelde em inglês. No original: “Then, after her marriage, she came to feel that in her ignorance and prejudice she had been too hard on him, and to believe that “essentially — in her imagination — it was with him that she had led her married life”. This is very like the feeling of Ellida in the play; but her story has become much more strange and romantic.” (ARCHER, 1908, p. xxiv) 19 Para Rolf Fjelde, as traduções do casal Archer deram início a uma tradição de mudança de linguagem nas peças de Ibsen. Fjelde reconhece o serviço prestado por Archer em tornar Ibsen acessível em inglês, mas lamenta o “ouvido duro” do tradutor. Segundo ele, a língua norueguesa não possui contrações verbais, e no processo Archer usa frases traduzidas ao pé da letra, tornando o texto artificial, o que ele chama jocosamente de “old high ibsenese”. Em outros casos, ainda de acordo com Fjelde, tradutores cortaram ou suavizaram o texto de Ibsen. (FJELDE, 2001, p. xxxii) 18 STAEHLER, H. C. Susan Sontag: adaptadora... 293 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE Na concretização seguinte temos a reescritura de Susan Sontag (realizada no ano de 1997), em T2, que adapta o texto ibseniano como dramaturgista. A versão de Sontag está em franco diálogo com duas peças anteriores da autora, as já citadas A Parsifal (1991) e Alice in Bed (1993), já que em ambas ela cria uma nova versão de um clássico utilizando ironia e uma concepção marcadamente ideológica. Além disso, é impossível ler a obra artística da autora sem ter em mente seus ensaios sobre arte, cultura e feminismo, que estabelecem outro campo de diálogo com sua Dama do mar. Em especial, o referido artigo Rewriting The Lady from the Sea (1999), em que a autora traz interessantes insights sobre a peça, como no seguinte trecho: Como uma história realista, A dama do mar anda lado a lado com outras peças de Ibsen centradas em mulheres. Como Hedda Gabler, Nora Helmer, Rebecca West, Ellida é uma heróina “neurótica”. Mas ela, ao contrário das outras, é curada por um marido que consegue evoluir além do egoísmo. Um homem sem ambições para si mesmo, nem um artista nem um empresário, mas um médico; um curador.20 (SONTAG, 1999, p. 90) Sabemos que Sontag partiu de uma tradução do norueguês para o inglês.21 A nova obra escrita por Sontag também está em diálogo com todo o histórico de comentários que a peça trouxe desde a publicação em 1888, como a comparação entre o feminismo na peça e em Casa de bonecas. O momento histórico em que ela escreve (o ano de 1997) também acrescenta ao seu texto toda a história do feminismo que se desdobrou após o tempo de escrita da peça de Ibsen, incluindo a luta pela conquista de direitos civis como o voto para as mulheres. A partir desses elementos, Sontag realizou sua própria análise dramatúrgica (T2), tanto ficcional quanto ideológica, que torna o texto legível e visível ao No original: “Taken as a realistic story, The Lady from the Sea is very much of a piece with Ibsen’s other major women-centered plays. Like Hedda Gabler, like Nora Helmer, like Rebecca West, Ellida is a “neurotic” heroine. But she, unlike them, is cured — cured by a husband who can grow into unselfishness, a man not ambitious for himself, neither an artist nor a businessman but a doctor; a healer.” (SONTAG,1999, p. 90) 21 Não foi possível detectar qual ou quais foram utilizadas por Susan Sontag. 20 STAEHLER, H. C. Susan Sontag: adaptadora... 294 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE leitor/espectador, enfim, possível de ser encenado. Algumas modificações se tornam desejáveis para que o novo espectador entenda situações ou personagens, como é o caso do casamento por conveniência, destinado à proteção da órfã Ellida, hoje uma realidade restrita a determinados contextos. Por meio dos monólogos em que faz os personagens dirigirem-se à plateia, narrando e explicando a trama, Sontag faz com que os costumes do século XIX na Noruega se tornem plausíveis para a plateia de hoje. Sontag adapta apropriando-se livremente do texto, estabelecendo novas relações intertextuais e um novo final. Para a encenação no Brasil, o texto de Sontag ganhou uma tradução do inglês ao português, realizada por Fábio Fonseca de Melo, conhecido por sua tradução de Doctor Faustus Lights the Lights (Doutor Faustus acende a luz), de Gertrude Stein, peça que tem, na sua visão, “pontos de contato estéticos, formais e temáticos com um Bob Wilson 'histórico'”. (MELO, 2016) Para realizar a versão em português, o tradutor relata ter levado em conta o caráter de renovação dos aspectos “feministas” e “psicanalíticos” constantes na versão de Sontag, já que, na sua opinião, a autora “remove do texto aquilo que ele tem de ‘literatura dramática’ e ‘trama de costumes séc. XIX’ para deixar apenas o ‘sumo’ que ela considera a ação essencial subjacente. Isto ajuda uma encenação contemporânea, que não se alicerça no texto, mas na cena.” (MELO, 2016). Essa transformação passa por aspectos formais também, ainda conforme o tradutor: Sontag joga formalmente com as palavras de modo a construir certas passagens multissêmicas, a fim de incluir ou acentuar seu posicionamento feminista, principalmente por meio de referências ou leituras psicanalíticas. Nesse sentido, a meu ver, o desfecho da peça é uma espécie de derrota política, porque Ellida reprime seu Desejo e permanece na vida que a oprime (e essa incapacidade de dar o passo estaria na raiz de seu 'desequilíbrio' mental). Embora não existam garantias de que sua liberdade seria plena (e a Balada invocando a tradição do 'diabo encantador' no meio da peça serve para plantar essa dúvida, de que talvez o Desejo estivesse sendo enganado por um 'canto de sereia'), o final esperado seria um ato de liberação. Mas ela fica. (MELO, 2016, destaques no original) STAEHLER, H. C. Susan Sontag: adaptadora... 295 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE Como vemos, todos os participantes de uma produção repensam e contribuem para a construção do resultado final. Por esse motivo ganha pertinência a aplicação da teoria das concretizações textuais a uma adaptação como Dama do mar de Susan Sontag. Num trabalho posterior, a cadeia de transformações relacionadas a essa obra poderá ser ampliada com a análise da encenação a cargo de Robert Wilson e sua recepção brasileira. Outras pesquisas afins se mostram relevantes, envolvendo um diálogo mais aprofundado entre a obra ensaística de Sontag e sua criação artística, bem como um olhar mais interessado para sua produção ficcional. Isso apesar das, ou até mesmo devido às, críticas feitas por seu biógrafo e registradas neste artigo, segundo o qual Sontag não era um “verdadeiro artista”. REFERÊNCIAS ABIRACHED, Robert. La Crise du Personnage dans le Théatre Moderne. Paris: Editions Gallimard, 1994. ARCHER, William. "Introduction." in Romersholm / The Lady from the Sea. New York: Charles Scribner's Sons, 1908. Disponível em <http://catalog.hathitrust.org/Record/008670796> Acesso em: 18 out. 2015. FJELDE, Rolf. Introduction. In Ibsen — Four Major Plays. Nova York: Signet Classics, 2001. HOLMBERG, Arthur. The Theatre of Robert Wilson. Cambridge: Cambridge University Press, 1996. IBSEN, Henrik. A dama do mar. Trad. Dea Caminha. Rio de Janeiro: Teatro Universal, 1959. MELO, Fábio F. 30 abr. 2016. Entrevista concedida pelo tradutor Fabio Fonseca de Melo por e-mail à autora. Não publicada. MOSER, Benjamin. 27 abr. 2016. Entrevista concedida pelo escritor Benjamin Moser à autora por telefone, em português. Transcrita e não publicada. PAVIS, Patrice. Dicionário de teatro. Trad. Jaime Guinsburg e Maria Lúcia Pereira. 3ª ed – São Paulo: Perspectiva, 2011. STAEHLER, H. C. Susan Sontag: adaptadora... 296 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE ____________. O teatro no cruzamento das culturas. Trad. Nanci Fernandes. São Paulo: Perspectiva, 2008. PRADO, Décio de Almeida. A personagem no teatro. In CÂNDIDO, Antonio et al. A personagem de ficção. São Paulo: Perspectiva, 2011, pp. 83-101. PROZOR, Moritz. A Dama do Mar. In Seis dramas — Parte 1. Trad. Vidal de Oliveira. São Paulo, Escala: s.d, pp. 69-72. SONTAG, Susan. Against Interpretation and Other Essays. Nova York: Farrar, Straus & Giroux, 1966. __________. Alice In Bed — A Play by Susan Sontag. New York: Farrar, Straus, Giroux, 1993a. __________. Susan Sontag´s Note on her Play “Alice in Bed”. In Alice In Bed — A Play by Susan Sontag. New York: Farrar, Straus, Giroux, 1993b, pp. 113-117. __________. Lady from the sea/A dama do mar. Edição bilíngue. Trad. Fábio Fonseca de Melo. São Paulo: n-1 edições, 2013. ___________. Rewriting The Lady from the Sea. Theatre 29 — n. I. Yale School of Drama 1999, pp. 88-91. SZONDI, Peter. Teoria do drama moderno [1880-1950]. Trad. Luiz Sérgio Repa. São Paulo: Cosac & Naify Edições, 2001. UBERSFELD, Anne. A representação dos clássicos: reescritura ou museu. Trad. Fátima Saadi. In SAADI, F. (ed.) Folhetim: teatro do pequeno gesto. n. 13. Rio de Janeiro, Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, Secretarias de Cultura, Rio Arte, abr-jun 2002. Recebido em: 10/08/2017 Aceito em: 20/09/2017 STAEHLER, H. C. Susan Sontag: adaptadora... 297 ESTUDOS DA TRADUÇÃO TRANSLATION STUDIES Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE TRADUZINDO O VERSO LIVRE DE T. S. ELIOT TRANSLATING T. S. ELIOT’S FREE VERSE Eduardo Friedman1 RESUMO: A opinião de T. S. Eliot de que “nenhum verso é livre para quem quer fazer um bom trabalho” revela uma faceta essencial de sua poética. Apesar do cunho modernista, o trabalho do americano radicado na Inglaterra ainda se atém a certos convencionalismos. Eliot verseja com “limitações artificiais”, em suas próprias palavras, e traduzir sua obra significa entender tais limitações e reproduzi-las na língua meta. Palavras-chave: Tradução de Poesia; Verso Livre; T. S. Eliot. ABSTRACT: T. S. Eliot’s opinion that “no verse is free for the man who wants to do a good job” reveals an essential facet of his work. Despite its modernist nature, the writings of the Americanborn British poet still cling to certain traditional aspects of poetry. Eliot writes with “artificial limitations”, in his own words, and translating his poetry means understanding such limitations and reproducing them in the target language. Keywords: Poetry Translation; Free Verse; T. S. Eliot. À primeira vista, traduzir verso livre — aquele que não obedece “a nenhuma regra pré-estabelecida quanto ao metro, à posição das sílabas fortes, nem à presença ou regularidade de rimas” (GOLDSTEIN, 2005, pp. 36-37) — pode parecer menos dificultoso. Afinal, não é necessário se preocupar com as limitações impostas pelo metro ou pela rima do poema original, apenas com o conteúdo2. No Brasil, associamos o surgimento do verso livre ao modernismo literário, desencadeado pela Semana de Arte Moderna de 1922, que teve como expoentes, em suas diferentes fases, Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade e 1 2 Mestrando, PUC, RJ. Ou tanto quanto for possível desassociar a forma do conteúdo. FRIEDMAN, E. Traduzindo o verso... 299 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE tantos outros, cada um com propostas e estilos próprios. No entanto, quando falamos do modernismo de T. S. Eliot, é preciso tratar sua poética não como uma poesia sem amarras, e, sim, como versos lapidados em formas irregulares — não livres. No ensaio Reflections on Vers Libre, de 1917, T. S. Eliot critica a nomenclatura de “livre” do vers libre — o verso livre francês — e afirma não conseguir defini-lo positivamente, apenas negativamente, como um verso sem padrão, sem rima e sem metro. Para o poeta, os melhores versos de língua inglesa ou são afastamentos constantes de uma forma simples, como o pentâmetro jâmbico — metro anglófono clássico — ou não partem de forma alguma, aproximando-se de uma forma simples. “É o contraste entre fixidez e fluxo, essa evasão desapercebida da monotonia, a vida do verso” (ELIOT, 1917, s/p, tradução minha)3, afirma Eliot. E mais: “A liberdade só é verdadeiramente livre quando surge diante de alguma limitação artificial” (ibid. tradução minha)4. Os exemplos que ele apresenta (The Embankment, de T.E. Hulme, e o trecho final de Near Perigord, de Ezra Pound) são notáveis, em suas palavras, pela “constante sugestão e evasão habilidosa do pentâmetro jâmbico” (ibid., s/p, tradução minha)5. Vamos ver o que a escansão6 das passagens mostra, a começar por “The Embankment”: / - - / - / / \ / (- -) Once, || in | finesse | of fidd | les found | I ecstasy, - / / / - / / (-) In the | flash of | gold heels | on the | hard pavement. / \ / Now | see I || || No original: “It is this contrast between fixity and flux, this unperceived evasion of monotony, which is the very life of verse.” (ELIOT, 1917, s/p) 4 No original: “(…) freedom is only truly freedom when it appears against the background of an artificial limitation.” (ELIOT, 1917, s/p) 5 No original: “(...) the constant suggestion and the skillful evasion of iambic pentameter.” (ELIOT, 1917, s/p) 6 Utilizo os símbolos usados por Britto em “Para uma avaliação mais objetiva de traduções de poesia” (2002): “-” representa uma sílaba átona; “/” uma sílaba com acento primário; “\”, uma sílaba com acento secundário; “|” é o separador de pés, e “||” indica uma pausa no meio ou no fim do verso. 3 FRIEDMAN, E. Traduzindo o verso... 300 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 5 ISSN: 2318-1028 / - / - / - / -\ That warmth's | the ve | ry stuff | of po | esy. / / / Oh, God, || make small - / / \ - / - - / The old | star-eat | en blank | et of | the sky, - / - / / - - / - / That I | may fold it | round me | and in com | fort lie. (ELIOT, 1917, s/p) REVISTA VERSALETE || || || O único pentâmetro perfeitamente jâmbico é o quarto verso, exatamente o meio do poema, embora o primeiro emule o início clássico do soneto shakespeariano, com um pé trocaico seguido por quatro jâmbicos. O número de pés jâmbicos, inclusive, é pequeno: de 29 pés, apenas 14 são jâmbicos. Os únicos dois versos com menos de 5 pés são o terceiro e o quinto, momentos em que Hulme inicia novas frases após o dístico inicial. No artigo “A Lecture on Modern Poetry”, de 1908, Hulme explica o surgimento do vers libre e diz que a “(...) nova técnica foi primeiramente detalhada por Gustave Kahn. Consiste na negação de um número regular de sílabas como a base da versificação. O comprimento do verso é longo e curto, oscilando com as imagens usadas pelo poeta; segue o contorno de seu pensamento e é livre, não regular” (HULME, 1908 apud ROBERTS, 1982, pp. 262-263, tradução minha)7. Também defende que a tendência moderna vai contra a ideia dos antigos, como os gregos, que procuravam a imortalidade numa forma perfeita, “destinada a representar por toda a eternidade [um pensamento], o que explica a fixidez da forma do poema e as regras elaboradas do verso regular” (ibid., pp. 263-264, tradução minha)8. O fim da crença na perfeição e o reconhecimento do relativismo serviram para abrir caminho para uma No original: “The new technique was first definitely stated by Kahn. It consisted in a denial of a regular number of syllables as the basis of versification. The length of the line is long and short, oscillating with the images used by the poet; it follows the contours of his thoughts and is free rather than regular.” (HULME, 1908 apud ROBERTS, 1982, pp. 262-263) 8 No original: “(…) destined to embody that thought to all eternity, hence the fixity of the form of poem and the elaborate rules of regular metre.” (HULME, 1908 apud ROBERTS, 1982, pp. 263-264) 7 FRIEDMAN, E. Traduzindo o verso... 301 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE “produção de um efeito geral” (ibid., p. 264, tradução minha)9, não de “pequenas perfeições de expressões e palavras” (ibid., tradução minha)10, o que acaba com “a predominância do verso e de um número regular de sílabas como o elemento de perfeição nas palavras” (ibid., tradução minha)11. Hulme também argumenta que a poesia moderna tem um rumo introspectivo e serve para o poeta recontar “fases momentâneas” (ibid., p. 265, tradução minha)12 de sua mente, em vez de épicos — que, por serem recitados, exigiam uma forma regular. A poesia moderna, por ser lida, pode ser livre. Agora vejamos a escansão do trecho do poema de Pound: 5 / \ / - / - - / There | shut up | in his | castle, || Tairiran’s, / / - / / / - - / She | who had | nor ears | nor tongue | save | in her hands, / / - / - / - \ Gone || —ah, gone— || untouched, || unreach | able! / / - / / / / She | who could ne | ver live | save | through one | person, / / / / / / She | who could ne | ver speak | save | to one | person, - / - / - / - / / And all | the rest | of her | a shift | ing change, - / / - - / (-) A bro | ken bun | dle of mir | rors…! (ELIOT, 1917, s/p) || || || || || || || Percebe-se claramente a tensão de que Eliot fala: o segundo verso, por exemplo, começa com um pé acéfalo e vai seguindo por um caminho jâmbico até a substituição trocaica do penúltimo pé — mas o terceiro verso, perfeitamente jâmbico (com exceção do primeiro pé, incompleto), retorna ao padrão. Pound faz um jogo entre pentâmetros No original: “(…) production of a general effect.” (HULME, 1908 apud ROBERTS, 1982, p. 264) No original: “(…) minute perfections of phrase and words.” (HULME, 1908 apud ROBERTS, 1982, p. 264) 11 No original: “(…) the predominance of metre and a regular number of syllables as the element of perfection in verse.” (HULME, 1908 apud ROBERTS, 1982, p. 264) 12 No original: “(...) momentary phases.” (HULME, 1908 apud ROBERTS, 1982, p. 265) 9 10 FRIEDMAN, E. Traduzindo o verso... 302 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE e hexâmetros com pés jâmbicos, troqueus e anapestos, principalmente, e encerra a passagem com um trímetro. É importante ressaltar também a presença dos pés acéfalos (com apenas uma sílaba, no caso, tônica) no início dos cinco primeiros versos do trecho, porque há certo contorno melódico, por assim dizer, na acentuação de início de verso. O ritmo começa forte, com uma tônica, uma secundária e outra tônica no primeiro verso e vai esmaecendo, até que os dois últimos versos começam com pés jâmbicos, e o trecho se encerra com uma sílaba átona. Em seu ensaio “T. S. Eliot”, Pound (1968) comenta, acerca do vers libre, que, se o autor não imbuir a poesia de alguma invenção temática, é melhor escrever em versos regulares, “que têm certas chances de musicalidade pela forma e outras chances pelo fracasso de se adequar à forma”, porque, no vers libre, “suas chances de musicalidade dependem da sensibilidade e da invenção” (POUND, 1968, p. 422, tradução minha?)13. Pound associa a musicalidade à invenção temática e diz, se referindo à música clássica: “Há, sem dúvida, uma sensação de musicalidade na ‘forma’ do ritmo em uma melodia [...] A criação de tais formas é parte da invenção temática. Alguns músicos conseguem fazer invenções rítmicas e melódicas. Alguns poetas também” (ibid., p. 421, grifo no original, tradução minha)14. Em outro trecho, ele afirma: “Não acho que haja nenhuma necessidade urgente de versos sem nenhuma base rítmica” (ibid., p. 421, tradução minha)15. E, apesar dos inúmeros elogios que rasga a Eliot, discorda do amigo em relação à concepção dele de vers libre, que seria puramente uma evasão habilidosa de versos clássicos: “Seu artigo peca por não levar em conta versos que dependem de No original: “(...) which have certain chances of being musical from their form, and certain other chances of being musical through his failure in fitting the form. In vers libre his musical chances are but in sensitivity and invention.” (POUND, 1968, p. 422) 14 No original: “There is undoubtedly a sense of music that takes count of the ‘shape’ of the rhythm in a melody (…). The creation of such shapes is part of thematic invention. Some musicians have the faculty of invention, rhythmic, melodic. Likewise some poets.” (POUND, 1968, p. 421) 15 No original: “(...) I do not think there is any crying need for verse with absolutely no rhythmical basis.” (POUND, 1968, p. 421) 13 FRIEDMAN, E. Traduzindo o verso... 303 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE quantidade, aliteração, etc.; inclusive, ele escreveu como se todos os versos fossem medidos por acentos” (ibid., p. 421, tradução minha)16. A “poética do fragmento” de Eliot, como caracteriza Ivan Junqueira (2006, p. 19), foi muito influenciada por Jules Laforgue17, poeta simbolista francês cuja poesia, segundo Leonard Unger (UNGER, 1963 apud JUNQUEIRA, 2006, p. 20), foi o ponto de partida do americano, tanto quanto se pode mensurar. Outro elemento essencial de seu trabalho, afirma Junqueira, seria um tipo de antropofagismo: Eliot “desenvolve um sutilíssimo processo de globalização literária que [...] vai aos poucos revitalizando o material ‘tomado por empréstimo’ a este ou àquele autor” (JUNQUEIRA, 2006, p. 20), tornando-os “estranhamente eliotianos” (ibid., p. 20). Ainda, Salingar (1984, p. 443, grifo no original, tradução minha)18 aponta outra faceta dessa poética: é uma “poesia de ‘observações’ escrita do lado de fora”, ou seja, de fora para dentro. Além disso, o crítico concorda com Pound ao falar do domínio do monólogo poético da parte de Eliot e caracteriza sua maestria em versificação como sendo “mais sensível a sutilezas de sensação em formas irregulares que insinuam um padrão do que, via de regra, em estrofes regulares com rimas” (ibid., p. 454, tradução minha)19, confirmando o que o próprio poeta diz. Vejamos, então, exemplos da obra de T. S. Eliot, a começar por um trecho de The Love Song of J. Alfred Prufrock20: No original: “His article was defective in that he omitted all consideration of metres depending on quantity, alliteration, etc.; in fact, he wrote as if all metres were measured by accent.” (POUND, 1968, p. 421). 17 Pound tem essa mesma referência e afirma no ensaio supracitado: “É possível comparar o trabalho do Sr. Eliot com qualquer coisa escrita na França, na Inglaterra ou nos Estados Unidos desde a morte de Jules Laforgue. O leitor não irá encontrar nada melhor e terá muita sorte se encontrar algo que se aproxime dessa qualidade” (POUND, 1965, p. 418, tradução minha). 18 No original: “(...) poetry of ‘observations’, written in some sense from the outside (…)” (SALINGAR, 1984, p. 443). 19 No original: “(...) which is more sensitive to fine shades of feeling in irregular forms hinting at a pattern than it is, as a rule, in regular stanzas with rhyme.” (SALINGAR, 1984, p. 454). 20 Escansão de BRITTO, 2011. 16 FRIEDMAN, E. Traduzindo o verso... 304 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 5 10 ISSN: 2318-1028 \ - / / - / Let us go | then, || you | and I, - / - \ / - / - / When the eve | ning is | spread out | against | the sky - - / - / - \ - / - / (-) Like a pa | tient e | therized | upon | a ta | ble; \ - / / / - / - / Let us go, || through cer | tain half- | desert | ed streets, / - - / The mut | tering | retreats - / / - / \ / - / Of rest | less nights | in one | -night cheap | hotels - / - / - \ - / / And saw | dust res | taurants | with oys | ter-shells: \ / - / - / - \ Streets that fol | low like | a te | dious | argument - - / - - / Of insi | dious | intent - / - - / - / / To lead | you to | an o | verwhelm | ing ques | tion…. - / - / / (-) Oh, do | not ask, || “What is | it?” \ - / / - / (-) Let us go | and make | our vi | sit. (ELIOT, 1963, p. 03) REVISTA VERSALETE || || || || || || || || || || Dos 12 versos, 5 são trímetros e 7 são pentâmetros, e apenas 13 dos 50 pés não são jâmbicos. Quanto à rima, são rimados os versos 1 e 2 (I/sky), 4 e 5 (streets/retreats), 6 e 7 (hotels/shells), 8 e 9 (argument/intent) e 11 e 12 (is it/visit). Os versos 3 e 10 não são rimados. Ou seja, no plano das rimas, Eliot se permite um trabalho menos convencional do que no do metro, que se atém a versos de 3 ou 5 pés. Idealmente, uma tradução precisaria reproduzir os efeitos acima descritos, apoiandose, possivelmente, em hexassílabos e decassílabos (ou algum outro par que estabeleça essa relação de menor-maior). Faço uma escansão21 abaixo da tradução de Junqueira: 21 Por motivos de clareza e compreensão, simplifiquei as escansões das traduções. FRIEDMAN, E. Traduzindo o verso... 305 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 5 10 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE Sigamos então, tu e eu, Enquanto o poente no céu se estende Como um paciente anestesiado sobre a mesa; Sigamos por certas ruas quase ermas, Através dos sussurrantes refúgios De noites indormidas em hotéis baratos, Ao lado de botequins onde a serragem Às conchas das ostras se entrelaça: Ruas que se alongam como um tedioso argumento Cujo insidioso intento É atrair-te a uma angustiante questão... Oh, não perguntes: “Qual?” Sigamos a cumprir nossa visita. (JUNQUEIRA, 2006, p. 69)22 2-5-6-8 2-5-8-10 1-5-6-10-12-14 2-5-7-9-11 3-7-10 2-6-10-12 2-5-7-11 2-5-9 1-5-7-10-13 1-4-6 4-6-9-12 1-4-6 2-6-7-10 Das rimas a serem reproduzidas (versos 1 e 2, 4 e 5, 6 e 7, 8 e 9, 11 e 12), as únicas encontradas na tradução foram dos versos 6, 7 e 8 (barato/serragem/entrelaça) e 9 e 10 (argumento/intento). É uma perda relativamente grande. O metro, ao contrário do que Eliot fez e pregou, não segue regra nenhuma. Os trímetros no original, os versos 1, 5, 9, 11 e 12, foram traduzidos, respectivamente, como um octossílabo, um decassílabo, um hexassílabo, um hexassílabo e um decassílabo. Os pentâmetros no original foram traduzidos como versos variando de 9 a 14 sílabas. Outra mudança importante na tradução foi o acréscimo de um verso. Na verdade, o verso 7 do original (And sawdust restaurants with oyster-shells) foi destrinchado em dois na tradução: “Ao lado de botequins onde a serragem” / “Às conchas das ostras se entrelaça”. Considerando que The Love Song of J. Alfred Prufrock não tem uma forma fixa, ao contrário de um soneto, dividir um verso dessa forma não acarreta muitos problemas. Haroldo de Campos, inclusive, desdobra versos na tradução que propõe a um determinado trecho do “II Fausto” — que Há uma edição atualizada, de 2015, das traduções de Ivan Junqueira. Em relação ao trecho em questão, a única diferença é o v. 8. Na edição revisada: “Se mistura às conchas das ostras:”. (JUNQUEIRA, 2015, p. 61). 22 FRIEDMAN, E. Traduzindo o verso... 306 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE também não apresenta uma forma rígida — e justifica afirmando que foi “a fim de manter a delicadeza e a precisão do volteio goethiano.” (CAMPOS, 2008[1981], p. 200) Vejamos agora os sete primeiros versos de The Waste Land e, imediatamente abaixo, a tradução de Junqueira: 5 5 / - - / / / April | is the | cruel | lest month, || breeding / / - - \ / / Lilacs | out of | the dead | land, || mixing / - - / / Memo | ry and | desire, || stirring \ / \ / Dull roots | with spring | rain. / \ / / (- -) Winter | kept us | warm, || cov | ering / - / - / / Earth in | forget | ful snow, || feeding - / - / / / A lit | tle life | with dried | tubers. (ELIOT, 1963, p. 53) Abril é o mais cruel dos meses, germina Lilases da terra morta, mistura Memória e desejo, aviva Agônicas raízes com a chuva da primavera, O inverno nos agasalhava, envolvendo A terra em neve deslembrada, nutrindo Com secos tubérculos o que ainda restava de vida. (JUNQUEIRA, 2006, p. 103)23 || || || || 2-4-6-8-11 2-5-7-10 2-5-8 2-6-9-12-14 2-4-8-12 2-4-8-11 2-5-8-10-13-16 Percebe-se em A terra desolada o mesmo que em A canção de amor de J. Alfred Prufrock: uma abolição das rimas (total, no caso do trecho acima) e do metro (versos de 3 a 5 pés são traduzidos como versos de 8 a 16 sílabas, o que resulta, entre outras coisas, em uma diferença gritante entre a mancha gráfica dos dois). A evasão do metro Há uma edição atualizada, de 2015, das traduções de Ivan Junqueira. Em relação ao trecho em questão, a única diferença é a inclusão dos gerúndios nos versos 1 a 3, o que constitui rimas completas. Na edição revisada: “Abril é o mais cruel dos meses, germinando / Lilases da terra morta, misturando / Memória e desejo, avivando”. (JUNQUEIRA, 2015, p. 93). 23 FRIEDMAN, E. Traduzindo o verso... 307 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE clássico a que Eliot e Pound se referiam é inexistente. O português Gualter Cunha também propôs uma tradução: 5 Abril é o mês mais cruel, gera Lilases da terra morta, mistura A memória e o desejo, agita Raízes dormentes com chuva da Primavera. || O Inverno aconchegou-nos, cobriu A terra com o esquecimento da neve, alimentou Uma pequena vida com bolbos ressequidos. || (CUNHA, 1999, p. 19) 2-4-7-8 2-5-7-10 3-6-9 2-5-8-(11)-13 2-6-9 2-(6)-8-11-(14)-16 4-6-9-13 A tradução de Cunha, A terra devastada, tem as mesmas características da de Junqueira, como a falta da maior parte das rimas (com exceção da rima gera / primavera) e de um metro clássico em que se ancorar, o que vai contra a liberdade artificial que Eliot defendia. Os versos têm até a mesma variação: de 8 a 16 sílabas (apesar de a tradução do português estar um pouco mais enxuta). Uma tradução possível, que se alinha mais ao que o autor pretendia, segue abaixo: 5 O mês de abril é o mais cruel, florindo Lilases da terra morta, confundindo Memória com desejo, acudindo Raízes fracas com chuvas primaveris. O inverno nos mantinha aquecidos, cobrindo A terra de neve negligente, nutrindo Um pouco de vida com tubérculos secos. || || 2-4-6-8-10 2-5-7-11 2-6-10 2-4-7-(9)-12 2-6-9-12 2-5-9-12 2-5-9-12 Minha tradução não só reproduz todas as rimas, como tem um metro mais coerente: os versos têm entre 10 e 12 sílabas. É uma variação muito menor. Vale notar também que o primeiro verso é um decassílabo perfeitamente jâmbico e que o outro decassílabo é heroico — ou seja, reproduzi um metro clássico na tradução, como o próprio T. S. Eliot descreveu seu verso livre —, e passo a fazer aproximações nos versos seguintes. Além disso, retomo um efeito do original: após três versos terminados com ing (-indo na tradução), Eliot encerra o 4º verso com a sílaba tônica FRIEDMAN, E. Traduzindo o verso... 308 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE de rain. Eu fiz o mesmo com “primaveris”, mantendo /i/ como tônica final. E, se Eliot toma o pentâmetro jâmbico como o centro da poesia anglófona, pode-se argumentar a favor de dar esse mesmo papel ao decassílabo ou ao dodecassílabo na poesia lusófona. No caso acima, pode-se considerar qualquer um dos dois. Há de se acrescentar, também, a predileção de Eliot à fidelidade na tradução. No ensaio “What Dante Means to Me” (1965), baseado em uma conferência dada na Itália, o poeta fala da importância de Dante e de A divina comédia para sua própria produção. Por não falar o idioma, Eliot lia a versão original acompanhada de uma tradução em prosa em inglês, mas criticava tanto traduções em versos brancos como em terza rima do clássico, já que “nenhum outro poeta consegue convencer mais o leitor de que a palavra que ele usou é a palavra que queria e que nenhuma outra serve” (ELIOT, 1965, p. 129, tradução minha)24. No entanto, acerca do trabalho de tradução em si, ele afirmou: [...] um verso diferente é uma forma de pensamento diferente; é um tipo diferente de pontuação, já que as ênfases e pausas para respiração não vêm no mesmo lugar. Dante pensava em terza rima, e um poema deve ser traduzido na forma de pensamento mais próxima possível à original. (ELIOT, 1965, p. 129, grifo no original, tradução minha)25 Como, então, traduzir o verso de T. S. Eliot? A estratégia de Junqueira é abrir mão de praticamente todo aspecto formal da poética eliotiana e traduzir a obra do americano seguindo, talvez, a 1ª fase do modernismo brasileiro (1922-1930), mais voltada para a ruptura com os paradigmas anteriores e para a experimentação, único “denominador comum” (STEGAGNO-PICCHIO, 2004, p. 478) entre as diferentes vertentes ideológicas dos autores da época. Pode-se dizer que Cunha fez algo No original: “(...) because no poet convinces one more completely that the word he has used is the word he wanted, and that no other will do.” (ELIOT, 1965, p. 129) 25 No original: “(…) a different metre is a different mode of thought; it is a different kind of punctuation, for the emphases and the breath pauses do not come in the same place. Dante thought in terza rima, and a poem should be translated as nearly as possible in the same thought-form as the original.” (ELIOT, 1965, p. 129) 24 FRIEDMAN, E. Traduzindo o verso... 309 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE equivalente, apoiando-se nas tradições portuguesas de tradução de poesia. Essa radicalização se revelaria em uma poética sem rimas e sem limitações de metro — como o Eliot à brasileira de Junqueira ou à portuguesa de Cunha. É possível, também, traduzir sua forma ipsis litteris, procurando equivalências para cada verso ou para cada relação entre versos. Por exemplo, se o poema original apresenta uma sequência de versos com 5, 4 e 3 pés, pode ser possível encontrar uma solução em português com, respectivamente, 10, 8 e 6 sílabas, ou então alguma outra sequência decrescente, o que, por si só, estabeleceria uma correspondência com a obra-fonte. O método que apresentei acaba sendo um meio-termo: eu respeito que haja, subjacente, uma forma no poema, mas tento reproduzi-la não exatamente como proposto por Eliot — isto é, com metros ou referências similares —, e sim procurando transmitir, nas palavras de Hulme, um efeito geral (que se dá com um metro relativamente consistente em relação ao original, seguindo a teoria eliotiana acerca da liberdade do verso, com os gerúndios no fim dos versos, escolhendo verbos da 3ª conjugação a fim de reproduzir a rima -ing, e com o esquema rítmico de final de verso, empregando uma distribuição de acentos semelhante à do original). Afinal, como disse o próprio T. S. Eliot (POUND, 1968, p. 421, tradução minha?)26: “Nenhum verso é livre para quem quer fazer um bom trabalho.” REFERÊNCIAS BRITTO, Paulo Henriques. A tradução do “verso liberado” do modernismo anglo-americano. In CONGRESSO INTERNACIONAL DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE LITERATURA COMPARADA, 12., 2011, Curitiba. ________. “Para uma avaliação mais objetiva das traduções de poesia”. In KRAUSE, Gustavo Bernardo. As margens da tradução. Rio de Janeiro: FAPERJ/Caetés/UERJ, 2002. 26 No original: “’No vers is libre for the man who wants to do a good job.’” (POUND, 1968, p. 421). FRIEDMAN, E. Traduzindo o verso... 310 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE CAMPOS, Haroldo de. Deus e o Diabo no Fausto de Goethe. São Paulo: Perspectiva, 2008 [1981]. CUNHA, Gualter. A terra devastada. 1 ed. Lisoba: Relógio D’Água, 1999. ELIOT, Thomas Stearns. “Reflections on vers libre”. In New Statesman, Londres, 1917. Disponível em: <http://tseliot.com/essays/reflections-on-vers-libre> Acesso em: 14 out. 2017. ________. Collected Poems, 1909-1962. Nova York: Harcourt, Brace & World, Inc, 1963. ________. “What Dante Means to Me”. In To Criticize the Critic and Other Writings. Londres: Faber & Faber, 1965. GOLDSTEIN, Norma. Versos, sons, ritmos. 13ª ed. São Paulo: Ática, 2005. HULME, Thomas “A Lecture on Modern Poetry”, [1908]. In ROBERTS, Michael. T. E. Hulme. Londres, Faber & Faber, 1982. Disponível em: <https://www.unidue.de/lyriktheorie/scans/1908_hulme.pdf>. Acesso em 06 jul. 2016. JUNQUEIRA, Ivan. Poesia / T. S. Eliot. 1ª ed. Especial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006. ________. Poesia / T. S. Eliot. Ed. Especial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2015. POUND, Ezra. “T. S. Eliot”. In ELIOT, T. S. (ed.). Literary Essays of Ezra Pound. Nova York: New Directions, 1968. SALINGAR, L. G. “T. S. Eliot: poet and critic”. In FORD, Boris (ed.). The new Pelican guide to English literature Vol. 7: from James to Eliot. Middlesex: Penguin Books, 1984. STEGAGNO-PICCHIO, Luciana. História da literatura brasileira. 2ª ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2004. UNGER, Leonard. T. S Eliot. Trad. Anna Maria Martins. Rio de Janeiro: Liv. Martins Editora, 1963. Recebido em: 10/08/2017 Aceito em: 17/09/2017 FRIEDMAN, E. Traduzindo o verso... 311 PROFESSOR CONVIDADO GUEST PROFESSOR Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE ARTHUR BISPO DO ROSÁRIO: A ARTIMANHA DA ARTE BRASILEIRA ARTHUR BISPO DO ROSÁRIO: THE CUNNING OF BRAZILIAN ART Fabio Akcelrud Durão1 RESUMO: Este texto parte da arte e da biografia de Arthur Bispo do Rosario (1909-1989) para investigar a posição que o sistema brasileiro de arte outorga à produção nacional, desvelando possíveis paradoxos na ‘afirmação’ da arte brasileira que se enxerga em certa crítica. Questionando o próprio ‘lugar’ artístico da produção de Bispo do Rosário, o texto busca repensar, portanto, não apenas a inserção da arte brasileira no panorama mundial, mas, especialmente, as formas empregadas pela própria crítica brasileira para buscar essa inserção. Palavras-chave: arte brasileira, crítica de arte, internacionalização. ABSTRACT: This essay analyses the work and the life of Arthur Bispo do Rosario (1909-1989) in order to reconsider the position conceded to Brazilian art by its own critical system, unveiling certain possibile paradoxes in the ‘affirmation’ of Brazilian art, as seen in some critical positions. In questioning even the artistical ‘place’ of Rosario’s production, the essay tries to rethink not only the insertion of Brazilian art in the world scene but, mainly, the ways Brazilian criticism itself has used to look for this insertion. Keywords: brazilian art, art criticismo, internationalization. NOTA INTRODUTÓRIA Este texto foi originariamente publicado em inglês, na revista Wasafiri, publicada pela Open University e Routledge. O volume foi dedicado à cultura brasileira contemporânea, e foi editado por Suman Gupta e por mim.2 Como ele se dirige a um público estrangeiro, muitas referências óbvias a brasileiros tiveram de ser explicadas, o que não é necessariamente ruim, pois um pouco de estranhamento não faz mal a ninguém. Porém, a inclusão em uma revista voltada à crítica literária pode parecer 1 2 UNICAMP. Wasafiri, Vol. 30, n. 2, The Brazilian Contemporary. Junho de 2015, p. 32 a 39. DURÃO, F. A. Arthur Bispo do... 313 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE algo fora de propósito, e por isso merece uma justificativa que vá além da ladainha já tão desgastada da interdisciplinaridade. Defendo no texto que, a partir do processo interno de funcionamento dos objetos de Bispo do Rosário, uma lógica particular da arte brasileira pode ser distinguida. Quando levados para o mundo da arte, tornam-se problemáticos em diversos sentidos, porém quando considerados por si sós, desvinculados de qualquer predicação, forçam um reajuste do que se entende por arte. Embora essa dinâmica deslocalizadora seja mais facilmente perceptível em coisas do que em palavras, creio que poderia ser extrapolada com proveito das artes plásticas para a literatura. Como os artefatos de Bispo do Rosário iluminariam a literatura marginal brasileira? Como poderiam marginalizar a produção literária nacional? Daí a ideia de trazer o texto para a Versalete: não como um artigo pronto, uma espécie de ponto final de um pesquisador sênior, mas um ensaio que propõe uma reflexão mais ampla a partir de si, com tudo que ela possa ter de incerto e tateante. I. A Bienal de São Paulo é, de longe, o mais importante evento de arte no Brasil. A sua trigésima edição, intitulada “A Iminência das Poéticas”, ocorreu entre 7 e 9 de dezembro de 2012, em seu lugar de costume, o Pavilhão Ciccillo Matarazzo do Parque do Ibirapuera, e atingiu um público de mais de 520 mil pessoas. Com um apoio estatal generoso, publicidade abundante e entrada gratuita, a Bienal pertence naturalmente ao tecido dos grandes eventos da cidade. Ano vai, ano vem, a Bienal aparece nas listas de atividades populares como a São Paulo Fashion Week, a Feira do Livro, entre outras. Como sempre, bastava adentrar o Pavilhão do Ibirapuera para avistar as marés de gente — ainda que essas pessoas não fossem os habituais posers e metidos das galerias de arte; mas sim crianças em idade escolar, adolescentes beijando-se em meio às instalações, despretensiosas famílias vestindo jeans e camisas de time de futebol. DURÃO, F. A. Arthur Bispo do... 314 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE Em uma palavra, o povo comum. Bastava olhar tudo isso para se ter a impressão de que arte e comunidade não são termos mutuamente excludentes, que a crise da estética — a incerteza relativa ao status da arte — não seria tão inescapável assim. Mas surge uma dúvida: as barulhentas crianças correndo de um lado para o outro, os adolescentes e seus hormônios pensando obviamente em outras coisas, a família se aproveitando da entrada gratuita, eles todos poderiam estar curtindo a experiência da arte de uma maneira bastante diferente, talvez até mesmo oposta à maneira (que pode ser dita) correta. A questão é séria, e de maneira alguma retórica: a Bienal é um verdadeiro evento artístico? É possível que ela seja compreendida como o que seria uma genuína experiência artística; ou ela é nada menos que um simulacro de si mesma, entretenimento superficial e frívolo como qualquer outro na cidade de São Paulo, sendo sua única particularidade advinda do capital cultural associado à palavra “arte”? Para colocar de uma maneira algo extremada, se tomarmos em consideração o peso da Bienal, seu fracasso em um vazio retumbante, um nada em meio a tantas coisas e trabalhos, poderia ser indicativo do destino da arte, como um todo, no Brasil. A proposição de que a verdadeira arte jamais foi feita no país irá certamente soar exagerada, senão absurda, para leitores do mundo desenvolvido; ainda assim, essa persistente sensação de inautenticidade tem sido um topos persistente na crítica cultural brasileira. Foi celebremente articulada pelo crítico de cinema Paulo Emílio Salles Gomes, quando observou em uma conhecida sentença que: “Não somos europeus nem americanos do norte, mas, destituídos de cultura original, nada nos é estrangeiro, pois tudo o é. A penosa construção de nós mesmos se desenvolve na dialética rarefeita entre o não ser e o ser outro.” (GOMES, 1997, p.90)3 Esse desejo pelo genuíno pode ser explicado, até certo ponto, pelas condições da colonização que formatou o país. Pois, ao contrário de outras nações subdesenvolvidas como o Egito e a Índia — que ainda são assombradas pelas antigas civilizações nãoVer também SCHWARZ, Roberto. “Nacional por Subtração”. In _____. Que Horas São? São Paulo: Companhia das Letras, 1987, p. 29-48. 3 DURÃO, F. A. Arthur Bispo do... 315 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE ocidentais que as precederam —, ou o Peru e a Bolívia, formadas a partir da extinção de grandes impérios, o Brasil nunca teve uma sociedade pré-moderna tecnicamente avançada em seu passado. As populações indígenas foram dizimadas pela chegada dos portugueses e finalmente absorvidas pelas culturas conflituosas e mais fortes trazidas pelos brancos e africanos. Certamente, esse sentimento de inautenticidade pode projetar na Europa uma sensação de normatividade, como se lá a arte tivesse o seu lugar apropriado, não problemático. De todo modo, não faz sentido lógico que na Europa o caráter orgânico da arte seja positivo ou não-ideológico, apenas porque no Brasil a arte pode parecer tão facilmente artificial. Seja como for, a possibilidade de imaginar o todo da arte como não-verdadeiro é epistemologicamente rica e não tão explorada em outros contextos. Nesse ponto de vista, apenas trabalhos que de alguma maneira tocaram esse complicado estado de coisas — como a obra de Machado de Assis, por exemplo — poderiam enfaticamente receber o rótulo de “arte”, e não os trabalhos que celebram as características brasileiras, digamos, a natureza exuberante do país, seu povo amigável e espontâneo, e por aí vai. Todavia, no momento presente isso seria dramático de uma maneira peculiar, pois, como uma nação atrasada que nunca conseguiu criar uma tradição emancipada de seu próprio passado, o Brasil teria finalmente conseguido reunir os recursos necessários para a produção artística (com entrada gratuita e tudo), precisamente em um tempo em que o conceito de arte estaria demasiado desvanecido para permanecer de pé4. Se a Bienal de repente parece adquirir um caráter tão decisivo, devem existir maneiras de determinar se qualquer coisa de estético aconteceu nela. Mesmo se alguém pudesse tentar estabelecer empiricamente se existiu arte na Bienal, através de questionários, é mais interessante investigar como a hesitação relativa à existência da arte no Brasil habita as obras, elas mesmas; como Interessantemente, essa narrativa do atraso pode ser posta em paralelo com o desenvolvimentismo na história do país, pois quando o Brasil alcançou um nível em que a modernização finalmente parecia iminente, ela estava atrasada demais para os projetos nacionais, perante a dominância do capital global e os custos insuportáveis da modernização nacional. 4 DURÃO, F. A. Arthur Bispo do... 316 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE os artefatos podem incorporar, na sua própria forma de existência, tanto a impossibilidade quanto a promessa da arte. Que as obras de arte são autocontraditórias; que contém em si campos de força que ocupam polos opostos, não se trata de uma ideia nova, mas sim de uma referência à estética materialista de THeodor W. Adorno. Por outro lado, as maneiras em que a não-identidade é expressa no pensamento de Adorno fecham os olhos para a questão do subdesenvolvimento e todos os problemas relacionados a ele, como a forma peculiar adotada pelo progresso (não como avanço verdadeiro, mas buscando sempre chegar ao patamar dos países desenvolvidos); a natureza desigual mas combinada do atraso (nunca apenas passos que ficam para trás, mas em si o produto do avanço em um outro lugar); e o estabelecimento de tipos específicos de relações de dependência, entre outros. A tentativa aqui é de desenvolver uma leitura que faça justiça à dialética da arte no Brasil, não partindo de pré-suposições abstratas ou gerais, mas através da imersão nos objetos e no que é feito com eles, algo enraizado nas condições concretas da produção e da recepção. Seria difícil não reconhecer que o trabalho de Arthur Bispo do Rosário manteve uma posição, se não de uma centralidade rigorosa, ao menos de preeminência na Bienal de São Paulo de 2012. Suas obras não foram apenas objeto de ampla cobertura midiática e atenção do público 5, mas também suas técnicas de composição e procedimentos estéticos podiam ser detectados, coincidentemente ou não, em obras de outros artistas — brasileiros e estrangeiros. O minimalismo de Rosário, sua preferência pela assemblage e bricolage, optando pelo lixo como material, a refuncionalização das coisas do dia-a-dia, a mistura de palavras com formas e cores e a submersão completa nos objetos que criava — o que gravava neles signos de muito trabalho – são apenas alguns dos traços definidores de um tipo de prática estética que poderia ser identificado, de uma maneira ou de outra, em artistas como Alexandre Uma busca no Google pelas palavras-chave “Bispo do Rosário”, “Bienal de São Paulo” e “2012” encontrou cerca de 37 mil resultados, em 28 de junho de 2013. 5 DURÃO, F. A. Arthur Bispo do... 317 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE Navarro Moreira, Anna Oppermann, August Sander, Benet Ressell, Cadu, e F.marquespenteado, entre muitos outros na Bienal6. Em suma, a força do trabalho de Rosário poderia ser reorganizada em torno de boa parte da arte eletrônica/nãoeletrônica que esteve presente na Bienal. Certamente, Bispo (como muitos brasileiros o chamam) não era um desconhecido da cena artística do país; sua presença na exposição marcou uma segunda onda de interesse por seu trabalho. Em 1982, sua obra foi apresentada na exposição coletiva “À Margem da Vida”, e em 1995 ele chegou ao auge de sua fama quando foi escolhido para representar o Brasil na quadragésima sexta edição da Bienal de Veneza (à qual retornarei). Rosário morreu em 1989, antes de poder ver seu trabalho exibido no exterior. Apesar disso, mesmo se estivesse vivo, certamente seria indiferente à adrenalina do estrelato, ao menos na maneira como concebemos o termo, centrado em uma imagem inflada do eu, pois Rosário não era o que se pode pensar que um artista é. Ver o Catálogo da Bienal de São Paulo de 2012. PÉREZ-ORAMAS, Luis, et al. Catálogo da 38a Bienal de São Paulo: a iminência das poéticas. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 2012. 6 DURÃO, F. A. Arthur Bispo do... 318 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE FIGURA 1 — Arthur Bispo do Rosário. Regador, s/d. Tecido, fio e metal. 52x7x2 cm. Fotog. Rodrigo Lopes. Col. Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea Arthur Bispo do Rosário nasceu em 16 de março de 19117, apenas vinte e nove anos depois da Abolição da Escravatura, em Japaratuba, na (então) empobrecida província de Sergipe. Ele começou como aprendiz de marinheiro na Marinha em fevereiro de 1925, na cidade de Aracaju, a capital do estado, antes de ser transferido para o Rio de Janeiro, então capital do país. Expulso da Marinha em julho de 1933 — de acordo com seu próprio testemunho, porque os oficiais não gostavam da sua 7 A biografia padrão de Rosário é a de Hidalgo (2006). DURÃO, F. A. Arthur Bispo do... 319 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE prática semiprofissional de boxe (HIDALGO, 1996, p. 79)8 —, ele trabalhou até 1937 na companhia elétrica do Rio de Janeiro, até finalmente fixar-se como serviçal e faztudo para a rica família carioca do advogado Humberto Magalhães Leoni. As relações de trabalho eram servis: Rosário vivia na propriedade e seu trabalho era pago com comida, teto e as necessidades básicas da vida. Havia jurado lealdade à família Leoni. Era obediente ao extremo: alguns dizem que uma vez ofereceu as próprias mãos como cinzeiro para o charuto de seu mestre (HIDALGO, 1996, p. 49; DANTAS, 2009, p. 30). Na véspera de 22 de dezembro de 1938, isso tudo iria mudar. Rosário acordou em um transe: acompanhado por seus anjos ele foi a várias igrejas da cidade, chegando finalmente ao Mosteiro de São Bento, onde anunciou, para a surpresa dos homens de batina, que estava lá como enviado de Deus, um novo Messias escolhido por Ele para redimir a humanidade. Dois dias depois, foi preso por perturbação da ordem pública. Em sua ficha, parcas palavras descrevem seu perfil legal: negro, sem documentos, indigente. Ele foi então rapidamente internado no Hospício Dom Pedro II, o primeiro asilo de pessoas insanas no país, que já havia abrigado o escritor negro Lima Barreto (1881-1922). Após um mês, Rosário foi transferido para a Colônia Juliano Moreira, onde foi diagnosticado com esquizofrenia paranoica, e recebeu o cartão de paciente número 01662. Ele viveria lá por mais de cinquenta anos, até a sua morte, uma estadia interrompida por vários períodos no mundo exterior, com a família Leoni. Muito depois, quando a vida na Colônia Juliano Moreira tornou-se rotina, Rosário começou a trabalhar com miniaturas e assemblages — ele acreditava que Deus o havia instruído a coletar, replicar e catalogar todos os objetos do mundo, para que pudessem ser redimidos no evento do Apocalipse. Isso também se aplicava às pessoas, o que explica o grande número de nomes próprios em muitos de seus artefatos. Sua carreira durou de 1928 a 1936. Apesar de parecer ter vencido apenas uma luta, há vários artigos de jornais dessa época que atestam sua agressividade e resistência. “Como tinha ossos cranianos e faciais particularmente salientes, ele costumava provocar os seus oponentes a o socar onde iriam machucar as mãos” (CORPAS & MORAIS in COUTINHO, 2007, p. 34). Teria isso contribuído para a sua doença mental? 8 DURÃO, F. A. Arthur Bispo do... 320 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE Em 1980, Rosário apareceu em uma reportagem do programa “Fantástico”, da Rede Globo. A ideia inicial era mostrar a vida dos internos do asilo, mas Rosário roubou a cena. Dois anos depois, o crítico de arte Frederico Morais incluiu algumas de suas peças na exposição “À Margem da Vida” no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, junto com obras de pacientes de diversas instituições psiquiátricas. Em 1989, a Associação dos Artistas da Colônia Juliano Moreira foi fundada com o propósito de preservar a obra de Rosário, que foi oficialmente declarada como de interesse público pelo Instituto Estadual do Patrimônio Artístico e Cultural do Estado do Rio de Janeiro (Inepac). Em 2003, a exposição “Ordenação e Vertigem” foi organizada pelos curadores Jane de Almeida e Jorge Anthonio e Silva no Centro Cultural Banco do Brasil, com o objetivo explícito de “encorajar artistas contemporâneos a discutir e reinterpretar o trabalho de Arthur Bispo do Rosário”9, colocando Rosário no centro da arte brasileira e encorajando outros artistas a identificarem-se e serem influenciados por ele. Com isso, o processo de incorporação e legitimação estaria completo; a Bienal de 2012 serviria apenas para finalmente corroborar esse processo no evento de arte mais importante do país, enquanto o uso da sua arte para representar o Brasil na Biennale de Veneza de 2013 enfatizou o seu crescente reconhecimento internacional. Suas obras de arte foram catalogadas e totalizam 804 peças, que estão expostas no Museu Bispo do Rosário, localizado na Colônia Juliano Moreira. Tendo em vista esse quase inquestionável e unânime sucesso10, pode-se sentir uma necessidade de buscar compreender o que está em jogo no caso de Rosário, e na constituição do conceito de arte no Brasil. Talvez o melhor lugar para começar seja a escrita acadêmica dedicada a Rosário. Uma recepção tão entusiástica em museus e exposições não poderia ter ocorrido sem Livreto da Exibição, 2, disponível em <http://www.janedealmeida.com/vertigo.pdf> A crítica da suposição de que Rosário era um artista tem sido restrita a artigos de jornais (por exemplo, GULLAR, Ferreira. “Arthur Bispo e a Arte Contemporânea”. Folha de São Paulo, Caderno Ilustrada, 14 de agosto de 2011); nenhuma das obras bibliográficas mais extensas consultadas para este trabalho contesta essa posição. 9 10 DURÃO, F. A. Arthur Bispo do... 321 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE uma crítica positiva. De fato, na crescente biobibliografia11 pode-se encontrar uma geral e quase indisputada aprovação — interessantemente, uma aprovação que surge de uma variedade de diferentes perspectivas, que buscam justificar o valor estético das obras de arte. No nível mais baixo do espectro encontram-se aqueles que usam Rosário para sustentar uma postura irracionalista, quase mística (ver FIGUEIREDO, 2012; BÊTA, 2012), louvando a imaginação livre que se ergue acima da racionalidade inescapavelmente opressiva. Trabalhos acadêmicos mais sérios constroem Rosário, de uma maneira ou de outra, como um herói ou uma vítima e, mais comumente, uma combinação de ambos. Isso fica evidente em estudos biográficos da arte de Rosário (ver HIDALGO, 1996) e em escritos mais teóricos. Partindo de uma perspectiva jungiana, Dantas (2009) vê nele um arquétipo do aventureiro que sacraliza o mundo; Burrowes (1999) descreve uma poética deleuziana de fluxos e correntezas em seus objetos de arte; Seligmann Silva (2007, p. 144), após observar que “Bispo é reconhecido como uma espécie de ‘reencarnação’ de aclamados ícones da modernidade, como Duchamp, Arman, César, Andy Warhol, e como irmão de Oiticica, Peter Greenaway, entre outros.”, aplica a Rosário a teoria do colecionar de Benjamin, assim como as divagações dos alemães do início do romantismo sobre a loucura; Maciel (in Coutinho, Carvalho e Moreira, 2007) vê a obra de Rosário como uma enciclopédia, e a compara à ideia original de Iluminismo do século XVIII, de maneira a mostrar a impossibilidade de se catalogar o mundo. E por aí vai… Nesse momento, é possível observar que o visível processo de institucionalização deveria levantar suspeitas em relação à caracterização de Rosário como um marginal, uma figura oprimida. A sua vitimização deve bastante à facilidade com que a crítica do poder de Foucault foi recebida pelos intelectuais brasileiros como desvalorização da razão, per se. Essa leitura errônea tem adquirido força de lugarCorpas & Morais listam cerca de nove livros, vinte oito capítulos de livros, cinquenta e nove artigos, seis teses de doutorado e vinte dissertações de mestrado, além de mais de 200 artigos de jornais e revistas (in COUTINHO, 2007, p. 281-90). 11 DURÃO, F. A. Arthur Bispo do... 322 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE comum, funcionando então como um pressuposto a favor do qual não é necessário argumentar. Dessa maneira, as instituições psiquiátricas de qualquer tipo aparecem como inerentemente más, não importando o que ocorre dentro delas. A ironia aqui, em contrapartida, é que quanto mais o hospício, como uma instituição, é criticado, menos o caráter institucional da arte vem à tona. O denominador comum desses estudos — o que subjaz a toda essa obra crescente — é a inquestionável e largamente conhecida crença de que Bispo foi um artista. Isso está longe de ser óbvio: de fato, é precisamente essa operação, de trazer imediatamente até o conceito de arte uma pessoa imensamente criativa, mentalmente aflita, que deve ser desafiada. Não é difícil apontar a miríade de problemas que surge desse pressuposto. Em primeiro lugar, simplesmente situar Bispo do Rosário dentro do espectro da arte é ignorar o contexto e as intenções em que todos os seus objetos foram criados. Apesar de ser possível propor que as condições precedentes à criação de qualquer coisa são irrelevantes diante do resultado, essa argumentação não é comumente levantada em defesa do caráter artístico de materiais anteriormente não-artísticos que surgem de fontes moralmente questionáveis. Você nunca encontrará uma estetização da parafernália dos campos de concentração ou dos objetos pessoais de Hitler. Aqueles que estudaram a teoria literária irão relembrar-nos que, desde pelo menos os anos 1940 e os New Critics, as intenções do autor têm sido consideradas irrelevantes em relação ao produto final, mas esse princípio ignora o grau, certamente limitado, de controle que o artista tem sobre o seu material. Se não uma força absolutamente determinante — uma clara origem de onde surge todo o resto —, a intenção permanece sendo um dos componentes das obras de arte12. Ou, ainda pior, como se poderia reagir a uma passagem como esta: Para interessantes comentários sobre a impossibilidade de eliminar a intenção das obras de arte, ver Adorno (Ideologia da Estética, 1997, p. 198-200). 12 DURÃO, F. A. Arthur Bispo do... 323 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE Frederico Morais me disse, cinco anos atrás [na primeira exposição dedicada a Rosário, na Escola de Arte do Parque Lage, em 1989], em uma entrevista, que já no seu primeiro encontro com Arthur Bispo do Rosário ele propôs organizar uma grande exposição de seu universo. Ele estava disposto a disponibilizar o Museu de Arte Moderna, onde Bispo poderia ter até mesmo seu próprio quarto, se não quisesse ficar longe do seu trabalho. Mas Bispo rejeitou ‘terminantemente’, dizendo que ‘não tinha nada a ver’ com a arte, e que eram registros o que ele fazia. (BURROWES, 1999, p. 71) Ou ainda, nas palavras do curador Frederico Morais: Conversamos por uma hora e lhe ofereci o segundo andar inteiro da área de exposição do Museu de Arte Moderna do Rio [o melhor espaço]. Ele não quis, e afirmou que seus trabalhos eram apenas registros, e que não poderia ficar sem eles. Então eu lhe ofereci um saguão com dormitório na mesma área, para que ele acompanhasse a exposição 24h por dia. Mais uma vez, ele recusou. (in COUTINHO, 2007, p. 24) Tendo em conta a recusa explícita de ser visto como artista, o gesto que converte Rosário em tal figura não pode ser dissociado da violência. É irrelevante o quão libertadora a arte pode ser, vista pelos críticos; aqui, eles são agentes da repressão da loucura.13 Isso nos leva ao problema da biografia de Rosário. A maior parte dos comentaristas argumenta que o seu trabalho se sustenta por si só, sem necessitar de elucidações biográficas. Alguns podem até mesmo defender que a informação sobre sua vida pode prejudicar a experiência imediata das suas peças. Apesar de todos os detratores, é fato que virtualmente tudo que foi escrito sobre Rosário, de uma maneira ou de outra, menciona o seu histórico de doença mental. Na verdade, é possível sugerir que o impulso biográfico está no centro da maioria do discurso crítico sobre ele. A Assim, notamos o senso de injustiça e a falta de respeito para com os mortos no tom levemente triunfante de Morais (2007, p. 29): “Finalmente, em 19 de janeiro de 1993, três anos e meio depois de sua morte, eu pude realizar meu antigo sonho de montar uma exposição sobre Bispo do Rosário — aquela que ele tinha rejeitado em nosso primeiro encontro — no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro.” 13 DURÃO, F. A. Arthur Bispo do... 324 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE presença da vida de Rosário é tão forte no trabalho dos críticos que fica difícil imaginar a existência dos objetos para além dela; é por ser tão penetrante que não se pode esquecer a biografia de Rosário tão facilmente. Além disso, o apelo da história de vida de Rosário é geralmente seletivo, e todas as características regressivas de sua personalidade são normalmente vistas como curiosidades, e apresentadas como anedotas. Sua adoração pela hierarquia e pela submissão já foram tratadas; já sua moral era vitoriana, e suas definições de gênero, extremamente normativas e inflexíveis. Em 1962, Rosário foi empregado (mais uma vez, sem salário) como zelador na clínica AMIU, de propriedade do cunhado de Humberto Leoni. Ele teve de sair e retornar à Colônia depois de sinais de agressividade contra as enfermeiras, motivada pelas vestimentas e pelo comportamento delas, que, para Rosário, eram demasiado liberais. O oposto dessa imoralidade Rosário encontrou em Rosangela Maria Grillo, uma estudante de psicologia que era estagiária da Colônia. Sua musa, ela era vista por ele como a perfeição da pureza, e está presente em várias de suas obras.14 Tudo isso tem uma origem claramente sexual, e por mais que seja sempre possível dizer que seus objetos não podem ser reduzidos à repressão sexual como forma de causalidade, simplesmente ignorar essa fonte particular representa um empobrecimento do entendimento e uma perda de sentido. Finalmente, para contrapor a visão de que Rosário era apenas a vítima de um sistema ameaçador, é necessário mencionar que, quando não estava em surto, ele ajudava o pessoal da enfermagem a controlar os outros internos; aqui, ele era um colaborador e um agente da repressão. Outra dificuldade tem a ver com a força exercida dentro da arte pelo próprio passado da arte, que, no caso de Rosário, é inexistente. Mais uma vez, um crítico cético poderia lembrar-nos que, nos últimos cem anos, a arte tem se rebelado contra a tradição, e que o desejo interno da arte de destruir suas convenções tem sido uma A maneira como Grillo lidou com Rosário foi, em si mesma, digna de nota. Todos os seus esforços foram dirigidos a trazê-lo à realidade e fazê-lo desistir de suas fantasias. Isso contrasta com a romantização da loucura e os disparates contra a razão levados a cabo por muitos dos comentaristas de Rosário. 14 DURÃO, F. A. Arthur Bispo do... 325 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE força importante no seu desenvolvimento. A falta de conexão de Rosário com a arte que o precede trabalharia apenas em seu benefício. Ainda assim, não é necessário apontar que a negação do passado carrega em si mesma aquilo que nega; é necessário apenas comparar a “Roda da Fortuna” de Rosário com a “Roda de Bicicleta” de Duchamp (1951) para envergonhar-se. FIGURA 2 — Marcel Duchamp, Roda de bicicleta (1951). DURÃO, F. A. Arthur Bispo do... 326 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE FIGURA 3 — Arthur Bispo do Rosário. Roda da fortuna, s/d. Metal, tecido, fio e plástico. 67x29x51cm. Fotog. Rodrigo Lopes. Col. Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea DURÃO, F. A. Arthur Bispo do... 327 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE A comparação, nesse caso, só pode ser relevante na medida em que se suponha que Rosário não tinha conhecimento da obra de Duchamp e não estava copiando aquele artista. Para o “brasileiro maluco” tornar-se artista, ele não pode pertencer ao mundo da arte. Não há algo de condescendente nisso, em se deixar de contrastar os trabalhos e de chegar a uma opinião por meio do confronto? O mesmo se aplicaria à crueza e ao primitivismo de Rosário. Seus materiais não eram adequadamente escolhidos; na verdade, eram o que ele conseguia através de visitantes ou por meio de trocas com outros internos; ou seja, ele tinha que se virar com o que tinha à mão. Seus famosos “ORFAs” (Objetos Recobertos de Fio Azul) foram criados revestindo com um fio azul, retirado de seu próprio uniforme, diversos objetos, decompondo assim a sua vestimenta. A necessidade e a escassez que constituem o mundo representativo de Rosário obscurecem suas limitações técnicas. Tomemos como exemplo o seu trabalho em tecido: erros ortográficos como bolça (bolsa) ou o universo restrito de onde os objetos mencionados são tirados (lápis, papel, tomate, etc.) são mais sinais de pobreza e de privação do que estratégias composicionais originadas na liberdade. DURÃO, F. A. Arthur Bispo do... 328 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE FIGURA 4 — Arthur Bispo do Rosário, Cuidado, veneno. s/d. Madeira, tecido, fio e metal, 93x74cm. Fotog. Rodrigo Lopes. Coleção Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea. DURÃO, F. A. Arthur Bispo do... 329 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE A mesma crítica pode ser levantada no que se refere a duas marcas típicas dos objetos de Rosário. Em um mundo saturado e governado por máquinas, de motores a computadores, o seu caráter artesanal é refrescante; ele ressalta a materialidade das coisas, sua concretude — mas não o mundo que Bispo habitava. A mão não era o outro da máquina, mas era em si uma ferramenta de significado. Em segundo lugar, a natureza infantil de boa parte de sua produção, da costura aos brinquedos em si, pode aparecer como “o outro” frente à seriedade, à pompa e à pretensão que tão comumente afligem a arte contemporânea. Mais uma vez, em Rosário, elas não são o verso de uma estética cerebral, mas limitações técnicas que derivam da falta de treinamento formal e da precariedade das ferramentas com que trabalhava. Uma lógica similar está presente nas estratégias composicionais. Jorge Anthonio e Silva (2003, p. 60-66) identifica quatro procedimentos principais na obra de Rosário: a ordenação, o catálogo, o enchimento e o embrulho. É um acerto, mas também leva a conclusões errôneas se pretende evocar uma produção artística desinteressada, pois, para Rosário, muito além de técnicas, esses processos são meios de lidar com o mundo. As assemblages tentam incorporar o ambiente; elas põem em ordem aquilo que seria transitório. Os ORFAs, por outro lado, buscavam fazer do mundo o que é por meio do embrulho. Tomemos como exemplo o regador. Em vez de dar vida ao nãoexistente ou ao novo, ele busca fixar as coisas como são, privando-as de um ameaçador sentido de irrealidade. O trabalho envolvido em sua elaboração garante que seja o que é, e é por isso que esse ORFA, assim como muitos outros, tem que ter o seu nome “Regador”, para que continue sendo o objeto que é. Em suma, junto com qualquer tipo de existência independente que possam ter, esses artefatos devem também ser vistos como sintomas, como um esforço real e doloroso para fazer sentido, para se fazer são. Mais ainda, e para continuar abordando sintomas, é interessante imaginar se boa parte da resposta aos objetos de Rosário não pode provir de um complexo de DURÃO, F. A. Arthur Bispo do... 330 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE inferioridade particularmente brasileiro. Lendo a bibliografia a seu respeito, é possível perceber o tom sutil, mas inquestionável, de satisfação que sublinha o que se publicou. O fato de que um brasileiro sem estudo possa ser apresentado na Bienal de Veneza é comumente citado como fonte de orgulho. E ainda assim, o que está em jogo aqui é uma sutil lógica colonizadora, pois, se de um lado os organizadores deixam os críticos brasileiros determinarem seus representantes nacionais, de outro a arte educada, estudada (sarcasticamente dita “oficial”), feita no Brasil é diminuída, possivelmente de maneiras que confirmem as credenciais de Veneza como um centro de reconhecimento e renascimento artístico. Aqui encontramos um topos comum à crítica cultural brasileira, que, enquanto nota a natureza precária e deficiente da alta cultura e de suas instituições — incluindo as de educação — celebra a cultura popular, exaltando sua espontaneidade e sua criatividade.15 Nada se encaixa melhor nessa estrutura de sentimento do que um indivíduo mentalmente enfermo que, sem ter uma educação, ignorando todo o mundo da arte e seus prestigiosos participantes, criou um opulento universo próprio. O último argumento aqui é ao mesmo tempo o mais forte e o mais fraco. É o mais fraco por ser o menos relacionado à estética; e é o mais forte, pois é o que está mais intimamente conectado com a motivação que inspirou as criações de Rosário, especificamente que seus objetos se originaram da dor. Apesar de toda a tentação de se romantizar a doença mental, apesar de todo o desejo de ver os pacientes como vítimas de uma razão dominante, é impossível negar que elas são uma enfermidade, que faz o indivíduo sofrer (mesmo que concordemos que a intenção da cura muitas vezes piora e aprofunda a doença). A necessidade de ordenar, de organizar as coisas, de produzir objetos fazia parte de um esforço psíquico de lidar com o mundo, de ainda conseguir identificar-se com ele. Se razão é controle, é porque se origina da Para um exemplo famoso e recente, ver: WISNIK, José Miguel. Machado Maxixe. São Paulo: Publifolha, 2008. 15 DURÃO, F. A. Arthur Bispo do... 331 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE necessidade de autopreservação, de dominar aquilo que é ameaçador na natureza, mas que parece ter se tornado invisível, hoje em dia.16 É por isso que podemos nos sentir incomodados ao ler o volume bilíngue de Lázaro (2012), luxuosamente ilustrado e impresso, com suas 304 páginas grandes de papel cuchê, ou a ricamente apresentada série de fotografias de Walter Firmo. Não há uma incompatibilidade entre um material tão rico e a miséria em que padeceu Rosário?17 Para concluir, então, o mundo da arte não era o seu, e trazê-lo para dentro dele gerou dificuldades que eventualmente impediram a apreciação adequada da sua produção. Incidentalmente, o conceito de art brut, aquele tipo de produção estética levada a cabo pelos excluídos da chamada arte tradicional, não resolve o problema; meramente nomeia e sugere uma teoria. Em verdade, os fãs de Rosário, o artista, tendem a não gostar do termo — exatamente como rejeitam o rótulo de arte naïve — que rebaixa Bispo a uma categoria geral. Seja como for, ao invés de uma verdadeira experiência estética, a adaptação mais-que-perfeita pelas instituições artísticas da imensa obra de um criador que jamais se imaginou como autor e que pôde apenas criticar de maneira muito fraca a esfera em que estava sendo colocado — esse gesto de inclusão acaba corroborando a sensação de inautenticidade mencionada anteriormente, a persistente questão de ser de fato a coisa real. Que no momento atual tudo esteja ricamente digitalizado e abundantemente comentado não altera o caráter do fenômeno, apenas aumenta a magnitude da suspeita de fraude. Sobre a conexão entre a barbárie e a falta de visibilidade, ver HULLOT-KENTOR, Robert. “What barbarism is?” In DURÃO, F. A. (org.). Culture Industry Today. Newcastle: Cambridge Scholars Publishing, 2010. 17 Realmente, seria liberador imaginar como Rosário poderia desfuncionalizar esse livro e utilizá-lo em seu trabalho. 16 DURÃO, F. A. Arthur Bispo do... 332 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE II. Se há algo de bárbaro em não se reconhecer o contexto original da produção de Rosário, se é inadequado (para dizer o mínimo) simplesmente inserir seus objetos na esfera da arte, isso não significa que eles não terão conexão alguma com ela. Tudo muda quando, ao invés de inicialmente considerarmos Rosário como um artista, começamos por aceitar sua doença mental. Ele então deixa de ser um gênio solitário de poderes criativos inexplicáveis e torna-se parte de uma longa história de insanidade produtiva e fanatismo no Brasil. Trata-se de uma história que inclui figuras como Antônio Conselheiro, o líder religioso da Revolta de Canudos (ver CUNHA, 2010), assim como os escritores Lima Barreto e Qorpo Santo. Na Colônia Juliano Moreira, os registros de uma outra interna, Stela do Patrocínio, foram transcritos em livro (PATROCÍNIO, 2001). O caso mais interessante para os nossos própositos é o de José Datrino (ver GUELMAN, 2009; GUELMAN, AMARAL & KUTASSY, 2011), o Profeta Gentileza, cuja comparação com Rosário pode ser frutífera. Também carioca, ele preencheu cinquenta e seis vigas dos viadutos do Rio com sua filosofia, palavras malescritas que advogavam a gentileza, opondo-se ao demônio e ao capitalismo. Se Rosário se definia pela concentração nos detalhes, para Gentileza era a expansão no domínio público; se o primeiro era alheio às pessoas, o segundo buscava conectar-se com os habitantes da cidade. Apesar de tudo, em ambos os casos, suas produções eram não apenas o resultado de mentes inquietas, mas também da exclusão social. Uma vez que percebemos que o caso de Rosário não era isolado (e então nos tornamos capazes de ponderar a relação de causalidade ao menos parcial entre ambiente social e colapso psicológico), é possível transformar seus objetos naquilo que são, e não em obras de arte a priori. Sua origem no delírio é então trazida à tona, e torna-se possível testemunhar como esses objetos lutavam contra a escassez da qual DURÃO, F. A. Arthur Bispo do... 333 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE surgiram. Agora, não é necessário ignorar todos os elementos regressivos mencionados anteriormente, nem a precariedade dos materiais e das técnicas, pois elas fazem parte dos artefatos, em sua batalha desesperadora pela existência. Enquanto isso se dá, ocorre uma reversão fundamental. Quando Rosário não é trazido à arte, quando sua doença mental é reconhecida em seu papel fundamental na criação dos artefatos, então os problemas anteriormente identificados desaparecem. A questão da intencionalidade torna-se legítima, o diálogo com as outras manifestações, como vimos, é possível e, mais importante, suas características inerentes emergem como são. A quantidade de trabalho investida nos objetos e o forte e indomável desejo de existir os marcam como extraordinários. Não podem ser considerados apenas como coisas comuns, mas demandam que um nome lhes seja dado. Não há outro nome que não “arte” para se fazer jus ao que eles são. Mas essa arte não pode ser aquela que confortavelmente habita os museus. A necessidade desesperada de “ser” que caracteriza o trabalho de Rosário se torna então uma régua para medir — e criticar — aquilo que normalmente é julgado como estética. O conceito de arte se altera completamente; ao invés da perspectiva conformista — mas no fundo indulgente e condescendente, que preside bienais bancadas pelo estado e pelos bancos —, emerge uma perspectiva diferente, que diz que “a arte deveria ser isso”. É uma lógica curiosa; quando, sem mediação, ela é associada à arte, acaba se recusando a ser artística, mas quando vista nos seus próprios termos, ela se recusa a ser comum e requer que um conceito revitalizado, mas deslocado, seja trazido até ela. Trata-se de uma exterioridade que, uma vez reconhecida, modifica a arte de dentro para fora. Isso é o que estava em jogo na Bienal de São Paulo; essa é a artimanha da arte brasileira. Tradução: Leonardo Lucena Trevas Revisão da Tradução: Caetano W. Galindo DURÃO, F. A. Arthur Bispo do... 334 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jul.-dez. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE REFERÊNCIAS ADORNO, Theodor W. Aesthetic Theory. Trad. Robert Hullot-Kentor. Minneapolis: Minnesota UP, 1997. [Em inglês] BÊTA, Janaína Laport. Madras: arte e sagrado em Arthur Bispo do Rosário. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2012. BURROWES, Patrícia. O Universo Segundo Arthur Bispo do Rosário. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Varas, 1999. 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The “Proust Questionnaire” has already spawned all kinds of experiences, from official interviews to lovers’ chats... Here, in a new version, adapted once again, it is used for literary confidences. Sua principal característica como escritor: Certo atabalhoamento. A qualidade que você mais admira em um escritor: Imperturbabilidade. TIRELLI NETO, I. Autor convidado... 338 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jun.-jul. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE A qualidade que você mais admira em um leitor: Disposição para entrar no jogo. Generosidade. A consciência apriorística de que há algo muito importante em jogo, de que a coisa não se cifra no beletrismo. Sua principal aspiração, ainda não realizada, como escritor: Ganhar algum prêmio que me dê ocasião de ser retratado segurando um cheque gigante. Sua principal aspiração, já realizada, como escritor: Belo momento da minha “carreira literária” foi quando Heloísa Buarque de Hollanda olhou nos meus olhos com grande doçura e disse que eu era completamente desequilibrado. Sonho de felicidade, na vida do autor: Editores interessados. Leitores interessados. Tempo para desesperar. Contas pagas. Um cão. A maior infelicidade, na vida do autor: Tenho por vezes a sensação de trabalhar para ninguém, o que pode ser triste, às vezes. TIRELLI NETO, I. Autor convidado... 339 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jun.-jul. 2017 REVISTA VERSALETE ISSN: 2318-1028 Dividindo a literatura em nacionalidades... qual país parece ter hoje a literatura mais interessante? Chegam-me coisas incríveis de Portugal com muita regularidade. O que muda ao se ler literatura em língua estrangeira? Muda um pouco a nossa noção de nascença. Descobrimos que há outros filhos de outras línguas-mãe. É uma maneira de acercar-se do outro (o que fazer do outro já não me parece tanto da literatura, por mais que seja bem-intencionada). Um romance preferido? O processo. Um poema ou um livro de poemas preferido? Ciente de trapacear, respondo: a “Poesia Completa”, do Drummond. Na Sala da Justiça dos escritores... qual o seu super-herói? Donald Barthelme. Sem dúvida. Personagens masculinas favoritas na ficção: Elpenor, Bartleby, o Sr. Plume. TIRELLI NETO, I. Autor convidado... 340 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jun.-jul. 2017 REVISTA VERSALETE ISSN: 2318-1028 Personagens femininas favoritas na ficção: Adrienne Mesurat. Mais uma vez, sem sombra de dúvida. Um livro que gostaria de ter escrito: Vários. O Naquele Exato Momento, do Buzzati. O Bartleby. O Cadernos de Malte Laurids Brigge. O Meus Amigos, do Bove. O Inquilino, do Topor. Um Homem que Dorme, do Perec. Fronteira, do Cornélio Penna. Tropismos, da Sarraute. Trecho preferido de uma obra: “Aqui há dias, estava numa reunião de imbecis. Havia muita gente. Toda a gente era encantadora. Tristan Tzara, um personagem pequeno, idiota e insignificante, dava uma conferência sobre a arte duma pessoa se tornar encantadora. Era, aliás, encantador. Toda a gente é encantadora. E espiritual. É delicioso, não é? Aliás, toda a gente é deliciosa. 9 graus abaixo de zero. É encantador, não é? Não, não é encantador”. (Tristan Tzara, trecho de “Como me tornei encantador simpático e delicioso”, tradução de José Miranda Justo). Você está escrevendo agora? Não fiz outra coisa o ano inteiro (2017). Estou com dois livros novos de poemas e organizando — mas isto há anos, já — um voluminho de ficções breves. TIRELLI NETO, I. Autor convidado... 341 Curitiba, Vol. 5, nº 9, jun.-jul. 2017 ISSN: 2318-1028 REVISTA VERSALETE Bio-bibliografia resumida: Ismar Tirelli Neto é carioca, tem 32 anos e vive atualmente em Curitiba. Publicou os seguintes livros de poesia: synchronoscopio, Ramerrão e Os Ilhados. Trabalha como roteirista, tradutor e biscateiro editorial. Ismar Tirelli Neto is a 32-year old carioca who lives in Curitiba. He has published the following books: synchronoscopio, Ramerrão and Os Ilhados. He works as a screenwriter, translator and publishing peddler. TIRELLI NETO, I. Autor convidado... 342