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Quilombos identidade étnica e territorialidade Quilombos identidade étnica e territorialidade  eliane cantarino o’dwyer organizadora ISBN — 85-225-0375-3 Copyright © Eliane Cantarino O’Dwyer Direitos desta edição reservados à EDITORA FGV Praia de Botafogo, 190 — 14º andar 22253-900 — Rio de Janeiro — Brasil Tels.: 0800-21-7777 — 0-XX-21-2559-5543 Fax: 0-XX-21-2559-5532 e-mail: editora@fgv.br http://www.fgv.br/editora Impresso no Brasil / Printed in Brazil Todos os direitos reservados. A reprodução não autorizada desta publicação, no todo ou em parte, constitui violação do copyright (Lei nº 5.988) 1ª edição — 2002 EDITORAÇÃO ELETRÔNICA : FA Editoração Eletrônica REVISÃO: Eni Valentim Torres CAPA: Ricardo Bouillet e Sergio de Carvalho Filgueiras FOTO DA CAPA: Quilombos do Trombetas — Erepecuru-Cuminá, Pará APOIO: Fundação Ford Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca Mario Henrique Simonsen/FGV Quilombos: identidade étnica e territorialidade / Eliane Cantarino O’Dwyer, organizadora. — Rio de Janeiro : Editora FGV, 2002. 296p. Co-edição : Associação Brasileira de Antropologia Inclui bibliografia. 1. Quilombos — Brasil. I. O’Dwyer, Eliane Cantarino. II. Fundação Getulio Vargas. CDD — 326.0981 Dedico a organização deste livro aos quilombos do rio Erepecuru-Cuminá, aqui representados na foto da capa por d. Maria Roberta, da comunidade negra de Jauari, no Pará. Sumário Apresentação 9 Yonne de Freitas Leite e Ruben George Oliven Introdução Os quilombos e a prática profissional dos antropólogos 13 Eliane Cantarino O’Dwyer 1. Os quilombos e as novas etnias 43 Alfredo Wagner Berno de Almeida 2. Sacutiaba e Riacho de Sacutiaba: uma comunidade negra rural no oeste baiano 83 Sheila Brasileiro e José Augusto Sampaio 3. Conceição das Crioulas, Salgueiro (PE) 109 Vânia Rocha Fialho de Paiva e Souza 4. Quilombo do Laudêncio, município de São Mateus (ES) 141 Osvaldo Martins de Oliveira 5. Jamary dos Pretos, município de Turiaçu (MA) Eliane Cantarino O’Dwyer e José Paulo Freire de Carvalho 173 6. Furnas de Dionísio (MS) 213 Maria de Lourdes Bandeira e Triana de Veneza Sodré e Dantas 7. Os quilombos do Trombetas e do Erepecuru-Cuminá 255 Eliane Cantarino O’Dwyer Anexo — Breves considerações sobre o Decreto no 3.912/01 281 Deborah Macedo Duprat de Britto Pereira Sobre os autores 291 Apresentação A diretoria da Associação Brasileira de Antropologia (ABA), eleita para o biênio 1998-2000, escolheu os direitos humanos como tema de sua gestão. Tal escolha foi ditada não só pela celebração, em 1998, do 50o aniversário da Declaração Universal dos Direitos do Homem, mas também pela experiência reflexiva e prática acumulada pelos antropólogos na defesa dos grupos minoritários estudados, a fim de que se cumpram os princípios da Carta Universal da qual o país é signatário, expressos também na Constituição de 1988. O projeto Terra de Quilombos, que na gestão 1994-96 retomou o diálogo com a Fundação Ford, foi a mola da negociação, empreendida pela diretoria recém-eleita, de uma nova dotação destinada a dois projetos coordenados por Regina Célia Reyes Novaes na área dos direitos humanos: a continuação do projeto Terra de Quilombos, sob a direção de Eliane Cantarino O’Dwyer, e a manutenção do prêmio Antropologia e Direitos Humanos. Sob o tema geral “direitos humanos e cidadania: a contribuição dos antropólogos”, dois livros reunindo os resultados desses projetos foram publicados pela atual diretoria presidida por Ruben George Oliven, a quem coube dar continuidade administrativa e financeira à dotação da Fundação Ford para a gestão 1998-2000. O primeiro deles, intitulado Direitos humanos: temas e perspectivas e organizado por Regina Célia Reyes Novaes, inclui os pronunciamentos dos membros da Comissão de Direitos Humanos da ABA, o levantamento 10 Quilombos feito por Ludmilla Catella de experiências inovadoras feitas por antropólogos na área dos direitos humanos e, por fim, as palestras proferidas por especialistas especialmente convidados para o curso de formação aberto ao grande público. O segundo livro, Antropologia e direitos humanos, organizado por Regina Novaes e Roberto Kant de Lima, apresenta as monografias vencedoras do prêmio Antropologia e Direitos Humanos nas categorias de mestre e de doutor. O presente volume, também financiado pelo Projeto ABA/Ford, reúne os resultados do subprojeto Terra de quilombos. O envolvimento da ABA com as comunidades negras remanescentes de quilombos, cujos direitos territoriais foram assegurados pela Constituição de 1988, tem uma longa história que se traduz formalmente na institucionalização, em 1994, do Grupo de Trabalho Terras de Quilombo, ampliado em 1996 com a criação da Comissão de Terras de Quilombos. A finalidade da comissão era organizar e planejar as ações da ABA com relação a essa problemática, bem como assessorar a diretoria em ações externas que exigissem contato com órgãos do Judiciário e do Ministério Público, visando a garantir o cumprimento das recomendações constantes em laudos de antropólogos-peritos nos processos de reconhecimento e demarcação desses territórios. A gestão 1998-2000 fezse representar na Comissão de Assuntos da Terra, de modo a incluir a questão das terras de quilombos, tanto quanto a das terras indígenas, no problema da distribuição da terra no país, isto é, na insolúvel questão agrária que no campo tem ocasionado tantos conflitos, com mortes impunes e, muitas vezes, anunciadas. Dois encontros, realizados no período 1998-2000 e patrocinados pelo Projeto ABA/Ford, antecederam e informaram a publicação de Quilombos: identidade étnica e territorialidade. O primeiro, o seminário Comunidades Étnicas, Políticas de Estado e o Trabalho do Antropólogo, realizado na Universidade Federal Fluminense (UFF) em 1o e 2 de junho de 2000, contou com a participação de 12 profissionais envolvidos com o tema, representantes do Ministério Público e um convidado especial, dr. Alban Bensa, pesquisador da École Normale Supérieure/Laboratoire de l’École des Hautes Études, que debateu os trabalhos apresentados. O segundo teve lugar na XXII Reunião Brasileira de Antropologia (Universidade de Brasília, 10 a Apresentação 19-7-2000) com o fórum de pesquisa Relatórios de Identificação e Laudos Antropológicos, quando foram apresentados trabalhos sobre identificação e demarcação de terras indígenas e de quilombos. A clara e criteriosa introdução de Eliane Cantarino O’Dwyer a este volume conduzirá o leitor pelos meandros teóricos e práticos da participação dos antropólogos nos projetos de identificação de terras de quilombos, e os artigos aqui reunidos fornecem um guia vivo das etapas a serem cumpridas nesse mister. Agradecemos a Eliane Cantarino O’Dwyer por seu empenho e denodo na condução deste trabalho e por ter mostrado à diretoria do período 1998-2000 os caminhos da administração da Fundação Ford. Sua experiência anterior, a nós transmitida de maneira generosa, acelerou a negociação que, com sucesso, mantivemos com a presidência, os assessores e o corpo técnico e administrativo da Fundação. Aos colegas que colaboraram neste volume e nos encontros que o antecederam, relatando suas experiências e seus acertos e desacertos, o nosso reconhecimento. Nossos sinceros agradecimentos à Fundação Ford por sua doação, que certamente reverterá em prol dessas populações historicamente sofridas e espoliadas em seus direitos e na sua condição humana. Yonne de Freitas Leite Presidente da gestão 1998-2000 Ruben George Oliven Presidente da gestão 2000-02 11 Introdução Eliane Cantarino O’Dwyer Os quilombos e a prática profissional dos antropólogos Até recentemente, o termo quilombo era de uso quase exclusivo de historiadores e demais especialistas que, por meio da documentação disponível ou inédita, procuravam construir novas abordagens e interpretações sobre o nosso passado como nação. A partir da Constituição brasileira de 1988, o quilombo adquire uma significação atualizada, ao ser inscrito no art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) para conferir direitos territoriais aos remanescentes de quilombos que estejam ocupando suas terras, sendo-lhes garantida a titulação definitiva pelo Estado brasileiro. Assim, quilombo ou remanescente de quilombo, termos usados para conferir direitos territoriais, permitem, “através de várias aproximações, desenhar uma cartografia inédita na atualidade, reinventando novas figuras do social”.1 Como não se trata de expressão que denomine indivíduos, grupos ou populações no contexto atual, seu emprego na Constituição Federal levanta a seguinte questão: quem são os chamados remanescentes de quilombos cujos direitos são atribuídos pelo dispositivo legal? 1 Revel, 1998:7. Quilombos 14 Pode parecer paradoxal que os antropólogos, que marcaram suas distâncias e rupturas com a historiografia (ao definir seu campo de estudos por um corte sincrônico no “presente etnográfico”), tenham sido colocados no centro dos debates sobre a conceituação de quilombo e sobre a identificação daqueles qualificados como remanescentes de quilombos, para fins de aplicação do preceito constitucional. Acontece, porém, que o texto constitucional não evoca apenas uma “identidade histórica” que pode ser assumida e acionada na forma da lei. Segundo o texto, é preciso, sobretudo, que esses sujeitos históricos presumíveis existam no presente e tenham como condição básica o fato de ocupar uma terra que, por direito, deverá ser em seu nome titulada (como reza o art. 68 do ADCT da Constituição Federal de 1988). Assim, qualquer invocação do passado deve corresponder a uma forma atual de existência capaz de realizar-se a partir de outros sistemas de relações que marcam seu lugar num universo social determinado. Tal aspecto presencial, focalizado pela legislação, tem levado os antropólogos a seguir um princípio básico: “fazer o reconhecimento teórico e encontrar o lugar conceitual do passado no presente”.2 O fato de o pressuposto legal referir-se a um conjunto possível de indivíduos ou atores sociais organizados em conformidade com sua situação atual permite conceituá-los, numa perspectiva antropológica mais recente, como grupos étnicos que existem ou persistem ao longo da história como um “tipo organizacional”, segundo processos de exclusão e inclusão que possibilitam definir os limites entre os considerados de dentro ou de fora.3 Isso sem qualquer referência necessária à preservação de diferenças culturais herdadas que sejam facilmente identificáveis por qualquer observador externo, supostamente produzidas pela manutenção de um pretenso isolamento geográfico e/ou social ao longo do tempo. A constituição de limites à definição de unidades étnicas proposta por Barth não representa propriamente uma novidade, mas di2 3 Sahlins, 1990:19. Barth, 2000:31. Introdução fere da proposição tradicional que considera uma raça = uma cultura = uma linhagem e que define uma sociedade como uma unidade que rechaça e discrimina as outras. O que sugere, como diz igualmente Wolf (1987), um mundo de povos separados em suas respectivas sociedades e culturas, os quais podem ser isolados como se fossem uma ilha, para efeito de descrição etnográfica. Nessa perspectiva, a questão da continuidade das unidades étnicas no tempo deixaria de ser problemática, sendo suas diferenças explicadas pelo isolamento existente entre elas. Poder-se-ia conceber que comunidades originárias de quilombos mantivessem propriedades sociais e culturais herdadas, de modo praticamente contínuo, tanto no tempo quanto no espaço, sendo as variações passíveis de descrição a partir de situações de contato. Tal perspectiva tem o efeito prático de produzir um tipo de conhecimento que, ao determinar o lugar de indivíduos e grupos no universo social, pretende revelar-lhes as identidades por eles próprios “desconhecidas”. Todavia, há algum tempo os antropólogos têm abdicado dessa postulação, que produz uma visão explicativa da totalidade impossível de ser apreendida pelos chamados “nativos”. A partir de Barth (1969 e 2000), a persistência dos limites entre os grupos deixa de ser colocada em termos dos conteúdos culturais que encerram e definem suas diferenças. O problema da contrastividade cultural passa a não depender mais de um observador externo que contabilize as diferenças ditas objetivas, mas unicamente dos “sinais diacríticos”, isto é, as diferenças que os próprios atores sociais consideram significativas. Por conseguinte, as diferenças podem mudar, ainda que permaneça a dicotomia entre “eles” e “nós”, marcada pelos seus critérios de pertença. Essa abordagem tem orientado a elaboração dos relatórios de identificação, os também chamados laudos antropológicos, no contexto da aplicação dos direitos constitucionais às comunidades negras rurais consideradas remanescentes de quilombos, de acordo com o preceito legal. Em vez de emitir uma opinião preconcebida sobre os fatores sociais e culturais que definem a existência de limites, é preciso levar em conta somente as diferenças consideradas significativas para os membros dos grupos étnicos, como adverte Barth. Assim, 15 Quilombos 16 “apenas os fatores socialmente relevantes podem ser considerados diagnósticos para assinalar os membros de um grupo”, e a característica crítica é a “auto-atribuição de uma identidade básica e mais geral” que, no caso das comunidades negras rurais, costuma ser determinada por sua origem comum e formação no sistema escravocrata. Para Barth, os critérios e sinais de identificação implicam a persistência dos grupos étnicos e também uma “estrutura de interação” que permite reproduzir as diferenças culturais ao “isolar” certos segmentos da cultura de possíveis confrontações e, ao mesmo tempo, sua interação em outros setores. Pode-se alegar que essa definição das comunidades negras rurais remanescentes de quilombos como grupos étnicos atributivos — que devem ser definidos a partir de sinais e emblemas considerados socialmente significativos pelo grupo, e não por um olhar classificador de um observador externo — dá margem a manipulações pelos atores sociais da identidade étnica. Em nossas atividades de pesquisa observamos, a partir das formulações de Barth, que as identidades étnicas são igualmente “imperativas”, não podendo ser suprimidas temporariamente por outras definições mais favoráveis da situação de contato interétnico. A observação dos processos de construção dos limites étnicos e sua persistência no caso das comunidades negras rurais — também chamadas terras de preto, com a vantagem de ser uma expressão nativa, e não uma denominação importada historicamente e reutilizada — permite considerar que a afiliação étnica é tanto uma questão de origem comum quanto de orientação das ações coletivas no sentido de destinos compartilhados. Pode-se concluir, como no caso precedente dos direitos indígenas, que os laudos antropológicos ou relatórios de identificação sobre as comunidades negras rurais (para efeito do art. 68 do ADCT) não podem prescindir do conceito de grupo étnico, com todas as suas implicações.4 Antes, porém, de finalizar essas considerações de caráter mais conceitual — que pretendem recuperar as questões de convergência 4 Ver Oliveira, 1998: 273-4. Introdução de horizontes entre pesquisadores e suas implicações na elaboração de laudos antropológicos ou relatórios de identificação nos casos das “comunidades negras rurais remanescentes de quilombos” —, cabe ressaltar que os grupos que orientam suas ações no sentido da aplicação do preceito constitucional (o art. 68 do ADCT) são freqüentemente considerados de exclusividade negra, o que evoca diretamente a noção de raça há muito banida das ciências sociais pela associação entre características morfológicas: os traços fenotípicos e a cultura.5 Também nesse domínio a aparência exterior só importa quando sentida como característica comum, constituindo, portanto, uma fonte de contrastividade entre os grupos. Resta “saber o que é especificamente étnico na oposição entre ‘eles’ e ‘nós’ e nos critérios de pertença que fundam esta oposição”. A identidade étnica tem sido diferenciada de “outras formas de identidade coletiva pelo fato de ela ser orientada para o passado”.6 Essa referência a uma origem comum presumida parece recuperar, de certo modo, a própria noção de quilombo definida pela historiografia. Vale assinalar, contudo, que o passado a que se referem os membros desses grupos “não é o da ciência histórica, mas aquele em que se representa a memória coletiva”7 — portanto, uma história que pode ser igualmente lendária e mítica. O foco das investigações é o limite étnico que define o grupo. No contexto da aplicação dos direitos constitucionais às comunidades negras rurais remanescentes de quilombos ou às chamadas terras de preto, tal limite passa a contar igualmente com sua concomitante territorial. Para refletir sobre essas questões em que a demarcação de limites e a construção de uma identidade originária dos quilombos tornamse uma referência atualizada, focalizaremos situações etnográficas em que diferentes grupos se mobilizam e orientam suas ações pela aplicação do art. 68 do ADCT. A participação dos antropólogos nesse 5 6 7 Seyferth, 1985. Poutignat & Streiff-Fenart, 1998:12-3. Ibid. 17 18 Quilombos processo, por meio da elaboração dos relatórios de identificação, deuse numa conjuntura de pressão do movimento negro, com a criação de mecanismos de representação, como a Comissão Nacional Provisória de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CNACNRQ – 1996), que passaram a exigir dos órgãos governamentais a aplicação do preceito constitucional. Os debates foram travados inclusive na esfera do Legislativo, com a formulação de anteprojetos de lei visando regulamentar a aplicação do artigo. Agências governamentais como a Fundação Cultural Palmares, do Ministério da Cultura, e o Incra criaram suas próprias diretrizes e procedimentos para o reconhecimento territorial das chamadas comunidades rurais quilombolas. Os antropólogos, por meio da Associação Brasileira de Antropologia (ABA), fundada em 1955, tiveram papel decisivo no questionamento de noções baseadas em julgamentos arbitrários, como a de remanescente de quilombo, ao indicar a necessidade de se perceberem os fatos a partir de uma outra dimensão que venha a incorporar o ponto de vista dos grupos sociais que aspiram à vigência do direito atribuído pela Constituição Federal. A perspectiva dos antropólogos reunidos no Grupo de Trabalho da ABA sobre Terra de Quilombo, em 1994, é expressa em documento que estabelece alguns parâmetros de nossa atuação nesse campo. De acordo com esse documento, “o termo quilombo tem assumido novos significados na literatura especializada e também para grupos, indivíduos e organizações. Ainda que tenha um conteúdo histórico, o mesmo vem sendo ‘ressemantizado’ para designar a situação presente dos segmentos negros em diferentes regiões e contextos do Brasil. (...) Contemporaneamente, portanto, o termo quilombo não se refere a resíduos ou resquícios arqueológicos de ocupação temporal ou de comprovação biológica. Também não se trata de grupos isolados ou de uma população estritamente homogênea. Da mesma forma, nem sempre foram constituídos a partir de movimentos insurrecionais ou rebelados mas, sobretudo, consistem em grupos que desenvolveram práticas cotidianas de resistência na manutenção e reprodução de seus modos de vida característicos e na consolidação de um território próprio. (...) No que diz respeito à territorialidade desses grupos, a ocupação da terra não é feita em termos de lotes individuais, predominando seu uso Introdução comum. A utilização dessas áreas obedece à sazonalização das atividades, sejam agrícolas, extrativistas ou outras, caracterizando diferentes formas de uso e ocupação dos elementos essenciais ao ecossistema, que tomam por base laços de parentesco e vizinhança, assentados em relações de solidariedade e reciprocidade”. A publicação do primeiro Caderno da ABA sobre Terra de Quilombo, em 1995, ao levar em conta o campo de discussão e de ação social delineado pela aplicação do dispositivo constitucional, contou com a contribuição de antropólogos que realizavam pesquisas nas chamadas comunidades negras rurais em diferentes regiões do país. O presente volume representa, de certo modo, um desdobramento daquele primeiro caderno e expressa a participação intensa dos antropólogos, reunidos numa rede de pesquisadores através da ABA e articulados às demandas de comunidades negras rurais que, por meio da CNACNRQ, solicitavam aos órgãos governamentais e ao Poder Legislativo o reconhecimento de seus direitos territoriais. A disputa pela posse da terra, o envolvimento de grandes empreendimentos agropecuários e madeireiros ou a pura e simples grilagem com fins de especulação imobiliária acabaram por tornar necessários os relatórios de identificação como prática administrativa de órgãos governamentais para conferir direitos. Tal prática encontra-se referida no precedente indígena dos procedimentos da Funai. Há, contudo, uma diferença no caso dos grupos étnicos remanescentes de quilombos. Alguns relatórios de identificação das terras de quilombos foram elaborados por antropólogos pertencentes a uma rede constituída através da ABA, tendo contado, para sua intensa articulação, com recursos da Fundação Ford através do projeto Terra de Quilombo. Tais relatórios não se resumem a peças técnicas enviadas aos órgãos de governo. As questões implícitas em sua elaboração e as experiências concretas dos pesquisadores inseridos nessa rede foram debatidas em numerosos seminários realizados pela ABA e em seus encontros bianuais – as Reuniões Brasileiras de Antropologia. A presença e participação de antropólogos nos encontros realizados pelos representantes das comunidades negras rurais, mobilizadas estas pelo reconhecimento de seus direitos constitucionais; as manifestações oficiais da ABA em relação aos anteprojetos de lei e às tentativas de organismos governamentais de re- 19 20 Quilombos gulamentar a aplicação do art. 68 do ADCT; o diálogo constante com o Ministério Público Federal, tudo isso tem garantido um posicionamento independente das visões e procedimentos comprometidos com interesses próprios aos quadros da burocracia. Assim, é como coordenadora do Grupo de Trabalho da ABA sobre Terra de Quilombo na gestão 1994-96 e membro das diferentes comissões criadas pelas diretorias dos períodos subseqüentes, as quais me confiaram a coordenação do projeto Terra de Quilombo, que organizo esta nova publicação. Seu propósito é levar ao público trabalhos que representam um tipo de intervenção num campo específico de articulação e envolvimento do mundo intelectual com os movimentos sociais e a mobilização de grupos étnicos que reivindicam o direito à diferença cultural e à reprodução de suas práticas econômicas e sociais, bem como o respeito pelos seus saberes tradicionais. Tais saberes não se coadunam, necessariamente, com as concepções pretensamente cientificistas de formas de conhecimento institucionalizadas em procedimentos administrativos de organismos governamentais e de grupos que detêm o poder econômico e político. Tais agentes e agências, sejam ou não governamentais, conforme nossas observações, procuram, em muitas situações, implementar políticas públicas capazes de definir como bem comum interesses de fato particulares, em detrimento das práticas sociais e culturais dos grupos étnicos que se definem legalmente como remanescentes de quilombos. No contexto da elaboração dos relatórios de identificação, cumpre ainda destacar que a questão da garantia dos direitos territoriais passa a ser considerada estratégica para assegurar a existência social e cultural desses grupos que reivindicam a aplicação do art. 68 do ADCT. A participação intensa de antropólogos na luta pelo reconhecimento de direitos étnicos e territoriais de segmentos importantes e expressivos da sociedade brasileira, como as comunidades negras rurais e/ ou terras de preto, rompe com o papel tradicional desempenhado pelos grandes nomes do campo intelectual, que garantem, com sua autoridade, o apoio às reivindicações da sociedade civil, subscritando, como peticionários, manifestos e documentos políticos. Ao contrário, os antropólogos brasileiros, que têm desempenhado importante papel no reconhecimento de grupos étnicos diferenciados e dos direitos Introdução territoriais de populações camponesas, ao assumir sua responsabilidade social como pesquisadores que detêm um “saber local”8 sobre os povos e grupos que estudam, fazem de sua autoridade experiencial um instrumento de reconhecimento público de direitos constitucionais. Nem por isso os relatórios de identificação ou laudos antropológicos — produzidos, respectivamente, na esfera dos poderes Executivo e Judiciário — devem ser considerados uma espécie de atestado que garante a atribuição de direitos definidos pelo arcabouço jurídico. Nos relatórios e laudos produzidos nesse contexto de afirmação dos direitos constitucionais através do cumprimento do art. 68 do ADCT, não há qualquer “promessa da normatização e da felicidade através da ciência e da lei” com a finalidade de “reforçar e estender o poder de especialistas”.9 Esse tipo de participação dos antropólogos, como demonstram os textos aqui apresentados, exige, ao contrário, uma “dimensão interpretativa no estudo de fenômenos sociais”,10 devendo o investigador fornecer uma explicação para o sentimento de participação social dos grupos e para o sentido que atribuem às suas reivindicações, assim como para as representações e usos que fazem do seu território. Em suas pesquisas nas comunidades negras rurais, os antropólogos depararam-se com situações em que a categoria quilombo como objeto simbólico representa um interesse diferenciado para os diversos sujeitos históricos, “de acordo com sua posição em seus esquemas de vida”.11 Os textos deste livro seguem o básico preceito disciplinar de submeter conceitos preestabelecidos à experiência de contextos diferentes e particulares,12 os quais permitem levantar a questão dos diferentes usos, limites e possibilidades no trabalho de pesquisa etnográfica. No primeiro capítulo, o autor, com vasta experiência etnográfica nos casos das chamadas terras de preto no Maranhão, procede a uma 8 Geertz, 1999:11. Rabinow & Dreyfus, 1995:215. 10 Ibid., p. 219. 11 Sahlins, 1990:187. 12 Peirano, 1995. 9 21 22 Quilombos leitura crítica da representação jurídica que considera quilombo lugar de escravos fugidos, segundo definição do período colonial. Retomado no plano da produção de conhecimentos, de acordo com diversas fontes bibliográficas (desde o clássico de Perdigão Malheiro, A escravidão no Brasil, ensaio histórico-jurídico-social de 1866, até trabalhos mais recentes como o de Clóvis Moura, de 1966), o conceito de quilombo “ficou, por assim dizer, frigorificado”, isto é, composto dos mesmos elementos descritivos formulados como “resposta ao rei de Portugal” em virtude de consulta feita ao Conselho Ultramarino, em 1740. Após uma revisão crítica dos elementos que compõem essa definição do período colonial, Almeida considera diversos processos sociais e políticos que permitem discutir a construção histórica de uma autonomia camponesa fora do domínio da grande propriedade territorial e de seu poder de coerção. Mostra, inclusive, a necessidade de um “corte nos instrumentos conceituais necessários para se pensar a questão do quilombo, porquanto não se pode continuar a trabalhar com uma categoria histórica acrítica nem com a definição de 1740”, devendo-se considerar “os deslocamentos ocorridos nessa definição e com o que de fato é, incluindo-se nesse aspecto objetivo a representação dos agentes sociais envolvidos”. Da “releitura das fontes documentais e arquivísticas” aos “indícios dessa idéia de quilombo enquanto processo de produção autônoma”, são consideradas diversas situações sociais, entre as quais as terras de preto no Maranhão, como no caso de Frechal. Tais situações apontam para sistemas distintos e não reconhecidos legalmente de apossamento e uso comum da terra na estrutura agrária brasileira, perpassados por fatores étnicos: as chamadas “terras de preto, terras de santo e terras de índio”. Em diversas situações sociais apontadas pelo autor observa-se a ressemantização do conceito de quilombo: “quando se considera a autodefinição dos agentes sociais em jogo e se converte tal trajetória num fenômeno sociológico em que identidade e território seriam indissociáveis, temse uma outra ordem de fatos”. Em sua releitura crítica das fontes, ficamos sabendo que tanto os juristas do século XIX quanto outros eruditos, “em suas observações diretas, transcendem, em certa medida, às disposições jurídicas”. Segundo o autor, “é necessário que nos libertemos da definição arqueológica, da definição histórica stricto sensu e das outras definições Introdução que estão frigorificadas e funcionam como uma camisa-de-força, ou seja, da definição jurídica dos períodos colonial e imperial e até daquela que a legislação republicana não produziu, por achar que tinha encerrado o problema com a abolição da escravatura, e que ficou no desvão das entrelinhas dos textos jurídicos”. Nessa perspectiva, Almeida afasta-se, igualmente, do “ideário das agências de pretensão mediadora (...) que reduzem tudo ao componente agrário”. Trata-se, ao invés disso, de “territorialidades específicas” de grupos sociais em face de trajetórias de “afirmação étnica e política”. Assim, ao destacar sobretudo a necessidade de “leituras críticas e uma reinterpretação jurídica” da categoria quilombo, incluindo uma “revisão de esquemas interpretativos cristalizados no mundo erudito”, Almeida presta importante contribuição ao estudo desse tema, o qual é “também um objeto de reflexão que pressupõe uma constelação de noções operacionais próprias”. Nos capítulos seguintes, o leitor poderá conhecer situações concretas de mobilização de diferentes grupos pelo reconhecimento de seus direitos de acordo com o preceito constitucional. Assim, no segundo capítulo, os autores destacam a semelhança entre o processo de reconhecimento das comunidades negras rurais de acordo com o art. 68 do ADCT e os processos de “legitimação oficial de povos e terras indígenas no Nordeste, intensificado nas últimas três décadas”. Às “comunidades remanescentes de quilombo” é igualmente “atribuído o papel de grupo étnico, elemento fundamental formador do processo civilizatório nacional”. Observam, ainda, que “no âmbito dos diversos processos de reconhecimento e legitimação, atualmente em curso no país, de comunidades negras rurais e de seus territórios tradicionalmente ocupados, o Ministério Público Federal, através de suas procuradorias regionais dos Direitos do Cidadão (PRDC), tem constituído fórum privilegiado originador de ações judiciais que ora tramitam nas esferas competentes da Justiça Federal”. Mas a participação do “profissional de antropologia” tem ocorrido principalmente na condução de processos administrativos, “deflagrados pelos órgãos oficiais de proteção das denominadas ‘minorias étnicas’ — a Funai, no caso dos povos indígenas, e a Fundação Cultural Palmares, em se tratando de comunidades negras descendentes de antigos 23 24 Quilombos quilombos”. Esses “laudos e pareceres administrativos”, também chamados “processos de identificação de grupos étnicos e dos territórios por eles reivindicados”, geralmente são “solicitados em face da prevalência de um contexto de tensões e conflitos territoriais”. Contudo, os autores fazem uma advertência quanto ao papel do antropólogo na realização desses laudos e perícias. Ele “não deve revestir-se de uma autoridade acadêmica que supostamente o capacita a infirmar ou mesmo negar a identidade de grupos étnicos e, ainda, definir as suas fronteiras ante outros segmentos da sociedade nacional, pois indubitavelmente, em última análise, cabe aos próprios membros do grupo étnico se auto-identificarem e elaborarem seus próprios critérios de pertencimento e exclusão, mapeando situacionalmente as suas fronteiras étnicas”. Por conseguinte, “ao antropólogo cabe, pois, o papel de identificar a estruturação interna do grupo e os seus processos sociais interativos, isto é, não definir, mas contextualizar o grupo, utilizando como parâmetro as classificações e categorias nativas de auto-identificação”. Em relação à territorialidade dos grupos étnicos remanescentes de quilombo, eis o que dizem os autores: “do mesmo modo que a etnicidade emerge tipicamente num contexto conflituoso de contato com a sociedade nacional mais ampla, a idéia de um território fixo, delimitado, é esboçada no interior do grupo étnico quando este se vê compelido, pelas frentes de expansão ou por setores politicamente influentes interessados em suas terras, a ordená-las e demarcá-las — o que Oliveira classifica como ‘processo de territorialização’ — sob pena de assistir impotente à sua usurpação gradual e definitiva por outrem. É, pois, tarefa do antropólogo investigar como o território é pensado pelo grupo no presente”. Após a contextualização dos laudos antropológicos e/ou relatórios de identificação, Sheila Brasileiro e José Sampaio fazem uma descrição do processo judicial e, posteriormente, administrativo de reconhecimento dos direitos da comunidade negra rural de Sacutiaba e Riacho de Sacutiaba. “Localizada a 850km de Salvador, na região do oeste da Bahia, município de Wanderley, às margens do rio Grande, a comunidade, constituída por cerca de duas centenas de indivíduos, conforma basicamente uma grande família extensa aglutinada em torno de laços de consangüinidade e afinidade centralizados na lideran- Introdução ça da matriarca Maria Pereira dos Santos, 76 anos (conhecida como Maria da Cruz), 11 filhos, 60 netos e 55 bisnetos”. A “revelação” à comunidade de seu direito à aplicação do art. 68 do ADCT foi atribuída ao advogado que acompanhava o conflito territorial e “lera a respeito da existência, na região, de diversos grupos ribeirinhos cuja origem poderia facilmente remontar à época da chegada de levas de escravos oriundos do norte do estado de Minas Gerais que teriam escapado pelo rio São Francisco, subindo posteriormente o rio Grande e instalando-se no sopé da serra do Boqueirão, na margem direita do rio, numa região de difícil acesso”. Segundo os autores, “essa versão acerca da origem do grupo foi rapidamente veiculada pela mídia local como expressão de um fato histórico concreto e logo endossada pelo ex-prefeito de Wanderley e patrono da comunidade”. Após uma caracterização histórica dessa região do São Francisco e do rio Grande, apresentada resumidamente pelos autores para fins desta publicação, é levantada a questão da “possibilidade da formação de quilombos como os de Xique-Xique no lado então pernambucano”. Quanto à situação atual, “algumas categorias particulares de auto-adscrição e identificação (...) apontam para a constituição progressiva de uma condição de orgulhosa independência e liberdade”, em contraposição ao tempo da escravidão e de sujeição. O “recorte étnico” é esboçado pelo critério racial — “é tudo preto” — e referido a uma origem comum reconstituída pelos laços de parentesco com “uma nêga nagô legítima”, bisavó materna de Maria da Cruz, ascendente mais antiga dos membros da comunidade de Sacutiaba e Riacho de Sacutiaba. O capítulo 3 é um relatório circunstanciado da comunidade negra rural de Conceição das Crioulas, município de Salgueiro (PE), a qual faz parte de uma lista inicial de 50 comunidades encaminhada pela Comissão Nacional Provisória de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas aos órgãos governamentais para aplicação do art. 68 do ADCT. É importante ressaltar que uma liderança dessa comunidade do sertão pernambucano integra a Comissão Nacional. Pelos depoimentos dos moradores de Conceição das Crioulas, ficamos sabendo que a trajetória do grupo é marcada pelos conflitos territoriais. Assim, “um acontecimento muito presente na memória 25 26 Quilombos social do grupo é a chamada guerra dos Urias, conflito entre negros e brancos que queriam se apossar das terras de Conceição. (...) Com a revolta dos negros, a família dos Urias acabou por retirar-se da região”. Essa versão nativa do conflito é relacionada à existência de uma escritura das terras de Conceição das Criolas, à qual atribuem “um caráter quase mítico”. Considera-se, ainda, que a disputa pela posse da terra nessa região e o modelo consciente do grupo sobre seus limites territoriais “facilitaram bastante a identificação dos pontos no campo. A comunidade já tinha sua proposta elaborada mesmo antes dos primeiros contatos feitos pela equipe técnica”. Quanto às fronteiras territoriais, “o pleito da comunidade se refere à delimitação de um território de 16 mil hectares, cuja dimensão vai além da espacial”. Souza considera a regularização do território de Conceição das Criolas uma “forma de garantir o espaço social daquela comunidade, ou seja, uma área onde se observa um comportamento social que vem garantindo a unidade e a identidade do grupo”. Na proposta de regularização fundiária apresentada pela comunidade fica assegurado o fluxo entre os moradores dos “sítios” constitutivos do território por meio de uma rede social caracterizada pela presença de “elementos religiosos” tanto na realização de “novenas” quanto na participação em “terreiros”. As referências feitas pelos membros da comunidade aos locais relacionados às suas atividades presentes e àquelas de seus antepassados “constituem informações importantes para que seu território seja reconhecido como atrelado aos locais de significado relevante para a comunidade, como por exemplo serra Velha, atualmente incluída nas terras dos índios aticuns, e Areias, onde a comunidade tem uma área comum de plantio”. No trecho próximo à serra do Umã, algumas famílias têm seu roçado dentro da terra indígena aticum. São famílias que mantêm relações com a população e o posto indígena já há muito tempo, sem que isso constitua algum tipo de conflito. Quanto à “identidade quilombola” em Conceição das Crioulas, a representação social constrói um “mito de origem” sobre a chegada à região, no início do século XIX, de seis crioulas que teriam fugido da escravidão pelas margens do São Francisco. Souza chama a atenção para a necessidade de realizar levantamentos e estudos mais sistemáticos no que se Introdução refere às documentações histórica e cartorial, mas registra a escassez de fontes documentais disponíveis. O material etnográfico sugere que, do ponto de vista dos moradores, a legitimidade do pleito se baseia igualmente na atribuição das terras de Conceição das Criolas “ao patrimônio da santa”, Nossa Senhora da Conceição, constituído mediante doação. Em se tratando das chamadas “terras de preto, terras de santo e terras de índio” (Almeida, 1983) — situações sociais não reconhecidas pela legislação agrária brasileira —, o elemento étnico se faz presente na autodefinição de cada grupo por uma origem comum presumida, como no caso da doação da “terra da santa” aos moradores de Conceição das Criolas. As atividades de cunho religioso, como as novenas — importante acontecimento social — e os festejos de Nossa Senhora da Assunção, em agosto, e de Nossa Senhora da Conceição, em dezembro, assim como “a existência de terreiros ou centros que misturam elementos da umbanda, do catolicismo e da religiosidade indígena”, manifestam-se como símbolos identitários de “reafirmação étnica” acionados nesse contexto. O quarto capítulo apresenta um relato sobre a comunidade negra rural do Divino Espírito Santo, localizada no município de São Mateus, região norte do estado do Espírito Santo. As 35 famílias e cerca de 200 pessoas relacionadas entre si por laços de parentesco consideram-se descendentes do “quilombo do Laudêncio”, nome de um ancestral comum. Sobre essa comunidade existem reportagens de jornais e, inclusive, um documentário intitulado “O último quilombo”. Apesar desse reconhecimento público, os membros da comunidade consideram negativo o modo como a mídia os retrata, ou seja, como “atrasados”, comparativamente às transformações sociais em curso. As prenoções do senso comum sobre quilombo devem ter-se refletido nessa caracterização do grupo numa perspectiva evolucionista, a qual associa o “atraso” às condições de possível isolamento como garantia de preservação do passado e continuidade histórica. Segundo Oliveira, os dados historiográficos indicam a existência de quilombos na região de São Mateus, os quais remetem a figuras lendárias como Zacimba Gaba, “princesa africana de Cabinda que, após envenenar seu senhor, fugiu com centenas de escravos e formou um quilombo na região de Itaúnas, hoje pertencente ao município de Conceição da Barra. Os seguidores de Zacimba tinham por missão 27 28 Quilombos atacar as fazendas e as embarcações que traziam escravos para o Porto de São Mateus, a fim de libertá-los”. Ou, ainda, Benedito Meia-Légua, que no século XIX é citado como líder de um quilombo em São Mateus, e Negro Rugério, que à mesma época “se aquilombou com um grupo (...) nas terras de dona Rita Cunha” e, sob a proteção desta, passou a negociar a farinha de mandioca por eles produzida, o que lhe valeu a alcunha de “rei da farinha”. Assim, os moradores da comunidade do Divino Espírito Santo, que se definem como integrantes do quilombo do Laudêncio, consideram esse quilombo filiado ora a um, ora a outro dos quilombos mencionados. Contudo, a base da identidade dos membros dessa comunidade é a relação de parentesco, a qual está estreitamente vinculada à ocupação territorial e aos critérios de pertencimento do grupo. Durante o trabalho de campo, o procedimento adotado por Oliveira para reconstituir o processo de ocupação territorial do grupo através da memória social pareceu-lhe “como costurar uma colcha de retalhos”, pois cada morador foi “fornecendo uma parte da história por meio de relatos da vida de seus ancestrais”. Tais relatos são condizentes com a “noção de transmissão do patrimônio cultural através da memória”, na medida em que “o grupo volta ao passado para reelaborar o significado do presente e de sua identidade étnica”. Assim, festejos como o “jongo de São Benedito” e o “reisde-boi” manifestam-se também como símbolos identitários do grupo. A demanda pela aplicação do art. 68 do ADCT emerge num contexto de conflito territorial com a empresa Aracruz Celulose, que promove a plantação de eucaliptos em escala industrial nessa região. O capítulo 5 focaliza o povoado de Jamary dos Pretos e baseiase na realização de trabalho de campo para o levantamento de material etnográfico. Foi elaborado em 1993, em forma de parecer, para o projeto Vida de Negro, da Sociedade Maranhense de Defesa dos Direitos Humanos. Após novo período de campo, em janeiro de 1997 foi reenviado, como “relatório de identificação”, à Fundação Cultural Palmares do Ministério da Cultura, por solicitação da Comissão Nacional Provisória de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas, integrada por lideranças dos povoados e do movimento negro do Maranhão. Jamary dos Pretos localiza-se na microrregião de Gurupi, município de Turiaçu, caracterizado como área de exclu- Introdução sividade negra no Maranhão, onde existiu um extraordinário número de quilombos ou mocambos. A memória social de seus habitantes remete à experiência histórica dos chamados “mocambos”, termo usado para designar os “lugares de moradia e refúgio dos pretos livres”, em contraposição às fazendas de escravos, consideradas “lugar da dor, do trabalho forçado e da sujeição”. A caracterização dos grupos étnicos como “categorias atributivas e identificadoras empregadas pelos próprios atores”13 é exemplificada nessa situação etnográfica pela locução adjetiva (dos pretos) que os moradores do povoado costumam acrescentar ao nome Jamary — Jamary dos Pretos ou, ainda, Povoado dos Pretos. Essa forma de qualificação “define, através da auto-atribuição, uma identidade afirmativa e uma territorialidade própria a um grupo social etnicamente organizado. Assim eles invertem as características estigmatizantes que lhes atribuem na sede do município de Turiaçu, onde usualmente são conhecidos como os “pretos dos campos naturais” ou os “pretos do Jamary”, designações que verificamos, durante o trabalho de campo, terem sido usadas de maneira irônica e depreciativa por moradores da cidade. A expressão “campos naturais” funciona, por um lado, como descrição geográfica (tipo de solo e vegetação); por outro, como referência ao tipo de apropriação do território, dada a existência de terras de uso comum no povoado. Tais referências, utilizadas como critérios negativos de apreciação da identidade social desse grupo, expressam práticas comuns e cotidianas de discriminação e preconceito a que estão submetidos em seu contato com os de fora, os moradores do povoado de Jamary. Através de uma lógica da contradição, porém, se reapropriam positivamente da avaliação estigmatizante, construindo assim uma identidade social relacionada ao pertencimento étnico e à ocupação de um território exclusivo. Numa perspectiva ecológica, pode-se igualmente considerar que a designação “pretos dos campos naturais” refere-se à ocupação, por esse grupo étnico, de “nichos distintos no ambiente natural”, o que deveria “reduzir ao mínimo a competição por recursos”.14 Contudo, 13 14 Barth, 2000:27. Ibid., p. 40. 29 Quilombos 30 como indicado no texto, no Jamary “ocorre acirrado conflito com interesses latifundiários de grandes criadores de gado do município de Turiaçu e de empreendimentos rurais que procuram se expandir à custa dos povoados e ‘terras de preto’, como no caso mencionado da disputa entre os moradores de Jamary e o projeto Ceres”. É nesse contexto de competição e conflito com interesses antagônicos que se verifica a reafirmação de fronteiras étnicas e do direito a um território exclusivo: “Isso aqui é um povoado de pretos, dissenos um morador de Jamary que recorre à ancianidade da ocupação do território e à herança da escravidão e dos mocambos para fundamentar os direitos que os moradores possuem sobre a terra inalienável e indivisa. As relações de parentesco estabelecidas entre os moradores do povoado e sua referência à situação histórica de quilombo regulam a descendência e a herança das terras de uso comum, configurando uma situação de fato que cria direitos e garantias ao reconhecimento jurídico de propriedade da terra do povoado de Jamary”. Os moradores mais idosos do povoado são depositários das múltiplas versões sobre os mocambos e o tempo da escravidão. Através da memória coletiva, esse grupo elaborou sua própria noção de quilombo, que deve ser reconhecida como “outro modo de conhecimento”,15 fundado numa experiência histórica específica e usado segundo critérios de validade próprios ao grupo. Tal modelo reflete-se, ainda, na configuração espacial do povoado de Jamary, nos planos significativos de organização social e no modo como esses planos se entrecruzam, tanto nas representações quanto nas ações cotidianas do grupo. Desse modo, os quilombos ou mocambos são considerados, do ponto de vista dos moradores do povoado, como locais de moradia dos chamados pretos livres, que fazem parte de um conjunto formado também pelos escravos que ficavam nas fazendas e colaboravam ativamente com os fugidos, havendo assim planos de interseção organizacional entre ambos — cativos e libertos. Jamary dos Pretos exprime, em sua disposição espacial, essa conjunção entre os lugares de 15 Barth, 1995:65. Introdução moradia concentrados na sede do povoado e as antigas fazendas de escravos, incorporadas como centros de roçado onde, segundo os moradores de Jamary, ficam hoje os seus ranchos de trabalho. O diagrama do povoado, desenhado por um dos informantes, projeta em suas divisões espaciais diferentes planos de organização social. Nele o povoado de Jamary “é concebido em forma de dois anéis conjugados, com um ponto de interseção correspondente à sede do povoado. Neles se incluem o terreno trabalhado ou os centros de roçado, como dizem, e os campos naturais e a mata circundante. (...) Esses dois anéis conjugados estão sempre referidos ao plano de interseção entre eles: a sede do povoado, onde a vida comunitária se exterioriza. Aí ocorrem as manifestações culturais do povoado, como as festas religiosas, o tambor-de-criola e práticas comunitárias como o jogo de futebol dominical. É nesse plano que a comunidade demonstra o seu alto grau de integração”. A referência dos moradores ao passado histórico dos quilombos ou mocambos e os laços de reciprocidade e solidariedade que os unem criam um sentimento de participação comunitária e identidade étnica no presente. A matéria do sexto capítulo resulta de uma investigação de campo conduzida de modo interativo com a comunidade negra rural de Furnas de Dionísio, para fins de aplicação do art. 68 do ADCT. Trata-se de uma “área em forma de ferradura, cercada de furnas, encravada na serra de Maracaju, a 40km da cidade de Campo Grande, capital do estado de Mato Grosso do Sul”. Segundo as autoras, “além de topônimo, Furnas de Dionísio é um etnônimo, porquanto identifica os negros que ali vivem como um grupo socialmente distinto de outros grupos sociais e até dos demais negros que habitam o município, a região e o país”. A comunidade compõe-se de 58 famílias, totalizando 387 pessoas, segundo dados de 1997. Quanto à orientação teórico-metodológica, Bandeira e Dantas utilizam os conceitos de etnicidade, grupo étnico e relações interétnicas para fundamentar “o reconhecimento de Furnas de Dionísio como remanescente de quilombo, demonstrando que a análise da história da comunidade, a partir de seus próprios códigos, dos códigos internos de sua cultura, permite identificar uma espacialidade diferenciada e um modo diferenciado de integração na sociedade de classe”. Além 31 32 Quilombos disso, “o mapeamento de genealogias correlacionadas ao sistema de crença revela a construção da ancestralidade mítica como foco de produção simbólica da origem e do destino”. A transcrição de algumas narrativas míticas coligidas durante o trabalho de campo “é significativa em termos de fundamentos da ocupação das terras, da construção da territorialidade dos negros de Furnas”. A ampliação do campo semântico da palavra furna com o significado de lugar retirado, esquisito, além do fato de existirem em Mato Grosso do Sul e Goiás outras comunidades negras localizadas em furnas e vãos, aponta para a construção de uma “territorialidade negra no espaço branco da sociedade escravocrata”. Essa prática de ocupação que se associa à tradição de formação de quilombo “implica uma dimensão política de inserção diferenciada no ordenamento espacial mediado pela forma grupal de acesso e usos regulados por mecanismos internos de parentesco”. Segundo os depoimentos colhidos, a comunidade de Furnas de Dionísio “foi historicamente formada de grupos domésticos ligados entre si pelo parentesco”. Quanto às “alianças matrimoniais preferenciais com outras comunidades negras, como Furnas da Boa Sorte ou outros grupos familiares de iguais [os membros da comunidade de Furnas de Dionísio], casaram-se com parceiros que compartilhavam a pertença racial sob o enfoque da feição regional da sociedade escravista”. Desse modo, “como grupos fundamentados na descendência, mantiveram a coesão entre si através de redes de alianças e trocas matrimoniais”. Para Bandeira e Dantas, “os dados revelam um conteúdo etnográfico que fornece referencial empírico para identificar a estrutura social da comunidade negra de Furnas de Dionísio ao modelo africano de sociedade segmentada, analisado sob o enfoque das relações de poder por Balandier. (...) As linhagens são unidades constitutivas de outro segmento diferente em relação aos grupos familiares, no caso coexistindo com grupos domésticos. Ao mesmo tempo que se formavam pela união de pessoas de um mesmo tronco genealógico, formavam também uma espacialidade distinta dentro do território das Furnas de Dionísio”. A principal atividade econômica da comunidade é a agricultura, sustentada por práticas culturais de cooperação, solidariedade e reci- Introdução procidade. Em relação a essas práticas culturais, ficamos sabendo que “o sistema tradicional de ajuda mútua compreende três formas principais: mutirão propriamente dito, coluna e surpresa”. O texto distingue essas três modalidades e chama atenção para o fato de que, “nessas ocasiões, comumente dança-se catira, uma dança recorrente em localidades rurais tradicionais de Minas Gerais, Goiás, Mato Grosso do Sul e São Paulo (...). Além da catira, antigamente dançava-se ciranda, engenho novo, vilão, cobrinha e lundu”. A religiosidade é considerada um traço marcante de Furnas de Dionísio: “Esse traço tem sido historicamente observado em comunidades rurais negras, tendo sido também documentado no relatório da bandeira que bateu o quilombo de Quariterê, no final do século XVIII, em Vila Bela, Mato Grosso”. Destacam ainda que “sob as práticas religiosas oficiais (...) fluem as práticas tradicionais que o culto ao santo articulam”. Igualmente importante é o culto aos mortos, o culto aos antepassados, que faz dos cemitérios um lugar sagrado, o lugar onde as cruzes marcam seus assentamentos. (...) A crença fundamental é de que os mortos, depois de uma passagem, “se transformam em espíritos, identidades sobrenaturais que devem ser cuidadas pelos vivos”. Por fim, Bandeira e Dantas consideram que os dados da pesquisa de campo são suficientes para “identificar o paradigma africano da ordem invisível como alicerce sobre o qual, incorporando crenças e influências religiosas de outras matrizes culturais, os negros de Furnas de Dionísio constroem sua percepção de mundo e do seu ser no mundo. A conservação de elementos de culturas africanas (...) não é determinante na caracterização histórico-antropológica de uma comunidade rural negra como remanescente de quilombo. Não pode, contudo, ser ignorada nem relegada a segundo plano (...), porque deverá circular em duas mãos: na sociedade mais ampla, pelos caminhos oficiais do processo de titulação da terra, e na comunidade, pelas trilhas do seu ser no mundo, da sua percepção étnica, em que consciência de ser e comunidade etnicamente diferenciada não se separam”. O último capítulo originou-se de um relatório destinado a instruir os trabalhos da 6a Câmara da Procuradoria Geral da República durante nossa participação na diretoria da ABA, quando coordenáva- 33 34 Quilombos mos o grupo de trabalho sobre Terra de Quilombo. As informações nele contidas baseiam-se em pesquisa etnográfica feita com as comunidades remanescentes de quilombos dos rios Trombetas e ErepecuruCuminá, realizada em dois períodos consecutivos — de fevereiro a junho de 1992 e de novembro de 1992 a fevereiro de 1993 — no município de Oriximiná (Pará), região onde funciona o campus avançado da UFF na Amazônia. Os dados coligidos foram complementados com viagem a campo, em novembro de 1995, no contexto de colaboração com os trabalhos da 6a Câmara da Procuradoria Geral da República, tendo sido a primeira versão do relatório apresentada durante reunião anual da Associação Nacional de PósGraduação e Pesquisa em Ciências Sociais (Anpocs), em 1996. Em situação de pesquisa, elaboramos uma interpretação etnográfica de que os grupos que se definem legalmente como “remanescentes de quilombos” dos rios Trombetas e de seu afluente Erepecuru-Cuminá “praticam um isolamento consciente que não pode ser explicado por quaisquer conceitos de ‘isolado primitivo’ ou de isolamento geográfico, social e cultural que venham a naturalizá-los em face de um observador externo. De fato, essa forma de ‘isolamento consciente’ só adquire toda a sua significação quando relacionada à própria experiência da pesquisa etnográfica, aos obstáculos enfrentados para a realização do trabalho de campo e às estratégias de que tivemos de lançar mão para obter a aceitação do grupo, estando este voltado para a produção de sua própria história através das lembranças dos quilombos e das lendas heróicas contadas pelos moradores mais velhos das comunidades como afirmação política dos seus direitos constitucionais”. Sobre a experiência etnográfica procuramos, inicialmente, situar a forma pela qual fomos incluídos na elaboração da história do grupo, a qual permitiu que tivéssemos acesso ao material etnográfico. Na primeira fase do trabalho de campo, a identidade histórica do grupo foi um assunto de certo modo imposto por ele e, em parte, o resultado das situações da pesquisa. As exigências e acasos da pesquisa de campo levaram à sua aceitação, em virtude de um episódio sem precedentes ocorrido durante uma expedição aos cursos encachoeirados do Erepecuru-Cuminá Introdução sugerida pelos membros do grupo. Ao fornecer-lhes os dados de viajantes, contribuímos, de certo modo involuntariamente, para um achado na região situada acima da grande queda-d’água do Chuvisco, onde foram encontrados vestígios arqueológicos de uma ocupação muito antiga. Esse “sítio” havia pertencido a Figênia, citada como uma das mocambeiras da fuga, e foi localizado pelo entrecruzamento das informações que líamos no relatório de uma viagem empreendida em 1902 e o conhecimento que os negros possuíam da cobertura florestal de mata virgem e áreas de antigas capoeiras. A descoberta dessa evidência etnográfica foi considerada decisiva para a aceitação da pesquisa. Tanto que, ao descermos as cachoeiras e visitarmos os moradores das comunidades situadas na parte mansa do rio (navegável), eles passaram a falar mais livremente sobre seus antepassados e o que lhes contavam os pais e avós. Esse “gosto pelas origens” constituía-se, assim, em moeda de troca entre nós, da pesquisa, e nossos “informantes”, no contexto da inclusão dos negros do Erepecuru-Cuminá no processo de reconhecimento de seus direitos territoriais, já em curso, para as comunidades negras do chamado rio grande — o Trombetas. Cabe destacar que, na situação de pesquisa, não procuramos deliberadamente a existência de provas materiais que comprovassem a formação de quilombos na região. A constatação de vestígios arqueológicos surgiu como resultado da própria relação de pesquisa. Desse modo, constitui-se numa evidência etnográfica sobre o passado, apropriada pelo grupo, no presente, na construção do que chama de a “história dos princípios”. Esse tipo de evidência etnográfica é estranho a qualquer idéia de comprovação arqueológica para aplicação do art. 68 do ADCT. Na 21a Reunião Brasileira de Antropologia, realizada em Vitória, ES, de 5 a 9-4-1998, os antropólogos reunidos no grupo de trabalho Terra de Quilombo já haviam se posicionado contra o laudo encomendado pela Companhia Energética de Minas Gerais (Cemig) a um renomado arqueólogo que participou conosco do debate. Em seu trabalho, ele negava o direito da comunidade de Porto Corís, município de Leme do Prado, no vale do Jequitinhonha, Minas Gerais, atingida pelo projeto de construção da barragem de Irapé, à sua identificação como 35 36 Quilombos “remanescente de quilombo”. Os argumentos contrários ao reconhecimento da comunidade baseavam-se na inexistência de vestígios arqueológicos deliberadamente procurados nas terras ocupadas pelo grupo, particularmente em uma formação rochosa onde havia uma caverna que poderia, na visão daquele arqueólogo, ter sido um possível esconderijo de escravos. Esse lugar, contudo, não estava investido de qualquer significado importante para o próprio grupo, segundo relato do antropólogo que elaborou o relatório de identificação sobre a comunidade de Porto Corís para a Fundação Cultural Palmares, do Ministério da Cultura. No contexto desse debate, “a procura dos critérios ditos ‘objetivos’ da identidade (...) étnica não deve fazer esquecer que, na prática social, esses critérios (por exemplo, a língua) são objeto de representações mentais, quer dizer, de atos de percepção e de apreciação, de conhecimento e de reconhecimento, em que os agentes investem os seus interesses e os seus pressupostos, e de representações objetais, em coisas (emblemas, bandeiras, insígnias etc.) ou em atos, estratégias interessadas de manipulação simbólica que têm em vista determinar a representação mental que os outros podem ter dessas propriedades e dos seus portadores. Em outras palavras, as características que os etnólogos e os sociólogos objetivistas arrolam funcionam como sinais, emblemas ou estigmas logo que são percebidas e apreciadas como o são na prática. (...). [Deve-se, assim,] romper com as pré-noções da sociologia espontânea entre a representação e a realidade, com a condição de se incluir no real a representação do real, ou, mais exatamente, a luta das representações, no sentido de imagens mentais mas também de manifestações sociais destinadas [ao reconhecimento coletivo]” (Bourdieu, 1989:112-3). Essas considerações servem para situar os debates que os antropólogos têm enfrentado no campo de aplicação dos direitos constitucionais às comunidades negras rurais remanescentes de quilombos. Entre as questões abordadas neste último capítulo, cabe destacar o disciplinamento das práticas culturais extrativistas dos negros dos rios Trombetas e Erepecuru-Cuminá, consideradas transgressões à legislação ambiental a partir de 1979 e 1989, com a decretação, respectivamente, da Reserva Biológica do Trombetas e da Floresta Na- Introdução cional de Saracá-Taquera. A vigilância exercida sobre os negros do Trombetas por organismos governamentais como o Ibama tem cerceado as práticas culturais de pesca, caça e plantio. Essa é uma “forma de operação do poder no espaço que remete ao modelo do panopticon de Bentham analisado por Foucault”(Rabinow & Dreyfus, 1995). Nesse capítulo desenvolvemos ainda uma argumentação sobre os critérios de pertencimento territorial e a produção de diferenças culturais entre “unidades em contraste”: os chamados remanescentes de quilombos e os colonos ribeirinhos de Oriximiná. Em seguida, é abordada a construção simbólica de um território unificado e sob o controle desse grupo étnico remanescente de quilombo dos rios Trombetas e Erepecuru-Cuminá, através da ação de seus profetas e curadores, conhecidos como “sacacas”. As referências a um tempo histórico e mítico fazem de imponentes paredões talhados à beira do rio Erepecuru-Cuminá um monumento do passado, marco memorial inscrito no espaço que os define como “comunidades territoriais fortemente enraizadas”. Neste livro o leitor encontrará também uma interpretação jurídica do Decreto no 3.912, de 10-9-2001, feita pela dra. Deborah Macedo Duprat de Britto Pereira, procuradora regional da República e membro da 6a Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal. Trata-se de importante contribuição aos debates sobre a aplicação dos direitos constitucionais relativos ao art. 68 do ADCT. Já em 1999, na VI Reunião Regional de Antropólogos do Norte e Nordeste, a ABA apresentara um documento tornando público o seu desacordo e estranhamento com os termos do anteprojeto de decreto, aberto à consulta pública pela Casa Civil da Presidência da República, sobre procedimentos administrativos para identificação e reconhecimento das comunidades negras rurais remanescentes de quilombos: “o anteprojeto de decreto retrocede a uma visão restritiva de quilombo, cerceando direitos. Desrespeita toda a discussão anterior sobre a matéria, inclusive na definição de comunidade remanescente dos quilombos. Segundo o anteprojeto de decreto, a ocupação do território deve necessariamente datar de antes da Abolição da Escravatura. Esse procedimento, que estabelece limites temporais, usurpa os direitos preconizados pela Constituição. Herdeiros do debate sobre 37 Quilombos 38 terras indígenas, consolidamos uma visão de que tanto os povos indígenas quanto os ‘remanescentes de quilombos’ constituem grupos étnicos conceitualmente definidos pela antropologia como um tipo organizacional que confere pertencimento através de normas e meios empregados para indicar afiliação ou exclusão. Não se trata, portanto, de vestígios arqueológicos ou fósseis a serem datados”. O Decreto no 3.912, que regulamenta as disposições relativas ao processo administrativo para identificação dos remanescentes das comunidades de quilombos e para reconhecimento, definição, demarcação, titulação e registro imobiliário das terras por eles ocupadas, incide nas mesmas restrições anteriormente apontadas no documento da ABA. Assim, consideramos a análise da dra. Deborah Macedo Duprat de Britto Pereira extremamente valiosa, porquanto demonstra uma convergência de pontos de vista entre a prática antropológica e a interpretação de um membro do Ministério Público Federal incumbido da “defesa da ordem jurídica do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis”, segundo o art. 127 da Constituição Federal. Para concluir, cabe dizer que este livro pretende cumprir “o papel de um estranhamento”16 em relação às categorias de análise historiográfica e aos modelos interpretativos do discurso jurídico dominante sobre quilombo. Contudo, as chamadas comunidades remanescentes de quilombos não deixam de ser “objetos problemáticos”17 do ponto de vista da prática de pesquisa antropológica. É preciso reconhecer os limites a esta impostos quando se leva em conta que os problemas são, em princípio, definidos numa esfera jurídica de aplicação dos direitos constitucionais. Contudo, abrem todo um campo de possibilidades para análise e interpretação a partir da problemática teórica dos estudos sobre grupos étnicos, etnicidade e relações interétnicas. Tais conceitos são como “instrumentos de distanciamento para encarar criticamente a realidade, sem se deixar tragar por ela”.18 16 Revel, 1998:36. Revel, 1998:38. 18 Ginzburg, 2001:12. 17 Introdução Os relatórios de identificação adotam, igualmente, o “método de estudo de comunidades como formato para o trabalho de campo (...) na antropologia”19 , mas não deixam de incorporar uma análise crítica dos estudos de comunidades no Brasil. Tais estudos apresentam dificuldades quanto à definição dos limites da comunidade, geralmente concebidos em termos administrativos ou como uma área ecológica. Já os trabalhos aqui apresentados partem do pressuposto de que, “se é verdade que a comunidade não prescinde de uma base territorial, isso não significa que os seus limites sejam dados a partir dela. Pelo contrário, a própria delimitação espacial de uma comunidade existe enquanto materialização de limites dados a partir de relações sociais”.20 Vale ressaltar que os relatórios de identificação privilegiam o modelo nativo, servindo-se de técnicas de observação etnográfica que introduzem uma dimensão interpretativa na abordagem de situações sociais. A perspectiva dominante é aquela segundo a qual “a conceituação não deveria estar fundada exclusivamente numa teoria do objeto — o objeto conceituado não é o único critério de uma boa conceituação. Temos de conhecer as condições históricas que motivam nossa conceituação. Necessitamos de uma consciência histórica da situação presente. (...) De qualquer maneira, não se trata apenas de uma questão teórica, mas de uma parte de nossa experiência”.21 Se, por um lado, os relatórios aqui apresentados não constituem, em sua maioria, pesquisas orientadas pelas exigências do campo acadêmico, por outro, situam-se no âmbito das ações coordenadas pela ABA, as quais prevêem a colaboração entre antropólogos e a Procuradoria Geral da República no que diz respeito ao reconhecimento dos direitos de grupos étnicos e sociais. Desse modo, constituem um caso particular de possibilidade de uma “antropologia da ação” (Oliveira, 1978:212) na qual, diferentemente da chamada “antropologia aplicada” — menos comprometida com as populações às quais se refe- 19 Barth, 2000:184. Meyer, 1979:16. 21 Foucault, em Rabinow & Dreyfus, 1995:232. 20 39 40 Quilombos re —, o antropólogo não perde sua base acadêmica, portador que é de sólida formação na disciplina, fato que o torna um profissional controlado pela comunidade científica. Os relatórios de identificação sobre “comunidades remanescentes de quilombos” elaborados pelos antropólogos a partir de uma rede formada através do projeto ABAFord não representam um afastamento das preocupações teóricas e metodológicas da disciplina, estando relacionados à responsabilidade social do antropólogo em suas atividades profissionais. Os “relatórios de identificação” ou, de uma perspectiva mais geral, os chamados laudos antropológicos podem ser considerados formas de intervenção fora da esfera acadêmica, mas implicam, igualmente, o trabalho de pesquisa antropológica. Não se tem aí uma linha divisória rígida entre o conhecimento antropológico e outras formas de saber aplicado, e sim um ziguezaguear entre ambos. Assim, certas pesquisas visando à elaboração de relatórios de identificação para aplicação do art. 68 do ADCT — como Bonsucesso do negros (MA) e Mocambo de Porto das Folhas (SE) — transformaram-se em teses de mestrado e doutorado em antropologia. Os relatórios de identificação e os laudos antropológicos têm que se adequar ao fator tempo, bem mais exíguo do que nas pesquisas acadêmicas. Na verdade, como disse Tomk Lask em entrevista a Fredrik Barth, “o tempo é outro problema na antropologia. Simplesmente não é possível se tornar instantaneamente especialista em alguma coisa. Você precisa de pelo menos três meses para ter um insight a respeito de algum problema”. Ao que Barth responde: “Mas você só precisa de cinco minutos para articular uma posição, um argumento, e nós deveríamos nos dispor a fazer isso mais vezes. Deveríamos fazer uma crítica comparável à argumentação de um promotor, em vez de ficar dizendo: ‘Preciso de um ano no campo, dois para escrever e depois lhe digo o que acho’. Caricaturo um pouco. Acho, porém, que parte da resposta a esse problema é estar preparado de antemão. Deveríamos pensar mais em termos da relevância política e da aplicabilidade das coisas, bem antes de sermos indagados por alguém. Desse modo, no momento em que a questão nos for feita, teremos competência para responder. Vejo uma falha na Introdução formação dos antropólogos, pois nela isso quase sempre é ignorado. Como conseqüência, a impotência de uma geração se reproduz na próxima”. Mais adiante, porém, Barth afirma que “nunca devemos incluir na negociação [política] nossas posições morais ou disciplinares básicas”.22 Assim, ao mesmo tempo em que pretendem contribuir para o conhecimento de situações etnográficas específicas, os autores dos textos aqui reunidos reconhecem que ainda resta muito a fazer nesse campo de estudos, como trabalhos de campo mais intensos e em maior quantidade. Referências bibliográficas Almeida, Alfredo Wagner Berno de. Terras de preto, terras de santo, terras de índio — uso comum e conflito. In: Cadernos do Naea/Ufpa. Belém, 1983. p. 163-96. Augé, Marc. Não-lugares — introdução a uma antropologia da supermodernidade. Campinas, Papirus, 1994. Barth, Fredrik. Introduction. In: Barth, F. (ed.). Ethnic groups and boundaries: the social organization of culture difference. Bergen, Universitets Forlaget; London, George Allen & Unwin, 1969. p. 9-38. ———. Other knowledge and other ways of knowing. Journal of Antropological Research. Atlanta, Emory University, 51, 1995. (GA 30322.) ———. O guru, o iniciador e outras variações antropológicas. Rio de Janeiro, Contra Capa. 2000. Bourdieu, Pierre. O poder simbólico. Lisboa, Rio de Janeiro, Difel, 1989. Geertz, Clifford. O saber local: novos ensaios em antropologia interpretativa. 2 ed. Petrópolis, Vozes, 1999. Ginzburg, Carlo. Olhos de madeira: nove reflexões sobre a distância. São Paulo, Companhia das Letras, 2001. 22 Barth, 2000:226-8. 41 42 Quilombos Meyer, Doris Rinaldi. A terra do santo e o mundo dos engenhos: estudo de uma comunidade rural nordestina. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1979. O’Dwyer, Eliane Cantarino. Remanescentes de quilombos do rio Erepecuru: o lugar da memória na construção da própria história e de sua identidade étnica. In: Brasil: um país de negros? Rio de Janeiro, Pallas; Salvador, Ceao, 1999. Oliveira, Roberto Cardoso de. A sociologia do Brasil indígena. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro; Brasília, UnB, 1978. Oliveira, João Pacheco. As sociedades indígenas e seus processos de territorialização. In: III Reunião de Antropólogos do Norte e Nordeste. Belém, jun. 1993. ——— (org.). Indigenismo e territorialização. Rio de Janeiro, Contra Capa, 1998. Peirano, Mariza. A favor da etnografia. Rio de Janeiro, Relume-Dumará, 1995. Poutignat, Philippe & Streiff-Fenart, Jocelyne. Teorias da etnicidade. São Paulo, Unesp, 1998. Rabinow, Paul & Dreyfus, Hubert, Michel Foucault: uma trajetória filosófica — para além do estruturalismo e da hermenêutica. Rio de Janeiro, Forense, 1995. Revel, Jacques. A invenção da sociedade. Lisboa, Difusão Editorial, 1989. ——— (org.). Jogos de escalas: a experiência da microanálise. Rio de Janeiro, FGV, 1998. Sahlins, Marshall. Ilhas de história. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1990. Seyferth, Giralda. A antropologia e a teoria do branqueamento da raça no Brasil. Revista do Museu Paulista, 30:81-98, 1985. Wolf, R. Eric. Europa y la gente sin historia. México, Fondo de Cultura Económica, 1987. CAPÍTULO 1 Os Quilombos e as Novas Etnias Alfredo Wagner Berno de Almeida* “é necessário que nos libertemos da definição arqueológica.” De maneira resumida, pode-se asseverar que as duas categorias básicas usualmente utilizadas no Brasil para se pensar a estrutura agrária emanam do Censo Agropecuário do IBGE e das estatísticas cadastrais do Incra. A primeira é uma categoria censitária, referente a estabelecimento,1 e a segunda, uma categoria cadastral com finalidade tributária, * A primeira versão deste texto foi apresentada ao grupo de trabalho Terra de Quilombos, da ABA, em 1996, e no âmbito do projeto ABA-Fundação Ford, coordenado por Eliane C. O’Dwyer. Foi posteriormente discutida em seminário interno do ISA — organizado por Sérgio Leitão em janeiro de 1999 — e divulgada como “Documentos do ISA, 5” sob o título “Direitos territoriais das comunidades negras rurais”. A atual versão, contendo revisões, achegas e alterações na ordem de exposição, foi debatida na reunião da ABA realizada em 1998 em Vitória (ES). 1 Desde 1975, na introdução aos censos agropecuários, tem-se a “conceituação” das categorias censitárias. Sublinhe-se que a noção de estabelecimento vem sendo utilizada desde que, em 1950, o Recenseamento Geral envolveu, dentre outros, os censos demográfico e agrícola. Consoante estes censos, “considerou-se como estabelecimento agropecuário todo terreno de área contínua, independente do tamanho ou situação (urbana ou rural), formado de uma ou mais parcelas, subordinado a um único produto, onde se processasse uma exploração agropecuária, ou seja: o cultivo do solo com culturas permanentes ou temporárias, inclusive hortaliças e flores; a criação, recriação ou engorda de animais de grande e médio Quilombos 44 referente a imóvel rural.2 Até 1985, com as medidas concernentes ao Plano Nacional de Reforma Agrária da Nova República,3 tudo que porventura pudesse ser registrado na área rural, compreendendo dominialidade ou uso de recursos, estaria classificado sob o princípio ordenador dessas duas categorias. Naquele mesmo ano, entretanto, quando se foi constituir o Cadastro de Glebas do Incra, houve alguma dificuldade no reconhecimento de situações que estavam se impondo pela via do conflito social e não correspondiam exatamente aos critérios norteadores daquelas categorias classificatórias. Tais situações desdiziam tanto preceitos jurídicos já instituídos quanto manuais de orientação para manejo e uso dos recursos naturais. Havia formas de apropriação dos recursos da natureza que não eram individualizadas, como no caso de imóvel rural, baseado na idéia de propriedade, nem estavam apoiadas na noção de unidade de exploração, independentemente da dominialidade, tal como o IBGE definia estabelecimento em termos de categoria censitária. Entre essas situações de conflito surgiram algumas que o próprio Mirad-Incra, através do Cadastro de Glebas, sob forte pressão dos movimentos camponeses,4 acabou ten- 2 3 4 porte; a criação de pequenos animais; a silvicultura ou o reflorestamento; a extração de produtos vegetais. Excluíram-se da investigação os quintais de residências e hortas domésticas”. E “as áreas confinantes sob a mesma administração, ocupadas segundo diferentes condições legais (próprias, arrendadas, ocupadas gratuitamente), foram consideradas um único estabelecimento”. O Cadastro de Imóveis Rurais do Incra adota, desde 1966, a seguinte definição operacional: “Imóvel rural, para os fins de cadastro, é o prédio rústico, de área contínua, formado de uma ou mais parcelas de terra, pertencente a um mesmo dono, que seja ou possa ser utilizado em exploração agrícola, pecuária, extrativa vegetal ou agroindustrial, independente de sua localização na zona rural ou urbana do município”. As restrições são as seguintes: os imóveis localizados na zona rural e cuja área total seja inferior a 5.000m2 não são abrangidos pela classificação de “imóvel rural”, e aqueles localizados na zona urbana somente serão cadastrados quando tiverem área total igual ou superior a 2ha, bem como produção comercializada. Ver Decreto no 91.766, de 10-10-1985. A Contag realizou o IV Congresso Nacional dos Trabalhadores Rurais de 25 a 30 de maio de 1985, em Brasília. Destaque-se que o Conselho Nacional dos Os Quilombos e as Novas Etnias do que reconhecer sob uma rubrica peculiar, denominada ocupações especiais. Da intensidade dos antagonismos e da dificuldade dos órgãos fundiários em administrá-los começa a surgir, de modo incipiente, um critério classificatório capaz de comportar situações consideradas “fora do comum”, “marginais” ou que não encontravam reconhecimento pleno no universo daquelas categorias mencionadas. A ele corresponde uma expressão ao mesmo tempo peculiar e genérica, capaz de comportar outras situações até então não-reconhecidas, embora legítimas. As situações que transcendiam ao domínio individual e que não correspondiam exatamente às formas de propriedade previstas — a saber: condominial, sociedade anônima e sociedade limitada e cooperativa — e que não equivaliam à posse considerada comunitariamente não poderiam, pois, ficar mais em suspenso. Essas ocupações especiais contemplaram as chamadas terras de uso comum, que não correspondem a “terras coletivas”, no sentido de intervenções deliberadas de aparatos de poder, nem a “terras comunais”, no sentido emprestado pela feudalidade. Os agentes sociais que assim as denominam o fazem segundo um repertório de designações que variam consoante as especificidades das diferentes situações. Pode-se adiantar que compreendem, pois, uma constelação de situações de apropriação de recursos naturais (solos, hídricos e florestais), utilizados segundo uma diversidade de formas e com inúmeras combinações diferenciadas entre uso e propriedade e entre o caráter privado e comum, perpassadas por fatores étnicos, de parentesco e sucessão, por fatores históricos, por elementos identitários peculiares e por critérios político-organizativos e econômicos, consoante práticas e representações próprias. Assim ficou aparentemente firmada a expressão oficial ocupações especiais, que designava, entre outras situações, as chamadas terras de preto, terras de santo e terras de índio, tal como definidas Seringueiros foi fundado formalmente em 17-10-1985, ou seja, uma semana após o lançamento do PNRA, relativizando a noção de módulo rural. O Movimento dos Sem-Terra, por sua vez, foi fundado em 1984 e realizou seu I Congresso em 1985 na cidade de Curitiba (PR), pressionando a “timidez” reformista. 45 Quilombos 46 e acatadas pelos próprios grupos sociais, que estavam classificados em zonas críticas de tensão social e conflito. O Cadastro de Glebas deu, pois, a entender que contemplaria essas situações, mas tal não ocorreu. A partir mesmo de 1987, observa-se um certo refluxo dessa pressão dos movimentos sociais, os interesses “ruralistas” retomam a iniciativa, há alterações no Mirad e os termos de negociação dos conflitos revelam mediadores debilitados com as malsucedidas e antidemocráticas comissões agrárias. O desdobramento que aqui nos interessa mais de perto, por revelar-se restritivo e limitante, concerne à dificuldade de reconhecimento das chamadas terras de preto. Trata-se da aprovação, em outubro de 1988, do art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, um dispositivo mais voltado para o passado e para o que idealmente teria “sobrevivido” sob a designação formal de “remanescentes das comunidades de quilombos”. Dentro dessa moldura de passadismo, no entanto, havia dubiedades e problemas que se colocaram desde logo, rompendo com a idéia de monumentalidade e sítio arqueológico que dominara o universo ideológico dos legisladores. Pôde-se perceber que, ao contrário do imaginado pelos legisladores, nada havia de auto-evidente. Indagações multiplicaram-se num amplo debate. Quais eram os instrumentos operacionais para se efetivar essa questão colocada na ordem do dia constitucional? Como distinguir com acurácia as situações objeto da ação de titulação definitiva? Qual o esquema interpretativo disponível e apropriado para dar conta dessa contingência históricosociológica? Quer dizer, qual o conceito de quilombo que estava em jogo? Ora, as definições com pretensão classificatória são por princípio arbitrárias e sempre demandam disputas, dispondo em campos opostos os interesses em questão. E foi o que sucedeu a partir da retomada das mobilizações camponesas pós-1988, nas quais o fator étnico foi publicizado e tornado um componente dos critérios político-organizativos.5 As situações concretas de conflito levaram ao dissenso em torno do conceito de quilombo e dos procedimentos operacionais, revelando o grau de organização das forças sociais que 5 Para maiores explicações, ver Almeida, 1989. Os Quilombos e as Novas Etnias recusavam o caráter restritivo e limitante do único instrumento legal produzido após a abolição de 1888, o qual se refere a direitos sobre a terra por parte de ex-escravos e seus descendentes. Ganharam visibilidade nesse debate as primeiras associações voluntárias e as identidades coletivas que revelavam a condição de pertencimento a grupos sociais específicos e que viriam a compor a partir de 1994 um movimento social quilombola de abrangência nacional. No plano da produção de conhecimentos importava saber qual seria, em primeiro lugar, o conceito veiculado pelas fontes bibliográficas disponíveis e qual seria a forma com que esse conceito estaria sendo usado comumente por associações voluntárias da sociedade civil, partidos políticos e entidades de representação dos trabalhadores. E mais: como estaria sendo acionado esse conceito pelos operadores do direito e qual seria a forma específica do discurso jurídico a respeito? Os primeiros estudos levaram a uma referência histórica do período colonial. Quase todos os autores consultados, do presente ou do passado — desde o clássico de Perdigão Malheiro, A escravidão no Brasil : ensaio histórico, jurídico, social, que é de 1866, até os recentes trabalhos de Clóvis Moura, de 1996 —, trabalhavam com o mesmo conceito jurídico-formal de quilombo, um conceito que ficou, por assim dizer, frigorificado. Esse conceito, composto de elementos descritivos, foi formulado como uma “resposta ao rei de Portugal” em virtude de consulta feita ao Conselho Ultramarino, em 1740. Quilombo foi formalmente definido como “toda habitação de negros fugidos, que passem de cinco, em parte despovoada, ainda que não tenham ranchos levantados e nem se achem pilões nele”.6 6 Apresentamos a seguir o alvará de 3 de março de 1741, tal como reproduzido por Joaquim Felício dos Santos em suas Memórias do distrito diamantino:: “Eu ElRei faço saber aos que este alvará virem que sendo-me presentes os insultos, que no Brasil cometem os escravos fugidos, a que vulgarmente chamam calhambolas, passando a fazer o excesso de se juntarem em quilombos, e sendo preciso acudir com remédios que evitem esta desordem: hei por bem que a todos os negros que forem achados em quilombos, estando neles voluntaria- 47 Quilombos 48 Ora, essa definição contém basicamente cinco elementos, que podem ser assim sintetizados:7 o primeiro é a fuga, isto é, a situação de quilombo sempre estaria vinculada a escravos fugidos. O segundo é que quilombo sempre comportaria uma quantidade mínima de “fugidos”, a qual tem que ser exatamente definida — e nós vamos verificar como é que ocorrem variações dessa quantidade no tempo. Em 1740, o limite fixado correspondia a “que passem de cinco”. O terceiro consiste numa localização sempre marcada pelo isolamento geográfico, em lugares de difícil acesso e mais perto de um mundo natural e selvagem do que da chamada “civilização”. Isso vai influenciar toda uma vertente empirista de interpretação, com grandes pretensões sociológicas, que conferiu ênfase aos denominados “isolados negros rurais”, marcando profundamente as representações do senso comum, que tratam os quilombos fora do mundo da produção e do trabalho, fora do mercado. Esse impressionismo gerou outro tipo de divisão, que descreve os quilombos marginalmente, fora do domínio físico das plantations. O quarto elemento refere-se ao chamado “rancho”, ou seja, se há moradia habitual, consolidada ou não, enfatizando as benfeitorias porventura existentes. E o quinto seria essa premissa: “nem se achem pilões nele”. Que significa “pilão” nesse contexto? O pilão, enquanto instrumento que transforma o arroz colhido em alimento, representa o símbolo do autoconsumo e da capacidade de reprodução. Sob esse aspecto, gostaria de sublinhar que foi a partir de 7 mente, se lhes ponha com fogo uma marca em uma espádua com a letra F, que para este efeito haverá nas câmaras: e se quando for executar esta pena, for achado já com a mesma marca, se lhe cortará uma orelha; tudo por simples mandado do juiz de fora, ou ordinário da terra ou do ouvidor da comarca, sem processo algum e só pela notoriedade do fato, logo que do quilombo for trazido, antes de entrar para a cadeia”. Aires da Mata Machado Filho utiliza este alvará para distinguir entre quilombola e garimpeiro em O negro e o garimpo em Minas Gerais, livro que começou a elaborar em 1928. O jurista Celso de Magalhães, que é patrono do Ministério Público do estado do Maranhão, em 1869 compôs um poema inspirado no Quilombo de São Benedito do Céu, cujo título reproduz a designação formalmente adotada no mencionado alvará, ou seja, “os calhambolas”. Para um aprofundamento, ver Almeida, 1996. Os Quilombos e as Novas Etnias uma pesquisa sobre conflitos envolvendo famílias camponesas, que representam simultaneamente unidades familiares de trabalho/produção e de consumo, que cheguei às denominadas terras de preto. Um dado de pesquisa é que nessas situações sociais o pilão traduz a esfera de consumo e contribui para explicar tanto as relações do grupo com os comerciantes que atuam nos mercados rurais quanto sua contradição com a grande plantação monocultora. Aliás, ao contrário do que imaginaram os defensores do “isolamento” como fator de garantia do território, foram essas transações comerciais da produção agrícola e extrativa dos quilombos que ajudaram a consolidar suas fronteiras físicas, tornando-as mais viáveis porquanto acatadas pelos segmentos sociais com que passavam a interagir. Dessa forma, esses cinco elementos funcionaram como definitivos e como definidores de quilombo. Jazem encastoados no imaginário dos operadores do direito e dos comentadores com pretensão científica. Daí a importância de relativizá-los, realizando uma leitura crítica da representação jurídica que sempre se mostrou inclinada a interpretar o quilombo como algo que estava fora, isolado, para além da civilização e da cultura, confinado numa suposta auto-suficiência e negando a disciplina do trabalho. No que diz respeito à questão da moradia e à questão da quantidade mínima, o próprio jurista Perdigão Malheiro faz uso da idéia de “reunião”, ou seja, o quilombo como uma ação coletiva de moradia, trabalho e luta, opondo-se não somente aos mecanismos repressores da força de trabalho, mas principalmente à lógica produtiva da plantation. A ação deliberada de fuga desdobra-se noutro elemento estratégico, qual seja, a área de cultivo também designada roça. Assim, embora a chamada roça não apareça como elemento característico desses quilombos, em conformidade com o discurso jurídico que busca ilegitimá-los como “agrupamentos de vadios, que negam o trabalho”, existe copiosa documentação que enfatiza as áreas de cultivo e demais benfeitorias dos quilombolas. Nos relatos militares observa-se que, em algumas campanhas bélicas na segunda metade do século XIX, os quilombos foram considerados como presa de guerra. Suas edificações e áreas de cultivo foram consideradas necessárias, como no caso do quilombo Limoeiro, para constituir as “colônias”, abrigando as famílias de migrantes cearenses fugidos da seca de 1877 e assegurando- 49 Quilombos 50 lhes as facilidades de uma primeira colheita.8 As tropas de linha imperiais não deviam destruir as benfeitorias dos quilombos. Ao contrário, deviam cingir sua ação ao afugentamento dos quilombolas. Assim, a ação militar contra os quilombos consistia numa etapa inicial de projeto de colonização. Havia um reconhecimento explícito do trabalho através das benfeitorias: o governo provincial do Maranhão colocava dentro da casa de um quilombola afugentado pelas tropas um cearense recém-migrado, que passava “naturalmente” a usar o mesmo pilão, o mesmo poço de água, a mesma roça, os mesmos caminhos que levavam às atividades extrativas na mata. Está-se diante de uma continuidade da condição camponesa que evidencia um modo de reconhecimento do quilombo como unidade produtiva. Os relatos militares, como resultados de uma ação direta, dispõem assim de descrições mais detalhadas sobre a vida nos quilombos. Tal como os militares, os juristas na sociedade colonial também representavam o que se tinha de informação mais pormenorizada e fidedigna. Os inquéritos nos quais eram tomados depoimentos aos quilombolas aprisionados constituíam uma de suas fontes, bem como as verificações in loco e observações diretas a partir de viagens oficiais. Assim, além de Perdigão Malheiro, veja-se Tavares Bastos, que em O vale do Amazonas, editado em 1866, registrou no Baixo Amazonas escravos fugidos e agrupados nos denominados mocambos, que comercializavam às escondidas com os regatões que subiam o rio Trombetas ou vinham intercambiar produtos no “próprio porto de Óbidos”. Reforçam esses aspectos produtivos as observações de Perdigão Malheiro no livro já mencionado, as quais se referem aos dados diretamente levantados por ele, assinalando que, no caso brasileiro, raramente se encontrava o escravo individualizado. Em verdade havia famílias de escravos, o que era uma situação completamente diferente, em termos de organização da produção, daquelas formas escravistas que compreendiam apenas indivíduos.9 8 9 Ver Almeida, 1983. Os naturalistas e viajantes que percorreram o interior do Brasil no século XIX também registraram, a partir de observação direta, características semelhantes a essas assinaladas pelos juristas e militares. O botânico von Martius e o zoólogo Os Quilombos e as Novas Etnias Eis outro elemento a ser enfatizado: a unidade familiar que suporta um sistema produtivo específico que vai conduzir ao acamponesamento com o processo de desagregação das fazendas de algodão e cana-de-açúcar e com a decorrente diminuição do poder de coerção dos grandes proprietários territoriais. Tal sistema de produção, mais livre e autônomo, baseado no trabalho familiar e em formas de cooperação simples entre diferentes famílias, acha-se intimamente vinculado ao deslocamento do conceito de quilombo. Mais que possíveis laços “tribais”,10 temos nos quilombos instâncias de articulação entre essas unidades de trabalho familiar que configuram uma divisão de trabalho própria. Do meu ponto de vista, a questão do denominado “quilombo hoje” passa também pelo entendimento do sistema econômico intrínseco a essas unidades familiares, que produzem concomitantemente para o seu próprio consumo e para diferentes circuitos de mercado. Considerando que tanto escravos quanto quilombolas exerciam atividades agrícolas e extrativas de autoconsumo, pode-se repensar o argumento dos historiadores econômicos de que nos momentos de grande elevação do preço do algodão ou da cana-de-açúcar para o senhor compensava assegurar a alimentação do escravo por vias externas, isto é, comprando a produção alimentar do campesinato periférico à grande plantação e dos comerciantes que transacionavam inclusive com quilombolas. von Spix, que viajaram por terra do Rio de Janeiro a Belém entre 1817 e 1820, produzem inúmeros relatos sobre aspectos da escravidão nas fazendas e inclusive sobre “preto fugido”. O biólogo Charles Darwin, em 1831, viajando pelo interior do estado do Rio de Janeiro, antes de chegar à lagoa Maricá, menciona um caso de resistência na destruição de um quilombo localizado num enorme morro de granito. Também há registros similares de Auguste de Saint-Hilaire (1839) em sua viagem pelas províncias do Rio de Janeiro e de Minas Gerais. O discurso dos naturalistas, entretanto, em virtude de não ter suscitado intervenções diretas dos poderes constituídos, deve ser estudado separadamente, considerando o propósito do presente texto. 10 Amaral (1915) tenta inventariar o que ele chama de “tribos” africanas e estabelece algumas relações entre elas e as “rebeliões”, mencionando o levante dos haussas em 1807, na Bahia, e outros com participação de egbás ou nagôs. 51 Quilombos 52 No caso do preço do algodão, ele vai decaindo desde 1780, chega ao fundo do poço em 1819 e mantém-se baixo, só voltando a subir durante a Guerra de Secessão norte-americana (1861-65). Depois de 1872, entretanto, os Estados Unidos recuperam sua posição no mercado e os preços refluem. Nessa competição a produção maranhense não consegue sobrepujar os concorrentes, em termos de qualidade e preço, e a estratégia dos fazendeiros é fazer face ao processo de desagregação de seus domínios vendendo seus próprios escravos. No caso das plantações de cana-de-açúcar do Nordeste, desde o fim do século a produção vivia uma tendência declinante. Hobsbawn11 mostra que essas plantations brasileiras estavam de fato decaindo desde o século XVII com a concorrência das Antilhas. Por outro lado, segundo o mesmo Hobsbawn, no decorrer do século XIX a América Latina teria salvado a indústria têxtil britânica, que utilizava basicamente o fio de algodão, ao se tornar o maior mercado para suas exportações. Em 1840, 35% das exportações dessas indústrias tinham como destino a América Latina e principalmente o Brasil. Esses fatos ajudam a entender quão lenta e gradual foi a decadência das grandes plantações e como o poder dos grandes proprietários foi-se enfraquecendo e debilitando. Em certa medida, isso explica a duração de mais de meio século do quilombo de Palmares e também por que o quilombo de Turiaçu durou mais de 40 anos, como Malheiro bem reconhece. O poder de coerção dos grandes proprietários diminuiu, e as formas violentas de justiça privada que funcionavam na administração dos dispositivos legais revelaram-se insuficientes para controlar conflitos e tensões com a força de trabalho escrava, tornando cada vez mais imprescindíveis as tropas de linha e os “bandeirantes”. Veja-se, portanto, que essas formas com as quais estamos nos havendo são muito anteriores à abolição da escravatura. Já havia desde então uma forma de afirmação econômica da pequena 11 Para uma leitura dos conflitos recentes nas plantações açucareiras da costa nordestina, ver Sigaud (1979). Os Quilombos e as Novas Etnias produção agrícola, ligada à perda do poder de coerção dos grandes proprietários. Esses dados, todavia, mesmo que os juristas de certo modo os percebessem, não eram incorporados à definição de quilombo. Eles continuaram operando com a definição de 1740 ou com a definição do período colonial. No período imperial, uma consulta às legislações dos governos provinciais revela que eles apenas reduziram o número de integrantes necessários para formar um quilombo. Se antes a quantidade mínima de “fugidos” devia passar de cinco, depois eles a reduziram para três ou dois. No caso do Maranhão, a legislação de 1847 considerava que uma “reunião” de dois ou mais indivíduos com casa ou rancho já constituía quilombo.12 Mantinham-se, portanto, os mesmos elementos de definição, reduzindo porém o número de pessoas e tentando inviabilizar qualquer tentativa de autonomia produtiva em face dos grandes proprietários, seja individual ou coletiva. Os cinco elementos já mencionados mantêm-se nas definições de quilombo e só vão sofrer um deslocamento de variação e intensidade entre eles mesmos. Na legislação republicana nem aparecem mais, pois com a abolição da escravatura imaginava-se que o quilombo automaticamente desapareceria ou não teria mais razão de existir. Constata-se um silêncio nos textos constitucionais sobre a relação entre os ex-escravos e a terra, principalmente no que tange ao símbolo de autonomia produtiva representado pelos quilombos. E quando é mencionado na Constituição de 1988, 100 anos depois, o quilombo já surge como sobrevivência, como “remanescente”. Reconhece-se o que sobrou, o que é visto como residual, aquilo que restou, ou seja, aceitase o que já foi. Julgo que, ao contrário, se deveria trabalhar com o conceito de quilombo considerando o que ele é no presente. Em outras palavras, tem que haver um deslocamento. Não é discutir o que foi, e sim discutir o que é e como essa autonomia foi sendo construída historicamente. Aqui haveria um corte nos instrumentos conceituais necessários para se pensar a questão do quilombo, porquanto não se 12 Cf. Lei no 236 de 20 de agosto de 1847 sancionada pelo presidente da província do Maranhão Joaquim Franco de Sá. 53 Quilombos 54 pode continuar a trabalhar com uma categoria histórica acrítica nem com a definição de 1740. Faz-se mister trabalhar com os deslocamentos ocorridos nessa definição e com o que de fato é, incluindo-se nesse aspecto objetivo a representação dos agentes sociais envolvidos. Quer dizer, como é que se constituiu essa autonomia a partir da desagregação das grandes plantações, sejam algodoeiras, sejam de canade-açúcar, sejam cafeeiras? Esse é o grande problema. Daí sermos muitas vezes obrigados também a romper com o dualismo geográfico atribuído ao quilombo, que faz com que ele seja entendido como oposição à plantation e como o que está fora dos limites físicos da grande propriedade territorial. Em nossa experiência em Frechal,13 fomos levados a pensar um quilombo constituído a 100 metros da casa-grande. Ora, para os historiadores isto é inconcebível, já que os planos de oposição entre “civilização” e “natureza” estariam de fato rompidos e a tal espaço corresponderia, se tanto, a senzala. Além de romper com o dualismo geográfico mencionado, o significado de quilombo aqui privilegiado transcende à clivagem rural/ urbano ou à diferença entre estabelecimento e imóvel rural, ou ainda à distinção jurídica entre propriedade e posse, bem como aos intervalos que definem a fração mínima de parcelamento do módulo rural. Caso nos empenhemos numa releitura das fontes documentais e arquivísticas, veremos que há indícios dessa idéia de quilombo enquanto processo de produção autônomo, no momento em que os preços dos produtos do sistema de monocultura agrário-exportador estavam em declínio no mercado internacional. Esse quadro propiciava situações de autoconsumo e de autonomia a pouca distância da casa-grande. Tratava-se de famílias de escravos que mantinham uma forte autonomia em relação ao controle da produção pelo grande proprietário, que não era mais o organizador absoluto da produção diante das dificuldades com a queda do preço de seu produto básico. 13 Comunidade de quilombolas localizada no Maranhão, cujas terras foram asseguradas através do Decreto Federal no 56 de 20-5-1992, que criou a Reserva Extrativista Quilombo de Frechal. Os Quilombos e as Novas Etnias À tendência declinante dos preços acrescente-se o endividamento dos “fazendeiros” com as casas comerciais e aviadoras, que desde o início da segunda metade do século XVIII sobressaíam no casario assobradado da Praia Grande, em São Luís, e que desde a ação do arquiteto Landi, autorizada pelo marquês de Pombal, fizeram de Belém uma destacada capital comercial. Observa-se em algumas regiões, por meio de estatísticas do século XIX, reunidas por César A. Marques em 1876 e 1877 no seu Dicionário histórico-geográfico da província do Maranhão, mostram que, nesses períodos de declínio dos preços do algodão, aumentava a produção de farinha em algumas regiões. Ou seja, essas famílias produziam farinha e outros produtos alimentares, como o arroz, e colocavam-se no mercado de forma autônoma, muitas vezes sem passar pelo grande proprietário.14 O poder de mediação dos grandes proprietários rurais declinou mais rapidamente no Maranhão, onde não teria havido plantations propriamente ditas nem usinas, como no caso da costa nordestina. Não havia uma parte industrial nos empreendimentos algodoeiros, e quanto à cana-deaçúcar registra-se apenas um engenho central. Não se agregava valor, tampouco se incorporavam inovações tecnológicas, salvo 14 Compulsando-se o “Parecer no 48A, formulado em nome das comissões reunidas de orçamento e justiça civil acerca do projecto de emancipação dos escravos” por Rui Barbosa, em 1884, verifica-se que foi concedida atenção detida ao exemplo da Jamaica em que os escravos e ex-escravos se voltaram à cultura de produtos alimentícios, reforçando uma máxima: “o fato é que os negros não desamparam a agricultura” (Beaulieu,1882:208, apud Barbosa,1884:128). Barbosa polemiza com P. Malheiro e com José de Alencar, chamando a atenção para o potencial agrícola das famílias escravas, evidenciando que os juristas estavam no centro dos debates das questões econômicas e sociais. O mesmo Barbosa cita, como argumento de autoridade, excertos da narrativa de C. Darwin deixando os portos do Brasil e asseverando nunca mais querer visitar um país de escravos (Barbosa, 1884:26). O discurso jurídico, em sua pretensão enciclopédica, buscava fortalecer seus argumentos estabelecendo uma interlocução com a antropologia, a filosofia e a sociologia. Rui Barbosa cita C. Letourneau, Herbert Spencer e Stuart Mill ao examinar as relações entre raça e escravidão. 55 Quilombos 56 episodicamente. A própria falência da Cia. Geral do Grão-Pará e Maranhão (1755-78) prenunciava o declínio do poder dos grandes proprietários, cuja prosperidade sempre esteve diretamente vinculada à intervenção do poder real, ou seja, do “Estado pombalino”. O processo de fragmentação e desagregação dos grandes estabelecimentos algodoeiros gerou inúmeras situações de acamponesamento, tal como sucedera a partir de 1755 com o confisco e desmantelamento das fazendas das ordens religiosas15 e com a abolição da escravatura indígena. As situações derivadas dessa forma de desagregação e desmembramento não foram reconhecidas plenamente pela Lei de Terras de 1850 e persistiram como “foco de tensão social”. E esse é outro grande problema. Como o instituto da sesmaria termina em 1824, ficamos de 1824 a 1850 sem um dispositivo legal para dirimir as questões agrárias. Além disso, parte significativa das sesmarias não foram confirmadas. Os sistemas de apossamento disseminaram-se, segundo as condições específicas de povos indígenas e de escravos e ex-escravos, que produziam de maneira cada vez mais autônoma, e de “homens livres”, que exerciam atividades de cultivo e extrativas na periferia das grandes plantações, junto aos caminhos de boiada e nas regiões de floresta densa. Muitos juristas interpretam essa diversidade de situações e de modalidades de relação com os recursos naturais como fundamental para explicar a pluralidade das posses no Brasil, mas o grande problema é que, com a Lei de Terras de 1850, houve 15 Foram quase três séculos de senzalas conventuais. O marquês de Pombal confiscou em 1759 as fazendas dos jesuítas e em 1764 fechou os noviciados, dificultando a manutenção dos conventos das demais ordens religiosas (franciscanos, carmelitas e mercedários). Ocorreu uma certa “alforria” de escravos onde a autoridade dos mordomos-régios não pôde ser mantida a partir da derrocada da Cia. Geral de Comércio em 1777/78. Assim, diferentemente da ilha de Marajó, onde famílias descendentes de antigos mordomos-régios mantiveram o domínio sobre tais extensões territoriais, conservando inclusive os antigos sobrados, no caso da Fazenda Arari, em Alcântara (MA), a terra permaneceu sob controle dos descendentes de antigos escravos, restando das casas-grandes apenas os escombros dos alicerces. Os Quilombos e as Novas Etnias constrangimentos ao reconhecimento formal das posses, enquanto, de outra parte, inúmeros imóveis rurais foram recadastrados com registros no cartório, ou seja, foram “devolvidos” e novamente reconhecidos e titulados, comportando em seus domínios inúmeras situações de posse. Assim, menosprezaram-se as situações de ocupação efetiva e de posse consolidada nesses domínios. Um quadro de tensões instalou-se de maneira permanente. Esse problema não foi resolvido nem pela abolição da escravatura, 38 anos depois, nem pela primeira Constituição republicana de 1891, persistindo como um móvel de antagonismos sociais e conflitos agudos. Contrariamente, nos Estados Unidos, com a abolição da escravatura teria surgido uma camada muito poderosa dos chamados black farmers, que formava um campesinato composto, dentre outros, pelos 200 mil negros escravos que haviam participado da Guerra de Secessão. Houve reconhecimento amplo e “benefícios” diretos para os que se empenharam na prestação de serviços guerreiros. No Brasil, o reconhecimento foi restrito, como sucedeu na Guerra do Paraguai, quando alguns escravos que combateram nas fileiras da armada imperial receberam terra. Nas “guerras regionais”, os registros dessa ordem são raros, quase inextricáveis, além de serem de consulta difícil. No Maranhão, temos apenas uma situação levantada, com todas as dificuldades que marcam as reconstituições a partir da história oral, e que se refere a Saco das Almas. Há, ao lado dessas, situações de banditismo, como a prestação de serviços guerreiros para grandes proprietários, mesmo que na forma de repressão a quilombolas. Correspondem a tais situações os conflitos em que escravos são colocados contra escravos ou ex-escravos. Algumas das chamadas “comunidades negras” de hoje foram acionadas para lutar no passado contra os quilombos e os chamados “separatistas”, tendo recebido como recompensa extensões de terra. Como seus domínios territoriais acabaram usurpados, elas agora são reincorporadas como quilombolas. Nesse caso temos o exemplo de um grupo social que entrou na “contramão da história” como meio de obter terras, sendo essa uma forma invertida de afirmar uma territorialidade já em 1832 e 1838. Hoje tal grupo se vê e é reconhecido como quilombola. Ao ser reconhecido como quilombo, observa-se que a ressemantização do conceito aqui passou por uma 57 58 Quilombos situação social diametralmente oposta àquela de uma certa tradição heróica e de resistência à dominação. Isso poderia inclusive ser visto como um absurdo histórico, mas, quando se considera a autodefinição dos agentes sociais em jogo e se converte tal trajetória num fenômeno sociológico em que identidade e território seriam indissociáveis, temse uma outra ordem de fatos. O exemplo parece próprio de um quadro de dominação colonial em que os mecanismos repressores da força de trabalho transcendem à abolição formal da escravatura. Para desespero da técnica arqueológica, aqui a escavação, como comprobatória, se trata de uma reconstrução social do grupo. Em face de condições concretas de possibilidade de assegurar o território é que ele parece buscar alinhamentos. Ampliam-se assim as estratégias registradas como garantidoras das vias de acesso à terra e do exercício da autonomia por escravos e ex-escravos em momentos históricos bem anteriores à abolição. Voltando àquela noção de quilombo, que rompe com os dualismos geográficos e de economia formalista (“civilização” versus “barbárie”, “trabalho” versus “vadiagem”, casa-grande versus matas distantes), cabe atentar para as decisões arbitrárias a respeito dos deslocamentos compulsórios da força de trabalho, que se naturalizam na vida cotidiana das sociedades caracterizadas pelo sistema repressor da força de trabalho. Em termos históricos, o objetivo das tropas de linha ao combater os quilombos era tentar trazer a força de trabalho, que idealmente estaria fora dos limites físicos das grandes plantações, para dentro de seus domínios e mantê-las sob o controle dos fazendeiros. Fazer os quilombolas retornarem à disciplina do trabalho nas plantações constituía a finalidade precípua da ação militar. Todos os depoimentos contidos nos relatórios militares falam da necessidade permanente de “reinstaurar a disciplina” e o hábito do trabalho, implantando rígidas jornadas de trabalho dentro das fazendas. Esse é o ponto nodal dos relatórios militares de repressão, tanto no combate a um quilombo específico quanto nos contextos de sublevação regional. Nas ordens do dia do presidente e comandante das armas da província do Maranhão, Luís Alves de Lima, mais conhecido posteriormente como duque de Caxias, no caso da Guerra da Balaiada (1839-41) tem-se uma ilustração disso. Ele afirma ter apreendido 3 Os Quilombos e as Novas Etnias mil quilombolas comandados pelo Negro Cosme e 8 mil “vadios do sertão” ou insurretos, também designados “balaios”. Fizeram-se 11 mil prisioneiros para serem reintroduzidos no denominado “hábito do trabalho” e para retornarem ao processo produtivo nas fazendas ou à disciplina de um mundo dirigido a partir delas. Portanto, recuperar a disciplina do trabalho, dado que a indisciplina é um dos elementos definitórios do quilombo, acaba se tornando um componente essencial que produz um deslocamento geográfico: quem estava fora da grande plantação é trazido compulsoriamente para dentro ou subjugado aos seus desígnios maiores. Ora, quando esse contingente já foi trazido para dentro e ocorre uma queda acentuada no preço dos produtos no mercado mundial, é como se o quilombo tivesse sido trazido para dentro da casa-grande ou mesmo aquilombado a casa-grande, pois, diante da falta de condições do grande proprietário para exercer a coerção, a autonomia passa a existir internamente às fazendas. O sistema repressor não fala por si só e precisa de suporte econômico. Escasseando os recursos financeiros dos grandes proprietários, os mecanismos de coerção e justiça privada não funcionam com a mesma intensidade. Nesse quadro, o processo de acamponesamento ou de formação de uma camada de pequenos produtores familiares tende a se expandir e consolidar. Eis o que explica esses casos de existência autônoma nos limites das fazendas, no quintal e na própria senzala. Dessa forma, a noção de quilombo se modificou: antes era o que estava fora e precisava vir necessariamente para dentro das grandes propriedades; mas, numa situação como a de hoje, trata-se de retirar as famílias de dentro das fazendas, ou seja, expulsá-las da terra. Antes era trazer para dentro do domínio senhorial: essa é que era a lógica jurídica que ilegitimava o quilombo. Hoje é expulsar, botar para fora ou tirar dos limites físicos da grande propriedade. No caso de Frechal, isso é bem marcante: no século XIX, o sonho dos proprietários era acabar com o quilombo do Frechal e trazer os quilombolas para dentro do imóvel rural Frechal. Agora, em 1990, do ponto de vista do proprietário, a estratégia é retirar todos do Frechal e mandá-los não se sabe para onde. Mas o fato de tê-los trazido de lá para cá e agora querer levá-los daqui para lá rompeu 59 Quilombos 60 com o dualismo dentro/fora: o quilombo, em verdade, descarnouse dos geografismos, tornando-se uma situação de autonomia que se afirmou ou fora ou dentro da grande propriedade. Isso muda um pouco aquele parâmetro histórico, arqueológico, de ficar imaginando que o quilombo consiste naquela escavação arqueológica onde há indícios materiais e onde estão as marcas ruiniformes da ancianidade da ocupação. Esse procedimento tem que ser revisto, e as evidências, reinterpretadas. Se porventura houver uma escavação para identificar quilombo, nesse contexto, ela resultará quando muito na reconstituição dos alicerces da casa-grande, o que poderá parecer contraditório e extremamente paradoxal para os operadores do direito.16 O teste de arqueologia de superfície e seu poder comprobatório devem ser relativizados, como devem ser relativizadas certas provas documentais e arquivísticas. Caso aplicados stricto sensu, resultam numa definição restritiva de quilombo, em tudo igual àquela da sociedade colonial. A observação etnográfica aqui permite romper com o positivismo da definição jurídica e chama a atenção para os instrumentos epistemológicos tão odiados pelos empiristas e positivistas. É com base nesses instrumentos que se pode reinterpretar criticamente o conceito e asseverar que a situação de quilombo existe onde há autonomia, onde há uma produção autônoma que não passa pelo grande proprietário ou pelo senhor de escravos como mediador efetivo, em- 16 O fascínio exercido pela auto-evidência faz com que uma perícia que aparentemente indique com suposta autoridade técnica a prova material acabe se derramando na metáfora cunhada na segunda metade do século XIX pelo senador Silveira Martins — citada por Joaquim Nabuco em O abolicionismo,, de 1883,, e depois reproduzida difusamente —, que “definiu o Brasil como uma fazenda”: “o Brasil é o café, e o café é o negro”. Onde tudo é fazenda, o quilombo finda por ser algo raro. Aliás, é assim também que o trata o próprio Nabuco em A escravidão, livro que começou a redigir em 1869: “Esse quilombo dos Palmares é um fato isolado na nossa história: os apontamentos contemporâneos são escassos. (...) Foi a única tentativa dos negros entre nós para se emanciparem e a história nada teria que acusar em rebeliões dessa ordem, se todas perdurassem com a mesma moderação e constância e morressem com o mesmo heroísmo”. Os Quilombos e as Novas Etnias bora simbolicamente tal mediação possa ser estrategicamente mantida numa reapropriação do mito do “bom senhor”, tal como se detecta hoje em certas condições de aforamento. Essa compreensão sociológica desloca bastante os termos em que a questão usualmente vem sendo colocada. Quando lemos os juristas do século XIX — como Tavares Bastos, Perdigão Malheiro, Joaquim Nabuco, Rui Barbosa, Celso Magalhães, Dunshee de Abranches e outros eruditos como Brandão Júnior, que defendeu uma tese em 1870, em Bruxelas, sobre a escravidão no Brasil, e Inglês de Souza —, percebemos que suas observações diretas transcendem, em certa medida, às disposições jurídicas. Os juristas da primeira metade do século XX também ficaram tributários disto, como Oliveira Viana,17 em Raça e assimilação (1932), e Evaristo de Moraes, em A escravidão africana no Brasil (1933). Mas, ao mesmo tempo, todos eles estão meio atados, quando vão definir quilombo, à própria questão doutrinária; ficam congelados dentro dos marcos conceituais das ordenações manuelinas e filipinas e dos demais dispositivos do período colonial. A ênfase é sempre dirigida ao quilombola considerado como escravo fugido e bem longe dos domínios das grandes propriedades. Ora, segundo a ruptura antes sublinhada, houve escravo que não fugiu, que permaneceu autônomo dentro da esfera da grande propriedade e com atribuições diversas; houve aquele que sonhou em fugir e não conseguiu fazê-lo; houve aquele que fugiu e foi recapturado; e houve esse que não pôde fugir porque ajudou os outros a fugirem e o seu papel era ficar. Todos eles, entretanto, se reportavam direta ou 17 Viana procede inclusive à crítica das categorias censitárias, que por um viés evolucionista traçavam condições de convergência para um único padrão racial ou de uma raça superior capaz de assimilar e submeter as demais: “Nos recenseamentos de 1872 e 1890, os nossos demografistas oficiais adotaram uma classificação de tipos antropológicos brasileiros, tomando como critério diferenciador exclusivamente este caráter morfológico, a cor da pele. Daí a divisão da nossa população em quatro grupos étnicos: o dos brancos, o dos negros, o dos caboclos, o dos mulatos” (Viana, 1932:59). Para Viana, essa classificação não poderia mais ser aceita, embora estivesse ainda sendo utilizada por antropólogos. 61 62 Quilombos indiretamente aos quilombos. Teríamos, pois, várias situações sociais a serem contempladas, e o próprio art. 68 é interpretado como discriminatório também sob esse aspecto, porquanto tenta reparar apenas parcial e incidentalmente uma injustiça histórica e reconhecer de maneira restrita um direito essencial. Ao fazê-lo, restringe o conceito a uma única situação, ou seja, a dos “remanescentes” na condição de “fugitivos” e de “distantes”. Rompendo com esse sentido estrito, a nova definição pode abranger uma diversidade de situações, inclusive aquelas relativas à compra de terras por famílias de escravos alforriados. Essa ocorrência, acentuada em Minas Gerais, é bem evidente na história de Chico Rei. Com o ouro extraído de uma velha mina, eles compraram a alforria dos demais e mantiveram um território próprio e uma produção autônoma. Assim, as áreas adquiridas mediante transações mercantis tornam-se também passíveis de ser contempladas: como não estão regularizadas e os formais de partilha não foram feitos, permanecem “intrusadas” e constituem fonte de conflito. As áreas de herança, garantidas pelos direitos de sucessão, mas usurpadas e griladas, inscrevem-se nesse quadro. Os descendentes e herdeiros constituem os principais agentes sociais em diversas situações analisadas. Inúmeras pesquisas chamam a atenção para isso, recorrendo às técnicas de história oral pelas quais os agentes sociais que receberam as terras como herança narram as dificuldades da formalização. Muitas vezes a documentação cartorial é fragmentada e precária. Impressiona a quantidade de cartórios que já sofreram ação de incêndio. Impressiona o estado de deterioração dos papéis e de desorganização dos arquivos paroquiais e das agências do Judiciário. Em virtude dessa precariedade, os estudos de reconstituição da memória do grupo ganham relevância. Mesmo quando não se obtêm resultados expressivos nos levantamentos de fontes secundárias, prevalecem as narrativas dos agentes sociais entrevistados. Ou seja, também o documento tem que ser relativizado consoante as condições reais de registro e de conservação das fontes. Retomando as várias posições aventadas, pode-se asseverar que quilombo abrangeria hoje todas elas. Os fatores objetivos e a representação do real constituem, portanto, a realidade de referência. É neces- Os Quilombos e as Novas Etnias sário que nos libertemos da definição arqueológica, da definição histórica stricto sensu e das outras definições que estão frigorificadas e funcionam como uma camisa-de-força, ou seja, da definição jurídica dos períodos colonial e imperial e até daquela que a legislação republicana não produziu, por achar que tinha encerrado o problema com a abolição da escravatura, e que ficou no desvão das entrelinhas dos textos jurídicos. A relativização dessa força do inconsciente coletivo nos conduz ao repertório de práticas e às autodefinições dos agentes sociais que viveram e construíram essas situações hoje designadas como quilombo. Outro dado, que também não pode ser esquecido, concerne aos casos de doação de terras, quando o impacto da queda do preço dos produtos, no caso do algodão e da cana-de-açúcar, foi tão grande que alguns engenhos centrais foram completamente desmontados e abandonados pelos grandes proprietários, e as terras, doadas aos ex-escravos ou por eles ocupadas de maneira efetiva. Tanto há inventários e testamentos, que ainda jazem guardados nos povoados por algumas famílias cujos ancestrais foram beneficiados, quanto há disputas legais em curso envolvendo pretendentes a herdeiros. A extensão desse abandono foi de tal ordem que em algumas regiões, como Alcântara, registra-se que os grandes proprietários levaram madeiras de lei e telhas das casas-grandes e sobrados, além de venderem toda a maquinaria dos engenhos. Verifica-se, assim, que vários centros de povoados quilombolas estão localizados próximos às ruínas dessas edificações. De igual modo, a questão das hipotecas — que Perdigão Malheiro analisa e sobre a qual é preciso refletir mais — aponta para uma diversidade de relatos gravados nas histórias de vida, tal como narradas pelos mais velhos dos povoados, que dizem o seguinte: nossos pais, nossos avós contavam que eles ajudaram a pagar essa hipoteca. No momento em que foram contraídos empréstimos para manter a fazenda, afirmam que os antigos proprietários prometeram que com o pagamento da hipoteca a terra lhes seria entregue. E a terra não foi entregue, embora tenham sido saldadas as dívidas. Se lermos Malheiro, encontraremos toda a evidência de verdade jurídica do período contida nesses acordos verbais. Na hipoteca estava inclusa a escravaria, pois o escravo poderia ser dissociado da terra no ato de transferência. 63 64 Quilombos As narrativas, obtidas através de entrevistas por diferentes pesquisadores em distintas regiões, assinalam que havia pactos entre proprietários circunstancialmente pauperizados e escravos no sentido de intensificar o esforço produtivo para pagar a hipoteca. Parece absurdo imaginar que as jornadas de trabalho ainda poderiam ser intensificadas, mas se não conseguissem quitar a dívida os escravos estariam ameaçados de voltar ao mercado. Isso é representado como uma tragédia maior, possivelmente porque os núcleos familiares de escravos seriam dissolvidos, com a dispersão de seus membros nas vendas. Outro fator é que já estariam consolidados em sua autonomia, com liberdade para plantar o que quisessem, dada a crise do grande proprietário, de modo que ser vendido ou mudar de fazenda e de senhor significaria um golpe mortal, visto que perderiam um conjunto de benfeitorias essenciais: casas, roçados, poços, trilhas de acesso à mata para exercer o extrativismo, a coleta e a caça. Em outras palavras, poderíamos dizer aqui também que lograram aquilombar os domínios senhoriais. Registramos algumas histórias de vida de descendentes de antigos “pajens” ou escravos domésticos que prestavam serviços nas casas-grandes, no caso de Frechal, que apontam nessa direção, exigindo maior discernimento dos dispositivos legais para dirimir litígios. Voltando à lógica dos códigos jurídicos, há diferenças entre quilombo e insurreição. Se consultarmos os documentos coloniais e imperiais relativos às insurreições, verificaremos que eles consideravam como insurreição quando havia 20 ou mais indivíduos envolvidos. Isso está no art. 113 do Código Criminal do período imperial, que afirma: “reunindo-se 20 ou mais escravos para obter a liberdade por meio da força, tem-se uma insurreição”. E lá estão as penas, diferenciadas: para os cabeças, a morte, o grau máximo, ou as galés perpétuas. Dessa maneira, quilombo não seria insurreição, visto de um determinado ângulo político. Entretanto, há farta documentação sobre os temores de uma tomada do poder local a partir dos quilombos, tanto no início do século XIX, época da “síndrome do Haiti”, quanto no período da Guerra do Paraguai. Ainda para os legisladores coloniais, quilombo é diferente de guerra. Não haveria exército em jogo nem identidades nacionais. A nacionalidade é vista como tendo subjugado etnias, que se teriam Os Quilombos e as Novas Etnias manifestado sobretudo através dos chamados “movimentos separatistas” do período 1832-45. A campanha contra o quilombo de Palmares não foi definida formalmente como uma declaração de guerra. Por último, cabe frisar que quilombo é considerado por esses legisladores como juridicamente diferente de banditismo, embora tal semelhança seja acentuada em inúmeros contextos. Essa aproximação de quilombo com banditismo aparece com mais destaque no fim do século XIX, quando os legisladores coloniais vão perdendo sua força relativa e quando a categoria quilombo perde também sua força jurídica em virtude da abolição em 1888 e do advento da República em 1889.18 No universo jurídico-formal dos legisladores, com a abolição deixaria de existir a figura do quilombo. É um período em que a medicina legal vai tratar do problema, como bem evidenciam as pesquisas de Nina Rodrigues. O discurso médico produz certo deslocamento nos esquemas explicativos que até então repousavam sobre o conhecimento jurídico. Os estudos de craniometria, fundados na categoria raça, é que irão falar do tipo de criminalidade praticado pelos “bandos”. Quilombolas são içados à condição de bandidos rurais. Com a abolição da escravatura, por não se ter resolvido o problema da terra para os ex-escravos, por não terem sido feitas reformas na estrutura agrária, não havia instrumentos para contemplar a questão das posses camponesas, o que resultou em conflitos de formas variadas e em marginalização de grupos sociais. O discurso médico, enquanto recurso classificador de grupos e “populações”, na força plena de sua vigência busca inclusive uma certa recuperação histórica que legitime uma desejada cientificidade de suas explicações. Assim, a medicina legal vai estudar, por exemplo, em 1895, na Bahia, Lucas da Feira,19 considerado um “bandido ne- 18 Os direitos republicanos certamente produziram uma ilusão de igualdade. Há interpretações positivas da resistência dos escravos, nas duas primeiras décadas do século XX, que em certa medida tentam aproximá-los da condição de “colonos”. Ver Querino, 1918. 19 Ver Rodrigues, 1939:153-64. Rodrigues se apóia em estudos de etnografia criminal e na categoria étnica, tal como definida por Corre. Apóia-se ainda em Topinad e Charcotr e dialoga com a antropologia. 65 Quilombos 66 gro” famoso e com características de bandido social. Nina Rodrigues examina o crânio de Lucas da Feira, que em 1828 fugiu de uma fazenda em Feira de Santana (BA) e organizou um grupo, congregando outros escravos fugidos, que atuou no sertão por cerca de 20 anos. Foi preso e enforcado em 25 de setembro de 1849. Rodrigues chega à conclusão de que a teoria lombrosiana não se aplicava a Lucas, porque este tinha características craniométricas, fisiológicas, que não o faziam um criminoso nato. Sustenta que, embora criminoso para os códigos legais inspirados na civilização européia, Lucas seria um guerreiro e um rei afamado se estivesse na África. Rodrigues relativiza e arremata: “eu estou estudando aqui um caso em que as dimensões desse crânio não coincidem com aquilo que a teoria lombrosiana fala; quer dizer, então, que o bandido não é bandido!” O próprio Nina Rodrigues é levado então a recolocar implicitamente a questão do quilombo no seu projeto de pesquisa inconcluso sobre as associações criminais. Mas, ao recolocar a questão desse “bando” e seus respectivos “índices étnicos” enquanto quilombo, ele acaba reificando uma divisão de raças que, aliás, marca também todo o discurso explicativo dos juristas. Artur Ramos, médico e antropólogo, no prefácio desse livro de Nina Rodrigues menciona de maneira explícita a correlação do referido estudo com os quilombos: “A história de Lucas da Feira é a história da maior parte dos ‘negros criminosos’ no Brasil; dos negros escravos fugitivos, que se organizavam em bando, e furtavam e reagiam à polícia como uma necessidade inelutável. Temos aí um esboço da história psicossocial dos quilombos e insurreições negras no Brasil. De um modo mais geral é esta também a história dos cangaceiros no Nordeste. Nada de mais antilombrosiano”. O discurso médico é tão tributário do poder explicativo atribuído à categoria raça quanto o discurso dos juristas. Assim, todos os que pensaram a questão dos quilombos, mesmo que através dos movimentos abolicionistas20 — e os abolicionistas eram racistas —, ain20 Na ação dos abolicionistas de “ajuda à fuga de escravos, ao seu açoitamento e ao seu transporte” verifica-se um significado de quilombo correspondente ao local onde os fugitivos encontravam proteção e abrigo. Em A campanha abolicionista Os Quilombos e as Novas Etnias da trabalhavam com os paradigmas de raça inferior e raça superior, inclusive o próprio Nina Rodrigues. E, de alguma forma, tratavam essas manifestações como “sobrevivências”, ou seja, ainda era uma forma bárbara de afirmação pela força das armas, pelo desrespeito às autoridades constituídas. Se cotejado com a definição do Conselho Ultramarino de 1740, esse argumento seria uma variação daquela idéia de quilombo como não-civilização e como barbarismo. Essa forma de definir, incorporando a oposição entre “selvagem e civilizado”, é reproduzida por esses autores, que tratavam os componentes indicativos dessa situação como mera “sobrevivência”. Tal visão permanece intocável, inquestionável e soberana inclusive numa certa interpretação do art. 68, onde “remanescente” é sinônimo de resíduo, de sobrevivência, daquilo que sobrou. Aqui está, portanto, a dificuldade de continuarmos a operar com esse esquema interpretativo para compreender essas situações que hoje são entendidas como quilombo. O recurso de método mais essencial, que suponho deva ser o fundamento da ruptura com a antiga definição de quilombo, referese às representações e práticas dos próprios agentes sociais que viveram e construíram tais situações em meio a antagonismos e violências extremas. A meu ver, o ponto de partida da análise crítica é a indagação de como os próprios agentes sociais se definem e representam suas relações e práticas em face dos grupos sociais e agências com que interagem. Esse dado de como os grupos sociais chamados “remanescentes” se autodefinem é elementar, porquanto foi por essa via que se (1789-1888), livro publicado por Evaristo de Moraes em 1924, tem-se uma relação de abolicionistas que abrigavam os fugitivos, como “Seixas Magalhães, negociante de malas, estabelecido à rua Gonçalves Dias, possuidor de uma grande chácara no Leblon, onde havia um verdadeiro quilombo”. O mesmo verificamos em Dunshee de Abranches, ao referir-se a São Luís (MA) em seu livro O cativeiro, de 1941: “A este tempo, nas matas do sítio São Jerônimo, antiga propriedade de meu pai, no Bacanga, localizamos o quilombo da Sumaumeira. Tiramos o nome de uma secular e gigantesca paineira que ali existia e viveu até 1934. E, a pretexto de caçadas, ali se reunia de quando em vez o nosso grupo levando sal, fumo e café aos fugitivos, até que pudessem ir escapando para o Ceará e os seringais da Amazônia. Para isto dispúnhamos de espiões e auxiliares preciosos”. 67 68 Quilombos construiu e afirmou a identidade coletiva. O importante aqui não é tanto como as agências definem, ou como uma ONG define, ou como um partido político define, e sim como os próprios sujeitos se autorepresentam e quais os critérios político-organizativos que norteiam suas mobilizações e forjam a coesão em torno de uma certa identidade. Os procedimentos de classificação que interessam são aqueles construídos pelos próprios sujeitos a partir dos próprios conflitos, e não necessariamente aqueles que são produto de classificações externas, muitas vezes estigmatizantes. Isso é básico na consecução da identidade coletiva e das categorias sobre as quais ela se apóia. Aliás, essas categorias podem ter significados específicos, como sugere terra de preto, que pressupõe uma modalidade codificada de utilização da natureza: os recursos hídricos, por exemplo, não são privatizados, não são individualizados; tampouco são individualizados os recursos de caça, pesca e extrativismo. São mantidos como de livre acesso. Caminhos, trilhas e poços são mantidos sob formas de cooperação simples. De outra parte, as chamadas roças ou tratos agrícolas, que estão dispostas no cerne de uma certa maneira de existir socialmente, são sempre individualizadas num plano de famílias, pois as unidades familiares não dividem o produto da colheita de forma coletiva ou comunitariamente. De igual modo, um pomar é apropriado de maneira privada e, tal como no caso das roças, expressa trabalho realizado familiarmente. O fato de esses diferentes planos sociais — público e privado, de uso comum e de uso individual — coexistirem evidencia que a noção de uso da terra teria que ser examinada exaustivamente, compreendida em pormenor, e não reduzida a uma situação que nós já imaginamos qual é. Não se pode impor o desígnio do partido, a vontade da ONG ou a utopia do mediador a uma situação real: ao contrário, há que partir das condições concretas e das próprias representações, das relações com a natureza e demais práticas dos agentes sociais diretamente envolvidos para se construir os novos significados. O ideário das agências de pretensão mediadora tem que ser relativizado, quer se trate de movimentos sociais que carecem de iniciativas mobilizatórias, quer de aparatos de poder que reduzem tudo ao componente agrário. No momento atual, para compreender Os Quilombos e as Novas Etnias o significado de quilombo e o sentido dessa mobilização que está ocorrendo, é preciso entender como é que historicamente esses agentes sociais se colocaram perante os seus antagonistas, bem como entender suas lógicas, suas estratégias de sobrevivência e como eles estão se colocando hoje ou como estão se autodefinindo e desenvolvendo suas práticas de interlocução. A incorporação da identidade coletiva para as mobilizações e lutas, por uma diversidade de agentes sociais, pode ser mais ampla do que a abrangência de um critério morfológico e racial. Ao visitarmos esses povoados, em zonas críticas de conflito, podemos constatar, por exemplo, que há agentes sociais de ascendência indígena que lá se encontram mobilizados e que estão se autodefinindo como pretos. De igual modo, podemos constatar que há situações outras em que agentes sociais que poderiam aparentemente ser classificados como negros se encontram mobilizados em torno da defesa das chamadas terras indígenas. O critério de raça não estaria mais recortando e estabelecendo clivagens, como sucedeu no fim do século XIX. Esse é um dado de uma sociedade plural, do futuro, que deve ser repensado. Raça não seria mais necessariamente um fato biológico, mas uma categoria socialmente construída. Certamente que há um debate cotidiano em face de cada situação dessas ou a cada vez que o aparato administrativo e burocrático envia seus quadros técnicos para verificações in loco desses antagonismos. Mas seria um absurdo sociológico imaginar que alguns classificadores nostálgicos queiram tentar colocar “cada um em seu lugar” tal como foi definido pelo nosso mito de três raças de origem, acionando também o componente da “miscigenação” que equilibra as tensões inerentes ao modelo. Insistir nisso significa instaurar um processo de “limpeza étnica”, colocando compulsoriamente cada um no que a dominação define naturalmente como “seu lugar”.21 21 Certamente que a partir da consolidação de uma existência coletiva ou da objetivação do movimento quilombola tem-se uma força social que se contrapõe a essa classificação, isto é, passa a prevalecer a identidade coletiva acatada pelo próprio grupo em oposição às designações que lhe são externamente atribuídas. Os recentes trabalhos de campo dos antropólogos têm indicado isso. 69 70 Quilombos Mesmo que não tenhamos categorias classificatórias como os black indians registrados nos Estados Unidos,22 estamos diante de situações por vezes assemelhadas, sobretudo nos casos em que as denominadas terras de preto e as terras de índio se sobrepõem, como em Praquéu, Jacarezinho e Aldeia (MA) e São Miguel dos Tapuios (PI), ou naqueles casos em que há relações intensas entre quilombolas e povos indígenas, como bem ilustra o caso dos chamados “urubus negros” no vale do Gurupi.23 Ademais, a documentação histórica até a metade do século XVIII evidencia que os índios recebiam, no período colonial, a designação de negros e também assim se autodenominavam, o que vem a ser expressamente proibido pelo Diretório pombalino de 1758,24 que institui uma separação formal entre essas duas designações. Do mesmo modo, trabalhos de campo de décadas anteriores têm assinalado a força da classificação produzida de fora. Charles Wagley, ao descrever o povoado de Jocojó em 1948, registra em seu caderno de campo: “The settlement is said to have been a “quilombo”. It is known as a lugar de pretos but in fact a casual survey of the population does not indicate any more negroid population than any other local settlement”. Dessa pesquisa resultou o livro Amazon town — a study of man in the tropics, de 1953. O caderno de campo citado não foi publicado, mas se encontra disponível para consulta na Charles Wagley Papers-Manuscript Collection, na East Library da Universidade da Flórida, em Gainesville. 22 Ver Katz, 1986. 23 Darci Ribeiro (1996:28) registra ações dos chamados urubus negros em defesa de suas terras e explica: “Mas a alcunha de ‘negros’ e a cor mais escura, bem como os cabelos menos lisos daquele grupo (segundo o informante), sugerem que eles tenham tido contato com os negros mocambeiros da região. Nesse caso, à hostilidade tradicional dos urubus se teria juntado a repulsa do negro escravo, ou seu descendente, para com o branco. Aliás, contam que os urubus atacaram um mocambo que ficava no alto Maracassumé (Limoeiro), matando todos os homens e levando consigo as mulheres deles. E ainda hoje planejam ataques aos apinayé e a outros grupos a fim de obterem mulheres”. 24 Diz o parágrafo décimo do Diretório que se deve observar nas povoações dos índios do Pará e Maranhão: “Entre os lastimosos princípios, e perniciosos abusos, de que tem resultado nos índios o abatimento ponderado, é sem dúvida um deles a injusta e escandalosa introdução de lhes chamarem negros; querendo talvez com a infâmia e vileza deste nome persuadir-lhes que a natureza os tinha destinado para escravos dos brancos, como regularmente se imagina a respeito dos pretos da Os Quilombos e as Novas Etnias Está-se diante de uma diversidade de autodefinições referidas a tais situações sociais que muitas vezes contrariam concomitantemente tanto as disciplinas militantes quanto os critérios dos técnicos da burocracia administrativa, ambos apoiados em fatores supostamente objetivos e fiéis a clivagens pretensamente científicas. Aliás, já acontecia em Palmares. Se formos pensar no que era o povoado dos Macacos, a julgar pelos relatos existentes, ali havia “desertores”, “facinorosos do sertão”, “escravos fugidos” e indígenas, todos juntos. Havia inclusive uma sobreposição de formas de uso dos recursos naturais. Essas situações poderiam ser aproximadas, não obstante as diferentes formações históricas, daqueles casos de superposição fundiária que indicam outras possibilidades de cortes, uma vez que as chamadas terras de preto — essa dimensão mais lato sensu de quilombo — não emergiram sozinhas. Junto com elas emergem e são hoje reconhecidas outras categorias essenciais para interpretação da estrutura agrária. Esse procedimento de pensar a estrutura agrária relacionalmente revela que ela não pode ser mais dissociada de fatores étnicos. Em virtude disso é que os critérios de competência e saber de agrônomos ou de arqueólogos tornam-se insuficientes e inapropriados para identificar etnicamente “remanescentes de comunidades de quilombo” ou mesmo um território quilombola. Um território quilombola não corresponde necessariamente à extensão de um ou vários imóveis rurais ou a um número estimado de estabelecimentos, mesmo que as situações a ele referidas aparentemente assim sugiram. No caso de Frechal, a área do quilombo corresponde àquela do imóvel rural de igual denominação. No caso de Jamari (MA) e Rio das Rãs costa da África. E porque, além de ser prejudicialíssimo à civilidade dos mesmos índios este abominável abufo, seria indecoroso às Reais Leis de Sua Majestade chamar negros a uns homens, que o mesmo Senhor foi servido nobilitar, e declarar isentos de toda e qualquer infâmia, habilitando-os para todo o emprego honorífico. Não consentirão os diretores daqui por diante que pessoa alguma chame negros aos índios, nem que eles mesmos usem entre si deste nome como até agora praticavam; para que compreendendo eles que lhes não compete a vileza do mesmo nome possam conceber aquelas nobres idéias, que naturalmente infundem aos homens a estimação e a honra” 71 Quilombos 72 (BA), corresponde a uma parte do imóvel cadastrado. Em se falando do território quilombola de Alcântara (MA), verifica-se que ele não apenas inclui inúmeros imóveis rurais, como abrange simultaneamente terras públicas e privadas. Tantas outras também assim se compõem. Donde se pode afirmar que a malha fundiária não é homóloga à estruturação dos territórios quilombolas. Na formação social brasileira, o fator étnico não foi incorporado ao processo de formalização jurídica da estrutura fundiária. Ademais, há outra grande dificuldade: não são apenas as denominadas terras de preto em jogo, pois outras formas de uso comum estão se impondo e outras identidades coletivas estão sendo sucessivamente afirmadas. Elas são coetâneas do movimento quilombola e com ele coexistem em termos de mobilização étnica. Critérios de gênero, como no caso das quebradeiras de coco babaçu (MA, PA, PI e TO) e das artesãs de arumã do Rio Negro (AM), critérios ocupacionais e de atividades, como no caso de seringueiros e castanheiros, critérios de localização geográfica, como no caso dos ribeirinhos, e critérios alusivos à modalidade de intervenção governamental, como no caso dos atingidos por barragem, têm possibilitado explicar a formação de movimentos sociais recentes e sua força política. Além disso, têm permitido o advento de territorialidades específicas e autônomas, tais como reservas extrativistas, babaçuais, castanhais e seringais, sem o controle dos mediadores tradicionais, isto é, seringalistas e grandes proprietários. Tal processo dá um novo contorno à sociedade civil, confere-lhe um novo desenho e até transcende às formas usuais de se pensar o canal de colocação ou publicização dessas questões que envolvem reconhecimento de territórios. Imaginava-se que o sindicato de trabalhadores rurais pudesse responder a isso. No entanto, estamos vendo que as organizações sindicais, em inúmeros contextos, se revelam limitadas, restritivas para contemplar todas as expectativas de direito das chamadas “novas etnias”.25 Elas expressam outras maneiras de se colocar diante dos aparatos de poder e estão vivendo um momento de profunda reorga25 Se de um lado reconhece-se que há etnias permanentes, cujas origens são centenárias, de outro reconhece-se também o advento de “novas etnias” conceitua- Os Quilombos e as Novas Etnias nização de sua representatividade no âmbito da sociedade civil e perante seus antagonistas históricos. Em se tratando especificamente dos quilombolas, destaca-se que sua capacidade mobilizatória foi objetivada em movimento organizado. A partir do I Encontro Nacional das Comunidades Negras Rurais, realizado em Brasília (DF) no período de 17 a 19 de novembro de 1995, e da I e da II Reunião da Comissão Nacional das Comunidades Negras Rurais Quilombolas, realizadas respectivamente em Bom Jesus da Lapa (BA), nos dias 11 e 12 de maio de 1996, e em São Luís (MA), nos dias 17 e 18 de agosto de 1996, foi constituída a Comissão Nacional Provisória de Articulação das Comunidades Rurais Quilombolas — CNACNRQ, composta de oito integrantes: sete representantes de associações locais — Conceição das Crioulas (PE), Silêncio do Mata (BA), Rio das Rãs (BA), Kalungas (GO), Mimbó (PI), Furnas do Dionísio e Boa Sorte (MS) — e uma entidade de representação em nível regional, a Coordenação Estadual dos Quilombos do Maranhão. Em 20 de novembro de 1997, foi fundada a Associação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas do Maranhão — Aconeruq, congregando centenas de situações classificadas como quilombo. Em maio de 1998, foi realizado em Belém o I Encontro de Comunidades Negras no Pará. Em certa medida, o movimento quilombola vai consolidando uma dimensão nacional e constituindo-se num interlocutor indispensável nos antagonismos sociais que envolvem aquelas territorialidades específicas antes mencionadas. Essas transformações sociais tornam mais evidentes a complexidade da questão e o risco de se proceder a generalizações sem o co- das como uma tendência de grupos a se investirem, num sentido profundo, de uma identidade cultural com o objetivo de articular interesses e reivindicar medidas, fazendo valer seus direitos em face dos aparatos de estado. O critério político-organizativo ajuda a relativizar o peso de uma identidade definida pela comunidade de língua, pelo território, pelo fator racial ou por uma origem comum. Essa é uma discussão da ordem do dia das várias coletâneas que nas últimas décadas têm enfocado os deslocamentos no conceito de etnia. Ver Barth (1969); Bennett (1975); Glazer & Moynihan (1975); Sollors (1996); Hutchinson & Smith (1996); Guibernau & Rex (1997); Wilmsen & McAllister (1996). 73 74 Quilombos nhecimento mais detido de situações localizadas. Por isso as respostas têm que vir da intensificação do trabalho etnográfico, identificando e analisando detalhadamente situações concretas e evitando a linguagem classificatória das regras e das predefinições. O mesmo se aplica também aos procedimentos às vezes formalistas da plataforma de um partido político ou de um movimento organizado, que no afã de se colocar como representante ou porta-voz acaba menosprezando as especificidades e agindo no arbítrio dos reducionismos. Essa postura pode ser tão autoritária, ao não respeitar o direito intrínseco ou a forma com que cada grupo, em cada uma das diferentes situações, colocou-se e resistiu historicamente, que venha a resultar numa pseudoigualdade de condições responsável pela destruição dos princípios e normas que asseguraram, de maneira durável, a mobilização mantenedora da expressão identitária peculiar. Pretendo sublinhar, desse modo, que os conceitos também sofrem alterações e que os instrumentos de percepção estão sujeitos a mudanças e revisões teóricas. Daí a pergunta: ante a complexidade dessas situações sociais diferenciadas, que recursos teóricos estão sendo acionados pelos antropólogos que estão trabalhando na produção de pareceres, perícias e laudos, sem dizer nas petições e na refutação ou endosso de EIA-Rimas que dizem respeito aos chamados quilombos? Com a redefinição do conceito de etnia, há interpretações alertando para a situacionalidade, ou seja, estão lidando com identidades e territórios étnicos do ponto de vista de estratégias contingentes ou de diferentes tipos de acordos ou contratos que os chamados quilombolas têm firmado. Há um pacto tácito quanto às formas de uso dos recursos que aparecem na definição da terra de preto. Em outras palavras, pode-se dizer que existe um elenco de práticas que asseguram vínculos solidários mais fortes e duradouros do que a alusão a uma determinada ancestralidade. O pertencimento ao grupo não emana, por exemplo, de laços de consangüinidade, não existe a preocupação com uma origem comum, tampouco o parentesco constitui uma precondição de pertencer. O princípio classificatório que fundamenta a existência do grupo emana da construção de um repertório de ações coletivas e de representações em face de outros grupos. Tra- Os Quilombos e as Novas Etnias ta-se de investigar etnograficamente as circunstâncias em que um grupo social determinado acatou uma categoria, acionando-a ao interagir com outros. Para tanto há que atentar para os deslocamentos conceituais. Desde pelo menos 1967, com F. Barth, percebe-se um esforço analítico para delimitar fronteiras étnicas fora de fundamentos biológicos, raciais e lingüísticos, tendo como ponto de partida categorias de autodefinição e de atribuição. Em 1973 Proceedings, a American Ethnological Society marca bem a expressão “nova etnicidade”, tanto como identidade e autoconsciência quanto como estratégia de obtenção de recursos básicos para produzir e consumir. Sublinha o fato de agentes sociais se investirem num sentido profundo de uma identidade cultural com o objetivo de articular interesses e de fazer valer seus direitos perante o Estado. Em 1982 Proceedings, a AES destaca que o sentido atual de etnia reflete “novas realidades” e mudanças nessa realidade de pertencimento a um grupo particular com identidade coletiva em consolidação. As demandas de direitos perante os poderes públicos e as mobilizações por maior acesso a oportunidades econômicas revelam critérios político-organizativos. Por isso se fala mais em identidade étnica no sentido de uma existência coletiva do que de uma situação individual. A permanência dos laços chamados primordiais, como laços de sangue e de raça, perde sua força de contraste diante de uma noção de etnicidade considerada como fator contingente. Seria dobrar-se às aparências aceitar acriticamente a explicação divulgada pela mídia de que as “antigas etnias” voltaram a estabelecer fortes clivagens na vida política. Mais recentemente, sobretudo a partir de 1991, com o início das guerras dos Bálcãs, definidas como “conflito étnico”, conhece-se um alargamento do significado do conceito.26 A fronteira étnica não é vista como coincidindo necessariamente com critérios raciais, culturais ou lingüísticos; tampouco se reduz a nacionalidades. O componente político-organizativo, que demanda condições para a reprodução eco- 26 A guerra da Bósnia, em 1991, torna-se objeto de reflexão dos cientistas sociais, impondo expressões e noções operacionais como “limpeza étnica”. Ver BellFialkoff (1996). 75 76 Quilombos nômica e cultural do grupo, funciona como aglutinador e explica a capacidade mobilizatória. Essa ampliação das possibilidades de uso do conceito retira de cena a autoridade da figura do classificador, questionando a evidente arbitrariedade classificatória, ou seja, quem é que se julga autorizado a dizer o que o “outro” é? Quem é que define a identidade do outro e, ao fazê-lo, chama a si o poder de permitir ou de vetar? É nesse quadro da ampliação que sobressai como “legítimo” o dispositivo autoritário que traça os novos limites das identidades e dos territórios tidos agora como “étnicos”. Os mecanismos de coerção acionados pelos classificadores oficiais respondem pela nomeação de “limpeza étnica” e conferem um sentido peculiar às guerras mencionadas e aos demais antagonismos que passam a ser explicados por eles. Diante dessas rupturas no plano conceitual que estão em curso e dessas tensões que marcam diferentes antagonismos sociais, torna-se extremamente árduo para os pesquisadores entender a totalidade dessas transformações e construir seus próprios meios de intervenção. A observação etnográfica ganha força quando se reconhece que o conhecimento pormenorizado de situações localizadas, construído a partir da análise das mobilizações dos agentes sociais e de sua identidade coletiva, cria condições de possibilidade para o esclarecimento. Nessa análise, independentemente desse corte mais geral, interessa saber como essa categoria focalizada se constitui hoje enquanto elemento de mobilização política de inúmeros grupos sociais. Ou seja, o que passa pelo dado da autodefinição desses grupos e de suas práticas na relação com os poderes e com a natureza? A indagação remete a outras, porque não é por acaso que, quando se visita essas áreas designadas terras de preto, se percebe um grau de preservação da natureza maior do que nas fazendas lindeiras ou nos projetos agropecuários que desmataram tudo para formar pastagens artificiais. Essa observação impressionista leva à pergunta: qual a regra de manejo dos recursos? Qual o substrato desse tipo de preservação? O mesmo pode ser constatado também nas terras indígenas e em muitas outras situações de uso comum, inclusive nas chamadas terras de herança, mantidas sob domínio de unidades camponesas. Curiosamente, é nesses lugares que as minas, os olhos-d’água e as fontes não Os Quilombos e as Novas Etnias secaram. A esse respeito tivemos oportunidade de realizar múltiplos cotejos a partir de três áreas visitadas em 1996. São áreas onde as cabeceiras, as nascentes, foram relativamente mantidas e onde existem uma reserva de mata e plantas com propriedades medicinais, pequena fauna e terrenos com capacidade para absorver o sistema de rodízio de tratos culturais por dezenas de anos, contrariando as teorias do esgotamento do solo levantadas pelos agrônomos oficiais e as teorias demografistas. Aliás, as observações mais freqüentes desses técnicos oficiais ocorrem em projetos de assentamento cujas áreas correspondem a antigas explorações agropecuárias e madeireiras que desvastaram praticamente tudo. Do reconhecimento dessa consciência ecológica pode-se retirar uma lição para a sociedade nacional: a forma de manejo de que estamos falando não é do passado ou do “remanescente” ou do que sobrou. Em verdade estamos falando é do futuro, projetandoo a partir desses casos concretos de uso comum conjugado com preservação. Desse ponto de vista, essa noção de quilombo não é do passado nem é uma figura para escavação arqueológica. Às instâncias do Judiciário compete, pois, reconhecer essa presencialidade do passado e se livrar do fascínio empirista dos “vestígios materiais” como prova. Tal noção remete a um futuro que já está sendo construído sem ser objeto de política pública, de incentivo fiscal (Finan, Finor) ou creditício. Os fatores de consciência ecológica, de afirmação étnica e de critério político-organizativo que amparam a identidade coletiva coextensiva à definição dos “novos movimentos sociais”, apontam para o futuro mais que para o passado. Tal noção também não se confunde com as utopias comunalistas do século XIX nem com as comunidades rurais idílicas, visto que reflete trajetórias coletivas que não obedeceram a planos e estratégias intelectuais e políticas. Tratase principalmente do resultado de processos de confrontação, e não de lugares utópicos e despolitizados. Aqui estaria delineada posição de onde emergem os quilombos. Em resumo, é uma impropriedade lidar com esse processo como “sobrevivência”, como “remanescente”, como sobra ou resíduo, porquanto sugere ser justamente o oposto: é o que logrou uma reprodução, é o que se manteve mais preservado, é o que manteve o quadro natural em melhores condições de uso e é o que garantiu a esses gru- 77 78 Quilombos pos sociais condições para viver independentemente dos favores e benefícios do Estado. A própria polêmica em torno de ser um produto coetâneo das políticas neoliberais ou um corolário do planejamento centralizado mostra-se distante e não passa por essas situações designadas como quilombo, porque elas já estavam fora dessa órbita de decisões bem antes do advento da polêmica, e o reconhecimento formal é mais um resultado de mobilizações organizadas pelos próprios agentes sociais em jogo. Neste sentido, também não são fruto da recente categoria “excluídos”, porquanto desde o século XVIII já estão definidas juridicamente como “marginais” e de “fora” da civilização. Tal classificação é uma questão das estruturas de poder , não é questão intrínseca a esses grupos sociais. O que tem de ser recuperado, portanto, nessa apropriação jurídica, nessa redefinição, é como esses grupos se definem e o que praticam. Esse é o exercício que, de certa forma, nos recoloca em contemporaneidade com a nova forma organizativa que está surgindo, o movimento quilombola, e com a situação social quilombo que somente agora, a duras penas, está sendo reconhecida. Para finalizar esta abordagem, propiciando outros recursos conceituais para os trabalhos de pesquisa e aqueles correlatos concernentes a pareceres, petições e perícias, importa sublinhar resumidamente que ela se diferencia dos estudos de sociologia do negro, principalmente com Gilberto Freire e Donald Pierson. Para eles havia uma interpretação positiva da miscigenação como se ela por si só já significasse um fator de mudança. Interpretaram-na positivamente, e esse esforço ainda estava muito marcado pelo quadro das raças. O que antes era negativo tornou-se positivo. A classificação erudita passava ao largo das identidades étnicas construídas coletivamente pelos próprios agentes sociais objeto das investigações científicas. A ênfase no que se imaginava como objetivo reduzia tudo mais a simbólico e subjetivo. A redefinição de quilombo, tal como colocada hoje pelos que através dele se representam, estabelece uma clivagem político-organizativa em face desses intérpretes consagrados. Seus elementos contrastantes não se encontram no fator racial. A mobilização étnica apóia-se numa expectativa de direitos sustentada, por sua vez, numa identidade cultural que não tem sua razão de ser na “miscigenação”. Os Quilombos e as Novas Etnias Por outro lado, o campo de pensamento da categoria quilombo constitui não apenas um tema próprio, mas também um objeto de reflexão que pressupõe inúmeras noções, uma constelação de noções operacionais próprias. É uma área temática específica e por isso exige o concurso de múltiplas disciplinas e formações acadêmicas. Essa é uma via elementar de acesso ao novo significado de quilombo: ele não se exaure numa investigação de arqueólogos que buscam os vestígios materiais comprobatórios daquela situação que a noção jurídica tradicional apregoa. Não se exaure na definição de historiadores ou de geógrafos, que atestam com os documentos centenários e com a ênfase no “isolamento”, reproduzindo acriticamente a versão dos administradores coloniais. Tampouco se reduz ao raio de ação de agrônomos, que o tomam simplesmente como problema agrário. Esse mundo das inter-relações e das “novas etnias” que os cientistas sociais estão descortinando requer leituras críticas e uma reinterpretação jurídica, pressupondo sobretudo em termos epistemológicos uma revisão de esquemas interpretativos cristalizados no mundo erudito. O que está em pauta são essas revisões de esquemas em que se reconhece que a noção de raça não tem fundamento científico e em que as mobilizações transformadoras e de afirmação étnica não estão passando por consangüinidade, por pertencimento à “tribo”,27 por características lingüísticas e sinais exteriores que tradicionalmente marcaram diferenças. Está em pauta uma unidade social baseada em novas solidariedades, a qual está sendo construída consoante a combinação de formas de resistência que se consolidaram historicamente e o advento de uma existência coletiva capaz de se impor às estruturas de poder que regem a vida social. Tem-se uma flagrante politização do problema com o processo de consolidação do movimento quilombola enquanto força social. Sua compreensão requer os novos conceitos de etnia e de mediação capazes de permitir esclarecimentos sobre esses fenômenos políticos em transformação. A aceitação desse pressuposto concorre para libertar 27 Para maiores dados sobre a polêmica envolvendo a relação entre tribo e etnia, ver os textos, sobretudo o de Maurice Godelier, que integram o conjunto intitulado Tribalisme et pouvoirs [La Pensée.. Paris (325):5-63, jan./mars 2001]. 79 80 Quilombos os argumentos analíticos de todas essas amarras construídas historicamente e que ainda hoje, mesmo com boa vontade, muitas vezes acabamos por reproduzir ante a trajetória de afirmação étnica e política que esses grupos sociais designados como quilombolas estão desenvolvendo. Referências bibliográficas Almeida, Alfredo W. B. de. A ideologia da decadência – leitura antropológica a uma história da agricultura no Maranhão. São Luís, Fipes, 1983. 270p. ———.Universalização e localismo: movimentos sociais e crise dos padrões tradicionais de relação política na Amazônia. Reforma Agrária. São Paulo, Abra, abr./jul. 1989. p. 4-16. ———. Quilombos: sematologia face a novas identidades. 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A imprensa tem veiculado situações concretas em que essas comunidades, enquanto movimento social organizado, através de suas entidades representativas, reivindicam ao Estado o cumprimento do art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, incluído na Constituição Federal de 1988. À semelhança dos processos de reconhecimento e legitimação oficial de povos e terras indígenas no Nordeste, intensificados nas últimas três décadas, antropólogos e juristas têm-se deparado, no trato da questão daquelas comunidades, com certas ambigüidades de ordem teórico-metodológica presentes, de modo geral, na literatura referente ao tema, principalmente quando se trata de precisar os contextos sócio-históricos em que tais grupos se constituíram e se consolidaram como “unidades discretas”, portadoras de um forte referencial étnico e, assim, diferenciadas do contexto social mais amplo. No âmbito dos diversos processos de reconhecimento e legitimação, atualmente em curso no país, de comunidades negras rurais e de seus territórios tradicionalmente ocupados, o Ministério Público Federal, através de suas procuradorias regionais dos Direitos do Cidadão (PRDC), tem constituído fórum privilegiado originador de ações judiciais que ora tramitam nas esferas competentes da Justiça Federal. 84 Quilombos Definição técnica de “quilombos” Os territórios habitados por “remanescentes de quilombos” vêm sendo referidos, na literatura antropológica, como sítios historicamente ocupados por negros e que são possuidores de conteúdos culturais de valor etnográfico (Fundação Cultural Palmares). Analisando a problemática jurídica instaurada pela inclusão do art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias na Constituição Federal de 1988, Silva (1995:98) define as comunidades remanescentes de quilombos como “núcleos de resistência contemporâneos, onde o uso e a posse de suas terras se realizam numa simultaneidade de apropriação comum e privada dos seus territórios secularmente ocupados, onde desenvolvem práticas culturais, religiosas, de moradia e trabalho, se afirmam enquanto grupo a partir de fidelidade às suas próprias crenças e noções de regras jurídicas consuetudinariamente arraigadas”, atribuindo-lhes o papel de grupo étnico elemento fundamental formador do processo civilizatório nacional. A noção de “grupo étnico” foi incorporada ao cenário antropológico brasileiro a partir das formulações de Barth (1969:150), que define grupos étnicos como categorias de adscrição e identificação utilizadas pelos próprios atores sociais para classificar a si mesmos e os outros, de acordo com uma identidade básica e mais geral, supostamente determinada por sua origem e formação. Nessa perspectiva, como bem aponta Oliveira (1994:119-20), a permanência de elementos culturais de um passado longínquo não cumpre papel fundamental na classificação de um grupo como étnico, visto que “os elementos específicos de cultura (como os costumes, os rituais e valores comuns) podem sofrer grande variações no tempo ou em decorrência de ajustes adaptativos a um meio ambiente diversificado. O que importa, contudo, é a manutenção de uma mesma forma organizacional, a qual prescreve um padrão unificado de interação entre os membros e os não-membros daquele grupo”. Oliveira chama a atenção para os riscos de se estender à sociedade envolvente a atribuição de conferir identidade a um grupo étnico, pois este só pode ser definido em conformidade com critérios de exclusão e pertencimento elaborados pelos seus próprios membros. Sacutiaba e Riacho de Sacutiaba Daí resulta que, ao elaborar laudos periciais, “ao invés de trabalhar com classificações étnicas operadas genericamente pela sociedade nacional, o antropólogo deve explorar as incongruências internas aí verificadas, percebendo que elas constituem parte de um campo de luta em que estão envolvidos todos esses atores”. Inicialmente operacionalizada nos estudos referentes aos processos sócio-histórico-políticos de exclusão e esbulho do território tradicional vivenciados de modo geral pelos povos indígenas no Brasil no contexto do contato interétnico, a designação de grupo étnico vem sendo atribuída a outras coletividades.1 Alçadas a uma posição de destaque na cena social brasileira, elas vêm assumindo, enquanto atores políticos, as rédeas de seu destino, enfrentando constrangimentos socioespaciais e políticos, assim como os meandros jurídico-administrativos, com vistas à legitimação de sua condição étnica e, conseqüentemente, dos direitos daí provenientes. Nesse sentido, “a identidade histórica de ‘remanescente de quilombo’ emerge como resposta atual diante de uma situação de conflito e confronto com grupos sociais, econômicos e agências governamentais que passam a implementar novas formas de controle político e administrativo sobre o território que ocupam”.2 Gusmão atenta, por um lado, para a insuficiência “conceitual, prática, histórica e política” do termo quilombo como designativo genérico das comunidades negras rurais: “se é negro de uma terra que se tem, de uma terra que se possui. Não é qualquer terra, e nela não se é genericamente negro. Enquanto sujeito se é e se pertence a este ou aquele grupo; a este ou aquele lugar”.3 “As denominadas ‘terras de preto’ são constituídas com base em fatores étnicos, lógica endogâmica, casamento preferencial, regras de sucessão e outras disposições que fazem da terra em comum um patrimônio. É, assim, uma terra particularizada por fornecer ao grupo que dela usufrui mecanismos próprios de identificação. É também espaço de atuação individual, fami1 2 3 Por exemplo, comunidades de negros e cafuzos. O’Dwyer, 1995:121. Gusmão, 1995:68. 85 Quilombos 86 liar e coletivo. Pressupõe uma tradição histórica e cultural partilhada por grupos de descendência comum, centrada no parentesco.”4 Entretanto, de outro lado, ressalta a positividade de constituirse, similarmente a outros grupos étnicos, uma nova identidade de ator político coletivo — “enquanto ‘minoria étnica para si’” que, “para além dos grupos específicos”, fornece certa unidade de luta, a exemplo dos diversos povos indígenas reunidos na designação “índio,” além de uma categoria juridicamente reconhecida para mediar as suas relações com a sociedade nacional inclusiva.5 A legislação concernente ao tema Conforme o art. 68 do Ato das Disposições Transitórias (ADCT), incluído na Constituição Federal de 1988, Aos remanescentes das Comunidades dos Quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os respectivos títulos. No mesmo ano da promulgação do art. 68 do ADCT, foi criada a Fundação Cultural Palmares, subordinada ao Ministério da Cultura, pela Lei no 7.768, de 22-8-1988, com a finalidade de promover a preservação dos valores culturais, sociais e econômicos decorrentes da influência negra no processo constitutivo da sociedade brasileira. Em Portaria Ministerial de no 25, de 15-8-1995, publicada no Diário Oficial da União em 22-8-1995, a Fundação Palmares estabeleceu as normas “que regerão os trabalhos de identificação, delimitação, titulação e demarcação das terras ocupadas por remanescentes de quilombos”, em conformidade com o dispositivo supracitado, nos mesmos moldes utilizados pela Funai para proceder à regularização das terras indígenas (decretos no 22, de 4-2-1991, e no 608, de 207-1992, substituídos pelo Decreto Presidencial no 1.775, de 8-14 5 Gusmão, 1995:66. Ibid., p. 66-7. Sacutiaba e Riacho de Sacutiaba 1996, com regras estabelecidas pela Portaria Ministerial no 14, de 9-1-1996). Em face da polêmica instaurada no meio jurídico quanto à normatividade do art. 68 do ADCT, Silva (1995:104-7), ancorado na tipologia clássica de José Afonso da Silva acerca dos “níveis” de aplicabilidade das normas constitucionais e no art. 5o, capítulo I, da Constituição Federal de 1988, infere que aquele possui aplicabilidade imediata, não necessitando de lei ou medida ordinária que o regulamente, tendo em vista o fato de dispor sobre títulos de propriedade, direito circunscrito entre os direitos e garantias fundamentais protegidos constitucionalmente. Não obstante, na visão do autor, nada impede a criação de uma lei ordinária, originada do Congresso Nacional ou mesmo do Executivo, para assegurar a correta aplicação do art. 68, visto ser o âmbito do direito constitucional muito sensível às injunções de ordem política, estando o texto constituinte sujeito a múltiplas interpretações, “aberto à criação e influxos provenientes de uma ampla participação direta dos envolvidos e dos organismos de mediação que lhes prestam apoio”. De outra perspectiva, Silva argumenta que a regulamentação do art. 68 do ADCT na forma de uma medida ordinária pode vir a constituir precioso instrumento jurídico no sentido de transpor o obstáculo representado pela prevalência de “uma certa intransitividade no interior do aparelho do Estado para situações tidas como de importância menor, ou populações relacionadas como em estado terminal”. Registra, ainda, a importância de se contemplar, para maior eficácia, nas temáticas afetas às populações negras, a complementaridade do art. 68 do ADCT com os artigos constitutivos da seção II, capítulo III, título VIII, da Constituição Federal, que tratam da cultura em suas formas permanentes: Art. 215: O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais. Cap. I: O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional. 87 88 Quilombos Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem: I — as formas de expressão; II — os modos de criar, fazer e viver; III — as criações científicas, artísticas e tecnológicas; IV — as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais; V — os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, ecológico e científico que, por sua vez, culminam para uma “interação integrativa” do art. 216 no seu §5o. §5o — Ficam tombados todos os documentos e sítios detentores de reminiscências históricas dos antigos quilombos. Silva aponta alguns critérios preliminares a serem tomados em conta na feitura dessa lei ou “medida provisória com força de lei”, a fim de nortear os processos de identificação e de caracterização das comunidades negras remanescentes de quilombos presentes na cena nacional, a saber: priorização das categorias de auto-adscrição e de autodefinição dos interessados; ocupação fundada em apossamento secular de terras; existência de uma base geográfica comum a todo o grupo, invariavelmente sem titulação nem inventários formais de partilha; convivência regulada de modo geral por normas consuetudinariamente construídas; organização do trabalho em unidades familiares; autodenominação como “terras de preto”, “remanescentes de quilombos”, “comunidades negras rurais”, “mocambo”, “quilombo” ou termos análogos que apontem para uma etnicidade predominantemente negra; relativa harmonia do grupo com os recursos naturais disponíveis em seu território. Sugere, ainda, como parâmetros de atuação do Executivo nos processos de reconhecimento e emissão de títulos às comunidades negras rurais, a observância de certos procedimentos, dentre os quais destacamos: ❑ competência da Justiça Federal para apreciar todo o processo, com possibilidade, em caso de conflito, de institui- Sacutiaba e Riacho de Sacutiaba ❑ ❑ ção de medida cautelar em benefício das comunidades negras rurais; em terras públicas, para a emissão do título coletivo de propriedade, considerar como suficiente parecer favorável da Fundação Cultural Palmares-Minc e laudo antropológico elaborado por perito indicado pela Associação Brasileira de Antropologia; para definição dos domínios territoriais em foco, deverão ser necessariamente ouvidos os beneficiários diretos do ato de reconhecimento. Perícia antropológica, laudos e pareceres de identificação: reflexões sobre os limites de atuação do antropólogo Marques (1974:225) define perícia como “prova destinada a levar ao juiz elementos instrutórios sobre algum fato que dependa de conhecimentos especiais de ordem técnica”. A prova em questão consiste numa verificação sobre determinado objeto, entendido como algo material, para cuja percepção se exigem conhecimentos técnicos específicos. Por outro lado, os laudos ou pareceres são perícias “desafetadas juridicamente”, isto é, requeridas basicamente na condução de processos administrativos. 6 O profissional de antropologia tem sido chamado com freqüência a intervir, na qualidade de perito, nos processos de identificação de grupos étnicos e dos territórios por eles reivindicados. Esses processos são, em grande medida, administrativos, deflagrados pelos órgãos oficiais de proteção das denominadas “minorias étnicas” — a Funai, no caso dos povos indígenas, e a Fundação Cultural Palmares, em se tratando de comunidades negras descendentes de antigos quilombos. Nas perícias judiciais, o antropólogo deve avaliar uma série de quesitos propostos pelo juiz e/ou pelos advogados das partes envolvidas na demanda, preocupando-se em respondê-los de modo 6 Ver Gonçalves, 1994:80, 85. 89 Quilombos 90 preciso, objetivo e conciso, tendo sempre em vista que a sua eficácia é, necessariamente, função do rigor acadêmico a eles conferido. Na elaboração de laudos e pareceres “administrativos”, geralmente solicitados em face da prevalência de um contexto de tensões e conflitos territoriais, devem, contudo, ser observados os mesmos critérios, capacitando-os a uma provável utilização futura em discussões de cunho jurídico.7 Na realização de laudos e perícias, o antropólogo não deve revestir-se de uma autoridade acadêmica que supostamente o capacita a infirmar ou mesmo negar a identidade de grupos étnicos e, ainda, definir as suas fronteiras ante outros segmentos da sociedade nacional, pois indubitavelmente, em última análise, cabe aos próprios membros dos grupos étnicos se auto-identificarem e elaborarem seus próprios critérios de pertencimento e exclusão, mapeando situacionalmente as suas fronteiras étnicas. Segundo Oliveira (1994:127), diversamente de outros especialistas, ao atuar como perito o antropólogo não pode ceder ao mito cientificista de autoridade professoral, passando a substituir classificações sociais, defendidas por atores históricos concretos, por um recorte objetivo e científico, sustentado apenas por ele. E, de modo geral, internamente ao próprio grupo étnico, reitera o autor, operam mesmo certas categorias nativas de auto-identificação e “práticas interativas exclusivas” que atuam no sentido de delimitálo em face de outros, ainda que varie substantivamente o conteúdo das categorias classificatórias e que a área específica de sociabilidade se modifique bastante, expandindo-se ou contraindo-se em diferentes contextos situacionais.8 7 8 Ver Santos, 1994:71-2. Oliveira, 1994:123-4. Sacutiaba e Riacho de Sacutiaba Ao antropólogo cabe, pois, o papel de identificar a estruturação interna do grupo e os seus processos sociais interativos, isto é, não definir, mas contextualizar o grupo, utilizando como parâmetro as classificações e categorias nativas de auto-identificação. Barth desenvolveu alguns pontos básicos de reflexão a serem observados quando da realização de pesquisas acadêmicas abordando grupos étnicos: Uma adscrição categórica é uma adscrição étnica quando classifica uma pessoa de acordo com sua identidade básica e mais geral, supostamente determinada por sua origem e sua formação. Na medida em que os atores utilizam as identidades étnicas para categorizarse a si mesmos e aos outros, com fins de interação, formam grupos étnicos neste sentido de organização.9 As distinções étnicas categoriais não dependem de uma ausência de mobilidade, de contato ou informação; antes implicam processos sociais de exclusão e incorporação pelos quais são conservadas categorias discretas, apesar de mudanças de participação e afiliação no curso das histórias individuais.10 Deve-se considerar o compartilhamento de uma cultura comum mais como uma implicação ou um resultado que como uma característica primária e definitiva da organização do grupo étnico.11 Os grupos étnicos não estão baseados simples ou necessariamente na ocupação de territórios exclusivos.12 Referido ao contexto de atuação institucional entre os povos indígenas localizados no Brasil, Oliveira ressalta os riscos de se tentar, como forma de legitimação, reconstituir uma suposta continuidade histórica dos grupos no presente, seja com o recurso a técnicas propriamente antropológicas — como, por exemplo, a pesquisa genealó- 9 Barth, 1969:15. Ibid., p. 10. 11 Ibid., p. 12. 12 Ibid., p. 17. 10 91 Quilombos 92 gica e documental e a história oral — ou arqueológicas e lingüísticas. Em muitos casos, e principalmente na região Nordeste, os resultados são desoladores, visto que a única continuidade que talvez se possa sustentar é aquela de, recuperando o processo histórico vivido por tal grupo, mostrar como ele refabricou constantemente sua unidade e diferença em face de outros grupos com os quais esteve em interação.13 No caso dos povos indígenas do Nordeste, afirma o autor, essa descontinuidade, que por certo implica uma tênue visibilidade perante a sociedade mais ampla, não deve constituir um impedimento ao seu reconhecimento enquanto grupo étnico e à regularização das suas terras. Tal descontinuidade, vale notar, não é conseqüência de uma diferença cultural, mas sim uma produção da instância política, calcada em fatores históricos concretos, como o seu aldeamento e territorialização através das missões religiosas.14 Nessa linha de raciocínio, válida, acredito, também no que toca às comunidades negras descendentes de antigos quilombos, enquanto grupos étnicos, a argumentação básica centra-se no fato de que a necessidade, por parte dos grupos, de possuir uma identidade singularizadora é contemporânea ao próprio processo de contato interétnico e às tentativas de esbulho daí decorrentes dos territórios tradicionalmente ocupados pelos grupos, isto é, a etnicidade, enquanto fenômeno político, de caráter contrastivo, só faz sentido como categoria nativa construída num contexto de oposição. A cultura é, nesse sentido, utilizada de modo gramatical, tendo em vista que, como já observara Carneiro da Cunha (1986:100): a escolha dos tipos de traços culturais que irão garantir a distinção do 13 14 Oliveira, 1994:123. Oliveira, 1993:vii. Sacutiaba e Riacho de Sacutiaba grupo enquanto tal depende dos outros grupos em presença e da sociedade em que se acha inserido, já que os sinais diacríticos devem poder se opor, por definição, a outros do mesmo tipo. Portanto, a cultura de determinado grupo étnico jamais pode ser percebida como uma totalidade acabada, estática, cristalizada, nem servir de ponto de partida para a sua definição. Na realização de laudos e perícias, para fins de contextualização de determinado grupo étnico, tem sido freqüente certa supervalorização das fontes documentais em detrimento das fontes orais, como se aquelas tivessem, por si só, o poder de conferir maior legitimidade às demandas do grupo. Esse ponto de vista encontra certo respaldo no fato de a escrita representar, nas sociedades “letradas”, uma “forma de expressão mais acabada”, reconhecida, refinada e precisa. É preciso lembrar, porém, que fontes escritas também são manipuláveis, e muitos são os casos conhecidos nos quais elas foram francamente utilizadas como instrumento de dominação e poder em face daquelas sociedades que dela não dispõem. Segundo Paraíso (1994:44), no caso das fontes documentais, somos obrigados a questionar, de forma conseqüente, seus autores e o conteúdo. Temos que nos preocupar com quem escreveu, mas também por que escreveu e inserir o documento no momento histórico da sua produção (...). Outro elemento a ser considerado é a pertinência do autor a determinado segmento social e seus valores, grau de instrução e ideologia peculiar, além das alianças e compromissos assumidos por este segmento e com quem. No “mundo camponês”, onde se inserem as comunidades negras rurais, como aponta Gusmão (1995:71), a memória é o caminho pelo qual os grupos percorrem os espaços da vida e constroem a imagem de si e da terra particular, no tempo (...). O mundo camponês, como universo próprio de coisas e signos, práticas e rituais, públicos e privados, individuais e coletivos, tem a oralidade como forma de preservação e sustentação desse 93 Quilombos 94 mundo e busca nela os instrumentos de sua luta. Ao lado da oralidade, segue afirmando a autora, também o direito costumeiro, legitimado pela prática que regula, via de regra, a conduta dos membros de uma comunidade negra rural, não é reconhecido pela lei: verifica-se no espaço da terra a categoria dos cidadãos, proprietários, e dos não-cidadãos, negros livres ou não, que historicamente ocuparam a terra. Uma terra concedida, efêmera e identificada. No primeiro caso tem-se a lei, que legaliza e legitima, enquanto no segundo caso tem-se o costume, que, apesar de legítimo, não encontra respaldo na lei e precisa legalizar-se.15 Outra questão procedente atém-se às representações que informam a noção de “território tradicionalmente ocupado”, imperativas no senso comum e freqüentemente presentes entre os próprios antropólogos, que a associam, de modo geral, à acepção de “ocupação imemorial”. Gonçalves (1994:83) afirma categoricamente, com referência ao caso indígena e, a meu ver, de forma bastante pertinente também para pontuar a relação com a terra entre os demais grupos étnicos, não existir qualquer correspondência entre “terra tradicionalmente ocupada” e “tempo de ocupação”. E cita novamente José Afonso da Silva: Ocupadas tradicionalmente não significa ocupação imemorial; o tradicionalmente refere-se ao modo tradicional de os índios ocuparem e utilizarem as terras e ao modo tradicional de produção, enfim, ao modo tradicional de como eles se relacionam com a terra, já que há comunidades mais estáveis, outras menos estáveis, e as que têm espaços mais amplos em que se deslocam etc. Daí dizer-se que tudo se realize segundo seus usos, costumes e tradições. Por outro lado, do mesmo modo que a etnicidade emerge tipicamente num contexto conflituoso de contato com a sociedade nacio15 Gusmão, 1995:73. Sacutiaba e Riacho de Sacutiaba nal mais ampla, a idéia de um território fixo, delimitado, é esboçada no interior do grupo étnico quando este se vê compelido, pelas frentes de expansão ou por setores politicamente influentes interessados em suas terras, a ordená-las e demarcá-las — o que Oliveira (1993) classifica como “processo de territorialização” —, sob pena de assistir impotente à sua usurpação gradual e definitiva por outrem. É, pois, tarefa do antropólogo investigar como o território é pensado pelo grupo no presente. Em suma, como recomenda Oliveira (1994:133), na confecção de um laudo de identificação de terras, a própria proposta de território que um grupo étnico elabora não pode ser examinada independentemente das lideranças que a veicularam, da geração que a concebeu, das alterações no sistema produtivo e na disponibilidade de recursos ambientais, expressando também uma apreensão específica da correlação de forças frente aos brancos em nível local, bem como da conjuntura histórica mais ampla. Sacutiaba e Riacho de Sacutiaba Nossos primeiros contatos com a comunidade negra rural de Riacho de Sacutiaba e Sacutiaba datam de 1995. Localizada a 850km de Salvador, na região oeste da Bahia, município de Wanderley, às margens do rio Grande, a comunidade, constituída por cerca de duas centenas de indivíduos, conforma basicamente uma grande família extensa aglutinada em torno de laços de consangüinidade e afinidade centralizados na liderança da matriarca Maria Pereira dos Santos, 76 anos (conhecida como Maria da Cruz), 11 filhos, 60 netos e 55 bisnetos. Em 24 de junho de 1990, Maria da Cruz e outros, representando a comunidade de Riacho de Sacutiaba, constituíram advogado e entraram na comarca de Wanderley com uma ação de manutenção de posse, visando assegurar o acesso à estrada municipal que liga seus núcleos de ocupação à cidade de Wanderley, vedado por um fazendeiro confrontante. O fazendeiro modificara o traçado do acesso, constrangendo a comunidade a passar em frente a uma sede por ele 95 96 Quilombos construída recentemente numa área antes ocupada por roças da comunidade do Riacho. Em 21 de junho de 1990, declaração subscrita por 32 assinaturas de notórios locais (políticos, comerciantes, fazendeiros, religiosos etc.), inclusive pelo então prefeito de Wanderley, Antônio Porto, atestou a posse da comunidade, como “animus domini, por si e por seus antecessores, há mais de 200 anos, sobre uma área de terra na localidade denominada Riacho de Sacutiaba, Wanderley (BA)”. Anexada aos autos da ação impetrada por Maria da Cruz, essa declaração teria peso decisivo na concessão, pela juíza substituta da comarca de Cotejipe, em 2 de julho de 1990, de uma liminar favorável. Após um curto período de tréguas, e aproveitando a remoção da referida juíza para outra comarca e a propalada relutância do juiz substituto em fazer cumprir a liminar, o mesmo fazendeiro voltaria a provocar, com uma série de atos abusivos, a comunidade de Riacho de Sacutiaba e Sacutiaba. Em 4 outubro de 1995, a comunidade de Riacho de Sacutiaba e Sacutiaba enviou uma primeira representação à Fundação Cultural Palmares, solicitando a regularização de seu território, consoante os termos do art. 68 do ADCT da Constituição Federal de 1988. Em outubro do mesmo ano, a Fundação Palmares encaminhou o procedimento à 6a Câmara de Coordenação e Revisão do MPF (6a CCR), em Brasília, para a adoção das providências cabíveis. Ofício de um assessor da 6a CCR declarou à Fundação Palmares não existir nos autos “elementos que comprovem que as comunidades são remanescentes de quilombos. Caberia à Fundação Palmares desenvolver pesquisa nesse sentido, para verificar o possível vínculo entre as comunidades e algum antigo quilombo da região”. Recomendou, por parte da Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão na Bahia, a adoção de providências no acompanhamento do caso. Em 5 de março de 1996, a Fundação Cultural Palmares impetrou ação civil pública na Justiça Federal da Bahia com pedido de liminar, a fim de que se suspendessem a ocupação e o prosseguimento das obras na comunidade de Riacho de Sacutiaba e Sacutiaba por parte do fazendeiro supracitado. Em seu despacho, o juiz Pedro Braga Filho, titular da 1a Vara da Justiça Federal da Bahia, alegou insuficiên- Sacutiaba e Riacho de Sacutiaba cia de dados por parte da Fundação Palmares na propositura da ação, solicitando o “suprimento dos defeitos e irregularidades apontados no prazo de 10 dias”, sob pena de seu indeferimento e extinção do processo sem julgamento do mérito. Em 12 de abril de 1996, decisão do juiz federal substituto da a 1 Vara da Justiça Federal da Bahia denegou a liminar pleiteada na Ação Civil Pública, por incorrência dos registros necessários à sua concessão: “prova antropológica e etnológica ou da constatação, por documentos idôneos e levantamentos históricos, do fato da ocupação ancestral das terras a serem declaradas de propriedade dos descendentes dos antigos quilombolas”. Em novembro de 1996, em visita ao município de Wanderley, conversamos com políticos aliados da comunidade, especialmente o ex-prefeito Antônio Porto e a vereadora Irlândia Delgado, que nos conduziram às localidades de Sacutiaba e Riacho de Sacutiaba. Conforme relatou Irlândia Delgado, então presidente da Câmara de Vereadores de Wanderley, ela e Antônio Porto travaram o primeiro contato com essa comunidade eleitora, dentre diversas outras, ribeirinhas, em 1985, quando se encontravam em campanha política pelo município. Desde então, Irlândia e Antônio Porto têm-se empenhado no sentido de auxiliar a comunidade a assegurar a posse do seu território tradicional. Dois meses após essa primeira visita à área, assumimos, no âmbito de um convênio firmado pelo Centro de Estudos de Territórios e Populações Tradicionais com o Ministério da Cultura, o trabalho de identificação da comunidade de Sacutiaba e Riacho de Sacutiaba e de delimitação do seu território tradicional. A memória dos habitantes de Riacho de Sacutiaba e Sacutiaba indica uma permanência na área de cerca de 200 anos, em estado de relativo isolamento, quebrado apenas por viagens ocasionais de alguns de seus habitantes a localidades vizinhas também situadas às margens do rio Grande, como Goiabeira, Jatobá, Boqueirão, Porto das Ilhas, Gregório, Baboseira, Tabatinguinha, Tabatinga Grande, Conceição e, ainda mais esporadicamente, às cidades de Barra e Wanderley. Maria da Cruz, como sua mãe e sua avó materna, nasceu na Sacutiaba, transferindo-se, após o casamento, para a localidade de 97 98 Quilombos Riacho de Sacutiaba. O pai de sua mãe, Joaquim Pereira dos Santos, morou durante muito tempo na Sacutiaba. Proveniente “das bandas do Tabuleiro”, foi o primeiro a ser sepultado no cemitério local, situado no caminho para Sacutiaba. Trabalhou durante certo tempo como vaqueiro dos Pinto, então proprietários da fazenda Sacutiaba. O avô paterno de Maria da Cruz residia na Boca do Tabuleiro, transferindo-se posteriormente para a localidade de Riacho com mulher e filho. Está enterrado num cemitério localizado numa das fazendas limítrofes, a Conceição. O antigo proprietário das terras onde se localiza a comunidade era Joaquim Pinto, tio materno de Custódia Pinto, que herdou a fazenda Sacutiaba e a vendeu, em 1973, com uma extensão de 5 mil hectares, aos seus atuais proprietários, o pernambucano Eliezer Martins de Limas Dantas e um seu cunhado, Orlando Martins Delgado, com a recomendação de eles “não mexerem com os terrenos ocupados pelo pessoal”, que se encontra na área “desde os tempos do Joaquim, como moradores dele”, conforme relatou Maria da Cruz. Quando os Pinto adquiriram a fazenda Sacutiaba, o local já era povoado pelos “nêgo véio”. Sua chegada parece não ter determinado mudanças significativas no cotidiano das pessoas do lugar. Desde que adquiriram Sacutiaba, Eliezer e Orlando têm-se empenhado, por todos os meios, em expandir os seus limites. Hoje, afirmam possuir uma extensão de 35 mil hectares de terras que se encontram praticamente “no mato”, salvo por uma ou outra roça aberta recentemente, por orientação do seu advogado, sobre terrenos tradicionalmente cultivados pela comunidade. O efetivo pecuário da fazenda não ultrapassa 200 cabeças de gado. Os grileiros têm buscado reduzir o território da comunidade às faixas alagadiças, em sua maioria imprestáveis para a prática da agricultura, situadas à margem do rio Grande, na estrada que liga os núcleos de Riacho de Sacutiaba e Sacutiaba. A primeira circunscrição de uma “terra de direito” é contemporânea a esse processo de espoliação. Antônio da Cruz relacionou as picadas abertas pela comunidade, quando demarcou, por conta própria, os limites do que até então considerava como área de ocupação tradicional. Essa “medição” — com uma extensão de cerca Sacutiaba e Riacho de Sacutiaba de 800ha — não incluiu as faixas alagadiças (algo em torno de 100ha). Posteriormente, a medição encomendada pela comunidade à firma Planteca Ltda., sediada na cidade de Barreiras, em agosto de 1995, incluiria parte desses terrenos, delimitando uma extensão de 993,20ha: Eles botaram na fazenda dois variantes pra dividir com nós. Sobre os negócios do documento, né? Aí, depois, nós fizemos uma variante com aquela roça da estrada, ele mandou nós sair da extrema do Riacho pra lá, que ia ser vizinho nosso, não tinha aborrecimento. Então nós fizemos uma variante, a primeira variante. Depois ele mandou fazer outra variante lá na frente com 1km e 800m. Quando chegou em 850m, ele disse que não dava, que nós não tinha terra. Que não tinha direito. Não, não posso dar, que vocês não têm esse direito. Ele disse que não podia, não, que nós não tinha terra, ele tinha comprado. Doutor, mas nós tem esse direito nosso. Não, vocês não têm direito, não, vocês têm direito ao chão de casa, se acontecer, se não acontecer, vocês não têm direito de nada. Aí nós partimos pra justiça. Ele ainda falou assim: se vocês tiverem direito, a justiça dá. E aí, nós tamos lutando na justiça por causa disso (João, morador de Riacho de Sacutiaba, janeiro de 1997). A localidade de Riacho de Sacutiaba, primeira a ser alcançada por quem chega pela estrada da cidade de Wanderley, situada a 90km, possui 178 habitantes (distribuídos em 29 grupos domésticos). Há 30 casas de moradia dispostas irregularmente, algumas delas circundando um terreno sombreado por duas árvores de troncos espessos, espécie de praça de chão batido, com um campo de futebol, onde as pessoas do lugar se reúnem para conversar e brincar. As casas obedecem a um padrão residencial que provavelmente pode ser estendido às demais populações estabelecidas ao longo das margens do rio Grande: são construções compridas e estreitas, de taipa, cobertas por palha de carnaúba, geralmente com dois ou três cômodos utilizados como sala de jantar/estar, e dormitórios. As salas possuem duas saídas paralelas, sem portas. Uma dessas saídas dá acesso a uma construção contígua, também sem portas, onde são preparados os alimentos, num fogão de barro batido a lenha. Apenas os dormitórios dispõem de portas. 99 100 Quilombos As residências, que em geral congregam apenas uma família nuclear, localizam-se preferencialmente no interior de um grande cercado que agrupa três ou quatro casas de “parentes” próximos. No interior do cercado encontram-se árvores frutíferas em profusão, como mangueira, mamoeiro, bananeira, laranjeira, goiabeira, cajueiro etc., além de “giraus” onde são plantados produtos de horta para consumo doméstico, tais como hortelã, coentro, pimentão etc. É também comum haver “pés” esporádicos de produtos classificados localmente como “de roça”, como bananeira, milho etc., ou de “semente miúda”, como melancia, abóbora, gergelim. Há três casas de moradia localizadas no caminho Riacho-Sacutiaba, habitadas por famílias provenientes da localidade de Riacho de Sacutiaba. O cemitério local está situado nesse caminho. Os túmulos são protegidos individualmente, por cercas construídas com toras de madeira, dispostas verticalmente, de forma irregular. A cerca de 300 metros de distância da “praça” encontra-se o riacho de Sacutiaba, afluente do rio Grande, este último situado a um quilômetro de distância do povoado. No riacho são lavadas as louças e a roupa da casa, tarefa normalmente realizada pelas mulheres. Há espaços claramente demarcados para o desempenho dessas atividades: a jusante é reservada às louças, e a montante, à lavagem das roupas e aos banhos. Também do riacho provém toda a água consumida no interior das casas. A quatro quilômetros de distância da localidade de Riacho de Sacutiaba, subindo o rio, encontra-se o núcleo de Sacutiaba, constituído por sete casas dispostas de forma irregular no terreno, edificadas, grosso modo, segundo os mesmos padrões observados nas residências de Riacho de Sacutiaba: construções compridas e estreitas, de taipa, com cobertura de palha de carnaúba, com agrupamento de casas de “parentes próximos” no interior de um mesmo cercado recoberto por árvores frutíferas e alguns produtos da roça, basicamente semelhantes àqueles encontrados nos cercados do núcleo de Riacho de Sacutiaba. Todavia, diferentemente do Riacho, as residências aí localizadas dispõem de portas de saída e de uma “cozinha” no seu interior. Sacutiaba localiza-se na margem esquerda do rio Grande, e seus terrenos, em épocas de grandes enchentes, Sacutiaba e Riacho de Sacutiaba ficam submersos. Nessas ocasiões, seus habitantes transferem-se temporariamente para as roças. A população local utiliza as águas da lagoa da Porta, assim denominada devido à sua localização, praticamente na beira dos quintais das casas. Os moradores de Sacutiaba constituem uma espécie de prolongamento da “parentela” do Riacho. Sua habitante mais antiga é a viúva Arcanja, prima cruzada de Maria da Cruz, nascida na localidade de Riacho de Sacutiaba. Sua mãe, Francisca, é originária de Sacutiaba. Casou com um irmão da mãe de Maria da Cruz, permanecendo durante alguns anos no Riacho. Posteriormente, voltou com o marido para Sacutiaba, onde criou os seus filhos. Arcanja afirma possuir uma escritura de domínio, “uma escritura antiga”, “com tantos mirréis de terra em Sacutiaba”. De fato, sabe-se que, com o declínio do sistema escravocrata, os coronéis passariam a estimular a vinda de “agregados”, acenando-lhes com a possibilidade de ali cultivarem pequenas porções de terra. Os moradores de Riacho de Sacutiaba e Sacutiaba praticam uma agricultura extensiva, voltada basicamente para a subsistência. Não há diferenças significativas entre as duas localidades na qualidade dos terrenos destinados à agricultura: “as terras de alto são da mesma qualidade das da beira do rio”, afirmou-nos um de seus habitantes quando percorríamos os quatro quilômetros que separam as localidades de Riacho de Sacutiaba e Sacutiaba. Os principais produtos cultivados são o milho, o feijão, a mandioca e o arroz; na Sacutiaba, também o plantio do fumo alcança certa expressividade. As roças localizam-se próximas às casas de moradia; as mais distantes, conforme Antônio, estão no máximo a 100m das casas. As roças são “abertas”, geralmente numa área de três a cinco tarefas, sendo posteriormente acrescidas de áreas limítrofes. Algumas podem atingir uma extensão de 100 a 120 tarefas. Não sendo a terra adubada, seu tempo de esgotamento é curto, variando de quatro a seis anos, e o período de regeneração é, em média, de três anos. Quando a terra está novamente “ematada”, é feito o “aceiro”, isto é, todo o mato é derrubado, reunido no centro do terreno e queimado. O plantio é realizado entre os meses de outubro a janeiro, durante as chuvas, e o período de colheita cobre os meses de abril a setembro, com maior concentração no mês 101 Quilombos 102 de julho. Os produtos que não vão ser consumidos imediatamente ou estocados são vendidos ou trocados por outros gêneros nos “paquetes”, barcos a vapor e canoas de comércio que navegam pelo rio Grande. Há dois portos de comércio, um situado na localidade Riacho, e outro, de maior porte, em Sacutiaba. Em Sacutiaba e Riacho de Sacutiaba, cada família possui uma quantidade expressiva de gado bovino, caprino e suíno, além de galináceos e eqüinos. A pesca é outra atividade reputada como de fundamental importância para a subsistência do grupo, sendo realizada em lagoas, principalmente no período de chuvas. A caça atualmente é realizada de forma muito esporádica, devido ao desmatamento promovido nas cercanias nas últimas duas décadas pelos fazendeiros proprietários da fazenda Sacutiaba e à fiscalização que o Ibama vem exercendo na área. A carne de alguns animais silvestres, como teiú, veado, peba, tatu e cutia, é consumida, mas não com a mesma freqüência observada em tempos idos. Frutos silvestres, como umbu, cagarta, jenipapo, cruili, juá, murici e timbó, são coletados na serra do Boqueirão. A madeira é utilizada basicamente para a confecção de cercas ou móveis e para alimentar os fogões de barro batido. Percorrendo a área com Antônio da Cruz, indagamos acerca da origem do envolvimento de Sacutiaba e Riacho de Sacutiaba com a Fundação Cultural Palmares. Segundo relatou, “essa conversa de Palmares” partiu de um comentário do então advogado da comunidade, que lera a respeito da existência, na região, de diversos grupos ribeirinhos cuja origem poderia facilmente remontar à época da chegada de levas de escravos oriundos do norte do estado de Minas Gerais que teriam escapado pelo rio São Francisco, subindo posteriormente o rio Grande e instalando-se no sopé da serra do Boqueirão, na margem direita do rio, numa região de difícil acesso.16 A hipótese de que os habitantes de Sacutiaba e Riacho de Sacutiaba seriam descendentes dessas “levas de escravos” foi rapi- 16 Essa versão acerca da origem do grupo foi rapidamente veiculada pela mídia local como expressão de um fato histórico concreto. Sacutiaba e Riacho de Sacutiaba damente endossada pelo ex-prefeito de Wanderley e patrono da comunidade, Antônio Porto: “a região onde hoje se encontram ‘os colonos’ é de difícil acesso. Como eles teriam chegado, senão como refugiados?” Toda a área situada às margens desse trecho do rio Grande parece mesmo ter sido povoada inicialmente por escravos e ex-escravos. É na passagem do século XVIII ao XIX que surgem as informações mais consistentes sobre estabelecimentos de escravos fugidos ou rebelados nessa região. Ziglia Dórea, em caracterização histórica da comunidade negra rural de Rio das Rãs, situada na margem direita do médio São Francisco, refere-se à existência de uma expedição de caça, no século XIX, ao quilombo de Xique-Xique (1801). Estando Xique-Xique praticamente defronte à vila da Barra e à serra do Boqueirão, que dista 15 a 20 léguas a oeste daquela, pode-se supor que no entorno da vila da Barra, em ambas as margens do São Francisco e do rio Grande, situavam-se as principais fazendas de gado da região, arruinadas ao longo do século XVIII.17 Nessas circunstâncias, as encostas de serras próximas e suas vertentes propiciam, além da relativa segurança fornecida pelo relevo, as melhores condições, no semi-árido, para a prática da agricultura, fora da várzea dos grandes rios. A simples possibilidade da formação de quilombos como os de Xique-Xique no lado então pernambucano indica claramente a serra do Boqueirão como local preferencial para o seu assentamento. A relevância estratégica da fazenda Boqueirão certamente lhe permitia controlar um vasto território a oeste de sua sede, ainda que seja também certo o escasso domínio econômico de seus proprietários sobre esse território e seus habitantes, devido à quase completa ausência, em toda a região, de produção agrícola ou pecuária voltada para mercado e à própria escassez demográfica. Com efeito, até meados dos anos 1970, quase toda a porção norte do atual município de Wanderley 17 Aliás, a grande ilha que o São Francisco forma junto a Xique-Xique e que se estende até as proximidades de Barra chama-se, ainda hoje, sugestivamente, ilha do Gado Bravo. 103 Quilombos 104 — estendendo-se pela referida vertente ocidental da serra do Boqueirão e pelas margens direitas do rio Grande e de seu afluente Tijucuçu — mantinha-se em mãos de um único grupo de herdeiros, referidos sucessoriamente à propriedade Boqueirão, cuja cadeia dominial, segundo um dos seus herdeiros,18 remonta a 1820, seguramente não por coincidência o mesmo ano em que se criou a comarca de Barra,19 a primeira do oeste baiano, na qual se encontra registrada sua escritura. Aí está situada, há pelo menos 150 anos, à margem direita do rio Grande e a cerca de duas léguas do Boqueirão e da vertente de sua serra, a comunidade rural negra de Sacutiaba e Riacho de Sacutiaba. A possibilidade de vir a ser enquadrada no art. 68 do ADCT como “remanescente de quilombo”, acenada pelo advogado como alternativa às injunções políticas que vinham paralisando os trâmites do processo instaurado no âmbito municipal, evidenciou-se imediatamente aos olhos da comunidade de Riacho de Sacutiaba e Sacutiaba e de seus aliados como uma estratégia mais eficaz e profícua para assegurar a posse da terra tradicionalmente ocupada. A moradora mais antiga, Maria da Cruz, desencadeadora do processo reivindicatório, resumiu em apenas duas frases a legitimidade do pleito: “Não sei se meu pai foi escravo, mas deve ter sido porque é herança de nego. Podem ter libertado, mas foi”. Como forma de se contrapor e desnaturalizar a situação atual de confronto e esbulho vivenciada por sua comunidade, Maria da Cruz referiu inicialmente algumas categorias particulares de auto-adscrição e identificação que apontam para a constituição progressiva de uma condição de orgulhosa independência e liberdade. “Moradores”, “roceiros”, “posseiros” representam a conformação de um direito legitimado historicamente pela permanência na área: “Nunca teve fazendeiro pra abusar de nós. Porque se abusasse, quando chegasse aqui não encontrava nós”. As possibilidades de incorporação de uma identidade básica e mais geral, a sua própria virtualidade, são um construto do presente, 18 19 Aécio Pinto Dantas Júnior, em informação pessoal. Ver Aguiar, 1979. Sacutiaba e Riacho de Sacutiaba ainda que com substrato num tempo pretérito. E os seus contornos vão sendo delineados com o recurso à memória dos mais velhos. Lembranças do “tempo da escravidão” são ativadas, a terra é toda ela delimitada e sinalizada em termos desse tempo pretérito, de sujeição: Capitão Nélson, que chegou aí nos tempos dos nego véio, né? Dos revoltosos. Botava o pessoal pra fazer as coisas, só pra ganhar um prato de comida ou uma calcinha, ou um calçãozinho, um shortinho pra vestir. Aí chegava aqui, se tinha um chicote na minha mão que era bom, ele tomava e saía andando. Chegava na Sacutiaba, tinha uma panela no fogo, tava com fome, pegava, comia e saía andando. No tempo da escravidão mesmo (Maria da Cruz, moradora do Riacho de Sacutiaba). Localidades próximas à comunidade, originadas de antigas fazendas de gado, são mencionadas. Toda essa área teria sido povoada inicialmente por fazendeiros e seus escravos e ex-escravos: A maioria aqui dos baianos é tudo preto. É mais é preto do que branco, do que amarelo. É 200 pretos e cinco vermelhos. (...) Quando eles se apossaram, foi com os escravos deles. Era só gado. A mata aqui é apertada, quando todo mundo chegou e entrou dentro e pronto. E eles também era fazendeiro, mas não cercou nada. Tudo era mata, aqui. Eles mesmo só criavam gado. Algum gado, porco, cabra. Os escravos eram pra dentro de casa. Testemunhos do trabalho escravo são ainda hoje encontrados: Tem uma casa com mais de 200 anos na Goiabeira. Feita pelos escravos. A casa tá abandonada, assim, mas a dona tá morando numa outra casa. Os caibro dela é da grossura dessa travessa aí, é de carnaúba mesmo. Tem caibro de madeira de carnaúba (...). Finalmente, chega-se ao ponto de esboçar um claro recorte étnico, compatível com as referências históricas disponíveis, precisando a origem da comunidade. Maria da Cruz identifica sua bisavó materna como “uma nêga nagô legítima”: A véia era nagô. A bisavó minha, vó de minha mãe. Mas o pai era caboclo. Eu não lhe contei o causo que minha mãe dizia que a avó 105 106 Quilombos dela não penteava os cabelos? Era nagô, nega, cheia de berruga, tudo berrugento, nós tudo. A raça ficou toda assim, cheia de berruga. Eu sou cheia de berruga. Pode atravessar uma corda de laço e amarrar nos chifres da berruga e puxar. Nós não é tudo disgramado, sem cabelo? Porque nego não tem cabelo, nego nagô, cativo. Direito sacramentado, pois, quando da assunção daquela “identidade básica e mais geral” que preside, conforme Barth (1969:150), a construção de uma etnicidade: “Uma adscrição categórica é uma adscrição étnica quando classifica uma pessoa de acordo com sua identidade básica e mais geral, supostamente determinada por sua origem e sua formação”. Todo esse processo ocorre, logicamente, pari passu com uma “territorialização”, isto é, a própria noção de “terra de direito”, ressemantizada pela comunidade nesse novo contexto, expande-se temporal e espacialmente de modo a atender aos pressupostos implícitos na constituição de um território tradicional de um grupo étnico. No caso de comunidades remanescentes de quilombos, esses pressupostos são concebidos à imagem e semelhança daqueles que presidem a definição de uma terra indígena, como demonstra a Portaria Ministerial no 25, de 15-8-1995, publicada no Diário Oficial da União em 228-1995, na qual a Fundação Palmares estabelece as “normas que regerão os trabalhos de identificação, delimitação, titulação e demarcação das terras ocupadas por remanescentes de quilombos”. O parecer que aprova o laudo de identificação e delimitação da Comunidade Negra Rural de Sacutiaba e Riacho de Sacutiaba como remanescente de quilombo, com uma área de 11.440,08ha, foi publicado no Diário Oficial da União de 28-5-1997. Reconhecida “oficialmente” e com um território corretamente definido, a comunidade permanece, contudo, exposta às investidas dos fazendeiros confrontantes, pois até o presente não foram firmados prazos nem definidas as competências devidas para a execução das demais etapas do processo de regularização das terras de quilombos. Sacutiaba e Riacho de Sacutiaba Referências bibliográficas Aguiar, Durval Vieira de. Província da Bahia. [1888] Rio de Janeiro, Cátedra; Brasília, INL/MEC, 1979. Associação Brasileira de Antropologia. Terra de quilombos. Rio de Janeiro, 1995. Barth, Friedrik. Introduction. In: Barth F. (ed.). Ethnic groups and boundaries: the social organization of cultural difference. London, George Allen & Unwin, 1969. Brasileiro, Sheila. Riacho de Sacutiaba e Sacutiaba: uma comunidade negra rural no oeste baiano. Relatório de identificação e delimitação. Salvador, Convênio CETT/MinC, jan. 1997. Carneiro da Cunha, Manuela. Parecer sobre os critérios de identidade étnica. In: Antropologia do Brasil: mito, história e etnicidade. São Paulo, Brasiliense/Edusp, 1986. Dórea, Ziglia Zambrotti. O Quilombo do Rio das Rãs. In: Associação Brasileira de Antropologia. Terra de quilombos. Rio de Janeiro, 1995. Gonçalves, Wagner. Terras de ocupação tradicional: aspectos práticos da perícia antropológica. In: Sampaio Silva, Orlando; Luz, Lídia & Helm, Cecília M. (orgs.). A perícia antropológica em processos judiciais. Florianópolis, UFSC, 1994. Gusmão, Neusa Maria M. de. Caminhos transversos: território e cidadania negra. In. Associação Brasileira de Antropologia. Terra de quilombos. Rio de Janeiro, 1995. Marques, José Frederico. Manual de direito processual civil. São Paulo, Saraiva, 1974. O’Dwyer, Eliane Cantarino. Remanescentes de quilombos na fronteira amazônica: a etnicidade como instrumento de luta pela terra”. In: Associação Brasileira de Antropologia. Terra de quilombos. Rio de Janeiro, 1995. Oliveira, João Pacheco de. A viagem de volta — reelaboração cultural e horizonte político dos povos indígenas no Nordeste. In: Atlas das terras indígenas do Nordeste. PPGAS/MN, 1993. ———. Os instrumentos de bordo: expectativas e possibilidades do trabalho do antropólogo em laudos periciais. In: Sampaio Silva, Orlando; Luz, Lídia & Helm, Cecília M. (orgs.). A perícia antropológica em processos judiciais. Florianópolis, UFSC, 1994. 107 108 Quilombos Paraíso, Maria Hilda B. Reflexões sobre fontes orais e escritas na elaboração de laudos periciais. In: Sampaio Silva, Orlando; Luz, Lídia & Helm, Cecília M. (orgs.). A perícia antropológica em processos judiciais. Florianópolis, UFSC, 1994. Santos, Sílvio Coelho dos. Perícia antropológica: comentários. In: Sampaio Silva, Orlando; Luz, Lídia & Helm, Cecília M. (orgs.). A perícia antropológica em processos judiciais. Florianópolis, UFSC, 1994. Silva, Dimas Salustiano da. Constituição e diferença étnica: o problema jurídico das comunidades negras remanescentes de quilombos no Brasil. In: Associação Brasileira de Antropologia. Terra de quilombos. Rio de Janeiro, 1995. CAPÍTULO 3 Conceição das Crioulas, Salgueiro (PE) Vânia Rocha Fialho de Paiva e Souza Com base no art. 68 do ADCT, muitas comunidades negras que vivem no meio rural estão pleiteando o reconhecimento de sua identidade de remanescente de quilombo e requerendo a garantia de seu território. A comunidade de Conceição das Crioulas, localizada no estado de Pernambuco, está sendo objeto de nossos estudos de cunho antropológico, nos quais tentamos descrever os seus aspectos socioculturais que apontam para os elementos constituidores de uma comunidade de identidade diferenciada. Para tanto, desenvolvemos nosso trabalho em duas fases de pesquisa de campo, quando coletamos os dados e fizemos, juntamente com os técnicos responsáveis, a identificação dos limites territoriais. O contato com pessoas e instituições que já haviam trabalhado com a comunidade em questão foi de extrema valia. Agradecemos em especial ao Centro Luiz Freire, na pessoa de Elizabeth Ramos, que nos colocou à disposição todo o material do trabalho por ela desenvolvido em Conceição das Crioulas e facilitou-nos os primeiros contatos com a comunidade. No sertão de Conceição das Crioulas Ao sair da BR-116 e entrar pela estrada de terra em direção a Conceição, é sempre grande a expectativa e o receio. Encravada numa 110 Quilombos terra “sem lei” por conta do tráfico da maconha, chegar até Conceição não deixa de ser uma aventura. Se o carro é oficial, corre-se o risco de ser confundido com a Polícia Federal; em carro particular, é fundamental estar acompanhado das pessoas da região. Após deixar a rodovia federal, são aproximadamente 42km em meio à caatinga, vegetação composta de árvores de pequeno e médio porte, onde predominam o juazeiro, a baraúna, a jurema preta, a arueira, a quixabeira, o mameleiro, o espinheiro, a faveleira, o caroá, a macambira e o mucunã. De repente, no meio de uma paisagem acinzentada, deparamo-nos com um arruado que nos leva ao povoado de Conceição das Crioulas. As crianças sempre estão por perto da praça, brincando ou embaixo de alguma árvore. O calor é forte; como entre as 11 e 15 horas é praticamente impossível fazer alguma coisa, o dia começa cedo. Quando não é época de novena e se acorda com a alvorada da banda de pífanos e com os fogos de artifício às 5 horas, o movimento do dia começa com os carros que vão para a feira quatro vezes por semana, caminhões em sua maioria. Os afazeres domésticos têm início com crianças e adultos indo buscar água nos açudes e barreiros. Para beber, apela-se para a água de um barreiro mais distante, onde há maior controle da entrada de animais e, conseqüentemente, a água é menos suja. Para as outras utilidades, recorre-se ao grande açude que fica mais próximo. Além do vaivém das crianças que estudam pela manhã ou à tarde, há um movimento constante de bicicletas, que são de extrema importância para facilitar a relação entre os sítios, e também de motocicletas. Por volta das 16 horas, aumenta novamente o movimento no centro de Conceição: é a hora do banho. Como não há água encanada, toma-se banho no açude. As crianças geralmente são as primeiras a chegar, acompanhadas das mães, que também lavam louça e roupas. Para tornar menos árdua a tarefa, bem próximo ao açude foi construída uma lavanderia, que hoje se encontra desativada. Os adultos vão para o açude já no início da noite. Na primeira fase de trabalho de campo, estivemos em Conceição no período de novena, e foi muito interessante perceber a ebulição ao se aproximar o horário do início da mesma. Além das pes- Conceição das Crioulas, Salgueiro (PE) soas que se dirigem à igreja, muitas ficam na praça, conversando, ou junto ao posto telefônico, para falar com os parentes que se encontram distantes. Após a novena, boa parte dos presentes na igreja se dirige para a casa da família que ficou responsável por aquele dia de novena, onde lhes é servida uma refeição. Com essa breve descrição temos exemplificadas a rotina e algumas estratégias de interação da comunidade de Conceição das Crioulas. De caráter religioso, doméstico ou lúdico, elas consistem nos momentos em que o capital simbólico do grupo circula entre seus membros, fortalecendo seus vínculos e estruturando sua visão de mundo. A seguir apresentaremos as principais características dessa comunidade negra. Para melhor organizar os dados, apresentamos o texto em forma de itens, apesar de estarem todos intimamente relacionados. Primeiros contatos Conceição das Crioulas, uma das comunidades negras existentes no estado de Pernambuco, está localizada no sertão, distando 514km de Recife. Para se chegar até Conceição, corta-se todo o estado pela BR232 até a cidade de Salgueiro. De lá, segue-se pela BR-116 em direção à cidade de Petrolina e pega-se a estrada não-pavimentada no km 17, após Salgueiro. Conceição das Crioulas constitui o segundo distrito do município. Um primeiro contato com membros de Conceição já havia sido feito anteriormente na reunião realizada pela Fundação Cultural Palmares em Brasília, em 5 de setembro de 1997. Isso porque Givânia, uma das lideranças de Conceição das Crioulas, fazia parte da Comissão Nacional que definiu as 50 comunidades a serem estudadas no ano de 1997. Além do Centro Luiz Freire, entramos em contato com professores e estudantes do departamento de Ciências Sociais da Ufpe que haviam realizado pesquisas em Conceição das Crioulas, às quais, infelizmente, não tivemos acesso. 111 112 Quilombos No início do trabalho de campo, realizamos uma reunião com algumas lideranças que estavam no povoado de Conceição das Crioulas, pois, devido à distância, não poderíamos fazer contato com os sítios mais distantes, a fim de esclarecer o trabalho que estávamos começando. Aspectos gerais A população de Conceição das Crioulas, estimada em 1.780 habitantes, compõe-se de 356 famílias distribuídas em 16 núcleos populacionais denominados “sítios”. Os sítios estão espalhados pelo território hoje identificado como dos “remanescentes de quilombos” e apresentam certa heterogeneidade no que diz respeito à concentração populacional, à mobilização política e à assistência dos órgãos governamentais, bem como à consciência e, conseqüentemente, à autoatribuição da identidade de remanescente de quilombo. O povoado de Conceição das Crioulas é o núcleo da comunidade formada pelos 16 sítios. Ele e Lagoa são os únicos que possuem luz elétrica. Em Conceição acham-se a igreja de Nossa Senhora da Assunção, o posto telefônico, duas escolas (uma de ensino básico e outra de ensino fundamental), um posto médico, a casa comunitária (local para reuniões da comunidade), um mercado público desativado, algumas vendas e botecos e uma borracharia. O posto médico e uma das escolas ficam logo na entrada de Conceição. Bem próximo à praça, porém não mais no centro do povoado, encontramos o centro comunitário, a outra escola, o cemitério e um campo de futebol. Portanto, é o núcleo que apresenta as melhores condições da região e constitui o ponto de apoio para sua população. Aí moram também as principais lideranças, como Andrelino, João Alfredo e Maria Alzira. Os demais sítios se articulam por meio de suas associações de moradores. Geralmente cada sítio possui a sua, ou então há representação de dois ou três sítios, considerando a proximidade dos mesmos ou o menor número de habitantes. Nesses sítios encontramos três escolas em situação bem precária. Conceição das Crioulas, Salgueiro (PE) Apresentamos abaixo os nomes dos sítios identificados e o nome de seu representante (presidente da associação): Rita Número de famílias 59 30 55 45 12 29 12 Diva 77 Sítio Representante Conceição das Crioulas Lagoa Paula Paus Brancos Rodiador Massapê Sítio Queimada Garrote Morto Poço da Pedra Mulungu Lagoinha Amparo Curtume Boqueirão Pedra Preta Total João Evangelista da Silva Auxiliadora Auretides Maria Bezerra Epifânio 22 1 6 5 3 356 A forma predominante de organização familiar é a nuclear, cabendo destacar o grande número de filhos. As habitações são feitas de alvenaria, nos sítios mais próximos da vila de Conceição, e de taipa, nos sítios mais afastados. Têm poucos cômodos e poucos móveis, sendo os principais adornos os santos do catolicismo popular e os retratos familiares. Cortinas separam os cômodos existentes, e não há, mesmo em Conceição, sistema sanitário nem água encanada. Toda a água utilizada para consumo da população vem dos açudes e dos barreiros existentes na região. Essas únicas fontes de água são também utilizadas para o consumo dos animais, que aí se banham. Os agentes sanitários que trabalham nos sítios procuram orientar os habitantes a tratar a água nos potes de barro em que se armazena a água nas casas. Os principais problemas de saúde da comunidade são as verminoses e a doença de Chagas. A disposição das casas não obedece a um único formato. O principal núcleo populacional está organizado em casas conjugadas em 113 114 Quilombos torno de uma praça, bem perto do principal açude da região, construído na década de 1960. Já o núcleo denominado Lagoa constitui-se num arruado com as casas dispostas uma ao lado das outras. A semelhança entre elas deve-se ao fato de terem sido construídas no período das “frentes de trabalho”, quando as mulheres tomaram a iniciativa de substituir as casas de barro batido pelas de alvenaria para evitar o grande número de casos de doença de Chagas, veiculada pelo inseto “barbeiro” que se aloja nas casas de barro. À medida que nos distanciamos de Conceição das Crioulas, o acesso aos demais sítios vai-se tornando mais difícil. As pedras e a areia existentes dificultam a locomoção de pequenos veículos. Por isso a motocicleta tem papel fundamental na região. Entre Salgueiro e Conceição, o transporte é feito por caminhões e lotações que trafegam nos dias de feira de Salgueiro (segundas, quartas, sextas e sábados) ou por mototáxis. Ocupação territorial Quanto à apropriação territorial em Conceição das Crioulas, podem-se identificar várias situações. Nos sítios encontram-se habitações e pequenos roçados próximos a elas. A apropriação das terras é familiar e, como a terra destinada ao plantio é pequena, muitas vezes aproveitam-se trechos mais distantes da morada. O problema reside nas características físicas da região: extremamente árida, com as melhores áreas sob o domínio de fazendeiros. Os trechos que sobram para os habitantes de Conceição apresentam muitas pedras e são impróprios para a agricultura. A maioria não tem título das terras e apresenta o pagamento do imposto rural ao Incra como documento que legitima sua ocupação. Até 1987, o principal produto da região era o algodão, mas este foi atingido por uma praga do inseto denominado bicudo, o que desestabilizou totalmente a economia do município. Antes do declínio do algodão, Conceição das Crioulas tinha feira própria e o mercado público funcionava. Hoje a agricultura é basicamente de subsistência. Plantam-se milho, feijão, mandioca, jerimum e melancia (os três últi- Conceição das Crioulas, Salgueiro (PE) mos em menor escala). Há também pequenos criatórios de ovinos, caprinos, bovinos e suínos. Durante o trabalho de campo, pudemos identificar alguns imóveis nas terras das Crioulas. A seguir relacionamos o nome e a localização do imóvel e o nome do proprietário. Esclarecemos que são dados aproximados, visto que não se trata de um levantamento fundiário, tecnicamente estabelecido: Nome Proprietário Localização Benfeitorias 1. Fazenda Junco 2. Juvenal Pereira José “Nel” de Carvalho Rodiador Paula 3. Herdeiro de João Pompilho Francisco de Assis Alencar (Chicola) Lagoa Açudes Açude, cerca de arame, fruteiras e casa de alvenaria Cerca de arame Herdeiros de Antônio Urbano dos Santos Anita Juvenal de Onório Herdeiros de Pedro da Luz Herdeiros de Acioli Coqueiros 4. 5. Fazenda Coqueiro 6. Fazenda Chapada 7. Fazenda Barrinha 8. Fazenda Jatobá 9. Fazenda Amparo 10.Fazenda Bezerro 11.Fazenda Riacho Juazeiro Conceição Estrada do Jatobá/Anil Jatobá Duas casas, cerca de arame e açudes (um de alvenaria) Mangueiras e coqueiros Barreiro e mata (foi derrubada) Jatobá “Dinamérico” dos Santos Amparo Luís Lopes dos Santos Antônio “Nel” de Carvalho Boqueirão Riacho Juazeiro Barreiro, cerca de arame farpado Açudes e cerca de arame farpado A situação de posseiro é a mais comum em Conceição. Poucos possuem a escritura das terras. Os casos existentes estão relacionados à herança de terras que foram adquiridas por uma ou duas gerações passadas. O relato da ocupação das “terras das crioulas” revela quatro estágios distintos. No primeiro, após o pagamento da renda pelas crioulas que deram origem ao povoado, a terra tinha um sentido 115 116 Quilombos “comunal”; o segundo é caracterizado pela apropriação ilícita das terras por “brancos”; no terceiro, dada a necessidade de legitimar a ocupação das terras com documentos reconhecidos pelos que têm o poder de definir as categorias de direito, começa-se a reaver as terras mediante compra; no quarto estágio, o atual, tenta-se recuperar as terras através da categoria de “terra remanescente de quilombo”. Os depoimentos reproduzidos a seguir mostram como o domínio de trechos das terras das crioulas foi passado para os brancos: Chegavam e pediam [os brancos]: “me dê aqui pra eu colocar um currau, deixar o gado aí” (...). Já aqueles tolos, porque eram tolos, dava os filhos pra eles ser padrinho e aí eles iam entrando, se apossando: “Me venda aí 10 braça por um pedaço de queijo, um quarto de boi”, e foi indo assim, eles sabendo o que tavam fazendo, e nós, os moreno, dormindo; aí eles ficaram com tudo e nós quase nada (V.V.O. — sítio Lagoa). Pediam [os brancos] terra para botar logradouro e quando saíam já vendiam para segundas pessoas depois deles, e o outro já ficava como dono, e isso aconteceu muito quando o segundo dono tomava conta daquela gleba que tinha comprado, ele tinha condições porque tinha vaca, quem tinha vaca tinha mais poderes financeiros e já cercava uma área maior, mesmo contra a vontade do próprio negro (J.A. — Vila de C. das Crioulas). Titia falava que existia essa terra do povo de Conceição, aí depois que o velho Nel chegou, chamava ele de “velho Nel”, ele, rico, apossou-se do terreno. Eu lembro que padre Zé Pedro tava querendo medir essas terras dele, que ele tinha umas questões, aí titia dizia que só quem tinha escritura naquela área era essas mulher, essas cabocla de Conceição (R.M.F. — Sítio). Podemos perceber, como disse João Alfredo, morador de Conceição das Crioulas, que a história de Conceição “é marcada por interesse daqueles mais espertos que se dizem donos da cultura e do saber”. Um acontecimento muito presente na memória social do grupo é a chamada “guerra dos Urias”, conflito entre negros e brancos que Conceição das Crioulas, Salgueiro (PE) queriam se apossar das terras e da Conceição. Com a revolta dos negros, a família dos Urias acabou por retirar-se da região. Tal impasse entre brancos e os integrantes de Conceição das Crioulas acabou por atribuir à escritura das terras das crioulas um caráter quase mítico que passou a ser compartilhado com as agências presentes no atual processo de reafirmação da identidade de remanescente de quilombo que vivenciam no presente. A disputa pela posse da terra na região de Conceição das Crioulas gira em torno da legitimidade da posse das mesmas. O poder político-partidário tem influenciado fortemente essa disputa e até mesmo a assistência recebida pela comunidade. É comum ouvir dizer que os documentos apresentados pelos atuais proprietários são forjados. Em entrevista dada a pesquisadores do Centro Luiz Freire, seu Antônio Andrelino, morador de Conceição das Crioulas, fez também referência ao processo de expropriação a que continuam sendo submetidos, envolvendo um vereador de Salgueiro: “essa terra de Chicola não foi comprada, foi toda tomada, tomaram a roça de Luciana, de Antônio Rosa, a roça de Luiz Simão”. O imóvel a que seu Antônio se refere fica bem próximo à Vila de Conceição das Crioulas, mas a comunidade também disputa com Francisco “Chicola” o controle da utilização da água do açude, que é de fundamental importância para a população regional, pois Francisco intencionava instalar vias que possibilitassem a utilização dessa água para os animais da sua fazenda, o que só foi embargado pelo fato de a família de seu Antônio Andrelino ter a posse de uma gleba num local estratégico e proibir que os canos fossem instalados. Esse conflito não é recente. A disputa já estava instalada na época do pai de Chicola, Ondilonzinho, que a “adquiriu” de outro fazendeiro — da família Alencar, também considerada uma das que tomaram as terras dos negros da família dos Antônio. É muito comum ouvir falar da natureza dos documentos que os atuais proprietários apresentam como algo forjado e ilegítimo. Seu Virgínio afirma que as escrituras que os brancos têm são falsas, porque não consta assim que foi registrada num tribunal, é aí assim com tem uns sabidos que juntam papel, aí junta com os cartórios, 117 Quilombos 118 passaram as escrituras mas, não sendo assim um negócio fixo. Como justamente como tem uma fazenda, arrendada a dois quilômetros, vieram arranjar uma escritura já muito cá, ficaram aí, depois com muita sabedoria Um grande problema enfrentado é o plantio de maconha, atividade que passou a ser desenvolvida na região com a decadência do algodão. Conceição das Crioulas está localizada no chamado “polígono da maconha”, área que se destaca pelo volume de sua produção e também pelo alto índice de criminalidade. Para conhecer os diversos sítios que compõem Conceição é essencial estar acompanhado de pessoas da região e sempre deixar muito claro o tipo de trabalho que está sendo realizado. É comum a investida de Polícia Federal nas redondezas; há sempre um clima de tensão e desconfiança. A consciência dos limites territoriais das terras de Conceição das Crioulas facilitou bastante a identificação dos pontos no campo. A comunidade já tinha sua proposta elaborada mesmo antes dos primeiros contatos feitos pela equipe técnica. Apesar de sempre se referirem ao documento que julgam legitimar sua posse das terras, os limites territoriais são apontados com segurança. São eles: serra da Princesa, Jatobá, os limites da terra indígena aticum, serra Redonda, serra do Urubu, chegando novamente à serra da Princesa. A área corresponde às terras das antigas crioulas e nela se incluem os 16 sítios que compõem a comunidade negra de Conceição das Crioulas. O pleito da comunidade refere-se à delimitação de um território de 16 mil hectares, cuja dimensão vai além da espacial. Enfatizamos a necessidade de regularização do território das crioulas como forma de garantir o espaço social daquela comunidade, ou seja, uma área de uma prática social onde se observa um comportamento social que vem garantindo a unidade e a identidade do grupo. Pode-se dizer que o estabelecimento de um território define a divisão política e dá forma e cria fronteiras aos sujeitos sociais a partir de dois aspectos principais: o movimento (de pessoas, de idéias ou mercadorias) e a iconografia (os símbolos).1 1 Ver Mesquita, 1995. Conceição das Crioulas, Salgueiro (PE) O fluxo existente no território de Crioulas, entre seus sítios, dáse em relação aos elementos religiosos: as novenas, a participação nos “terreiros” ou a solicitação de seus serviços para resolução dos problemas, além da mobilização política sustentada principalmente pelas associações. A assistência e a orientação dadas por alguns elementos, como agentes de saúde, parteiras e assistentes de enfermagem, indicam também a cooperação existente entre os sítios. A atuação desses agentes, legitimada pela administração municipal, possibilita reconhecer a organização de Conceição como uma unidade social. Acompanhando o evento de uma “tapagem” de casa no sítio Garrote Morto, pudemos identificar a cooperação entre os indivíduos e os sítios. Um casal de Conceição preparava a casa para morar, e toda a redondeza foi convocada a participar. Dois dias antes já se ouvia falar do que iria ocorrer. Até moradores dos sítios mais distantes, como Salgueiro, se animaram a “tapar a casa”. Homens, mulheres e crianças vieram ajudar a carregar água, preparar o barro e cobrir o esqueleto da casa, já estruturado por outros participantes. As mulheres mais velhas prepararam um almoço — cuscuz, feijão, macarrão e galinha —, que todos comeram juntos. Em geral ao fim do almoço há um forró. Esse fluxo acaba por determinar uma rede social que dá consistência à proposta de regularização fundiária apresentada pela comunidade. Mas a ocupação e a consciência territorial de Conceição das Crioulas também estão presentes nos diversos relatos que se referem aos seus limites e à sua ocupação, bem como aos locais relacionados às suas atividades e de seus antepassados. Também ouvimos histórias a respeito de uma figura muito popular em Conceição, Maurício Barnabé ou Bernabé, como geralmente é chamado. Personagem algo fantasioso, ele é referenciado um dos “antigos” de quem descendem. Em geral são histórias cômicas e bastante divertidas. Uma delas conta que Bernabé estava trabalhando no beneficiamento da mandioca numa casa de farinha, na serra Velha (ou das Crioulas). Estando sozinho, procurava ao mesmo tempo passar a mandioca na prensa e peneirar outra parte da massa, mas, sempre que acionava a roda da casa de farinha, ela não atingia a velocidade necessária. Até que, em meio à confusão, resolveu em- 119 120 Quilombos pregar toda a sua força para que a máquina funcionasse, fazendo assim a roda sair de seu eixo. Um ano depois, quando caçava na serra Velha, deparou com a roda dando a “derradeira” virada no galho de uma árvore. Outra história das peripécias de Bernabé conta que ele ficava trabalhando no seu roçado na serra Velha, e seu irmão, na serra do Urubu, bem distante da primeira. Enquanto trabalhavam, jogavam bola um com o outro. Às vezes, a bola demorava três meses para chegar até o parceiro. Também é conhecida a história de um rebanho de porcos de Bernabé que se havia perdido. Certo dia, quando ele foi colher o produto de seu roçado, encontrou uma mandioca muito grande e, dentro dela, os porcos que tinham sobrevivido se alimentando da própria mandioca. As referências feitas aos locais onde os integrantes de Conceição mantêm seus roçados, retiram barro ou ainda caçam, bem como as histórias de Bernabé constituem informações importantes para que seu território seja reconhecido como atrelado aos locais de significado relevante para a comunidade, como por exemplo serra Velha, atualmente incluída nas terras dos índios aticuns, serra do Urubu e Areias, onde a comunidade tem uma área “comum” de plantio, e serra do Urubu, de onde é obtido o catolé para a confecção de vassouras. A identificação dos pontos que demarcam o perímetro das terras das Crioulas foi feita com a participação e acompanhamento dos membros da comunidade. A dificuldade deveu-se apenas ao difícil acesso a alguns deles, pois geralmente ficavam localizados no divisor de águas das serras citadas. Uma questão importante é a inclusão ou não do perímetro urbano do distrito de Conceição das Crioulas, que está totalmente inserido nas terras identificadas e ao mesmo tempo constitui o centro da vida dessa comunidade. Isso porque, segundo os técnicos responsáveis pela delimitação das terras, não seria prudente sobrepor terras públicas (no caso, as terras das crioulas) ao perímetro urbano municipal. No entanto, as terras de quilombos não serão necessariamente estabelecidas como terras públicas; mesmo que o fossem, isso não Conceição das Crioulas, Salgueiro (PE) isentaria a prefeitura de Salgueiro de atuar e dar assistência àquela comunidade. Assim, propomos que o perímetro urbano não seja excluído, considerando a grande importância histórica e cultural dessa área para a comunidade negra de Conceição das Crioulas. Aspectos econômicos Como a maior parte dos sítios está ilhada por cercados, muitos só têm como alternativa o arrendamento. A renda é estimada em 20% da produção. A diária paga aos que empregam sua mão-de-obra nas fazendas da região é de R$4. É interessante observar que os indivíduos de Conceição, quando contratam mão-de-obra para trabalhar no seu próprio roçado, pagam uma diária de R$5. Mesmo quando arrendam as terras, procuram manter algum roçado próprio nas encostas das serras, como acontece com os moradores dos sítios de Paus Brancos e Paula e da vila de Conceição das Crioulas. Nos meses de dezembro e janeiro, quando começam a cair as primeiras chuvas, tem início o período de plantio do feijão. O milho é plantado principalmente no mês de março, mas o plantio é antecipado quando as condições físicas são propícias. A apropriação da terra é familiar, e cada família se responsabiliza pelo preparo, plantio, manutenção e colheita. Os roçados ficam na denominada “terra comum”, isto é, aquela que não tem título, só o pagamento do Incra. Não se costuma construir cercas entre os roçados. Um dos grandes problemas enfrentados pela população de Conceição das Crioulas é a falta de financiamento para incremento da agricultura. Como não possuem títulos das terras, não têm como negociar o crédito rural. A produção fica restrita à subsistência da população, que a armazena em silos localizados dentro das habitações. Em muitos anos, ela nem é suficiente para garantir alimento à população. Alguns produtos são vendidos na feira de Salgueiro não porque representem o excedente, e sim pela necessidade de transformá-los em moeda corrente para adquirir outros bens necessários à sobrevivência. 121 122 Quilombos No cotidiano dos sítios é comum a troca de mercadorias, sem utilização de dinheiro. A aposentadoria rural é outra forma que algumas famílias têm de contornar os períodos de grande dificuldade. As condições de plantio associadas às grandes estiagens propiciam uma dieta alimentar extremamente pobre. Sobrevive-se basicamente com o feijão, a farinha de mandioca e o milho. A carne é proveniente de pequenos criatórios, mas nem toda família tem condições de mantê-los. Nos açudes podem-se obter peixes, que são conservados em sal, como a carne. Ao serem perguntados sobre a vida atual e a passada, os integrantes de Conceição sempre se referem a um período em que tiveram melhores condições de sobrevivência, quando o algodão era a principal atividade econômica da região, mas também mencionam situações de extrema dificuldade vivenciadas durante as secas. Nesses períodos, a alimentação restringe-se a alguns vegetais nativos, como a macambira, que é arrancada, raspada, cortada e utilizada para se fazer uma massa com que se prepara um tipo de angu e cuscuz de sabor extremamente amargo, e a semente do mucunã, que deve ser lavada em nove águas e depois torrada para se fazer cuscuz. Alguns vegetais nativos são utilizados como remédio até hoje; por exemplo, anjico, para tosse, ubiratanha, para os rins, quixabeira, para cicatrizar ferimentos, e papaconha, para aliviar a dor do nascimento dos dentes. No trecho das terras próximo à serra do Umã, algumas famílias de Conceição têm seus roçados dentro da terra indígena aticum. Elas mantêm relações com a população e o posto indígenas já há muito tempo, sem nenhum tipo de conflito. Dona Luzia, do sítio Curtume, vive nas terras que seu pai ocupava anteriormente, cujo roçado se localiza no pé da serra incluída nos limites indígenas. Há quem desenvolva algum tipo de atividade artesanal, como Virgínio de Oliveira e sua esposa Sabina Maria da Conceição, que fabricam utensílios de barro, ou dona Júlia, que faz bolsas e sacos com a fibra do caroá, ou ainda dona Mariana da Conceição, do sítio Paus Brancos, que confecciona vassouras com palha de catolé. O cento dessas vassouras é vendido por R$4 ou R$5 reais. São atividades típicas dos mais velhos, não tendo repercussão entre as gerações mais novas. No sítio Garrote Morto, dona Maria de Lurdes lembra que Conceição das Crioulas, Salgueiro (PE) seus tios trabalhavam com barro, fazendo tijolos e telhas; sua avó confeccionava jarros de barro, e suas tias se utilizavam de um barro branco retirado da Serra Velha (ou das Crioulas) para fazer quartinhas, terrinas, travessas etc. Quando criança, dona Maria de Lurdes chegou a aprender esse ofício, que abandonou posteriormente. Os objetos de barro são feitos e utilizados pelos próprios artesãos; já o material de caroá é confeccionado sob encomenda. As dificuldades vivenciadas pela população de Conceição das Crioulas promovem a emigração, principalmente dos mais jovens, que vão procurar outras oportunidades de trabalho em cidades como Salgueiro e Recife ou até mesmo em São Paulo. As duas primeiras cidades são também procuradas por possibilitar a continuidade dos estudos. Muitas são as histórias contadas em Conceição pelos que tentaram obter melhores condições de vida em grandes centros urbanos, mas tiveram que voltar devido à falta de qualificação profissional e às poucas oportunidades oferecidas. O que mais se destaca nesses relatos é a dificuldade de adaptação, devido ao choque dos valores que carregam com aqueles com que se deparam nessas tentativas de emigração. Organização social e identidade quilombola Em Conceição das Crioulas, a identidade de “remanescente de quilombo” está relacionada à origem da comunidade e às relações de cooperação hoje estabelecidas entre os sítios mencionados. O parentesco com determinadas famílias consideradas tradicionais das Crioulas também é sempre resgatado como forma de enfatizar o pertencimento a Conceição das Crioulas. A memória do grupo aponta o início do século XIX, mais precisamente o ano de 1808, como a data da chegada de seis crioulas à região hoje conhecida como Conceição das Crioulas. Não há um consenso quanto ao local de origem dessas mulheres, nem quanto às razões que as levaram a se deslocar para lá. Existem algumas referências ao local denominado Panelas ou Panelas d’Água, assim como a um negro, capitão Antônio de Sá, que teria servido de “guia” para as crioulas, mas é unânime a idéia de que não chegaram na condição de 123 124 Quilombos escravas. Arrendaram uma área de três léguas em quadra e a foram pagando com o trabalho de fiação do algodão que vendiam em Flores, município situado nas proximidades. Tal época é referida como “período do rei”. O pagamento da referida renda deu às crioulas o direito de adquirir o título de suas terras. Segundo seu Antônio Andrelino, seu pai contava que as crioulas receberam essas terras em 1802; sua escritura tinha 16 selos, trazia o carimbo da Torre e fora feita por um tal José Delgado. Mabel de Albuquerque, professora da Ufpe, diz que existiu, no cartório de Flores, um escrivão com esse nome. Pode-se perceber que a história das crioulas é contada nos mais diversos sítios e a que a identidade da comunidade de Conceição das Crioulas está intimamente ligada à descendência das “crioulas” fundadoras. A mobilização pela reconquista das terras das crioulas vemse constituindo num forte elemento de coesão da comunidade e de reavivamento de sua memória. Seu Virgínio Vicente, morador da Lagoa, diz ter ouvido de seus pais e tios que Conceição foi “começada” somente por crioulos: Num existia branco, num tinha esse problema de branco, não, dizem que foi as criolas, não é criolo, é criolas, que arrendou esse terreno aqui e foram pagando a renda, fiavam uma lãzinha de algodão, aquelas bolinhas, e foram vender em Flores, lá é que pagavam a renda da terra, até que venceu esse tempo e ficaram donas. Existem diversas versões, umas mais detalhadas que outras, da chegada das crioulas na região de Conceição. Diz J. A., um integrante da comunidade: Eu escuto o pessoal dizer que era um povo que fugiu da escravidão, vieram pelas margens do rio São Francisco, quiseram se apossar pelas bandas do São Francisco, mas como o São Francisco tinha transporte fácil, era fácil o acesso, eles vieram se embrenhar por dentro dessas serras. Segundo o depoimento de um morador do sítio Garrote Morto, as crioulas chegaram à região fugidas de uma senzala e, como era área desabitada, começaram a cultivar algodão, que colocavam em balaios Conceição das Crioulas, Salgueiro (PE) de cipó para vender em Flores, com o objetivo de comprar o terreno. Também vieram homens, mas a iniciativa foi das mulheres. O nome “Conceição” se explica pelo fato de que um homem chamado Francisco José, que também tinha escapado de uma guerra, chegou trazendo consigo a imagem de Nossa Senhora da Conceição, em cuja honra ergueram uma capela. O sertão do atual estado de Pernambuco não foi uma região caracterizada pela escravidão; foi, sim, uma região propícia ao refúgio de negros e índios, o que reforça a unanimidade dos relatos quanto à condição de não-escravos. Clóvis Moura afirma que, no sertão nordestino, o negro se fez presente não pelo trabalho, e sim como “perturbador da economia, como fugitivo, como quilombola”. Abdias Moura, aludindo a esse contexto para justificar os poucos dados estatísticos encontrados sobre a presença do negro nos tempos passados, cita uma estatística publicada pelo Diário de Pernambuco no século passado, segundo a qual, “dos escravos matriculados nos municípios da província, estavam anotados 477 em Floresta, 237 em Buíque e 173 em Tacaratu, no sertão do São Francisco”. Outro documento citado, este de 1873, faz uma referência genérica aos habitantes dessa mesma área: “a maior parte dos indivíduos a que nesta província se dá o nome de índios são de uma raça já degenerada; os pretos, pardos, mais ou menos fulos, que vivem com os índios, todos são também conhecidos sob esta denominação”. Podemos perceber que, assim como várias categorias relativas a origem, raça e etnia eram computadas sob uma única denominação, a de índio, o mesmo ocorreu com as categorias negro, escravo e até branco, o que dificulta a utilização dos documentos oficiais para tentar recompor a ocupação da região, se utilizarmos um viés parcial, deixando de interpretá-los. Outra dificuldade que enfrentamos na realização deste relatório foi o fato de existirem poucas fontes sobre o sertão. Recentemente entramos em contato com Yoni Sampaio, professor da Ufpe, que nos forneceu importantes informações sobre a documentação de boa parte do sertão. Trata-se de documentos de cartórios de Cabrobó, para onde convergiram durante muito tempo os dados de Tacaratu, Flores, Santa Maria da Boa Vista e Salgueiro, cujo terri- 125 126 Quilombos tório foi desmembrado de Cabrobó em 1864. Esse material, que nunca foi estudado, certamente fornecerá importantes informações sobre o processo de ocupação daquela região. Mesmo com a finalização deste relatório, esclarecemos que daremos continuidade ao estudo da referida documentação. A afirmação da identidade de “remanescente de quilombo” em Conceição das Crioulas remete à origem das crioulas, mas nega a condição de escravas e ressalta a tênue alteridade entre índios e negros. Seu Virgínio, em seu depoimento, afirma que os negros que chegaram a Conceição “arranjaram” a liberdade se aliando aos índios. O ideal de liberdade associado ao estigma de estar à margem de uma sociedade muitas vezes gerou, no sertão nordestino, a cooperação entre negros e índios, os quais, como já foi dito, deram conformação a territórios em que essa aliança representava a existência de uma organização à parte, fora do controle colonial. Há constantes referências aos índios nos relatos em Conceição das Crioulas, até mesmo quando tratam de sua ascendência. Nomes como Rita Cabocla e Clara Cabocla são citados como de índias “brabas” que foram “pegadas a dente de cachorro”; depois de “amansadas”, acabaram se casando com negros. Antônio Andrelino chega a mencionar que os negros não se misturavam muito com os índios, pois estes eram “brabos, ficavam lá na boca das Princesas [serra], e quem ia lá voltava correndo para não morrer”. No entanto, nem sempre a fronteira entre negro e índio/caboclo foi tão clara, principalmente na faixa territorial em que está situado o limite da terra indígena aticum. Mas, estando essa fronteira já fisicamente estabelecida pela Funai desde 1989, os arranjos e negociações para o pertencimento a uma ou outra identidade vão-se dar no âmbito de cada uma, que acionará seus mecanismos de inclusão e exclusão de seus integrantes, os quais estão associados, principalmente no caso de Conceição das Crioulas, às relações de cooperação estruturadas entre os diversos sítios. É interessante notar que em Conceição, apesar do grande número de núcleos populacionais que guardam entre si considerável distância, é sempre possível encontrar pessoas da comunidade que apontam os limites das “terras das crioulas”, os quais estariam definidos Conceição das Crioulas, Salgueiro (PE) na escritura da fazenda Conceição das Crioulas. Diz seu Virgínio: Eu tinha uma tia que tinha escritura do círculo fazenda Conceição das Crioulas, que eu li muito essa escrituras, uma era Conceição das Crioulas, já outra era Nossa Senhora da Conceição, e dá os pontos assim do círculo. Provavelmente ele se refere ao patrimônio das crioulas e ao patrimônio da santa. Pelos relatos da história oral, foi a crioula Francisca Ferreira quem fez a referida doação, prática já descrita por Alfredo Almeida (1989). Dona Mariana Raimunda, nascida em 1906, afirma em seu depoimento que a doação do patrimônio para a santa deu-se em 1910. ...eu me lembro mesmo, 1910 foi quando os missionários [frei Biapino e frei Celestino, como ela complementa no decorrer de sua fala] vieram anunciar a Conceição das Crioulas, esfregaram a santa no chão lá. Eu fui, mais meu pai, seu, eu fui batizada ou crismada quando vieram os missionários. (...) No lugar da igreja tinha uma casa de oração, mas não tinha igreja. Antes deles chegarem eram as crioulas que rezavam, que faziam tudo, aí eram elas, quando eles vieram aí foi anunciada a igreja. E dona Maria Emília diz que a renda das terras tinha sido paga aos reis, que, segundo sua avó, moravam na Corte, no Rio de Janeiro. A escritura das referidas terras, ainda de acordo com os dados fornecidos por sua avó, encontrava-se no “livro do tombo”, que ela dizia ser o “tribunal dos reis”. E continua: E assim que nesse tempo de reis que as Crioulas compraram essa Vila de Conceição, arrendaram, e aí cadê? Hoje as Crioulas da Conceição só tem o nome, Crioula, ainda. (...) A gente mora aí, mas não tem esses direitos, né, é tudo cercado, a gente vive cercado, que quase que antigamente como se fosse cativeiro, não tem direito a mais nada, a não ser só aquele quadrinho ali, onde era três léguas em quadro, só vê aquilo ali... 127 128 Quilombos No caso de Conceição das Crioulas, a auto-atribuição de uma identidade racial está relacionada a critérios como a descendência das crioulas que deram origem ao local e aos laços de sangue, como eles dizem. Algumas das categorias por eles utilizadas para demarcar o pertencimento ao grupo podem ser identificadas nos depoimentos reproduzidos a seguir: “Minha vó sempre dizia: nós somos pobres e negras, só num temos é o pé no torno, que dizer, o pé no torno é a negra cativa.” “A comunidade é toda família, Crioula da Conceição; sendo crioulo, é tudo família, é um sangue só. ” “Negro é uma questão de família que vem lá dos ancestrais, descendentes de Bernabé, de Virgínio Vicente Gomes, de Estêvão, de Simão, descendentes das crioulas que chegaram aqui. ” Dona Emília, do sítio Garrote Morto, enfatizou a identidade do grupo dizendo que todos fazem parte da mesma família: “só não é crioulo os branco, como aqui não tem branco, pra lá não se mistura com nós aqui, nossa cor mesmo tá dizendo, é tudo filho de Eva”. E explica essa expressão reproduzindo a história contada pelas “raízes mais velhas”: O filho de Eva diz que é os moreninho, né, que ela chegou quando nosso senhor chegou, disse que ela tinha muita família, né (...). Adão e Eva, nossos primeiros pais, né? Aí nosso senhor chegou, procurou Eva: “cadê tua famíla?”. Aí ela pegou uma panela e cobriu uma parte, deixou debaixo de uma panela, ela é bem pretinha, a panela de barro, aí ficou a familinha lá embaixo da panela, e os que nosso senhor chegou e tava presente é os brancos, e os moreninho ela não mostrou a nosso senhor; quando ela levantou, tava tudo pretinho, que é a nossa cor aqui. A percepção da identidade social, da diferença que se constrói a partir da percepção do outro, é demonstrada a partir de categorias não tão emblemáticas em se tratando das relações raciais. Porém, nas situações de discriminação, às quais associamos a idéia de dominação e exploração, as fronteiras são impostas de maneira bem mais evidente. Conceição das Crioulas, Salgueiro (PE) Em alguns depoimentos a dicotomia entre negros/crioulos e brancos é fortemente expressada. Em um deles, que fala sobre a relação entre negros e brancos, o entrevistado afirma: Tinha sim [dificuldade de relacionamento], porque tinha uma história de chover; nos primeiros dias de chuva era pra o povo ir trabalhar, pra depois é que ia plantar as roças deles. Tinha deles que num ia, ia primeiro plantar as sua, aí eles num gostava num, é porque queria logo plantar as deles Como, muitas vezes, os negros não tinham condições de comprar as sementes, então plantavam as dos brancos, para depois receber deles as sementes e poder plantar. Maria Irene Sá, moradora do sítio Rodiador, conta que, por volta das décadas de 1950 e 1960, nas festas, existiam salões diferentes para brancos e índios; nenhum dos dois grupos aceitava a presença do “outro”. Diz ainda que, quando os brancos tomavam água na casa dos negros, bebiam com as mãos para não tocar nos objetos, tendo havido inclusive um caso em que um negro foi morto por montar no cavalo de um branco. Religiosidade Descrever a religiosidade de Conceição das Crioulas é mergulhar no catolicismo popular que permeia a vida rural, mas também se encontram elementos da religiosidade negra e indígena. A fé nos santos católicos está presente na parede de cada casa. Frei Damião e padre Cícero são assíduos nos lares, acompanhados por Nossa Senhora da Conceição, Nossa Senhora da Assunção e São Jorge, entre outros. As novenas representam, além da vivência religiosa, um importante acontecimento social em que se podem observar outros elementos da estrutura social de Conceição das Crioulas. São duas as principais novenas: em agosto, quando festejam Nossa Senhora da Assunção — esta é considerada a grande festa, com a presença de pessoas de toda a redondeza —, e em dezembro, quando 129 130 Quilombos louvam Nossa Senhora da Conceição. As novenas realizam-se tanto nos sítios quanto na igreja de Nossa Senhora da Assunção, no povoado de Conceição das Crioulas. Isso se deve principalmente à distância entre os sítios: a população não tem como se deslocar todos os dias. Cada dia da novena fica sob a responsabilidade de uma família de um dos sítios, cabendo a ela providenciar a banda de pífano, os fogos de artifício e a refeição que é oferecida após o término das orações. Essas responsabilidades são assumidas de acordo com as condições financeiras de cada família. Assim, a banda de pífano pode começar tocando a “alvorada” às cinco horas da manhã, ao meio-dia e à noite, quando começa a novena, ou apenas nesta última oportunidade. A novena é um grande acontecimento. As mulheres em peso comparecem, acompanhadas por seu filhos da mais tenra idade, mas vêemse pouquíssimos homens na igreja. As crianças mais velhas aproveitam a oportunidade para brincar na praça, mas as brincadeiras muitas vezes estão voltadas para a própria prática religiosa ou para os objetos a ela relacionados, como as velas e os fogos. Porém, a brincadeira é suspensa quando, ao final da novena, as pessoas saem da igreja para dar três voltas em frente da mesma em forma de procissão. Então todas as pessoas, mesmo as que não estavam na igreja, recebem uma vela e acompanham o rito final, quando há a troca de “ramos”, ou seja, a família responsável por aquela noite entrega algumas flores aos integrantes da família incumbida de organizar o dia seguinte. Principalmente no mês de agosto, as atividades religiosas são seguidas de forró, brincadeira de roda, coco de roda ou uma dança denominada “trancelim”. Além das rezadeiras, outro recurso para a resolução dos mais diversos tipos de problemas são os “terreiros” ou “centros” que misturam elementos da umbanda, do catolicismo e da religiosidade indígena. Foi possível identificar pelo menos quatro desses “centros”. O mais conhecido está localizado no sítio Rodiador. Dona Bebé é a mãe-de-santo responsável pelos trabalhos lá realizados, que são famosos na região. É comum comparecerem pessoas de sítios distantes e até mesmo de Salgueiro. Dona Bebé usa roupas coloridas durante os trabalhos, e na sala de sua casa há um altar com as imagens das entidades invocadas — Preto Velho, Iemanjá, Zé Pilintra, padre Cícero, Conceição das Crioulas, Salgueiro (PE) São Jorge, Cosme e Damião, Janaína (Oxum) — e outros objetos ritualísticos, como velas, taças com água, fumo e vinho de jurubeba, utilizados pela mãe-de-santo durante o transe. Janaína é identificada por dona Bebé como a entidade que mais acompanha seus trabalhos. Nos cânticos entoados e nas orações, a invocação de duas entidades nos chamou a atenção: Barnabé, que ela diz ser São Cipriano, e o rei Orubá, “entidade relacionada a nações indígenas”. É muito forte o vínculo existente entre o centro de dona Bebé e os índios aticuns, vizinhos de Conceição das Crioulas. Não há nessas cerimônias uma fronteira nítida que separe os indivíduos como negros e índios. A bebida da Jurema também é utilizada. Também não há um dia específico para a realização dos trabalhos, que envolvem igualmente as “giras (linhas) de toré”, correspondendo um canto diferente para cada linha. Segundo dona Bebé, as pessoas fazem promessas e “se pegam” com os “espíritos de luz”, que são as entidades envolvidas. A bebida de jurema é preparada pela própria mãe-de-santo, que utiliza como ingredientes jurema, açúcar, vinho de jurubeba e a “força” para surtir os efeitos. Dona Bebé já chegou a ser convidada, juntamente com os aticuns, para apresentar o toré nas redondezas, como representantes da cultura da região. Outro terreiro existente é aquele localizado no sítio Massapê, mais próximo ainda da terra indígena aticum. A responsável pelo terreiro é Maria Rosa da Conceição, dona Rosinha, uma senhora de 82 anos que tem o “dom de fazer garrafadas”, bebidas preparadas com ervas da região para curar algumas doenças. Atrás de sua casa há um cruzeiro ao redor do qual se executa a dança do toré. Na sala de sua casa também existe um pequeno santuário, como um peji, com imagens em sua maioria feitas de barro pela própria dona Rosinha, as quais ela chama de “mestres”: Janaína, Pena Branca, Juremeira, Montanheira, Gentil, Tupão, Mestre do Caroá, Santa Bárbara, padre Cícero, Vovozinha, Cobrinha, Papagaio, Zé Vaqueiro, Joana Guerreira, Zé Pilintra, além de um cruzeiro, um Buda e uma estrelade-davi. Os outros dois terreiros estão situados em Paus Brancos, na mesma residência. O mais conhecido é o de Maria Anunciada, conhecida como “Daia”, mas só funciona quando ela está em Conceição, já que 131 132 Quilombos atualmente ela reside em São Paulo. O centro de Daia é considerado o mais importante porque está licenciado para funcionar por uma confederação não muito bem especificada no certificado afixado na parede do recinto. Já o centro de seu pai, José Agostinho Bezerra, de 76 anos, funciona sem esse licenciamento. Seu José, natural de Conceição das Crioulas, contou-nos que desde muito cedo via a mãe, a avó e a bisavó envolvidas nesse trabalho espiritual, porém o acesso às crianças era negado. Lembra que elas usavam saias e blusas de mangas compridas de cor verde e moravam nas proximidades do sítio Jatobá. Desde jovem seu José Agostinho sentia necessidade de trabalhar com um centro, mas, devido à proibição de sua mãe, só pôde voltar a se envolver com a questão espiritual quando já estava com 50 anos, depois de um grave problema de saúde provocado por não ter desenvolvido este seu “dom”. Nesses dois centros vêem-se imagens de louça ou de barro ou mesmo pôsteres de São Jorge, padre Cícero, Santa Bárbara, Joana Guerreira, Santo Agostinho, Nossa Senhora da Cabeça, Cosme e Damião, São Jerônimo, Nossa Senhora da Conceição, “Africanos”, Preto Velho (Pai João), Caboclo Chefe das Matas (Sultão das Matas), Cabocla da Jurema, Nossa Senhora da Saúde, Iemanjá (também chamada de “sereia”), Jesus, Maria, Nossa Senhora da Saúde, Nossa Senhora da Glória, São Francisco, Nossa Senhora dos Anjos, São Sebastião, Nossa Senhora do Bom Parto, Santo Expedito, Caboclo Sete Flechas, Pai Joaquim e Mãe Maria (pretos velhos), além de copos com água para os caboclos, castiçal de louça com vela rosa, crucifixo e flores de papel. As principais entidades que trabalham com Daia são a sereia Iemanjá e o mestre Adaílton (um doutor cuja imagem é representada por um homem usando um turbante, lembrando um indiano). Vê-se também a imagem da nora do dr. Adaílton, Floriana, identificada como “mãe de família”. No Sítio, falaram-nos a respeito de um rapaz que tinha “corrente”, visto que montara em sua casa um “centro” com imagens do Preto Velho e de Cosme e Damião, tendo uma mesa “cheia de coisas”; mas não “passa mais trabalhos”. Devido a problemas mentais, o rapaz não dá continuidade ao centro. Segundo Rira, moradora do Sítio, ele começou a “endoidecer” e foi levado para fazer trabalho Conceição das Crioulas, Salgueiro (PE) fora de Salgueiro, onde “ficou bom”. Vale notar que a relação entre doença e atuação em “centros” também está presente nos casos de Bebé e de José Agostinho. Atualmente verifica-se também a inserção de igrejas evangélicas em Conceição. No mês de dezembro, durante a solenidade de posse da nova diretoria da Associação de Moradores do Sítio Paula, o pastor da Igreja Evangélica Canaã, de Salgueiro, celebrou o primeiro culto evangélico em Conceição das Crioulas. Organização política A constituição das lideranças de Conceição das Crioulas está relacionada ao envolvimento de seus integrantes com movimentos sociais de diferentes naturezas. O processo de mobilização da comunidade começou em 1987, com o trabalho de uma missão de freiras carmelitas que se estavam instalando na cidade de Salgueiro. Segundo informantes, naquela época havia missa aos domingos e também novenas, mas não se falava do trabalho de catequese. A missão procurou então atrair interessados em participar do grupo de catequese. Segundo Givânia, uma das lideranças atuais de Conceição, aquele período foi de “muita efervescência”, pois quando eles começaram a estudar os textos bíblicos, perceberam que todos os povos presentes nos textos falavam de sua história, de sua origem, e eles constataram que nada sabiam sobre si mesmos. Começaram a pesquisar, a procurar os membros mais velhos da comunidade e assim reconstituíram parte de sua história. Os jovens que se envolveram nesse movimento da Igreja são os que hoje atuam como representantes em diferentes movimentos sociais: João Alfredo de Souza, ligado à Pastoral Rural da Diocese de Petrolina e designado para acompanhar a sua própria comunidade; Maria Alzira de Souza Silva, líder do Movimento de Mulheres Trabalhadoras Rurais; Andrelino Mendes, diretor fiscal do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Salgueiro; Generosa, catequista e animadora, ligada à Pastoral Rural; Cícero Ângelo da Silva, presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Sal- 133 134 Quilombos gueiro; e Givânia Maria da Silva, presidente do Partido dos Trabalhadores em Salgueiro. João Alfredo, ao se reportar à visita da Pastoral em 1988, comenta que: Surgiu a proposta de formar uma comunidade eclesial de base, e aí a gente começou o trabalho de formação de comunidade, de formação de agente, e a trabalhar com jovem, agricultor, começamos a resgatar a história religiosa com esse ângulo aberto para a realidade de Conceição das Crioulas. Nós crescemos numa qualidade de liderança que hoje é capaz de lutar e refazer já sua negritude aqui dentro de Conceição. Foi então que o MNU soube da existência de Conceição das Crioulas e começou a fazer visitas à comunidade. Em 1994, foi realizado o I Encontro dos Negros de Sertão, quando estiveram presentes negros do Maranhão e teve início uma articulação mais elaborada. Givânia e Andrelino começaram a participar das reuniões em que se tratava da questão negra e chegaram a ir até Brasília para legitimar a existência de Conceição das Crioulas. O contato com o Centro Luiz Freire, efetivado desde 1995, também tem possibilitado a articulação entre as comunidades “remanescentes de quilombo” no estado de Pernambuco e a divulgação de sua atual situação. O trabalho da referida ONG culminou com a realização de um vídeo sobre as comunidades negras para ser mostrado nas escolas. Esse trabalho, que contou com o apoio da prefeitura de Salgueiro no mandato de 1992 a 1995, teve importante repercussão nas atividades que estavam sendo desenvolvidas nas escolas do povoado de Conceição das Crioulas no período em que Givânia esteve na direção da escola de 1o grau menor e maior. Segundo a opinião de alguns informantes, com o governo da nova prefeitura, os projetos que estavam relacionados à identidade de remanescentes de quilombos sofreram consideravelmente com o afastamento de professoras da própria comunidade para escolas de outras regiões do município, assim como de pessoas que atuavam como parteiras, como dona Joana. Na realidade, dona Joana continua assistindo a comunidade, assim como a atendente de enfermagem, que vai aos sítios mais distantes quando é solicitada. Mas as condições de atendimento são muito mais precárias sem a ambulância, que oferecia importante apoio à população. Conceição das Crioulas, Salgueiro (PE) O conjunto de associações dos sítios que compõem Conceição das Crioulas constitui a dinâmica política atual. No povoado de Conceição construiu-se, ao lado da escola, um centro comunitário onde se realizam as principais reuniões da comunidade. As lideranças envolvidas nos movimentos sociais da região articulam-se para informar os demais a respeito das mobilizações efetuadas, compartilhando com eles as discussões iniciadas fora da comunidade. Atualmente, Andrelino ocupa a presidência do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Salgueiro. As comunidades negras rurais do estado de Pernambuco têm-se mobilizado para garantir suas terras e o reconhecimento de sua identidade. Assim, já houve contato entre lideranças, principalmente de Castainho e Conceição das Crioulas, com autoridades e instituições locais, como Incra, Instituto de Terras e Ministério Público. Embora se constate que muitas vezes o Estado não se sente competente para tratar dos direitos das comunidades remanescentes de quilombos, tais atividades têm contribuído para dar-lhes visibilidade, com o respaldo da imprensa local. Algumas considerações sobre manifestações lúdicas Mesmo diante de uma realidade extremamente árdua, as atividades de lazer estão constantemente presentes. Note-se que nos reportaremos ao conceito de lúdico, por considerar que “lazer” estaria presente numa sociedade secularizada e, portanto, em oposição ao trabalho. No caso de Conceição, o trabalho, as “obrigações” diárias estão impregnadas desse caráter lúdico. Parece não haver, no cotidiano, a divisão de tempo entre trabalho e lazer. O trabalho nos roçados obedece ao tempo cíclico das culturas, voltado para os plantios e sua manutenção. Após a colheita, como já foi dito, a produção guardada em grandes silos sustenta as pessoas até a próxima safra; quando a produção não é suficiente, a sobrevivência é garantida com a aposentadoria dos mais velhos. O ritmo de vida é diferente, e aspectos como “manifestações culturais”, organização política e religiosidade não fazem muito sen- 135 136 Quilombos tido quando vistos de forma compartimentada. Se adotamos essa visão anteriormente foi por uma questão de didática, mas é preciso percebê-los como profundamente entrelaçados. Às vezes, essa interligação das atividades aponta para características de uma sociedade em que os elementos da modernidade não estão presentes; outras vezes, aponta para as contradições visíveis em nossa sociedade. É comum ouvir falar que a brincadeira das crianças é “tirar toco”, uma maneira de dizer que a infância parece muito curta, pois desde cedo as crianças participam no trabalho dos roçados. Quando perguntamos às crianças se a novena fazia parte das brincadeiras, elas disseram que não, mas que gostavam muito dos fogos e das velas, elementos presentes na novena. No decorrer das novenas na igreja, algumas crianças entram e saem sem cerimônia, enquanto outras, geralmente as mais velhas, ficam na praça fazendo lanternas com latas e velas ou soltando fogos, atentos à hora da distribuição das velas, quando então se incorporam à procissão. Ao término da novena, as pessoas se retiram e vão formar em frente à igreja um semicírculo sob a bandeira da novena fincada na praça. Acompanhada dos demais membros da comunidade, a família anfitriã segue atrás da banda de pífanos, que dá três voltas em torno da igreja. Por fim, há a troca de ramos com a família que se responsabilizará pelo dia seguinte da novena. No sítio Paus Brancos promove-se, desde 1975, um bumba-meuboi que, no entanto, só veio a ter relevância a partir de 1993, quando aquele sítio ficou encarregado de preparar alguma apresentação nos festejos da novena de Nossa Senhora da Conceição, no mês de agosto. A partir daí, o bumba-meu-boi foi-se tornando mais elaborado e atualmente se apresenta nas redondezas em Salgueiro. Há também algumas danças, como a de São Gonçalo e o trancelim. A primeira, segundo os depoimentos, começou a acontecer quando as pessoas estavam muito desligadas da Igreja, e São Gonçalo teve a idéia de chamar o povo dançando e cantando. Hoje essa dança só se realiza em ocasiões especiais, com a participação de homens e mulheres. Estas vestem saias compridas, com um pano amarrado na cabeça como turbantes, com o laço para frente. Podese usar roupa de qualquer cor, mas dá-se preferência ao branco. A Conceição das Crioulas, Salgueiro (PE) dança é acompanhada por bumbo, rabeca e cavaquinho. A dança do trancelim é acompanhada pela banda de pífano e tem esse nome porque as pessoas vão-se entrelaçando como um trancelim. Também fazem parte das atividades de lazer da comunidade o forró e a brincadeira de roda. O fato de Conceição das Crioulas ficar distante de um centro urbano, sendo Salgueiro o mais próximo, dá a essa comunidade negra uma característica peculiar. Embora o fluxo entre ambos seja constante, a feira de Salgueiro não chega a absorver produtos de Conceição. A dependência desta se dá mais pela procura de serviços, como saúde e educação. Considerações finais Descrever a ocupação da comunidade negra de Conceição das Crioulas na região em que ela se encontra requer o exercício de um olhar histórico e antropológico capaz de nos fazer desvencilhar de categorias sociais e jurídicas, estabelecidas exteriormente ao grupo, como parâmetros para atribuições legais. A memória social do grupo e as fronteiras estabelecidas com a sociedade do entorno indicam uma ocupação de mais de 100 anos. Trata-se de uma apropriação do espaço com significados diversos, pautada pela idéia de uma origem comum relacionada a negros que tiveram uma relação com o regime escravocrata, mas chegaram à região como pessoas livres ou em busca de liberdade. O sertão pernambucano tem essa característica de ter abrigado populações indígenas e negras que aí se embrenhavam para fugir das frentes de expansão da cultura da cana e do gado. O estudo da ocupação do sertão começou a intensificar-se há pouco tempo. Com base nessas recentes pesquisas, alguns historiadores afirmam que no sertão houve utilização de mão-de-obra escrava numa escala maior do que se supunha (mais de 60% das propriedades dela se utilizavam),2 mas a memória social de Conceição das Criou2 Ver Jornal do Commercio, 5-2-1993. 137 138 Quilombos las não apresenta elementos que indiquem esse vínculo de seus integrantes com as propriedades locais. Ao contrário, nega-se a condição de cativas ou escravas das crioulas que deram origem a Conceição. Adquiridas graças ao trabalho delas e de seus descendentes, as terras foram inclusive escrituradas. Quando se diz que tal registro teria ocorrido na Torre, pode-se supor que se trate da Casa da Torre, dos Garcia d’Ávila, que foram, durante alguns séculos, os maiores latifundiários do Nordeste. Também há relatos que indicam que a escritura das terras estaria no Livro do Tombo ou na Torre do Tombo. Porém, o que se pode perceber é a ênfase no fato de o direito das crioulas às suas terras estar condicionado à existência da referida escritura. Inegavelmente a pesquisa histórica a partir de documentação poderia fornecer interessantes subsídios cuja importância, porém, não deve suplantar a da atual estrutura organizacional da comunidade, composta de uma complexa rede de interação e cooperação que legitima sua identidade de “remanescente de quilombo”. Consideramos que a ênfase dada à escritura das terras das crioulas e da santa, doadas pela crioula Chica Ferreira, tem-se tornado evidente diante da percepção da própria comunidade em estabelecer um elemento de contrapartida que atenda às exigências da sociedade envolvente. Oliveira Filho e Almeida (1989:37-8) já ressaltaram que muitas vezes os antigos moradores (no nosso caso, os negros), ao formularem uma explicação do passado, explicitam as modalidades de aquisição e conservação de seus direitos, bem como fixam os seus limites territoriais precisos, criando assim condições para o reconhecimento dos direitos de outrem e reavivando os acordos e compromisso realizado por gerações anteriores. Os relatos que pertencem à herança comum ou ao patrimônio comum de Conceição das Crioulas permitem-nos perceber que, como há necessidade de afirmar o direito da comunidade no contexto da história oficial, os “crioulos” terminam por inserir os aspectos mais importantes de sua memória social na história reconhecida por quem detém o poder de garantir seu território. Muitos desses critérios têm caráter emblemático e são freqüentemente utilizados pelas agências que atuam junto à comunidade no seu processo de reafirmação étnica. Conceição das Crioulas, Salgueiro (PE) Diferentemente de outras comunidades negras que também pleiteiam seu reconhecimento como “remanescente de quilombo”, em Conceição não há lembranças de símbolos, como chicotes e prensas, que remetam à condição de escravo e de submissão. Ao contrário, sempre se referem às crioulas enfatizando seu poder de autonomia. Apesar de terem vivido períodos em que a usurpação de suas terras se concretizou, encontramos relatos de resistência (contra os Urias, por exemplo) em que a categoria de “negro” ou “caboclo” era utilizada em oposição ao branco, revelando que o conflito se dava entre categorias raciais. Percebemos que a diferença, o conflito têm promovido a autodefinição dos agentes sociais em jogo e delimitado com maior precisão as fronteiras étnicas capazes de definir o pertencimento ou não ao grupo. O fio da memória, que vem sendo bastante instigado na comunidade em questão, fortalece, como já ressaltaram Acevedo e Castro, uma proposta de integração diferente daquela da sociedade envolvente, e é exatamente essa capacidade de acionar o passado que vem permitindo legitimar suas formas associativas e sua inserção no sistema político regional com base na identidade de remanescente de quilombo. A articulação entre os sítios, gerando um fluxo de bens simbólicos e materiais, dá unidade à comunidade e demonstra a sua capacidade político-organizativa. Essa articulação que se dá através de deslocamentos dentro de um território comum, identificado com terras conquistadas pelos seus antepassados, tem possibilitado a conservação dos laços interfamiliares e as práticas que delineiam suas relações econômicas, políticas e culturais. O território de Conceição das Crioulas é definido como área de uma prática social, de um comportamento, de uma categoria social. É dentro dessa região delimitada no sertão de Pernambuco que os indivíduos desse grupo se sentem em afinidade, em segurança; seu território é um espaço socialmente selecionado para a sobrevivência de seu sistema, e é dentro dele que essa prática social se faz e se crê eficaz, competente e legítima. Reconhecer a identidade de remanescente de quilombo da comunidade negra de Conceição das Crioulas, o território a ela relacionado, e garantir sua existência num contexto agrário arcaico significa que estamos assumindo o caráter plural de nossa 139 140 Quilombos sociedade e efetivando a possibilidade de seus integrantes exercerem sua cidadania. Referências bibliográficas Acevedo, Rosa & Castro, Edna. Negros do Trombetas: guardiães de matas e rios. Belém, Ufpa/Naea, 1993. Almeida, Alfredo Wagner Berno de. Terras de preto, terras de santo, terras de índio — uso comum e conflito. In: Castro, Edna M. R. de & Hébette, Jean (orgs.). Nas trilhas dos grandes projetos: modernização e conflito na Amazônia. Belém, NAEA/Ufpa, 1989. ———. Quilombos: sematologia face a novas identidades. In: Projeto Vida de Negro. Frechal terra de preto — quilombo conhecido como reserva extrativista. São Luís, SMDDH/CCN-PVN, 1996. ———. Quilombo: tema e problema. In: Projeto Vida de Negro. Jamary dos Pretos: terra de mocambeiros. São Luís, SMDDH/CCN-PVN, 1998. Ferreira, Ivson José. Relatório de identificação da área indígena aticum. Funai, 1989. Historiadores redescobrem o sertão. Jornal do Commercio, 5-2-1993. JC Cultural. p. 2-3. Marcílio, Maria Luiza. O sertão pecuário na época colonial. In: Silva, Severino Vicente da. A Igreja e a questão agrária no Nordeste: subsídios históricos. São Paulo, Paulinas, 1986. Mesquita, Zilá. Do território à consciência territorial. In: Mesquita, Zilá M. & Brandão, Carlos Rodrigues (orgs.). Territórios do cotidiano. Porto Alegre, UFRGS/Unisc, 1995. Montenegro, Antônio & Ramos, Maria Elizabete Gomes. 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O local das terras desse grupo já foi dividido em três denominações, existentes ainda hoje, referentes a lugares específicos dentro de suas terras: córrego Grande, córrego da Tabua e rio Preto. Posteriormente o local recebeu o nome de Comunidade do Espírito Santo, por haver a Igreja católica criado ali nos anos 1970 uma Comunidade Eclesial de Base (CEB),1 tendo por padroeiro o Divino Espírito Santo. Antes da chegada da Igreja ao local, conforme afirmam, os parentes que já se consideravam católicos se uniam para rezar a ladainha2 em família. Havia uma devoção muito forte a São Benedito, e seus 1 2 As CEBs, na definição do teólogo Frei Betto (1981:16-7), são pequenos grupos organizados em torno da paróquia (urbana) ou da capela (rural) por iniciativa de leigos, padres ou bispos. Motivadas pela fé, essas pessoas vivem uma comum união em torno de seus problemas de sobrevivência, de moradia e de lutas por melhores condições de vida. A ladainha, no Brasil, é uma antiga reza típica dos católicos analfabetos do meio rural, que a rezam para os santos populares. Até 1962, enquanto a língua do catolicismo oficial era o latim e os padres celebravam as missas nessa língua, Quilombos 142 pais e avós rezavam a ladainha para ele e para outros santos, tradição que, segundo os mais velhos, se mantém até hoje. Antigamente não tinha essa comunidade do interior. Nossos pais, os meus avós rezavam a ladainha caseira em devoção aos santos, aos padroeiros. Então, depois que criou essa comunidade e passou a rezar o culto dominical, muita gente desligou da ladainha, só que nós não deixamos aquela tradição. Nós continuamos rezando a ladainha, nós reza o terço e também aquelas rezas antigas que eram dos nossos antepassados. Em São Mateus têm outras pessoas que rezam, também, a ladainha. A ladainha caseira (V.A.S.).3 O processo de mobilização política dessa comunidade contou com a presença da Igreja católica e do Movimento (Grupo) de União e Consciência Negra. Eles desencadearam um forte movimento, na região norte, para que os pequenos proprietários não vendessem as suas terras. Um dos moradores afirma que, com a intensificação do movimento em meados dos anos 1970, as pessoas pararam de vender suas terras. Entre 1985 e 1992, porém, alguns voltaram a vendê-las novamente. Com a venda de várias pequenas áreas para a plantação de eucaliptos, distanciaram-se as áreas umas das outras e, conseqüentemente, as famílias. Assim, uma parte do grupo criou um novo templo da CEB, na cabeceira do rio Preto, argumentando ser muito longe a CEB do Espírito Santo, e passou a participar, junto com outro grupo, numa fazenda chamada Tiguera, onde criaram a CEB Bom Pastor. 3 ao povo que não sabia latim eram ensinadas orações longas e repetitivas, como é o caso da ladainha, na qual o rezador invoca uma seqüência de nomes de santos e os demais participantes respondem: “rogai por nós”. V.A.S., nascido em 7-7-1936, é pai de quatro filhas e bisneto de Laudêncio. Lidera politicamente um núcleo de nove famílias que vive à margem do rio Preto. Também lidera e compõe as músicas de um grupo de reis-de-boi, na sede do município de São Mateus, formado em sua maioria por parentes e ex-moradores dessa comunidade. V.A.S. é integrante de um grupo denominado Comunidade Afro São Benedito, que se reúne na igreja de São Benedito, na sede do município. Quilombo do Laudêncio, Município de São Mateus (ES) Da comunidade do Espírito Santo, depois, já se criou outra comunidade, que é a do Bom Pastor, de um sobrinho meu, porque ficava muito longe para eles irem lá, e então criaram outra comunidade que é filha da comunidade do Espírito Santo, a Bom Pastor, na Tigüera. Se vocês forem lá pra cima vão passar na casa do sobrinho meu e irmãos, e eles participam. Eu, aqui, participo na do Espírito Santo, e eles antes participavam no Espírito Santo. Depois mudou e fizeram outra comunidade lá, que fica mais perto pra eles (V.A.S.). Pela comunidade já passaram muitos curiosos e, entre eles, cinegrafistas, jornalistas e fotógrafos, que sobre ela fizeram um documentário, O último quilombo, bem como fotos e reportagens. Os membros da comunidade reclamam e às vezes se negam a relatar sua história a estranhos porque, no seu entender, eles não a trataram com o respeito merecido, deturpando sua realidade e considerando-a “atrasada” em relação às transformações sociais. Desde meus primeiros contatos com os moradores dessa comunidade, em janeiro de 1997, disseram-me que ali as maiores famílias que deram origem ao grupo eram os Eleodórios, os Laudêncios e os Gaias. Falavam também em “reis-de-boi dos Laudêncios” e se diziam descendentes do “quilombo do Laudêncio”. Depois de fazer a genealogia dos vários chefes de família, homens e mulheres, e obter vários relatos na memória social, cheguei à conclusão de que os que são chamados de Laudêncios pelos de dentro e pelos de fora da comunidade em sua maioria quase absoluta se assinam Santos e são descendentes de Laudêncio de Jesus, enquanto os que se assinam Eleodório e de Jesus, em menor número na comunidade, descendem de Eleodório Vicente de Jesus. Os Gaias, ao que contam, eram negros que moravam no norte de São Mateus, para o lado de Sant’Ana e Sapé do Norte. Ao migrarem para o local, foram sendo incorporados ao grupo dos descendentes de Eleodório e Laudêncio (que era e continua sendo maioria) pelas alianças matrimoniais. Só foi possível obter uma história mais detalhada dos irmãos Eleodório e Laudêncio, pois os que afirmam ser da família Gaia não conseguiram traçar sua genealogia além de seus avós. Tentarei explicar a complexidade da história desse grupo de parentesco mais adiante, recorrendo para tanto ao método genealógico e à memória social. 143 Quilombos 144 Localização, população e condições de habitação A comunidade está localizada no município de São Mateus, região norte do estado do Espírito Santo. Dista aproximadamente 12km da sede do município e quase todos os seus moradores vivem do lado esquerdo da BR-101 Norte, sentido Vitória-São Mateus. O ponto de referência de entrada para a comunidade é o Posto Caminhoneiro, que fica ao lado esquerdo da BR. Ali, tomando uma estrada de terra margeada por eucaliptos, cerca de 1km adiante encontramos, do lado direito, um campo de futebol, o templo da comunidade católica e a escola estadual de primeira a quarta séries primárias. Para quem entra na região tomando o templo da comunidade católica local como ponto de referência, cerca de 2km à esquerda está o rio Preto, e cerca de 4km à direita, o córrego Grande. Entre o rio Preto e o córrego Grande, cerca de 3km depois do templo católico, na região central da localidade, nasce o córrego da Tabua, um dos afluentes do rio Preto. Quanto ao relevo, a comunidade está numa planície, bem como todo o município de São Mateus. Em Divino Espírito Santo vivem 35 famílias e cerca de 220 pessoas ligadas por laços de parentesco, pois descendem dos irmãos Eleodório e Laudêncio, havendo vários casamentos entre parentes. Outras 10 famílias chegaram ao local nos últimos 10 anos e são consideradas e se consideram descendentes de imigrantes italianos que compraram pequenas propriedades dos negros que se mudaram para Vitória e para São Mateus. Conforme já dissemos, no local só há duas escolas, de primeira a quarta séries: uma estadual e outra municipal, situada um pouco mais acima, à margem do rio Preto,4 e cujo professor, Domingos Manoel dos Santos (segundo grau em magistério) é da própria comunidade, fazendo parte do grupo de parentesco. Até a data do encerramento deste trabalho, 13 jovens da localidade haviam concluído o segundo grau na Escola Família Agrícola, em Jaguaré, município vizinho, distante 25km. Destaque especial deve ser dado à família de Concéscio 4 A margem do rio Preto a que me refiro já fica próxima de sua cabeceira. Quilombo do Laudêncio, Município de São Mateus (ES) Eleodório de Jesus (filho do Eleodório), pois cinco de seus filhos são técnicos agrícolas formados nessa escola.5 Outros 12 jovens da comunidade concluíram o primeiro grau, também na Escola Família Agrícola. Vários outros jovens cursam o primeiro grau à noite, numa vila vizinha, a 7km, denominada Vila Paulista, e se deslocam em transporte oferecido pela prefeitura de São Mateus. Quanto às condições de habitação, existem cerca de 24 casas de alvenaria, oito de pau-a-pique e duas de tábuas. O número de cômodos dessas casas varia entre cinco e sete. Geralmente compõem-se de uma cozinha, uma sala e dois ou três quartos, havendo nas maiores também uma sala de jantar. Ao falarem da arquitetura de suas casas, consideram que as de alvenaria são mais confortáveis, seguras e bonitas do que as antigas de pau-a-pique. Finda essa breve apresentação da comunidade, vejamos alguns dados históricos sobre a presença de negros e quilombos na região, para em seguida expor meus dados etnográficos sobre o modo de vida local. Negros e quilombos na região Em geral se considera que a composição étnica do estado do Espírito Santo está assim dividida: no sul do estado e na região serra- 5 A filosofia das várias escolas Família Agrícola existentes no estado do Espírito Santo consiste em formar o aluno para que sua família continue morando e trabalhando na terra. Assim, o aluno passa 15 dias na escola, estudando e aplicando as técnicas de trabalho numa área de terra da própria escola, e 15 dias em casa, onde tem a oportunidade de aplicar essas técnicas às terras de sua própria família. Essas escolas não são totalmente gratuitas, pois são mantidas com recursos vindos em parte do exterior, em parte do governo estadual e em parte das famílias dos próprios estudantes. Os filhos do sr. Concéscio, que hoje cultivam café e hortifrutigranjeiros e criam porcos, galinhas, patos, gansos e peixes aplicando as técnicas aprendidas na Escola Família Agrícola, afirmam que só puderam se manter na escola graças ao beiju que eles mesmos produziam e comercializavam em São Mateus e em Vitória. 145 146 Quilombos na predominam os descendentes de imigrantes europeus; na região metropolitana da Grande Vitória (municípios de Vitória, Vila Velha, Cariacica, Viana e Serra) prevalece a “mestiçagem”; enquanto no norte, especificamente nos municípios de São Mateus e Conceição da Barra, região que constitui meu campo de pesquisa, predomina a população negra (segundo números do IBGE, no primeiro município, pretos e pardos somam 70% da população, e no segundo, 80%. Ao deixar de lado essas concepções baseadas no fenótipo, passei a observar os diversos grupos que estão reivindicando sua condição de negros ou quilombolas. Para tanto, lancei mão das noções de etnicidade e grupos étnicos e realizei pesquisa arquivística, histórica e etnográfica, tendo concluído que em todas essas regiões do estado existem grupos de negros organizados em seus territórios no meio rural ou mobilizados politicamente para defender seus direitos e competir por espaço no poder político nos meios urbanos. No município de Conceição da Barra, por exemplo, na última competição eleitoral municipal, foram eleitos seis vereadores negros, o que, segundo os militantes do grupo União e Consciência Negra, representa uma conquista política da população negra local. Pesquisando os relatórios dos presidentes da província do Espírito Santo no século XIX e a literatura histórica, constatei que o trabalho escravo se concentrava nas regiões de São Mateus (norte), Vitória (região central) e Cachoeiro de Itapemirim (sul). Em todas essas regiões, durante o regime escravocrata, os negros organizaram quilombos. Analisarei aqui apenas os dados históricos sobre os quilombos da região dos municípios de São Mateus e Conceição da Barra. Segundo o historiador Maciel de Aguiar em entrevista concedida a mim em janeiro de 1997, as comunidades negras de São Jorge e Droga já foram conhecidas apenas como quilombo Sapé do Norte, o maior do norte do estado e por onde passou o mais temido líder dos quilombos da região, Benedito Meia-Légua. Aguiar (1995a:12-4) diz que o primeiro quilombo a existir no município de São Mateus foi liderado por Zacimba Gaba, uma princesa africana de Cabinda que, após envenenar seu senhor, fugiu com centenas de escravos e formou um quilombo na região de Itaúnas, hoje pertencente ao município de Quilombo do Laudêncio, Município de São Mateus (ES) Conceição da Barra. Os seguidores de Zacimba tinham por missão atacar as fazendas e as embarcações que traziam escravos para o porto de São Mateus, a fim de libertá-los. Assim fizeram de 1700 a 1710, quando então, num dos ataques, Zacimba foi assassinada. Após a morte de Zacimba, passou-se um século sem que os negros conseguissem organizar quilombos duradouros naquela região, devido à repressão promovida pelo governo da província. Até que surgiu o mítico Benedito Caravelas, que ficou conhecido como Benedito Meia-Légua. Diz Aguiar: Só a partir de 1820 dá-se início ao ciclo de inúmeras vitórias dos negros com o surgimento de Benedito Meia-Légua, que durante cerca de 60 anos atemorizou os grandes fazendeiros da região, implantando uma prática revolucionária inédita no Brasil, vinculando a fé do povo em São Benedito ao movimento de libertação, dando início às mais espetaculares ações contra as grandes fazendas, além das lutas na floresta densa contra os capitães-do-mato financiados pelo baronato, deixando um rastro de heroísmo, sangue, coragem, aventura e muita lenda, até sua morte em 1885, quando contava com, aproximadamente, 80 anos. Notícias da existência de Benedito Meia-Légua, líder de um quilombo em São Mateus, encontram-se no relatório com que José Camilo Ferreira Rebello, quinto vice-presidente da província do Espírito Santo, passou à administração ao presidente Custódio José Ferreira Martins, em 17 de setembro de 1884. Rebello (1884:10-1) escreve que o chefe de polícia lhe comunicara, naquele ano, por meio de um ofício, que as autoridades policiais da comarca de São Mateus tinham sérios e graves receios de ser ali perturbada a ordem e tranqüilidade pública por ocasião das festividades que teriam lugar a 27 de julho do corrente ano por circularem fundados boatos de que escravos daquela localidade e da província da Bahia arranchados nas matas da fazenda de José Rodrigues de Oliveira Guedes, em número de 20 a 30, armados e capitaneados pelo evadido réu Benedito, projetavam fazer uma insurreição conforme constava dos ofícios das referidas autoridades. 147 Quilombos 148 Como diz Aguiar, os quilombolas aproveitavam os dias de festas para provocar insurreições e, por meio delas, libertar outros escravos para os quilombos da região. Ainda segundo o relatório de Rebello, após a polícia chegar ao local, “conseguiu capturar seis quilombolas”, menos “o criminoso de morte Benedito e outros escravos que faziam parte do quilombo”. Nem bem a força policial se achou a bordo do vapor que a conduziria de volta à capital da província, o juiz municipal da Vila da Barra (atual cidade de Conceição da Barra)6 comunicou-se com o chefe de polícia da província pelo telégrafo pedindo a presença da força policial naquela Vila “a fim de perseguir e bater os restos do quilombo, cujos escravos, continuando capitaneados pelo facínora Benedito, haviam reaparecido em fazendas e outras localidades do respectivo município, fazendo latrocínios e praticando barbaridades”. Quando a força policial regressou à capital, o chefe de polícia comunicou ao presidente da província que a população daquele município se achava “desassombrada” em relação à insurreição dos quilombolas, “embora Benedito e seus sequazes continuassem nas matas, em lugares indeterminados”, sendo incessantemente perseguidos pela polícia e pelos capitães-do-mato. No ano de 1885, conforme escreve Aguiar, Benedito Meia-Légua, com cerca de 80 anos de idade, foi assassinado covardemente nas matas do Angelim (município de Conceição da Barra), onde vivia 6 Segundo Lima (1995:25), a antiga Vila da Barra de São Mateus, que em 1891 se tornou a cidade de Conceição da Barra, foi primeiro povoada por brancos, mas pelas roças da região concentravam-se muitos negros que se haviam aquilombado nas matas: “Os negros, que ainda hoje são predominantes na região, eram, geralmente, fugitivos do sul da Bahia e das fazendas vizinhas que penetravam por terra, através de caminhos que eles mesmos faziam no meio do mato para se aquilombar ali”. Lyra (1981:34) também diz que “os descendentes de africanos concentravam-se nas regiões das roças”. Esses negros, segundo ela, trabalhavam na produção de farinha, que eles transportavam pelo rio Cricaré em enormes canoas chamadas “batelões” ou em lombo de burros através de trilhas abertas no mato. Os baianos aportavam com seus navios nas proximidades da Vila para comprar a farinha produzida pelos negros. Quilombo do Laudêncio, Município de São Mateus (ES) dentro do oco de uma árvore frondosa, em local de difícil acesso. As tropas da polícia, com o auxílio dos capitães-do-mato e de jagunços dos fazendeiros da região, montaram a tocaia e esperaram o velho Benedito Meia-Légua aparecer. Depois que ele entrou no oco da árvore caída sobre o solo e se recolheu para dormir, relata Aguiar (1995a:20), “a captura tampou a entrada com troncos e ateou fogo na madeira secular (...) findando a vida do revolucionário negro (...), que morreu queimado no seio da floresta onde passara toda sua existência”. Por muitos anos na região, após sua morte, manteve-se o mito “de que Meia-Légua não havia morrido, encantara-se”. Os quilombos não eram organizações apenas para fins guerreiros, mas se caracterizavam também como organizações sociais e políticas em torno de atividades econômicas para a sobrevivência de seus quilombolas. Segundo Aguiar, no atual povoado de Sant’Ana, próximo à antiga Vila da Barra de São Mateus, à margem da estrada velha que ligava os dois municípios, existiu um quilombo liderado pelo Negro Rugério, onde se produzia muita farinha, que era negociada com a ex-senhora de Negro Rugério, dona Rita Cunha (mãe do barão dos Aimorés). Em troca da negociação da farinha a baixo custo, dona Rita Cunha protegia o quilombo da invasão das forças do governo e dos capitães-do-mato. A instalação desse quilombo, segundo Aguiar (1995c:16), ocorrera em meados do século XIX, quando Negro Rugério se aquilombou com um grupo de aproximadamente 30 negros de origem angolana nas terras de dona Rita Cunha, que era presidente do Partido Liberal na cidade de São Mateus e possuía uma sesmaria com enorme extensão de terras, desde a margem norte do rio Cricaré até o rio São Domingos. Diz Aguiar (1995c:22) que no quilombo de Negro Rugério havia cerca de uma dúzia de casas de farinha, onde se chegava a produzir aproximadamente 50 sacas por dia: Negro Rugério torna-se “rei da farinha”, e seu quilombo, sob a proteção de dona Rita Cunha (atravessadora da farinha do quilombo que ela comprava pela metade do preço de mercado), passa a incomodar a aristocracia rural, onde os outros produtores faziam pressão sob a alegação de que nele “viviam gentes condenadas por vários cri- 149 150 Quilombos mes, saqueadores de fazendas e escravos fugidos”, muitos dos quais há anos procurados por capitães-do-mato e pelas forças do governo. Com a morte de dona Rita Cunha e a notícia de que os quilombolas iriam promover uma insurreição no dia de Sant’Ana, em 26 de julho de 1881, quando todos os negros seriam libertados, a força do governo tomou de assalto o quilombo do Negro Rugério. Segundo Aguiar, até as décadas de 1970 e 1980 estava registrado na memória social dos velhos da região que líderes de outros quilombos, como Benedito Meia-légua, Constância d’Angola, Viriato Cancãode-Fogo e outros, lutaram juntos em Sant’Ana enfrentando a força do governo para defender o quilombo do Negro Rugério. Muitos negros, diz Aguiar (1995c:25), fugiram para as matas, outros caíram no rio São Domingos, outros correram para o Sapé do Norte, onde ainda hoje, segundo o autor, estão seus “remanescentes”: Negro Rugério, no entanto, na luta, matou um dos criminosos mais temidos da região, o “Cearense”, um implacável capitão-do-mato de nome Francisco Vieira de Melo, que durante muito tempo capturou, torturou e matou vários negros no vale do Cricaré. Negro Rugério, após os demais se refugiarem nas matas, resistiu em luta encarniçada com o “Cearense”, tendo feito o juramento de que seria o último a morrer caso as forças do governo invadissem o quilombo. E assim o fez. O confronto dos quilombolas com a polícia, a prisão de apenas cinco deles e as mortes foram relatadas pelo presidente da província do Espírito Santo, Marcelino de Assis Tostes (1882:16). O fato teria ocorrido em agosto de 1881: (...) na cidade de São Mateus, nas matas da fazenda Campo Redondo, sendo atacado pela força de polícia auxiliada de paisanos um quilombo de escravos ali refugiados, depois de tenaz resistência conseguiu a mesma força prender cinco, resultando a morte do de nome Rogério, que fazia fogo sobre a força, tendo também falecido nesta luta o paisano Francisco de Melo, por haver recebido um tiro dado do lado dos escravos do mesmo quilombo. Quilombo do Laudêncio, Município de São Mateus (ES) Entre o que escreve Aguiar e o que escreve Tostes há uma diferença de dois meses na ocorrência do fato. Para o primeiro, o fato teria ocorrido em junho de 1881, e para o segundo, em agosto do mesmo ano, mas acredita-se que o fato seja o mesmo, pois existem mais semelhanças que diferenças. Por exemplo, as narrações referemse à mesma região, ao mesmo fato no mesmo ano, e aos mesmos nomes, Rogério7 e Francisco de Melo, como os dois mortos. Aguiar, ao que parece, embora tenha pesquisado no Arquivo Público, fez uma adaptação do fato à memória social, que aproximava o acontecimento da festa de Sant’Ana, no mês de junho. Pelo que disseram os grandes líderes dos movimentos de resistência cultural e política dessa região em depoimentos concedidos a Aguiar, as mortes de Zacimba Gaba, Benedito Meia-Légua, Negro Rugério e outros significaram para esses velhos líderes negros que as utopias dos antigos quilombolas da região passaram a fazer parte da realidade e das lutas das comunidades negras e dos “remanescentes dos quilombos” da região, que resistiram às pressões e ameaças da Aracruz Celulose (empresa multinacional de grande porte que tem o eucalipto como matéria-prima para a extração da celulose e está localizada no município de Aracruz, litoral da região norte do ES) para obter seus territórios. Todo o material literário de Maciel de Aguiar aqui utilizado faz parte de uma série intitulada “história dos vencidos”. Esse título é contestado pelos líderes do grupo de União e Consciência Negra de São Mateus e Conceição da Barra, do qual fazem parte alguns moradores de Divino Espírito Santo. Segundo eles, “nós não fomos vencidos, nós resistimos e continuamos lutando”. Memória social da ocupação territorial e do quilombo Além de se definirem como integrantes do quilombo do Laudêncio, alguns moradores de Divino Espírito Santo afirmam que 7 Rogério e Negro Rugério. Acredita-se que o segundo nome é a versão popular do primeiro que ficou na memória social. 151 152 Quilombos esse quilombo era descendente do quilombo de Zacimba Gaba, enquanto outros o consideram descendente do quilombo de Sant’Ana, o quilombo do Negro Rugério. Segundo eles, existem no norte do estado várias comunidades negras que descendem dos antigos quilombos ali existentes. José Rola e Domingos dos Santos, líderes do Grupo União e Consciência Negra em São Mateus e Conceição da Barra, respectivamente, também afirmam que naquela região existiram muitos quilombos e que as várias comunidades negras ali existentes são “remanescentes” desses quilombos. Segundo José Rola, as outras comunidades negras no vale do rio Cricaré, no município de São Mateus, que já foram visitadas pelos líderes do Grupo União e Consciência Negra e que são por eles consideradas como “remanescentes dos quilombos” da região são: Serraria, São Jorge e Droga. Na primeira vivem cerca de 45 famílias, enquanto na segunda e na terceira, que na verdade formam uma só comunidade, vivem cerca de 150 famílias. Em Conceição da Barra, segundo Domingos dos Santos, existem várias, como Vila de Sant’Ana, Córrego Macuco, Linharinho, Córrego São Domingos (Trevo), Angelim I e II (região de Itaúnas) e Córrego das Piabas. Memória social da ocupação territorial Em Divino Espírito Santo, a memória social da ocupação territorial está estreitamente ligada à relação entre terras e parentesco. Realizei a pesquisa em torno da formação dessa comunidade levando em consideração a memória social de seus moradores, bem como lancei mão do método genealógico. Por meio da memória social, os moradores forneceram-me dados preciosos para construir a história e a genealogia do grupo. Pesquisar a história da ocupação territorial nessa comunidade é como costurar uma colcha de retalhos, pois cada morador me foi fornecendo uma parte da história por meio de relatos da vida de seus ancestrais, dos fatos por eles vivenciados que contribuíram para a formação do grupo. Ao dizer a C.P.S. que seu irmão me havia fornecido dados acerca da origem do grupo que conferiam Quilombo do Laudêncio, Município de São Mateus (ES) com os dela, ela afirmou: “Era uma porção de netos que a minha avó tinha, e um pegava um pedacinho, outro pegava outro, né? E talvez pode acontecer isso”.8 Após relatar várias histórias de seus ancestrais, C.P.S. concluiu com uma afirmação muito significativa a respeito da noção de transmissão de patrimônio cultural através da memória: E pra falar a verdade, eu estou contando porque minha bisavó, eu alcancei, me contou. Minha bisavó morreu com 116 anos. O nome dela era Maria. Agora, nunca contou se ela alcançou a escravatura, não. É, talvez ela não gostasse nem que falasse, né? Essas coisas aí ela não contava pra nós, não. Eu conto o que a minha avó e a minha bisavó contavam pra nós, porque eu alcancei elas. Minha avó se chamava Geraldina, a mãe do meu pai. E ela conversava muito com a gente. Eu conto pra você o que a minha avó e a minha bisavó contavam, entende? Consta, na memória social, que os irmãos Eleodório e Laudêncio eram filhos de Vicente de Jesus e Rosa. A bisneta de Eleodório, dona Francisca de Jesus, diz que seu avô, Manoel Eleodório de Jesus (Manoel Bendito), contava que o avô dele, chamado Vicente de Jesus, veio da África. Eleodório e Laudêncio, segundo relatam uma filha do primeiro e uma bisneta do segundo, migraram de um lugar denominado Itaúnas, que atualmente pertence a Conceição da Barra. Afirmam também que, por ocasião da chegada desses dois irmãos ao local, o primeiro já era casado e Laudêncio ainda estava solteiro. Havia ainda um terceiro irmão que veio com eles, chamado Emílio, que não permaneceu no local. Segundo dona Vanderlina de Jesus, filha de Eleodório, nascida em 1912 e ainda viva, seus avós, pais de Eleodório, Emílio e Laudêncio, se chamavam Rosa e Vicente de Jesus. Laudêncio, que estava solteiro, assim que chegou ao local casouse com Maria, que morava nas proximidades da cidade de São Mateus. Ela já era mãe de um filho chamado Manoel Leonel dos Santos, e o casal teve apenas uma filha, Prudenciana. Laudêncio e seu irmão 8 C.P.S. é casada, mãe de 11 filhos, avó de vários netos e bisneta de Laudêncio. 153 154 Quilombos Eleodório passaram a cultivar a terra e a criar gado na região. Manoel, que se tornara filho de Laudêncio, passou a chamar-se Manoel Laudêncio, pois ainda hoje faz parte do costume local os pais colocarem seu nome como o segundo nome do filho. Manoel Leonel dos Santos (Manoel Laudêncio) teve três filhos: Antônio dos Santos, Manoel dos Santos e Mateus. O primeiro logo ficou conhecido como Antônio Laudêncio. Manoel Leonel dos Santos, conforme relata uma de suas netas, construiu sua morada nas proximidades do córrego Grande, mas depois mudou-se para a margem do rio Preto, enquanto seu filho Antônio, que lá morava, veio para as terras da margem do córrego Grande. No entender dos informantes, essas mudanças ocorriam porque as áreas abertas na mata que ficassem “desocupadas” seriam “ocupadas” pelos estranhos que cobiçavam as terras da região. Tempos depois, Manoel Leonel dos Santos voltou para a margem do córrego Grande e ali faleceu após ser picado por uma cobra. Prudenciana, filha de Laudêncio com Maria, casou-se e teve apenas um filho, Augusto dos Santos, que ainda mora no local. Ao justificarem a migração de Laudêncio e Eleodório de Itaúnas para as terras entre o rio Preto e o córrego Grande, seus atuais descendentes afirmam que os dois irmãos seguiram a mesma lógica dos demais escravos que fugiam em busca de terras férteis para sobreviver. Após a morte de Manoel Leonel dos Santos, Antônio dos Santos (Antônio Laudêncio) ficou morando nas terras à margem do rio Preto, onde seus filhos estão ainda hoje, enquanto Manoel dos Santos permaneceu nas terras do córrego Grande, mudando-se posteriormente para a margem do rio Preto e deixando suas terras para os filhos, que lá vivem até hoje. Atualmente, os descendentes de Laudêncio se distribuem entre as margens do rio Preto, do córrego da Tabua e do córrego Grande e à margem direita da BR-101 Norte, enquanto Eleodório, apesar de ter tido mais filhos que Laudêncio, oito no total, tem menos descendentes no local. Alguns vivem à margem do rio Preto (os filhos, netos e bisnetos de Manoel Eleodório, filho já falecido de Eleodório) e outros à margem do córrego da Tabua (Concéscio Eleodório de Jesus, filho de Eleodório, que vive numa mesma casa com sua família extensa — filhos, esposas dos filhos e toda a prole). Existe uma outra Quilombo do Laudêncio, Município de São Mateus (ES) filha de Eleodório ainda viva, que é dona Vanderlina, moradora da cidade de São Mateus. Na verdade, é impossível fazer uma separação rígida entre os descendentes de Eleodório e os de Laudêncio: como já se casaram entre si, às vezes o homem é descendente do Laudêncio e a mulher é descendente do Eleodório e vice-versa. A antigüidade desse grupo de parentesco no local e na região pode ser constatada pela idade dos dois filhos de Eleodório ainda vivos — Concéscio, já citado, e Vanderlina de Jesus Machado, nascida em 10-6-1912 e moradora na cidade de São Mateus. Segundo Vanderlina, seu pai tinha 10 filhos com Benedita Marco da Conceição, sua única esposa. Ela relata o nome de todos, do mais velho ao mais novo, dizendo: “Primeiro foi Mariana, segundo Amadeu, terceiro Rosa, quarto Manoel Bendito (Manoel Eleodório de Jesus), quinto Maria (Yayá), sexto Bedulina, sétimo França, oitavo eu, nono Concéscio e décimo Vicentina”. E acrescenta: Olha, eles falavam, meu pai falava no norte, para os lados do norte por aí, né? Nesse norte por aí ele casou com mamãe, a Benedita. Aí ele ficou morando lá no Córrego Grande. (...) Eu acho que tinha a filha mais velha. Eu acho que era a Mariana (...) lá no norte. Penso eu que era. Aí, desses outros pra cá, ele teve tudo no Córrego Grande. Alguma coisa eu ainda me lembro porque a gente era pequena. Segundo Juarez, filho de Conscécio, ele conviveu muito com sua tia Maria Eleodório e “ela mantinha muito sigilo sobre o tempo da escravidão”. Maria, que era chamada carinhosamente por seus irmãos mais novos e sobrinhos de Yayá (termo proveniente da língua iorubá que significa “mamãe”), nasceu em 1898 e faleceu em 1992, conforme atestado de óbito apresentado por seu sobrinho Pedrolino de Jesus. Segundo o que relatam, ela nasceu no local, 10 anos após a assinatura da Lei Áurea. Eleodório viveu no período da escravidão, mas seus descendentes fazem questão de dizer que ele não foi escravo, que vivia livre em um quilombo na região de Itaúnas e que ele e os irmãos migraram para as terras onde hoje moram eles, seus descendentes. Os descendentes de Eleodório e Laudêncio dominaram uma grande extensão de terras na região entre o rio Preto e o córrego Grande 155 Quilombos 156 até os anos 1940, quando a frente de expansão madeireira começou a ameaçá-los e o governo os pressionou a requerer a titulação das terras individualmente. A esse respeito, disse M.C.S:9 Antigamente, aqui era uma terra só. Depois, com as mudanças das leis, obrigaram cada família a fazer o seu documento. Do córrego Grande ao rio Preto, era de uma família só. Ali habitavam os parentes. Pais, filhos e netos habitavam todos ali. Depois eles foram vendendo, vendendo, e se tornou pouco. Um dos informantes diz que, por volta de 1940, se começou a titular a posse da terra individualmente e seu pai, que era morador dali desde o tempo de seu avô e bisavô, teve que pagar para requerer a terra do estado. Mesmo assim não foi possível requerer toda a área que usavam, pois ficaria caro. Aí começaram a entrar os primeiros moradores que não faziam parte do grupo dos parentes. Eram amigos dos moradores, e os mais velhos lhes davam um pedaço de terra. Antes de 1940 ninguém ali tinha documento. “O documento da terra de um para o outro era o corte do machado. Um pegava a cortar aqui, naquela linha, e todo mundo respeitava e não entrava no pedaço do outro” (VAS). Até o início da década de 1970, apesar de uns poucos proprietários vizinhos, eles conseguiram manter uma hegemonia étnica e de parentesco nas terras da região. Segundo um informante: “Era a nossa raça pura”. Então começaram as pressões para que vendessem suas terras à Companhia Florestal Rio Doce, que planta eucaliptos para a Aracruz Celulose. Muitos cederam, mas os que resistiram têm fortes motivos e justificativas de fundo religioso para se manter na terra. Para C.E.J., 10 a terra tem um valor sagrado, e não de comércio: 9 M.C.S., nascida em 13-11-1955, casada com o bisneto de Laudêncio, Domingos da Penha, com quem teve seis filhos. 10 C.E.J., nascido em 1913, filho mais novo de Eleodório Vicente de Jesus, é viúvo e pai de 12 filhos. É o único filho de Eleodório que ainda vive na comunidade. Por ser adepto da Igreja Evangélica Assembléia de Deus, recusa-se a contar histórias que ouviu de seu pai, dizendo que a Bíblia não permite que ele fale o que não viu. Quilombo do Laudêncio, Município de São Mateus (ES) A terra não foi feita para o homem vender. Foi feita para o homem lavrar. Não se deve vender nem desfazer dela. Na época em que a companhia passou comprar terra aqui, perguntaram se eu queria vender, então eu disse que não vendia porque não tinha dinheiro que pagasse a terra, porque ela não foi feita pra venda. Deus deu a terra pra gente trabalhar nela, não pra comercializar. Contam que um dos moradores vizinhos vendeu suas terras e depois ficou sendo informante da companhia sobre quem tinha terra na região. Esse informante pressionava os moradores da comunidade dizendo que eles deveriam vender suas terras, pois não suportariam as exigências da companhia em relação a seus vizinhos. A cerca seria de nove fios de arame, porque ela não queria animais circulando nas terras dela. Um dos moradores teria respondido: “Cerca de pinto meu pai me ensinou a fazer”. O morador quis dizer que se conseguia fazer cerca para pinto, saberia fazer cerca para qualquer outro tipo de animal, portanto não sairia de suas terras. Quilombo: reivindicação e autodefinição É a partir de seu atual nível de consciência e organização política que o grupo reelabora sua identidade étnica, passando assim a reivindicar a identidade de quilombo e a definir-se como tal. Na concepção desses moradores, o quilombo é uma organização social e política dinâmica, pois a comunidade “se transformou num quilombo” na medida em que os conhecimentos foram sendo transmitidos dos mais velhos para os mais novos pelo processo de mobilização e conscientização. Destaca-se aí a dimensão afetiva do grupo, pois os avós têm papel importante e são considerados como fontes fidedignas de onde emana o conhecimento do passado, cujos valores os levam a retomar suas origens. Para esse grupo de parentes, isso significa ir ao encontro de um ou vários parentes, que são seus avós, bisavós e trisavós. O grupo volta ao passado por meio dos conhecimentos transmitidos por seus avós para reelaborar o significado 157 Quilombos 158 do presente e de sua identidade étnica. Eis como J.J. 11 se refere ao processo de mobilização desencadeado nos anos 1970, que levou a comunidade a reencontrar sua própria história: Essa comunidade aqui, segundo os conhecimentos passados, se transformou num quilombo com as pessoas que vieram de uma fuga que teve ali do porto de São Mateus. Acho que aqui elas têm as raízes, que são nossos avós e nossos pais que ficaram. Nos anos 1970, que foram anos mais quentes de conscientização, nossos pais e nossos avós começaram a passar pra gente o que havia acontecido no passado. Mas não tem nada escrito. Está na memória. As lideranças afirmam que o grupo descende de um antigo quilombo porque os primeiros moradores que ali viveram se agruparam nas matas e dela tiravam seu sustento. Entendem que a comunidade se formou com negros que fugiam do trabalho escravo, tornando-se lugar e território de resistência. O refúgio, a seu ver, não é lugar de isolamento, e sim de resistência contra as correntes do sistema escravocrata e onde, em liberdade, eles se estabelecem e organizam um novo território. Ao falarem de suas origens, alguns sustentam que Eleodório e Laudêncio teriam fugido para o local ainda no tempo da escravidão e aí formado um quilombo, enquanto outros acreditam que os dois irmãos nunca foram escravos, mas viviam livres nas matas da região norte do estado, tendo migrado de um antigo quilombo existente em Itaúnas e formado um novo quilombo no local, nos últimos anos da escravidão. Assim, dizem-se “remanescentes” do quilombo liderado por uma guerreira conhecida como Zacimba Gaba e o qual, segundo Aguiar, teria existido em Itaúnas, município de Conceição da Barra, entre 1700 e 1710. Um neto de Eleodório afirma: “O meu avô não pegou o tempo do carrancismo, porque eu acredito que ele fez parte de um refúgio 11 J.J., nascido em 1955, solteiro e neto de Eleodório. Estudou até concluir o primeiro grau em técnicas agrícolas, é militante do grupo União e Consciência Negra e coordenador da CEB local, mora na casa de seu pai e trabalha em suas terras. Quilombo do Laudêncio, Município de São Mateus (ES) de escravos nessas regiões de Itaúnas”. Refugiar-se significa negar o carrancismo, isto é, negar as ordens de um sistema escravizador dos negros, um sistema degradador da liberdade humana, e buscar um novo modelo de organização social, política e econômica. Concéscio Eleodório de Jesus,12 filho de Eleodório, diz que quando era criança sempre ouvia seu pai dizer que “rompeu a liberdade quando era jovem”. Liberdade e escravidão são antíteses. A expressão “rompeu a liberdade” significa romper com a escravidão, negar a escravidão por meio de uma nova forma de organização social, política e econômica, que na concepção do grupo era refugiar-se em um quilombo. Concéscio afirma ainda que seu pai dizia que ele e Laudêncio tinham vindo do norte de São Mateus, que depois se tornou município de Conceição da Barra, e ali ocuparam terras devolutas em meio à mata. Outro morador, D.P.,13 relata que alguns dos primeiros moradores vieram do povoado de Sant’Ana, município de Conceição da Barra. Segundo os membros do grupo, Eleodório e Laudêncio migraram de Itaúnas, enquanto outros teriam vindo das regiões de Sant’Ana e Sapé do Norte, todos lugares de quilombos. No entender dos historiadores e estudiosos da região, o meio rural de Conceição da Barra, ao qual pertencem esses lugares, era formado basicamente por negros fugidos de fazendas do sul da Bahia e de regiões vizinhas, o que é confirmado por Maciel de Aguiar e pelos relatos dos presidentes da província do Espírito Santo. Quilombo, para esse grupo, parece ter significado associado ao dos termos parente e malungo. Como disse V.A.S.: Parente porque se criou toda a vida junto com nós aqui, o pessoal do Concéscio. Desde que o velho Concéscio e meu pai eram malungo, 12 Concéscio Eleodório de Jesus, nascido em 26-9-1913, é viúvo, pai de 12 filhos com a mesma mulher. É o único filho de Eleodório que ainda vive na comunidade. Ele e alguns de seus filhos são adeptos da Igreja Evangélica Assembléia de Deus, e por isso se recusa a contar as histórias que ouviu de seu pai, dizendo que a Bíblia não permite que ele fale sobre o que não viu. 13 D.P., nascido em 25-12-1955, é bisneto de Laudêncio, casado e pai de seis filhos. 159 160 Quilombos porque diziam que eram malungo, quando eles falam malungo é porque viveram juntos, viajaram juntos. Não é parente mas vive junto, no mesmo lugar. Naquele tempo era malungo. Hoje em dia é amigo e também companheiro de luta, porque os velhos morreram, mas os novos estão assumindo a comunidade, organizando os trabalhos. O parentesco vai além dos laços de consangüinidade, da documentação legal, e adquire o sentido de descendência comum, tornada explícita pelo termo de origem banto “malungo”, utilizado pelo grupo com o significado de cumplicidade na luta pela liberdade naquelas terras. Adquire também o sentido de pertencimento ao mesmo grupo e ao mesmo lugar ou território. Os malungos, enquanto companheiros de luta, conforme explicam, não constituem um grupo que vive em função do passado, mas que reelabora sua cultura tradicional atualizando seus significados e que recria suas formas de organização social e política. Com base em sua luta e sua consciência política, os membros do grupo rebatem as ideologias engendradas na história oficial, que consideram a princesa Isabel como redentora dos escravos, e afirmam terem sido os quilombos que promoveram e continuam promovendo a liberdade dos negros. Como diz V.A.S.: Dizem que foi a princesa Isabel quem libertou os quilombos, mas é tudo mentira, né? O Zumbi, que era o pai dos quilombos. O Zumbi que era o herói que brigou, no tempo da escravidão, a favor do negro. Depois, botaram lá que foi a princesa Isabel, e veio aquela história enganando a população, porque não é verdade. Na concepção dos integrantes do grupo, foram os quilombos que lutaram pela liberdade, embora muitos livros didáticos apresentem a princesa Isabel como a libertadora dos escravos e os quilombos apenas como grupos de escravos sem perspectiva de liberdade. Memória da escravidão Na memória social local estão registradas algumas lembranças da escravidão que parecem ter sido reelaboradas pelos que entraram Quilombo do Laudêncio, Município de São Mateus (ES) para a militância no movimento negro, nas Comunidades Eclesiais de Base e na política partidária a partir dos anos 1970. Como diz um morador: “Depois que o compadre Juarez entrou para o Grupo de União e Consciência Negra é que a gente começou a falar das origens daqui e a dar maior importância aos antepassados”. Segundo outro morador, a memória da escravidão tinha sido esquecida, mas de uns tempos para cá foi retomada. Consta que na fronteira sul de suas antigas terras, à margem do rio Preto, havia um marco do tempo da escravidão: “Minha tia contava que o pai dela dizia que tinha um marco ali. Só que, com o reflorestamento [plantio de eucalíptos], foi destruído. Então, diz que ali era uma moradia antiga desse pessoal”. Ainda em relação à memória da escravidão, o pai de Concéscio contou-lhe que os bebês das escravas choravam famintos enquanto suas mães tinham que trabalhar na torrefação da farinha sem poder parar para amamentá-los. Certa vez, enfurecida com o choro de um bebê, a sinhá da casa-grande jogou o bebê da escrava na fornalha de torrar farinha. Comentando essa história, M.C.S. diz: “Essas mães não tinham nem o direito de chorar ao ver seu filho sendo queimado. Se chorassem, elas entravam na chibata”. Formas de posse e uso da terra, conflito e associação As terras do grupo somam, aproximadamente, 270ha que estão divididos em pequenas áreas de titulação individual e de uso familiar, às margens da BR-101 Norte. Nessas terras e por elas, o grupo vem construindo sua tradição, sua memória, sua organização política e a noção de uma unidade integrada de pessoas ligadas pelos laços de parentesco, pelos trabalhos em mutirão e pela organização política na Associação dos Pequenos Produtores da Comunidade do Espírito Santo (Apepes). As terras do grupo, segundo relatam, eram indivisas, mas posteriormente foram loteadas em pequenas áreas individuais e familiares, algumas das quais vendidas pelos herdeiros. Como a posse da terra tornou-se familiar, cada família tem a sua escritura e paga impostos ao Incra anualmente. Em apenas duas dessas áreas ainda existem pequenas extensões de mata. Essas áreas estão separadas pelas 161 162 Quilombos matas de eucaliptos, onde existem vários núcleos de famílias que se articulam e se organizam na defesa de seus direitos territoriais. A venda de algumas terras cuja posse já fora comum veio fragmentar um território que proporcionava maior coesão ao grupo de parentes no local. Apesar da extrema importância de uma unidade territorial para a constituição de um grupo étnico, parece-me que esse grupo de parentes não está baseado necessariamente na ocupação de um território exclusivo, pois se articula interna e externamente, com parentes que se mudaram para São Mateus e a Grande Vitória, sobretudo nas atividades festivas e na busca de conquistas políticas. Por darmos prioridade ao caráter organizativo dessa comunidade de parentes, que entre si recriam os valores em torno do uso comum de suas terras por meio dos trabalhos em mutirão e outras atividades políticas, é que podemos falar de grupo étnico ou quilombo, condição por ele reivindicada. Os que são parentes organizam muitos mutirões para trabalhar nos roçados. Como diz um deles: São dois grupos: tem o grupo que permanece lá no rio Preto e o grupo aqui da comunidade do Espírito Santo [às margens do córrego da Tabua e do córrego Grande]. Só que nesses mutirões só trabalham os parentes. Os imigrantes [descendentes de italianos], não. Tanto faz, os dois grupos são familiares. O maior conflito enfrentado pela comunidade foi no início da década de 1970, quando corretores da Companhia Florestal Rio Doce passaram a comprar terras para aí plantar eucalipto. Pressionavam as pessoas a vender suas pequenas áreas mediante a estratégia de ir comprando-as e isolando as famílias, que iam ficando cada vez mais distantes quando algum vizinho vendia suas terras. Assim se formaram os núcleos de famílias às margens do córrego Grande e do córrego da Tabua, e mais outros dois às margens do rio Preto. Hoje as famílias estão geograficamente mais distantes umas das outras e a comunidade está toda cercada pela floresta de eucaliptos. Segundo as lideranças do movimento de União e Consciência Negra, nessas comunidades do norte do estado a Aracruz Celulose designou um corretor negro como estratégia para convencer as pessoas a venderem suas terras. Os moradores da comunidade, líderes do Quilombo do Laudêncio, Município de São Mateus (ES) movimento negro e um estudioso da região afirmam que essa empresa valeu-se de um militar aposentado para pressionar as pessoas, dizendo-lhes que, se não vendessem suas terras, o governo iria tomá-las. Dizia também que os rios secariam e que seria impossível sobreviver na região. De fato, conforme relatam os moradores, a água diminuiu muito na região norte após o plantio desenfreado de eucalipto, mas ainda não acabou. Na compra das terras, os moradores alegam que “a Companhia sempre roubava na medida. A terra dava tantos hectares, e eles sempre diziam que dava menos. Eles pagavam apenas as partes mais altas; as várzeas e os brejos eles não pagavam”. Um desses moradores se recusou a vender suas terras à Companhia Florestal Rio Doce usando da seguinte justificativa: “A terra é pra plantar pra comer, e não pra plantar pau, porque ninguém come pau. Pau não enche barriga de ninguém”. Essa situação de conflitos e ameaças prolongou-se por cerca de 10 anos. Muitas famílias decidiram vender suas terras e ir embora para as periferias das cidades, mas umas 40 decidiram resistir e não vender. Diz V.A.S.: Com a chegada dos eucaliptos, teve muita pressão dos intermediários compradores de terra, que tinha que sair, o pessoal tinha que ir embora, que não tinha como viver, que o governo ia tomar a terra. Aí, muita gente foi embora, naquela época, 1970, e esse pessoal que vendeu a terra, não sei se estão na pior. Não puderam mais comprar terra e estão na favela em São Mateus, no Rio, em Vitória, esses cantos, porque não tiveram mais possibilidade. Quarenta famílias resolveram não sair, ficar na comunidade do Espírito Santo. Nós ficamos aí na terra. Não estamos ricos, mas dá pra viver, graças a Deus... pobre de barriga cheia. Hoje mesmo ainda está saindo muitos jovens, muitas jovens pra São Mateus, Vitória, Rio, São Paulo, outros vão pra Bahia, vão pra Rondônia, não tem como voltar e é muita gente. Nós já mandamos até dinheiro pras pessoas voltar de lá pra cá outra vez, faz aquela “vaquinha” da comunidade e manda buscar aquela pessoa, é assim. O certo, mesmo, é a pessoa ficar aí, permanecer onde estava, porque sair pra ver melhora não consegue. É fé em Deus, primeiramente, e trabalhar. 163 164 Quilombos Lutando para se manterem na terra, os descendentes de Eleodório e Laudêncio vão-se organizando e reelaborando a memória de suas origens por meio das alianças matrimoniais, que por sua vez se tornam alianças políticas. Organizam-se internamente para melhor utilizar suas terras por meio da Apepes. No projeto que essa associação enviou em 1989 à Secretaria de Agricultura do estado, fica explícita a consciência política do grupo para a reivindicação de direitos e recursos: A comunidade do Espírito Santo é conhecida hoje por suas manifestações culturais afro-brasileiras, herdadas do “quilombo Laudêncio”, do qual seus membros são descendentes. Possui, hoje, 35 famílias e é considerada o “último quilombo”, palco das cenas do filme O último quilombo, produzido pela Rede Globo, ganhando com este o prêmio nacional de telejornalismo. Por meio desse projeto a associação obteve uma piladeira de café, que serve aos seus associados, e por intermédio da Diocese de São Mateus obteve recursos para comprar um trator. Este é utilizado para arar as terras dos pequenos produtores da comunidade que são associados da Apepes. Cada associado paga R$80 por ano à associação e tem direito a cinco horas de arado por ano e cinco horas de carroça por mês. Ultrapassado esse período, o associado paga R$10 por hora. Para quem não é associado, cada hora de arado custa R$18. O trator e a piladeira serviam também à associação dos assentamentos do Movimento dos Sem-Terra (MST), mas essa colaboração cessou após um conflito ocorrido entre os diretores da Apepes e os coordenadores do MST. A Apepes conseguiu do estado não só a construção de represas para armazenar água para o período da seca, mas também, por meio do processo de eletrificação rural, em meados de 1996, o abastecimento de luz para a comunidade. Com o assessoramento da Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural do Estado do Espírito Santo (Emater), a Apepes passou a orientar os produtores da comunidade na adubagem da terra, no melhoramento de sementes e de raças de animais, como porcos e galinhas, e também na criação de peixes. Quilombo do Laudêncio, Município de São Mateus (ES) Atividades produtivas da comunidade Os moradores de Divino Espírito Santo vivem exclusivamente do cultivo de suas terras, onde plantam mandioca (para a fabricação de farinha e beiju), café e cana-de-açúcar. Também são produzidos hortifrutigranjeiros como jaca, manga, caju, abacate, laranja, limão, mexerica, goiaba, cacau, cajá, coco, acerola, melancia, mamão, maracujá, abacaxi, abóbora, banana, inhame, batata-doce, quiabo, repolho, maxixe, pimentão, tomate, couve, taioba etc. Nas terras da família de seu Manoel Antônio dos Santos (com seus dois filhos casados), às margens do rio Preto, se cultiva pimenta-do-reino para comercialização. Com exceção do feijão e do milho, produzidos apenas para o consumo, os demais produtos agrícolas são comercializados no mercado municipal de São Mateus. A produção econômica tradicional da comunidade está baseada no cultivo da mandioca e na fabricação de farinha e beiju. A partir de 1975, porém, começou-se a cultivar o café conilon. A mandioca é colhida e levada para os quitungos, onde é raspada, lavada manualmente e ralada num bolinete movido por um motor a gasolina. Essa massa é prensada e, depois de seca, peneirada e torrada manualmente. Para a fabricação do beiju, a massa da mandioca é lavada e coada num pano até soltar toda a goma. O que sobra dessa lavagem é vendido à Escola Família Agrícola de Jaguaré e utilizado no fabrico de ração para porcos. Depois de assado, o beiju é embalado e levado ao mercado municipal de São Mateus, onde é comercializado ou diretamente com o consumidor ou com atravessadores. Eis o calendário da produção agrícola: ❑ em abril, maio e junho colhe-se o café, que começa a produzir os primeiros grãos somente depois de dois anos; ❑ em março, abril e maio, bem como em setembro e outubro, planta-se a mandioca, que pode ser colhida de oito a 12 meses depois; ❑ em março e abril, planta-se abacaxi, colhendo-se a primeira safra depois de um ano e 10 meses; 165 166 Quilombos ❑ ❑ ❑ no início do inverno, plantam-se o mamão e o maracujá, que depois produzem direto durante três anos; nos meses de março e abril e de agosto até outubro, plantam-se o feijão e o milho para consumo próprio; de março a outubro, cultivam-se as hortaliças, e alguns chegam a comercializar sua produção. Algumas famílias já não esperam apenas pela chuva e utilizam o processo de irrigação mecanizada com cultivos consorciados, irrigando-se duas culturas ao mesmo tempo. Os velhos da comunidade ainda estão muito presos ao cultivo da mandioca para fazer farinha e aos demais produtos de subsistência. Como afirmou o velho Concéscio: “Na roça tem que se plantar de tudo pra comer. Se sobrar a gente vende. Primeiro pra comer, depois pra vender”. No entanto, seus filhos, quase todos técnicos agrícolas, realmente diversificaram a agricultura local e já têm uma visão de cultivar para o mercado e para gerar recursos econômicos para adquirirem outros bens. Quase toda a criação de animais (galinhas, patos, gansos e suínos) destina-se ao consumo próprio. Somente a família do sr. Concéscio cria carpas para comercialização e somente os Laudêncios que vivem à margem do rio Preto criam gado e animal de montaria. Antes do plantio dos eucaliptos, como contam, criavam porcos, que ficavam soltos pela terra, mas a Companhia proibiu que os porcos invadissem suas terras e poucas pessoas criam porcos presos. Todos os produtos comercializáveis são levados para a cidade de São Mateus, onde também são adquiridos os produtos de que a comunidade necessita. Cerca de cinco famílias vivem em condições econômicas bem piores que as das outras, pois lhes sobraram poucas terras após a venda. Algumas pessoas dessas famílias trabalham como diaristas numa firma de mamão, Frutale, que se instalou à margem do rio Preto, em terras vendidas por antigos moradores. Disse uma das mulheres que já trabalharam na firma: Antigamente, meu avô dizia que tinha a escravidão. No tempo da escravidão, o trabalho e a vida dos escravos era dura. Hoje ainda Quilombo do Laudêncio, Município de São Mateus (ES) tem escravidão. Essa firma de mamão aqui é escravidão. A gente não tem direito nem de beber água, nem um cafezinho, nem um lanche. Pra almoçar tem que ser ali, ó. E quatro minutos depois tem que trabalhar. Ninguém agüenta, não. Artesanato e medicina alternativa A produção artesanal comunitária baseia-se na fabricação de cangalha para animais, jacá (balaio feito de cipó) e vassouras de cipó. Dizem que um dos filhos de Eleodório, Manoel Eleodório de Jesus, recebeu o apelido de Manoel Bendito porque exercia a função de benzedor, rezador e curandeiro entre os parentes: “Fazia muitas garrafadas para as mulheres de resguardo”. Eis as plantas e os recursos medicinais alternativos ainda hoje utilizados pela comunidade: ❑ óleo de copaíba: serve contra picada de cobras e para cicatrizar outros ferimentos; ❑ jaborandi: cipó extraído da mata e usado como anestésico; ❑ erva-cidreira e capim-cidreira (capim doutor): seu chá é usado para combater a febre e para abrir o apetite; o banho serve para combater a febre de crianças; ❑ folha de laranja: seu chá serve para combater a gripe; ❑ folha de abacate: seu chá serve para combater doenças dos rins; ❑ folha de boldo: seu chá serve para combater doenças do fígado; ❑ cipó-timbó: usado no preparo da garrafada para combater o reumatismo; ❑ dendê: seu óleo é utilizado como cicatrizante. Consta que ali havia muitas matas, devastadas pela Companhia Florestal Rio Doce e pela Aracruz Celulose para o plantio de eucaliptos. As matas e os rios serviam como fonte de subsistência, e delas se extraíam muitas raízes, cipós e folhagens que eram utilizados na medicina caseira alternativa, mas hoje os vigilantes da Companhia proí- 167 Quilombos 168 bem que se retire até um cipó: “De primeiro é que era bom. A gente caçava, pescava, tirava lenha no mato, tirava cipó e todo tipo de raiz e não tinha problema. Hoje, tudo isso acabou”. Manifestações culturais Os moradores da comunidade têm como principais manifestações culturais a festa de reis-de-boi e a festa do Divino Espírito Santo. Por serem católicos, a maior festa é a do Divino Espírito Santo, que acontece no dia de Pentecostes, 50 dias após a Páscoa, atraindo aproximadamente mil pessoas das comunidades vizinhas e parentes vindos de fora. Tem início no sábado, com danças de forró, e prossegue com encenações que retratam a história e a vida da comunidade. Nos meses de junho e julho, realizam-se também festas de quadrilhas entre as famílias aparentadas. A festa de reis-de-boi, que tive a oportunidade de observar, é realizada todos os anos para os santos reis, em 6 de janeiro; para São Sebastião, em 20 de janeiro; e para São Brás, em 2 de fevereiro. Cada festa dura de dois a três dias, em um ritual que sofre pequenas alterações a cada casa em que o grupo entra para saudar os moradores, e se encerra ao lado do templo católico da comunidade. A festa de reisde-boi é liderada pelos “Laudêncios”, os principais marujos.14 A coreografia e as letras, cuja melodia é transmitida oralmente a cada geração, costumam satirizar os acontecimentos sociais e políticos da região, além de se reportarem às transformações históricas, sociais e religiosas da própria comunidade. Alguns moradores participam também dos eventos promovidos pelo movimento negro na sede do município de São Mateus, como por exemplo o “jongo de São Benedito”15 e o reis-de-boi daquele município. Como diz V.A.S.: 14 Marujo significa povo do mar. Nesta comunidade, todos se vestem de branco, com vários adornos coloridos, sendo os dançarinos, tocadores e cantadores da festa de reis-de-boi. 15 O Jongo de São Benedito, segundo Aguiar (1995:11), é um “...tradicional folguedo remanescente dos séculos da escravidão, quando os negros, nas senza- Quilombo do Laudêncio, Município de São Mateus (ES) Sou da comunidade do Divino Espírito Santo, mas a gente acompanha junto com eles as festas, inclusive eu já participei muito de encontro da consciência negra; em Vitória mesmo já fui em encontro junto com eles. Nas festas do dia de Zumbi, no dia 20 de novembro, a gente vai em Conceição da Barra; em Pedro Canário já fizemos esta festa, só que depois aquele movimento caiu porque é muita pressão sobre o negro, e muitos tomam medo dos grupos [refere-se à perseguição política e policial a um dos líderes do Grupo União e Consciência Negra de Conceição da Barra]. Agora estão renovando, junto com o grupo de consciência negra nacional, que vem lá de fora, e aí a gente acompanha nas festas, né? Agora mesmo teve a festa de São Benedito, a gente foi pra lá participar e rezar a ladainha, aquelas ladainhas caseiras que muita gente não entende mais, nem conhece... Domingo, outra vez lá em São Mateus, vamos brincar juntos com eles. As manifestações culturais têm grande importância no processo de reelaboração da identidade étnica. Servem como valores de autoafirmação, como meio de demarcar sua identidade em relação aos de fora e de implementar a organização política na defesa de seus direitos comunitários. Conclusão Essa comunidade caracteriza-se pela atualização de suas formas de vida e lutas em defesa de suas terras. A autodefinição e os laços de parentesco marcam profundamente a reelaboração da identidade étlas, cantavam e dançavam ao som dos tambores e das músicas cujas letras falavam de seus sofrimentos, anseios e esperanças, mas que eram ininteligíveis aos ouvidos dos seus senhores”. Na atualidade tornou-se uma festa que as comunidades negras dessa região realizam em louvor a São Benedito, contando com a participação e o apoio de alguns brancos. A festa é um ritual que reúne o passado e o presente. É um ritual que celebra as relações interétnicas entre negros e brancos, onde se dá a reelaboração ritual e relacional da identidade étnica. 169 170 Quilombos nica. Aí o significado do quilombo é uma auto-atribuição que passa também pelo parentesco e adquire o sentido de origem e procedência comuns, pois se refere à transmissão de todo um patrimônio cultural herdado dos pais, avós e bisavós. Suas terras, por serem heranças deixadas por seus antepassados, adquirem um valor afetivo e material, o que influencia o seu modo de uso. Acreditando que quando os pequenos se unem se fortalecem, organizaram-se na Associação dos Pequenos Produtores da Comunidade do Espírito Santo, por meio da qual reivindicam melhorias e recursos para seus modos de cultivar a terra e comercializar seus produtos. Há evidências históricas de que a comunidade originou-se de um quilombo que para ali migrou nos últimos anos do regime escravocrata, tornando-se assim, conforme reivindicação do grupo, o “Quilombo do Laudêncio”. Referências bibliográficas Aguiar, Maciel. Benedito Meia-Légua — a saga de um revolucionário da liberdade. BrasilCultura/Centro Cultural Porto de São Mateus, 1995a. (Série História dos Vencidos, 1.) ——— ———. Zacimba Gaba — princesa, escrava, guerreira. Brasil-Cultura/Centro Cultural Porto de São Mateus, 1995b. (Série História dos Vencidos, 2.) ——— ———. Negro Rugério — farinha de mandioca e chicote. Brasil-Cultura/Centro Cultural Porto de São Mateus, 1995c. (Série História dos Vencidos, 6.) ———. Salvino Rodrigues — o jongo de São Benedito. Brasil-Cultura/Centro Cultural Porto de São Mateus, 1995d. (Série História dos Vencidos, 26.) Betto, frei. O que é Comunidade Eclesial de Base. 4 ed. São Paulo, Brasiliense, 1981. Lima, Rita de Cássia Bóbbio. Relatos e retratos de Conceição da Barra. Vitória, Fundação Ceciliano Abel de Almeida/Ufes, 1995. Lyra, Maria Bernadette Cunha de. O jogo cultural do Ticumbi. Rio de Janeiro, UFRJ, 1981. (Dissertação de Mestrado.) Maciel, Cleber. Candomblé e umbanda no Espírito Santo — práticas culturais religiosas afro-capixabas. Vitória, DEC/Ufes, 1992. Quilombo do Laudêncio, Município de São Mateus (ES) ———. Negros no Espírito Santo. Vitória, DEC, SPDC/Ufes, 1994. Rebello, José Camilo Ferreira. Relatório com que José Camilo Ferreira Rebello — quinto vice-presidente da província do Espírito Santo — passou a administração ao presidente Custódio José Ferreira Martins, no dia 17 de setembro de 1884. Tostes, Marcelino de Assis. Relatório com que Marcelino de Assis Tostes passou a administração da província do Espírito Santo ao tenente-coronel Alpheu Adelpho Monjardim de Andrade e Almeida, primeiro vice-presidente, no dia 15 de fevereiro de 1882. 171 CAPÍTULO 5 Jamary dos Pretos,* Município de Turiaçu (MA) Eliane Cantarino O’Dwyer e José Paulo Freire de Carvalho O adjetivo “dos Pretos” acrescentado ao nome do povoado de Jamary revela pertencimento étnico e configura identidade expressa por controle territorial e autonomia local. Essa forma de adscrição denotativa do grupo confere também reconhecimento por segmentos territoriais vizinhos e inclusive interesses antagônicos, que pretendem uma apropriação privada das terras pertencentes ao povoado e, portanto, ameaçam não só as divisas de seu território, mas também a identidade étnica da coletividade que inscreve sua história nesse lugar. A representação espacial sobre os limites do território, suas formas de organização social e a memória presente no cotidiano de seus moradores sobre os chamados mocambos que existiram na região indicam processos históricos e sociais formadores da autonomia camponesa característica desse povoado, construída em resposta ao sistema escravocrata e outras formas de subordinação. * A pesquisa etnográfica realizada durante o mês de janeiro de 1997 para elaboração do laudo antropológico no contexto do Projeto Quilombo: Terras de Preto, da Fundação Cultural Palmares/Ministério da Cultura, foi precedida de um trabalho de campo realizado em setembro de 1993 por solicitação do Projeto Vida de Negro (PVN), do Maranhão, que faz um levantamento sistemático de identificação e reconhecimento das chamadas “terras de preto” em diferentes regiões desse estado. Quilombos 174 A experiência histórica dos quilombos é incorporada no presente etnográfico às manifestações culturais observadas no povoado, expressas em festas de dança, como o tambor-de-criola, rituais religiosos, como o tambor-de-mina, e todo um conjunto de representações que circulam sobre a origem de Jamary e as condições de participação na vida do povoado, definindo para seus moradores um mundo social partilhado e uma identidade comum. Essas considerações iniciais do relatório elaborado na forma de parecer estão baseadas numa interpretação focalizada dos dados apoiados nas evidências etnográficas e contêm citações que expressam o ponto de vista dos moradores nativos, que reivindicam a vigência do direito atribuído pela Constituição Federal no art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias: aos remanescentes das comunidades de quilombos que estejam ocupando as suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos definitivos. Identidade étnica e territorialidade O povoado de Jamary está localizado na microrregião do Gurupi, município de Turiaçu, caracterizado como área de exclusividade negra no Maranhão, onde existiu um extraordinário número de quilombos ou mocambos.1 Essa região compreendida entre os rios Turiaçu e Gurupi pertenceu até 1852 à então província do Pará, e a grande incidência de quilombos nessa parte da fronteira encontra-se documentada nos arquivos públicos e bibliotecas de ambos os estados.2 Além dos registros sobre as expedições realizadas contra os “quilombos de escravos fugidos”, que exigiram no período imperial campanhas financiadas pelos governos das duas províncias com o propósito de combater o crescente número deles,3 deve-se considerar 1 2 3 Terras de preto: quebrando o mito do isolamento, 1989. Relatório de atividades do Projeto Vida de Negro, 1993. Assunção,1988:449. Jamary dos Pretos, Município de Turiaçu (MA) a existência de numerosa população escrava nas fazendas e engenhos da região, introduzida através do porto de Turiaçu, utilizado no século XVIII para tráfico de escravos não-autorizado e fora do controle alfandegário,4 o que pode ter em parte contribuído para “a elevada proporção de escravos em relação à população livre no norte da província”.5 Ainda sobre os “quilombos maranhenses”, Matthias Assunção refere-se aos “formidáveis quilombos de Turiaçu”, que teriam conseguido manter-se por todo o século XIX com populações de centenas de pessoas. Dentre os fatores explicativos, destaca sua situação de fronteira não controlada pelo Estado, com numerosos rios e matas que serviram para fuga e esconderijo da escravatura; a diversificação da economia: caça, pesca, agricultura de subsistência, gado e a comercialização do fumo e do algodão; além da prática do garimpo nos rios Maracassumé e Gurupi. Também mantinham comércio regular com regatões (pequenos comerciantes que se deslocavam em embarcações ao longo dos rios e igarapés), fazendeiros e negociantes das vilas do litoral, como Santa Helena, Carutapera e Turiaçu, o que teria dificultado a ação repressiva contra eles, em virtude dos interesses econômicos que envolviam os quilombos e determinados segmentos da população e da elite local, principalmente nos garimpos auríferos do vale do Gurupi. No povoado de Jamary , constatamos que seus habitantes têm como memória social a experiência histórica dos chamados “mocambos”, termo pelo qual são conhecidos e definidos pelos moradores do povoado os “lugares de moradia e refúgio dos pretos livres”, como dizem, em contraposição às fazendas de escravos, consideradas “lugar da dor, do trabalho forçado e da sujeição”. Além disso, os moradores do povoado, como já foi dito, costumam acrescentar ao nome Jamary o adjetivo “dos pretos” — Jamary 4 5 Salles, 1971:220. Assunção, 1988:459. 175 176 Quilombos dos Pretos ou ainda Povoado dos Pretos —, forma de qualificação que define, por meio da auto-atribuição, uma identidade afirmativa e uma territorialidade própria a um grupo social etnicamente organizado. Invertem assim as características estigmatizantes com que são conhecidos na sede do município de Turiaçu, onde usualmente são designados de “os pretos dos campos naturais” ou “os pretos do Jamary”, designações que verificamos terem sido usadas de maneira irônica e depreciativa por moradores da cidade. A expressão “campos naturais” funciona, por um lado, como uma descrição da geografia (tipo de solo e vegetação); por outro, como uma referência ao tipo de apropriação feita desse território pela existência de terras de uso comum no povoado, como veremos adiante. Tais referências, utilizadas como critérios de apreciação negativos da identidade social desse grupo, expressam práticas comuns e cotidianas de discriminação e preconceito a que estão submetidos em seu contato com os de fora os moradores do povoado de Jamary. Por meio de uma lógica da contradição, reapropriam-se, contudo, positivamente da avaliação estigmatizante e constroem assim uma identidade social relacionada ao pertencimento étnico e à ocupação de um território exclusivo. A investigação antropológica: o lugar como unidade de observação A observação intensiva do povoado por dois períodos de trabalho de campo, embora relativamente curtos, fundamenta o estudo antropológico realizado através de um engajamento intenso dos pesquisadores, ligando-se a uma rede de relações pessoais e, por meio dela, a um conjunto de representações culturais que circulam nesse grupo. O intercâmbio constante com os moradores, através de perguntas e entrevistas e da convivência no povoado, justifica a inclusão de citações dos informantes como exemplos de testemunhos confiados por homens e mulheres que falam de sua existência, o significado que atribuem às suas vidas, a relação que estabelecem entre presente e Jamary dos Pretos, Município de Turiaçu (MA) passado e suas expectativas quanto ao futuro. Os comentários descritivos aqui encontrados indicam também os contextos em que foram produzidas as informações, ao revelar os diálogos e interações durante o trabalho de campo, como uma maneira de transmitir a compreensão que foi possível obter ao partilhar outro mundo social que tem sua própria razão de ser por uma lógica inscrita no espaço das relações entre diferentes grupos ligados por laços de parentesco e uma experiência histórica singular, que os levam a adotar pontos de vista e atitudes comuns diante do mundo. Para realizar o trabalho de campo no povoado de Jamary e conhecer seus habitantes é necessário atravessar as estradas que partem da capital São Luís em direção à Baixada Ocidental Maranhense e à região do Gurupi. A viagem rumo ao município de Turiaçu, feita através das rodovias do interior do estado, permite observar uma paisagem peculiar formada por pastagens, capoeiras, extensos palmeirais e babaçuais, além dos chamados campos naturais. Observam-se cercas de arame ao longo de toda a estrada, com sedes de fazenda e suas placas de identificação, entremeadas por pequenos aglomerados urbanos, freqüentemente pontos de parada dos veículos em trânsito, e ainda muitas povoações menores que permitem presumir a existência de um campesinato na região. A grande maioria dos usuários dos coletivos que atravessam as vias rodoviárias é formada por viajantes que se deslocam por curtos trechos. Esses passageiros são caracteristicamente camponeses, que carregam seus produtos em sacos e paneiros com farinha de mandioca, arroz, milho, feijão, transportando ainda pequenos animais, como porcos e galinhas. Encontramos, assim, utilizando esse meio de transporte, os moradores de muitos povoados que podem ser observados na paisagem ao lado dos imensos campos cercados para a criação de gado e búfalos. Tais povoados consistem em aglomerados de habitações feitas de paredes de barro e cobertas pela palha originária dos palmeirais em volta, com as criações domésticas soltas pelos terreiros plantados de árvores frutíferas. Até Turiaçu são percorridos diversos municípios, sendo possível observar algumas feiras de produtos agrícolas. O município de Santa Helena, um dos últimos do percurso, é cortado pelo rio Caxias, que 177 178 Quilombos em seu curso posterior faz fronteira com os limites do povoado de Jamary. Depois de atravessar diversas povoações, como Bacabeiras e Nova Caxias, é chegada a vez de Santa Rosa, localizada na beira da estrada rodoviária coberta de piçarra que faz a ligação com a sede municipal de Turiaçu. Ponto de parada obrigatório para quem se dirige a Jamary, o povoado de Santa Rosa, segundo informações de alguns de seus moradores, antes da construção da estrada, há cerca de 20 anos, ficava situado mais para dentro da mata, passando atualmente esse local a ser utilizado como área de plantio dos roçados e criação de animais. Para Santa Rosa, na beira da rodovia, convergem moradores das povoações vizinhas, sendo também alcançado pela frente de expansão camponesa nordestina em direção à fronteira amazônica — vários veículos particulares fazem fretes de passageiros e cargas em direção às localidades do interior do estado do Pará e a sua capital Belém. O povoado de Santa Rosa é formado por cerca de 40 casas dispostas de ambos os lados da estrada, num trecho de aproximadamente 200m de extensão. Difere do povoado de Jamary não só pela disposição espacial, mas também pela composição étnica, apesar da contigüidade relativa entre essas duas povoações. Ambas são ligadas por um caminho de 7,5km de extensão, coberto em alguns trechos por densa vegetação e atravessado a pé ou em animal pelos moradores de Jamary, que por vezes vendem seus produtos e compram outros bens necessários, como óleo de cozinha, querosene, açúcar e sal, numa das cinco “barracas”, isto é, casas comerciais existentes na beira da rodovia. O deslocamento pelas estradas, em que nem sempre é fácil conduzir, até Jamary dos Pretos permite-nos formar uma idéia das imensas dificuldades mencionadas pelos seus moradores para viajar no período das chuvas torrenciais do inverno — meses de janeiro a julho. São diversas as partes baixas e inundáveis da estrada, quando ocorre a cheia dos rios e pequenos riachos que atravessam seu território, transformados em imensas valas no verão. O trânsito de pessoas e animais fica extremamente dificultado no tempo das chuvas, e o acesso ao povoado é desaconselhado pelos seus moradores. Conceitualmente, podemos considerar o povoado de Jamary dos Pretos uma comunidade, apesar de não constituir termo de referência Jamary dos Pretos, Município de Turiaçu (MA) do grupo. Segundo nossa observação, poucas vezes foi usado nesse sentido: numa ocasião, para designar a comunidade de base que a Igreja católica, através da paróquia de Turiaçu, tentou fundar em Jamary e que, segundo alguns moradores, não deu certo “porque o pessoal desanimou”. Noutra, durante reunião dos moradores, quando relacionaram comunidade a família, ao ser discutida a participação de todos no esforço comum para o reconhecimento do grupo como “quilombo”, consoante a legislação. Salvo esses contextos, o termo não foi usado em nossas entrevistas e conversas com os moradores. Ao se referirem a Jamary, usaram-se de preferência os seguintes termos: “o povoado”, “o Jamary”, “o povoado dos pretos”, “o Jamarizão” e o “Jamary dos Pretos”. Embora o termo comunidade não represente uma categoria de referência nativa, foi possível observar, durante nossa estada no povoado, uma intensa rede de relações pessoais e obrigações familiares a que todos os moradores do Jamary estavam interligados. Desse ponto de vista, constituem ainda uma comunidade pelo sentimento de pertencer ao mesmo mundo, motivados em suas ações por valores compartilhados e objetivos comuns. Plano espacial do povoado A sede do povoado de Jamary é encoberta por densa vegetação que circunda os seus limites, o que torna difícil para quem chega discernir a existência de um grande aglomerado de casas, com uma população estimada em cerca de mil pessoas. Essa parte central do povoado é formada por um círculo de moradias que delimita o espaço comunitário onde se encontram edificados a capela, a escola e o barracão em que promovem suas reuniões e festas, além do campo de futebol. Nessa área fica a maior concentração de casas, cerca de 110 moradias, que delimitam os espaços comunitários já referidos, utilizadas tanto pelos moradores que formam esse núcleo central do povoado quanto pelos que residem nas localidades de Boa Vista e Cajual, ambas situadas mais ao norte, no caminho que conduz à rodovia, mas 179 180 Quilombos que constituem, na representação de seus moradores, partes integrantes de Jamary. Entra-se no povoado pelo Outeiro das Queimadas, passagem obrigatória para quem vem da estrada e faz a travessia do igarapé Bom Jesus, muito seco no verão. Esse acesso principal consiste numa trilha aberta através de um campo natural delimitado por palmeiras de caule fino e cobertas de espinhos, denominado Jamarizal. Daí, segundo os moradores, chamar-se Jamary o povoado. Este é circundado por uma região de mata onde se localizam os chamados “ranchos de trabalho”, nos quais os moradores passam vários dias da semana nas tarefas agrícolas. Tais localidades mais para dentro da mata são conhecidas também como “centros de roçado”, onde se plantam mandioca, cará, milho, arroz, feijão, abóbora e verduras, além de banana, abacaxi e cana. Cada um desses “centros de roçado” pertence a uma determinada família do povoado, que utiliza para o serviço a força de trabalho de seus membros. Ao fundo do povoado, ainda no perímetro que na visão dos moradores constitui sua sede, fica a localidade conhecida como Grota. Lá fomos levados para conhecer uma plantação de tabaco, situada bem ao lado de uma casa, porém seus ocupantes, membros da família Mafra, uma das principais do povoado, encontravam-se no seu centro de roçado, mais para dentro da mata. O canteiro de tabaco tinha cerca de 100m2, e as plantas estavam grandes, com suas folhas amarelando de baixo para cima. Disseram-nos que logo poderiam ser colhidas e postas para secar, antes ainda do período das chuvas. Depois de secas, as folhas seriam esticadas e amarradas num rolo com fibra de palha. Mas para o fumo ficar bom mesmo, informaram-nos, o rolo deve ser posto para maturar pelo prazo de três meses a um ano, sempre junto à terra, no chão da cozinha ou num quarto da casa. Passado esse período, caso não venha a “melar”, está no ponto de consumo um fumo considerado por eles dos “bons” Na sede do povoado existem também algumas casas de farinha, bem poucas, conforme explicaram. A maioria delas está localizada nos centros de roçado, junto às plantações de mandioca, o que torna mais fácil farinar, com a vantagem de se poder obter lenha na mata perto dali. Jamary dos Pretos, Município de Turiaçu (MA) Em nossas duas estadas no povoado, ficamos hospedados, por sugestão de seus habitantes, na residência do sr. Raimundo Sousa, presidente da Associação Rural dos Moradores do Quilombo Jamary, fundada em 1995. Essa casa fica localizada na parte por eles considerada o centro do povoado, bem em frente do principal círculo de moradias que formam a sede, onde se acham a capela, a escola, o barracão de festas e o campo de futebol. Nela se podem observar as divisões internas no espaço do terreiro, separadas por uma cerca, onde se encontram um fogão de lenha, árvores frutíferas, como cajueiros e goiabeiras, e uma criação doméstica de porcos e galinhas. No extremo do cercado, cruzando o portão, encontram-se o sanitário e, do lado oposto, distante cerca de 20m, dois poços de água potável com um cercado para banho. Ao se atravessar de um lado para outro, há no meio do caminho, como divisa natural, uma enorme e antiga mangueira. Na extremidade do terreiro, onde fica um pequeno curral coberto de palha para animais de carga (um cavalo, um burro e um jegue), há um extenso arvoredo a separar a casa de seu Raimundo Sousa da capoeira fronteiriça ao terreno do vizinho mais próximo. Na sala da casa de seu Raimundo há duas portas. Da lateral avistam-se um campo que serve de pasto para os animais e, ao fundo, algumas casas. Da outra vêem-se em primeiro plano o campo de futebol e a escola sobre um outeiro, que juntamente com a capela e o barracão de festas parecem indicar geograficamente o plano de organização comunitária do povoado, onde se realizam as celebrações e festividades comuns, como o tambor-de-criola e a festa da padroeira Nossa Senhora das Graças. Muito nos impressionou o fato de nossos informantes saberem tudo o que acontece no povoado, levando-se em conta que o povoado de Jamary é bastante extenso. No entanto, em sua casa, Raimundo Sousa sempre fica sabendo quem está matando um porco, quem tem carne de gado para vender, quem vai pescar, quem volta do roçado, quem está indo para lá, onde estão pastando os animais de carga soltos durante a noite, enfim, como se controlasse o dia-a-dia do povoado. Dir-se-ia que isso se deve às constantes visitas que ele recebe de muitos moradores do povoado. Há, porém, uma explicação relacionada à própria localização dessa casa e de outras ao redor da 181 182 Quilombos clareira onde se realizam as atividades comunitárias. A disposição dessas moradias na sede do povoado parece convergir para um ponto central de entrecruzamento, o que por suposto permite um controle quase constante desse espaço de interseção dos vários caminhos que apontam na direção dos limites do povoado. Os critérios de pertencimento territorial Em Jamary, segundo levantamento feito pelos próprios moradores com a ajuda do Projeto Vida de Negro, existem 110 casas formando o perímetro considerado a sede do povoado, que recebe diferentes denominações em função de sua distância relativa do espaço onde se realizam as atividades comunitárias. Desse modo, os moradores mantêm o controle e se orientam em relação as partes que constituem, na opinião deles, os diversos “bairros” em que se divide esta área central do povoado. São eles: Santo Antônio, Capina, Arrudá, Grota e Outeiro das Queimadas. Fora desse aglomerado, foram contadas mais seis casas em Boa Vista e 12 no Cajual. Essas duas localidades mais afastadas possuem várias moradias dispersas com seus respectivos roçados e, ainda, no caso de Boa Vista, há um pequeno conjunto de casas situadas em uma trilha dentro da mata. Ambos os lugares são referidos nos relatos como antigas fazendas de escravos, e seus moradores se comunicam com a parte central do povoado através do ramal subsidiário que vai em direção à estrada rodoviária e ao povoado vizinho de Santa Rosa, sendo também utilizado por todos que entram e saem de Jamary. Os critérios de pertencimento espacial são relativos ao lugar onde se encontram os moradores de Cajual e Boa Vista quando definem seus locais de trabalho e moradia. Quando estão na sede do povoado, costumam dizer que são de Cajual e Boa Vista. Porém, quando se referem aos povoados vizinhos ou às cidades de Turiaçu e Santa Helena, consideram que são “filhos do Jamary”. A questão de saber por que definem Cajual e Boa Vista como parte do povoado de Jamary, nos levou a entrevistar alguns moradores dessas duas localidades. Formulamos perguntas dirigidas, já que tínhamos tirado nossas próprias conclusões com base em dados Jamary dos Pretos, Município de Turiaçu (MA) etnográficos. Transcrevemos a seguir um trecho de uma dessas entrevistas que consideramos significativo para a compreensão das classificações espaciais que marcam a atribuição de uma identidade e origem comum. Aqui entre os jamarizeiros, os filhos aqui desta terra de Jamary, nós localizamos Cajual e Boa Vista como nossos lugares de moradia e trabalho. Mas quando estou em Turiaçu ou em Santa Helena (sedes de municípios), sempre digo que sou de Jamary dos Pretos. Outro critério para pensar as condições de pertencimento ao povoado e que não se restringe à ocupação do seu território foi apontado pelos próprios informantes após mencionarem as famílias moradoras em Jamary e os laços de parentesco que os unem: “Todo este povo é parente, ou por nascimento ou por casamento, uma parentada só”, comentaram seu Raimundo Souza e dona Anastácia Ribeiro. Campos de atividades: agricultura e gado Os centros de roçado A expressão “centro de roçado” é por eles usada para se referir tanto aos locais de plantio, em contraposição aos lugares de moradia, quanto aos roçados familiares desenvolvidos pelos moradores de Jamary, assumindo uma conotação ou outra de acordo com o contexto. Deste modo, centro de roçado adquire um duplo significado: as áreas de plantio separadas pelo trabalho desenvolvido por um grupo familiar determinado e a fusão de todas elas numa unidade territorial comum e indivisa. Nos roçados familiares, plantam-se de forma consorciada mandioca, milho, feijão, batata, abóbora, gergelim, cará etc., e árvores frutíferas como mangueiras, cajueiros, mamoeiros e bananeiras, preservando-se palmeirais e madeiras de lei. Essas plantações comprovam a posse efetiva, pelos grupos domésticos, das terras do povoado e também a ancianidade de sua ocupação, mais do que centenária, se levarmos em conta as árvores nativas aí preservadas. São igualmente marcas da ocupação as edificações, como casas para o fabrico da farinha, 183 184 Quilombos os poços d’água existentes no povoado, os ranchos de trabalho para moradia temporária nos roçados mais distantes e as casas construídas na sede do povoado e nas localidades de Cajual e Boa Vista. Observase também o controle efetivo estabelecido sobre o território do povoado através das atividades de pesca, caça, criação de animais domésticos e gado, tecelagem de fibras vegetais para cestos e outros objetos de uso doméstico e pessoal, as quais implicam o manejo de recurso naturais como rios, igarapés, campos e florestas existentes no território do povoado; tudo isso representa a história acumulada ao longo de gerações. Nossos informantes levaram-nos inicialmente a um dos centros de roçado mais próximos da sede do povoado e situado, conforme disseram, “para os lados da antiga fazenda de escravos Santo Antônio”. Assim, atravessamos o povoado em direção à localidade conhecida como Campina da Guilhermina. Durante nossa caminhada pela mata, explicaram-nos a escolha do local onde plantam seus roçados: Cada um tem seu roçado no lugar em que seus parentes já fizeram seus roçados, ou perto. Meus filhos Nonato e Paulo, por exemplo, têm seus roçados perto do meu e de Anastácia. Assim é: cada um fica na área que era do pai, do tio ou dos avós. Quando quer mudar, procura um lugar não muito longe para trabalhar, não muito longe porque é sempre bom ficar perto da família e dos amigos, um pode ajudar o outro. Mas, assim, toda terra por aqui é livre para o povo, é tudo coletivo. Essa lógica da ocupação do espaço através dos laços de parentesco, típica da organização familiar do trabalho, remonta aos tempos da escravidão e dos quilombos ou mocambos. Depois de explicarem a divisão familiar das áreas de plantio do povoado, nossos acompanhantes nos levaram até o roçado do sr. João Mafra, todo protegido por um cercado. Como disse um dos informantes ao explicar essa prática e a modalidade comum de manejo ecológico: O João cerca por causa dos animais que a gente cria de solta, os porcos, o gado; assim, cercamos as roças mais próximas do povoado para evitar prejuízos. Aqui era área da antiga fazenda Santo Antônio; agora é só roça do pessoal do povoado. Na roça a Jamary dos Pretos, Município de Turiaçu (MA) gente planta a mandioca, nossa planta principal, o milho, o gergelim, a banana, o carrapato [mamona], a cana, tudo junto. A gente planta, vai tratando com cuidado e tira na medida da precisão. Plantamos também o feijão, o abacaxi, o cará, a abóbora, as verduras e procuramos não derrubar os paus grandes, a gente não gosta de derrubar as árvores grandes ou os pés de coco e palha, como aquela sapucaia ali. Fazemos assim para proteger a natureza que nos protege; assim a gente ajuda a mantê-la, ao deixar sempre uma reserva em volta da roça, pois aqui há muita madeira boa, a maçaranduba, o cedro, a jarana, o pau-santo, a pararaúba, a sucupira, o pau-d’arco, o jatobá. A gente quer conservar, porque tudo é nosso e de nossos filhos, só derrubamos um pau quando ele fica perigoso, ameaçando cair, ou quando há muita precisão para a construção de uma casa. Assim, aqui nós não rola madeira para vender. A criação do gado no povoado Nossos informantes destacaram também a importância da criação de gado no povoado: Bem, aqui é assim, cada um tem seu gadinho, suas reses, há os que têm uma ou duas, há os que têm 10 ou 15, e há alguns que têm até 100 cabeças, como é o caso do meu cunhado, o Manuelzinho Ribeiro. Seu José Pessoa tem 15, eu, Raimundo Sousa, tenho dez, seu Almir Ribeiro também já teve gado, foi matando, vendendo e hoje não tem mais, como é o caso do compadre Raimundão, que nunca teve gado e não quer ter, o compadre só gosta mesmo é da lavoura. Agora, o gado é criado todo junto lá no Campinho, lá para os lados do rio Caxias, onde no verão tem mais água e o gado é todo reunido com os moradores do povoado cuidando como vaqueiros. O gado só retorna dos campos naturais no inverno, quando aqui perto da sede fica cheio de água, chove muito. Não dá nem para acreditar, mas o valão aqui na frente da minha casa, que agora tá seco, servindo de caminho, vira um igarapé, dá até para pescar. Aí a gente maneja o gado pelos campos em volta do povoado ou na parte da entrada 185 186 Quilombos do povoado, em Queimadas, que é campo, pois assim a gente pode olhar melhor o gado num período muito penoso para nossos deslocamentos por aí. Nesse tempo de inverno e das chuvas, os campos naturais próximos ao rio Caxias, como em Campinho, fica tudo inundado, e fica difícil para os vaqueiros cuidar de todo o gado nessas paragens. Indagamos como fazem para distinguir o gado que pertence a cada um dos moradores, já que o gado fica todo reunido. Como no caso dos roçados, a criação de gado é baseada na divisão do trabalho familiar: Olha, não é díficil; cada família tem o seu ferro, isto é, o pai de família. A gente marca; o meu, por exemplo, Raimundo Sousa, tem as letras RS; quem vê esta marca sabe que aquele gado é meu, cada um faz sua marca de acordo com as iniciais da assinatura. Assim o rebanho fica todo junto, mas a gente sempre sabe de quem é cada rês, como também sabem os vaqueiros que são os moradores combinados para ficar de olho no gado. Perguntamos como tratavam com os vaqueiros para cuidar do gado, se eles são sempre de Jamary ou de fora. Respondeu-nos seu José Pessoa: Nossos vaqueiros são tudo de Jamary mesmo, a gente trata com aqueles companheiros que gostam mais de tratar com o gado. Eu, por exemplo, tratei com o compadre Manuelzinho Ribeiro, morador do povoado, que é vaqueiro por gosto e tem gado também. Ele gosta de lidar com o gado, mais do que com a roça; nestes casos a gente conversa com o companheiro e faz um acordo para dar, dependendo do número de reses que ele vai cuidar, um bezerro por ano, ou um tanto de farinha, ou então quando se vende um boi a gente dá uma ‘ponta’ [parte do valor da venda], tudo depende do trato entre os companheiros. E quando é que se resolve abater e vender uma rês? Dessa vez a resposta vem de Josevaldo Oliveira: No Jamary a gente faz negócio com o nosso próprio pessoal, daqui mesmo, quando um animal quebra uma perna e tem que Jamary dos Pretos, Município de Turiaçu (MA) ser sacrificado, o dono negocia a carne com o povo. E o gado aqui não some ou é roubado, como dizem aí fora. Isso acontece mais com esses grandes fazendeiros, que têm tanto gado que já nem podem contar. Mas aqui isso não acontece, é tudo amigo, companheiro e parente. Explicaram-nos então a diferença entre a criação de seu gado, nos campos naturais, e o dos fazendeiros, em pastos feitos nas fazendas: Os campos naturais onde criamos o gado são os campos da natureza, ninguém plantou, sendo posto aí por Deus, são diferentes destes campos aí fora, no ramal da estrada entre Bacabeiras e Turiaçu. Aquilo ali era tudo mata, posta abaixo, rolando madeira boa de lei, e a mata virou campo, plantaram capim em tudo e cercaram no arame, o povo não pode mais entrar, só o senhor, o latifundiário. O campo natural é diferente, é livre, aberto a todos, cada um usando e respeitando os outros, são nossos campos adotivos. Que é o mesmo que campos comuns, adotivo porque é nosso, nós adotamos ele como pegamos um filho para criar. Lá se cria o gado à solta e outros animais, todos soltos e livres, cada um sabendo o que é seu e respeitoso do que é do outro; e o regulamento é bem diferente deste povo aí fora e desses fazendeiros de Turiaçu, que tempos atrás invadiram os campos naturais do Jamary e de outros povoados com aquele gado búfalo, bicho bravo, trazido, dizem, lá da ilha de Marajó. Aquilo foi ruim, eles não respeitavam nada. É um gado difícil de trato, suja a água, afastando o peixe, corre atrás do povo para machucar, entra na roça para destruir, eu mesmo tive parte da minha roça derrubada nesses tempos por esses búfalos. Tinha um bananal bonito, ali em Boa Vista, banana roxa com cada cacho que vou lhe dizer; o gado búfalo entrou e derrubou tudo, foi um tempo muito difícil aqui para nós. Ainda sobre o tipo de gado criado em Jamary e o cálculo econômico desse tipo de atividade, outro entrevistado esclareceu-nos: O gado criado no Jamary é do tipo crioulo, nativo, diferente dos criados nas fazendas por aí, que é o tal do gado nelore e búfalo, que 187 188 Quilombos se abate para a venda da carne. Nós aqui criamos o gado mais para o consumo, inclusive para obter leite para as crianças. A gente cria o gado para ter carne e leite quando precisar, é um recurso nosso para os momentos difíceis, como uma doença, uma colheita ruim; serve também para comemorar o casamento de um filho, o nascimento de um neto, é assim nossa poupança, como dizem. O gado representa assim uma forma de acumulação de recursos obtidos nas esferas da produção do roçado e da criação doméstica de aves e suínos, sendo comum, por exemplo, a aquisição de um bezerro em troca da produção excedente do roçado familiar, ou a compra de uma rês com a venda de alguns porcos. Como disse seu Raimundo Sousa: Eu, por exemplo, quando um dos porcos está gordo e decido vender, com o dinheiro apurado já compro em acordo com Anastácia [sua mulher] um bezerro ou uma rês nova, que decidimos vai ficar no meu rebanho para o meu filho Paulo, quando ele precisar ou quando se casar, assim é o costume daqui. A descrição dialógica do conflito A situação de conflito estabeleceu-se em meados dos anos 1970, com as tentativas de invasão das terras do povoado por fazendeiros de Turiaçu e os grandes empreendimentos agropecuários, com graves ameaças aos seu moradores. Esses eventos assumem até hoje um aspecto dramático para os moradores do povoado e foram contados na presença da comunidade inteira reunida por ocasião de nosso trabalho de campo etnográfico. Sobre os mecanismos da grilagem: Agora o nosso problema aqui são essas pessoas de fora que vêm chegando depois da construção da estrada rodoviária. Eles pedem licença para se estabelecer num terreno por aqui, porque não têm para onde ir. A gente aceita porque é cristão, sabe que o povo sofre por aí, pela questão da terra, sem terra para plantar, e acolhe o compa- Jamary dos Pretos, Município de Turiaçu (MA) nheiro de fora. Passa um ou dois anos, aí eles já resolvem ir embora e já querem vender a plantação, a casa, a terra não, porque não é deles, e sim de todo o povo do povoado. Às vezes querem também vender a terra com tantos hectares cadastrados às escondidas de nós lá pelo Incra. Assim é que tem acontecido aí em roda nos povoados vizinhos. Aqui já tentaram, mas nós não damos essas liberdades a esses sujeitos. Aqui só na beira, na nossa fronteira da área é que estão querendo invadir, fazer a grilagem, como no caso deste sujeito Miguel, que diz ter comprado 100 hectares de terra para lá do rio Caxias. Foi no Incra e com auxílio desses fiscais cadastrou 300 hectares, que logo vendeu a frente para a tal da doutora Jucelina, lá de Santa Helena, e para o sr. Silvério, também da cidade de Santa Helena, ambos fazendeiros por lá, assim é que vem o conflito. É tudo [os fazendeiros] igual àquele projeto Ceres, cercando a área com arame para a criação de gado, a gente nunca sabe, podem querer invadir nossa terra, pois dizem que assim fizeram por outros povoados, passando a máquina por cima das casas. Perguntamos a nossos interlocutores o que é o projeto Ceres: É a nossa maior ameaça, que continua a existir todo este tempo. Eles são confrontantes com nossos limites junto ao fundo, no rio Caxias, e dizem que vão passar para cá. Possuem uma gleba grande e botaram todo o mundo que morava nos povoados do outro lado do rio Caxias para fora à força. No começo diziam que iam plantar seringa, mas parece que a coisa fracassou. Agora criam gado e rolam madeira sem parar, tem serraria lá dentro, empregam muita gente de fora. Há muito conflito ainda por lá, principalmente com os povoados mais próximos. Faz um pouco de tempo mataram por lá o delegado sindical do povoado de Juca, que fica bem próximo da área deles, nos limites. Era o companheiro Dico Miolo, que vinha há tempo sendo ameaçado pelo pessoal da Ceres, os vaqueiros deles. A gente tem que ficar de olho, se não viram para o nosso lado querendo nos botar daqui para fora de nossas terras. Um dos dirigentes da Associação dos Moradores complementou esse depoimento: 189 190 Quilombos Este pessoal aí por fora ambiciona muito nossa terra aqui em Jamary, como os grandes de Turiaçu. Aqui são ao todo 13 mil hectares, de acordo com o Incra e com nosso entendimento. Há algum tempo, lá no final de 1977, essas famílias de poder, como os Rabelos e Fonseca, ajudadas pelos Alves e Cavalcante, todas de Turiaçu, que nunca viveram na terra aqui, nesta terra dos pretos do Jamary, como nós, que temos nossas raízes, isto é, dos nossos bisavós, se disseram donos do Jamary, da gleba toda. Fizeram ação com o juiz, cadastro no Incra e mapa, tudo. Tudo sem que soubéssemos, e olha que eles nunca trabalharam para cá, e olha que eles têm terra que não acaba mais, como a fazenda Santa Fé, São Roque. Mas eles têm é muita ambição de dominar o povo, dominando a terra, chegaram até conseguir ordem para expulsar o povo daqui, acusando que éramos estrangeiros. Será porque somos pretos, da África, mas viemos obrigados, e se trabalhamos nessa terra, ela é nossa, terra em que foi derramado nosso sangue, terra que acolheu nossos mortos, que estão todos lá no nosso cemitério na Boa Vista, terra que herdamos e queremos deixar para nossos filhos. Só nos tiram daqui para baixo da terra, dessa terra do Jamary dos Pretos. Sobre a extensão do conflito e a ameaça que representou para a sobrevivência do povoado: A situação ainda era perigosa, em toda nossa volta, nos outros povoados, o povo foi invadido, como em Capoeira de Gado, no Brito Mutá. Aqui fomos ameaçados de morte, falavam então que os pagantes da empreitada eram o Valdenor e o Manuel Rabelo, o Zequinha Alves e o Zezito Cavalcante, todos com interesse em entrar para as terras do Jamary como donos e senhores. A coisa ficou muito perigosa, o pistoleiro rodando pelo povoado, indagando, assuntando, ameaçando o povo, queria saber quem era cada um de nós, onde nos achava. Naqueles tempos andávamos com cuidado por aqui, podia ter tocaia nos esperando, os homens estavam atrás de nós. Chegou ao ponto deles nos procurarem em casa, eu lá na Boa Vista, e seu Raimundo Sousa, que ficou sem saber tocaiado dentro de sua própria casa, com aquele Jamary dos Pretos, Município de Turiaçu (MA) pistoleiro Calango, que era o chefe, e mais alguns cabras amigos da morte ali fora, esperando para matar, matar para receber umas cabeças de búfalo, veja só como a vida de um homem vale pouco nesta terra. Os domínios do parentesco A posse da terra no povoado de Jamary, renovada de geração a geração, torna-se hereditária através de uma genealogia que remonta ao tempo da escravidão e dos quilombos ou mocambos. Preservada oralmente na memória dos moradores de Jamary, atravessa gerações, de modo a apresentar todos os habitantes do povoado como descendentes de um bisavô ou trisavô escravo e mocambeiro, o que permite agrupá-los pelo menos em quatro linhas de descendência direta: os Mafras, os Ribeiros, os Sousas e os Soares. Esses quatro grupos de parentesco incluem diferentes membros de uma genealogia traçada a partir de ancestrais comuns. Também são identificadas, por meio da memória, suas localidades de procedência, com menção às antigas fazendas escravocratas das quais eram considerados originários, como as fazendas de Santana, Cajual, Bom Jesus, Santa Cruz, Tapera de Sinhadona e Santo Antônio. Os nomes civis dos moradores de Jamary referem-se a um parentesco adotivo, na medida em que incorporam os nomes das famílias de seus antigos senhores. Essa referência aos nomes de antigos senhores escravocratas e os “laços artificiais” de parentesco estabelecidos com eles a partir de um ancestral comum se transmitem de pai para filho e podem ser considerados uma “classe de parentesco” reconhecida para efeito de análise genealógica em antropologia social.6 Mas as genealogias assim obtidas e as linhas de descendência traçadas a partir de um ancestral comum, que herda o nome dos se6 O “parentesco artificial”, transmitido de pai para filho, constitui uma das quatro classes de parentesco assinaladas no uso do método genealógico por Rivers (ver Oliveira, 1991:58). 191 192 Quilombos nhores escravocratas, revela também pontos de entrecruzamento, o que faz com que os moradores de Jamary pertençam a mais de um tronco familiar, dependendo dos ascendentes paternos e maternos. Esses pontos de entrecruzamento estabelecidos pelas linhas de descendência podem ser um equivalente metafórico no nível das relações de parentesco, da representação que os moradores do povoado fazem de Jamary como espaço de entrecruzamento e ponto de convergência aonde se dirigiram seus ancestrais fugidos da escravidão — o que, desse ponto de vista, caracteriza Jamary como quilombo. A memória social O povoado de Jamary, de acordo com algumas versões, é formado por descendentes de famílias de escravos originários de antigas fazendas da região, o que parece condizer com o critério de convergência dos escravos fugidos de diferentes propriedades que caracteriza o quilombo. Os moradores do povoado lembram-se de algumas das fazendas que cercavam Jamary, como a Cajual, a Santana, a Tapera de Sinhadona ou Santa Luzia, a Santa Cruz e a Santa Barbara. Em seus interstícios existiam muitos lugares de moradia antigos, moradia dos pretos fugidos, como o Jamary, o Centro das Mangueiras e o Bonisário, que hoje são parte de Jamary. Referem-se ainda a esses lugares como antigas “colônias dos pretos velhos”. Realizamos muitas entrevistas com os moradores mais idosos do povoado, depositários, como eles próprios são considerados, da história dos pretos do Jamary. Assim, fomos levados a conhecer o sr. Estanislau Mafra, apontado como uma das pessoas mais velhas do povoado. Em sua casa, situada na parte central do povoado, encontramos a porta entreaberta. Notamos que alguém muito lentamente se movimentava com algum esforço pela sala e pudemos observar a chegada, do interior da casa, de um senhor, apoiado em uma bengala, que caminhava lentamente em direção a uma cadeira de palha. Segun- Jamary dos Pretos, Município de Turiaçu (MA) do nossos informantes, seu Estanislau tinha mais de 100 anos e conhecia a história dos “pretos velhos” de antes e depois da escravidão, histórias ouvidas e vividas por seus pais. Transcrevemos a seguir um trecho do seu depoimento: Nasci e me criei neste lugar. Meu pai se chamava Marciano Mafra, foi escravo da fazenda Cajual; minha mãe se chamava Rita e era do Jamary mesmo, nasceu na mata. Meu pai morreu quando eu já era rapaz, ao todos éramos 13 irmãos ou 14, já não me lembro, foram todos morrendo aos poucos, restam algumas das “meninas” por aí. Meu pai morreu trabalhando na roça: um pau grande que ele derrubava para construir uma casa, deu um vento e acabou virando em cima dele, eu o carreguei até em casa para morrer. Nós vivíamos aqui no Jamary [sede do povoado] e também no Cajual, onde trabalhávamos no roçado e mantínhamos nosso rancho. No Cajual tinha muita plantação de café ainda do tempo da escravatura, pois quando chegou a liberdade os senhores abandonaram as terras e quem tomou conta das plantações foram os pretos. Lá no Cajual eu era rapaz quando houve um ataque dos caboclos da mata. “Indios?” Perguntamos. “Sim, índios brabos, eles mataram quatro pessoas, inclusive um irmão meu, nós conseguimos nos esconder na mata e depois, armados, fomos atrás deles, encontramos alguns...” Nesse momento o sr. Estanislau fez silêncio e virou-se para olhar um quadro com a imagem de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro pendurada em sua sala. Com a ajuda de um dos informantes, seu Estanislau voltou a contar-nos a sua história: Após o ataque dos caboclos da mata, abandonamos a moradia temporária no Cajual, fixando-nos de vez aqui no povoado do Jamary, que já estava formado de muito, que havia muita gente morando neste lugar velho, muito velho. Nesta época, segundo explicou, continuaram a trabalhar no Cajual, reunidos em grupos de famílias que se revezavam entre o trabalho no roçado e a vigília na mata, para a defesa contra possíveis ataques. E seguiu contando: 193 194 Quilombos Vivíamos bem aqui, havia fartura de tudo, eu nunca casei, fiquei à frente da família cuidando de meus irmãos e agora vou-me despedindo da vida. Perguntamos se já tinha ouvido falar em mocambo ou em mocambeiro, como diziam outros moradores do povoado. Ele então nos olhou, pareceu ensaiar um sorriso e voltou a falar, dessa vez ainda mais baixo: Sim, meu pai cruzou muitas vezes com eles, que vinham até as fazendas buscar gente [outros escravos, para fugir para o mocambo] e coisas como sal, ferramentas, pólvora e outros gêneros que não conseguiam tirar da mata. Eles vinham sempre à noite e pediam coisas que meu pai ajudava a carregar. A essa altura do relato, o sr. Estanislau parou de falar e, como se concentrasse em busca de alguma antiga lembrança, disse num tom de voz ainda mais baixo: “Zoio-olhou-boca-calou, Zoiou-Mocambaiou”. Ante a nossa perplexidade, explicou-nos que assim falavam os mocambeiros para seu pai, e assim seu pai lhe falara. Isso se passava, segundo ele, ainda nos tempos da escravatura: “Os pretos não gostavam de ficar sujeito e havia senhores maus como aquele da Santo Antônio [fazenda], de nome Licurgo, como contava seu pai”. Tais palavras: eram para avisar que fosse respeitado o silêncio, fazendo-se segredo sobre o que foi visto para evitar a perseguição dos brancos, dos senhores e de seus soldados. Outra entrevista importante para o resgate da memória social do grupo foi realizada, por indicação de nossas informantes, com dona Severa Mafra, irmã de seu Estanislau, uma senhora de 96 anos que andava encurvada, apoiando-se numa bengala. Tinha assim uma deformação física muito comum às quebradeiras de coco de babaçu. De fato, dona Severa, como ficamos sabendo, fora quebradeira de coco durante todo o longo ciclo extrativista desse no povoado. A quebra do babaçu para fins comerciais, segundo nossos informantes, teve início no povoado na década de 1930, mas a produção diminuiu no começo dos anos 1980, pois os comerciantes de Turiaçu, que eram Jamary dos Pretos, Município de Turiaçu (MA) os compradores do produto no povoado, reduziram a demanda e, como disse dona Severa, “o povo começou a desanimar de lidar com o coco”. Por isso os mais jovens preferiram dedicar-se ao roçado e às criações, e hoje só se quebra babaçu no povoado para consumo familiar, sendo essa uma tarefa das mulheres mais jovens e crianças. Dona Severa traçou sua filiação, dizendo que seus pais foram Marciano Mafra e Rita Soares. Em suas palavras: Meu pai vinha da fazenda Cajual, dos tempos da escravatura, era caçador para os brancos, vivia metido na mata, meio liberto para poder levar todo tipo de caça para os brancos, que o respeitavam. Já sua mãe era filha dali mesmo, do Jamary. Quando ela era criança, a família vivia entre o povoado de Jamary e as terras do Cajual, onde havia um cafezal plantado pelo seu pai ainda nos tempos da escravatura. Veio a liberdade e ele ficou cuidando da plantação. Explicou que seu pai se considerava herdeiro das terras do Cajual, tendo herdado também a assinatura (sobrenome) Mafra dos antigos senhores. Lembrou-se ainda do mesmo episódio contado por seu irmão, dizendo que certa manhã, quando ela era ainda menina e ajudava sua mãe a colher café, estando todos eles no Cajual trabalhando no cafezal de seu pai, chegaram os compadres da mata atacando as pessoas e querendo levar-lhes as coisas. Ela se recorda que sua mãe a carregou junto com os irmãos para dentro da mata, sendo um deles morto pelas flechas lançadas pelos “compadres da mata”. Depois disso, seus pais resolveram ficar de vez em Jamary, onde havia mais gente morando e era mais seguro naqueles tempos. No seu depoimento, como no de seu irmão, os nomes das antigas fazendas foram associados ao tempo da escravidão em contraposição ao Jamary, considerado um povoado que se formou a partir de um antigo lugar de moradia dos pretos livres. Disse-nos ela: Seu moço, já trabalhei muito de roça, botava tudo, arroz, algodão, milho, gergelim, carrapato, batata, cará. Quebrei muito coco de babaçu, que era vendido para um barraqueiro do povoado que já morreu e que comprava o coco quebrado para um patrão de Turiaçu. 195 196 Quilombos O coco quebrado de babaçu, segundo nos explicou, era levado no lombo de animais até o porto de Gurita, onde era embarcado em canoas a remo para o porto de Turiaçu ou Santa Helena. Até pouco tempo atrás ela morava na localidade dentro da sede do povoado conhecida pelos moradores como Arrudá, onde, enquanto pôde e a idade permitiu, plantou muito babaçu, todas plantas suas, para comer e fazer óleo. Perguntamos-lhe por que o babaçu era sua planta, ao que nos respondeu, sorrindo, se não sabíamos que “planta era tudo que a gente semeia e colhe, e mato era produto da natureza, aquilo que estava na natureza, como as palmeiras e coqueirais e os paus grandes de madeira”. Passamos então a falar das festas. Dona Severa abriu um sorriso e foi dizendo: É verdade eu era de festa, fui dançadeira de tambor, daquelas que dançavam tocando um tamborete pequeno amarrado na cintura, como era antigamente. Dancei muita rabeca, quadrilha, ronca, mas nada disso existe mais do jeito que era. Já dancei o jurado, que a gente dançava sozinha estalando os dedos, havia muitas festas naqueles tempos, as famílias faziam festa para seu santo, a festa da padroeira durava quatro, cinco dias, e era tudo de graça, não como hoje, que temos que ter dinheiro, se não não se come, não se bebe, não se dança, não há dinheiro que baste. As crianças não eram como hoje, não podiam ir à festa, tinham que brincar em separado, a gente matava boi, socava muito arroz, e cada um trazia sua farinha, a garapa era dada pelo juiz da festa, que sabia quem podia beber e quanto. Toquei muita caixa [tambor], muito tamborete, nas festas antigas, a festa do dia de São Benedito, a festa do Divino, e a festa para Nossa Senhora... Hoje tudo isto está fraco. Após a entrevista com dona Severa Mafra, fomos conduzidos por nossos informantes à casa da sra. Raimunda Ribeiro, apresentada como tia de seu Raimundo Sousa, relação de parentesco estabelecida pelo fato de ser ela tia da mulher dele, dona Anastácia Ribeiro. Dona Raimunda tinha uns 88 anos, segundo ela mesma afirmou, e era filha de Mariano Ribeiro, um “preto velho” do tempo da escravatura que morrera, segundo calculavam nossos informantes, com a avançada idade de 100 anos. Em seu depoimento, dona Raimunda Jamary dos Pretos, Município de Turiaçu (MA) começou afirmando que já “juquirou” [trabalhar duro] na roça, primeiro para seu pai e depois para seus maridos, plantou muito arroz, mandioca, milho, batata, cará, fava, feijão de coivara e carrapato, e fazia panelas de barro, arte que aprendera com a Chica Velha, que fabricava essas panelas no povoado; segundo ela, as melhores para fazer comida. Hoje só a Teodora Mafra faz essas panelas, comentou. Nas palavras de dona Raimunda, eram bons aqueles tempos, quando havia as trabalhadeiras de algodão, as tiradeiras de milho, as quebradeiras de babaçu, e ela tinha sido tudo isso. Havia muito trabalho e comida farta, seu pai era matador de veado, caçador, plantava-se muito algodão, que ia quase todo para fora, dos fios ali só se faziam as redes, novembro e dezembro era sempre tempo de “tiração” de milho e “apanhação” de algodão. De repente, dona Raimunda pediu licença e saiu da sala, voltando com uma cabaça cheia de grãos de gergelim, que nos mostrou como um produto também muito apanhado antigamente, do qual se fazia um óleo considerado melhor do que o de soja fabricado hoje, e que também era bom para se comer no arroz. Perguntamos-lhe então se conhecia alguma história dos tempos da escravidão ou dos mocambos. Ela disse que seu pai contava muitas, mas que agora só se lembrava de uma história contada por sua mãe, ocorrida lá na Tapera de Sinhadona, antiga fazenda Santa Luzia. A senhora dessa fazenda, Porcidônia, não gostava que as escravas tivessem muitos filhos, pois estes atrapalhavam as tarefas que elas faziam. Por isso, quando nascia uma criança, ela esperava a mãe sair para trabalhar na roça, dirigia-se até a casa dos pretos e matava o recém-nascido, asfixiando-o com um pano. Fazia essa crueldade para que as escravas não atrapalhassem o trabalho cuidando dos próprios filhos. Era um tempo ruim... os senhores eram cruéis com os pretos escravos... acho que por isso nós fugia. Em casa de nosso anfitrião, conhecemos seu João Freitas, que se identificou como “jamarizeiro”, morador nativo do povoado do Jamary, ali nascido e criado, parente de Raimundo Sousa e Henrique Ribeiro, vice-presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Turiaçu, também ali presente. Seu João dizia saber muito poucas histó- 197 198 Quilombos rias antigas sobre o povoado, pois seu pai não costumava contá-las. Quem mais tinha lembranças dos tempos antigos era uma tia de seu pai, Severiana Mafra, que fora escrava da fazenda Cajual e falecera com mais de 110 anos, segundo nosso informante. Seu João, que disse ter uns 70 anos, contou que ainda garoto ouvira algumas histórias contadas pelos “pretões antigos” que conhecera em Jamary, como sua tia Severiana, o Benedito Marinho, o Chico Tanguá e também Venâncio Coelho Mafra, todos ex-escravos que viveram e morreram em Jamary. Perguntado onde era o Jamary, o que chamava como terra do Jamary, respondeu: “Jamary é a sede do nosso povoado, que é formado por várias localidades, como Boa Vista, o Cajual e os centros de roçado” (que recebiam diferentes denominações conforme as famílias que neles trabalhavam). “Tudo é o Jamarizão, nosso centro nesta terra.” Voltando às histórias que os pretos velhos contavam, relatou que a senhora da fazenda Cajual era Antônia Mafra e que havia ainda outros senhores, de cujos nomes não se lembrava. Finda a escravatura, contou, os escravos se espalharam por toda a região do Jamary, que era já um lugar de moradia dos pretos fugidos. Alguns anos depois, seu pai resolveu se estabelecer mais para dentro da mata, como era prática dos escravos fugidos, muito embora nesse período falassem de ataques de índios, o que vinha causando certo receio nos moradores que residiam próximo à atual sede do povoado e trabalhavam nos seus centros de roçado. Mas seu pai não ligava, comentou: era meio corajoso e levou a gente para morar lá dentro do mato, num lugar conhecido como igarapé do Mucura. Lembro-me que nesse local encontramos muitos restos de coisas, que pareciam indicar a existência de um antigo lugar de moradia, mocambo, como diziam. Havia esteios de casa, que usamos para erguer a nossa, ruínas de forno de barro e muitas plantas já cultivadas, tomadas pelo matagal, além de cacos de ferramentas antigas e até correntes. Perguntamos-lhe se o igarapé do Mucura era lugar de alguma antiga fazenda. Ele respondeu: Não, senhor; isto lá já era do mocambo. Igual lá por Bonisário e Centro das Mangueiras, que todos conhecem como lugar velho Jamary dos Pretos, Município de Turiaçu (MA) de preto. Papai me contava que eles [os escravos] fugiam porque não queriam ficar sujeitos aos senhores. Faziam então aquele centro dentro da mata, bem escondido, e ali se refugiavam. Indagamos-lhe então a que distância esse local conhecido como igarapé do Mucura ficava da sede do povoado: “Cerca de duas horas de boa caminhada”. Quem era mocambeiro naquela época? Ora, seu moço, mocambeiro era cristão mesmo, né, mas corriam, se escondendo, buscando sua liberdade para não ficar sujeito. Eu levava minha família, aquele a dele, o outro a dele e nós íamos fazer nosso centro escondido. Os mocambeiros acertavam entre si quem podia ir e quem deveria ficar, assim me contava os velhos, que sempre alguns deles vinham do mocambo à noite, buscar, com os que ficavam nas fazendas porque queriam ou porque tinham medo de ir, os gêneros que muito precisavam e que não conseguiam produzir sozinhos, como o sal, a pólvora, ferramentas, essas coisas que na mata não tinha, e voltavam de novo a se esconder. Os mocambeiros trabalhavam e moravam escondido, para que os senhores não perseguissem. Quem ficava na fazenda como escravo sabia e ajudava os irmãos que tinham ido pra mata, até conseguir também se refugiar no lugar de moradia dos pretos livres, assim é que nasceu nossa terra. Outro depoimento importante nos foi dado pelo sr. Sebastião Soares, com cerca de 75 anos, morador de Boa Vista em seu centro de roçado na localidade de nome Narciso Filho (no Cajual). Conversou conosco em seu “rancho de trabalho”, junto à família: mulher, filhos, sobrinhos e netos. Enquanto tirava palha para usar na cobertura de seu rancho (serviço que deve ser feito antes do período da chuva), disse-nos que toda aquela terra já fora “muito fechada, era mata alta para todos os lados, Santa Rosa não existia naquele lugar. A estrada é coisa recente aqui para nós. A gente, quando tinha que sair, ia por aí passando pelos povoados por trilhas e varações na floresta, até o porto de Gurita”. Era tempo de muita caça, e seu pai trabalhara muito, primeiro como escravo e depois como homem livre. A mata era difícil, mas não tínhamos problemas de terra como hoje em dia. O problema mesmo, que eu me lembro do meu tempo de 199 200 Quilombos rapaz, eram os índios. Sim, havia muitos índios, lá onde é hoje Santa Rosa já foi uma aldeia, a gente vivia na luta com eles, havia até caçadores de índios, e os índios eram caçadores de pretos. Alguns eram índios tembé, e tinha também aqueles brabos, os urubus. Sim, havia muita luta e medo de todos os lados desta terra, só lá em Jamary era mais tranqüilo, porque os caboclos não tinham coragem de invadir o povoado do pretos, porque já era muita gente por lá para lutar. E em mocambo, o senhor já ouviu falar? Demais. Meu pai foi do mocambo, ia e voltava, isto antes da liberdade chegar, os pretos faziam suas rocinhas no meio da mata, havia brancos e índios que os caçavam, e eles lutavam para ficar na mata, é história triste, de muito sangue. Eu, menino ainda, encontrava lá para dentro da mata, quando meu pai me levava para ensinar a caçar, os mocambos velhos, papai falava: capoeira de mocambeiro, era tudo pequeno, cercado pela mata alta, para não chamar a atenção dos homens que vinham caçá-los. Com a liberdade, eles aos poucos voltaram e foram ficando por aí mas, como meu pai dizia, sempre desconfiados de qualquer homem branco ou índio que chegasse. Manifestações culturais Os festejos da padroeira Em Jamary celebra-se no dia 31 de dezembro a festa comemorativa de Nossa Senhora das Graças, padroeira do povoado. Todos são unânimes em descrever a grandeza dessa festa, que dura até quatro dias, vindo gente de todos os povoados próximos, inclusive parentes radicados em Turiaçu e Santa Helena e familiares que se mudaram para a capital do estado, São Luís, ou para outras capitais, como Belém do Pará. A festa é, segundo eles, a maior de todos os povoados de Turiaçu. Ao final de cada comemoração, iniciam-se os preparativos para o ano seguinte com a escolha dos encarregados do próximo festejo. O Jamary dos Pretos, Município de Turiaçu (MA) principal responsável é o chamado “juiz da festa”, ajudado pelos “mordomos”, incumbidos de recolher as oferendas à padroeira e o pagamento das promessas, além de definir cota das contribuições para os festejos. Na festa da padroeira há novenas e uma procissão com a imagem da santa. Existe também o lado profano da comemoração: ergue-se um mastro enfeitado com oferendas e presentes, e prepara-se uma mesa com comidas e bebidas para o juiz e seus mordomos. Os bailes seguem noite adentro durante os três dias de festejos. Apresentam-se cantores, tocadores e dançadeiras do tambor-de-criola. No mastro enfeitado, erguido no primeiro dia da festa, tremula uma bandeira com a figura de uma pomba. Qualquer um pode retirar uma das oferendas presas no mastro, mas ao fazê-lo é detido pelos mordomos e obrigado a pagar certa quantia em troca da liberdade. Os participantes se divertem muito com isso, e o dinheiro apurado se destina ao pagamento dos gastos, guardando-se o que sobra para as próximas festas. Devido à grande afluência nos últimos anos, substituíram-se as mesas de comidas e bebidas por barraquinhas de venda. Mas para os juízes da festa continua valendo a obrigação de oferecer a todos um grande almoço. Comentaram-se também outras mudanças. De alguns anos para cá não se celebram mais as festas promovidas por algumas famílias em honra do seu santo padroeiro, com a participação de todos os moradores do povoado. Esses festejos, patrocinados pelo “dono do santo”, eram comemorados também com um baile e uma apresentação do tambor-de-criola. O baile era animado por músicos do Jamary e de outros povoados próximos, que tocavam em troca de comida e bebida oferecidos generosamente pelo dono do santo. Hoje, segundo nossos informantes, a música da festa da padroeira, comemoração comunitária que substitui todas as outras, é tocada por aparelhagem eletrônica com alto-falantes e caixas acústicas alugadas a preços considerados elevados. Mas o tambor-de-criola continua a ser animado pelos “tocadores” do povoado. A capela do povoado de Jamary, consagrada a Nossa Senhora das Graças, é uma construção comunitária feita de estuque, barro e teto de palha trançado, mesmo material usado na edificação das suas 201 202 Quilombos moradias, tendo troncos de árvores lavrados como assentos. No centro da capela, um oratório de madeira conserva a imagem de Nossa Senhora das Graças, ladeada pelas imagens de São Lázaro e São Benedito. No mês de maio de cada ano acontece a novena de Nossa Senhora, quando as rezas são diárias, com a participação principalmente das mulheres e jovens do povoado. A maioria dos moradores do povoado declara-se católica, enquanto cerca de 10 unidades domésticas, pertencentes ao ramo familiar dos Mafras, se dizem crentes. Nossas observações superficiais sobre esse assunto não permitem um enfoque mais completo. Devese, contudo, destacar que no povoado de Jamary são comuns as práticas religiosas de origem afro-brasileira, como o tambor-de-mina, muito difundido no estado do Maranhão. O tambor-de-criola O tambor-de-criola é a festa por excelência do povoado de Jamary. Suas origens, segundo os depoimentos, remontam aos terreiros das fazendas e aos territórios livres dos mocambos. Manifestação cultural comum à maioria dos povoados e comunidades negras rurais do estado do Maranhão, a festa do tambor-de-criola tem em Jamary sua expressão característica na afirmação de uma identidade étnica dominante também nos povoados de exclusividade negra no Maranhão. A organização do tambor-de-criola parece representar uma rígida divisão dos papéis sexuais entre os homens, “tocadores e cantadores do tambor”, e as mulheres, “dançadeiras do tambor”. A formação da linha dos tocadores e cantores do tambor delimita o espaço do terreiro de dança. Dispostos numa mesma direção, eles estabelecem um limite que as dançadeiras do tambor nunca podem transpor. Fora desse espaço, elas dançam e provocam os cantores do tambor a entoar mais alto e com mais cadência seu canto, dizendolhes que batem sem força ou fora do ritmo, levantando as saias diante deles, enquanto eles permanecem sentados, como se garantissem com seus corpos o traçado imaginário de uma linha contínua e fixa. As dançadeiras do tambor fazem um espetáculo à parte. A partir da linha formada pelos tocadores do tambor, abre-se uma roda re- Jamary dos Pretos, Município de Turiaçu (MA) servada exclusivamente a elas. Ali dançam ao ritmo do tambor, uma de cada vez ou todas juntas, entrando e saindo com coreografias próprias. Cada dançadeira interpreta seus passos e evolui ao ritmo do tambor, sublinhado pela cantoria em verso. Assim vão girando suas longas saias, enquanto deixam escapar gritos de provocação aos tocadores do tambor. Essas dançadeiras são em sua maioria mulheres casadas que participam da festa em companhia de seus maridos. O círculo da dança é formado com a ajuda das pessoas que assistem ao tambor e se dispõem em torno da linha dos tocadores do tambor. Essa assistência eventualmente dança ao compasso da música e acompanha os cantos sem sair, porém, de seus lugares. As dançadeiras que aguardam a vez de entrar na roda dispõem-se também em linha contraposta à dos cantores e tocadores do tambor. Em Jamary, os cantores e tocadores do tambor-de-criola formam um grupo permanente, liderado por um deles, que se apresenta em outras ocasiões além dos festejos. O líder Inácio, morador do povoado, é considerado por todos um “grande tambor”, isto é, um tocador ritmado e um cantor afinado e criativo. Seu grupo é formado por cerca de oito homens, que tocam e tiram versos em seqüência para acompanhar o ritmo da batida e o “tambor cantar certo”, como costumam dizer. Afora esses tocadores e cantores conhecidos por sua habilidade, qualquer dos homens presentes na festa pode pedir um tambor e substituir algum membro do grupo, sendo comum esse tipo de revezamento. Tanto aos cantores e tocadores do tambor quanto às dançadeiras servem-se bebidas, geralmente conhaque e aguardente, em doses controladas pelos promotores da festa. As rodadas vão-se sucedendo e é sabido que o tambor “esquenta” madrugada adentro, quando todos vão ficando cada vez mais alegres e animados. As letras e versos cantados no tambor referem-se aos lugarescomuns no imaginário do povoado: a mata e seus encantamentos, as mulheres e sua dança, a busca da liberdade, a alegria de conviver com os amigos, de cantar, dançar e viver, o trato com o gado e outras atividades do cotidiano de seus moradores. Os versos se repetem, mas também é comum o improviso na forma de um desafio de um cantor 203 204 Quilombos para outro. Nos intervalos da festa, põe-se o couro dos tambores para aquecer junto à fogueira mantida acesa enquanto houver dança. Momentaneamente desfeita, a linha divisória entre tocadores e dançadeiras só é restabelecida quando o tambor volta a bater. Durante a apresentação do tambor-de-criola de Jamary, fomos apresentados à sra. Maria Borges, moradora do Jamary há 90 anos, que associou esse festejo à Lei Áurea: Foi assim no dia da libertação. Papai contava que os pretos fizeram tambor nas fazendas, para comemorar a libertação, e cantaram se despedindo até de manhã. Quando o dia amanheceu, cadê os pretos? Caíram todos no mundo. Meu pai era menino na fazenda Cajual, meu avó foi escravo lá, os pretos com a libertação foram se espalhando por este mundo afora, encontrando seus irmãos na mata, os mocambeiros, para contar que todos estavam libertos. Considerações finais A localização de Jamary, povoado de difícil acesso e considerado relativamente “isolado” no tocante aos aspectos geográficos, possui certas características defensivas ligadas à existência de status étnicos dicotômicos relativos não só à cor — pretos e brancos —, mas também ao fato de terem sido um povo escravo, o que socialmente os desqualifica na visão de outros grupos com os quais interagem. Nessa perspectiva, portanto, encontram-se de fato integrados em um campo de forças antagônicas. A imputação das características raciais, baseadas na cor da pele, costuma ser associada ao estigma de terem sido um povo escravo e ao fato de habitarem os chamados “campos naturais”, de que fazem uso comum e exclusivo nos limites das terras do povoado. Mas o preconceito e a exclusão social desse grupo tem como contrapartida a atribuição de uma origem comum e a consciência de uma comunidade de parentesco e vizinhança, bem como de defesa do bem por eles considerado supremo, a liberdade, a partir da qual cultivam sentimentos de honra e dignidade. Jamary dos Pretos, Município de Turiaçu (MA) A segregação racial converte-se, assim, em isolamento consciente em relação ao exterior, fazendo deles uma comunidade de intercâmbio que age efetivamente na defesa de interesses e de uma vida comuns. A experiência histórica dos quilombos ou mocambos constitui patrimônio político do passado, condicionando a existência de uma comunidade política e de comunhão étnica no presente. Na medida em que possuem a lembrança transmitida através do tempo pelos seus ascendentes e a compartilham no presente etnográfico, os moradores de Jamary consideram os quilombos ou mocambos lugares de moradia dos pretos livres procedentes das fazendas de escravos da região. A interseção entre os mocambos e os escravos das fazendas na região dava-se por meio dos estreitos laços de colaboração entre os que fugiam para as matas e os que permaneciam nas fazendas como escravos, garantindo a sobrevivência dos primeiros através de um pacto de silêncio, expresso pelas palavras “zoio-olhou-boca-calou”, citadas, entre outros, por Estanislau Mafra. Este, por sua vez, as ouvira de seu pai, ex-escravo da fazenda Cajual, que hoje faz parte das terras de Jamary e antes da abolição servira também como lugar de moradia e refúgio dos que resistiram à escravidão, “lugar velho”, como dizem os moradores do povoado. O grupo de pessoas mais velhas de Jamary é depositário, portanto, das múltiplas versões sobre os mocambos e o tempo da escravidão, versões que pelo seu caráter público constituem a representação cultural que seus moradores formam de si próprios. Assim, esse grupo tornou-se um campo de observação privilegiada, e os testemunhos que daí pudemos colher assumem um caráter de ato político, trazendo a público o sentido que eles atribuem à sua existência social, marcada pela experiência histórica da escravidão e da luta pela liberdade nos quilombos ou mocambos, o que a seu ver fundamenta a posse coletiva da terra de Jamary e seu uso comum. Apesar da especificidade de seus fundamentos históricos e etnológicos, o uso comum da terra no povoado de Jamary — tal como descrito nos relatos sobre o trabalho familiar nos centros de roçado, as trocas de dia entre parentes e vizinhos, os campos naturais de uso comum onde criam gado, que representa para eles uma poupança da qual podem lançar mão em momentos críticos — pode ser 205 Quilombos 206 enquadrado nos sistemas de usufruto comum da terra na estrutura agrária brasileira.7 Tal sistema de uso comum não recebe tratamento jurídico formal nas disposições constitucionais vigentes, estando assim constantemente ameaçado por grupos sociais dominantes que procuram subtrair-lhes as terras para aumentar seus domínios particulares. No Jamary, com efeito, ocorre acirrado conflito com os interesses latifundiários de grandes criadores de gado do município de Turiaçu e de empreendimentos rurais que procuram se expandir à custa dos povoados e “terras de preto”, como no caso mencionado da disputa, a partir de meados da década de 1970, entre os moradores de Jamary e o projeto Ceres. “Isso aqui é um povoado de pretos”, disse-me um morador de Jamary, recorrendo assim à ancianidade da ocupação do território e à herança da escravidão e dos mocambos para fundamentar os direitos que possuem sobre a terra inalienável e indivisa. As relações de parentesco estabelecidas entre os moradores do povoado e sua referência à situação histórica de quilombo regulam a descendência e a herança das terras de uso comum, configurando uma situação de fato que cria direitos e garantias ao reconhecimento jurídico de propriedade da terra do povoado de Jamary. A memória coletiva refere-se igualmente à luta pela liberdade através das fugas para os quilombos ou mocambos. Estes últimos são considerados, do ponto de vista dos moradores do povoado, locais de moradia dos chamados pretos livres, que fazem parte de um conjunto formado também pelos escravos que ficavam nas fazendas e colaboravam ativamente com os fugidos, havendo assim planos de interseção organizacional entre ambos — cativos e libertos. Desse modo, a disposição espacial do povoado de Jamary dos Pretos exprime essa conjunção dos lugares de moradia concentrados na sede do povoado com as antigas fazendas de escravos fugidos incorporadas como “centros de roçado” e onde ficam hoje os chamados ranchos de trabalho. 7 Ver Almeida, 1989. Jamary dos Pretos, Município de Turiaçu (MA) O diagrama feito por um dos informantes a pedido do pesquisador projeta, em suas divisões espaciais, planos diferentes de organização social. Na representação gráfica inscrita no diagrama, o povoado de Jamary é concebido em forma de dois anéis conjugados, com um ponto de interseção correspondente à sede do povoado. Nessas duas circunferências acopladas encontra-se o terreno trabalhado ou os centros de roçado, como dizem, e os campos naturais e a mata circundante. Na parte de cima de um dos círculos estão duas localidades: Cajual e Boa Vista, cujos aglomerados de casas são bem menos extensos do que os encontrados na sede do povoado. A outra circunferência tem como limite inferior o rio Caxias. Esses dois anéis conjugados estão sempre referidos ao ponto de interseção entre eles: a sede do povoado, onde a vida comunitária se exterioriza. Aí ocorrem as manifestações culturais do povoado, como as festas religiosas, o tambor-de-criola e práticas comunitárias como o jogo de futebol dominical. É neste plano que a comunidade demonstra o seu alto grau de integração. Os centros de roçado estão localizados em ambas as circunferências e representam um plano organizacional não menos importante para os moradores do povoado. Neles se realiza o trabalho de plantio, com a troca de dias entre parentes e vizinhos. Nesse espaço se desenvolvem, portanto, as relações propriamente econômicas, que por sua vez implicam laços de reciprocidade com base no parentesco, envolvendo de fato todos os membros da comunidade. O povoado de Jamary incorpora, portanto, em seus limites espaciais e na representação que os moradores dele fazem, a herança cultural dos quilombos ou mocambos. Essa herança inscreve-se, entre outras coisas, na propriedade indivisa da terra do povoado, que pertence à coletividade dos chamados pretos do Jamary. A terra do povoado é considerada inalienável e não pertence individualmente a nenhum dos seus membros, o que a torna, desse ponto de vista, indisponível.8 8 As chamadas terras de preto compreendem os domínios que, a partir da desagregação de grandes propriedades monoculturalistas, foram doados às famílias 207 208 Quilombos A referência feita pelos moradores de Jamary ao passado histórico dos quilombos ou mocambos, bem como os laços de reciprocidade e solidariedade que os unem, cria um sentimento de participação comunitária e identidade étnica no presente. As práticas sociais e as formas culturais aqui descritas, assim como a memória social dos quilombos ou mocambos e da resistência à escravidão, permitem sustentar que a reparação das violências do passado, ora reproduzidas pelos conflitos de terra e o não reconhecimento público de seus direitos, encontra no art. 68 do ato das Disposições Transitórias da Constituição Federal Brasileira de 1988 a fundamentação legal que restitui a garantia de liberdade contra todas as formas de dominação e sujeição baseadas em concepções racistas que lhes destinem um lugar inferior na estrutura social. O cumprimento desse preceito constitucional, atribuindo-lhes a propriedade definitiva das terras de Jamary, pode assim converter a dor de uma experiência dramática do passado de um povo na posse definitiva da liberdade como um bem maior no presente, liberdade que, segundo a visão deles próprios, é a garantia da honra e da dignidade pessoal e social. Referências bibliográficas Almeida, Alfredo Wagner Berno de. Terras de preto, terras de santo e terras de índio — uso comum e conflito. Cadernos do NAEA. Belém, Ufpa (10), 1989. Assunção, Mathias Rohrig. A guerra dos bem-te-vis. A Balaiada na memória oral. São Luís, Sioge, 1988. de ex-escravos ou por elas adquiridos, com ou sem formalização jurídica. Seus descendentes permanecem nessas terras há várias gerações, sem proceder ao formal de partilha e sem delas se apoderar individualmente, gerando assim um sistema fundado por laços de consangüinidade em que sobressaem o compadrio, e as formalidades não recaem necessariamente sobre os indivíduos, pondo as famílias acima de muitas das exigências sociais. Isso leva à indivisibilidade do patrimônio dessas unidades sociais circunscritas numa base fixa, considerada comum, essencial e inalienável. Ver Almeida, 1989. Jamary dos Pretos, Município de Turiaçu (MA) Oliveira, Roberto Cardoso de. O método genealógico na pesquisa antropológica. Campinas, Unicamp, 1991. Relatório de atividades do Projeto Vida de Negro — terceira etapa. São Luís do Maranhão, ago. 1993. mimeog. Salles, Vicente. O negro do Pará sob o regime de escravidão. Rio de Janero, FGV/ Serviço de Publicações, Ufpa, 1971. Terras de preto: quebrando o mito do isolamento. Projeto Vida de Negro (PVN) da Sociedade Maranhense de Defesa dos Direitos Humanos/Centro de Cultura Negra do Maranhão, 1989. Anexo Transcrição de algumas letras do Tambor de Criola: Oi morena vamos bailar, oi morena vamos bailar... oi morena vamos bailar, em terra de boiador morena vamos bailar. Oi morena vamos bailar, ou morena vamos bailar... em terra de plantador, morena vamos bailar... em terra de tanta dor, morena vamos bailar... Oi morena vamos bailar, oi morena vamos bailar... em terra de cantador morena vamos bailar... A boca da mata cantou...cantou... boca da mata cantou...vamos lá....cantou e cantou... vamos lá...ei vamos lá...eu vou...eu vou... A boca da mata cantou...oi olhe lá...a boca da mata cantou... oi eu vou já... Os encantos da mata acordou...vamos lá, e lá.. na boca da mata que cantou....olhe lá. Cantou, cantou, cantou, boca da mata cantou, olhe lá, 209 210 Quilombos cantou, cantou, cantou, eu vou lá... Cantou a boca da mata cantou, oi ei olha a luz lá... boca da mata brilhou, olhei lá... a boca da mata cantou e vou para lá. Quem me solta que eu estou preso... quem me solta que tou preso... quem me solta que tou preso.... eu para mata me vou... quem me solta que tou preso... Vou no canto do tambor... quem me solta que tou preso... pois eu também quero me soltar... quem me solta que tou preso... Quem me solta que eu tou preso, nesta festa de tambor, quem me solta que eu tou preso, pois eu também quero ser livre para também cantar e bailar... quem me solta que tou preso... ou seu cantador... em terra de boiador, quem me solta que eu estou preso... nas correntes do senhor... quem me solta que eu tou preso... quem me solta que eu tou preso pois também quero ser livre para cantar... O tambor de Santa Maria cantou no areiar... cantou, cantou, cantou no areiar. o tambor de Santa Maria cantou no areiar... cantou, cantou, cantou no areiar... Jamary dos Pretos, Município de Turiaçu (MA) cantou, cantou, cantou no areiar... Santo Antônio cantou no areiar... o tambor de Santa Maria cantou no areiar... cantou, cantou, cantou no areiar... São Benedito cantou no areiar... O Santo Benedito cantou no areiar... No tambor de Santa Maria que cantou no areiar... cantou, cantou, cantou no areiar... A minha cabeça o tambor de Santa Maria sentou no areiar, sentou no areiar...sentou no areiar...Santa Maria sentou no areiar... ti ti ti que eu sou boieiro... ti ti ti que eu sou boieiro... ti ti ti que eu sou boieiro para louvar nossa senhora, ti ti ti que eu sou boieiro entre os cantores do tambor... ti ti ti que eu sou boieiro... ti ti ti que eu sou boeiro... do olhos de maracá... ti ti ti que eu sou boeiro...para me libertar... ti ti ti que eu sou boeiro... ti ti ti que eu sou boeiro... diga lá meu deus do céu... ti ti ti que eu sou boeiro nosso senhor pai criador... ti ti ti que eu sou boeiro em uma festa de tambor... ti ti ti que eu sou boeiro, do povoado dos pretos, por louvor... 211 CAPÍTULO 6 Furnas de Dionísio (MS) Maria de Lourdes Bandeira e Triana de Veneza Sodré e Dantas A comunidade de Furnas de Dionísio habita uma área em forma de ferradura, cercada de furnas, encravada na serra de Maracaju, a 40km da cidade de Campo Grande, capital do estado de Mato Grosso do Sul. A ocupação da área por Dionísio e seus descendentes remonta à segunda metade do século XIX. O topônimo Furnas de Dionísio é, ele próprio, registro público, documento lingüístico-histórico inconteste, socialmente aceito e consagrado na região pelo uso, de reconhecimento de que Dionísio e sua parentela ocupam essas terras legitimamente. A comunidade negra constituída por sua descendência ocupa a área permanentemente, desde o final do século passado, antes da criação do município de Jaraguari, onde se localiza. Furnas de Dionísio, desde a criação do município, figura como um povoado identificado pela população da sede, das vilas e demais povoados dos distritos como terra dos Dionísio (ou seja, como terra de sua descendência), como localidade de negros. Além de topônimo, Furnas de Dionísio é um etnônimo, porquanto identifica os negros que ali vivem como um grupo socialmente distinto de outros grupos sociais e até dos demais negros que habitam o município, a região e o país. O presente relatório histórico-antropológico foi produzido com base nos resultados de pesquisa realizada por solicitação da Fundação 214 Quilombos Palmares, objetivando a sistematização de dados históricos e antropológicos esclarecedores da comunidade negra de Furnas de Dionísio como “remanescente de quilombo”. Orientação teórico-metodológica Adotamos uma orientação teórico-metodológica que buscou combinar instrumental oferecido pela história do cotidiano e pela antropologia. Realizamos pesquisa documental no Arquivo Público Estadual e em diversos órgãos do governo de Mato Grosso do Sul, buscando dados que pudéssemos correlacionar com os dados etnográficos, no sentido de um jogo de espelho entre tempo histórico e memória oral. Desenvolvemos, em dezembro de 1997, trabalho de campo em Furnas de Dionísio na perspectiva de produzir uma etnografia densa, tal como Geertz (1978) a concebe. Tomando como suporte os conceitos de etnicidade, grupo étnico e relações interétnicas, procuramos fundamentar o reconhecimento de Furnas de Dionísio como remanescente de quilombo, demonstrando que a análise da história da comunidade, a partir de seus próprios códigos, dos códigos internos de sua cultura, permite identificar uma espacialidade diferenciada e um modo diferenciado de integração na sociedade de classe. A ocupação da terra e a produção social do espaço se fizeram em conformidade com os valores e os referenciais da tradição cultural instituída por Dionísio e sua descendência. Tendo como princípio a cooperação, a reciprocidade e o igualitarismo, a comunidade negra de Furnas de Dionísio construiu sua concepção de tempo e de espaço indissociavelmente vinculada à liberdade. Trabalhamos com histórias de vida como recurso metodológico para correlacionar tempo biográfico e tempo histórico, trajetória de indivíduos enlaçadas no destino da comunidade. O mapeamento de genealogias correlacionadas ao sistema de crença revela a construção da ancestralidade mítica como foco de produção simbólica da origem e do destino. Furnas de Dionísio (MS) Primeira narrativa. “Quem começou tudo aqui foi meu avô. Diz que ele veio de Minas no lombo de um burrico. Veio, chegou aqui, gostou do lugar, achou o lugar bom. Foi o primeiro a entrar. Aqui era tudo bruto, brabo. Não tinha vivalma. Tinha muita onça, muito perigo. Fez rancho, cortou árvore, começou tudo. Era um homem de muita coragem, de muito poder” (uma das versões da narrativa oral de origem colhida entre informantes da comunidade). Segunda narrativa. “Aproximadamente em 1890, saiu em busca de terras para viver com sua família o sr. Dionísio Vieira, que era de Minas Gerais. Conforme se conta, ele veio para o lugar que hoje se chama Furnas do Dionísio em cima de um burro. Na primeira viagem, veio apenas para reconhecer as terras; depois de requerê-las, voltou para buscar sua família e passou a partir desse momento a formar a comunidade que se tem hoje” (Silva, 1997). A autora da primeira narrativa é dona Sinhana, a mulher mais velha da comunidade, nascida em 1918. Conheceu sua avó (dona Luísa, mulher de Dionísio) ainda pequena, mas já “me entendia por gente”. Quando dona Luísa morreu, segundo dona Sinhana, já era bem velhinha. Dionísio morreu muito velho. “Onde ele morava, as mangueira já dava fruta há muito tempo.” Dona Sinhana oferece duas referências de tempo que permitem situar o nascimento de Dionísio em torno do final da década de 1850 ou início da década de 60. Quando a avó morreu, ela já se “entendia por gente”. Entender-se por gente é uma expressão corrente entre a população tradicional de zona rural da região Centro-Oeste para caracterizar o reconhecimento da criança como sujeito da memória social, na condição de fonte, de registro, de circulação e de guarda de lembranças, co-produtor da memória do grupo social a que pertence. Essa passagem da criança à condição de sujeito histórico é comumente associada à faixa etária dos três aos seis anos de idade, porquanto a idade de sete anos é representada como a idade da razão, marcando outra passagem: a passagem à condição de sujeito do livre-arbítrio, que, conseqüentemente, presta conta de seus atos. Essa idade costuma também ser simbolicamente associada à condição de maturidade biológica, tanto para inserção na unidade de produção familiar, assumindo tarefas mais leves que não impliquem grande desgaste de ener- 215 216 Quilombos gia física, quanto para inscrição no universo escolar, quando isso é possível. Levando em conta essa referência de temporalidade, a avó de dona Sinhana teria morrido em torno de 1922. A outra referência de tempo que dona Sinhana oferece em seu depoimento é que, quando Dionísio morreu, as mangueiras da casa dele já davam fruto há muito tempo. Essa referência é significativa, considerando que, quando morreu, Dionísio morava na segunda casa que ele construiu, mais próxima ao acesso mais fácil às furnas, de modo a controlar a entrada na área. As mangueiras tradicionalmente cultivadas levam anos para dar os primeiros frutos. Com essa referência metonímica de tempo, dona Sinhana busca enfatizar a idade avançada de Dionísio, estimando que, ao morrer, ele era muito mais idoso do que ela. Correlacionando as duas referências de tempo fornecidas por dona Sinhana, é possível situar o nascimento de Dionísio entre fins dos anos 1850 e início dos anos 1860. Dona Sinhana informou que sua mãe, filha de Dionísio, nasceu “aqui mesmo na Furna”. Sebastião, nascido em 1924, também informou que seu pai — filho de Dionísio — nasceu em Furnas. Sebastião recorda que, quando seu pai morreu, sua filha Maria tinha um ano de idade. Maria nasceu em 1955; portanto Abadio, pai de Sebastião, teria morrido em 1954. Sebastião lembra que, quando seu pai morreu, ele já não era mais moço, tinha uns 55 anos. Isso permite situar o nascimento de Abadio no final da década de 1890, evidenciando que o assentamento negro na área de Furnas é anterior à virada do século. Na primeira narrativa, há ainda a considerar dois importantes signos, carregados de significação: Dionísio teria vindo de Minas montado num burrico. O Arquivo Público Estadual de Mato Grosso do Sul (1993) publicou uma coletânea de cartas de liberdade, revogações, hipotecas e escrituras de compra e venda de escravos do acervo de cartórios dos municípios de Corumbá, Miranda, Nioaque e Paranaíba. A região onde se localizam as Furnas de Dionísio estava circunscrita à vila de Nossa Senhora do Carmo de Miranda. Os pesquisadores do arquivo encontraram no Cartório do 1o Oficio de Miranda 46 documentos relativos à escravidão, no período de 1877 a 1885, sendo 18 cartas de Furnas de Dionísio (MS) liberdade e 28 escrituras de compra e venda envolvendo 53 escravos. Dos 20 escravos cuja naturalidade os documentos registram, dois são africanos, nove são naturais de Minas e nove de Mato Grosso. Os documentos indicam, portanto, uma movimentação de escravos de Minas para as fazendas do sul da província de Mato Grosso. Dionísio também veio de Minas, ainda no período da escravidão. E veio montado num burrico ou num jumento, conforme variantes da narrativa de dona Sinhana. Quando São José e Nossa Senhora fugiram para o Egito, para garantir a vida e a liberdade de Jesus, Nossa Senhora também foi montada num burrico. O burrico é um signo de fuga e de liberdade na narrativa histórica cristã, e a fuga é um acontecimento significativo na vida de Jesus. Ter vindo de Minas num burrico para furnas localizadas nas proximidades de Campo Grande é um acontecimento significativo na vida de Dionísio e de seus descendentes. A narrativa mítica da vinda do ancestral é significativa em termos de fundamentos da ocupação das terras, da construção da territorialidade dos negros de Furnas. A narrativa mítica é essencialmente metafórica, como demonstram diversas abordagens teóricas do mito na antropologia. Tomando a primeira narrativa como narrativa mítica de ocupação da terra no tempo da escravidão, Minas é uma alusão metafórica de origem que, correlacionada à alusão metafórica ao burrico e à religiosidade da comunidade, remete ao sentido de fuga para a vida e a liberdade do ancestral mítico. Assis (1988), Bandeira (1988) e Siqueira (1990), entre outros, enfatizam a presença de negros livres e índios em quilombos da província de Mato Grosso. A palavra quilombo, portanto, não se refere apenas a esconderijo de escravos fugidos. Essa era a acepção dada ao termo pelos colonizadores. A palavra quilombo origina-se etimologicamente da língua africana quimbundo, em que a palavra kilombo tem, entre outros significados, de povoação, união. Na acepção dada ao termo quilombo pelos próprios negros, os sentidos de povoação negra e de união são culturalmente significativos. O fato historicamente documentado em vários quilombos de população constituída de escravos, libertos e índios confere suporte empírico à interpretação. 217 218 Quilombos Há ainda a considerar a seguinte questão: como Dionísio, vindo de Minas, viajando sozinho, teria chegado às furnas? Tendo passado por tão extensas áreas ainda não ocupadas, por que teria escolhido esse lugar para viver? De acordo com o Dicionário da língua portuguesa de Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, no Brasil (Bahia e estados vizinhos) o campo semântico da palavra furna é ampliado com os significados de lugar retirado, esquisito. Em Mato Grosso, o sentido do termo furna é semelhante ao sentido que em Goiás se dá ao termo vão: vale profundo, encravado em serra, cortado por rios ou ribeirões, córregos e riachos. Em Campo Grande, ao pedir a uma informante que me explicasse o significado de furnas, sem hesitação e didaticamente ela me ensinou: “furnas é um lugar encravado, escondido — um brocotó”. De acordo com o saber popular tradicional acerca de terras boas para morar, viver, plantar e criar, as furnas e os vãos eram tidos como lugares impróprios ao assentamento humano, por serem lugares retirados, perigosos e de difícil acesso, além de refúgio de animais ferozes. Pressupõe-se que a natureza participe do processo de produção do espaço permitindo ao homem a culturalização das áreas que ela mesma, na medida em que as teria dotado de certas características, propicia ao homem. Por outro lado, a natureza reservaria para si áreas que não devem ser tocadas, que não devem ser modificadas senão pela força da própria natureza e que devem ser respeitadas como domínio dos outros seres da ordem natural. Furnas e vãos eram, pois, vistos como lugares ermos, como fundão de sertão bruto, espaço impróprio à culturalização. Embora o saber popular classifique as terras desses lugares como costumeiramente de boa qualidade, o próprio processo de ocupação oferece evidências de que só muito recentemente começaram a ser valorizadas. E Dionísio não foi o único a considerar as furnas como lugar estratégico de ocupação negra. Em Mato Grosso do Sul existem outras comunidades negras localizadas em furnas, assim como em Goiás existem comunidades negras localizadas em vãos. Esse fato recorrente aponta para uma busca intencional, uma priorização de furnas e vãos Furnas de Dionísio (MS) como lugares apropriados à constituição de quilombos, manipulando-se o imaginário social no intuito de garantir uma relativa segurança, porquanto era evidente a resistência a embrenhar-se por aqueles lugares coletivamente representados como interditos pela natureza à ação cultural do homem. O velho Dionísio veio de Minas no lombo de um burrico em direção à serra em busca de furnas seguras para viver em liberdade, para construir uma territorialidade negra no espaço branco da sociedade escravocrata. A segunda narrativa é escrita por Osnei B. da Silva, neto de dona Sinhana, primeiro membro da comunidade de Furnas de Dionísio a concluir um curso superior (curso de licenciatura em filosofia realizado na Universidade Católica Dom Bosco — UCDB, em Campo Grande). Osnei incorpora ao seu texto os principais elementos da narrativa mítica de origem da comunidade, mas faz uma recriação mediada por valores próprios de seu tempo. Osnei escreveu seu trabalho em 1997. Atualmente, a questão da terra passa pela questão da regularização da propriedade. Tendo como referência o valor da terra como propriedade, ele constrói uma versão de origem que procura associar posse a requerimento das terras: primeiro, Dionísio veio fazer um reconhecimento das terras; depois, requereu-as e “voltou para buscar a família”. A versão de Osnei comporta uma contradição de temporalidades: Dionísio teria vindo em 1890, aproximadamente, mas só faz o requerimento das terras no início do século XX. A seqüência de eventos que Osnei apresenta — veio, reconheceu as terras, requereu-as, buscou a família e iniciou a formação da comunidade — não se sustenta. A ocupação da área de furnas foi um ato intencional de Dionísio, uma prática de ocupação que se associa à tradição de formação de quilombo e que implica uma dimensão política de inserção diferenciada no ordenamento espacial mediado pela forma grupal de acesso e usos regulados por mecanismos internos de parentesco. A história oficial faz o seguinte registro: Em 1872, chegava ao Mato Cortado, entre as colinas que abrigam hoje a capital do Estado, o mineiro José Antônio Pereira com sua 219 Quilombos 220 comitiva, que, no ano seguinte, depois de estabelecer a posse, voltou a Minas para buscar os familiares. Em 1875, de retorno, deu início ao arraial dos Pereiras, embrião da cidade. O núcleo cresceu rapidamente: em 1889 já era distrito; em 1899, município. Desenvolveu-se a ponto de sobrepujar a florescente cidade de Corumbá e de centrializar no sul o comércio e a política.1 Em 1875, o fundador de Campo Grande veio de Minas com a família e os escravos. Dionísio chega vindo de Minas, no lombo de um burrinho, aproximadamente na década seguinte. Não teria ele fugido do arraial dos Pereiras? O município em que as furnas se localizam Furnas de Dionísio fica ao sul do município de Jaraguari. Esse município possui uma área total de 2.366km2 e está situado na microrregião de Campo Grande, na área central do estado de Mato Grosso do Sul. Jaraguari faz divisa ao norte com o município de Bandeirantes; ao sul, com os municípios de Campo Grande e Ribas do Rio Pardo; a leste, com o município de Bandeirantes; e a oeste, com o município de Rochedo. Criado pela Lei no 692 de 12 de dezembro de 1953, o município é constituído de dois distritos: o distrito sede e o distrito de Bom Fim. Jaraguari, além do núcleo da sede denominado Jatobá, possui as seguintes localidades: Vila Para-Tudo, Rochedinho, Jaraguari Velho, Mansões Palomar, Boliche, Campo Verde, São Romão e Furnas de Dionísio. O processo de ocupação das terras do município é anterior à sua criação, tendo começado no final do século XIX, quando mineiros e goianos, atraídos pela mineração, se instalaram nas cabeceiras dos ribeirões Marimbondo, Jatobá e Cervo, a nordeste de Campo Grande. 1 Campestrini & Guimarães, 1991:92-3. Furnas de Dionísio (MS) Em 1910, os moradores solicitaram ao presidente do estado de Mato Grosso a concessão de uma área, com a finalidade de formação de um patrimônio denominado Senhor Divino Espírito Santo. Assim, através do Decreto no 278 de 28 de março de 1911, foi-lhes concedida uma área de 3.600ha, demarcada nas nascentes do córrego Marimbondo, no município de Campo Grande. A primeira edificação da povoação de Jaraguari foi a casa de dona Maria Praxedes, e os primeiros comerciantes a instalarem seus estabelecimentos foram Manoel Senhorinho e José Simão de Lima. Um dos fatos históricos marcantes na vida de Jaraguari foi a passagem da Coluna Prestes em 5 de julho de 1925. Esta, segundo registros, teria incendiado a agência postal criada e instalada em 1920. Por não ter apreendido a significação do gesto como uma contestação contra o governo, a população tomou-o como uma violência contra ela própria e a cidade. Até mesmo porque a agência postal era considerada como responsabilidade da comunidade e patrimônio da localidade, e sua destruição foi vista não só como perda material, mas também como expropriação simbólica, uma vez que a agência era signo de progresso. Em 1921, Jaraguari foi elevado a distrito. Na oportunidade, além da área reservada ao rocio do patrimônio, através da Resolução Estadual no 856 foi reservada à colonização outra área de igual extensão de terras devolutas próprias para a lavoura. O progresso da vila de Jaraguari foi fator relevante na criação do município em 1953. Seu processo de desenvolvimento, contudo, sofreu um estancamento abrupto com o novo plano rodoviário do estado, modificando o traçado da rodovia que liga Campo Grande a Cuiabá e desviando-a 7km de Jaraguari. A vila começou a entrar em decadência. A população total do município é de 4.495 habitantes. De acordo com dados do Censo Demográfico de 1991, a composição da população, segundo cor e raça, é a seguinte: brancos, 47,5%; pardos, 44,8%; pretos, 6,5%; outros, 1,2%. Se considerarmos pardos e pretos como pertencentes a uma mesma categoria de cor ou de raça, metade da população do município de Jaraguari é negra. A manipulação dos mecanismos de identificação e discriminação promove a flexibilização da linha de cor de tal modo que, para a 221 222 Quilombos população local, a visibilidade dos negros se reduz à comunidade de Furnas de Dionísio. A visibilidade contrastiva de Furnas de Dionísio como comunidade negra vem sendo historicamente construída como um aspecto distintivo. Jurandyr Pires Ferreira (1958) expressa essa construção ao destacar: “é importante ressaltar que existe no município um povoado formado somente de pessoas de cor negra, chamado Furnas dos Dionísios, localizado a 38km da sede. A voz corrente é que o povoado começou com uma família, e hoje o grupo se compõe de 25 famílias, com seis filhos em média. Todas as famílias possuem pequenos sítios. O poder de comando se divide entre os Dionísios e os Martins”. A relação da comunidade de Furnas de Dionísio com o município de Jaraguari é essencialmente de ordem jurídico-burocrática e apenas pontualmente em nível socioeconômico e cultural. A relação mais ampla e em diferentes esferas da vida social a comunidade vem estabelecendo com Campo Grande, a capital do estado. Hábitat Uma representação de origem social Irmã Terezinha, missionária salesiana que trabalha junto à comunidade desde fevereiro de 1982, portanto há 16 anos, evocando as lembranças de seu primeiro contato com a comunidade, nos disse: quando fui pela primeira vez, foi amor à primeira vista. Um lugar lindíssimo, um povo acolhedor, uma gente boa. Acolhida é uma regra de vida. São educados, generosos, de muito respeito. Não é submissão. É de berço, é a criação. Sobre a origem da comunidade, ela expõe sua versão: “acredito que seja um quilombo. Deve ser um escravo de José Antônio Pereira, fundador de Campo Grande, que veio com família e escravos”. Uma descrição das furnas Furnas de Dionísio é um vale em forma de ferradura, engastado na serra de Maracaju, ladeado de morros altos destacados da serra Furnas de Dionísio (MS) principal. É cortado por ribeirões e córregos perenes. As terras são férteis. Mas a fertilidade encontra-se sob o impacto do uso inadequado de máquinas agrícolas, do desmate das bordas dos morros e das margens dos córregos, rios e ribeirões. A vegetação natural do vale já foi toda derrubada, substituída por plantares e pastos. Os altos morros serranos, no entanto, exibem a sua vegetação natural conservada e preservada pela comunidade. As matas são ricas em espécies de madeiras nobres, como aroeira, angico, angiquinho, capitão-do-mato, cedro, jatobá, louro-preto e piúva, e madeiras usadas em construção, mobiliário e equipamentos diversos, como combaru, lixeira, guatambu, castelo e amendoim. Nos cerrados e capões de mato existentes nas bordas dos morros encontram-se, além de uma variedade de frutos silvestres, o bacuri, o sapé, os cipós, o bálsamo, com que cobrem as casas e fazem os trançados, o pilão e a mão-de-pilão. Furna é a denominação local dos altos morros que se destacam do maciço de Maracaju, identificados pelos nomes dos troncos familiares da formação da comunidade e em cuja base ou proximidades se localizam as moradias de seus descendentes. As furnas do Mangue e do Boa Vista são furnas dos Martins e dos Abadio. Há ainda a furna dos Silva, vertente do Rochedinho, e furnas do Lajeadinho dos Abadio e Martins. Da serra e das furnas descem os rios em direção ao vale. O rio Boa Vista nasce na furna dos Abadio e desce para o Ribeirão, que também recebe o Rochedinho, que desce na furna dos Silva. A furna dos Martins sobe perto da cachoeira que o Lajeado forma ao despencar da furna em que nasce em direção ao vale. Nas proximidades da confluência dos rios Boa Vista e Rochedinho no Ribeirão, as águas correm sobre rochas, encachoeirando sobre as depressões do terreno, lugar denominado Passagem. À margem esquerda, com vista sobre essa cachoeira, Dionísio construiu sua primeira casa. Segundo dona Sinhana, contavam que lá havia uma casa com rego-d’água, monjolo, engenho (de três moendas), casa de farinha, fornalha, forno, cercados, chiqueiro. No local ainda podem ser vistos restos da estrutura, grossos esteios de aroeira lavrados e que parecem ter sido cortados, talvez para aproveitamento da madeira. 223 224 Quilombos Estrutura social A ocupação do espaço das furnas pelas famílias foi culturalmente determinada. Os depoimentos dos informantes evidenciam que a comunidade de Furnas de Dionísio foi historicamente formada de grupos domésticos ligados entre si pelo parentesco. Na segunda geração, filhos e filhas de Dionísio, de acordo com as regras instituídas pelo pai de alianças matrimoniais preferenciais com outras comunidades negras (Furnas da Boa Sorte) ou com outros grupos familiares de iguais, casaram-se com parceiros que compartilhavam a pertença racial sob o enfoque da feição regional da sociedade escravista. O velho Dionísio chefiou a sua família extensa tipificando e formatando relações — práticas com base em sua visão de mundo fundada em tradições africanas, conforme evidenciam os dados colhidos sobre a estrutura tradicional da comunidade, os quais constituem os fundamentos empíricos desta abordagem etnográfica perspectivada pela noção de grupo étnico. Os informantes da sociedade regional que têm convívio na comunidade apreendem o respeito ao pai, aos antepassados, como um valor estruturante da comunidade. Os membros da comunidade enfatizam o poder do chefe de família, a autoridade do pai e a precedência sobre ela da autoridade do avô, dos antepassados, do ancestral. Irmã Terezinha sublinhou, em seu depoimento, que “eles têm um senso do antepassado”, o que ela considera “próprio da raça”. Enfatizou que “são muito tradicionais”, ilustrando com o fato de que “os mais velhos reagiram à igreja” [à sua construção], “resistiram muito à demolição da capela de pau-a-pique, pequena e em mau estado”. Um informante da comunidade, ao referir a importância do respeito aos antepassados — que deve ser permanentemente explicitado em ritos, gestos e etiquetas a serem observados para não desagradálos nem ferir-lhes a sensibilidade —, entre outros fatos aludiu a demolição da velha capelinha de pau-a-pique. Muitos foram contrários por considerarem a demolição da igrejinha um agravo aos antepassados. Furnas de Dionísio (MS) Acerca do mesmo acontecimento, a narrativa de outro informante fornece outras referências contextuais da resistência do grupo: [O sr. Abadio] plantou uma roça de arroz muito grande. O arroz tava que era uma beleza, diz que tava bonito mesmo. Mas o sol tava muito, e com o sol os cachos começaram a cozinhar. Tava nos caso de perder todo o arroz. Ele fez a promessa de fazer uma igreja para Santo Antônio [o santo que recebeu do pai]. Não passou dias, veio a chuva. Choveu no tanto certo. Deu arroz e foi muito, mas muito mesmo. Foi muita fartura. Ele morreu sem cumprir com a promessa. Os filhos e os irmãos se reuniram pra cumprir a promessa, que é assim que deve de ser. Os que estão vivo tem obrigação com os mortos, tem que dar cumprimento dos compromisso, das promessa dos parente que já morreram. Venderam uma junta de boi, cortaram árvore onde Antônio mora hoje, serraram as tábua e construíram a igreja. Todos ajudaram. Era bem feita mesmo. Era coberta de telha igual da casa da professora. Era pequena. Quando tinha missa, metade ficava de fora, muita gente. Quando a irmã veio, conseguiu recurso e construiu essa que tá aí. Derrubou a outra. A gente sabe que tava querendo o melhor pra gente. Mas a gente tem muito sentimento. Outro dia mesmo a gente tava conversando e falamo que podia ter deixado aí, não precisava derrubar. Teria serventia, ficava aí, podia guardar coisas. Uma geração liga-se à outra por compromisso de obediência, de prestações e contraprestações. Uma geração tem compromisso com a que sucede. Uma informante de fora do grupo observou: “criança, não tem abandonada. Tios e madrinha assumem. Não tem tempo ruim para receber criança. E a criança é bem recebida, sem problema, sem dificuldade, não tem diferença”. A geração tem compromisso com a que precede. “Mãe, pai, parente que é velho, uma filha, uma sobrinha cuida, num deixa perecer.” Dona Sinhana e um de seus irmãos que sofreu acidente e teve a perna amputada moram com a filha, o genro e os netos na mesma casa. As gerações vivas devem obrigações aos antepassados mortos. “Eles têm uns três cemitérios. As pessoas que morrem têm que ser enterradas onde está a família. É o costume, e todos seguem.” 225 226 Quilombos Um informante da comunidade, ressaltando a importância do respeito aos antepassados, disse que “os filhos, pra tomar uma decisão de mais resultado, pedem autorização pros pais mortos. Tem que pedir pra ter mais alcance”. As relações entre as gerações são alternadamente constituídas pelo disciplinamento ou pela afetividade. Aos pais cabe educar bem seus filhos de conformidade com as regras culturalmente definidas. Para isso podem e devem utilizar os diferentes meios repertoriados na tradição: a palavra persuasiva, a palavra impositiva, o grito, o castigo brando, a violência. A professora que mora na comunidade há mais de 10 anos nos disse que “as crianças são criadas respeitando muito os mais velhos e as autoridades. Os pais mais antigos batiam muito nos filhos para impor respeito”. Um jovem da comunidade declarou: aqui a criação é com rigidez. Principalmente o pai. Por um olhar, um gesto, qualquer coisa que o pai achar em desacordo, o pai bate, quanto mais por alguma palavra ou alguma má-criação. Aí então é que bate mesmo. E se der um pio leva outra surra de relho, de chicote, de pau, do que o pai quiser. O professor Osnei reafirma que “não havia liberdade. O respeito era imposto pelos pais. Introjetado à custa de castigos corporais”. Ele próprio foi educado nesse sistema. Certo dia, estávamos informalmente reunidos à sombra de uma árvore, conversando enquanto aguardávamos um acompanhante que nos levaria à furna dos Silva, do outro lado do Ribeirão. Algumas crianças que brincavam de escorrega num monte de terra próximo se acercaram do grupo e começaram a passar no meio da roda, mexendo umas com as outras, rindo. Nenhuma delas cometeu qualquer falta repreensível, a nosso ver. Contudo, sua movimentação de algum modo interferia na roda, desviava a atenção dos adultos. Uma das senhoras da comunidade começou a incomodar-se. Demonstrando certo constrangimento, chamou uma de suas filhas, que estava a certa distância com uma criança ao colo e brincando com mais duas pequenas, e ordenou-lhe que tirasse dali as crianças, no que foi prontamente aten- Furnas de Dionísio (MS) dida. Em seguida, comentou: “se fosse meus filho nessa entrevera aí no meio dos mais velho, levava uma surra”. A relação pai e mãe → filhos é de modelagem da pessoa para que participe compulsoriamente da vida social, em conformidade com as normas. É uma relação tensa, cerimoniosa. A relação avô e avó → netos, todavia, é sempre uma relação de afetividade, de ternura, de cumplicidade. Os avós podem demonstrar aos filhos de seus filhos a tolerância, a compreensão, a proximidade interditas na relação pais e filhos. É uma relação de trocas afetivas prazerosas, de carícias, relação acolhedora, plena de carinho, de alegria. Disse-nos um informante: meu pai estudava em Campo Grande, no internato. Ele fugiu e veio para casa. O pai dele quis fazer voltar, com surras. Ele continuou resistindo, não queria voltar. O avô soube, chamou o filho e disse para não forçar a ir. Se ele preferia ser surrado em casa do que voltar, devia ter uma razão. O avô de meu pai disse pra meu avô que, se tivesse difícil para criar, ele acabava de criar. Os laços afetivos entre gerações alternas, fortalecidos e reforçados no contraste com as relações entre gerações consecutivas, estimulam o amor ao antepassado. Desse modo, a geração consecutiva respeita e cultua os seus pais mortos por obrigação, por dever, segundo a norma, e a geração alterna respeita e cultua seus avós mortos por bem querer, por saudade, por devoção. De acordo com a memória oral dos mais velhos da comunidade, Dionísio formou um grupo doméstico, patrilocal. Quando começou a se formar a quarta geração é que ele passou a determinar o lugar de assentamento das famílias de seus filhos, quando já podiam contar com o trabalho de sua própria descendência. “Ele foi escolhendo o lugar e arranchando os filhos.” Com o casamento das filhas, a regra do pai como centro da autoridade, do poder, inicia um processo de formação de linhagens. Dionísio, enquanto vivo, continuava sendo o centro de autoridade, continuava a decidir, principalmente no que concerne aos grupos familiares de seus filhos. Sua autoridade estendia-se aos grupos familia- 227 228 Quilombos res de suas filhas, mas a autoridade de seus genros nos seus grupos familiares relativizava esse poder. Assim, dois de seus filhos e dois de seus genros formaram novos grupos domésticos. A união de grupos familiares a esses grupos domésticos configurou um processo de formação de linhagens refletido espacialmente na identificação das furnas, como vimos: furna dos Martins (Lajeado, Mangue), furna dos Abadio, furna dos Silva. Abadio era um dos filhos de Dionísio, e Luís José Silva, um de seus genros. Outro dado cultural que reflete a formação de linhagens é a existência de mais de um cemitério na comunidade. A missionária apreendeu o fato como um dado indicativo da diferença cultural, e os membros da comunidade explicam que se devem enterrar os mortos com seus parentes, com seus antepassados. Uma e outra colocação são procedentes, mas o sentido dos cemitérios diferentes é referenciado nas linhagens, tanto assim que se localizam em seu domínio espacial, dentro do território mais amplo da comunidade. Como grupos fundamentados na descendência, mantiveram a coesão entre si por meio de redes de alianças e trocas matrimoniais. “Aqui somos tudo parente.” Ou, como disse a missionária: “casamento deles é entre eles mesmo. Você vê que é uma raça pura de negro. Negro legítimo, gente bonita”. Os dados revelam um conteúdo etnográfico que fornece referencial empírico para identificar a estrutura social da comunidade negra de Furnas de Dionísio ao modelo africano de sociedade segmentada, analisado sob o enfoque das relações de poder por Balandier (1969), antropólogo francês internacionalmente renomado como africanista. As linhagens são unidades constitutivas de outro segmento diferente em relação aos grupos familiares, no caso coexistindo com grupos domésticos. Ao mesmo tempo que se formavam pela união de pessoas de um mesmo tronco genealógico, formavam também uma espacialidade distinta dentro do território de Furnas de Dionísio. Construção da ancestralidade mítica A situação de alteridade vivida pela comunidade de Furnas de Dionísio no contexto da sociedade nacional fazia com que fossem Furnas de Dionísio (MS) considerados diferentes dos demais negros e identificados como grupo social chefiado por Dionísio. Essa canalização de poder também pressionava a estrutura social de fora para dentro, reforçando a autoridade de Dionísio, na medida em que, tendo-se tornado o requerente das terras que ocupavam, a ele se associava a propriedade da terra. Essa pressão de fora para dentro enfraquecia o poder dos chefes de linhagens, concentrando poder em Dionísio. Para resolver funcionalmente a relação entre as terras dos negros de Furnas de Dionísio e a ordem agrária dominante, engendra-se um processo de adaptação da estrutura social através do reconhecimento da possibilidade de as linhagens formarem uma mesma descendência a partir de um mesmo ancestral. A estrutura social continua segmentária, assumindo a forma clânica. Os laços de parentesco e o elo territorial se fortalecem mutuamente, formando-se assim a comunidade negra, diferenciada não apenas pela origem racial, mas também por sua forma social e pelo compartilhamento de valores culturais selecionados pelo grupo para serem postos em prática através de formas culturais consideradas definidoras da sua identidade, de sua pertença. Ser descendente de Dionísio passa a ser, no contexto da sociedade regional, a condição de pertencimento, um critério de afirmação do próprio grupo, um critério de inclusão e exclusão. Internamente, a estrutura social sofre um processo de adaptação, identificando-se a estrutura clânica como grupo social específico da sociedade regional, por ela e nela identificado como comunidade. As perdas culturais ao longo do processo são internamente compensadas pelo processo de construção da ancestralidade mítica. Esse processo desenvolve-se por meio de narrativas que avivam, destacam, avultam e sobrelevam as qualidades do ancestral, distinguindo-o entre os antepassados, divinizando-o. As narrativas ressaltam o heroísmo e, principalmente, os poderes sobrenaturais. Dionísio não tinha medo de onça ou de bichos peçonhentos, não tinha medo de gente, enfrentava qualquer perigo. “Era homem enérgico, trabalhador, sem medo.” Um dos valores que mais prezava era o trabalho. Segundo dona Sinhana, os mais velhos contavam que ele animava todo mundo para o trabalho. De manhã, 229 230 Quilombos muito cedo, acordava os filhos dizendo: “hoje é feira, meus filho”, ou seja, não é sábado nem domingo, é dia de trabalho. Outras vezes, dizia: “o mato não pára de crescer”, ou seja, quem quisesse ser bemsucedido não podia parar de trabalhar. Sabia reza forte, sabia controlar os bichos, sabia se defender e defender seu povo. O ancestral mítico confere à sua descendência um caráter sagrado, garantindo-lhe a perpetuidade de sua herança, a indissolubilidade dos vínculos de cada descendente com essa herança. A terra emerge como um dos mais significativos componentes dessa herança. Assim, através do ancestral mítico, sacraliza-se a relação entre a comunidade e terra, unindo os descendentes a ela. Ao se aprofundarem as relações capitalistas na região, a comunidade sofre diferentes processos de compulsão em relação à terra, todos eles implicando perdas em diferentes dimensões: econômica, social e política, com prejuízos econômicos e simbólicos de grande monta. Os mais velhos associam essas perdas tanto à permeabilidade dos mais jovens a outros valores quanto à própria imprevidência de sua geração. A comunidade: caminhos e descaminhos Nas primeiras décadas do século XX, a comunidade vivia ainda em relativo isolamento, integrando-se ao mercado regional através da venda de sua produção excedente e da compra de produtos essenciais, como sal, querosene e outros. A integração se fazia principalmente com Campo Grande. A viagem e o transporte eram feitos em animais ou em carro de bois. Era demorado e penoso, levando no mínimo dois dias. Os homens mais velhos conhecem as furnas, andam muito por elas, conhecem as trilhas, os animais que as povoam, a vegetação, as minas de água, o percurso de córregos, rios, riachos, ribeirões. As mulheres não podiam se distanciar muito em suas expedições de coleta de frutos e plantas medicinais. Dionísio e sua parentela constituíam uma unidade de produção. Plantavam roças de mantimento, algodão, cana, fumo. Criavam gado, Furnas de Dionísio (MS) porco e outros animais domésticos. Tinham engenho, faziam rapadura, açúcar mascavo, melado, garapa, aguardente. Produziam farinha de mandioca, beiju, polvilho doce, polvilho azedo, farinha de milho, derivados do leite. Havia curtume, faziam alpercatas, bruacas, alforje, relhos, arreios, tamboretes. As mulheres fiavam, teciam, faziam cobertas, colchas de retalho, tapetes, cerâmica, óleo, sabão. Os homens faziam diversas modalidades de artesanato utilitário de madeira e compartilhavam com as mulheres os trançados de cipó, de taquara, de palha. A produção para o consumo atendia às necessidades da comunidade, indicando um grande domínio técnico. A competência técnica permitiu à comunidade desenvolver-se como unidade de produção eficiente, capaz de atender às necessidades do grupo, com excedente necessário ao suprimento de bens que não eram produzidos internamente. A comunidade tornou-se uma sociedade de afluência, de fartura, como de modo geral o foram os quilombos, de acordo com os registros das bandeiras armadas para destruí-los.2 Com a morte de Dionísio e a segmentação do grupo doméstico em linhagens, começa um processo de desarticulação, com reflexos sobre a produção. Esse processo foi sendo compensado por práticas culturais de cooperação, de solidariedade, de reciprocidade. Alguns grupos familiares, continuando a tradição de trabalho de Dionísio, dispunham de renda que lhes permitia manter seus filhos estudando fora, inclusive em internato. Os produtos de Furnas de Dionísio conquistaram prestígio no mercado regional pela sua qualidade, o que lhes garantiu fácil circulação. A qualidade da farinha e da rapadura ainda se mantém, facilitando sua colocação e aceitação no mercado. Na década de 1960, com a modernização e o início da expansão do capitalismo urbano-industrial, as mudanças estruturais que se operavam na sociedade regional alcançaram a comunidade num momento em que estava fragilizada pelo facciosismo entre as linhagens, acen2 Ver Bandeira, 1988. 231 232 Quilombos tuando-se a hierarquização entre os mais fortes, os mais “tranqüilizados”, os remediados e os fracos. É nesse contexto adverso que se inicia o arrendamento das terras entre 1960 e 1970, com o desmate intensivo das bordas da serra e das margens dos rios e, portanto, graves conseqüências para o meio ambiente. O arrendamento das terras por tantos anos afastou a comunidade da terra, interferiu no processo de socialização, na preparação para o trabalho, na transmissão de conhecimentos, enfim, condensou uma pulsão desagregativa, com profundas perdas culturais, econômicas, políticas, sociais e psicológicas para a comunidade e seus membros. Paralelamente, começa um processo de migração dos jovens em busca do sonho da cidade: Algumas famílias venderam sua parcela de terra e foram para a cidade. Muita gente mudou-se para Campo Grande, fixando-se na Vila Santa Luzia, na Vila Nasser, na Vila São Benedito (comunidade negra urbana de tia Eva). Alguns voltaram e, de acordo com a regra, tiveram o seu acesso à terra assegurado pela mediação da pertença à comunidade. Depois de 1970, as famílias que se afastaram do trabalho produtivo na terra sofreram um empobrecimento cada vez maior. Os homens tiveram então que se submeter à parceria na própria comunidade, com os parentes “mais fortes” ou “mais tranqüilizados”. Os mais jovens passaram a trabalhar como peões para os fazendeiros vizinhos. O trabalho sazonal nas fazendas vizinhas, que antes tinha caráter de atividade secundária, complementar, torna-se a principal fonte de renda de muitos. A comunidade: aqui e agora Dados do levantamento realizado pela Associação de Pequenos Produtores Rurais de Furnas de Dionísio mostram que a comunidade compreende, atualmente, 58 famílias, totalizando uma população de 387 pessoas, o que representa uma média em torno de sete pessoas por domicílio. As casas, de modo geral, localizam-se no sopé das furnas. Na parte central do vale ficam a igreja, a escola, o posto de saúde e algumas famílias da comunidade. Furnas de Dionísio (MS) Há três tipos de moradia: o tipo tradicional de pau-a-pique e cobertura de sapé ou bacuri (o mesmo que acari); o tipo misto, incorporando a construção tradicional com alvenaria; e o tipo de construção da Fundação Nacional da Saúde, que já construiu quatro casas e recuperou oito no programa de controle da doença de Chagas: são casas de alvenaria, cobertas de telha eternit. A comunidade tem três escolas: duas rurais municipais e uma estadual de primeiro grau, posto de saúde, posto telefônico e duas igrejas. As escolas e uma das igrejas possuem água encanada. Sebastião, um dos líderes da comunidade, fez ele mesmo a ligação de água diretamente de uma mina na furna próxima à sua casa, com mangueiras emendadas cobrindo uma distância razoável. A água cai da mangueira num tanque improvisado. Sebastião se orgulha de ter em sua casa água pura, límpida e transparente o tempo todo. A Fundação Nacional de Saúde acabou de perfurar um poço artesiano no vale, próximo ao conjunto formado pela escola municipal rural de primeiro grau, o posto de saúde (onde também está instalado o telefone), a igreja católica, o salão municipal e algumas moradias. A vazão de água é suficiente para atender à comunidade, segundo nos informou um dos técnicos. Mas ainda não há recursos previstos nesse exercício para a ligação domiciliar. A associação possui em seu quadro 13 produtores que não são da comunidade, mas têm “propriedade” na área. Um deles, morador antigo, segundo os informantes, mantém relação de amizade com a comunidade, participa da vida comunitária, respeitando suas tradições culturais, “é como se fosse um de nós mesmo”. A maioria mantém relações formais de vizinhança, visando assegurar seus interesses econômicos e políticos. Um deles, identificado pela comunidade como “o japonês”, tem uma fazenda encravada no centro do vale, acima da Passagem, entre os rios Boa Vista e Rochedinho, à margem de uma das estradas que cortam as furnas, em área estratégica de circulação de moradores que vão a pé para a escola, a igreja, o posto de saúde e telefônico, bem como de parentes que se visitam ou necessitem tratar de algum assunto ou solicitar ajuda mútua. O japonês cercou sua propriedade e proíbe a circulação de pessoas em suas terras. Assim, a fazenda do japonês tornou-se um entrave na ordem social e cultural 233 Quilombos 234 comunitária, dificultando a circulação pela área, obstruindo as trilhas tradicionais, impondo uma relação mediada por uma violência simbólica de forte opressão sobre o território negro e sua comunidade. As terras de Furnas de Dionísio, incluindo vale e furnas, somam mais de mil hectares. Segundo informantes, Dionísio requereu 904 hectares, e a partilha das terras depois de sua morte foi feita entre seus herdeiros, alguns dos quais venderam sua parte. A situação fundiária, porém, ainda não foi regularizada. Modo de produção A comunidade ainda mantém um modo de produção diferenciado, à base do trabalho familiar e de formas culturalmente mantidas de cooperação e ajuda mútua. As famílias que descendem de um dos herdeiros da terceira geração plantam suas roças e hortas em comum e, às vezes, individualmente, como família nuclear. Em ambos os casos, a produção depende fundamentalmente da ajuda mútua. Ainda persistem na comunidade diferentes formas tradicionais de ajuda mútua genericamente denominadas mutirão. Para vencer as dificuldades com o plantio das roças, é há muito tempo organizado o mutirão, que é um sistema de ajuda mútua em que quem tem “roça no sujo” chama os companheiros para limpar; assim aqueles que participam do mutirão nunca se apertam para deixar no limpo suas plantações.3 O sistema tradicional de ajuda mútua compreende três formas principais: mutirão propriamente dito, coluna e surpresa. No mutirão, o interessado é quem convida para se fazer “qualquer serviço que tiver apertado, pra sair mais rápido”. O dono do mutirão oferece todas as refeições. No final do dia, os homens cercam o dono numa roda e o levam até em casa cantando: “patrão tá preso / não é pra soltá / garrafa e meia / pra nós tomá”. Serve-se o jantar e o mutirão se encerra com um folguedo, com música, canto, dança e bebida. 3 Silva, 1997. Furnas de Dionísio (MS) Geralmente se dança catira, uma dança comum em localidades rurais tradicionais de Minas Gerais, Goiás, Mato Grosso do Sul e São Paulo. Em Furnas ainda existem os especialistas de marcação do ritmo da dança, localmente denominados “puxadores de palma do catira”. Além da catira, antigamente se dançava ciranda, engenho novo, vilão, cobrinha, lundu. Coluna é uma modalidade de ajuda mútua em que a iniciativa é dos participantes. Sempre fica-se sabendo quando há uma situação que requer cooperação para ser resolvida. Muitas vezes, por insuficiência de meios para realizar o mutirão conforme as regras tradicionais, não se procede à sua convocação. Um parente, um compadre mais próximo toma a iniciativa de organizar a coluna, da qual tradicionalmente participavam homens, mulheres e crianças, mas que atualmente está mais restrita aos homens. Os participantes levam o “tira” (refeição matinal), e o dono do serviço oferece o almoço. A terceira modalidade de ajuda mútua é a “surpresa”. À noite, os participantes arrumam as enxadas “tramada” e na manhã seguinte iniciam o trabalho, surpreendendo o dono. A atividade econômica básica é a agricultura. A maioria dos chefes de família planta sua roça para garantir o sustento. Algumas famílias chefiadas por mulheres, com poucos ou nenhum homem para garantir o preparo da roça, enfrentam problemas de subprodução. Nesses casos, práticas culturais fundadas no princípio comunitário da reciprocidade lhes garantem a circulação de bens, especialmente alimentos, que lhes permitam superar as situações críticas. O fluxo de circulação de bens para as famílias nessa situação é regulado pela combinação de dois critérios: parentesco e disponibilidade de recursos (produção de excedente). A ajuda, conforme a regra, deve ser oferecida, pois todos sabem quem está precisando e quando é necessária. Nesse caso, compete à mulher chamar quem precisa de ajuda e oferecer-lhe algum mantimento. A segunda alternativa é a mãe de família que está em dificuldades tomar a iniciativa. Nesse caso, ela faz uma visita a um parente próximo ou a um compadre/comadre em melhor situação, e esse gesto por si só instaura o fluxo da reciprocidade, pois quem recebe a visita deve oferecer algum produto alimentar para consumo 235 236 Quilombos da família em situação limite de falta de mantimentos. Garantir alimentação mínima para a sobrevivência é, em primeira instância, obrigação do núcleo familiar; em segunda instância, é obrigação dos parentes em linha ascendente, descendente ou colateral em melhor situação; e em última instância, da comunidade. Qualquer membro da comunidade tem garantia de condições mínimas de sobrevivência, mediada pela pertença. Bandeira (1988) registra essa prática em Vila Bela, comunidade negra de Mato Grosso, ressaltando a importância desse mecanismo regulador na formação social. É importante ressaltar que o acesso coletivo à terra (igualitarismo), identificado por Marx como um dos princípios constitutivos da formação social pré-capitalista, ao lado da reciprocidade, tem como corolário a co-responsabilidade pela sobrevivência dos membros da comunidade com problemas de subprodução dos meios de vida. Esses princípios constitutivos das comunidades rurais negras contrastam seu modo de vida e sua cosmovisão com os da sociedade capitalista, tornando-as etnicamente diferenciadas. Sua condição de comunidade, conforme a autodenominação, ou de grupo étnico dentro da sociedade inclusiva é um dos critérios mais significativos de sua identificação como remanescente de quilombo. Os traços e práticas culturais de origem africana que ressaltamos não se constituem por si mesmos em critérios de identificação de remanescentes de quilombo. O fato de que Furnas de Dionísio as tenha eleito como significativas da vida social do grupo negro, no contexto da sociedade escravista, é que torna essa comunidade etnicamente diferenciada, procurando constituir-se numa perspectiva de liberdade, de busca de autonomia. Barth (1976), Cohen (1969) e Carneiro da Cunha (1987), ao discutirem a questão dos grupos étnicos no interior das sociedades nacionais enquanto minorias em contexto de dominação social, econômica, política e cultural, destacam a identidade étnica como um critério de afirmação do próprio grupo num contexto de dominação. Glazer e Moyham (1975) ressaltam a etnicidade como qualidade que confere especificidade ao grupo étnico, no contexto mais amplo da sociedade envolvente, permitindo-lhe resistir às pressões assimilacionistas. Etnicidade implica uma condição de pertencimento, configurando referenciais de inclusão e exclusão. Furnas de Dionísio (MS) A etnicidade condensa energia política, compondo um vetorial de mobilização no sentido de autoconstituir-se como sujeito político coletivo. Furnas de Dionísio, ao construir uma identidade étnica, articula-se histórica e culturalmente aos quilombos e à sua tradição social. É nessa perspectiva que a análise do conteúdo simbólico dessas práticas de ajuda mútua ganha importância, levando em conta os objetivos deste trabalho. O modo de produção familiar4 dos negros de Furnas de Dionísio tende a se desarticular sob a pressão do modo de produção capitalista dominante que o subordina. O arrendamento das terras para cultivo de horticultura abriu uma cunha profunda no modo de produção tradicional. O arado já havia sido introduzido na década de 1950, e seu uso iniciou um processo de modernização da roça de toco até então utilizada. Na comunidade não se usa a queima. Todos têm muito medo de fogo. Tradicionalmente plantava-se arroz durante três anos, depois milho. Os restos da roça eram deixados em conformidade com a representação social de que a terra, sendo forte, promove a reciclagem. “O que tem, deixa que a terra por si devora. A terra aqui é forte, come tudo.” Na roça plantam-se atualmente arroz, milho, feijão e mandioca. Cultivam-se grandes hortas para comercialização do produto em Campo Grande. Com esses cultivares, iniciados com o arrendamento, foi introduzido o uso de máquinas agrícolas e agrotóxicos. O desmate da vegetação ciliar, de áreas de declive acentuado, e o uso de máquinas sem a devida assistência técnica vêm provocando um processo de crescente erosão e assoreamento dos córregos. Há dois tipos de erosão: a voçoroca, que vem abrindo valetas profundas nas áreas mais baixas, e a localmente denominada “olho de boi”, que abre buracos circulares nas áreas mais altas. Com o declive das áreas desmatadas nas encostas das furnas, a chuva batendo no solo forma enxurradas que vão carregando o solo em direção aos leitos dos ria4 Ver Sahlins, s.d. 237 Quilombos 238 chos, córregos e ribeirões. No centro do vale, onde se acham a escola, a igreja e o posto, nas casas próximas podem-se observar árvores frutíferas de porte com suas raízes expostas. A perda do solo agricultável apresenta-se como um dos mais graves problemas da comunidade, ao lado dos problemas de saúde. Outro problema são os atravessadores. “A maior preocupação dos produtores é no momento de vender os seus produtos, pois enfrentam os atravessadores que compram por um preço baixo ou cobram um frete muito caro para levar e ser vendido em Campo Grande. Isso leva quem produz a ter pouco lucro no que produz. Hoje se sonha com um caminhão para poder vender todos os produtos sem ter que se preocupar com o frete.”5 Outros produtos de grande aceitação no mercado são a rapadura, a rapadura de massa e a farinha de mandioca. São produtos de qualidade e, como salientamos anteriormente, de grande aceitação. Muitas famílias têm nessa produção seu principal meio de vida. Algumas famílias criam umas poucas reses de gado, alguns cavalos ou burros, mas a maioria cria porcos e galinhas. Antes da competição dos produtos industrializados, havia um repertório rico e variado de produtos caseiros, como doces e derivados de leite, milho ou mandioca. Ainda não desapareceram de todo, mas já não há mais a mesma fartura. O conhecimento das técnicas, partilhado por mulheres e homens com mais de 50 anos, tende a desaparecer. A perda cultural empobrece a comunidade sob diferentes aspectos. O principal deles é o aprofundamento da dependência, com reflexos sobre o desenvolvimento da comunidade e sobre seus esforços de autogestão. A transição do modo de produção tradicional para o modo de produção capitalista, inerente ao processo de integração, tem sido doloroso para as gerações mais velhas, impotentes ante as perdas culturais crescentes, ante o desenraizamento cultural e o apagamento da memória. Tem sido igualmente doloroso para os mais jovens, cada vez mais expostos à expropriação, inclusive de sua identidade étnica, fon5 Silva, 1997:2. Furnas de Dionísio (MS) te de auto-estima, escudo contra a contaminação da folclorização e da estigmatização. A energia elétrica trouxe os sonhos de consumo dos elétricoeletrônicos. Os mais novos preferem trabalhar como peões nas fazendas vizinhas. Como diaristas recebem pouco, mas em dinheiro, o que lhes permite definir um horizonte de tempo mínimo para poder consumir esses bens. São empregados temporários, diaristas, ganhando R$10 por dia, contratados para roçado, vacina, transporte de gado. Alguns trabalham com meeiros. Recebem a terra limpa e veneno. Plantam, limpam, colhem e entregam a metade da produção. Os mais velhos expressam suas preocupações nos seus depoimentos: “Os jovens estão iludidos com o dinheirinho que ganham como diarista e gastam fácil; a bebida está sendo um atraso dos jovens. Gastam à toa”. Silva (1997:1), um jovem da comunidade, vê a questão de um ângulo diferente: “alguns trabalham para pessoas vizinhas. É pouco o mercado de trabalho, sendo necessário alguns jovens saírem para trabalhar fora da comunidade”. O fascínio e a sedução da cidade grande são um fator de atração para os jovens, promovendo a migração. Alguns vão e voltam, outros permanecem, ainda que com pouca ou nenhuma chance de emprego. Poucos foram os que migraram e tiveram alguma oportunidade com o apoio dos parentes que ficaram, de parentes que moram na cidade, de um ou outro parente com amigos influentes. A atividade de coleta ainda é significativa, tanto do ponto de vista econômico, de complementação da dieta alimentar, quanto do ponto de vista da transmissão de saberes sobre a natureza e o meio ambiente. As expedições de coleta de frutos são em geral lideradas por mulheres mais experientes, auxiliadas pelas mais jovens. Delas participam jovens e crianças de ambos os sexos. Saem de manhã bem cedo para catar guabiroba, macaúba, frutos diversos que as matas próximas e o cerrado garantem nas diferentes estações do ano. Nessas expedições as crianças aprendem a conhecer as trilhas, a se orientar, a distinguir e reconhecer os diferentes animais e plantas, as espécies comestíveis, venenosas ou medicinais, a se relacionar com 239 240 Quilombos a natureza visível e invisível. Aguiar (1998:73), ao abordar a educação em Barra da Aroeira, comunidade negra de Tocantins, examina a dimensão pedagógica do costume local de “caminhar entre as matas em busca de diferentes objetivos — às vezes impalpáveis e indefinidos”, ressaltando o seu conteúdo educativo. Essas caminhadas, como ele bem mostra, dão suporte à transmissão do saber da comunidade. Tradicionalmente, os homens de Furnas de Dionísio também realizavam caminhadas pelas furnas, ora para caçar, ora para extrair algum produto, ora para tirar mel, ora sem objetivo claramente definido, mas isso representava também um reconhecimento do território, uma “vigilância” de seus limites, uma defesa simbólica de sua integridade. Sebastião, de 73 anos, enfatizou que os homens ainda andam muito pelas furnas. A partir dessa sua observação é que foi possível explorar os acontecimentos, as lembranças de homens e mulheres relacionados com caminhadas pelas matas, pelo cerrado, pelas furnas, e assim distinguir entre as andanças de homens e de mulheres nas suas terras.. Crenças Há duas religiões oficiais: Assembléia de Deus e católica. A primeira, de introdução recente, tem o seu templo localizado nas proximidades da furna dos Silva e vem conquistando adeptos, embora encontre muita resistência. Eis como Silva (1997:4), membro da comunidade, vê a introdução dessa igreja na comunidade: “Nas últimas décadas surgiu uma nova igreja, a Assembléia de Deus, que, segundo as pessoas da comunidade, dividiu o povo devido à doutrina que vai contra a tradição cultivada desde os tempos dos antepassados. Os crentes buscam uma perfeição muito grande, criticam o uso de bebida alcoólica, os bailes, os santos, dizendo ser contra a vontade de Deus”. A religião dominante é a católica, e a igreja, como já vimos, localiza-se no centro da área. Dispondo de um salão paroquial e de instrumentos e aparelhagem de som, a igreja é o principal centro de vivência da comunidade. Furnas de Dionísio (MS) O vigário da paróquia Dom Bosco (Campo Grande), responsável pela área de Furnas, em visita pastoral à comunidade no início da década de 1980, julgou-a “abandonada”, carente de assistência religiosa, uma vez que a religiosidade é um de seus traços marcantes. Esse traço tem sido historicamente observado em comunidades rurais negras, estando também documentado no relatório da bandeira que bateu o quilombo de Quariterê, no final do século XVIII, em Vila Bela, Mato Grosso.6 O vigário solicitou à Congregação Salesiana a indicação de uma irmã para o trabalho de catequese junto à comunidade. A irmã Teresinha foi indicada e aceitou o ministério como uma missão. Iniciou em Campo Grande e na comunidade uma bem-sucedida campanha para angariar fundos para a construção da capela. Sensibilizando as lideranças de “mais respeito” e conquistando o apoio das mulheres, construiu a igreja em 1984/85, com instalações sanitárias, e em seguida o salão paroquial. Durante a edificação da igreja, ajudou na construção da moradia de uma viúva que morava próximo à igreja em condições muito precárias. Irmã Teresinha é muito querida e respeitada na comunidade, tendo-se tornado uma referência. Ao longo de 16 anos vem desenvolvendo seu trabalho missionário. Apoiou a organização da Diretoria da Capela, grupo de jovens para assumir a instrução religiosa, reforçou as lideranças religiosas tradicionais e estimulou a afirmação de líderes jovens. Sob as práticas religiosas oficiais, contudo, fluem as práticas tradicionais que o culto ao santo articulam. O santo de devoção da comunidade é Santo Antônio, cuja festa envolvia um complexo ritual de redistribuição (todos colaboravam com bens para a realização da festa e todos partilhavam coletivamente a comida) com coroação de rei e rainha, rezas, mastro. No mastro prendiam-se pencas de laranjas escolhidas, “as mais bonitas”, e “na cabeça do mastro”, encimando a ponta, sobre o estandarte de Santo Antônio, colocava-se uma boneca de pano, vestida de 6 Ver Bandeira, 1988. 241 242 Quilombos roupa branca. Os informantes só sabem da tradição de colocar a boneca, que é assunto dos antigos. Não atribuem a ela outro sentido que não o da memória dos antepassados, da continuidade de seus costumes. Eles faziam assim, assim deve ser feito. A boneca vestida de branco é um signo de práticas mágico-religiosas de origem africana. No caso, estando associada ao culto do santo da comunidade, ela é uma representação simbólica de divindade africana. Além de Santo Antônio, cultuam também São Benedito, Nossa Senhora do Rosário, Santa Luzia, Santa Bárbara, São João, São Sebastião, quase todos associados a divindades africanas no sincretismo religioso afro-brasileiro. Com o trabalho missionário foi introduzido o culto a Nossa Senhora Aparecida. Além desses santos de devoção coletiva, algumas famílias dos mais velhos têm santo de casa. Tão importante quanto o culto aos santos é o culto aos mortos, o culto aos antepassados, que faz dos cemitérios um lugar sagrado, o lugar onde as cruzes marcam seus assentamentos. O culto envolve crenças e ritos. A crença fundamental é que os mortos, depois de uma passagem, se transformam em espíritos, identidades sobrenaturais que devem ser cuidadas pelos vivos. Cabem a seus descendentes diretos esses cuidados. Há certos momentos de liminaridade entre o mundo sensível e o invisível, quando se esmaecem os limites entre a temporalidade do mundo dos vivos e a intemporalidade do sagrado, do mundo dos santos, do mundo dos mortos, do mundo dos sobrenaturais. Tais momentos correspondem às seis horas da manhã (romper do dia), ao meio-dia, às seis horas da tarde (crepúsculo) e à meia-noite. São horas “santas”, horas “perigosas”, horas de ficar em silêncio. “Meio-dia é hora do céu, a porta está aberta. É bom parar, fazer silêncio, rezar pras almas.” Na hora de comer, a regra é “comer sem conversar muito, se não Nossa Senhora não vem abençoar”. Meia-noite é hora dos mortos. Por isso não se deve andar à noite, os espíritos dos mortos assombram os vivos. O medo dos mortos, de seus espíritos pensados como entidades, é generalizado. Teme-se que eles queiram ficar entre os vivos, perturbando a ordem cosmológica. Há também a crença em possessão de vivos pelos espíritos dos mortos. “Sempre tinha história Furnas de Dionísio (MS) de espírito apossar. Apossa a pessoa que talvez não esteja bem. Aí fica fora de si.” Nesse caso, só alguém com “força” pode ajudar. O culto aos mortos envolve ritos de oferendas de comida e bebida no cemitério. “De repente sonha [com o morto] ou tem visão ou lembrança forte, põe uma garrafa de água no pé da cruz, no cemitério.” A crença nos espíritos dos mortos não corresponde propriamente à crença nas almas. A concepção de espírito do morto é diferente da concepção cristã de alma como dimensão espiritual do homem, separável do corpo biológico, imortal. Pode-se estabelecer uma correlação entre os eguns dos cultos afro-brasileiros e os espíritos, tais como os negros de Furnas de Dionísio os concebem como entidade, isto é, não como dimensão ou essencialidade, mas como totalidade, expressão sobrenatural do vivo, em estado ou condição diferenciado. Entre a morte biológica e a condição de espírito, de antepassado, há um estado liminar, uma passagem de sete dias, em que a alma (o morto) permanece entre os vivos, podendo perturbar-lhes a cabeça ou contaminá-los com a morte. Para manter os limites entre o visível e o invisível, pratica-se o rito de acender uma vela no local onde se deu a morte e mantê-la acesa durante sete dias e sete noites. Findo o período de resguardo das fronteiras entre a vida e a morte, a vela é levada ao cemitério. Põe-se a cruz na sepultura, a vela acesa ao pé da cruz, e procede-se ritualmente ao assentamento do morto no seu mundo, assumindo a condição de antepassado. Esses ritos são acompanhados de cantos especiais. Quando a morte biológica se aproxima ou acontece, põe-se a vela na mão da pessoa e puxa-se o canto para morrer, iniciando o rito de passagem. No cemitério, jogam-se três punhados de terra e ramo seco na cova, colocamse a cruz e a vela ao seu pé, e tiram-se os cantos próprios para encerrar o rito de passagem e garantir que o espírito vá em paz. Ao nascer, a entrada de um novo ser no mundo também envolve um rito de passagem, uma espécie de noviciado, de estabelecimento no mundo dos vivos. Também há cantos para nascer. Além dos ritos de defumação, de colocar a tesoura aberta em baixo da cama para cortar a língua da bruxa, entidade malévola que costuma chupar a vida de recém-nascidos pelo umbigo, a criança deve permanecer sete 243 244 Quilombos dias sem sair de casa. O tempo de passagem para a vida e para a morte tem duração simétrica: sete dias. Passado esse tempo, espera-se a lua nova, quando a mãe mostra a criança e os panos dizendo: “Lua nova, lua nova, eu tenho esse menino/menina procê me ajudá a criá, / eu crio com meu leite e você com seu luá”. Essa fala tem que ser repetida três vezes, e a cada vez a criança tem que ser erguida em decúbito dorsal em direção à lua. Para nascer, para morrer, para louvar os santos e os antepassados, para selar promessa e desmanchar promessa há rezas e cantos específicos, configurando uma posição e uma função social especializada e de prestígio, tradicionalmente reservada aos homens, mas que vem sendo adaptativamente assumida por mulheres: a função de rezador/ rezadeira. A rezadeira tem que conhecer não somente o repertório de rezas, cantos e fórmulas, como também os detalhes posturais adequados, tanto os seus quanto os dos participantes, uma vez que lhe cabe instruí-los e zelar para que as técnicas rituais sejam corretamente mantidas e atualizadas nas práticas. Outra posição especializada de grande prestígio é a do benzedeiro/benzedeira, que cura certos males com rituais de “benzeção” ou com plantas, ou que tira e põe feitiço. O benzedeiro pode ser especialista em apenas uma dessas modalidades ou em duas ou mesmo em todas, dependendo de sua aptidão, do treinamento, do poder do mestre, de sua “força”. Também essa posição era tradicionalmente restrita a homens, mas a morte dos grandes mestres, sem que transmitissem seus saberes a um sucessor, bem como as mudanças estruturais ocorridas no processo de produção levaram à fragmentação do conhecimento e ao desdobramento da especialidade. Atualmente, a benzedeira mais competente da comunidade benze dor de dente, quebranto, vento virado, espinhela caída. Há ainda benzedeiros que benzem roças para livrá-la de pragas, feridas, bicheira. De modo geral, a “benzeção” envolve reza ou recitação de fórmulas acompanhada de gestos apropriados com galhos igualmente apropriados ao tipo de mal que se quer curar. Através do ritual, o ramo fica impregnado do mal, devendo portanto ser jogado na água corrente (que tem o poder de “rodar” o mal) ou em direção ao sol poente (que tem o poder de carregar o mal), ou então queimado (pois o fogo tem poder de consumir o mal). Furnas de Dionísio (MS) A crença no feitiço ainda é resistente, embora escamoteada. Não gostam de falar no assunto, mas admitem que há feitiço e que têm medo. Os mais velhos lamentam o declínio do poder dos especialistas e que a comunidade tenha perdido a continuidade de sua “força”, atualmente fragmentada. Os dados colhidos indicam a extraordinária riqueza da concepção de mundo, do pensamento mítico e das crenças que a tradição da comunidade ainda mantém, embora já se possa perceber com clareza a força do processo de perda cultural ora em curso. Mesmo mostrando apenas a ponta desse imensurável iceberg, os dados de nossa pesquisa de campo são suficientes para identificar o paradigma africano da ordem invisível como alicerce sobre o qual, incorporando crenças e influências religiosas de outras matrizes culturais, os negros de Furnas de Dionísio constroem sua percepção de mundo e do seu ser no mundo. A conservação de elementos de culturas africanas, como já ressaltamos anteriormente, não é determinante na caracterização histórico-antropológica de uma comunidade rural negra como remanescente de quilombo. Não pode, contudo, ser ignorada nem relegada a segundo plano num trabalho como este, porque deverá circular em duas mãos: na sociedade mais ampla, pelos caminhos oficiais do processo de titulação da terra, e na comunidade, pelas trilhas do seu ser no mundo, da sua percepção étnica, em que consciência de ser e comunidade etnicamente diferenciada não se separam, e da sua autoestima, resgatando suas origens, sua percepção categorial imediata, espontânea, pré-reflexiva, intrínseca à sua cotidianidade, que lhe fornece referências para o viver imediato, resgatando sua história, sua resistência, suas lutas, seus bens culturais como dimensão indissociável de sua cidadania. Educação escolar A comunidade tem três escolas. A mais antiga é a Escola Municipal Rural de 1o Grau Lajeadinho, a que tem o maior número de alunos matriculados no município de Jaraguari, polarizando as de- 245 246 Quilombos mais do distrito a que pertence. A escola iniciou seu funcionamento precariamente, no início da década de 1980. A comunidade conseguiu que a prefeitura contratasse uma professora e construísse uma escola de madeira em 1986, num terreno doado por Sebastião Abadio, um dos chefes de grupo doméstico mais respeitados e um dos líderes políticos da comunidade. Em 1997, a escola tinha 46 alunos matriculados em dois turnos, em regime multisseriado. O prédio escolar tem uma sala, uma cantina e dois banheiros. A comunidade vem fazendo gestões junto à prefeitura para ampliar e melhorar as instalações. Além disso, pretende-se que a escola deixe de ser multisseriada, centralizando as atividades da Escola 13 de Maio e da escola de Paratudo, que seriam desativadas. Luta-se também por transporte escolar. Atualmente os alunos têm que caminhar alguns quilômetros até a escola; quatro deles, que moram mais distante, vêm a cavalo. No período matutino funcionam a 1a e 2a séries, e no período vespertino, a 3a e 4a séries. Segundo a professora, seu maior problema é a 1a série, pois o regime multisseriado dificulta e limita o trabalho de alfabetização, na medida em que não permite o acompanhamento dos alunos. Recentemente a professora participou de um curso de alfabetização de orientação construtivista. Porém, sem contar com orientação nem material didático apropriado, não se sentiu segura para mudar a metodologia e, usando de bom senso, continua a trabalhar com o método silábico. Os livros didáticos que ela recebe esporadicamente são ultrapassados e preconceituosos, como os de autoria de Lucinda Passos, Albani Fonseca e Marta Chaves, da Editora Scipione, ou monoculturalistas, como os livros de estudos sociais sobre Mato Grosso, que reproduzem a invisibilidade do negro como sujeito da história, como protagonista do processo de construção social e econômica do estado desde o século XVIII, quando teve início o processo de ocupação de suas terras. O diretor de Lajeado visita a escola de Furnas mensalmente. É negro, padre e já trabalhou no local antes de se ordenar. O envio de material didático pela prefeitura é intermitente e insuficiente. Em Furnas de Dionísio (MS) 1997, como a escola recebeu poucos cadernos e lápis, os alunos tiveram que adquiri-los. A escola não tem recebido material de apoio, como cartolina, lápis de cor, pincel atômico, mapas, globos etc. Assim a irmã Teresinha tem procurado obter doações em Campo Grande. A professora, formada em magistério de 2o grau, vem fazendo vários cursos, como o de capacitação em alfabetização, em 1983, o de atualização para professores de 1a a 4a séries, em 1988, e o de capacitação de professores de classe multisseriada, em 1993. Há longos anos residindo na comunidade, numa casa de madeira de quatro cômodos ao lado da escola, a professora, que é branca, construiu fortes laços de amizade na comunidade. Ela observa que as crianças são criadas com respeito aos mais velhos e aos antepassados. Mas os jovens casais criam seus filhos com maior liberalidade, sem a mesma rigidez de antigamente. Os adolescentes já começam a manifestar sua rebeldia em relação às normas tradicionais. As moças vão para Campo Grande, geralmente em busca de oportunidades de trabalho que não encontram, a não ser como empregada doméstica. Algumas, entretanto, conseguem conciliar o trabalho com os estudos e não voltam. Já os rapazes, como já registramos, preferem a peonagem. A maioria dos que migram para Campo Grande ou vive de subemprego ou retorna à comunidade. Na avaliação da professora, os alunos encontram maior dificuldade na 1a série, pelos seguintes motivos: a maioria dos pais não tem instrução suficiente para acompanhar os filhos e dar-lhes assistência; a criança não dispõe em casa de material auxiliar; a alimentação não é adequada (é costume preparar os alimentos com banha de porco, e a dieta à base de farináceos é pobre em proteínas, vitaminas e sais minerais). Os alunos que contam com acompanhamento dos pais apresentam um bom desenvolvimento. Música, dança e linguagem são as áreas em que as crianças apresentam melhor desempenho. A maior dificuldade é com os números, o que mostra o distanciamento entre a educação escolar e experiência das crianças. Observamos que elas calculam distância, peso, volume de modo bem aproximado e são capazes de fazer cálculos no cotidiano. A professora salienta que as crianças são falantes e se comunicam muito bem. Algumas, no entanto, demonstram muita timidez. 247 248 Quilombos A escola fornece merenda aos alunos. Em 1993 e 1994, segundo a professora, o município se encarregava da aquisição da merenda. Atualmente, os ingredientes vêm da Fundação de Assistência ao Estudante (FAE), com a mediação do município. Em 1997 receberam o ano inteiro arroz, feijão, macarrão, farinha, óleo, leite achocolatado e, em menor quantidade, charque, almôndega e bolachinha, além de, uma vez ou outra, cebola, alho e sal. Açúcar e chá vieram em pouquíssima quantidade. Em 1993 e 1994, segundo a professora, o município se encarregava da aquisição da merenda e a escola recebia sopa, massas, ovos, frango, massa de tomate. Atualmente a comunidade vem reforçando o cardápio, contribuindo com verduras, ovos e outras “misturas”. A merenda é servida às 9h e às 15h. Quem prepara é uma senhora da comunidade, contratada pela prefeitura e que acumula as funções de merendeira e faxineira. O material de limpeza também é enviado parcimoniosamente, exigindo uso controlado. Quando ele acaba, a faxineira e a professora têm às vezes que contribuir com algum sabão para a limpeza da cozinha. Tendo iniciado suas atividades na década de 1980, a Escola 13 de Maio também funciona em regime multisseriado e atende às crianças que moram nas cercanias da saída do vale. Após a conclusão da 4a série, os jovens não tinham como continuar seus estudos. A comunidade conseguiu junto à prefeitura de Jaraguari um ônibus para transportar os estudantes até lá; o ônibus parte às 9 horas e retorna às 18. O número de repetência e evasão foi muito alto. Silva (1997:3) faz uma crítica pertinente aos resultados dessa tentativa: “nunca foi feito nada para se saber os verdadeiros motivos que levavam isso a acontecer”. Em 1995, assumiu a pasta da Secretaria de Educação do estado o professor Aleixo Paraguassu. A comunidade reivindicou-lhe a introdução do ensino de 5a a 8a séries, para suprir o déficit escolar. Como negro e político, Paraguassu buscou atender à demanda com uma experiência de educação a distância, pelo sistema de teleducação. Por falta de conhecimento da realidade em que iria trabalhar, o projeto fracassou. O prédio da Escola Estadual construído pela Secretaria de Educação foi equipado com cozinha industrial para servir também à comunidade. Silva (1997:3) assim traduz o significado dessa conquista Furnas de Dionísio (MS) da comunidade: “a Escola Estadual de Zumbi dos Palmares é um sonho que se tornou realidade para todas as famílias que têm vontade de ver seus filhos terem pelo menos o 1o grau completo”. Osnei B. da Silva, primeiro membro da comunidade a se graduar em filosofia, foi emergencialmente aproveitado como professor convocado, modalidade precaríssima de contratação, ainda na gestão de Paraguassu. O secretário garantiu professores habilitados para todas as disciplinas. Vinham diariamente de Campo Grande, davam suas aulas e voltavam. Após o afastamento de Paraguassu da Secretaria, seu sucessor nomeou para a diretoria da escola uma professora branca e tirou Osnei do cargo, invocando impedimento legal, pela sua condição de professor temporário. A diretora ressaltou em seu depoimento que: “para quem vem de fora a franqueza choca, parece agressiva, ofensiva”. Os alunos andam muito juntos, prezam os laços de parentesco. São explosivos, brigam entre si. Acabou a briga, tudo bem, não guardam rancor. A secretária da escola salientou que os alunos têm a qualidade de não serem ambíguos. Em certa ocasião substituíram a aula de educação física por uma aula de história sem ouvir os alunos. Metade da sala se retirou, não aceitando a imposição. Tentando remediar a situação, a diretora levou-os de volta à sala, explicou o motivo da troca e disse que quem não estivesse satisfeito podia sair. Um aluno levantou, pegou o material, assinou a advertência e foi embora. No outro dia voltou, como se nada tivesse acontecido. A diretora não está preparada para lidar com essa postura contestatória. Logo que chegou enfrentou resistência pelo afastamento de Osnei da diretoria. Embora se sentindo afetado, o professor cumpre dignamente suas tarefas, sem dificultar o trabalho da diretora, mas também sem demonstrar subordinação aquiescente. Em 1977, a escola tinha um total de 62 alunos matriculados, apresentando um índice de pouco mais de 14% de evasão. Problemas no setor de saúde Embora a comunidade conte com um posto de saúde, não há assistência médica, sendo necessário buscar atendimento em Campo Grande, Rochedinho ou Jaraguari. 249 250 Quilombos Os principais males em Furnas de Dionísio são a doença de Chagas, a anemia falciforme e a hipertensão, havendo grande incidência de derrames. A Fundação Nacional de Saúde iniciou, como já dissemos, um projeto de erradicação do transmissor da doença de Chagas com a construção ou reconstrução das casas da comunidade. O atendimento feito até agora não chega a alcançar 10% do total previsto. Uma equipe de pesquisadores da área de farmácia, da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, começou a desenvolver um projeto para o diagnóstico de anemia e enteroparasitoses. O atendimento às demandas de saúde está longe de garantir à comunidade de Furnas de Dionísio a assistência necessária. Embora conte com duas agentes de saúde, a comunidade conta mesmo é com as suas formas tradicionais de atendimento nesse campo. A comunidade em movimento Com o apoio do Grupo Tez, da Pastoral da Terra e da missionária que ali atuam, iniciou-se um movimento comunitário no sentido de encaminhar as reivindicações aos poderes constituídos. O trabalho de mobilização encontrou suporte na resistência característica da comunidade. Em 1989, fundou-se a Associação de Pequenos Produtores Rurais de Furnas de Dionísio, de que participam produtores da comunidade negra e brancos que têm propriedades na área. Os associados da comunidade no início não priorizaram o poder político adstrito aos cargos da diretoria, tendo a minoria branca alçada ao cargo de presidente. Newton Ferreira da Silva, membro da linhagem dos Silva, foi formando a sua liderança na comunidade, tendo sido eleito presidente e reeleito nos termos estatutários. Assessorado pelo movimento negro e outras entidades de apoio, Newton vem desenvolvendo um trabalho consistente e conseqüente. Em 1989, introduziu o curso de alfabetização para adultos, ministrado por professores de Campo Grande. Em 1990, conseguiu trator para preparar a terra para o plantio das hortas e obteve a colaboração de técnicos da Empaer para instruir sobre os cultivos. Em 1992, a associação conseguiu com o Furnas de Dionísio (MS) governo outro trator, verificando-se assim o aumento da produção, principalmente das hortaliças destinadas à comercialização. De 1993 a 1997, a associação obteve as seguintes conquistas: aquisição de um trator equipado; doação de um terreno para a sede, feita por Palmira Ferreira e Joaquim Luiz da Silva; máquina de beneficiar arroz; 22 transformadores e rebaixamento da energia elétrica para atender a 54 domicílios; engenho comunitário equipado com tachos para a fabricação de rapaduras; instalação de uma cozinha industrial na Escola Zumbi dos Palmares, com apoio da Fundação Banco do Brasil; posto telefônico, com o apoio da prefeitura e da Telesul; construção do prédio da escola estadual e da casa da secretária; treinamento da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul para formação de um apiário, com 10 associados; programa de combate à doença de Chagas, perfuração de poço artesiano na escola; construção de uma ponte pelo Dersul; aquisição de uma caminhonete; início da pesquisa de anemia falciforme por equipe médica da UFMS. Para 1998, a pauta da associação incluía: reforma do posto de saúde; construção de sua sede; recursos para corrigir o solo; ambulância para atendimento ao posto de saúde; incentivo a professores da comunidade; e caminhão para transporte da produção. A organização da comunidade vem-se mostrando uma via eficaz de encaminhamento de suas demandas à prefeitura, ao governo do estado e ao governo federal. O problema da titulação da terra continua sem solução. Assegurar à comunidade de Furnas de Dionísio o título definitivo de suas terras é fator primordial para sua continuidade. A titulação da terra tem como corolário a dotação de recursos para uma operação de salvamento, pois Furnas de Dionísio é hoje uma comunidade agrícola em perigo. Referências bibliográficas Aguiar, Carmem Maria. Educação, natureza e cultura: um modo de ensinar. São Paulo, FE/USO, 1998. (Tese de Doutorado.) Arquivo Público Estadual de Mato Grosso do Sul. Como se de ventre livre nascido fosse. Mato Grosso do Sul, 1993. 251 252 Quilombos Assis, Edvaldo de. Contribuição para o estudo do negro. Cuiabá, UFMT, 1988. Bandeira, Maria de Lourdes. Território negro em espaço branco. São Paulo, Brasiliense, 1988. ———. Terras negras, invisibilidade expropriadora. Textos e Debates. UFSC, Núcleo de Estudos sobre Identidade e Relações Interétnicas, 1(2):712:1990. ———. Terra e territorialidade negra no Brasil contemporâneo. In: XV Encontro Anual da Anpocs. Caxambu, Minas Gerais, 1991. ——— et alii. Negros, parentes e camponeses: identidade na fronteira pioneira de Mato Grosso (Brasil). In: VI Congresso Internacional da Aladaa. Havana, Cuba, 1989. ——— et alii. Mato Grosso: a terra no discurso das leis (1850-1930). Cadernos do Neru. Cuiabá, ICHS, UFMT (2), dez 1993. ——— & Sodré, D. Triana de V. O Estado Novo, a reorganização espacial de Mato Grosso e a expropriação de terras de negros. Cadernos do Neru. Cuiabá, ICHS, UFMT (2), dez 1993. Balandier, Georges. Antropologia política. 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São Paulo, Marco Zero/UFMT, 1993. 253 CAPÍTULO 7 Os Quilombos do Trombetas e do Erepecuru-Cuminá Eliane Cantarino O’Dwyer Na fronteira amazônica, os segmentos negros junto aos rios Trombetas e seu afluente Erepecuru-Cuminá constroem sua identidade através de uma adscrição étnica determinada por sua origem e formação, mantêm uma atuação orientada por seus valores básicos, além de demarcarem seus limites de pertença ao grupo como alguma coisa que se encontra “dentro” ou “fora”.1 Nossa prática de pesquisa antropológica junto a esses segmentos negros, originários dos quilombos, tem permitido questionar não só as visões do senso comum, como também a de estudiosos que consideram os quilombos como espaços fechados, o que nos obriga a considerar conjuntos relacionais mais amplos. Desde 1992, os estudos realizados nas “comunidades negras rurais remanescentes de quilombos”, quer do rio Trombetas, quer de seu afluente Erepecuru-Cuminá, têm nos permitido afirmar, através do estabelecimento de uma relação etnográfica específica, que a identidade étnica desses grupos, definida por uma presumida procedência comum dos quilombos, não se construiu a partir de alguma situação de isolamento geográfico ou social. Ao contrário, tal isolamento parece decorrer de situações novas, impostas por processos identificados como de globalização e suas 1 Barth, 2000. Quilombos 256 conseqüências: a implantação de um grande projeto de extração mineral em seu território e as ações de vigilância e controle sobre os grupos negros do Trombetas e do Erepecuru-Cuminá. Tais ações são realizadas através de uma política de preservação ambiental que define as práticas culturais desses grupos como transgressões à legislação.2 O centro administrativo desse complexo industrial, denominado Porto Trombetas, emerge no imaginário da população local como uma cidade construída no meio da floresta. Circula entre as comunidades negras do Trombetas e de seu afluente Erepecuru-Cuminá uma declaração sempre citada — o que faz dela um enunciado cultural — e atribuída ao profeta Balduíno, autoridade espiritual reconhecida pelos membros dessas comunidades, como uma predição feita antes da sua morte, de um evento sem precedentes, confirmado, anos depois, pelos seus conterrâneos, sobre uma grande cidade iluminada que emerge no meio da floresta. A formulação de identidades distintas é efeito, neste caso, não de um sistema cultural exclusivo, mas de imagens construídas em um contexto de referências interculturais em que os envolvidos encontram-se em complexas relações de poder e resistência. Desse modo, a experiência cultural desses grupos é construída por sua inserção em um universo social mais amplo a partir de eventos que transcendem os limites do âmbito local, mas que afetam as respostas locais aos processos de exploração florestal em larga escala, atuando na implementação de políticas públicas, impondo, ambas, novas formas de gestão e controle sobre o território ocupado por esses grupos. Esses grupos, que se definem legalmente como “remanescentes de quilombos” e que vivem em territórios separados no alto curso do rio Trombetas e de seu afluente Erepecuru-Cuminá, costumam praticar, segundo nossa experiência etnográfica, formas de isolamento defensivo quando da entrada de estranhos nas localidades em que vivem, criando uma série de dificuldades de acesso às pessoas de fora, até quando as intenções destas são definidas em termos de conheci2 O’Dwyer, 1995. Os Quilombos do Trombetas e do Erepecuru-Cuminá mento. A localização espacial desses grupos, distribuídos nas chamadas comunidades — termo usado aqui em seu sentido empírico, segundo denominação deles próprios — situadas ao longo das margens no alto dos rios e alcançáveis somente através de transporte fluvial — inexistem linhas regulares de barco para a ligação com a cidade de Oriximiná, onde, periodicamente, vendem seus produtos, principalmente a castanha, e adquirem alguns bens necessários ao consumo —, constitui fator que pode funcionar, na prática, em determinados contextos sociais e políticos, como um limite espacial usado para manter uma relativa distância física das suas famílias, reunidas em unidades residenciais localizadas no alto dos rios e em áreas de maior circulação, principalmente a sede municipal, que visitam periodicamente. Em Oriximiná é possível observar o encontro de diferentes comunidades ribeirinhas e outros grupos étnicos e sociais. Por conseguinte, a configuração espacial desses grupos do alto curso dos rios, cujo relativo isolamento é mantido e atualizado de forma consciente, não deve conduzir à reificação de qualquer imagem de um “mundo fechado e auto-suficiente”.3 Do nosso ponto de vista, a naturalização das idéias de “isolado social” e/ou “isolado cultural” deixa de fora e à margem das descrições etnográficas, diferentes processos históricos e sociais que resultam na construção de um “isolamento consciente”, baseado na memória histórica e genealógica desses grupos sobre sua origem comum, recuperando-se, assim, a noção de Weber sobre a construção de “fronteiras rigorosas... que se fixam em pequenas diferenças de hábitos cultivados e aprofundados... em virtude de um isolamento monopolista consciente”.4 Em situação de pesquisa, elaboramos uma interpretação etnográfica de que os grupos que se definem legalmente como “remanescentes de quilombos” dos rios Trombetas e de seu afluente Erepecuru-Cuminá praticam um “isolamento consciente”5 que não pode ser explicado por qualquer idéia de “isolado primitivo” ou de 3 Augé, 1994:45. Weber, 1991:269. 5 O’Dywer, 1999. 4 257 258 Quilombos isolamento geográfico, social e cultural que venha a naturalizá-los, assim, em face de um observador externo. De fato, essa forma de “isolamento consciente” só adquire toda sua significação quando relacionada à própria experiência de pesquisa etnográfica; aos obstáculos enfrentados para a realização do trabalho de campo nos anos de 1992, 1993, 1995 e 1999, e às estratégias de que tivemos de lançar mão para obter a aceitação do grupo no contexto em que estavam voltados para a produção de sua própria história, através das lembranças dos quilombos e das lendas heróicas contadas pelos moradores mais velhos das comunidades como afirmação política dos seus direitos constitucionais. A experiência etnográfica É preciso, inicialmente, situar a forma como fomos incluídos na elaboração da história do grupo, a qual permitiu que tivéssemos, assim, acesso ao material etnográfico. Na primeira fase do nosso trabalho de campo, a identidade histórica do grupo foi um assunto de certo modo imposto por eles e, em parte, o resultado dos acasos e situações da pesquisa. Na cidade de Oriximiná, enquanto esperávamos permissão para viajar às comunidades no alto dos rios, instalados em uma sala da Unidade Avançada José Veríssimo — campus avançado da Universidade Federal Fluminense (UFF), na Amazônia —, passamos a consultar bibliografia histórica sobre a região e relatos de viajantes que atravessaram o alto curso do rio Trombetas e de seu afluente ErepecuruCuminá no final do século XIX e início do XX, como o casal Henri e Otille Coudreau, que fizeram trabalhos de levantamento socioeconômico e geográfico para o governo do Pará, em 1898 e 1900. Na Unidade Avançada, o mapa afixado com a expedição de Otille Coudreau ao Erepecuru-Cuminá — dois anos depois da morte de seu marido, ocorrida durante a expedição de 1898 ao rio Trombetas —, acabou funcionando como um roteiro de nossa viagem. Sua cartografia nos levou para além dos cursos navegáveis, às áreas encachoeiradas Os Quilombos do Trombetas e do Erepecuru-Cuminá onde os grupos “remanescentes de quilombos” praticam o extrativismo da castanha, no inverno, e a pescaria, no verão. Essa viagem pela região acima da parte navegável do rio e as duras condições que enfrentamos longe de suas casas, situadas no curso navegável mais abaixo, foram decisivas para a aceitação da pesquisa. No percurso a montante, passamos a proceder à leitura, em voz alta, do relatório de mme. Coudreau para nossos acompanhantes das comunidades de Jauari, Espírito Santo e Cachoeira Pancada. Como traduzíamos um texto francês, podíamos suprimir certas partes do relato em que a antiga viajante manifestava suas opiniões etnocêntricas e racistas, detendo-nos nas informações de viagem em que mencionava a topografia, os nomes dos igarapés, as cachoeiras, seus acompanhantes e seu guia nativo do Erepecuru-Cuminá: Guillermo, como estava grafado no relatório do início do século XX, o qual era tio-avô de Joaquim Lima, morador da comunidade do Espírito Santo e que fazia conosco agora a viagem ao alto do rio. A partir da relação de pesquisa, as informações do relatório da viagem de mme. Coudreau foram inseridas no presente etnográfico e esse documento “liberado” do contexto histórico que o produziu — repleto de passagens onde os chamados “mocambeiros” eram desqualificados e as informações, dadas por seu guia ou ouvidas da população nativa, desacreditadas e consideradas, por vezes, sem importância. As condições e acasos da pesquisa de campo levaram à sua aceitação, em virtude de um episódio, sem precedentes, ocorrido durante a descida dos cursos encachoeirados, ao baixarmos do igarapé Penecura. Como já o fizéramos na subida do rio, voltamos a mencionar as informações da expedição Coudreau sobre o local onde seu guia, Guillermo, assinalara a antiga tapera da Figéna, considerada uma das “mocambeiras” da fuga. Na época da expedição, mme. Coudreau a encontrara morando já na parte mansa do rio, para onde descera pouco antes da Abolição da Escravatura, juntamente com Lotário e outros “mocambeiros da fuga”, premidos, segundo explicação do relatório, pelos conflitos com os índios pianocotós, acima das cachoeiras do Erepecuru-Cuminá. 259 260 Quilombos A partir das descrições que líamos no relatório de viagem sobre os meandros do rio e a existência de uma vegetação mais baixa do que a floresta, nossos acompanhantes identificaram o possível local citado como o antigo sítio da Figéna. “Pelo aceiro do terreno e aquela árvore grande, teve gente ali”, disse Joaquim Lima. A seguir, Profeta da Cachoeira Pancada e outro dos nossos acompanhantes presumiram: “o jenipapo (árvore indicada por Joaquim) devia ficar bem no porto de uma casa”. Ao ser rodeada toda a área de capoeira que pode ter-se constituído no sítio da Figéna, constataram a existência de “terra preta”, apropriada para o plantio, além de vários cafeeiros que pareciam tronqueiras e outras árvores bem grossas, indícios prováveis de uma ocupação muito antiga. Começamos essa expedição ao alto do rio como uma forma de manter contato com o grupo fora do perímetro urbano, já que havíamos conquistado sua adesão à idéia da viagem, em parte por eles próprios sugerida em função do material que consultávamos. Não podíamos prever, a não ser pela persistência em cumprir nosso objetivo, que seu resultado levasse a uma maior aceitação, pelos negros do Erepecuru-Cuminá, das nossas atividades de pesquisa, ao colocar-nos diante desse tipo de evidência etnográfica relativa ao seu passado. Por ocasião de uma das viagens de volta à região, efetuada em novembro de 1995, com o objetivo de instruir os trabalhos da 6a Câmara da Procuradoria Geral da República — durante minha participação na diretoria da Associação Brasileira de Antropologia (ABA), em que coordenava o Grupo de Trabalho sobre Terra de Quilombo da ABA —, sofri uma espécie de “interdito proibitório” pelos representantes das “comunidades negras” de visitá-las no alto dos rios. Desse modo, a interpretação etnográfica sobre o isolamento defensivo desses grupos voltou-se contra minha própria prática de pesquisa antropológica. Impedida de viajar até as comunidades do alto rio Trombetas e Erepecuru-Cuminá, no contexto das comemorações do tricentenário de Zumbi dos Palmares, quando se aguardava com grande expectativa a titulação da comunidade de Boa Vista — considerada a primeira a obter a aplicação do art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição Federal de 1988 —, aceitei os limites a mim impostos. Assim, pude extrair dessa difícil experiên- Os Quilombos do Trombetas e do Erepecuru-Cuminá cia e dos contatos que continuava a proceder com os diferentes grupos das comunidades “remanescentes de quilombos”, que periodicamente viajam à cidade de Oriximiná, e das famílias que aí residem, uma compreensão desta relação exclusiva com o território que ocupam no alto dos rios e da construção de fronteiras rigorosas que caracterizam os grupos étnicos em suas ações comuns, orientadas por fatores de natureza política.6 Esse relato serve para situar a forma como fomos incluídos na elaboração da história do grupo, bem como para situar a forma de como tivemos acesso ao material etnográfico. Nesta primeira fase do trabalho de campo, a identidade histórica do grupo foi um assunto de certo modo sugerido por eles e, em parte, o resultado dos acasos e predicamentos da pesquisa. Procedência e destino comum Os negros dos rios Trombetas e Erepecuru-Cuminá constroem sua identidade de sujeito histórico como procedente dos quilombos a partir de relatos de fuga que misturam eventos fragmentados, presentes na memória social, com lendas heróicas e narrativas míticas sobre a cobra grande do Barracão de Pedra, que impedia seus antepassados, verdadeiros ou míticos, de deslocarem-se livremente pelo rio. Essas narrativas sobre seu passado não implicam desconhecimento de dados da historiografia existente sobre os quilombos. Aqueles que têm liderança política e que, no contexto atual, mobilizam-se pelo reconhecimento dos direitos territoriais garantidos na Constituição Federal, sabem de sua formação ocorrida por fugas sistemáticas de escravos até as últimas décadas do século XIX, desde Santarém e outras localidades da região do Baixo Amazonas. Contudo, nossa experiência etnográfica constata não ser exatamente por esse tipo de informação sobre seu passado — a que podem ter acesso inclusive através de pesquisadores, sejam historiadores, antropólogos, geógrafos 6 Wever, 1991. 261 Quilombos 262 e outros cientistas sociais — que costumam se interessar ou aprovar como tema convergente em contatos e conversas com os estudiosos. Estes últimos, e em número crescente, têm mobilizado seus esforços para conhecer a cultura, a formação histórica e social desses grupos que, vivendo no alto curso dos rios, lagos e igarapés no interior da floresta, parecem atualizar um passado pressuposto de isolamento e autoctonia dos povos amazônicos. As narrativas de fuga e fundação contaram com a contribuição do material que possuíamos sobre os negros do Trombetas e Erepecuru-Cuminá, tais como as dos relatos de viajantes, como o casal Coudreau que, em 1898/1900, subiu esses rios e citou os nomes de vários mocambeiros da fuga. Os Coudreau usavam o termo mocambeiro conforme a acepção local, pelo que escreveram, ouvida nos contatos com autoridades e comerciantes da cidade de Oriximiná. A acepção vem acompanhada da explicação de que se tratavam de escravos marrons. Os nomes, bem como as fotos de alguns negros estampadas nos livros publicados na França pelos Coudreau, com os relatos das viagens, foram acolhidos com entusiasmo nas comunidades que visitamos no alto Erepecuru-Cuminá. Os mocambeiros da fuga, citados pelos Coudreau, passaram a ser ponto de referência genealógica e foram incluídos pelos negros do Erepecuru-Cuminá na reconstrução do que consideram a história dos princípios.7 Foi assim que, ao fornecer-lhes os dados, acabamos, de certo modo involuntariamente, contribuindo para um achado na região acima da grande queda-d’água do Chuvisco, cheia de travessões e cursos encachoeirados. Estávamos em viagem até a foz do Penecura, em cujas cabeceiras, na serra de Santa Luzia, dizem ter-se formado, no passado, um quilombo. Fomos levados até lá porque aceitamos entrar na relação de troca com eles e porque nos interessamos por suas histórias sobre os princípios. Incorporávamos, assim, o preceito de que “o 7 A transcrição textual da história dos princípios e uma análise detalhada de sua narrativa encontram-se no artigo “Da Matta nas paradas entre ‘malandros’ e ‘heróis’: a lenda da Cobra Grande, o tempo histórico e questões de identidade” (O’Dwyer, 2000). Os Quilombos do Trombetas e do Erepecuru-Cuminá antropólogo deve seguir o que encontra na sociedade que escolheu estudar”.8 Entre a cachoeira do Cajual e a foz do Penecura, no lugar onde o relatório de mme. Coudreau mencionava a existência de um sítio pertencente a uma das mocambeiras da fuga — chamada Figéna —, encontramos vestígios arqueológicos de uma ocupação muito antiga, localizados através do entrecruzamento das informações que líamos no livro dos Coudreau e o conhecimento que os negros possuíam da cobertura florestal de mata virgem e áreas de antigas capoeiras. Ali, identificamos restos de alguidar, fundo de garrafa com inscrição em inglês, ruínas da muralha de um forno, o provável lugar do porto de uma casa onde havia um jenipapeiro e laranjeiras, cacaueiros e plantas medicinais. A descoberta dessa evidência etnográfica foi considerada decisiva para a aceitação da pesquisa. Tanto que, ao descermos as cachoeiras e visitarmos os moradores das comunidades situadas na parte mansa do rio, isto é, navegável, eles passaram a falar mais livremente sobre seus antepassados e o que lhes contavam os pais e avós.9 Esse “gosto pelas origens”10 constituía-se, assim, em moeda de troca entre nós, da pesquisa e nossos “informantes”, no contexto da inclusão dos negros do Erepecuru-Cuminá no processo de reconhecimento de seus direitos territoriais, já em curso para as comunidades negras do chamado rio grande — o Trombetas. A história dos princípios encontra-se escrita a partir de um esforço pessoal de Joaquim Lima, diretor da Associação das Comunidades Remanescentes de Quilombos do Município de Oriximiná (ARQMO) e membro da comunidade do Espírito Santo no rio Erepecuru-Cuminá, em produzir um documento para o qual solicitou nossa colaboração. Essa história dos princípios, documentada por ele na qualidade de representante dos negros do Erepecuru-Cuminá, encontra-se, desse modo, revestida de uma função política. Do nosso ponto de vista, porém, há mais. A história, de acordo com Epstein (1978), costuma assumir uma importância 8 Evans-Pritchard, 1978:300. O’Dywer, 1999:140. 10 Augé, 1994:44. 9 263 Quilombos 264 crucial na formação da identidade étnica, na medida em que fornece às pessoas uma percepção do seu passado, o que, necessariamente, não corresponde a um registro autêntico do que realmente aconteceu em tempos passados. Assim, acompanhamos esse autor quando considera que uma história, no sentido de uma identificação seletiva com antepassados, pode ser uma fonte do sentimento de pertença pelo qual se manifesta, positivamente, a identidade étnica. A história dos princípios que circula na forma de uma narrativa entre os membros das chamadas comunidades negras do rio Erepecuru-Cuminá refere-se a um evento histórico específico sobre a formação de quilombos durante o período escravocrata. Mas o registro desse evento, que apresenta uma temporalidade marcada, não é feito através de acontecimentos lineares e encadeados. O passado que aparece na história dos princípios é, igualmente, um tempo cósmico submetido à ação de seres sobrenaturais. Ela descreve a diversidade de origem dos escravos fugidos através da menção às famílias que começaram a chegar em diferentes momentos do século XIX, a partir de diversas localidades, como Santarém e Gurupá, no Baixo Amazonas. No entanto, a narrativa reconhece entre eles uma procedência comum, definida pela relação de resistência ao sistema escravocrata, que representa, neste caso, o papel de um “outro” que produz a identidade.11 Este “outro” aparece expresso no sentido figurado ao assumir a forma de um ser temível da natureza; mais ainda: de tamanho e poderes sobrenaturais. A lenda da cobra grande do Barracão de Pedra, grandes formações rochosas ao longo do Erepecuru-Cuminá, desloca para o plano propriamente cosmológico a experiência da morte vivida na fuga pelos antepassados.12 Nesse sentido, não se trata apenas de uma fábula. O 11 Sobre a produção da identidade pelo reconhecimento da alteridade, ver Marc Augé, 1998:19-20. 12 De acordo, ainda, com o autor citado na nota anterior, a respeito de um livro publicado pelo historiador C. Ginzburg (Le sabbat des sorcières), “fazer da experiência da morte ‘a matriz de todas as relações possíveis’ é ...formular a hipótese antropológica de um laço necessário entre o imaginário da morte e todo imaginário narrativo” (Augé 1998:70). Os Quilombos do Trombetas e do Erepecuru-Cuminá conhecimento sobre ela é revelado pela memória social através dos idosos ou dos velhos — como dizem —, especialmente aqueles qualificados como os mais experientes, capazes de se comunicar com os vivos e os mortos, com passado e o presente, e que podem dar seu testemunho sobre a existência de seres sobrenaturais e entidades imaginárias. Tais potências sobrenaturais são passíveis, ainda, de manifestação indireta e variada no cotidiano do grupo, podendo causar infortúnios e doenças. Devem, por isso, ser domesticadas e esconjuradas pelas rezas e poderes divinatórios e de cura que se manifestam em alguns dentre eles. O poder de pajulia, como disseram durante o nosso trabalho de campo, é considerado uma tradição de família; de modo que os curadores nunca lhes faltaram. Isso é muito sério, advertiram a esta antropóloga, ao mencionarem a existência dessas práticas de natureza xamanista. Em seu relatório de viagem do início do século XX, mme. Coudreau (1901:175) identificou Maria Leutério e Figéna, ambas mocambeiras da fuga, como pajés. E reforçou a importância da primeira por haver esta curado um membro da tripulação da expedição Coudreau. Ao comentar sobre essa passagem do livro, em casa de Joaquim Lima e de sua irmã Margarida, no alto Erepecuru-Cuminá, disseram-me que o velho Raimundo Leutério, neto de Maria Leutério, “era a pessoa que atendia aqui a necessidade... tratava ferida, consertava rachadura e costurava muito bem”. Proceder à cura era considerado um tipo de dom, que se fazia imprescindível para a saúde dos membros das comunidades negras do Erepecuru-Cuminá. O imaginário que circula entre as comunidades negras do ErepecuruCuminá e que se revela através da história dos princípios, compartilhado que é por todos no presente etnográfico, é parte da cosmologia e tradição dos referidos grupos e resiste a mudanças ocorridas em outras áreas da cultura, como no caso das práticas de obrigações e reciprocidade mútua, que alguns dos seus membros reclamam terem sido alteradas devido aos deslocamentos constantes e à fixação de moradias no centro urbano. A história dos princípios como um mito de origem ou fundação constitui, assim, as fronteiras espaciais, sociais e étnicas dos filhos do rio 265 Quilombos 266 Erepecuru-Cuminá, segundo a própria atribuição a que se conferem. Contudo, as referências ao passado idealizado e mítico obedecem a uma orientação de datas, que em parte acompanha as da historiografia. Desse modo, a história dos princípios apresenta um duplo aspecto. Datada em seu nascimento e no correr de alguns episódios que descreve, tal como o do fim da cobra grande do Barracão de Pedra, representa-os, contudo, como eventos míticos, relacionáveis ao conjunto de concepções culturais próprias do grupo portador dessa narrativa. A distinção entre “sociedades frias e quentes” tem sido tema dos principais debates teóricos da antropologia. Lévi-Strauss (1998) veio a público, recentemente, contrapor-se às críticas a ele dirigidas quanto à concepção errônea de “povos sem história”. Ele diz considerar diferente o sentido e alcance da distinção que propôs: “Ela não postula, entre as sociedades, uma diferença de natureza, não as coloca em categorias separadas, mas se refere às atitudes subjetivas que as sociedades adotam diante da história, às maneiras variáveis como elas a concebem” (p. 108). Acrescenta, ainda, que “nenhuma sociedade, portanto, pode ser dita absolutamente fria ou quente” (p. 108). A concepção de história das próprias comunidades negras do Erepecuru-Cuminá sofre de uma dupla orientação de sentido: ao se comportar como uma “coletividade de destino”, na mobilização pelo reconhecimento dos seus direitos constitucionais, quando esquenta sua temperatura histórica; e ao se definir por um passado, concebido através da história dos princípios como “modelo atemporal”.13 Esse aparente paradoxo, revelado pela história dos princípios, remete à questão do tempo, concebido em função dos valores sociais em referência. Na história dos princípios, encontramos a dimensão do tempo histórico das fugas de escravos, que pode ser pensado como o início da nova sociedade dos quilombos, e uma cronologia cósmi- 13 Overing, 1995:108. Os Quilombos do Trombetas e do Erepecuru-Cuminá ca de comunicação com seres sobrenaturais, que torna atemporal e onipresente a história dos princípios, como no tempo cíclico. O tempo pode representar, dessa maneira, um “valor variável na criação da historicidade”.14 Podemos afirmar ainda, com Sahlins,15 que a idéia de quilombo como escravo fugido, que aparece na história dos princípios, é um “signo de referência” e, se por sua natureza, é um objeto histórico, ele não apenas reflete o mundo existente ou pré-existente, revelado pelos documentos, como muito menos segue os usos prescritos pela conceituação.16 Ao contrário, a categoria quilombo como objeto simbólico representa um interesse diferencial para os diversos sujeitos históricos, “de acordo com sua posição em seus esquemas de vida”.17 Por isso, o uso da categoria quilombo, no contexto de afirmação dos direitos constitucionais de segmentos importantes e expressivos da sociedade brasileira, através do cumprimento do art. 68 do ADCT, da Constituição Federal de 1988, tem sido objeto de “mal-entendidos”, devido à perspectiva do observador, ainda que, social e culturalmente, esse uso possa ser considerado “criativo” (p. 188). Os quilombos do Erepecuru-Cuminá revelados pela história dos princípios, não deixam de adquirir certa intencionalidade através das metáforas “motivadas” que recebem e às “inovações de sentido”.18 Esperamos que, ao apresentar os modos pelos quais a história dos princípios constrói seu passado — através da incorporação de eventos míticos —, tenhamos contribuído para enriquecer a compreensão sobre formas de historicidade implícitas em experiências culturais e sociais que parecem, em princípio, estar disponíveis a serem descritas de modo que pode ser considerado “objetivo” pela historiografia. 14 Overing, 1995:109. Fizemos citações mais livres do autor de modo a adequar suas análises aos nossos propósitos (Sahlins, 1990). 16 Sahlins, 1990:185. 17 Ibid., p. 187. 18 Sobre o sentido metafórico de quilombo e a etnicidade como meio de confrontação, ver O’Dwyer, 1995:121-39. 15 267 268 Quilombos Disciplinamento das práticas culturais No afluente Erepecuru-Cuminá, observamos o papel central do parentesco, da procedência comum e das estratégias que põem em ação a construção da identidade do grupo. Ao subirmos o rio Trombetas, deparamo-nos com uma identidade situacional de “remanescente de quilombo” que emerge como resposta atual diante de uma situação de conflito e confronto com grupos econômicos e agências governamentais como o Ibama, que passam a implementar novas formas de controle administrativo e político sobre o território que ocupam e com os quais estão em franca oposição. Essas populações ribeirinhas “remanescentes de quilombos” dos rios Trombetas e Erepecuru-Cuminá sempre viveram dos pequenos roçados, da pesca, da caça e da coleta sazonal da castanha. Com a decretação da Reserva Biológica do Trombetas, em 1979, e da Floresta Nacional de Saracá-Taquera, em 1989, portanto 10 anos depois, com superfícies respectivamente de 385 mil hectares e 426 mil hectares, foi subtraída das “comunidades remanescentes de quilombos”, principalmente aquelas do rio Trombetas, a principal parcela do seu território. Além da proibição de exercerem as atividades extrativistas na área da reserva biológica foram cerceados em suas práticas culturais de pescar, caçar e fazer pequenos roçados na área da floresta nacional. A partir de dois postos de observação, construídos pelo Ibama em locais estratégicos do rio, suas embarcações passaram a ser vistoriadas, e eles próprios impedidos de pescar nos lagos e igarapés próximos às comunidades. Em todas as “comunidades remanescentes de quilombos” do Trombetas, visitadas por nós durante o trabalho de campo nos anos de 1992/93 e 1995, ouvimos testemunhos a propósito dos episódios em que estas comunidades se consideraram humilhadas, tratadas preconceituosamente pelo estigma da raça; e externaram ainda seus pontos de vista sobre a condenação a que estavam vitimados devido a um poder que agia sobre eles de modo coercitivo e, segundo os relatos, extralegal. Os Quilombos do Trombetas e do Erepecuru-Cuminá No Caderno Terra de Quilombo, publicado pela ABA, em 1995, observamos que o paradigma da preservação ambiental era defendido pela Mineração Rio do Norte como de interesse da coletividade, sendo incorporado como uma meta central em sua programação, envolvendo organismos governamentais na definição de objetivos e procedimentos comuns. Os efeitos sociais do programa sustentado por esse paradigma vinham sendo a vigilância constante não só sobre a população trabalhadora da parte industrial de Porto Trombetas, mas igualmente dos habitantes nativos, que se encontram na área externa do núcleo ubano industrial. O paradigma da preservação ambiental, ao estabelecer o comportamento-padrão que deve ser seguido, torna as condutas que dele se afastam como sujeitas à normatização. As medidas disciplinares para o controle da população encontram na legislação sua justificativa legal. Os “negros do Trombetas” passam a ser vistos pelas autoridades administrativas e pelo corpo técnico dos organismos governamentais como indivíduos que precisam ser disciplinados, visando a alteração de seus hábitos. Quanto às suas práticas culturais, elas passam a ser identificadas como transgressões à legislação. No Trombetas, os episódios de conflito entre os membros das “comunidades negras rurais remanescentes de quilombo” e o corpo especializado do Ibama, que fazia uso, inclusive, de força policial, circulavam através de uma extensa rede de comunicação social, que incluía todas as comunidades do Trombetas e também as do Erepecuru-Cuminá. Essas situações de conflito obedeciam a determinado padrão de ocorrência em que o preconceito e a estigmatização dos negros emergiam no intercurso da própria ação contra eles. Os eventos costumavam assumir um aspecto dramático e foram contados pelo testemunho de comunidades inteiras reunidas: homens, mulheres e crianças. Foi o que ocorreu por ocasião do trabalho de campo etnográfico que realizamos nos anos de 1992 e 1993. Em 1995, quando voltamos à região, essa problemática sociológica das acusações, que se impusera à nossa atenção no período de campo anterior, persistia nas visitas que realizamos às comunidades de Jamari e Mãe Cué, no Trombetas. Benedito, membro da comunidade de Jamari, testemunhou aos representantes da GKKE — central 269 270 Quilombos sindical de alumínio da Alemanha — que vinham verificar, através de entidades de direitos humanos internacionais, as condições das populações ribeirinhas situadas próximas da área de mineração da bauxita, o seguinte: “A maior perseguição para nós aqui é esse Ibama. Tenho 51 anos dentro desse rio. Se ele vê que estamos plantando um roçado, vai embargar para fazer o serviço. Tomam o peixe que pescamos, as caixas de castanha, quando chegamos do mato com elas nas costas. Isso aqui é nosso (disse emocionado, diante dos visitantes e da comunidade reunida). Deus deixou e nós vive aqui nessa terra como nosso”. As “comunidades remanescentes de quilombos” do Trombetas passaram a realizar, às “escondidas”, como dizem, as atividades econômicas de sustento, principalmente a pesca, fonte essencial de alimentos, submetendo-se, contudo, aos rigores das sanções quando surpreendidos pela fiscalização dos agentes do Ibama. As penalizações infligidas consistem, invariavelmente, na perda de todos os apetrechos de pesca, inclusive da canoa, imprescindível à vida no rio; da espingarda, que costumeiramente carregam nessas circunstâncias, sendo-lhes confiscado, ainda, o suprimento de alimentos que tenha sido obtido. Nos relatos sobre incidentes, os informantes costumam reproduzir em frases curtas as palavras que lhes são dirigidas pelos agentes coatores, sendo recorrente o uso de epítetos contra eles: “preto”, “bando de preto besta”, “macacos”, entre outros estereótipos que expressam sentimentos de discriminação e marcam a violência moral dos estigmas que lhes são imputados. As ações de vigilância e controle sobre as “comunidades negras” do Trombetas encontram-se, assim, investidas pela prática secular do racismo. Em sua concepção, a definição de novas formas de gestão pública sobre o território que ocupam parece desconhecer por completo a realidade social dos grupos “remanescentes de quilombos”, que aí estão estabelecidos há mais de um século. O uso desigual do poder, que possibilita o controle administrativo sobre as “comunidades negras” do alto Trombetas, encontra-se também diretamente relacionado à implementação de uma nova forma de exploração da floresta da região, através de investimento de capital realizado por empresas nacionais e internacionais para desen- Os Quilombos do Trombetas e do Erepecuru-Cuminá volver o empreendimento mineral para a exploração da bauxita — Mineração Rio do Norte. As populações “remanescentes de quilombos” do Trombetas se ressentem do tipo de controle a que estão sujeitas pelo Ibama, que mapeia todo o movimento deles pelo rio. Segundo eles, não podem visitar um “parente”, que seja, nas comunidades localizadas do lado direito do rio, sem serem obrigados a atravessar para a margem oposta, e apresentarem-se nos postos de fiscalização. Do contrário, os agentes podem ir ao encalço do barco em lancha “voadeira”, com a suspeita de que passaram “escondidos” pelos igarapés e furos entre os lagos e o rio. Os postos de vigilância do Ibama e a permanente visibilidade que mantêm sobre os grupos étnicos “remanescentes de quilombos” do Trombetas são exemplos de uma forma de operação do poder no espaço, que podem encontrar uma explicação pertinente no modelo do Panopticon de Bentham, analisado por Foucault.19 Como um diagrama arquitetônico, representado, no caso, pelos postos de vigilância do Ibama, que asseguram visibilidade permanente e fiscalização contínua, o Panopticon é um meio de controle do espaço e de ordenamento e distribuição de indivíduos e grupos, constituindo, como um dos seus exemplos, o modelo da cidade em quarentena. Mas ele é, sobretudo, um “meio para a operação do poder no espaço”, tornando os indivíduos observáveis e sujeitos a essa forma de tecnologia disciplinar que, por vezes, investe sobre certas instituições.20 É preciso, portanto, levar em conta a lógica do campo social e político em que as medidas consideradas mais generosas intervêm, como no caso da preservação ambiental. O caráter formal e idealista das medidas pode não combinar, como neste caso, com as condições de sua concretização. A identidade situacional de “remanescente de quilombo” emerge, assim, em um contexto de luta em que resistem às medidas administrativas e às ações econômicas através de uma mobilização política 19 20 Rabinow & Dreyfus, 1995. Ibid. 271 Quilombos 272 pelo reconhecimento do direito às suas terras. Nesse sentido, é uma categoria política, não necessariamente presente no intercâmbio social diário. Para efeitos de interação com outros grupos sociais, inclusive populações de trabalhadores rurais ribeirinhos e posseiros de glebas localizadas nas estradas vicinais à cidade de Oriximiná, o critério mais relevante é o racial, determinado pela cor da pele. É no domínio político que a etnicidade desses grupos se manifesta e adquire, em função de destinos históricos comuns, toda sua significação. Mas a violência cometida pelos agentes do Ibama nos postos de fiscalização e no controle ao longo do rio, através de agentes que se deslocam com lanchas a motor (conhecidas como “voadeiras”), em alta velocidade, diminuiu a partir de 1995, que, coincidentemente, foi o período da titulação da comunidade de Boa Vista, situada bem ao lado da MRN. As técnicas do panoptismo, contudo, não foram suprimidas; elas sofreram, de certa forma, uma mudança tática. Através de projetos considerados de desenvolvimento auto-sustentável, técnicos e pesquisadores vinculados ao Ibama ou em colaboração com esse órgão governamental, pretendiam inculcar uma nova pedagogia sobre padrões de manejo do meio ambiente que visava erradicar práticas supostamente “atrasadas” e apresentar formas mais adequadas de ocupação territorial. E, assim, favorecer a “produção de populações controladas e eficientes”.21 A comunidade de Boa Vista, considerada a primeira a ser titulada como “remanescente de quilombo”, de acordo com o art. 68 do ADCT, havia sido drasticamente reduzida em seu território pelo empreendimento mineral, sendo titulados menos de mil hectares. Enquanto isso, a gleba Trombetas, discriminada pelo Incra desde 1980 como terra pública arrecadada pela União e encravada, posteriormente, nos limites da Reserva Biológica e da Floresta Nacional, possui 290 mil hectares. Paralelamente à diminuição ou afrouxamento do controle e da vigilância dos seus agentes e à aplicação de novas “técnicas disciplinares” que permitissem uma mudança na orientação cultural, o Ibama 21 Rabinow & Dreyfus, 1995:212. Os Quilombos do Trombetas e do Erepecuru-Cuminá iniciou, nesse mesmo ano de 1995, o corte do Pico da Floresta Nacional, através de um rumo aberto na mata para demarcar toda a área abarcada pelo decreto de criação da Floresta Nacional de SaracaTaquera. O pico de demarcação dessa floresta nacional tem constituído o principal conflito que, a partir de 1995 e nos anos subseqüentes, até hoje, tem confrontado os órgãos governamentais com as populações ribeirinhas do Trombetas. Além de atingir algumas das “comunidades remanescentes de quilombo” da margem direita do alto do rio, atingiu, igualmente, em seu traçado, várias comunidades dos chamados “ribeirinhos”, no médio curso do rio. O pico cortou roçados e chegou a dividir, em seu delineamento, a casa de uma moradora e sua família. A identidade de lugar — “filhos do rio”— tem sido igualmente usada pelos membros das “comunidades negras rurais” nesse contexto de ameaças externas em que acionam estratégias para sua defesa. Afinal, o Pico da Floresta Nacional, que ameaça a retirada das populações ribeirinhas dessa área, ao apagar as divisas do território ocupado parece anunciar a perda iminente da atribuição de pertença desses grupos. Critérios de pertencimento territorial e a produção das diferenças culturais Fora da área do Trombetas, onde se encontram a MRN, a Reserva Biológica e a Floresta Nacional, as comunidades “remanescentes de quilombos” têm realizado, através da ARQMO, a titulação coletiva das áreas que ocupam, que segue a prática de uso comum do território. Tal procedimento passou a servir de modelo para a ação coletiva das comunidades de “ribeirinhos” que não se definem pela procedência comum dos quilombos. O STR (Sindicato dos Trabalhadores Rurais) de Oriximiná, junto com a ARQMO (Associação dos Remanescentes dos Quilombos de Oriximiná), e seguindo os procedimentos adotados pela “associação dos remanescentes de quilombos” para o reconhecimento dos direitos territoriais, tem realizado reuniões nas comunidades ribeirinhas do Trombetas e do 273 Quilombos 274 Erepecuru-Cuminá, visando sua titulação. O direito coletivo ao território que ocupam é defendido pelo fato, como dizem, de morarem num lugar e plantarem seus roçados em outro, muito distante; pelo uso comum que fazem das matas na extração de material para construção das suas moradias, como palha e cipó; além de frutos silvestres como o açaí, do qual fazem o vinho, a bacaba, o tucumã etc.; assim como dos lagos em que pescam para consumo familiar. Apesar das semelhanças que as identificam com as formas de territorialização coletiva das comunidades negras rurais e a defesa de interesses comuns sobre o reconhecimento dos seus territórios, as populações tradicionais ribeirinhas de Oriximiná, através de seus representantes e alguns de seus membros, consideram-se muito diferentes. Nesse contexto, os chamados “remanescentes” são reconhecidos por eles como um “povo da floresta”. Os “traços e emblemas diagnósticos”22 atribuídos por parte daqueles com quem interagem23 se, por um lado, expressam julgamentos etnocêntricos, por outro representam uma forma positiva de identificação. Os chamados “colonos ribeirinhos” costumam comentar que “esses negros são tudo preguiçoso; todo esse monte de terra e eles não plantam nada”. Para os trabalhadores ribeirinhos, os “negros”, como dizem, não têm uma produção fixa, a não ser a da castanha: “são mais extrativistas mesmo; você chega à casa de um negro, praticamente é dentro da mata”. Porém, a partir da história da preservação da Amazônia, segundo suas próprias explicações, passaram a reconhecer que os negros fizeram o papel deles, preservando melhor do que ninguém a floresta. Procedem, ainda, a uma outra distinção entre eles, sobre o comportamento em contexto urbano, dizendo que na “sociedade moderna” de Oriximiná (leia-se: a vida que levam na cidade) os “negros” são discriminados e, diferentemente dos “colonos ribeirinhos” que preferem se aglomerar e misturar, os “negros” con22 23 Nagata, 1973:333. Deve-se explorar em outra oportunidade os diferentes usos de “rótulos” distintivos para a classificação étnica”, permanecendo ainda como questão se os “critérios reclamados pelos membros” são os mesmos ou diferem do “diagnóstico pelo qual os de fora os reconhecem” (Moerman, 1965:1.223). Os Quilombos do Trombetas e do Erepecuru-Cuminá tinuam unidos e preferem morar mais isolados, no alto dos rios. Trata-se, portanto, de “unidades em contraste”, que se consideram diferentes em termos de subsistência e das interações que promovem no núcleo urbano. Na aliança e parceria construída entre a ARQMO (Associação dos Remanescentes de Quilombos de Oriximiná), o sindicato e outros órgãos de representação dos trabalhadores, os “colonos ribeirinhos” organizados para a titulação coletiva em suas comunidades estão pleiteando o reconhecimento territorial das áreas que ocupam. Localizadas entre os rios Erepecuru-Cuminá e médio Trombetas, que fazem limites com as comunidades negras, as áreas ocupadas pelos “colonos ribeirinhos” são consideradas estratégicas para a implementação de uma nova política de territorialização desses grupos, a partir dos interesses das coletividades locais, de “colonos ribeirinhos” e de “negros”, conforme as denominações e distinções que usam. As comunidades de “colonos ribeirinhos” que dão seguimento às comunidades negras de Cachoeira Pancada, Espírito Santo, Jauari, Varre Vento, Terra Preta e outras, no sentido jusante, são as seguintes: Salgado 1, 2 e 3, no Cuminá-Mirim e Acapuzinho, Curupira, Aurora, Castanho, Moura e Xiriri, no Trombetas. Esta “lista de nomes sugere um espaço” que inscreve em uma “linha de continuidade mais do que de ruptura” as comunidades “remanescentes de quilombos” e as dos “colonos ribeirinhos”.24 Na área da Floresta Nacional encontram-se 26 comunidades de “colonos ribeirinhos” atingidas pela abertura do pico pelo Ibama, sendo que no Ajarazal houve ameaças e tiros. Ali, o pico parou pela mobilização coletiva e, como dizem, pelo “embargo que botamos na demarcação da Floresta Nacional”. Na negociação em curso entre os órgãos governamentais, como Ibama e Incra, e as entidades dos trabalhadores, tem sido proposto para as comunidades ribeirinhas que não se definem pela procedência comum dos quilombos e encontram-se 24 Sobre o recurso habitual de representar o espaço com a ajuda de nomes, ver Revel, 1989:139. 275 276 Quilombos dentro da Floresta Nacional, a concessão de uso, em que os trabalhadores, uma vez cadastrados, passariam a ser “obrigados” a pedir permissão para plantar, caçar ou pescar nas áreas da floresta, como já ocorre no caso da Floresta Nacional do Tapajós. Na prática, essa proibição já existe, mas os membros das comunidades atingidas dizem que o pico, ao cortar o território por eles ocupado, consolida o controle e até viabiliza sua exclusão dessas áreas. Para eles, pedir permissão ao Ibama é o mesmo que perder a autonomia. Os direitos constitucionais não são os mesmos para as comunidades “remanescentes de quilombo”, que reivindicam a aplicação do art. 68 do ADCT da Constituição de 1988, e as comunidades de “colonos ribeirinhos”, que buscam formas alternativas para a titulação coletiva de suas terras. Na declaração da presidente do STR (Sindicato dos Trabalhadores Rurais) de Oriximiná — da comunidade do Curupira — que é considerada pelos próprios “remanescentes” como uma mulher negra, mas que não se define por uma procedência histórica dos quilombos, “o pico da Floresta Nacional, lá em cima (no alto do rio) pega as “comunidades negras” do Abuí, Tapagem, Mãe Cué, todas dentro da floresta. É a mesma situação nossa” — conclui ela. Apesar da fusão situacional de interesses comuns, as distinções emergem nesse contexto. Pois não é só pela procedência comum, pelo uso da terra, dos recursos ambientais e pela ancianidade da ocupação de um território comum que as “comunidades negras rurais remanescentes de quilombo” diferenciam-se e invocam seus direitos constitucionais. Na chamada “região interior” desse universo social, longe dos focos do desempenho de uma representação coletiva e das definições oficiais que emitem em nome de todos, o domínio que exercem sobre o território é simbolizado através dos relatos sobre os dois mais famosos e reconhecidos curadores, ou “sacacas”, conforme o termo que usam, ambos do rio Erepecuru-Cuminá. O primeiro, de nome Balduíno, viveu até os anos 1970, e o segundo, Chico Melo, que o sucedeu nesses últimos 20 anos e que também já é falecido. Balduíno é citado por seus feitos notáveis: relatos de cura, de possessão e previsões desconcertantes sobre o futuro, como o Os Quilombos do Trombetas e do Erepecuru-Cuminá surgimento de uma grande cidade iluminada dentro da floresta, que é hoje Porto Trombetas, cidade industrial construída pela MRN (Mineração Rio do Norte). Tinha também o dom da onipresença, sendo visto por eles e até pelas suas crianças nos locais mais distantes: dentro das matas, no fundo dos rios, sentado em cima de uma sucuriju, como se fora um trono onde passava dias sem aparecer na superfície. Dizem que ele se apresentava na Serrinha — comunidade onde vivia, situada no início do curso do Erepecuru-Cuminá — e no Lago do Encantado, localizado atrás da comunidade do Jauari, quilômetros acima da Serrinha, ao mesmo tempo. Os “sacacas” aprenderam a curar com a natureza, através das ervas que conheciam. Durante dias e dias passavam como que desorientados, embrenhados na floresta e nas viagens ao fundo dos rios. Chico Melo contou à sua mulher que foi levado ao fundo do rio para conhecer um hospital onde os peixes o ensinaram a prescrever remédios, sem ajuda dos doutores brancos da cidade. Dizia para a mulher: “Maria, o outro mundo é muito bonito. Só que a gente não pode ficar lá, só se criar guelra”. Assim, consideram que Chico Melo aprendeu remédios para a lepra, para o câncer e uma série de doenças. Era famoso também por descobrir o paradeiro das pessoas e agir para que mudassem seus destinos e voltassem para o convívio das famílias. Desse modo, esse “imbricado complexo de terras e direitos”25 é simbolicamente construído como um território unificado e sob o controle de um grupo étnico, através dos seus “sacacas”26 . Pode-se dizer que esse tipo de conhecimento deles acerca do seu território, dos seus bens e dos seres naturais, assim como os grandes deslocamentos espaciais dos “sacacas” (Balduíno era visto crivando os pés nas águas do rio na velocidade atual das chamadas lanchas “voadeiras”) e sua prática itinerante, permitem, ao mesmo tempo, a produção de 25 26 Revel, 1989:103. O conhecimento e a produção do território na França, séculos XIII-XIX, estão relacionados, como Jacques Revel menciona, às viagens do soberano, que “na geografia dos seus deslocamentos constitui com um todo o espaço que circunscreve” (Revel, 1989:108). 277 Quilombos 278 um território unificado pertencente às comunidades “remanescentes de quilombo” do Trombetas e Erepecuru-Cuminá e a legitimidade do domínio que sobre eles reivindicam e, de fato, exercem. A crença em mundos paralelos habitados por seres sobrenaturais e o domínio desse espaço, adquirido pelos “sacacas” inclusive no aprendizado sobre o uso dos recursos naturais e das potências que os ultrapassam em suas práticas terapêuticas, permitem a construção do território como uma totalidade simbólica que define as fronteiras do grupo. Assim, os “aspectos fundiários” são igualmente transpostos na delimitação de um território por “códigos culturais específicos”.27 As referências a um tempo histórico e mítico fazem de imponentes paredões altos e talhados a pique na beira do rio Erepecuru-Cuminá — como o Barracão de Pedra —, um monumento do passado, marco memorial inscrito no espaço que os define como “comunidades territoriais fortemente enraizadas”.28 Finalizando, diríamos que o fechamento das fronteiras do grupo através da prática de um “isolamento consciente”, segundo a interpretação etnográfica que se impôs pelas condições e relações da pesquisa, tem permitido um controle das relações com o exterior e um domínio do espaço, os quais têm implicações simbólicas e políticas na produção do território comum. A auto-atribuição de uma imagem que fazem de si próprios como uma totalidade delimitada, autônoma e auto-suficiente constitui, no caso das “comunidades remanescentes de quilombo”, igualmente como diz Geertz (1991:66-7) sobre a aldeia balinesa, uma “visão cativante, agradavelmente romântica e adequadamente democrática, apesar de uma enchente de dados etnográficos renitentes”. Contudo, a auto-atribuição dessa imagem de totalidade dos grupos “remanescentes de quilombos” dos rios Trombetas e Erepecuru-Cuminá tem a eficácia simbólica de eles se reconhecerem como uma coletividade de destino e de assim fazeremse reconhecer. 27 28 Oliveira, 1998:9 e 17. Revel, 1989:165. Os Quilombos do Trombetas e do Erepecuru-Cuminá Referências bibliográficas Almeida, Alfredo Wagner Berno de. Quilombos: sematologia face a novas identidades. In: Frechal Terra de Preto: quilombo reconhecido como reserva extrativista. São Luís, Projeto Vida de Negro, SMDDH/CCN-PVN, 1996. Augé, Marc. 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Inconstitucionalidade em decorrência de se tratar de decreto autônomo Invoca-se, no preâmbulo do decreto, o art. 84, IV, da Constituição Federal, como supostamente atributivo de competência do presidente da República para sua expedição. Sua redação é a seguinte: “Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República: (...) IV – sancionar, promulgar e fazer publicar as leis, bem como expedir decretos e regulamentos para sua fiel execução.” Evidencia o dispositivo, em sua literalidade, a inexistência do exercício de poder regulamentar sem fundamento numa lei prévia. Assim, ao * Procuradora regional da República, membro da 6a Câmara de Coordenação e Revisão do MPF. Quilombos 282 contrário do que se verifica na Constituição francesa, não existe, entre nós, um poder regulamentar originário e autônomo, constitucionalmente fundado. Desse modo, é o princípio da reserva total de lei a informar a atividade administrativa, exigência esta que se assenta em argumento democrático: “o parlamento adquiriu centralidade política nos estados constitucionais democráticos, devendo dirigir (e não apenas limitar) a atividade do Executivo”.1 O art. 37 da CF empresta reforço sistêmico ao que ora se conclui, ao estabelecer como princípio informador da administração pública o da legalidade. Reafirma-se, ainda, o princípio do fundamento legislativo necessário do poder regulamentar, mais particularmente na hipótese presente, na medida em que o decreto ora em discussão não cuida tão-somente de atos de regulação ou organização interna da administração, mas antes repercute diretamente sobre posição jurídica de terceiros, a atrair o comando contido no art. 5o, II, da CF, segundo o qual ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei. Dessa forma, a ausência de lei que minimamente alcance, em seu âmbito de incidência, o art. 68 do ADCT desautoriza a expedição de decreto acerca do tema. Inconstitucionalidade no marco temporal Nos termos do parágrafo único do art. 1o do decreto em discussão, somente pode ser reconhecida a propriedade sobre terras que: I – eram ocupadas por quilombos em 1988; II – estavam ocupadas por remanescentes das comunidades de quilombos em 5 de outubro de 1988. A disposição é evidentemente inconstitucional. Registre-se, de início, que o inciso I contém, certamente, um erro material, ao referir-se ao ano de 1988 como data de ocupação de terras por quilombos, se como tal se pretende ter em conta a defini1 Canotilho, 1991:802. Anexo ção legal que remonta a 1740,2 por se tratar de situação que não mais se revela, quer no plano dos fatos, quer no plano do direito. Prosseguindo na análise da inconstitucionalidade do dispositivo invocado, decorre ela de restrição não autorizada constitucionalmente, já que o art. 68 expressamente não a revela, tampouco permite, hermeneuticamente, a sua inferência. Senão, vejamos. Ao dispor que aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos, o art. 68 do ADCT não apresenta qualquer marco temporal quanto à antigüidade da ocupação, nem determina que haja uma coincidência entre a ocupação originária e a atual. O fundamental, para fins de se assegurar o direito ali previsto, é que de comunidades remanescentes de quilombos se cuide e que, concorrentemente, se lhe agregue a ocupação das terras enquanto tal. Assim, os dois termos — remanescentes de comunidades de quilombos e ocupação de terras — estão em relação de complementaridade e acessoriedade, de tal forma que a compreensão de um decorre necessariamente do alcance do outro. E estes, e apenas estes, são necessários à interpretação do comando constitucional. O que não se admite, certamente, é que um mero decreto — o que sequer à lei se autoriza —, numa visão unilateral, opere um reducionismo no conteúdo de sentido da norma. Poder-se-ia objetar no sentido de que o ato normativo estaria apenas a explicitar um limite imanente. Contudo, entende-se por limite imanente — critério a fornecer, muito mais, tópicos de investigação e argumentação intepretativa — aquele que decorre do sistema dos direitos fundamentais e dos próprios princípios fundamentais da ordem constitucional, de modo a que o domínio de proteção da norma vá até onde não conflitue com esses valores maiores. Neste ponto 2 Para o Conselho Ultramarino, em resposta à consulta, quilombo ou mocambo seria toda habitação de negros fugidos que passem de cinco, em parte despovoada, ainda que não tenham ranchos levantados nem se achem pilões neles. Normativamente, o conceito resulta também do Alvará de 3 de março de 1741 e provisão de 6 de março do mesmo ano, segundo os quais era reputado quilombo desde que se achavam reunidos cinco escravos. 283 284 Quilombos a adoção de um marco temporal, a par de não se constituir num limite imanente, pelas razões expostas, apenas acriticamente pode ser considerado elemento definitivo — ou mesmo mediador — numa eventual colisão entre direitos e valores constitucionais. A rigor, o marco temporal, ao invés de harmonizar, subverte definitivamente o sistema constitucional. Isso porque, em todas as ocasiões em que o legislador constituinte condicionou o direito à propriedade ao decurso de certo lapso de tempo, fê-lo expressamente, como decorre dos artigos 183 e 191 da CF, diante da singela razão de que toda e qualquer restrição a direito constitucionalmente assegurado só pode resultar do próprio texto constitucional. Desconhece ainda o decreto a natureza da norma cuja regulamentação postula. O art. 68 do ADCT, muito embora deslocado do corpo permanente da Constituição, há de ser interpretado a partir deste, que sinaliza exatamente quanto à sua razão de ser, quanto ao sentido que lhe deva ser emprestado, quanto aos princípios que hão de ser levados em conta no momento de sua interpretação. Pois bem, levando-se adiante esse intento, tem-se que a expressão quilombos consta do §5o do art. 216, que trata do tombamento dos documentos e sítios dos antigos quilombos. Esse dispositivo, por sua vez, insere-se na seção da Constituição dedicada à cultura, a qual tem um princípio vetor: a nacionalidade brasileira forma-se a partir de grupos étnicos diferenciados, grupos com histórias e tradições diversas, cabendo ao Estado protegêlos e garantir espaço e permanência para essa diferenciação. Parece-nos indene de dúvidas de que essa seção destinada a tratar da cultura revela nova compreensão acerca do tema, tomando o termo cultura não mais em sua acepção meramente folclórica, monumental, arquitetônica e/ou arqueológica — nota dos textos constitucionais pretéritos —, mas como conjunto de valores, representações e regulações de vida que orientam os diversos grupos sociais, numa visão que não se remete mais ao passado, mas, ao contrário, se orienta e se renova no presente. Isto se faz certo na medida em que a Constituição brasileira impõe ao Estado garantir a todos o pleno exercício dos direitos culturais (...), apoiando e incentivando a valorização e a difusão das manifestações culturais (...) populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros Anexo grupos participantes do processo civilizatório nacional (art. 215, caput, e seu §1o), manifestações culturais que se traduzem em suas formas de expressão e em seus modos de criar, fazer e viver (art. 216, I e II). A Constituição de 1988 representa, assim, uma clivagem em relação a todo o sistema constitucional pretérito, ao reconhecer o Estado brasileiro como pluriétnico e multicultural, assegurando aos diversos grupos formadores dessa nacionalidade o exercício pleno de seus direitos de identidade própria. E, ao conferir aos remanescentes das comunidades de quilombos a propriedade das terras por eles ocupadas, faz isso à vista da circunstância de que os territórios físicos onde estão esses grupos constituem-se em espaços simbólicos de identidade, de produção e reprodução cultural, não sendo, portanto, algo exterior à identidade, mas sim a ela imanente. Se assim o é, trata-se, a toda evidência, de norma que veicula disposição típica de direito fundamental, por disponibilizar a esses grupos o direito à vida significativamente compartilhada, por permitir-lhes a eleição de seu próprio destino, por assegurar-lhes, ao fim e ao cabo, a liberdade, que lhes permite instaurar novos processos, escolhendo fins e elegendo os meios necessários para a sua realização, e não mais submetê-los a uma ordem pautada na homogeneidade, em que o específico de sua identidade se perdia na assimilação ao todo. É, ainda, o direito de igualdade que se materializa concretamente, assim configurada como igual direito de todos à afirmação e tutela de sua própria identidade. Nota característica dos direitos fundamentais é a sua indisponibilidade. Como ensina Luigi Ferrajoli (2001:47), essa indisponibilidade há de ser entendida em sua dupla face: indisponibilidade ativa, que não permite aos seus titulares a sua alienação, e indisponibilidade passiva, no sentido de não serem expropriados ou limitados por outros sujeitos, começando pelo Estado. Neste sentido, nenhuma maioria, sequer por unanimidade, pode legitimamente decidir sobre a violação de um direito de uma minoria naquilo que diz respeito à sua própria identidade. Mais uma vez valendo-nos da lição de Ferrajoli (2001:90), à vista do princípio da igualdade que se realiza com respeito à diferença, “nenhuma maioria pode decidir em matéria de di- 285 Quilombos 286 reitos por conta dos demais, tanto mais quando a minoria tem interesses ligados à sua diferença”. Daí a razão por que as normas que veiculam tais direitos são chamadas téticas, assim concebidas como aquelas “que imediatamente dispõem sobre as situações por elas expressadas”,3 não se sujeitando os direitos ali previstos a serem constituídos, modificados ou extintos por qualquer ato. Distinguem-se das normas ditas hipotéticas na exata medida em que as situações nestas previstas encontram-se apenas predispostas pela norma, a reclamar a intermediação de um ato — legislativo, jurídico — para a sua realização. Assim, os direitos fundamentais são todos ex lege, conferidos diretamente pela Constituição, e imediata e plenamente realizáveis, não se admitindo a intermediação de ato, de que natureza for, para o seu exercício pleno, muito menos para impor-lhes restrições ou diminuir o seu alcance, como pretendeu fazer o decreto ora objeto de análise. Resulta, ainda, inconstitucional o dispositivo ao exigir, para o implemento do direito, a permanência na terra por prazo determinado, posto que, a pretexto de interpretar a norma constitucional e darlhe correta aplicação, reproduz discurso próprio de práxis escravagista e o reintroduz na ordem jurídica vigente, em evidente descompasso com o texto constitucional. Com efeito, anotam Michael Hardt e Antonio Negri (2001:232) que a escravidão tem como princípio vetor a mobilidade, quer sob a perspectiva do poder, por meio do aparato repressivo para impedir a mobilidade e o nomadismo dos escravos, quer por parte dos escravos, com o desejo irreprimível de fuga. Ao tomar os elementos sígnicos da norma constitucional e conotálos tal qual se fazia em 1741 — posto que toda a interpretação se alça ao plano da mera mobilidade, e, na contraface, a sua recusa — importa-se a cultura da época da escravidão4 e se desorganiza não só uma retórica — em razão de o signo ser agora compreendido em face de um novo contexto social — mas toda uma ideologia, pois se sub3 4 Ferrajoli, 2001: 49. Segundo Umberto Eco (s.d.:3), “todos os fenômenos da cultura são sistemas de signos, isto é, fenômenos de comunicação”. Anexo verte um regime de liberdades e igualdades construídos sob a égide da diferença étnica. Seguindo ainda essa linha, a norma pretensamente regulamentadora do art. 68 do ADCT conduz à conclusão absurda de que a Constituição, rigorosamente, estaria a instituir, agora com todo o peso do direito, quilombos tais como concebidos em 1741, pois o espaço de liberdade para a regulação ritual da vida seria obtido à custa do confinamento. Ademais, como antes assinalado, a nota característica dos direitos fundamentais é a indisponibilidade. Nessa perspectiva, não se autoriza que, hermeneuticamente, se conclua que um direito fundamental apenas tenha condições de se realizar com o sacrifício absoluto do outro, pois, se assim o fosse, um deles perderia o traço da indisponibilidade. Nesse passo, o que o decreto postula, de forma inconstitucional, certamente, é que o direito assegurado no art. 68 do ADCT só se torne possível mediante o aniquilamento do direito de liberdade, do direito de ir e vir, do direito de eleger, constantemente, o local de permanência. Mas não só o interregno de tempo entre os marcos inicial e final da ocupação, como condições ao exercício do direito, padecem de inconstitucionalidade. Eles próprios, considerados cada qual de per se, revelam idêntico vício. De início, não há razão, constitucional ou mesmo histórica, para que o direito previsto no art. 68 do ADCT remonte aos idos de 1888. Historicamente, a figura do quilombo — tal como significado à época, reitere-se — antecede, em muito, o marco apontado, tampouco encontra nele o seu período áureo, à vista mesmo de medidas tendentes à abolição da escravidão já implementadas ou em franco curso. Resultaria ofensivo ao princípio da isonomia que o direito fosse reconhecido aos remanescentes dos quilombos estabelecidos em 1888, e não àqueles que existiram em época pretérita e não lograram prosseguir em sua existência até a época apontada. Careceria, assim, de qualquer razoabilidade o marco inicial previsto no decreto. Ademais, e já foi assinalado, o art. 68 do ADCT orienta-se numa perspectiva de presente, com vistas a assegurar a esses grupos étnicos ligados historicamente à escravidão o pleno exercício de seus direitos 287 288 Quilombos de autodeterminação em face de sua identidade própria. E porque o território é imanente à identidade, o que a Constituição determina é a proteção desse território que se apresenta na atualidade, sendo de todo irrelevante o espaço imemorialmente ocupado pelos ancestrais se não mais se configura como culturalmente significativo para as gerações presentes. Do mesmo modo, o marco final, além de arbitrário, revela nítido viés etnocentrista, na medida em que se apresenta com um termo fatal além do qual se nega o direito à identidade étnica e o correlato território que a requer e, em certa medida, a determina. Neste ponto, há dupla ofensa ao texto constitucional. A uma, porque alguém estranho ao grupo étnico é quem determina o prazo final de sua existência constitucionalmente amparada, o que, evidentemente, conflita com a noção de plurietnicidade. A duas, por impor ao grupo uma rigidez cultural e impedi-lo de, a partir de 5 de outubro de 1988, conceber novos estilos de vida, de construir novas formas de vida coletiva, enfim, a dinâmica de qualquer comunidade real, que se modifica, se desloca, idealiza projetos e os realiza, sem perder, por isso, a sua identidade. Apenas comunidades ideais, erigidas a partir de ficções coisificadoras, apresentam-se como totalidades pétreas coerentes. As reais, ao contrário, são marcadas pelo signo da mudança, do impulso, da reelaboração permanente. Outros vícios Ao fazer a atuação estatal depender de provocação do interessado, desconhece o decreto que o art. 68 do ADCT é comando dirigido ao poder público, consubstanciando obrigação de fazer, independentemente de solicitação dos interessados. Desse modo, não pode a lei — muito menos um decreto — fazer depender o direito de providência que não tem estatuto constitucional, e, mais grave ainda, eximir, por tal fato, o poder público de obrigação fundada no texto constitucional e de natureza incondicionada. Anexo Por último, o decreto, além de atentar contra a ordem constitucional, revela-se completamente destituído de utilidade ao fim proposto — regulamentação do art. 68 do ADCT — e padecendo de vício de ilegalidade. A uma, porque não enfrenta, sequer remotamente, a questão da incidência desses remanescentes de comunidades de quilombos em áreas já tituladas, sob o domínio privado, ao não disciplinar os aspectos que necessariamente a tangenciam, como a necessidade, forma e procedimento de desapropriação, nulidade ou não dos títulos privados. A duas, porque, limitando-se à disciplina das terras da União — o que resulta do fato de passar ao largo das terras sob domínio privado e manter, implicitamente, a competência dos estados e do Distrito Federal quanto aos seus bens —, além de não exaurir a regulamentação a que se destina, conflita com a Lei no 9.636, de 15-5-1998, que dispõe especificamente sobre a regularização, administração, aforamento e alienação de bens imóveis da União (v.g, art. 18). Em sendo ato normativo de estatura inferior à lei, não há como prevalecer. Lamentável que, passados 13 anos da promulgação da Constituição de 1988, recuse-se o Executivo federal a emprestar ao art. 68 do ADCT a dignidade que possui. Referências bibliográficas Canotilho, J. J. Gomes. Direito constitucional. Coimbra, Almedina, 1991. Eco, Umberto. A estrutura ausente. 7 ed. Perspectiva, s.d. Ferrajoli, Luigi. Derechos y garantías — la ley del más débil. Madrid, Trotta, 2001. Hardt, Michael & Negri, Antonio. Império. Rio de Janeiro, Record, 2001. 289 Sobre os autores Alfredo Wagner Berno de Almeida, antropólogo, realiza trabalho de pesquisa na Amazônia desde 1972, intervindo em situações de conflito social que envolvem camponeses, quilombolas e povos indígenas. Deborah Macedo Duprat de Britto Pereira, procuradora regional da República, é membro da 6 Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal. a Eliane Cantarino O’Dwyer, professora do Departamento de Antropologia e do Programa de Pós-Graduação em Antropologia e Ciência Política da Universidade Federal Fluminense, tem experiência profissional em pesquisa, elaboração de relatórios de identificação e laudos antropológicos sobre populações seringueiras do Acre, comunidades remanescentes de quilombos do Baixo Amazonas e do estado do Rio de Janeiro e de área indígena da pré-Amazônia maranhense. Foi coordenadora do grupo de trabalho Terra de Quilombo da Associação Brasileira de Antropologia (ABA) na gestão 1994-96 e do projeto Terra de Quilombo do convênio ABA/Fundação Ford. José Augusto Sampaio, professor de antropologia da Universidade do Estado da Bahia (Uneb) e antropólogo da Associação Nacional de Ação Indigenista (Anai), tem experiência em relatórios antropológicos de identificação e delimitação de terras indígenas e de territórios de comunidades remanescentes de quilombos na Bahia e no Nordeste. 292 Quilombos José Paulo Freire de Carvalho, advogado, tem experiência em assessoria jurídica a comunidades remanescentes de quilombos e a populações tradicionais do Baixo Amazonas, Bahia e Maranhão. Maria de Lourdes Bandeira, doutora em antropologia pela Universidade de São Paulo, é professora do mestrado em educação da Universidade de Cuiabá (Unic) e colaboradora do Programa de Mestrado e Doutorado em Educação da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). Coordena a linha de pesquisa sobre educação e diversidade étnica e cultural, tendo realizado pesquisas sobre territorialidade negra e relatórios de identificação em comunidades negras rurais remanescentes de quilombos do Mato Grosso. Osvaldo Martins de Oliveira, mestre em antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia e Ciência Política da Universidade Federal Fluminense (UFF) e doutorando em antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), tem elaborado relatórios de reconhecimento étnico de diversas comunidades negras remanescentes de quilombos no Espírito Santo, Minas Gerais, Rio de Janeiro e Bahia. Sheila Brasileiro, doutoranda em ciências sociais da Universidade Fede- ral da Bahia (Ufba), é analista pericial em antropologia do Ministério Público Federal. Triana de Veneza Sodré e Dantas, historiadora, é mestre em educação (do negro) pela Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), onde cursa o doutorado, professora da Universidade de Cuiabá (Unic) e técnica do Instituto de Pesquisa e Desenvolvimento Urbano (IPDU) da Prefeitura Municipal de Cuiabá. Vânia Rocha Fialho de Paiva e Souza, antropóloga, é professora da Univer- sidade de Pernambuco (UPE) e tem experiência em pesquisa e trabalhos de identificação e delimitação de grupos indígenas do Nordeste e comunidades remanescentes de quilombos. OUTROS LIVROS DE INTERESSE (Títulos já publicados) A BANALIZAÇÃO DA Christophe Dejours 160p. INJUSTIÇA SOCIAL (4ª EDIÇÃO) O BRASIL NÃO É PARA PRINCIPIANTES: CARNAVAIS, MALANDROS E HERÓIS , 20 ANOS DEPOIS (2ª EDIÇÃO ) Laura G. Gomes, Lívia Barbosa e José Drummond (orgs.) 268p. CIDADANIA E VIOLÊNCIA (2ª EDIÇÃO) Gilberto Velho e Marcos Alvito (orgs.) (co-edição UFRJ) 372p. AS CORES DE ACARI: Marcos Alvito 310p. UMA FAVELA CARIOCA O ESPÍRITO DA DÁDIVA Jacques T. Godbout com Alain Caillé 272p. A EXPERIÊNCIA DA FAMA: INDIVIDUALISMO E COMUNICAÇÃO DE MASSA Maria Claudia Coelho 148p. MULHERES, MILITÂNCIA E MEMÓRIA Elizabeth Fernandes Xavier Ferreira 216p. NOBRES & ANJOS: Gilberto Velho 216p. UM ESTUDO DE TÓXICOS E HIERARQUIA VELHICE OU TERCEIRA IDADE? (2ª EDIÇÃO) Myriam Moraes Lins de Barros (org.) 236p. Os livros podem ser encontrados nas livrarias ou diretamente na Editora FGV. Tels.: 0800-21-7777 e 0-XX-21-2559-5543 — Fax: 0-XX-21-2559-5532 e-mail: editora@fgv.br — http://www.fgv.br/editora