LETRAS DE HOJE LETRAS DE HOJE LETRAS DE HOJE LETRAS DE HOJE LETRAS DE HOJE LETRAS DE HOJE LETRAS DE HOJE
Carta e diário no século XIX: inluências e conluências*
Letter and diary in the 19th century: inluences and conluences
Brigitte Diaz
Universidade de Caen – Baixa-Normandia – França
Resumo: O presente artigo pretende apresentar os fenômenos de interação e de intercâmbio
entre carta e diário, escritas na aparência divergentes, ao longo do século XIX na França.
A autora analisa a singularidade de uma e de outro à luz de alguns dos parâmetros que os
constituem, tais como a relação ao tempo, à escrita, ao outro e a si próprio. Por im, os exemplos
colhidos e a abordagem comparada dessas duas escritas de si demonstrarão que se trata de
formas mais complementares do que rivais.
Palavras-chave: Carta; Diário; Literatura francesa século XIX
Abstract: This article tries to present the interaction and exchange phenomena between letter
and diary, writings different in appearance, during the 19th century in France. The author
analyses the singularity of both letter and diary, from some parameters that constitute them,
e.g. the relation to the time, to the writing act, to the other, to the writer him or herself. Finallly,
the selected examples and the comparative approach of these two writings of the self will show
that they are more complementary than rival forms.
Keywords: Letter; Diary; French litterature 19th scentury
Minhas cartas são uma história bastante iel da vida.
Executo sem perceber o que cem vezes desejei.
Diderot a Sophie Volland, 17 julho de 1762
Que a correspondência seja um diário inconsciente ou
dissimulado e que o diário, ao contrário, seja naturalmente
escrito como “carta a um amigo” é fato comprovado por
muitos praticantes dessas duas formas de escrita privada.
No entanto, Madame Roland, assídua epistológrafa num
tempo – século XVIII – em que a prática da escrita diária
não era uma atividade de mulheres, qualiica as cartas
a seu marido de “diário da vida dele”1, enquanto que o
jovem Henri Beyle, no início do século seguinte, pede a
sua irmã Pauline, cartas escritas “como um diário [...] no
qual se coloca um parágrafo por dia”2.
Entre a escrita epistolar e a escrita do diário os
vasos claramente comunicam-se, apesar das divergências
aparentes, tanto no modo de funcionamento enunciativo
quanto nas implicações: se a carta é a priori dialógica,
quando não altruísta, por necessitar da estaca do outro
para se constituir, o diário atua decididamente no registro
da monodia e do ensimesmamento. Haveria, então, um
cruzamento quase antinatural entre a escrita centrífuga da
carta, na qual compete ao scriptor fugir da “prisão do eu”,
como diz George Sand, para alcançar o mundo, e a escrita
Letras de Hoje, Porto Alegre, v. 49, n. 2, p. 233-240, abr.-jun. 2014
centrípeta do diário, do qual o outro não é simplesmente
afastado, mas banido como um terceiro excluído de um
tête-à-tête ciumento entre si e si. É o que sugere em forma
de chiste a primeira página do diário de Gombrowicz:
“Segunda, EU. Terça, EU. Quarta, Eu. Quinta, EU...”3.123
* Artigo traduzido por Ligia Fonseca Ferreira (Universidade Federal de
São Paulo). O presente texto, em francês, foi orginalmente publicado em
Epistolaire: Revue de L’A.I.R.E. Paris: Honoré Champion Éditeur, 2006.
1 Lettres de Madame Roland, publicadas por Cl. Perroud, Imprimerie nationale, Paris. T. I, 1780-1787, 1900 ; t. II, 1788-1793, 1902. Nouvelle série:
t. I, 1767-1777, 1913; t. II, 1777-1780, 1915; 4 de junho 1786, t. I, p. 614.
2 20 de agosto de 1804, Stendhal, Correspondance générale, edição de V.
Del Litto, Honoré Champion, 1997, t. I, p. 311 (abreviado como CG).
Outro pedido mais explícito do irmão à irmã: “Faz para mim em Claix um
diário do que sentires cada dia. É o que desejo. Escrevamo-nos todos os
dias, minha encantadora Pauline”, 20 de agosto de 1805, CG, t. I, p. 311.
3 Witold Gombrowicz, Journal, t. 1, 1953-1956, Christian Bourgois
éditeur, 1981, p. 63. Encontram-se outras menções a esta preocupação
exclusiva consigo colocada no diário como uma muralha contra o mundo.
Veja-se a injunção signiicativa do jovem Michelet a si próprio em seu
Diário: “Eu já te disse, constroi em tua alma um muro de separação.
Sem isso não há descanso. Já que sabes ser esse o segredo da felicidade,
por que deixar tua alma abrir-se sem cessar para sofrer ainda mais?” (29
de agosto de 1820). E também esta observação: “Não vivo o suiciente
em meu interior”, 29 de junho de 1820. Écrits de jeunesse, Journal
(1820-1823) – Mémorial. Journal des idées, edição de Paul Viallanex,
Gallimard, 1959.
A matéria publicada neste periódico é licenciada sob forma de uma
Licença Creative Commons - Atribuição 4.0 Internacional.
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Diaz, B.
Porém, diaristas4 e epistológrafos – em geral, quase
sempre os mesmos5 – não acreditam muito na alternativa
exclusiva dessas posturas de escrita que, em graus variados,
possuem uma mesma propensão à autorelexividade. Eles
têm muitas maneiras de atravessar a fronteira entre dois
territórios limítrofes do íntimo: alguns inserem cartas a
seus próximos no diário, como o jovem Michelet que
restitui no diário as cartas ao seu amigo Poinsot6; outros
escrevem o diário como uma longa carta a um ente
querido – é o que faz Eugénie de Guérin com seu irmão:
“Já que assim o desejas, meu querido Maurice, vou então
continuar este pequeno diário que tanto aprecias e o terás
na primeira oportunidade”7; outros ainda jogam nos dois
campos, enviando o diário pelo correio como se fosse
uma carta. Trata-se de um benefício duplo, como sugere
Henri Beyle: “Tive a idéia de escrever meu diário o
máximo possível e de enviar-te suas páginas aos poucos;
duas vantagens: carta abreviadas e segurança. Mas não
perde estas folhas”8.
Epistológrafos e diaristas são, em geral, bastante
lúcidos quanto ao modo pelo qual enviesam estes gêneros
que acomodam para seu uso: alguns epistológrafos
fazem da carta uma espécie de diário, como a jovem
Manon Philipon que com muita franqueza alerta sua
correspondente sobre a autodestinação das missivas:
“não te alegres em receber notícias minhas tão freqüentes;
não é para ti que escrevo9, embora seja a ti que me
dirijo”. Outros diaristas de consciência pesada acabam
duvidando da falsa reclusão do “para si” do diário.
Tal é o caso de Gombrowicz que, sem rodeios, se faz
perguntas que atormentam muitos diaristas: “Redijo este
diário a contragosto. Sua sinceridade insincera me cansa.
Para quem escrevo? Se é para mim, por que destiná-lo
à impressão? E se é para o leitor, por que injo dialogar
comigo mesmo?”10.11
Entre essas duas formas de escrita de si, que
consideraremos no limite cronológico do século XIX
que foi, mais do que qualquer outro, o século do íntimo,
existem decerto muitas passarelas, mas também alguns
impasses. A seguir, veremos algumas etapas desse
percurso em ziguezague entre carta e diário, no qual se
evidencia de modo diverso uma mesma “preocupação
de si”.
Se observarmos cartas e diários ao longo do século
XIX e, primeiramente do ponto de vista da publicação
e da recepção, essas duas formas de “ego document”
comparecem na mesma categoria do íntimo. Prova disto
é o fato de, em geral, serem publicadas juntas, como se
procedessem não só da mesma pena, mas de um mesmo
ímpeto e lógica introspectiva. Trébutien publica o Diário
de Maurice de Guérin acompanhado de suas cartas11;
Adolphe Brisson compõe o Diário de juventude de
Francisque Sarcey servindo-se de cartas que não hesita
em remanejar12. No século XIX, a carta, abandonando
o antigo ofício de sociabilidade mundana que ocupava
na “era Sévigné”, alcança deinitivamente o território do
íntimo. Era o eco de um socioleto e a marca registrada
de uma personagem social, porém não mais constituiria
o idioleto quase críptico de uma pessoa. “Quem melhor
do que a carta autógrafa revelará a mente e o coração do
indivíduo?” exclamam, líricos, os irmãos Goncourt, que
decifram “no papel manchado de tinta” da carta autógrafa
“o enxerto em que se deposita a alma humana”13. Íntimo,
forçosamente íntimo, foi assim que o século XIX sonhou
a carta: “As cartas são o verdadeiro sumo do pensamento
íntimo!”, escreve Barbey d’Aurevilly a Trébutien14. A
deinição foi endossada no inal do século por Gustave
Lanson, que exclama: “O que é uma carta, senão movimentos da alma, instantes de uma vida apanhados pelo
próprio sujeito e ixados no papel!”15 Reescrevendo a
célebre fórmula de Victor Hugo, poder-se-ia dizer que as
cartas são, para as almas românticas, “tudo o que há de
íntimo em tudo”, tendo assim muito pouco a invejar do
diário, concebido desde o princípio como “anais de uma
alma”,16 segundo a expressão do jovem Henri Beyle. Sob
este aspecto é signiicativa a queixa da meiga Eugénie
de Guérin que por vezes ousa pedir ao irmão um pouco
mais da matéria-prima epistolar – a alma – e lhe declara,
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11
N.T.= o termo “diarista” será aqui empregado como tradução do
substantivo “diariste”, que signiica aquele ou aquela que pratica a escrita
do diário, ou do adjetivo homônimo, ou seja, relativo ao diário.
Trata-se de um caso bastante comum entre homens e mulheres no século
XIX, como o mostram alguns grandes personagens que praticaram ambas
as escritas assiduamente: Stendhal, Delacroix, Sand, Marie d’Agoult,
Barbey d’Aurevilly, Eugénie e Maurice de Guérin, Jules e Edmond de
Goncourt, etc.
“Pensando bem, creio ter de incluir em meu Diário o que incluía nas
minhas cartas a Poinsot. As respostas lhe retirariam um tempo útil”, 5 de
julho de 1820, Michelet, Écrits de jeunesse, Journal, op. cit., p. 94.
Eugénie de Guérin, Journal et Fragments, publicados por G.-S.
Trébutien, Paris, Didier, 3e edição, 1879, p. 3.
16 de abril de 1809, CG, t. I, p. 820.
19 de setembro de 1774, op. cit., t. I, NS, p. 223.
Witold Gombrowicz, Journal, op. cit., p. 63.
Maurice de Guérin, Journal, lettres et poèmes, edição estabelecida por
G.-S. Trébutien, Paris, Didier,1868.
13
14
15
16
Journal de jeunesse, 1839-1857, recolhido por Adolphe Brisson,
Bibliothèque des annales politiques et littéraires, s. d.
Portraits intimes du XVIIIe siècle, prefácio da 1a. edição, E. Dentu (18571858).
J. Barbey d’Aurevilly, Correspondance générale, t. IV [1854-1855],
edição estabelecida por Philippe Berthier e Andrée Hirschi, Paris,
Les Belles Lettres, Centre de recherches Jacques Petit, Annales de
l’Université de Besançon, v. 40, p. 137.
Gustave Lanson, Introduction au Choix de Lettres du XVIIe siècle,
Hachette, 1895, reproduzida numa coletânea de artigos de G. Lanson
reunida por Henri Peyre, Essais de méthode, de critique et d’histoire
littéraire, Paris, Hachette, 1965, p. 279.
“São necessárias muitas palavras para descrever bem. Foi o que me levou
a interromper este diário desde o início de julho. Seria útil escrever os
anais dos nossos desejos, da nossa alma”, Journal, 9 de novembro de
1807, Œuvres autobiographiques, edição de V. Del Litto, Gallimard,
“Bibliothèque de la Pléiade”, 1981, t. I, p. 485 (grifo no texto; doravante
abreviado como OI).
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Carta e diário no século XIX
em seu diário que, por sua vez, daquela matéria-prima
transborda: “É de coisas íntimas que necessito”17.
Poderíamos evocar longamente os jogos de interação
e de intercâmbio entre carta e diário, mas tentaremos
antes avaliar a singularidade de um e outro à luz de
alguns parâmetros que lhes são constitutivos – a relação
ao tempo, à escrita, ao outro e a si próprio –, examinando
por im as poéticas comparadas da carta e do diário.
Carta e diário são escritas do “dia-a-dia”: uma e outro
datados, periódicos, marcados pela recorrência temporal.
Em ambos os casos, o escrito marca uma escansão do
tempo, e o inverso vale também: é o tempo que estrutura
tanto a carta quanto o diário. Assim, o tempo aparece
como um parâmetro essencial, ingrediente indispensável
para que essas duas formas de escrita “vinguem”. Para
o scriptor de diários e, em menor grau para o de cartas,
trata-se, inicialmente, de bem “marcar data”, ou seja de
datar um momento biográico para guardá-lo na memória:
“Dia 3 – hoje, nada mais do que a data”18, escreve Eugénie
de Guérin, numa entrada lacônica, porém signiicativa de
seu diário. Se a datação tem tanta importância é porque
isola e faz com que exista uma fatia da vida, por mínima
que seja, como sugere outra entrada no mesmo diário:
“Começo colocando a data e depois veremos o que advirá
na minha história de um dia”19. Segundo Georges Gusdorf,
a forma escritural do diário vê seu horizonte limitado
ao dia do diarista: “A verdade do diário é questionada
todo dia; quem escreve um diário íntimo é o pedestre
de uma vida que não se tem a pretensão de dominar; o
indivíduo dispõe do direito à retiicação e ao desmentido,
aos humores passageiros e contraditórios”20. Mas a
carta também convida a essa frequentação episódica e
ambulatória de si mesmo. Se o diarista não tem a intenção
de fornecer uma iguração panorâmica e deinitiva de seu
ser, o mesmo acontece com o epistológrafo, também ele
condenado à visão míope, móvel, quase caleidoscópica
que suas cartas lhe devolvem à guisa de espelho: “Minhas
cartas, escreve exemplarmente Manon Phlipon, são traços
da pena que colorem a sensação do momento e as idéias
que dela nascem”21. A carta parece acentuar ainda o
efeito de fragmentação do tempo e do eu, tão sensível
no diário, pois a cada carta iniciada, é um novo diário do
dia que surge, como que isolado de seu episódio anterior,
assinalando para o epistológrafo a variabilidade de seu
ser. À constatação que Beyle faz em seu diário – “Sou
muito diarista”22 – corresponde a de Manon Phlipon, que
declara em uma carta: “Minha pena é uma temperamental
que só conhece a impressão do momento”23. Mas se carta e
diário são escandidos por uma mesma medida existencial
– o dia do eu – ambos convidam a uma relação diferente
com o tempo. Deste tempo já perdido, o diário dá conta
melhor do que a carta, já que esta se volta mais para a vida
sonhada e para a vida vindoura do que para a vida passada.
No diário, isso vai da simples efeméride – “Sempre de pé
na mesma hora; – vestido e tendo trabalhado até as duas
horas, conforme a economia de meus dias; – interrompido
somente pelo almoço, ingerido rapidamente na própria
mesa onde escrevo”24 – ao cálculo obsessivo do ritmo e
da duração da existência, como aquele a que se entrega
Eugénie de Guérin:
1718192021222324
Ocupando-me de cálculo há pouco, queria saber o
número de meus minutos. É assustador 168 milhões
e alguns milhares. Já tanto tempo de minha vida!
Compreendo melhor toda a rapidez, agora que a meço
em parcelas. O [rio] Tarn não acumula mais rápido do
que isso os grãos de areia em suas margens. Meu Deus,
que izemos desses instantes que o Senhor também um
dia contará?25
É sem dúvida com a inalidade de exorcizar essa
inquietante luidez do tempo que o diarista conta
escrupulosamente os dias, como sugerem estas metáforas
melancólicas de Barbey d’Aurevilly ao evocar como
retoma seu Memorandum após uma interrupção acidental:
“Desde aquele dia, a vida correu igual em sua bacia de
mármore frio. Hoje, volto para jogar novamente minha
folha de salgueiro sobre as ondas que tão rapidamente
se vão”.26 Contra o tempo, seus avanços e desgaste, o
diarista registra, arquiva, compila os minutos de sua vida,
“enterra-se nos detalhes”,27 como diz Barbey. [George]
Sand, mais epistológrafa do que diarista, percebe-o
assim: “escrever um diário é renunciar ao futuro”,28
enquanto que para Amiel, escrever um diário é “existir
fora do tempo”.29 Um século mais tarde, encontramos o
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Eugénie de Guérin, Journal et Fragments, publicados par G.-S. Trébutien,
Paris, Didier, 3e edição, 1879, p. 204. Ver também esta entrada de 1º de
maio de 1837: “É aqui, meu amigo, que quero retomar essa correpondência
íntima que nos agrada e nos é necessária, a ti no mundo, a mim em minha
solidão. Lamento não tê-la continuado, agora depois de ler tua carta em
que me dizes porque não me havias respondido. Eu temia aborrecer-te
com os detalhes de minha vida, vejo que é o contrário”, p. 119.
Ibid., p. 20.
Ibid., p. 27.
Georges Gusdorf, Lignes de vie 2, Auto-bio-graphie, Éditions Odile
Jacob, 1991, p. 264.
Carta a Sophie, 7 de fevereiro de 1777, op. cit., t. II, N.S., p. 31.
Journal, 10 de junho de 1803, OI, t. I, p. 44.
Carta a Sophie, 22 de janeiro de 1775, op. cit., t. I, N.S., p. 259.
Barbey d’Aurevilly, Memoranda, in Œuvres romanesques complètes,
edição de Jacques Petit, Gallimard, “Bibliothèque de la Pléiade”, 1966,
t. II, p. 1049.
Eugénie de Guérin, Journal, op. cit., p. 118.
Barbey d’Aurevilly, Deuxième Memorandum, op. cit., p. 974.
Barbey d’Aurevilly, Troisième Memorandum, op. cit., p. 1027.
George Sand, Entretiens Journaliers avec le très docte et très habile
professeur Piffoël (1837-1841), Œuvres autobiographiques, edição
de Georges Lubin, Gallimard, “Bibliothèque de la Pléiade”, t. II, 1971,
p. 977.
“Não vivo no futuro, vivo bem pouco no presente, ainda menos no
passado. Existo mais fora do tempo”, Henri-Frédéric Amiel, Journal
intime, [1879-1881], edição publicada sob a direção de Benard Gagnebin
e Philippe M. Monnier, texto estabelecido par Philippe M. Monnier e
Anne Cottier-Duperrex, Lausanne, L’Âge d’homme, 1994, t. XII, 10 de
janeiro de 1881.
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Diaz, B.
mesmo eco em [Michel] Leiris, cuja motivação profunda
e oculta à escrita de si mesmo é a luta com o passar do
tempo: “Pesando tudo, parece que, quando escrevo, é
sobretudo contra o próprio tempo que me exaspero”30.
Porém, lendo as queixas insistentes dos diaristas, trata-se
de um combate vão: “Valeria a pena marcar o tempo ? É
escrever no pó”31, desola-se Eugénie que não descarta
sua marcação temporal. Assim acontece com Barbey
d’Aurevilly, que abre seu primeiro Memorandum com
uma alternativa desesperadora: não manter um diário e
deixar a vida perder-se no “abismo das coisas”; manter
um diário e condenar-se a encarar a ruína que toda
existência signiica:
Desde o último Diário que escrevi durante uma
viagem, há um ano numa hora similar, o que iz e o
que me tornei? Se tivesse escrito a rotina de meus
dias e os dois ou três acontecimentos que já são um
passado furiosamente afundado no abismo das coisas,
e o que estes acontecimentos produziram em mim ou
arrancaram de mim, seria uma longa e triste história
cuja leitura eu não aconselharia a ninguém, nem a mim
mesmo neste momento. Existem ruínas que ninguém
vê acabando de desabar, quedas silenciosas. Só muito
mais tarde notamos que não há mais nada onde havia
uma existência e que o vazio engoliu átomos do último
caco32.
3334353637383940
O diarista persegue, então, uma tentativa aleatória
de resgate e capitalização do tempo33, e é igualmente
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Michel Leiris, La Règle du jeu, NRF, 1948, p. 242.
Eugénie de Guérin, Journal, op. cit., p. 82.
Barbey d’Aurevilly, Premier Memorandum, op. cit., p. 737.
Béatrice Didier insiste nesse protocolo de capitalização operado pelo
registro diarista: “O diário não é só um meio de capitalizar as lembranças,
os dias e o eu ; é em si mesmo um capital ; e um capital que cresce num
ritmo bastante satisfatório desde que o diarista seja minimamente regular:
para tantos dias perdidos, tantas páginas ganhas”, Le Journal intime,
PUF, 1991, p. 55.
“O diário não é essencialmente conissão, relato de si mesmo. É um
Memorial. Do que o escritor deve se lembrar ? De si mesmo ? Do que
ele é, quando não escreve, quando vive a vida cotidiana, quando está
vivo e verdadeiro, e não moribundo e sem verdade”, Maurice Blanchot,
L’Espace littéraire, Gallimard, col. “Idées”, 1955, p. 20.
Ver as relexões de Amiel a respeito de seu diário: “Para mim é o único
meio de encontrar qualquer coisa de meu passado, pois nem as semanas,
nem os meses, nem os anos me servem para recortar a existência e
classiicar minhas lembranças”, Journal intime, op. cit., t. III, 13 de
dezembro de 1859.
Journal 18 de janeiro de 1805, OI, t. I, p. 191.
Carta a Sophie, 7 de fevereiro de 1777, op. cit., t. II, n.s., p. 31.
Alguns pedem para suas cartas serem devolvidas depois de lidas por seus
destinatários. É o procedimento adotado sem cerimônia por Proust; mas
na verdade para ele se trata em geral de se certiicar que suas mensagens
serão destruídas. Vejam-se igualmente as observações de Manon
Phlipon: “Encontrei nos meus alfarrábios algo que te envio, é ainda o
que chamo de resultados, a digestão das minhas leituras, as loucuras de
minha imaginação, peço-te apenas para conservá-lo bem como as cartas
em que te mando citações ou notas, pois nem sempre conservo cópias e
talvez um dia terei vontade de saber quais eram minhas jovens idéias”, 2
de outubro de 1776, op. cit., t. I, n.s., p. 496.
11 de maio de 1804, CG, t. I, p. 134.
Paul Valéry, Cahiers, edição estabelecida por Judith Robinson, Gallimard,
“Bibliothèque de la Pléiade”, 1973, t. I, p. 184.
neste sentido que ele “marca data”, porém desta vez
consigo mesmo: com quem ele fora, pois o diário é
um “Memorial”34, um relicário de si a ser conservado
para ser exumado posteriormente35; com quem ele será,
igura que já se delineia no horizonte temporal do diário.
Assim, Henri Beyle interpela em seu diário o leitor futuro
que ele próprio se tornará, esse alter ego vindouro que
saberá discernir sem complacência os artifícios de sua
sinceridade: “Escrevo unicamente para a felicidade de
meus ilhos e para me garantir da avareza daqui a trinta
anos. Diga, no fundo do coração, se não enrubesces lendo
isso em 1835?”36 Assim, o diário não é um “rascunho de
si”, para retomar a metáfora de Philippe Lejeune, mas a
existência é que seria um rascunho do diário, convocado
para arrumá-la um pouco.
Quanto à carta, a preocupação de memorizar e
capitalizar o tempo é menos predominante ou, em todo o
caso, não se dá como motivação primeira, pois as cartas,
segundo a bela expressão de Madame de Sévigné, se
escrevem na “pena dos ventos”. Compreenda-se que o
vento da disseminação sopra sobre essas escritas de si.
Desprovidas de qualquer capitalização, as cartas são
escritas da perda, de uma perda aparentemente aceita pelo
epistológrafo que pratica, através dos traços efêmeros
de si mesmo, uma exploração aleatória de seu ser em
transformação. A escrita da carta, que se dá facilmente
como um gesto maquinal, abre uma página de liberdade na
qual se registram as ranhuras inconstantes das impressões
do momento: “Tão logo se vão, escreve Manon Philipon
sobre suas missivas, mal recordo o que continham”37.
Mas devemos coniar nesta bela prodigalidade? Sabemos
perfeitamente que os epistológrafos manifestam-se
exaustivamente contra o desaparecimento programado
de seus escritos: desde os rascunhos, os minutos, até a
conservação das cartas38, às vezes exigida como cláusula
da correspondência: “Não perde minhas cartas, escreve
Henri Beyle a sua irmã, elas nos serão úteis a ambos: a
ti, que poderás compreender na sequência o que de início
não percebeste, e a mim, contarão a história de meu
pensamento”39. Portanto, a carta pode identiicar-se com
o diário nesta função memorial que ela sempre mantém
de reserva e, ao inverso, existem diários que praticam
a virtude do esquecimento e diaristas avessos a essa
contabilidade existencial, sintoma de um mal disfarçado
egotismo. É o caso de [Paul] Valéry que se recusa a anotar
em seu diário o anedótico, o biográico, o pessoal e se
reivindica, ao contrário, como “um homem sem data”40.
Se as oposições entre carta e diário são lutuantes
e pouco pertinentes em relação à gestão do tempo, elas
também o são no que diz respeito aos protocolos da
escrita que as deinem. À preocupação da memorização
e da capitalização de si corresponde no diarista a escolha
do caderno ou da caderneta portátil que é conservada
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Carta e diário no século XIX
preciosamente como o guardião dos minutos de sua
existência: “Mudo o formato de meu Diário, esclarece
Eugénie de Guérin, para deixá-lo mais cômodo no bolso
onde o colocarei durante minhas compras”41. Nada
disso acontece na carta que é, como escreve Proust, “o
companheiro de um dia que nunca mais vamos rever”42.A
folha solta da carta desaparece, o jornal permanece: uma
é feita para se desprender de si, outra para icar colada a
si. Conservado, arquivado, o diário se oferece, assim, a
possíveis releituras: é a prática de Henri Beyle que relê,
anota e comenta as páginas antigas, compondo assim um
amontoado de escritos que revelam as camadas sucessivas
de uma personalidade em transformação, propícias a
algumas escavações arqueológicas. Porém, ainda neste
caso, as diferenças não são tão nítidas; e pode acontecer
da carta – mais do que o inverso – tomar a forma material
do diário para assumir algumas das funções deste. É por
isso que Beyle convida sua irmã Pauline a reunir suas
cartas e colocá-las em cadernetas nas quais ela possa
anotar relexões na margem, a exemplo do que ele
mesmo pratica: “Talvez seria bom teres um caderno e nele
copiares as cartas, deixando espaço para anotações”43.
Se o suporte da carta e do diário obviamente não é
o mesmo, a cerimônia de escrita que acionam também
difere. Trancado em sua fortaleza interior, “escondido
atrás de uma barricada” dentro de si, como escreve
Maurice de Guérin44, o diarista pratica voluntariamente
a religião do segredo. É o caso de Stendhal, este “insular
do Eu” como dizia Valéry45, que se forja todo um arsenal
de códigos, linguagens cifradas e outras barreiras para
inibir ou impedir qualquer intrusão em seu diário que
ele deine como sendo sua “consciência íntima”46.
Neste aspecto, dada a própria fragilidade que a viagem
lhe confere, a carta despreza constantemente a cláusula
do segredo que o autor de cartas infringe pelo simples
gesto de se abrir ao outro. Mas, naturalmente, existem
segredos que se dão melhor no dueto epistolar do que no
isolamento do diário. Assim, para o jovem Henri Beyle,
em seus anos de rebelião familiar, o segredo é a condição
sine qua non da correspondência, bem como seu estímulo.
A exemplo do diário, a correspondência ediica-se sobre
um segredo, porém um segredo mais dramaticamente
encenado, pois são dois a guardá-lo: “A certeza que me
dás de que minhas cartas jamais serão vistas faz com
que eu te diga tudo”47. A estas cartas secretas opõem-se
simetricamente os diários dirigidos; alguns são escritos
expressamente para serem lidos por outros. É na forma de
carta que Barbey d’Aurevilly redige o diário destinado a
seu amigo Trébutien:
Caen, Hotel Lagouelle, 28 de setembro de 1856.
Trébutien quer que eu lhe faça um Memorandum de
todos os dias que passarei em Caen e, para mim, o que
Trébutien quer, Deus quer ! Recomeço então para ele,
o que havia feito para Guérin em outra época48.
4142434445464748
O que Trébutien quer: este início do terceiro
Memorandum desestabiliza o protocolo solipsista e um
tanto astênico do diário na dinâmica do desejo que reage
a troca epistolar49, como se Barbey tentasse reanimar a
escrita mórbida do diário, “esta sepultura de cada parcela
de vida”.50 Escrever o diário em forma de carta é instaurar
a lei do desejo onde só reinavam – ao menos para Barbey –
a exigência de um dever a cumprir e o tédio profundo “de
se curvar sobre todos os nadas que compuseram um dia”51,
atravessado somente pela obsessão de continuar mesmo
assim o labor de escrivão: “é uma febre intermitente
minhas anotações neste Diário”52. No entanto, e Barbey
não o ignora, ainda que “encomendado” pelo outro, o
diário não se confundiria com a carta, escrita, por sua vez,
no calor e na urgência do desejo pelo outro. Ele explicita
claramente a diferença de regime entre essas duas escritas,
explicando que renunciou dirigir seu Memorandum ao
“Anjo Branco”, a mulher amada, pois com ela “tudo vira
carta”, e então é uma outra história que se escreve:
Um Memorandum das coisas passadas, – esta
sepultura de cada parcela de vida, pois aqui, nós nos
enterramos em detalhes, – apaga-se na onipresença
dos sentimentos. Em vez de pensar, à noite, sobre a
recapitulação dos minutos do dia e de seu emprego,
pensamos naquela para quem escrevemos e é dela que
vamos falar, ao invés de falar de outra coisa. – O amor
é exclusivo demais, imperioso demais, jaculatório
demais; expressa-se demais na segunda pessoa, para
que com ele o Memorandum seja possível. Não existe
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Eugénie de Guérin, Journal, op. cit., p. 106.
Correspondance de Marcel Proust, edição apresentada, estabelecida e
anotada por Philip Kolb, Plon, 1970-1993, t. II, p. 299.
Julho de 1804, CG, t. I, p. 182. Encontra-se igualmente este tipo de
conselho por parte de Goethe a sua irmã Cornélia: ele lhe pede para
escrever apenas em metade da página a im de que ele possa anotar e
comentar a mensagem para em seguida reenviá-las.
“Quero me entrincheirar em mim, me emparedar para me livrar de toda
tentação, não mexendo em mais do que um termo, mesmo que eu seque
de pé“, 4 de julho de 1833, Journal, op. cit., p. 43.
Paul Valéry, “ Stendhal ”, artigo reproduzido em Variétés, Œuvres, Paris,
Gallimard, “Bibliothèque de la Pléiade”, 1957, t. I, p. 566.
“Se algum indiscreto ler esse jornal, eu lhe retirarei o prazer de se mofar
de mim fazendo-o notar que o que deve ser o registro matemático e
inlexível de minha maneira de ser, não adulando nem maldizendo, mas
enunciando pura e severamente o que acredito que foi. Está destinado a
me curar de meus ridículos quando eu o reler em 1820”, junho de 1810,
OI, t. I, p. 579.
14 de julho de 1809, CG, t. I, p. 835.
Barbey d’Aurevilly, Troisième Memorandum, op. cit., p. 1027.
Mesmo a tímida Eugénie sabe suspender a pena para aguçar a espera de
seu irmão bem-amado: “Pensaste que eu não queria mais escrever-te,
que não queria mais tua amizade. Eu aqui te escrevia todos os dias, mas
queria te dar tempo para desejar receber uma carta”, Eugénie de Guérin,
Journal, op. cit., p. 136.
Barbey d’Aurevilly, Troisième Memorandum, op. cit., p. 1027.
Barbey d’Aurevilly, Premier Memorandum, op. cit., p. 740.
Ibid., p. 860.
Letras de Hoje, Porto Alegre, v. 49, n. 2, p. 233-240, abr.-jun. 2014
238
Diaz, B.
história fora da mulher amada, e o Memorandum é
uma história...53.
Entretanto, para ele, o Memorandum permanecerá
sempre ativado pelo destinatário:
Recomeçarei um diário ? – Por que não, já que G[uérin]
o deseja ? Deus sabe que ele é o único homem a quem
os fragmentos de minha vida interessam e fazem
pensar. Precisei lembrar-me disso para retomar meus
dias um a um54.
Tais hesitações sobre o destino – escrever para
si ou para o outro? – são os sintomas mais patentes do
parentesco entre carta e diário. Aí se cruzam expectativas
confusas, difíceis de serem destrinçadas pelo próprio
escritor. Se o diarista naturalmente inventa destinatários
– ou, como Barbey d’Aurevilly, se reconhece-lhes a
existência dentro de si próprio (Maurice de Guérin
escreve: “este homem penetra dentro de mim cada vez
mais e se incrusta até o coração. Destino-lhe um diário
de minha errância”)55 – o epistológrafo, simetricamente,
às vezes desvia, passando pelo outro para chegar a si
mesmo, i.e. o único destinatário verdadeiro de suas
conidências. As cartas de Beyle a Pauline constituem um
exemplo interessante do que parece ser um desvio da carta
em diário. A correspondência oferece-se, da mesma forma
que o diário por ele mantido em estereofonia, como um
formidável terreno de experiências onde se pode testar,
como protótipos diversos, os ideais efêmeros do eu. A
pretexto de formar a jovem Pauline56, é a si mesmo que
Beyle se dirige. Acontece então que, ao apagar a presença
de sua correspondente, ele se coloca explicitamente como
destinatário de seu próprio ensinamento. Ao cabo de uma
meditação proposta à irmã, ele conclui: “Preciso inculcarme estas máximas, pois meu caráter apaixonado delas me
afasta incessantemente”57. No limite, desaparecem da
carta os sinais mais elementares da comunicação epistolar
(endereços, interpelações, fórmulas fáticas, etc.,) para
dar lugar às relexões que Beyle poderia muito bem
ter apontado em seu diário, como ele mesmo observa:
“Eis, minha querida Pauline, quatro páginas de ilosoia
que acabo de escrever no papel de carta, em vez de
colocá-las em meu caderno. Eu precisava encontrar uma
verdade nova e eis o caminho para alcançá-las: muitos
exemplos”58. Papel de carta ou caderno? Correspondência
ou diário? A diferença é tênue. Se o suporte e a situação
de enunciação mudam, os discursos ali produzidos são
inalmente bem próximos e seus horizontes tendem a se
unir.
Carta e diário têm em comum algumas funções que
se dividem desigualmente. Emprestando uma relexão de
Georges Gusdorf, é lícito dizer que essas duas práticas de
escrita de si têm como horizonte teleológico comum não
a ontologia – “a busca do Ser sem restrição” – mas mais
humildemente “a fenomenologia, ou seja a exploração
das dimensões da existência pessoal revelada a si mesma
na experiência vivida”59. Exploratória e experimental,
a escrita epistolar e diarista faz existir o “Eu” numa
ininidade de posturas de expressão que lhe permitem
afastar-se dos conformismos obrigatórios da vida social.
A carta, como o diário, legitimam – e nisto reside sua
principal virtude – o interesse que o indivíduo manifesta
por si mesmo: “Cito-me constantemente, escreve Beyle
em uma carta a Pauline, pois sou o homem cujo coração
mais conheço”60, enquanto Marie Bashkirtseff declara
sem falso pudor no incipit de seu Diário:
5354555657585960
Podeis estar certos, caridosos leitores, que nestas
páginas revelo-me por inteiro. Eu, como interesse,
talvez seja pouco para vós, mas não pensais que sou
eu, pensai que é um ser humano que vos conta todas
as suas impressões desde a infância61.
Esta preocupação consigo leva diaristas e epistológrafos a idêntica observação circunstanciada de si
mesmos: anedotas, resumos, micronarrativas de vida
abundam tanto nas páginas da carta como nas do diário.
Mas se eles se restringem a essa atenção míope voltada
para o despedaçamento fatual da vida cotidiana, é
porque esta supostamente os conduz à revelação de sua
identidade profunda. Barbey d’ Aurevilly o conirma:
seu Memorandum registra muito mais “a vida de [seu]
pensamento do que os fatos exteriores”62. Stendhal, por
sua vez, deseja reler suas cartas passadas como “história
de seu espírito”. Carta e diário compõem um álbum de
clichês intelectuais instantâneos, feitos para guardar
a impressão de uma fagulha de vida, um fragmento de
emoção, um esboço de ideia, para um dia permitir ao
indivíduo reencontrar-se consigo mesmo através desses
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Barbey d’Aurevilly, Troisième Memorandum, op. cit., p. 1027. Barbey
d’Aurevilly, no entanto, escreverá seu quinto Memorandum para uma
mulher, , Mme de Bouglon.
Barbey d’Aurevilly, Deuxième Memorandum, op. cit., p. 901.
É o que escreve em carta a Trébutien em 2 de setembro de 1835,
Correspondance générale, op. cit., t. I, p. 1467.
Projeto que Beyle reivindica assim sem modéstia: “Eu te formo, és a ilha
amada de meu coração, para falar como Ossian a quem amas. Será que
meditas o bastante sobre minhas cartas para delas tirar proveito?”, 5 de
março de 1806, CG, t. I, p. 500.
Julho de 1804, CG, t. I, p. 181.
Carta a Pauline, agosto de 1804, CG, t. I, p. 196. Por sua vez, o diário é
um diálogo consigo mesmo, como sugere esta relexão intrusiva numa
carta a Pauline: “Recebi a grande encomenda que me enviaste; estava
numa discussão comigo mesmo provocada pela leitura da segunda edição
do Traité de la manie do excelente doutor Pinel”, 29 de junho de 1810,
CG, t. II, p. 44.
Georges Gusdorf, Lignes de vie 2, Auto-bio-graphie, Editions Odile
Jacob, 1991, p. 225.
10 de junho de 1804, CG, t. I, p. 144.
Journal de Marie Bashkirtseff, edição estabelecida por André Theuriet,
Paris, Charpentier, 1887, t. I. Prefácio de 1884.
Barbey d’Aurevilly, Deuxième Memorandum, op. cit., p. 913.
Letras de Hoje, Porto Alegre, v. 49, n. 2, p. 233-240, abr.-jun. 2014
239
Carta e diário no século XIX
ecos distantes. A função memorial é a mais comum
para os diaristas e epistológrafos63, no entanto a função
especular é outra: o diário também é um “espelho da
alma”, segundo a metáfora da carta tão emblemática
quanto convencional desde Demétrio. Maurice de Guérin
a retoma por sua conta, espreitando no espelho de suas
páginas as metamorfoses de sua alma:
Minha alma foi meu primeiro horizonte. Há tempos
o contemplo. Vejo emergir do fundo de meu ser
vapores que se elevam como se proviessem de um vale
profundo e que só tomam forma ao sopro do acaso ;
fantasmas imperceptíveis ascendendo lentamente e
sem interrupção64.
Quanto ao epistológrafo, o relexo de si próprio
observado na carta complica-se com o olhar do outro:
“Ninguém mais nesta Terra, além de vós, me conhece,
Trébutien ! [...] Sois minha testemunha e juiz e vivo em
vossa presença melhor do que na presença de outros. Vejome sendo visto”65. .A fórmula descreve admiravelmente a
relação especular atuando nas correspondências nas quais,
segundo Michel Foucault, “trata-se de fazer coincidir
o olhar do outro e o olhar sobre si mesmo”66. Logo, a
exploração de si que ocorre na carta não se limita somente
ao deciframento de si por si mesmo, cujo destinatário
seria apenas o espectador acidental – o que reproduz mais
ou menos o caso do diário dirigido a alguém. A carta é
uma “abertura que damos ao outro sobre nós mesmos”67.
Em outras palavras, ela não é um simples relexo de si
que se oferece para captar o olhar fascinado daquele que
convocamos para este im, mas, sim, o processo de escrita
pelo qual o sujeito se produz, registrando a presença e
o peso de outrem na constituição de sua identidade. A
imagem por demais estática do espelho corre o risco,
portanto, de traduzir de forma muito aproximativa a
relação complexa de iguração de si que se instaura na
carta e que é, antes, uma tentativa de inteligibilidade de si
do que a simples captação especular. Distanciada de seu
uso primeiro – a conversa com o ausente-, a carta convida
a uma pedagogia de si, função mais comumente atribuída
ao diário. Retomando por sua conta própria o imperativo
délico, Beyle escreve: “Nosce te ipsum. Acredito com
Tracy e a Grécia que este é o caminho da felicidade.
Meu meio é este diário”68. Esta função cognitiva se
desdobra em intenção formadora, sendo o epistológrafo
e o diarista “autodidatas de si”: eles querem formar-se,
nascer de suas obras ou melhor, de sua pena. O diário de
juventude de Beyle é habitado por este “querer ser”69,
dedicado à ediicação, à invenção de si. É através dele
que o jovem apaixonado pela glória se propõe a tornar-se
um “grande homem”70. Ele tentará iniciar sua jovem irmã
Pauline na escrita de cartas, louvando-lhe os méritos desta
autoformação praticada dia-a-dia no diário: “No geral,
trabalha-te a ti mesma”; é o trabalho, explica ele, a coisa
mais útil que encontrou para si próprio71.636465666768697071
Restaria ver de que forma é conduzido esse
trabalho – “Trabalho minha alma”, escreve Barbey
d’Aurevilly72 – nas duas frentes, da carta e do diário,
pois se para ambos o instrumento é o mesmo – a escrita
–, o imaginário e a prática do epistológrafo e do diarista
diferem sensivelmente. De forma esquemática, poder-seia dizer que a naturalidade, espontaneidade, sinceridade
e autenticidade são ao mesmo tempo valores éticos e
estéticos por eles compartilhados. “Escrever sem se
incomodar73”, currente calamo, é a regra de ouro da
escrita epistolar. Ao longo do século romântico, a carta
aparece como uma escrita antimundana e antiliterária; ela
goza de um bônus de verdade inversamente proporcional
ao descrédito que afeta, por outro lado, quase todas as
formas da fala socializada, seja ela política, mundana ou
literária. Tal espontaneidade é vivida como garantia de
autenticidade – “Penso alto contigo”,74 escreve Beyle a
Pauline. Relendo as cartas de Trébutien, Barbey anota
em seu diário: “O melhor de mim está nestas cartas,
onde falo minha verdadeira língua, lixando-me para
todos os públicos !”75 A voz da carta é a voz verdadeira
e original, pois se exprime sem entrave e sem censura,
quase maquinalmente, como sugere mais uma vez
Barbey a Trébutien: “Não agradeçais minhas cartas, elas
jorram de minha pena como a palavra de meus lábios,
e só me custam isicamente o tempo de escrevê-las”.76
E esta palavra jaculatória, que não pesa nem se impõe,
convida a uma escrita do prazer. A felicidade de escrever
é a experiência mais compartilhada e mais comentada
63
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76
Ver a observação de Manon Philipon: “Não penso absolutamente que
devamos queimar nossas cartas ; aposto que se o izéssemos, acabaríamos
arrependidas em alguns anos. Existem mil coisas que, se conhecidas
em dado momento, nos aborreceriam, porém, mais tarde, nos agradaria
revê-las”, 5 de dezembro de 1775, op.cit., t. I, n.s., p. 341.
Maurice de Guérin, 30 de abril de 1835, op. cit., p. 119.
Barbey d’Aurevilly, Correspondance générale, op .cit., t. V, p. 99.
M. Foucault, “L’écriture de soi”, Corps écrit, n° 5, 1983, p. 23.
Ibid., p. 17.
10 de agosto de 1811, OI, t. I, p. 710.
“Logo, não se trata apenas do que sou, mas no total do que eu quero
ser. Escrevendo sobre mim, escrevendo-me, aprovo-me ou reprovo-me ;
nunca sou um testemunho estranho ou indiferente. O querer ronda os
conins do ser e esforça-se para se alinhar no sentido da caminhada”, G.
Gusdorf, op. cit., p. 226.
Ele manifesta uma coniança total na concretização desse projeto: “ Que
só a educação faz os grandes homens; por conseguinte, que basta querêlo para tornar-se um grande gênio”, a Pauline, 30 de janeiro de 1803, CG,
t. I, p. 79.
Ver as cartas a Pauline de 4 de janeiro de 1804 e 26 de janeiro de 1806,
CG, t. I, p. 145 et p. 453.
Barbey d’Aurevilly, Premier Memorandum, op. cit., p. 841.
É a única regra que Beyle sugere a Pauline. Mesma constatação em
Manon Phlipon que declara a sua amiga: “Contigo todo constragimento
se esvai, eu traço sem receio o que aparece na ponta da pena”, Carta a
Sophie, 20 de março de 1772, op.cit., t. I, N.S., p. 88.
Carta a Pauline, 26 de fevereiro de 1805, CG, t. I, p. 257.
Barbey d’Aurevilly, Troisième Memorandum, op. cit., p. 1048, grifo no
texto.
Barbey d’Aurevilly, Correspondance générale, t. III, op. cit., p. 208.
Letras de Hoje, Porto Alegre, v. 49, n. 2, p. 233-240, abr.-jun. 2014
240
Diaz, B.
por esses epistológrafos de si, como escreve Manon, ao
iniciar uma de suas cartas assim:
retomarei em 2 de Ventoso, dia em que partida de
Milão79.
Bom dia, então, minha terna amiga, eis-me aqui
tranquila e solitariamente em meu quartinho, com
a pena na mão, calma e ternura no coração, deliciosamente ocupada em escrever-te, pintar meus pensamentos, expressar meus sentimentos; não consigo
dizer-te o quanto esta situação me encanta. Parece
que não levo mais nada em conta, todo o resto não me
parece mais do que uma sombra.77
Longe de luir, a prática do diário é um desaio,
uma prova que exige “força” e “coragem”. É necessário
obrigar-se a uma assiduidade mínima; não “delorar os
momentos felizes [...] descrevendo-os, anatomizandoos”80 e sobretudo, não mentir sobre si. A tarefa é claramente
árdua81, mesmo se a única regra retórica desses anais de
si consista em “não se incomodar e nunca apagar”. O
tempo da escrita invade o tempo da vida e o diário se
põe a devorar o que supostamente deveria elucidar: “Teu
negócio é viver ou descrever tua vida? Só deves escrever
um diário enquanto ele puder ajudar a viver da grande”82.
Em contrapartida, Beyle não se faz esse tipo de pergunta
em relação a sua correspondência, cuja prática nunca é
estranha às alegrias da existência. Se ele “não escreve o
diário quando está feliz”83, tal regra não vale para a carta84
que se prende, e sempre se prenderá, a certa euforia: as
cartas “são uma festa”, escreve ele a Crozet85. Barbey
d’Aurevilly, por sua vez, nunca deixa de marcar no diário
o momento de “furia”86 da escrita da carta, e a volúpia de
sua recepção. As cartas, escreve ele, são “a cordialidade de
minha vida, o elixir da longevidade para meu coração”87.
Longe de suscitar tais encantamentos, manter o diário o
leva mais dolorosamente “ao isolamento e a uma vida
fragmentada” ou, pior, à “sensação do nada”88, Como se
o diário fosse apenas um interminável face a face com sua
própria insigniicância: “Deitado por volta de meia-noite,
escrevo este Memorandum tão insigniicante quanto o que
relembra. Que tecido de banalidades é a vida!”89. Para
concluir, não seria então o caso de dizer que inalmente o
que distingue a carta do diário é esse estímulo do desejo –
desejo de se encontrar com o outro mas também consigo
mesmo – nascido na troca epistolar, desejo que o diarista
ignora, pelo fato de precisar entregar-se unicamente a
si mesmo a im de dar vida e sentido a um projeto cuja
inutilidade quase sempre lhe pesa e se afunda, apesar das
insistentes injunções superegóicas?
Talvez seja arriscado encerrar aqui a comparação
entre carta e diário. Será sem dúvida necessário completar
este breve apanhado das práticas que as distinguem no
século XIX com um estudo mais aprofundado dos
“pactos” e dos compromissos que epistológrafos e
diaristas assumidos com eles mesmos e com o outro,
ao registrar os anais de suas vidas. É a sequência que
daremos, numa próxima série de estudos, a esta primeira
etapa de uma abordagem comparada dessas duas formas
de escrita de si, mais complementares do que rivais.
Mas como se dá esse prazer efusivo e sensual no
diário? Alguns airmam que o prazer também pode ser
a principal motivação do gesto diarista: “Escrevo pelo
prazer de escrever, para expor minhas ideias...”, escreve
Amélie Weiler, uma simples jovem do século XIX que na
sequência esclarece: “...como eu as exporia a uma amiga
discreta e íntima”,78 fazendo de seu diário o sucedâneo
de uma correspondência inexistente. Para outros, a relato
cotidiano de si é mais constantemente sentido como uma
obrigação: é o caso de Beyle, embora seja um diarista
assíduo. O incipit de seu diário é, sob esse aspecto,
signiicativo:
7980818283848586878889
Disponho-me a escrever a história da minha vida
dia a dia. Não sei se terei força para completar este
projeto já começado em Paris. Eis um erro de francês;
haverá muitos outros, pois tenho como princípio não
me incomodar e nunca apagar. Se eu tiver coragem,
77
78
79
80
81
82
83
84
85
86
87
88
89
Carta a Sophie, 18 de outubro de 1770, op. cit., t. II, n.s., p. 16.
Amélie Weiler, Journal d’une jeune ille mal dans son siècle, texto
estabelecido por Nicolas Stoskopf, Editions La Nuée bleue, 1997, p. 23.
Journal, 18 de abril de 1801, OI, t. I, p. 3.
Souvenirs d’égotisme, OI, t. II, p. 430.
Encontra-se esta impressão de diiculdade em manter o diário em
inúmeros diaristas, e entre todos especialmente em Amiel que se queixa
constantemente do tédio provocado pela fastidiosa corvéia de escrita:
“No fundo, é perfeitamente entediante ocupar-se tanto de si mesmo, de
se analisar, confessar, contar, como o iz cem vezes, e aspiro ao momento
em que não mais precisarei disso e poderei olhar constantemente para
fora”, Henri-Frédéric Amiel, Journal, 12 de abril de 1852, Editions
Complexe, 1987, p. 35.
Journal, 23 de setembro de 1813, OI, t. I, p. 888. Amiel também contrapõe
a vida esterilizante do diário à “verdadeira vida” que ele espelha: “Esta
vida virtual, ineiciente, retraída por assim dizer, me pareceu derivar da
fraqueza e emprestar um travesseiro à minha preguiça de agir”, HenriFrédéric Amiel, Journal, op. cit., p. 37.
“Eis um mal-estar completo. Não escrevo o diário quando estou feliz; esta
análise atrapalha a felicidade, mas hoje nada tenho a perder”, Journal, 28
de agosto de 1812, OI, t. I, p. 827.
“Que a felicidade não pode ser enviada numa carta ? Enviar-te-ei com
prazer uma parte da minha”, escreve Henri a Pauline (26 de julho de
1805, CG, t. I, p. 300). Contrariamente ao diário, a carta é ditada pela
felicidade.
Carta a Louis Crozet, 20 de outubro de 1816, CG, t. II, p. 715. Mais um
testemunho desta euforia epistolar é esta metáfora lírica, em Stendhal, da
recepção da carta: “ Sua adorável carta é para mim como uma jarra cheia
da água mais fresca que se oferece ao viajante que atravessa penosamente
as areias da África”, carta a Pauline, 14 de julho de 1809, CG, t. I, p. 835.
Barbey d’Aurevilly, Premier Memorandum, op. cit., p. 859.
Barbey d’Aurevilly, Troisième Memorandum, op. cit., p. 1034.
Barbey d’Aurevilly, Premier Memorandum, op. cit., p. 868.
Barbey d’Aurevilly, Premier Memorandum, op. cit., p. 798.
Recebido: 12 de março de 2014
Aprovado: 30 de março de 2014
Contato: brigitte.diaz@unicaen.fr; ligia.ff@uol.com.br
Letras de Hoje, Porto Alegre, v. 49, n. 2, p. 233-240, abr.-jun. 2014