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Ressonancias foucaultianas no dominio da linguistica

A fim de compreender os embates e aproximações que Foucault trava com a Linguística, passaremos neste artigo pelo conceito de discurso, que permitiu a entrada de Foucault na Análise do Discurso (e não exatamente na Linguística descritiva), e que contribuiu fortemente para afastar os estudos discursivos dos vínculos do formalismo e do sociologismo que rondavam os estudos linguísticos dos anos 1960; pelas distinções e limitações da metodologia foucaultiana – a arqueologia do saberes –, verificando se quando hoje se faz história das ideias linguísticas deve-se algo a Foucault; pela noção de enunciado, avaliando se ela conforme proposta por Foucault - como uma unidade molecular - pode servir à análise discursiva;. pelo conceito de arquivo, considerando que o objeto de análise em sua materialidade não está separado dos quadros formais dos quais emerge; e por fim, pela avaliação de o que podemos fazer quando aceitamos “pensar com Foucault”, para usar uma expressão de J.J Courtine (2011), em recente publicação.

Para referenciar esse artigo: SARGENTINI, V. Ressonâncias Foucaultianas nos domínio da Linguística. NAVARRO, P. / BARONAS, R. (Orgs.) Sujeito, Texto e Imagem em Discurso. Campinas, SP: Pontes Editores, 2018. RESSONÂNCIAS FOUCAULTIANAS NOS DOMÍNIOS DA LINGUÍSTICA Texto entregue para publicação em 2013. Vanice Maria Oliveira SARGENTINI –UFSCar sargentini@uol.com.br Não me tragam constantemente coisas que eu disse outrora! Quando as pronuncio, já estão esquecidas. Tudo o que eu disse no passado não tem qualquer importância. Escrevem-se coisas que já se usaram muito dentro da cabeça; o pensamento extenua, escreve-se, eis tudo. O que eu escrevi não me interessa. Interessa-me o que poderei vir a escrever, o que poderei vir a fazer. M. Foucault Chamada ao desafio de apresentar e discutir como a energia do pensamento foucaultiano vibra no interior dos estudos linguísticos, fui buscar no conjunto de conceitos e na proposição de métodos, construídos por Foucault, os possíveis diálogos que este autor estabeleceu com a Linguística. De imediato e de uma forma geral, sendo tão extensa a produção de Foucault, observa-se que o autor aproxima-se de modo crítico – ou talvez fosse melhor dizer especulativo - da Linguística nos anos 60. Uma vez instalado em um estruturalismo especulativo (para opor-se a um estruturalismo científico ou moderado), Foucault questiona as estabilidades e sistematicidades que deram fôlego ao estruturalismo, em especial o formalismo e o individualismo. É em sua preocupação com a construção de uma Arqueologia das Ciências Humanas que, em As palavras e as coisas Obra publicada em 1966., (inscrevendo-se em um temática que era daquele momento – a linguística estrutural) -ele inclui a ciência da linguagem no triedro dos saberes, juntamente com a ciência da vida e da produção e distribuição das riquezas, procurando compreender, enfim, como a vida, o trabalho e a linguagem, em sua dimensão filosófica, definem respectivamente com a biologia, a economia e a linguística um plano comum de formalização do pensamento. Neste estudo, Foucault postula que as ciências humanas não podem produzir uma análise do que o homem é por natureza; “são antes uma análise que se estende entre o que o homem é em sua positividade (ser que vive, trabalha, fala) e o que permite a esse mesmo ser saber o que é a vida, em que consiste a essência do trabalho e suas leis, e de que modo ele pode falar” (Foucault, 2000, p. 488). Assim, para Foucault “embora o homem seja, no mundo, o único ser que fala, não constitui ciência humana conhecer as mutações fonéticas, o parentesco das línguas, a lei dos desvios semânticos” (Foucault, 2000, p. 488), mas, em outra perspectiva, se poderia reconhecer como ciência humana, aquela que busca definir: - como os indivíduos ou os grupos se representam ao falar, -como se atribuem sentido às palavras ou às proposições que são enunciadas. Com isso, Foucault aponta que as ciências humanas existem enquanto ciência conforme se apoiem no solo de positividade das outras ciências, como a matemática cartesiana, por exemplo, e considera que na cultura ocidental o homem, como ser em estudo, deve ser domínio positivo do saber e não objeto de ciência. Portanto, sua relação com a linguagem é distinta da relação que a Linguística mantem com a linguagem, quando a toma como objeto científico a ser descrito. Essas reflexões sustentaram, portanto, sua disposição em investigar, não a história das Ciências em uma perspectiva descritiva e cronológica, mas uma “Arqueologia do Saber”. Será, portanto, nessa obra de 1968, que Foucault fará a proposição do método arqueológico, que resultará em críticas e contribuições aos estudos linguísticos que ressoam de diferentes formas em nosso modo de estudo da linguística até hoje. Deter-nos-emos, portanto, prioritariamente neste período da obra de Foucault, ainda que possa com isso incorrer na falta de dar menos visibilidade aos estudos sequentes que tratam da genealogia do poder e da subjetivação do sujeito por uma ética de si e pela governamentalidade. A fim de compreender os embates e aproximações que Foucault trava com a Linguística, passaremos neste artigo: Pelo conceito de discurso, que permitiu a entrada de Foucault na Análise do Discurso (e não exatamente na Linguística descritiva), e que contribuiu fortemente para afastar os estudos discursivos dos vínculos do formalismo e do sociologismo que rondavam os estudos linguísticos dos anos 1960; Pelas distinções e limitações da metodologia foucaultiana – a arqueologia do saberes –, verificando se quando hoje se faz história das ideias linguísticas deve-se algo a Foucault; Pela noção de enunciado, avaliando se ela conforme proposta por Foucault - como uma unidade molecular - pode servir à análise discursiva; Pelo conceito de arquivo, considerando que o objeto de análise em sua materialidade não está separado dos quadros formais dos quais emerge; E por fim, pela avaliação de o que podemos fazer quando aceitamos “pensar com Foucault”, para usar uma expressão de J.J Courtine (2011), em recente publicação. O conceito de discurso: críticas e contribuições aos estudos linguísticos. A história do estruturalismo articula-se fortemente com a história da Linguística. Para o fílósofo e antropólogo Levi-Strauss, os estruturalistas autênticos eram Benveniste e Dumézil (filólogo), sendo que ele considera que Lacan, Foucault e Althusser estão na lista dos estruturalistas por uma aberração. De fato, Foucault toma o estruturalismo tanto como fonte, como por ponto de fuga e de divergência (Puech, 2011), o que resulta na proposta de estudo de uma arqueologia dos estratos discursivos onde se formam os saberes. O conceito de Discurso, formulado detalhadamente na Arqueologia do saber, apresenta-se, assim, como cerne dessa contribuição à linguística, ainda que sua entrada nos estudos linguísticos tenha tido sempre um caráter polêmico. Foucault concebe que entre as coisas – os objetos reais – e a formação dos objetos – conceitos – está o ‘discurso’ que nos explica o porquê de tal coisa ser vista ou omitida, que seja concebida com tal aspecto e analisada a tal nível, e que determinada palavra seja empregue com tal significação. Paul Veyne (2009), aproximando-nos do pensamento foucaultiano, explica-nos que o título do livro As palavras e as coisas justificava-se naquela ocasião, pois tinha como objetivo situar sua reflexão num problema que era do momento – os estudos linguísticos -, evitando voltar-se para os problemas já consagrados no âmbito da filosofia. Entretanto, tal denominação fez com que se julgasse que o problema de Foucault circunscrevia-se sobre a relação entre os vocábulos e seus referentes. Para tentar dissipar a confusão, em A Arqueologia do saber, Foucault explica que, no século XVII, os naturalistas multiplicaram as descrições de plantas e de animais e que tradicionalmente essas descrições eram feitas de duas maneiras: Ou se partia das coisas para se dizer que sendo os animais como são e as plantas tais como as vemos, como é que as pessoas que viviam ao longo do século XVII viam e descreviam os animais e as plantas? O que foi observado e o que foi omitido? O que viram e o que não viram? Que pontos de observação foram fonte de estudo naquele momento. Ou então, se partia de outra perspectiva, isto é, fazia-se a análise no sentido inverso: considerava-se quais eram as palavras e os conceitos de que a ciência da época dispunha e, a partir disso classificavam-se as plantas e animais, via-se qual a grade classificatória que com base em um conjunto de palavras e conceitos já existentes poderia se colocada sobre o conjunto das plantas e dos animais. Foucault, observa que: (...) sem o saberem, os naturalistas pensavam através de um «discurso» que não era nem os objectos reais nem o campo semântico com os seus conceitos, mas que estava situado, por assim dizer, para além e que regulava correlativamente a formação dos objectos, por um lado, e dos conceitos, por outro. O discurso é um terceiro elemento, um tertium quid que, na ignorância dos interessados, explica o porquê de “tal coisa ser vista ou omitida, que seja concebida com tal aspecto e analisada a tal nível, e que determinada palavra seja empregue com tal significação” Grifo nosso. (Veyne, 2009, p. 39). O conceito de discurso focaliza a preocupação com a avaliação de o porquê um determinado enunciado emerge e não outro em seu lugar. Assim, tal conceito não se formula fora dos quadros de uma metodologia arqueológica, que procuraremos explorar melhor a seguir. Os métodos: Arqueologia e História das Ideias. M. Foucault dedica um longo capítulo no livro Arqueologia do saber para questionar-se o quanto sua proposta de uma análise arqueológica se distingue do que se faz no domínio da História das Ideias. O autor arrola como os grandes temas de estudo da História das ideias os seguintes: a) a gênese, b) a continuidade, c) a totalização, d) a passagem da não filosofia à filosofia, da não cientificidade à ciência, da não literatura à obra; Pelo método arqueológico, Foucault procurará expor como se dão a emergência e a transformação dos saberes, evitando o que ele considerava problemas metodológicos presentes em outras formas de estudo, por exemplo, na História das Ideias. Para isso redefine sua posição em relação aos documentos: diferentemente dos historiadores da ciência, na proposta arqueológica não pretende buscar nos documentos rastros que os homens tenham podido deixar, não trata os documentos como signos de outra coisa, mas os descreve como práticas; não busca a origem, o momento em que algo foi dito pela primeira vez, mas a regularidade dos enunciados; não busca por meio da análise das formações discursivas, um texto ideal, contínuo, mas a existência dos textos em suas descontinuidades. Foucault aponta como distinção central o fato de a História das Ideias fazer a oposição entre a originalidade e a banalidade- quer dizer que a História das Ideias trata o campo dos discursos atribuindo a eles dois valores: aquele das formulações valorizadas, raras e que não têm antecedentes semelhantes; aquele das formulações banais, cotidianas, maciças e que derivam do que já foi dito. Para Foucault, esse modo de tratar a diferença de status das formulações - (valorizadas por sua antecedência ou banais por seu caráter de repetição)– lendo-se o discurso ao longo de um calendário, buscando a origem de uma formulação para atribuir-lhe valor, é fonte de equívoco e limitações. Com suas mudanças metodológicas, a respeito do tratamento do documento como monumento (não trata o documento como signo de outra coisa, procurando um discurso oculto – dirige-se ao discurso tomando-o na qualidade de monumento) e a busca pela regularidade, por exemplo, Foucault faz ver a importância da apreensão da multiplicação das rupturas e do estudo das longas durações sem tomá-las no eixo das continuidades ou cronologicamente. Entretanto, diferentemente da História das Ciências (que estuda os campos consolidados) e assim como a História das Ideias (que estuda os saberes marginalizados que não atingiram o status de ciência), a proposta da arqueologia foucaultiana é estudar a história dos campos não científicos, entretanto flagrando-os não em sua continuidade, originalidade ou período, mas a partir da formação e transformação dos enunciados – rupturas que afetam o regime geral de uma ou de várias formações discursivas. Em relação à Linguística, podemos considerar que o fato de a arqueologia ser uma metodologia de análise dos discursos que não é nem formalista, nem interpretativa, mas se ocupa das formações discursivas e dos enunciados, ela servirá para as investigações linguísticas que buscam uma “mudança de terreno” – dentre elas a proposta de estudos do discurso conforme a formula M. Pêcheux. Isso nos ajuda a compreender o que o fundador da Análise do Discurso vai buscar na arqueologia – nem formalismo, nem sociologismo – é preciso fugir da busca dos universais e das individualidades. Para tal, a noção de DISCURSO e FORMAÇÃO DISCURSIVA serão essenciais – essa será uma fonte de entrada de Foucault na Linguística –, entretanto, novamente vê-se que ele está ocupando um lugar especulativo- fazer estudo do discurso era de certa forma tomar a linguística como fonte e ponto de fuga e divergência. R. Robin irá definir esse lugar de Foucault nessa mudança de terreno: “Numa palavra, M. Foucault, no que diz respeito ao horizonte epistemológico da constituição no campo da História do objeto discursivo, nos traz uma grande contribuição quando declara guerra à Antropologia do sujeito, ao continuísmo em História, à História das Ideias, à hermêutica do sentido, quando coloca no núcleo de sua reflexão a obsessão das relações da prática discursiva e das práticas não discursivas. Deixa-nos impotentes, entretanto, para refletirmos sobre essa relação, pela elisão que faz dos conceitos do materialismo histórico, por seu discurso paralelo ao marxismo, segundo a feliz expressão de D. Lecourt. Deixa-nos impotentes para refletir sobre o objeto discursivo pela elisão que faz também da estrutura linguística do discurso. De onde o lugar que lhe é devido neste capítulo, central e marginal, ao mesmo tempo, ponto de apoio e de impasse, ao mesmo tempo e no mesmo momento, aquilo a partir de que tentaremos construir o objeto discursivo, “série discursivas” e aquilo a partir de que será necessário formular de novo o problema da inserção da prática discursiva no conjunto das práticas sociais.” ROBIN, 1973 (1977) p. 99 Logo, Foucault, naquele momento, não ocupava (e talvez nem hoje) um lugar tranquilo ou de reconhecimento nos estudos linguísticos, uma vez que a própria Análise do Discurso era especulativa quanto aos estudos estruturalistas que fundaram a linguística e também porque a entrada de seus conceitos sofrem intervenções relativas à intervenção do materialismo histórico e da estrutura linguística. O enunciado não é uma frase, uma proposição, um ato de fala... Em artigo recentemente publicado em Discurso, Semiologia e História, organizado a partir das conferências apresentadas do II CIAD, C. Puech (2012) afirma que : Em M. Foucault, em As palavras e as coisas e em A arqueologia do saber, as noções de “enunciado”, de “discurso” visam a reconstrução de domínios teóricos, de redes de discursos que supostamente possuem sua ordem própria e autônoma. O sentido de um enunciado como “as espécies evoluem” somente é determinável no interior de uma “rede discursiva” que o determina independentemente de toda “intenção” daquele que o profere. Nessa medida, o projeto “arqueológico” de M. Foucault, que leva a considerar os enunciados do passado como “monumentos” e não “documentos”, divide com o paradigma semiótico duas de suas características essenciais: a crítica de toda posição fundadora do “sujeito”, por um lado, e a afirmação de uma certa autonomia dos discursos em relação àquilo a que eles se referem, por outro. Deste ponto de vista, o contexto dos enunciados científicos analisados em As palavras e as coisas somente poderia ser um contexto linguístico que forma um sistema, e não o reflexo discursivo de práticas não-linguísticas. Esse parece ser outro ponto polêmico da entrada de um conceito foucaultiano nos estudos linguísticos, via estudos do discurso. Distintos pesquisadores em diferentes momentos colocaram em obra o conceito de enunciado. Embora em A arqueologia do saber, Foucault afirme categoricamente que a definição de enunciado - “nem inteiramente linguístico, nem exclusivamente material” - não se apoia nos mesmos critérios que definem uma frase, uma proposição ou um ato de linguagem, alguns estudiosos – como Courtine (2006) em Análise do discurso. O discurso comunista endereçado aos cristãos – analisaram, por um conjunto de ajustes, o enunciado no que ele tem em sua materialidade linguística, focalizando sua função enunciativa, suas condições de emergência, seu domínio associado, sua materialidade repetível. O mesmo emprego de enunciado, tomando-o especificamente em seu aspecto linguístico é feito por Pêcheux. Em Informática e Análise do discurso, 1984 (In. Legados de M. Pêcheux, 2011), Pêcheux e Marandin assim se referem a enunciado: Os membros do grupo Informática e Análise do Discurso da RCP 676 (responsável: M. Pêcheux) definem atualmente uma abordagem que utiliza o programa DEREC (...) que oferece funções descritivas(em particular, uma gramática de reconhecimento) e funções exploradoras (suscetíveis de gerar objetos construídos a partir de descrições sintáticas). Os algoritmos atualmente regulados no grupo Informática e AD buscam multiplicar os ângulos de ataque descritivos; eles podem se reagrupar segundo dois eixos: paradigmático e sintagmático. Os algoritmos paradigmáticos, que exploram a dimensão do enunciado (no sentido de Foucault) estão na entrada lexical ou sintática: eles retomam, para avaliá-los, um certo número de problemas ou de hipóteses tradicionais da AD (construção dos objetos de discurso, pesquisa das zonas de instabilidade...). p. 115 Duas publicações recentes irão insistir em como se pode apreender esse conceito foucaultiano. Paul Veyne (2009), ao afirmar que “todo a priori é histórico”, recupera como os dispositivos, organizados em um conjunto heterogêneo, comportam os discursos que se materializam, por exemplo, em leis, medidas administrativas, decisões reguladoras, organização arquitetural, proposições filosóficas, morais, filantrópicas, etc. O que Foucault define chamar de práticas discursivas: “é um conjunto de regras anônimas, históricas, sempre determinadas no tempo e no espaço, que definiram para uma época dada e para uma área social, econômica, geográfica ou linguística dada, as condições de exercício da função enunciativa” (Foucault, 1986, p. 136.). Ora, a noção de enunciado, que tem como seu componente a função enunciativa não poderá, por essa definição reduzir-se ao enunciado linguístico. A outra publicação trata-se de recente livro publicado na França por J.J.Courtine (2011)- Déchiffrer le corps. Nele, o autor relata a experiência que teve na década de 1980, quando solicitado a acompanhar, ocasionalmente em uma viagem Paris –Grenoble, o senhor M. Foucault, ocasião em que teve a oportunidade de dizer a ele sobre suas “tentativas de aclimatação da Arqueologia do Saber ao país dos linguistas” (2011, p.20). Courtine diz reconhecer que Foucault não fez nenhum esforço para esconder seu ceticismo, uma vez que ele já havia se distanciado das análises que fazia na Arqueologia e da problemática do discurso conforme havia elaborado lá (voltemos a nossa epígrafe!). Insistia ainda que o enunciado não era de natureza linguística, fato que mais uma vez o fazia se distanciar de qualquer interesse pelos exercícios sintáticos, lexicais, então mobilizados para a análise. Embora esse percurso sinuoso da passagem de conceitos foucaultianos aos estudos linguísticos, os analistas de discurso mantém seu interesse pelos conceitos que foram apresentados e rediscutidos em vários livros publicados por M. Foucault. Por exemplo, para Courtine (2011), os materiais textuais representam uma fonte essencial de apreensão do cruzamento da linguística com a História, é “a matéria essencial do trabalho histórico” (p.12). Serão também os enunciados em sua existência material (não só de caráter linguístico, embora os enunciados linguísticos sejam uma das formas de apresentação desses enunciados) que possibilitarão reconstruir os dispositivos, compreender as práticas, chegar aos saberes. Esses saberes são, por sua vez, uma combinação do visível e do enunciável próprio de cada estrato histórico (Courtine, 2011 p.53), duas formas heterogêneas que se pressupõem, se entrecruzam. Enfim, mais uma vez, a ressonância de Foucault na linguística se marca como fonte e ao mesmo tempo ponto de fuga – a noção de enunciado também passa por isso. O legado de M. Foucault, entretanto, continua a ressoar nos estudos linguísticos - ou discursivos se assim preferirmos. Arquivo: como tratar a dispersão do arquivo que comporta discursos que se inscrevem na língua e na história. Na Análise do Discurso, a preocupação com a composição e análise do arquivo é central, uma vez que se considera que ele não é dado a priori e, então, os diferentes modos de produção e leitura do arquivo articulam-se às posições que assumem o sujeito. Além disso, reafirmamos, a partir de Foucault e das leituras de Paul Veyne (2009), que o objeto de análise em sua materialidade não está separado dos quadros formais dos quais emerge. É sempre um risco apoiar-se nas ideias gerais, nas generalizações que banalizam e racionalizam a história. Vale mais a pena partir dos detalhes de práticas discursivas, embrenhar-se em explicitar os discursos, os enunciados, considerando que não há verdades gerais, verdades que atravessam a história (invariantes trans-históricas). É, portanto, a análise do que Foucault nomeia discurso, práticas discursivas, dispositivos que nos mostra que tudo é singular na história universal e que há exatamente aí um espaço de trabalho para o analista do discurso. Enfim, é preciso partir da análise de tudo o que os homens puderam dizer e fazer em diversas épocas, trabalhando com uma noção de discurso ampliada, que nos leve a estudar o enunciado linguístico, mas também o conjunto de imagens, gestos, expressões, modos de circulação dos discursos, entre outros. O discurso, assim definido em sua amplitude; relaciona-se à noção de a priori histórico. Para Veyne (2009) não há a priori senão histórico, tudo é histórico mesmo a verdade, que por sua vez não é evidente e possui suas singularidades. E de que forma apanha-se essa densidade histórica? (...)Se os discursos traçam fronteiras históricas (das quais somente um sujeito soberano pode escapar) e se o objeto de análise em sua materialidade (seja linguística, imagética, arquitetural) não se separa do quadro formal de onde provem, é importante nas pesquisas analisarmos esses discursos considerando: (i) a fresta por onde podemos olhar a cada tempo histórico sua singularidade e (ii) a necessidade de partir dos detalhes de práticas discursivas e não de universais. Isso define uma metodologia na qual, para se fazer a análise do discurso, exige-se a análise da espessura histórica presente na discursividade.” (Sargentini, 2010, p.100) Nossos objetos de análise são provenientes das mais diversas fontes, por sua vez inscritas na história, de forma que ao analisarmos um texto, uma imagem, um gesto, buscamos os sentidos postos em certa densidade histórica: há imagens sob imagens, textos sob textos, atualizados a partir de uma memória discursiva. Pensar com Foucault: direções para os estudos no âmbito do discurso “Pensar com Foucault é de início reencontrar em seu ensinamento uma incitação que me parece jamais ser negada: aquela da liberdade de pensar, que deve se aplicar a isso que se pode fazer hoje do conjunto considerável dos escritos que ele nos legou. Eu encontro nisso um convite a fazer escolhas, a perceber ocasiões de experimentar, a descobrir, dentre aquelas que são sugeridas, as vias que permitirão avançar. Parece-me que não se pode ler Foucault sem fazer isso que ele mesmo faz com notável constância: apostas intelectuais.” Tradução nossa. J.J.Courtine (2011, p. 7)-. A proposta de Foucault reafirma a direção que estamos seguindo em nossas pesquisas. Há um conjunto de trabalhos em desenvolvimento, sob nossa orientação, que pretende amparar-se em uma estrutura metodológica que se apoia no modelo arquegenealógico para qual focalizamos em especial as noções de: -DISPOSITIVO – a noção de Formação Discursiva deve ser compreendida na complexidade e heterogeneidade do que Foucault nomeia dispositivo – que compreendem textos, imagens, práticas, ou ainda palavras, coisas, olhares. Pensa-se com Foucault que não nos retemos na arqueologia dos discursos extraídos unicamente de enunciados linguísticos. Inscrever-se no interior do pensamento de M. Foucault é buscar os extratos na diversidade do arquivo. -LONGA DURAÇÃO: não se pretende o estudo cronológico, pressupondo o encontro de uma história que busca a continuidade dos fatos, mas pensa-se com Foucault quando a descontinuidade faz parte da Ordem do discurso. -ACONTECIMENTO: a arqueologia é uma descrição dos acontecimentos discursivos. Pensa-se com Foucault, quando se produz com a análise do acontecimento uma multiplicação causal, sem a preocupação de termos que nos situar sob o signo da necessidade única na busca de uma verdade. Em pesquisa que desenvolvemos sobre análise do discurso político eleitoral presidencial, estudamos diversos aspectos de constituição, formulação e circulação desse discurso. Para se analisar o discurso político na contemporaneidade é imprescindível analisar a mídia televisiva, os sites, a instabilidade nos formatos dos programas de governo. Assim, seria redutor analisar somente o enunciado linguístico em um dado momento. É interessante analisar o discurso político hoje considerando as mutações que sofreu com as interferências da tecnologia atual. Análises sobre o tema nos mostraram que o discurso político na contemporaneidade responde mais à lógica da comunicação comercial que à divulgação da propaganda política. Tal característica do discurso político demanda a análise de imagens e consideramos que é possível desenvolver essa análise a partir do quadro teórico dos estudos do discurso, pensando com Foucault. Há um conjunto de trabalhos em andamento sob nossa orientação que se baseiam nestas reflexões: Amanda Braga – SOBRE PALAVRAS, IMAGENS E MEMÓRIAS: SIGNOS DA BELEZA NEGRA NA HISTÓRIA DO BRASIL. Jocenilson Ribeiro dos Santos - ARQUEOLOGIA DA IMAGEM NA HISTORIOGRAFIA LINGUÍSTICA BRASILEIRA: DISCURSO, ENSINO E SISTEMAS DE AVALIAÇÃO. Israel de Sá - MEMÓRIA DISCUSIVA DA DITADURA NO SÉCULO XXI: VISIBILIDADES E OPACIDADES DEMOCRÁTICAS. Luciana Carmona Garcia Manzano - A ORDEM DO OLHAR: A IMAGEM NO DISCURSO POLÍTICO TELEVISIVO. Pedro Henrique Varoni Carvalho - DO POÉTICO AO POLÍTICO: OS LUGARES DO SUJEITO NA TRAJETÓRIA DE GILBERTO GIL Para um exemplo muito breve da característica de nosso material de análise que nos incita à análise, apresentamos a seguir uma imagem extraída do corpus que recolhemos durante o período pré-eleitoral, referente ao pleito presidencial 2010. Trata-se de imagem que circulou no site da então candidata Dilma Roussef. Imagem captada no site da candidata Dilma. Acesso: 20/09/2010 A fotografia, por sua natureza, carrega consigo um efeito de realidade e veracidade, sendo que quando é postada no site do candidato (a), a princípio, apresenta ao eleitor a agenda deste candidato(a), os lugares por onde esteve, as pessoas com quem teve contato. Entretanto, é bem mais que isso. O trabalho fotográfico que alimenta os sites de divulgação do discurso político envolve, na atualidade, a produção da plasticidade da imagem, obtida a partir da exploração das cores, da luz, dos ângulos, dos efeitos de estaticidade ou movimento, entre outros. Nesta imagem queremos destacar o efeito produzido pela gestualidade, que em conjunto com a escolha do ângulo, com a direção da luz, com o matiz de cores evoca e provoca naquele que olha para a imagem sentidos de um discurso já-lá, sentidos presentes na memória discursiva que são atualizados por essa imagem. Os consulentes desse site, possíveis eleitores, conheçam ou não os clássicos afrescos de Michelangelo, em especial A Criação de Adão (Capela Sistina) são tocados por esse discurso, presente na memória coletiva, do potencial da criação, do cuidado do outro. É, portanto, essa presença de imagens sob imagens (Courtine, 2011) que, da mesma forma como temos na retomada de enunciados linguísticos, atualizam e alimentam discursos já presentes na sociedade. Nesse caso, o discurso da criação atualiza-se constantemente, seja pela reprodução frequente dos afrescos de Michelangelo em materiais didáticos, seja pela derrisão em publicidades e charges que retomam essa imagem. Os sentidos postos nesta imagem mobilizam um conjunto de outras imagens que fazem parte do arquivo daquele que olha. Insistimos, entretanto, que não se trata de buscar a origem desta foto em outro local – ou centrar-se nela como na busca de uma relação intertexual – mas nos perguntarmos que sentidos são mobilizados e, consequentemente, como uma arqueologia dos discursos regem os sentidos atualizados a partir de uma memória discursiva. A gestualidade do encontro das mãos especialmente em uma divisão de planos pode ser compreendida como um dispositivo que desencadeia sentidos como o da criação, do resgate (enquanto ousadia ou benevolência), da compreensão, mas também nutre o discurso relacionado àquele que tem poderes para tal. Sentidos de um discurso já-lá, que podem ser recuperados a partir de uma arqueologia das imagens. Fazemos referência a essa foto, tomando-a como representativa de ocorrências frequentes em imagens atuais relacionadas ao discurso político (como, por exemplo, a que segue). Sabemos, entretanto, que esse breve exemplo e nossa reduzida análise não são suficientes para validar a importância de mobilizar os conceitos de M. Foucault nos estudos do discurso, mas estamos certos de que M. Foucault não precisa de defensores. Referências Bibliográficas COURTINE. J.J. Análise do discurso político: o discurso comunista endereçado aos cristãos. São Carlos: Edufscar, 2006. COURTINE, J.J. Déchiffrer le corps. Penser avec Foucault. Grenoble (FR): Jérôme Millon, 2011. FOUCAULT, M. (1966) As palavras e as coisas. 8ª edição. São Paulo: Martins Fontes, 2000. FOUCAULT, M. (1969) A Arqueologia do Saber. 2ª edição. Rio de Janeiro: Editora Forense Universitária, 1986. PÊCHEUX, M. E MARANDIN, J.M. Informática e Análise do discurso, 1984. In.: PIOVEZANI, C. e SARGENTINI, V. (org.) Legados de Michel Pêcheux. São Paulo: Contexto, 2011. PUECH, C. A Emergência do paradigma semiótico-estrutural na França. In: PIOVEZANI, C, CURCINO, L. e SARGENTINI, V. (org.) Discurso, semiologia e história. São Carlos: Claraluz, 2011. ROBIN, R. (1973) História e Linguística. São Paulo: Ed. Cultrix, 1977. SARGENTINI, V. As relações entre a análise do discurso e a história. In. MILANEZ, N. e GASPAR, N. (org.) A (des) ordem do discurso. São Paulo: Contexto, 2010 VEYNE, P. Foucault: o pensamento, a pessoa. Lisboa: Editora Texto & Grafia, 2009.