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" XANDRILÁ " SOB UM VIÉS SEMIÓTICO

“XANDRILÁ” SOB UM VIÉS SEMIÓTICO Flávio Passos Santana1 (UFS) 1. Introdução Partindo das particularidades referentes a Sergipe, mais especificamente, tomando como base a produção de curtas-metragens no Estado e sabendo da importância que este dá às produções audiovisuais, propomos analisar, neste trabalho2, o curta sergipano Xandrilá, com o intuito de observar, por meio da Semiótica do Discurso, operando mais diretamente com o percurso gerativo de sentido, como essa narrativa foi elaborada, criando enfim certos efeitos de sentido, o que será identificado, no nosso estudo, por meio da análise dos três níveis desse percurso – o fundamental, o narrativo e o discursivo. No que se refere ao curta Xandrilá, nosso principal objeto de estudo, trata-se de uma adaptação cinematográfica do conto homônimo, publicado no ano de 2010, do sergipano Isaac Dourado. Por conta disso, atentamos para o fato de que o nosso objeto é uma produção intersemiótica por ser baseado em um conto (texto na modalidade escrita/signos verbais) e adaptado para as telas do cinema (texto nas modalidades escrita e oral e imagens/signos verbais e não verbais). Para tanto, elegemos como arcabouço teórico os estudos da Semiótica greimasiana, baseando-nos em Algirdas Greimas e Joseph Courtés (2013), Diana Luz Pessoa de Barros (2012), José Luiz Fiorin (1992) e Jacques Fontanille (2012), os quais serão agregados ao nosso trabalho como sustentáculo para investigarmos de que forma foram construídos os três níveis do percurso gerativo de sentido. Para obtermos os resultados almejados, nossa atenção se voltará para a temática desenvolvida no curta, que seria o “Estado de Totalidade Existencial”, bem como para os discursos das personagens Renata e Pepper, observando quais são os valores, as crenças e as ideologias que daí emergem. Assim, nosso objetivo é utilizar os estudos por nós já citados para lermos semioticamente a sequência narrativa, bem como ler discursivamente as imagens criadas, no curta, dos sergipanos, ao mesmo tempo em que nossas reflexões partem de dois vieses principais: de um lado, a importância de os sujeitos refletirem – 1 Mestrando em Estudos Linguísticos pela Universidade Federal de Sergipe. E-mail: flavio_cdb@hotmail.com. 2 O presente artigo é um recorte do nosso Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) intitulado “Curtindo o curta sergipano: um olhar semiótico sobre Xandrilá, em que tivemos a orientação da professora Dra. Márcia Mariano. tanto dentro quanto fora da academia – acerca da identidade, por tomarem conhecimento da realidade da sociedade da qual fazem parte e também, por meio da reflexão, tornaremse cidadãos mais críticos e questionantes, não se deixando influenciar pelo que é difundido pelos discursos que circulam no espaço em que vivem; e de outro, há a valorização das produções culturais locais das pequenas e médias cidades brasileiras, que nem sempre são divulgadas pelas grandes mídias. 2. “Xandrilá” e a Semiótica Discursiva Inicialmente, dizemos que a Semiótica não trabalha com a palavra ou a frase apenas, mas sim com o texto e tomando este como sendo um construtor de sentido. Assim sendo, a Semiótica tenta observar como esses sentidos foram construídos a partir de mecanismos e procedimentos utilizados e que são divididos no texto por meio de relações sócio-históricas. Dir-se-á ainda que esse texto de que falamos pode ser tanto linguístico (oral ou escrito), visual, olfativo e gestual quanto a união de diferentes expressões denominada de sincretismo, a exemplo do cinema, dos quadrinhos e das canções. Podemos dizer então que, em linhas gerais, a Semiótica pretende elucidar os sentidos do texto. E, para tanto, faz-se necessário, segundo Barros (2012), analisar os seus mecanismos e procedimentos no plano do conteúdo, visto que este é arquitetado pelo percurso gerativo de sentido. Adentrando mais especificamente o percurso gerativo de sentido, por seu turno, nota-se que ele se desenvolve do nível mais simples e abstrato até o mais complexo e concreto; nesse percurso, são determinadas três etapas, as quais podem ser explicadas separadamente, mesmo o sentido do texto dependendo da relação entre os três níveis. 2.1. Nível Fundamental De acordo com Fiorin (1992, p. 20), a “semântica e a sintaxe do nível fundamental representam a instância inicial do percurso gerativo e procuram explicar os níveis mais abstratos da produção, do funcionamento e da interpretação do discurso”. Ainda nesse nível, o sentido do texto se dá a partir de uma “oposição semântica”, mediada pela existência de um elemento básico e comum aos termos contrários entre si, tendo, então, as seguintes possibilidades: quando há relações sensoriais do sujeito com os conteúdos – os termos contrários – tidos como atraentes ou eufóricos e repulsivos ou disfóricos; quando eles são negados ou afirmados por intervenções de uma sintaxe elementar; ou quando são concebidos e vistos através de um modelo lógico dessas relações alcunhado de quadrado semiótico. Este, segundo Fontanille (2012, p. 62) “apresenta-se como a reunião dos dois tipos de oposições binárias em só um sistema que administra, ao mesmo tempo, a presença simultânea de traços contrários e a presença e a ausência de cada um desses traços”. Aplicando esses pressupostos ao contexto do curta Xandrilá, pode-se notar que a categoria semântica fundamental é estabelecida por meio do Estado de Totalidade Interior do sujeito Renata, por sua vez, representado pelos seguintes elementos opostos: a ausência versus a plenitude. Sendo assim, uma leitura para esse esquema seria que a ausência para Renata é tida como disfórica e a plenitude é representada como eufórica, portanto, a ausência é vista como repulsiva e a plenitude como atraente. Nesse contexto, as intervenções de afirmação bem como as de negação nos remetem ao trajeto abaixo: AFIRMAÇÃO NEGAÇÃO AFIRMAÇÃO Ausência Não-Ausência Plenitude Disforia Não Disforia Euforia Nesse sentido, temos a construção de uma historiazinha euforizante, isto é, ela parte da disforia à euforia num trajeto em que a personagem termina “bem” até o momento em que nos é mostrado o final da película. Vale ressaltar que esses termos não passam diretamente de um para o outro, mas se constituem por meio de intervenções de afirmação e negação. Com efeito, podemos sintetizar analiticamente o curta Xandrilá, a partir do nível fundamental, mediante o seguinte quadrado semiótico: Ausência Não Plenitude Plenitude Não Ausência Com base nesse esquema, podemos dizer que o sujeito Renata encontrava-se, inicialmente (Seta 1), na ausência de um sentido existencial, sempre imaginando o porquê de seu destino e vivendo a vida sem rumo, sem planos para o futuro e sem se importar com nada; ao negar essa ausência (Seta 2), a partir do momento em que encontra Osvaldo e começa a traçar um novo destino para a vida dela, chega à plenitude, com Osvaldo, ou “Pepper” (Seta 3), mas, com o tempo, percebe que não quer viver um relacionamento em que seu parceiro viva consumindo drogas; logo, nega a plenitude (Seta 4), entrando no mundo da prostituição em busca de um sentido; e volta para a ausência (Seta 5), para, finalmente, afirmar a plenitude (Seta 6), tornando-se garota de programa, e se realizar (sexual e financeiramente), acreditando viver feliz num ambiente em que nunca achou que viveria, já que ela se surpreende, um tempo antes, ao se deparar com a amiga Camila saindo do carro e “fazendo ponto” na avenida, antes de ela mesma firmar o contrato com o “sócio”. Em suma, esse feixe de relações que sintetizam o percurso da protagonista dá conta da passagem de um estado a outro, quando, com o desenrolar do enredo no tempo e no espaço da narrativa, a ausência pouco a pouco é substituída pela sensação de plenitude do sujeito Renata, que passa a se voltar principalmente para o culto da luxúria e do materialismo, retirando daí a matéria que lhe traz uma aparente realização. 2.2. Nível Narrativo Seguindo o percurso gerativo de sentido, chegamos ao nível narrativo. Neste, por seu turno, dão-se três tipos de ocorrência: o ingresso do sujeito, sendo que, ao invés de acontecerem operações lógicas fundamentais, ocorrem modificações na historieta exercidas pelo sujeito; em seguida, as categorias semânticas existentes no nível fundamental passam a ser valores do sujeito e serão implantadas nos objetos com que o sujeito tem contato; e, por fim, as decisões tensivo-fóricas do nível anterior transformamse em modalizações que mudam as ações e os modos de existir do sujeito e de suas relações com os valores. No curta em tela, o sujeito Renata atua nessa transformação ao colocar o sujeito Osvaldo (ou Mr. Pepper) em situação de dominação. Renata, movida pelos desejos e interesses para sair da Ausência de sentido existencial, quer realizar a transformação que vai colocá-la em estado de Não Ausência. Com efeito, Plenitude é o valor com que esta protagonista se relaciona por meio de objetos – principalmente de objetos que estão relacionados à luxúria e ao materialismo –, sendo essa uma relação almejada por Renata e modalizada pelo querer. Assim sendo, esse sujeito pretende alcançar a modificação de sua situação inicial de ausência de sentido existencial, passando, portanto, a um estado de plenitude com o sentido de sua vida. Segundo Barros (2012, p. 191), “a narrativa de um texto é a historiazinha de um sujeito em busca de valores”, sendo assim, para que esse sujeito possa conseguir os valores, estes são inseridos nos objetos. E estes objetos, por sua vez, quando são carregados de valores, circulam através dos sujeitos. Destarte, quando um sujeito adquire um objeto de valor, outro sujeito é privado disso, consequentemente, a narrativa gira em torno de dois sujeitos em busca dos mesmos valores almejados. Podemos entender esse sistema no curta sob análise se tomarmos a Plenitude como sendo o objeto de valor tanto para Renata quanto para Mr. Pepper. Ela, em busca da Plenitude por meio da música, enquanto ele encontra a Plenitude por meio das drogas, destacando aqui que tanto o objeto música quanto o objeto drogas representam, na narrativa, objetos necessários para levar à aquisição da Plenitude, a qual seria a performance que ambos querem realizar. Toda narrativa de um texto possui uma organização base ainda que nem sempre ela esteja explícita, e é nela que três caminhos se relacionam por pressuposição: o da manipulação (um destinador faz um contrato com um destinatário tentando persuadi-lo para que faça o que ele lhe propõe); o da ação (o destinatário que se submeteu ao contrato tornar-se-á sujeito e desenvolverá o que foi acordado); e o da sanção (o destinatário vai tentar mostrar para seu destinador que cumpriu o acordo, no intuito de obter um julgamento positivo, e, por conseguinte, o destinador vai observar se o contrato foi cumprido conforme combinado e vai atribuir ao destinatário uma recompensa ou uma punição). Logo, todos estes elementos são pressupostos pelo seu anterior. No percurso da manipulação, segundo Barros (2012, p. 197), este percurso pode ser entendido como uma ou mais transformações de estado, em que o sujeito que opera a transformação é alcunhado de destinador e o sujeito sobre o qual aquele age, de destinatário. Assim, o destinador propõe um acordo ao destinatário no intuito de modificar a competência deste e fazer com que ele se torne sujeito operador da transformação final de estados. Resumindo, o destinador pretende que o destinatário faça algo, e, para isso, ele precisa persuadi-lo, levando-o a querer ou a dever fazer, a poder e a saber fazer, que são competências básicas do sujeito. Com base nisso e observando que Renata (sujeito destinador) propõe um contrato a Osvaldo (destinatário), contrato este que é de eles formarem uma dupla musical, já que ela canta e precisa de alguém que toque violão, e ela sabe que Osvaldo é competente para isso. Para que esse acordo ocorra, é necessária uma relação comunicativa 3 entre os atores. Assim, Renata vai se mostrar como competente e confiável tanto para cumprir o contrato quanto para mostrar que seus valores são do interesse de Osvaldo ou que devem ser temidos por ele. Dá-se que, um ano após o firmamento do acordo, Osvaldo começa a quebrar o contrato e entra um novo destinador na história, o Empresário, que vai propor um acordo com Renata, e esta se torna destinatário. A respeito disso, listamos, a seguir, as estratégias de persuasão (as quais podem ser: intimidação, tentação, sedução e provocação) utilizadas/recebidas por essa personagem em dois programas narrativos que ocorrem, por um espaço de tempo, concomitantemente na narrativa: Intimidação – são mostrados valores que o destinatário teme e quer evitar: o sujeito Renata fala a Osvaldo que ele não pode continuar usando o dinheiro do cachê para comprar drogas; Tentação – apresentação de valores desejáveis para o destinatário: o sujeito “Empresário” fala ao sujeito Renata que ela pode se tornar uma garota de programa de sucesso. Nesse ínterim, na intimidação, o destinador Renata busca modificar a competência do destinatário Osvaldo, levando-o a dever fazer (parar de comprar e usar drogas) para que eles possam investir no futuro do casal e da carreira. Já na tentação, temos um querer fazer, em que o sujeito Empresário faz uma proposta ao destinatário Renata para que eles possam ganhar dinheiro “fácil”. Nesse sentido, Renata busca modificar o estado de conjunção de Osvaldo de dever ou querer parar de comprar drogas para que ele passe então a um estado de disjunção com esse comportamento autodestrutivo. E o Empresário, aproveitando-se da possível disjunção de Renata com a música e com Osvaldo, intenta transformar esse estado de disjunção da protagonista em um querer fazer programas, fazendo com que ela entre em estado de conjunção com novas competências do sujeito realizado. Nessa perspectiva, deve ser ressaltado que o destinatário realiza um fazer, que é entendido como a interpretação da persuasão do outro, e isso ocorre por meio de seu conhecimento sócio-histórico-ideológico e dos recursos que o destinador utilizou para 3 Segundo Barros (2012, p. 197), toda comunicação é uma forma de manipulação. que possa julgá-lo ou não como digno de fé4. No caso de Xandrilá, a manipulação por intimidação não funciona, e isso pode ter ocorrido por Renata não ter oferecido valores desejáveis (continuar com a banda e com o relacionamento) para que Osvaldo parasse de usar drogas. Já na tentação, o destinador Empresário ofereceu valores que, a princípio, não eram desejáveis para o destinatário Renata, no entanto, ao se deparar com a situação de Osvaldo e com a tentação de poder ganhar muito dinheiro, ela aceita o acordo com o destinador. Teoricamente falando, no percurso da ação, ocorrem dois tipos de programas narrativos, sob a perspectiva do sujeito da ação, a saber: programas de performance e de competência. O primeiro é entendido como a transformação de um estado de disjunção em estado de conjunção, por meio de um sujeito transformador e realizado pelo mesmo ator do sujeito que tem seu estado modificado. Ainda nesse programa, o valor do objeto é um valor último ao qual aspira o sujeito da narrativa. Por sua vez, o programa de competência também é conceituado como uma transformação de estado de disjunção para conjunção, sendo que a diferença, nesse programa, é que o sujeito que pratica a transformação é um ator diferente do sujeito de estado e, também, o valor do objeto é um valor modal (o querer, o dever, o saber e o poder fazer), isso quer dizer que é um valor imprescindível para que o sujeito, nesse programa, consiga realizar a performance principal. Exemplificando isso no curta, pode-se ver que o sujeito Renata tenta alcançar uma performance, que é transformar seu estado de disjunção com os objetos-valores música, namorado, fama (dinheiro), que a levaria para uma realização plena (Plenitude) em estado de conjunção: ela quer e pode chegar à Plenitude almejada. No programa de competência, de acordo com o contexto do curta, não sabemos exatamente qual(is) o(s) motivo(s) que levou(ram) Renata à ausência de sentido existencial, porém, podemos pressupor que, talvez, as origens dela (problemas com os pais, falta de conselhos, etc.), pressupomos, portanto, que num programa narrativo anterior à história de Renata contada na película, vários foram os anti-sujeitos que fizeram com que a protagonista chegasse ao estado em que se encontrava no início do curta – estado de Ausência –, e esse sujeito foi responsável pela sua transformação em estado de conjunção com a ausência de sentido existencial. 4 Aristóteles, 2011 [384-322 a.C.]. Após a realização da performance, o sujeito cumpre o acordo que havia feito com o destinador. Chegamos, então, ao terceiro percurso, o da sanção. Neste, o destinatário irá receber o reconhecimento ou não pela realização do contrato e, consequentemente, a recompensa ou a punição. Com base nessa explicação, podemos dizer que, no enunciado em que Renata foi o destinador e propôs o acordo com Osvaldo, este não cumpriu o contrato (drogava-se e comprava drogas com o dinheiro do cachê dos shows feitos pela dupla), recebendo, como recompensa, a punição: ficar sem Renata e desfazer a parceria musical. Ainda aqui, podemos afirmar que Osvaldo também assumiu um papel de antisujeito, daquele que atrapalha a realização da performance. Já no enunciado em que Renata é o destinatário e o Empresário é o destinador, ela acaba cumprindo o contrato e recebendo sua recompensa e seu reconhecimento: dinheiro pelo seu trabalho, tornandose assim uma garota de programa famosa e desejada. Finalmente, percebemos que, em Xandrilá, num primeiro momento, a narrativa apresenta um sujeito (Renata) em conjunção com valores temíveis (querer não ser) ou que são indesejáveis e em disjunção com valores tidos como desejáveis (querer ser): Renata se mostra uma menina que não sabe o verdadeiro significado da vida e faz tudo sem pensar nas consequências pelo fato de a ausência de sentido existencial permear seus pensamentos. Nesse caso, a sua situação inicial (ausência de sentido) é um valor indesejável para ela porque é obrigatório (dever ser) para que possa construir seu caminho até conseguir encontrar um sentido e se realizar. Além disso, esse sujeito está em disjunção com a Plenitude na medida em que esse é um valor desejável e, consequentemente, desconhecido (não saber ser), isto é, ela talvez não saiba como chegar ao estado de Plenitude, pois ainda é uma menina imatura que não conhece os caminhos e não tem alguém que a guie. 2.3. Nível Discursivo Após percorrermos os dois níveis do percurso gerativo de sentido, chegamos ao nível discursivo. Neste, a disposição narrativa é temporalizada, espacializada e actoralizada. Isso quer dizer que as ações e os estados narrativos são localizados e programados temporal e espacialmente, e os actantes narrativos são investidos pela categoria de pessoa. Ademais, os valores nesse nível são difundidos no discurso, de maneira abstrata, revestidos pelos percursos temáticos, que, por seu turno, podem ser investidos e concretizados em figuras. A tematização e a figurativização correspondem, segundo Barros (2012), ao “enriquecimento” dos sentidos do discurso. Assim sendo, na tematização ocorre a propagação dos traços que são revestidos de sentidos e que são tomados de forma abstrata. Por sua vez, na figurativização, esses traços semânticos são revestidos por traços semânticos “sensoriais” (de cor, forma, cheiro, som, etc.) que são capazes de dar a eles “o efeito de concretização sensorial”. Além disso, os discursos são qualificados pelas repetições de tipos de traços semânticos, apresentados como percursos temático, figurativo e isotópico. Este, segundo Greimas e Courtés é [...] de caráter operatório, o conceito de isotopia designou, inicialmente, a iteratividade*, no decorrer de uma cadeia sintagmática*, de classemas* que garantem ao discurso-enunciado a homogeneidade. Segundo essa acepção, é evidente que o sintagma* que reúne ao menos duas figuras* sêmicas pode ser considerado como o contexto* mínimo que permite estabelecer uma isotopia. Assim acontece com a categoria* sêmica que subsume os dois termos contrários*: levando-se em consideração os percursos aos quais podem dar origem, os quatro termos do quadrado* semiótico serão denominados isotópicos (GREIMAS & COURTÉS, 2013, p. 275-276). (Os asteriscos são utilizados no texto original) Esclarecendo o conceito do último termo destacado por nós, este seria a repetição de traços semânticos que fazem com que o discurso torne-se semanticamente coerente. De acordo com os postulados de Fiorin (1992, p. 81-6), “em Análise do Discurso (AD), isotopia é a recorrência do mesmo traço semântico ao longo de um texto. Para o leitor, a isotopia oferece um plano de leitura, determina um modo de ler o texto”. Ainda de acordo com Fiorin (1992), os textos figurativos são capazes de criar um efeito de realidade, pelo fato de construírem “um simulacro da realidade”, correspondendo, dessa maneira, ao mundo; por seu turno, os textos temáticos, buscam elucidar a realidade, “classificam e ordenam a realidade significante”, formando relações e dependências. Desse modo, para esse estudioso, os discursos figurativos possuem uma função descritiva ou representativa, ao mesmo tempo em que os temáticos têm uma função predicativa ou interpretativa. Assim como o lexema “texto” corresponde à palavra tecido, como diz Fiorin, as figuras estabelecem relações entre si. E o que vai interessar numa análise textual é esse encadeamento de figuras, pois ler um texto não é apreender figuras separadas, mas poder observar as relações existentes entre elas e avaliar a trama que estabelecem. De tal modo, esse encadeamento de figuras e essa organização de relações denominam-se percurso figurativo. Por sua vez, uma correlação de temas corresponde ao percurso temático. Vale salientar que esses percursos só acontecem em textos que sejam temáticos. Desse modo, um conjunto de lexemas abstratos e em que aparece um tema mais universal compõe um percurso temático. Assim como os percursos figurativos, os percursos temáticos precisam estabelecer uma coerência interna. E, quando isso não acontece, o texto se torna incoerente. É claro que podemos mostrar num texto percursos temáticos antitéticos ou mesmo superpostos para criar determinados efeitos de sentido. Dessa forma, do mesmo modo que nos textos figurativos, a quebra de coerência nos textos temáticos pode ser um recurso para transmitir determinados conteúdos. Considerando então esses levantamentos e aplicando o que foi falado ao curta Xandrilá, temos então um percurso temático em que o tema universal é caracterizado fundamentando-se por meio do nível narrativo, que foi a Totalidade de Sentido Existencial dos personagens Renata e Pepper, mediada pelos termos contrários Ausência e Plenitude. Como um percurso temático é um conjunto de lexemas abstratos em que se tem apenas um único tema principal, desse modo podemos dizer que a sexualidade, o jovem transgressor, o ilegal (proibido) e o materialismo são temas que revestem o tema universal. Nesse ínterim, como a figurativização é responsável por recobrir os traços semânticos da tematização por meio de traços sensoriais criando com isso um efeito de realidade e tendo a função descritiva ou representativa, traremos na sequência as figuras apresentadas no curta-metragem em tela, figuras estas que são responsáveis por revestir os temas: TEMAS FIGURAS Sexualidade O picolé; as unhas vermelhas de Renata; o sexo oral na escola; os movimentos obscenos durante a aula; a forma como Renata aborda Pepper na praia; a blusa curta que deixa a barriga de Renata à mostra, na escola. Jovem transgressor (Rebelde) A maconha (droga); a bebida; os piercings; as tatuagens; o pó (droga); o Rock (disco e música da banda Karne Krua; guitarra, pulseira de couro); o desinteresse pelos estudos. Ilegal (proibido) A relação sexual na escola; o uso das drogas (proibido no Brasil); o tráfego em vias proibidas e em alta velocidade. Materialismo O carro de Pepper; o dinheiro dos programas; o champanhe; o vinho; a joia; o carro e a moto de luxo (dos clientes); o Hotel. Tabela 1: Relação entre temas e figuras representada com exemplos do curta. Através desse quadro, podemos observar, por meio das figuras, como se sucederam os temas e a sua importância para a construção de sentido da narrativa dandolhe um efeito de concretização sensorial. Por meio das figuras dispostas acima, ficam comprovados os argumentos que utilizamos para confirmar os temas que revestem o tema universal dessa narrativa, fazendo com que nós, espectadores, consigamos identificar os elementos significativos que foram utilizados para a construção do efeito de sentido do curta em análise. A partir da abordagem do conceito de isotopia, esse curta-metragem determina que leiamos a película como uma história de dois jovens que apresentam o traço /Busca da Totalidade Existencial/. E, por meio dos traços semânticos que expomos acima, podemos observar que esses jovens vivem uma vida de aventuras e quebrando os limites da proibição que a sociedade impõe. Atentamos ainda que essa sociedade reproduzida no filme diz respeito à sociedade sergipana por conta de seus produtores serem sergipanos e também por sua gravação ter acontecido na cidade de Aracaju, capital do Estado de Sergipe. Considerando esse espaço em que a narrativa é tratada, podemos inferir, por meio dos discursos propagados, que essa sociedade pode ser entendida como preconceituosa e tradicionalista, já que tratou dos problemas trabalhados no curta como uma censura didática. Ou seja, os personagens e as suas atitudes são mostrados como “errados”, além de que há a mensagem de que se nós (espectadores) seguirmos esse rumo, teremos uma sanção negativa em nossa história. Ao mesmo tempo, os oradores provocam essa mesma sociedade, visto que Renata termina feliz, fazendo programas, ganhando dinheiro, o que provavelmente não vai ser aceito por aqueles que compartilham dos valores tradicionais. Ou seja, podemos falar que há uma contradição presente no filme entre valores tradicionais e “transgressores” (não se aceita as drogas, mas se aceita a prostituição...) 3. Considerações Finais Com isso, esperamos que, desvendando imagética e verbalmente os discursos do curta Xandrilá, seu enredo, seus valores, seus sentidos, haja uma abertura para a difusão de novos estudos acerca desse tipo de produção audiovisual. Nesse contexto, as esferas acadêmica e escolar, por exemplo, podem ser beneficiadas ou enriquecidas com a nossa pesquisa pelo fato de os professores que tenham acesso ao nosso trabalho poderem discutir, em sala de aula, com seus alunos, acerca de temáticas concernentes a problemas sociais e políticos que dizem respeito ao Estado ou a situações humano-existenciais que sejam representadas nos curtas; ademais, poder-se-á incentivar e valorizar a produção de curtas-metragens, tanto por parte de pessoas que já os produzem, bem como de outras que possam despertar o desejo de passar a produzi-los; e, ainda, se possível, teremos em vista também resgatar aspectos históricos, sociais e culturais da região ou de figuras que aqui são relevantes, bem como observar os valores que são difundidos por meio dos discursos veiculados na película cinematográfica em pauta e refletir sobre eles. Finalmente, esperamos fazer com que Xandrilá – essa mistura de conto, áudio, imagem, vídeo, trilha sonora original e um enredo em que dramas pessoais se afloram numa busca de sentido existencial – seja uma fonte de significações que levem à produção de conhecimentos que sejam relevantes tanto para a comunidade acadêmica – na medida em que ela pode passar a valorizar a produção de curtas sergipanos – quanto para o autoconhecimento do sujeito enquanto ser social, pois, a partir da visualização da história do Outro, é possível obter algum tipo de aprendizado ou de lição. 4. Referências Bibliográficas ARISTÓTELES (384-322 a.C.). Retórica. Trad. Edson Bini. São Paulo: Edipro, 2011. BARROS, Diana Luz Pessoa de. Estudos do discurso. In: FIORIN, José Luiz (org.) Introdução à Linguística II: princípios de análise. 5ª ed., 1ª reimpressão. São Paulo: Contexto, 2012. p. 187-219. FIORIN, José Luiz. Elementos de análise do discurso. 3ª ed. São Paulo: Contexto, 1992. FONTANILLE, Jacques. Semiótica do Discurso. 2ª ed. São Paulo: Contexto, 2012. GREIMAS, Algirdas. Julius; COURTÉS, Joseph. Dicionário de Semiótica. 2ª ed. 2ª reimpressão. São Paulo: Contexto, 2013. XANDRILÁ. Direção de fotografia: Arthur Pinto. Produção: André Aragão, Isaac Dourado e Arthur Pinto. Colorização: André Franco. Efeitos Visuais: Samuel Bla. Engenheiro de Som: Jefferson Andrade. Roteiro adaptado: Cibele Nogueira e André Aragão. Baseado no conto homônimo de Isaac Dourado. Trilha sonora: Patrícia Polayne. Som 5.1 Estúdio Três. Gonara Filmes e SeteNove AudioVisual, 2011.