O passeio de Rosinha: articulando
saberes sociais e biológicos na
infância por meio da literatura
Tatiana Pereira da Silva*
Paula Teixeira Araujo**
Luís Paulo de Carvalho Piassi***
Emerson Izidoro dos Santos****
Resumo
mos que a articulação de diferentes
campos de saberes no desenvolvimento de uma atividade contribui para
uma educação menos compartimentalizada e para a construção de um
conhecimento mais articulado.
Neste artigo, buscamos discutir a possibilidade de abordagem de temas sociais de forma articulada com saberes
biológicos nos anos iniciais de escolarização usando como recurso o livro
de literatura infantil. A escolha por
esse tipo de material deve-se ao fato
de ser amplamente empregado no ensino dirigido a esse público. Apresentamos um panorama histórico da produção dessa modalidade de literatura
e, em seguida, exemplificamos uma
proposta a partir da análise, com
base em elementos da semiótica greimasiana, de uma obra específica de
literatura infantil, levantando, a partir desta, diferentes temáticas sociais
que podem ser abordadas no contexto de sala de aula e que têm relação
com o dia a dia das crianças. Nossas
análises demonstraram ambivalências
entre as representações dos animais e
as temáticas científicas, mas também
em relação ao livro infantil enquanto
objeto educacional. Por fim, concluí-
Palavras-chave: Conhecimento sociocientífico. Literatura infantil. Polivalência.
*
**
***
****
Doutoranda em Educação pela Faculdade de Educação
da Universidade de São Paulo. E-mail: tps.tati@gmail.
com
Mestra em Filosofia pela Escola de Artes, Ciências e
Humanidades da Universidade de São Paulo. E-mail:
paraujo@usp.br
Professor doutor da Escola de Artes, Ciências e
Humanidades e do Programa de Pós-Graduação em
Estudos Culturais da Universidade de São Paulo. E-mail: lppiassi@usp.br
Professor doutor da Escola de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas da Unifesp. E-mail: mson@usp.br
Data de submissão: jul. 2017 – Data de aceite: mar. 2018
http://dx.doi.org/10.5335/rdes.v14i1.7285
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realizaram um estudo sobre a leitura em
aula de um livro infantil com estudantes
de 9 a 10 anos de idade, o que permitiu
Introdução
O presente artigo resulta de um estudo sobre o uso do livro infantil ilustrado
no ensino de ciências nos anos iniciais do
ensino fundamental. Entre os principais
pressupostos estão: (a) o livro infantil é
um material bastante presente e acessível nas escolas em geral; (b) ele já é
empregado por muitos professores no
processo de alfabetização; (c) é relativamente fácil encontrar livros em que
é possível explorar tópicos de ciências
naturais; (d) ele desperta o interesse
das crianças pelo livro e pela leitura; e
(e) mesmo quando produzido sem essa
intenção, possui características que o
tornam especialmente interessante para
a abordagem de conteúdos de ciência nos
anos iniciais.
No Brasil, têm surgido alguns trabalhos específicos sobre o livro infantil
ilustrado e sua relação com as ciências
naturais e seu ensino. A professora e
escritora Luana Linsingen realizou
seu mestrado com um estudo específico
sobre o uso do livro infantil no ensino
de ciências, que, segundo ela, “fornece
possibilidades de desvios daquilo que é
oferecido pelo próprio texto, qual seja, o
oferecimento da chance de se ler sobre a
leitura” (LINSINGEN, 2008, p. 1, grifo
do autor). A professora Fabiana Carvalho (2008), por sua vez, identifica a biologia em obras de Monteiro Lobato que, no
entanto, não se enquadram exatamente
no tipo de produção que estudamos
neste texto. Giraldelli e Almeida (2008)
[...] uma construção de conceitos para as
crianças, sem priorizar conteúdos específicos, mas considerando as relações ambientais como um todo (2008, p. 18).
Arlete Higashi (2010), professora de
língua portuguesa da rede pública de
ensino, estudou o livro infantil ilustrado
sob a perspectiva da divulgação científica, concluindo que os títulos atuais
[...] privilegiam a reflexão e refração de
assuntos pertinentes ao contexto político,
cultural, social e científico dos nossos dias,
propiciando, portanto, um constante diálogo
entre esta esfera literária e as demais esferas de atividade (HIGASHI, 2010, p. 115).
Entre as pioneiras desse tipo de estudo está a especialista em livro infantil
norte-americana Frances Smardo. A
partir de exemplos encontrados em
livros infantis, a autora comenta que
eles podem ser “trampolins naturais
para explorar com crianças pequenas
as diferenças entre o que é real e o que
é fantasia” (SMARDO, 1982, p. 267,
tradução nossa). Em relação a isso, a autora pontua que, “às vezes, uma história
que distorce ou ignora uma lei científica
desperta o interesse da criança mais do
que um livro factual” (SMARDO, 1982,
p. 268, tradução nossa).
Ainda, a professora Becky Fisher
(1980) descreveu um experimento em
salas de aulas elementares no qual procurava confirmar a tese de que a literatura auxilia no aprendizado das ciências.
Ela observa que, desde a década de 1960,
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fundada à metodologia de pesquisa e
aplicação desse tipo de material nas aulas de ciências. As professoras Leigh Monhardt e Rebecca Monhardt (2000, 2006)
também trabalharam com esse tema. No
primeiro trabalho, as autoras investigaram a influência dos livros na formação
de crenças e valores relativos ao meio
ambiente, segundo elas, sem direcionar
crenças e atitudes, mas “como veículo
para que eles [os alunos] enxergassem
mais que um lado de uma questão e
desenvolver habilidades de pensamento
crítico” (MONHARDT; MONHARDT,
2000, tradução nossa). Com a leitura do
livro Tem uma coruja no chuveiro, elas
perceberam que as crianças manifestaram simpatia à causa dos direitos dos
animais, porém alertaram que a simples
leitura proporcionou argumentos muito
mais emocionais do que embasados em
pressupostos científicos e constataram
que, passados alguns meses, as crianças não estendiam, espontaneamente,
esse posicionamento a outras situações
cotidianas (MONHARDT; MONHARDT,
2000, p. 180). No segundo artigo, as autoras trabalham em torno de sugestões
de como usar os livros infantis para auxiliar no desenvolvimento de habilidades
associadas ao aprendizado das ciências,
tais como observação, classificação, inferência, comunicação, entre outras (MONHARDT; MONHARDT, 2006, p. 68).
O principal papel reservado à literatura
infantil, nesse caso, é o da produção de
um contexto para as atividades desenvolvidas.
alguns autores já defendiam esse ponto
de vista:
Os sentimentos e atitudes das crianças em
relação aos conceitos que elas aprendem são
mais positivos quando a literatura é usada
em conjunção com o livro didático. Tais
sentimentos podem ser um fator motivador
na retenção do aprendizado e no incentivo a
estudos independentes futuros. As atitudes
positivas que resultam possuem um efeito
residual que ajuda a motivar os estudantes a
prosseguir na exploração da ciência por si próprios (FISHER, 1980, p. 173, tradução nossa).
A especialista em livro infantil Pauline Zeece, em diversos artigos, sugere vários títulos em diversos conteúdos relacionados ao ensino de ciências (ZEECE,
1998, 1999a, 1999b; WELLS; ZEECE,
2007). Os professores Carol Butzow e
John Butzow, especialistas em educação
nas séries iniciais, possuem obras conhecidas voltadas para orientar professores
de educação fundamental a empregar
livros infantis ilustrados para o ensino
de tópicos de ciência. Segundo eles,
[...] as crianças poderão encontrar mais
facilidade em seguir ideias que são parte de
uma história do que compreender os fatos
como são apresentados nos livros didáticos
(BUTZOW; BUTZOW, 2000, p. 4, tradução
nossa).
Os autores defendem também que
uma história coloca fatos e conceitos em
uma forma que encoraja as crianças a construir hipóteses, predizer eventos, coletar
dados e testar a validade de eventos (BUTZOW; BUTZOW, 2000, p. 4, tradução nossa).
Sheila L. Goins (2004) escreveu
uma tese de pós-doutoramento sobre os
conteúdos botânicos de livros infantis
ilustrados, com uma contribuição apro-
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Uma investigação detalhada, em sala
de aula de terceira série, foi realizada
nos Estados Unidos por pesquisadores
em alfabetização (MORROW et al., 1997)
juntamente com professores em serviço.
Com crianças de diferentes origens étnicas, os pesquisadores elaboraram instrumentos de coleta de dados de aprendizagem em ciências e alfabetização, de
forma articulada. Concluíram, então,
que uma abordagem que integre ciência
e literatura é mais efetiva (MORROW et
al., 1997, p.72) e relataram que, quando foram entrevistados, os estudantes
manifestaram especial entusiasmo pela
abordagem. Os autores alertam, porém,
que não foi possível determinar em que
medida tais resultados estão associados
a um efeito de “novidade”, responsável
por criar uma disposição naturalmente
positiva em relação às atividades propostas (MORROW et al., 1997, p. 73).
Caroline Owens (2003), especialista
em educação científica, também analisou
o papel dos livros ilustrados, questionando sobre as possíveis distorções induzidas
por textos e imagens não comprometidos
com a precisão factual científica. Segundo
ela, “a ficção e a fantasia podem ser confundidas com informações factuais pelas
crianças pequenas” (OWENS, 2003, p.
60, tradução nossa). Além disso, as histórias articulam a informação ao contexto
social e emocional. O caminho, segundo a
autora, é empregar a ficção com cuidado
e critério para atingir objetivos determinados, em vez de usá-la simplesmente
para tornar o aprendizado mais fácil ou
divertido (OWENS, 2003, p. 60).
Diana Rice (2002) estudou o uso de
livros comerciais no ensino de ciências
para crianças, incluindo os livros ilustrados de ficção. Em um teste empregando
livros sobre baleias, a autora demonstrou que as crianças eram incapazes de
distinguir informações factuais corretas
ou incorretas apresentadas nas histórias
(RICE, 2002, p. 558). Rice (2002, p. 558)
apresenta, ainda, estudos que mostram
que concepções imprecisas adquiridas
durante a infância tendem a se manter
na vida adulta. Perspectivas similares
são assumidas e demonstradas por
outros autores (ROYCE; WILEY, 1996;
SACKES; TRUNDLE; FLEVARES,
2009). Por conta disso, Rice (2002) defende a precisão conceitual como critério
para a seleção de livros comerciais em
sala de aula e apresenta outros critérios,
geralmente sugeridos por pesquisadores:
personagens críveis, passagem do tempo
realista, igualdade de raça e gênero, qualidade das ilustrações, distinção entre
fatos e fantasia e informação atualizada
(RICE, 2002, p. 560). Talvez a contribuição mais importante de Rice seja a
sugestão de como lidar com os livros,
uma vez que, mesmo adotados todos
esses critérios, ainda temos que contar
com os livros disponíveis no mercado, e
mesmo os melhores podem apresentar
falhas conceituais e outros problemas. A
autora detalha diversas formas de questionamento dos conteúdos dos livros, seja
cotejando-os com outros livros, outras
fontes de informação, experimentos
práticos e análise crítica de conteúdo,
mostrando que tais procedimentos po96
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trabalho de compilação e sistematização
de contos de fadas por Gianfrancesco
Staparola e Giambattista Basile, ainda
no século XVI. Seja qual for o critério
que adotemos para traçar um panorama das origens da literatura infantil, é
fato que ela sempre teve como uma de
suas funções a de educar as crianças. As
fábulas de Esopo, conjunto de histórias
de cunho moral que remontam à antiguidade grega, são exemplos disso, embora
não se possa dizer ao certo que elas se
dirigissem especificamente a crianças,
conforme aponta o professor de literatura Seth Lerer (2008), da Universidade da
Califórnia, em San Diego. Muito do que
se vê depois, na literatura dirigida às
crianças, tem a mesma perspectiva pedagógica. As professoras Marisa Lajolo e
Regina Zilberman (2007) apontam como
início da história da literatura infantil
a publicação sistemática de contos em
sua forma impressa, a partir do século
XVII, principalmente em França, onde se
destacaram autores como La Fontaine,
Fénelon e Perrault.
As histórias produzidas por esses autores, entre outros também da Europa,
são aquelas que ficaram conhecidas como
contos de fadas. A sistematização em
forma escrita de histórias preexistentes
respondeu a necessidades socioculturais
da época: a instituição familiar passou
a assumir crescente importância, e, com
isso, tornou-se necessário criar mecanismos para a educação das crianças. O
viés característico dos contos de fadas
obedeceu a essas determinações. Embora
dem perfeitamente ser realizados com
crianças (RICE, 2002, p. 562).
Considerando as discussões apresentadas, buscaremos abordar o livro
infantil ilustrado, em suas múltiplas
aproximações, como agente da articulação possível entre temáticas sociais e
políticas das ciências naturais. Para tal
discussão, analisaremos o livro infantil O
passeio de Rosinha (HUTCHINS, 2004)
e exemplos de seus desdobramentos em
possibilidades didáticas. A análise da
história busca apontar elementos que
se aproximem de conteúdos da ciência e
apontem possibilidades de intervenções
didáticas no ensino fundamental.
O livro infantil está presente no espaço escolar e é valorizado por professores
em diferentes atividades do cotidiano,
essencialmente pela importância dada à
leitura e à alfabetização, portanto, articular seu aproveitamento com questões
sociocientíficas pode ser uma maneira
de enriquecer as relações estabelecidas
entre a criança e o livro, nas interfaces
existentes no âmbito da leitura e da ciência. Considera-se, ainda, a possibilidade
de aproximar a ciência de práticas significativas imersas no universo infantil
por meio de narrativas.
O livro de literatura infantil
e o olhar para a ciência
Não há consenso sobre as origens da
literatura infantil. Suzanne Magnanini
(2008), professora especialista em literatura italiana, situa tais origens no
97
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estar na fase inicial de aprendizagem),
podemos nos dar ao luxo de lhe oferecer
histórias para serem lidas pelo mero
prazer da leitura. Afinal, o papel de instrumento de aprendizagem da literatura
infantil só se concretizará se as crianças
lerem as histórias de fato. Essa aparente
liberdade, entretanto, nunca chegou a
efetivar-se de forma plena. De fato, a literatura infantil é até hoje marcada pelos
limites impostos pela escola e todo o processo educativo que a sociedade espera
que se reproduza nas crianças. É muito
difícil encontrar nela as manifestações
mais autênticas e descompromissadas
presentes em outros gêneros artísticos,
como nos dirigidos ao público adulto. Há
exceções, é claro, e uma delas ao menos
merece ser mencionada: as histórias em
quadrinhos.
O que nos interessa salientar é que
as restrições trazidas pelo sistema educacional ao conteúdo dessas obras não
necessariamente as tornam “melhores”.
Ao fugir de temas delicados e polêmicos
e ao limitar a livre expressão artística,
a tendência, na verdade, é a de que
o conteúdo se torne um tanto insosso
na forma e conservador no conteúdo.
As mensagens tidas como edificantes
podem, muitas vezes, reproduzir ideologias e preconceitos arraigados, mas,
em geral, são tacitamente aceitas sem
questionamentos. Se acreditamos que
um dos papéis da escola é justamente
a promoção da reflexão sobre os valores
sociais e a promoção de mudanças em
relação a estados de coisas essencial-
mais complexos que as fábulas de Esopo,
recheados de mistérios e de aventuras,
os contos de fadas são, fundamentalmente, instrumentos educativos no
plano atitudinal, que procuram definir
valores morais para as crianças. Tal
como nas fábulas, nos contos de fadas é
marcante a presença de animais como
personagens, embora, na maioria dos
casos, os protagonistas sejam humanos.
Contudo, como indica o nome pelo qual
ficaram conhecidos, os contos de fadas
dão destaque a figuras de caráter sobrenatural ou mágico, tais como fadas e
bruxas. Lajolo e Zilberman estabelecem
também uma relação importante entre a
literatura infantil e a escola. A preparação das crianças para o universo letrado
pressupõe, evidentemente, o treino da
competência leitora.
Os laços entre a literatura e a escola começam desde este ponto: a habilitação da
criança para o consumo de obras impressas.
Isto aciona um circuito que coloca a literatura, de um lado, como intermediária entre
a criança e a sociedade de consumo que se
impõe aos poucos; e, de outro, como caudatária da ação da escola, a quem cabe promover
e estimular como condição de viabilizar sua
própria circulação destinatária (LAJOLO;
ZILBERMAN, 2007, p. 18).
Ao tornar-se instrumento de aprendizagem, materializada por meio dos
livros impressos, a história infantil ganha maior liberdade temática. Embora
se pressuponha que os pequenos devam
ler apenas conteúdos edificantes, quando
se dispõe de muitas possibilidades de
leitura, e sendo importante que a criança
treine ao máximo essa habilidade (por
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de grandes proporções, isso quando a
imagem não ocupa toda a mancha da
página, ficando o texto encaixado em
seus espaços vazios. Nelly Coelho, uma
das pioneiras na pesquisa em literatura
infantil no Brasil, defende que livros
desse tipo, “em que a imagem fala tanto
quanto a palavra” (COELHO, 2000,
p. 196), devem estar presentes no mundo
infantil. Assim, talvez hoje seja mais
difícil se falar de “literatura” infantil se
o conceito de literatura se restringir a
uma atividade artística expressa pelo
texto verbal.
Mais recentemente, observa-se uma
tendência cada vez maior de a imagem
se transformar em algo ainda mais chamativo, recorrendo-se a diversos efeitos
proporcionados por materiais e técnicas
que dão textura e movimento às imagens. Exemplos disso são os livros do tipo
pop-up, nos quais, por meio de dobraduras, as imagens literalmente saltam da
página, à medida que a criança manipula
o livro. Uma análise apurada exige,
portanto, considerarmos o livro infantil
como um produto que compreende textos
verbais articulados a imagens e, muitas
vezes, a mais do que isso. Este trabalho
está limitado à modalidade composta
apenas por imagem e texto, sem efeitos
especiais de dobraduras, recortes, etc.
Apesar de, atualmente, os livros infantis apresentarem características que
os distinguem de sua origem, alguns
elementos permanecem na construção
das narrativas e, ao mesmo tempo, favorecem a aproximação com a ciência.
mente injustos, o caminho para o uso não
apenas do livro infantil, mas de qualquer
outro material, é a adoção de uma perspectiva crítica. Isso não significa julgar
negativamente os livros, mas encontrar
meios de reconhecer os méritos e as
limitações de cada obra, de acordo com
determinados critérios. Esta é a linha de
entendimento das autoras Maria José
Palo e Maria Rosa D. Oliveira:
Linguagem carregada de ideologia que permeia cada fala do narrador, cada diálogo das
personagens, e tem um destinatário certo: o
leitor infantil, cujo pensamento se pretende
capturar. Não há possibilidade de respostas
alternativas nesse processo educativo autoritário que só admite à criança a função de
aprendiz passivo frente à voz todo-poderosa do
narrador e de seu enfoque da realidade social.
Seguindo essa trilha, não é preciso dizer, estão
os produtos com menor grau de invenção e de
liberdade criativa; perdem em poeticidade o
que ganham em imediatismo e em praticidade
(PALO; OLIVEIRA, 2006, p. 11).
Um dos principais aspectos dos livros infantis de hoje em dia é o foco na
imagem. Tratam-se de livros nos quais
a ilustração ganha cada vez mais importância, a ponto de, em muitos casos,
a obra ser muito mais pictórica e visual
do que propriamente textual. Segundo o
estudioso de design Jorge Paiva,
[...] por volta da primeira metade do século
XX, os ilustradores passam a explorar cada
vez mais o espaço narrativo do livro, seu
formato e a relação entre texto e imagem, o
que se torna um conjunto narrativo indissociável (2012, p. 23).
Atualmente, cada página de um livro
infantil dirigido a crianças de até 10
anos de idade tem uma imagem colorida
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cado atribuído a eles, acerca de inúmeros
aspectos, dentre os quais, destacam-se os
estereótipos construídos, a boa relação
com as crianças e suas simbologias.
Para o pesquisador Steve Baker
(2001), a maneira como os animais são
representados na mídia expressa comportamentos sociais da vida humana,
evidenciando apenas as relações reais da
natureza consideradas necessárias para
a compreensão do valor atribuído. Dessa
forma, mesmo os aspectos sociopolíticos
mais diretamente ligados às relações humanas – representados nos personagens
animais antropomorfizados – trazem
igualmente temas pertinentes à educação científica nos anos iniciais do ensino
fundamental, integrando questões como
preconceito, relações reprodutivas e de
gênero, diversidade, entre outras, que,
se tiverem fundamento social, também
podem e, segundo diversos autores
(BRASIL, 1997; CHARPAK, 1996; CACHAPUZ et al., 2005; KRASILCHIK;
MARANDINO, 2004; BIZZO, 2009),
devem estar presentes no ensino de
ciências, sobretudo nos anos iniciais, nos
quais os conteúdos de ciências da natureza não se desvinculam dos demais,
como a alfabetização, as ciências sociais,
a linguagem, as artes e a matemática.
Essencial para os livros infantis
também é a fantasia como constituinte
das histórias, que, por sua vez, caminha
constantemente com a realidade e tem
por objetivo principal buscar o envolvimento do leitor. Ao discutir a relação das
crianças com as histórias infantis, Guelfi
aponta que “embora essas histórias se-
A professora e pesquisadora em literatura infantil Teresa Colomer (2003), em
seu livro A formação do leitor literário,
aponta que, quando a literatura infantil
se relaciona com práticas educacionais
de qualquer tipo, pretende estabelecer
significado entre a criança que lê e a
obra, partindo de sistemas de identificação criados por experiências pessoais
e “literárias”. Segundo a autora, esse
estabelecimento oferece ao leitor “uma
maneira articulada de reconstruir a
realidade, de gozar dela esteticamente,
de explorar os pontos de vista próprios
através da apresentação de outras alternativas” (COLOMER, 2003, p. 133).
Para nortear nossas discussões sobre a
aproximação existente, podemos apontar
dois elementos que merecem destaque:
a predominância de narrativas construídas com relações entre personagens
animais que remetem a conteúdos científicos, objetivamente ou não; e o diálogo
possível entre a realidade e a fantasia
como pertencente, ao mesmo tempo, ao
universo científico e ao infantil.
As relações entre os personagens
animais e entre animais e humanos que
ainda estão presentes nas narrativas
infantis contemporâneas são elementos
que permitem a abordagem de temas
da ciência sob diferentes perspectivas.
Em um levantamento realizado por
Linsingen (2008), o significado atribuído aos animais na literatura infantil
é determinante para a construção das
narrativas com esses personagens, por
configurar diretamente uma unidade de
identificação com a criança e pelo signifi100
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jam imaginárias, não são falsas pois se
referem a outra espécie de realidade – a
do inconsciente [...]” (1996, p. 144). Operando entre esses dois mundos – fantasia
e realidade –, as narrativas direcionadas
para as crianças encontram na ciência o
que a própria ciência, enquanto construção epistemológica, compreende:
O passeio de Rosinha
A obra O passeio de Rosinha (HUTCHINS, 2004) – do original em inglês
Rosie’s walk –foi escolhida por atender a
requisitos voltados para crianças em fase
de alfabetização. A autora Pat Hutchins
nasceu na Inglaterra e escreveu a obra
em 1968, porém a tradução só foi lançada
no Brasil em 2004. Trata-se de um livro
bastante utilizado em atividades de
diferentes áreas, como ciências, artes e
língua materna (SMOLKIN, 1999; HARRISON, 2001; GLEDHILL, 2003). Existe
também uma adaptação da história em
vídeo (DEITCH, 1970).
A história narra o passeio de uma
galinha chamada Rosinha, do início da
tarde até a hora do jantar. Ela passeia
por diversos locais da fazenda, como em
volta do lago, em cima do monte de capim, em frente ao moinho, atravessando
a cerca, etc., enquanto uma raposa a
persegue com a intenção de pegá-la. A
raposa tenta fazer o mesmo caminho
que a galinha para capturá-la, porém
sempre encontra alguma dificuldade e
não consegue alcançá-la. Por fim, Rosinha volta para casa sem sequer notar a
presença da raposa.
O livro tem pouco texto, apenas uma
frase simples a cada duas páginas. A fonte utilizada é a denominada letra de imprensa minúscula, embora os alunos em
fase de alfabetização conheçam melhor as
letras maiúsculas. As imagens ocupam
todo o espaço da página, são muito coloridas e bem ilustradas, sua sequência, por
Se o real imediato é um simples pretexto
de pensamento científico e não já um objeto
de conhecimento, será necessário passar do
como da descrição ao comentário teórico.
Essa explicação prolixa espanta o filósofo
que desejaria sempre que uma explicação se
limitasse a desdobrar o complexo, a mostrar
o simples no composto. Ora, o pensamento
científico autêntico é metafisicamente indutivo; como mostraremos em várias oportunidades, ele lê o complexo no simples, revela a
lei a propósito do facto, a regra a propósito
do exemplo (BACHELARD, 2000, p. 12).
É nessa dimensão que Bachelard
(2000) sugere um elo de complementaridade entre a ciência e o imaginário
enquanto uma forma de representação.
Assim, o estranhamento e a problematização se estabelecem como conhecimentos anteriores e originários do
pensamento científico, na medida em
que a fantasia não apenas conjectura o
real, mas também atua como ponto de
partida para pensar e refletir sobre ele
em diferentes perspectivas. Conhecer
um objeto é agir sobre ele nos níveis
possíveis estabelecidos na experiência do
sujeito, o que, ao mesmo tempo, permite
olhar a literatura para além dos polos do
pedagogismo e da arte.
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do lago / Passou por cima do monte de
capim / Em frente ao moinho / Atravessou a cerca / Passou por baixo das colmeias / E voltou bem na hora do jantar”
(HUTCHINS, 2004). Paralelamente, as
ilustrações complementam a história,
demonstrando a presença, a intenção e
o fracasso da raposa. Essa estratégia,
como descrito na própria contracapa do
livro, demonstra a importância atribuída
ao uso de imagens para despertar o interesse pelo livro e pela leitura em crianças
em fase de alfabetização, além de propiciar o desenvolvimento das habilidades
básicas, já mencionadas, necessárias a
esse processo.
si só, possibilita a narração da história
(Figura 1). Essa característica é importante para os alunos que ainda não estão
completamente alfabetizados. A imagem
da capa do livro apresenta o local em que
Rosinha vai passear e também informa
sobre a existência de uma raposa. Cada
conjunto de páginas mostra um local da
fazenda e sua sequência é interligada,
como demonstrado na contracapa do
livro, que ilustra toda a paisagem da
fazenda em que se passa a narrativa.
Ao ler o livro com foco apenas no
texto, é possível observar que ele narra
exclusivamente o passeio da galinha: “A
galinha Rosinha foi passear à tardinha /
Andou pelo quintal / Caminhou em volta
Figura 1 – Uma das páginas ilustradas de O passeio de Rosinha
Fonte: Hutchins (2004).
Caminhos de análise
Para isso, é importante ter em mente que
qualquer atividade com estudantes nessa faixa etária deve procurar articular
diversas frentes de aprendizado de conhecimentos, habilidades e atitudes, em
A questão fundamental desta proposta é aproveitar a atividade de leitura das
crianças para explorar temas de ciências.
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âmbitos variados, conforme apontam os
diversos pesquisadores do tema. Entendemos que um passo importante nesse
processo é a análise dos livros, voltada
não só para a identificação de possibilidades, mas também de eventuais problemas que uma visão crítica possa revelar,
que podem ser incorporados à prática
didática. É importante ressaltar que essa
visão crítica não significa rejeitar a obra,
conforme apontado por diversos autores,
mas, sim, encontrar, nela, desafios e
questões a serem abordados nas atividades com as crianças. O caminho que
propomos faz uso de conceitos da semiótica de A. J. Greimas (GREIMAS, 1973;
GREIMAS; COURTÉS, 2008), linguista
lituano da segunda metade do século XX,
cujo trabalho deu origem à extensa e produtiva área de pesquisa sobre linguagem
e significação. Tal linha semiótica tem
como pressuposto básico que qualquer
enunciado analisável em termos de uma
transformação de estado de um sujeito
em relação a um objeto constitui uma
narrativa (GREIMAS; COURTÉS, 2008,
p. 294) e pode ser analisado por meio do
chamado percurso gerativo do sentido
(BARROS, 2005, p. 13), que considera o
texto a partir de três níveis: o discursivo,
o narrativo e o fundamental. Seguindo essa linha, procuramos evidenciar
aspectos diretamente relacionados ao
conteúdo de ciências implícito na história
analisada, nem sempre percebidos em
uma primeira leitura.
Nível discursivo:
espaço, tempo e pessoa
Uma caracterização do nível discursivo é trazida pela semioticista Diana
Barros:
O sujeito da enunciação faz uma série de
“escolhas”, de pessoa, de tempo, de espaço,
de figuras, e ‘conta’ ou passa a narrativa,
transformando-a em discurso. O discurso
nada mais é, portanto, que a narrativa “enriquecida” por todas essas opções do sujeito
da enunciação (2005, p. 53).
Na chamada sintaxe narrativa, analisamos a configuração do processo de
enunciação pelo posicionamento do
enunciador. Na semântica, que será o
foco de nossa análise, três elementos
fundamentais do discurso – o espaço,
o tempo e os atores – são colocados em
termos de relações entre figuras e temas.
Pessoa
Pessoas, ou atores, são todas as
entidades individualizadas, humanas
ou não, animadas ou não, que operam
ou sofrem ações (transformações em
relação a objetos) ao longo da narrativa
(GREIMAS; COURTÉS, 2008, p. 14). Se
considerarmos apenas o texto escrito do
livro em análise, o único ator da história
é a galinha. O texto passa a ideia de um
animal cujo comportamento é, de certa
forma, humano, que gosta de passear e
está dando uma voltinha antes do jantar.
O espaço é um sítio ou fazenda. Quando
analisamos as ilustrações, porém, vemos
que é necessário considerar outro ator
– um animal presente em toda a narra103
Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade de Passo Fundo - 14 - n. 1 - p. 93-118 - jan./abr. 2018
mais aleatório do que o de Rosinha; poderiam também lembrar que, quando
ameaçadas, em geral, as galinhas saem
correndo e cacarejando, agitando as asas.
Já em relação à raposa, talvez o primeiro ponto a ser levantado é saber se as
crianças identificam o animal, que é um
mamífero raro no Brasil. Nesse aspecto,
a influência da mídia é evidenciada, pois
verificamos, em sala de aula, que muitas crianças identificam corretamente o
animal, possivelmente por o terem visto
na televisão.
tiva e que parece perseguir Rosinha: a
raposa. Há outros animais também, mas
eles não parecem participar diretamente
da história.
Uma primeira observação é sobre a
forma escolhida para retratar a galinha e a raposa na história (não operam
transformações). Podemos considerar
dois aspectos: a aparência visual e o
comportamento, componentes do que
Greimas e Courtés (2008, p. 14) denominam valores pragmáticos objetivos,
constituindo propriedades intrínsecas
dos sujeitos. Diversos aspectos podem
ser considerados, como as cores, os elementos presentes e sua disposição, bem
como as proporções. Vemos que Rosinha
é vermelha e tem cauda de longas penas,
grande crista vermelha, asas destacadas
com cor diferente do que o resto do corpo, a cabeça e a cauda são amareladas,
também em cor diferente. Em relação ao
comportamento, Rosinha tem certo ar de
indiferença: não parece feliz, nem triste,
e seu olhar não se desvia, está sempre
fixo em frente. Ao longo do trajeto, caminha incessantemente da esquerda
para a direita do quadro, sem nenhum
sobressalto.
Uma maneira de evidenciarmos a
construção ficcional para as crianças é
realizar comparações dessas características da personagem com as galinhas
reais. Muitas crianças observariam que
as galinhas verdadeiras têm aparência
diferente daquela representada e também um comportamento distinto: muitas
vezes estão ciscando e têm um caminhar
O espaço
Considerando a questão do espaço,
a história tem como pano de fundo um
sítio ou fazenda. Ele é representado
como um espaço harmônico, seguro e
bonito. Não há nada que induza ideias
de medo, perigo, maldade ou coisas do
gênero. A paisagem tranquila é composta por diversos elementos. Como
Rosinha vai passeando, diversos locais
se sucedem, todos eles integrantes da
fazenda. A galinha passa perto de várias
edificações – casas, celeiros, moinho –,
e diversos elementos são representados
(carrinho, rastelo, colmeia). Também há
plantações, um lago e uma vegetação
de fundo. Rosinha parece não interagir
com esse ambiente. O texto do livro é
claramente voltado para a apresentação
de advérbios de lugar, são seis advérbios
no original inglês: across, around, over,
past, through e under; e a tradução em
português recorre aos termos: “em volta”,
“por baixo”, “por cima”, em alguns casos,
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Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade de Passo Fundo - 14 - n. 1 - p. 93-118 - jan./abr. 2018
galinhas para comercialização em massa
não se dá, atualmente, como a história
retrata. De qualquer modo, poderíamos
supor que se tratasse de uma criação
para consumo próprio do fazendeiro.
Muitas vezes, é possível estabelecer relações conotativas entre diferentes épocas,
com ideias implícitas como: “no passado
tudo era melhor” ou “antigamente as
coisas eram difíceis, perigosas, etc.”. Isso
vale tanto para o tempo quanto para o
espaço, e sempre pode ser discutido com
as crianças.
Outro aspecto temporal está ligado
à duração e aos intervalos de tempo
retratados. Podemos chamar a atenção
das crianças para esse ponto, questionando-as sobre a duração dos eventos
retratados (um minuto, uma hora, um
dia, um mês, um ano) e como isso aparece na história. Podemos perguntar se a
forma como o tempo é retratado na história equivale ao tempo real, percebido
em uma situação como essa. Também
há o tempo de leitura, que pode ser mais
curto ou mais longo do que os eventos retratados. No caso da história analisada,
Rosinha vai passear à tardinha e chega
na hora do jantar, o que permite estabelecer um espaço de tempo da ordem
de hora ou horas. As crianças podem
julgar, por exemplo, que Rosinha fez
pouca coisa para esse tempo todo, mas,
para isso, elas têm de identificar essas
marcações de tempo no texto da história,
como acabamos de apontar.
eliminou-se completamente os advérbios,
como em “atravessou a cerca”. Esses
mecanismos linguísticos ajudam a situar
a personagem no espaço, colocando-a
em movimentos e posições relativos aos
elementos do cenário.
Observamos que não há interação
da galinha com esses elementos, mas
isso ocorre ativamente com a raposa,
de modo a atrapalhar sua perseguição
pela galinha. Em relação ao espaço, podemos também examinar a localização
geográfica do espaço retratado: esse tipo
de fazenda está localizado em que parte
de nosso planeta? Existem fazendas
assim em nosso país, estado ou cidade?
Podemos perguntar às crianças se elas
já foram a uma fazenda e que diferenças
e semelhanças observaram em relação
ao que é retratado no livro. Também
podemos pedir que opinem a respeito
do local em que uma fazenda como essa
poderia existir.
O tempo
A análise do tempo na narrativa pode
considerar dois aspectos. O primeiro deles é a localização histórica da narrativa.
Podemos perguntar se essa história se
passa no passado, no presente ou no
futuro, partindo de tudo o que já analisamos e obtivemos como resposta em
relação ao espaço. Embora acreditemos
que não seja exatamente o caso, poderíamos concluir, por exemplo, que esse tipo
de fazenda não existe mais. Isso porque
sabemos que a criação de animais como
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interpõem à busca da raposa. Esses obstáculos são basicamente os elementos da
fazenda, a colmeia, o carrinho, o moinho,
o lago, o monte de feno. Todos eles representam contratempos para a raposa
e acabam contribuindo para o insucesso
de sua busca, finalizada quando ela é
perseguida por um enxame. A raposa,
supostamente um animal esperto, ao
menos nas representações ficcionais, é
apresentada como um ser mais ágil do
que a galinha, o que não é necessariamente verdade – basta pensar que, numa
situação real, dificilmente uma galinha
ficaria passiva e indiferente ao sofrer
ameaça de captura.
Ao final da história, após a raposa
não conseguir obter seu objeto de valor,
o passeio da galinha termina de volta a
uma pequena estrutura, que parece ser
um galinheiro, com a frase: “e voltou bem
na hora do jantar”, o que pode remeter
a uma ambiguidade quanto ao valor da
galinha enquanto alimento do humano.
Nesse sentido, destaca-se a importância de considerar a narrativa do ponto
de vista da busca de um sujeito por um
valor e de refletir não somente a respeito
dos aspectos superficiais do texto, mas
também sobre possíveis interpretações
figurativas. É importante que essas
interpretações, que necessariamente
possuem certo grau de subjetividade,
sejam verificadas em sua consistência.
Isso pode ser feito seja averiguando
a coerência dos elementos da história
como um todo, seja tomando como base
referências externas.
Nível narrativo
Outro aspecto fundamental a ser considerado é a história em si, seu percurso,
do início ao fim, e o papel dos vários
elementos dentro dessa lógica. Toda
história possui um sujeito, alguém que
está em busca de algo, mesmo que não
explicitamente. Esse algo, que pode ser
representado por um objeto físico ou por
outro elemento concreto, deve ser entendido, de forma mais abstrata, como um
valor a ser obtido. A narrativa do livro
pode ser analisada sob dois pontos de
vista: o da galinha Rosinha e o da raposa.
Do ponto de vista da galinha, o objetivo valorizado é o próprio passeio, um
tempo livre, um tempo sem preocupações. Existem os perigos – representados,
sobretudo, pela raposa –, mas parece
que a galinha está tão protegida por
seu ambiente, tão adaptada a ele, que
nada de mal pode lhe acontecer. Não
é difícil associar a figura da galinha à
representação de uma dona de casa, de
uma mãe. Nos livros infantis, é bastante
comum a galinha ser representada como
um ser doméstico e ingênuo, cuja função
é basicamente a de cuidar do lar e das
crianças (ou dos ovos). O que a história
apresenta implicitamente é uma vida pacata, na qual o principal valor é o tempo
livre, o passeio pela fazenda.
A raposa, por sua vez, tem como valor
a galinha, entendida como presa, necessária, supostamente, para sua alimentação, embora isso possa não ficar bem
claro para as crianças em uma primeira
leitura. Todavia, diversos obstáculos se
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Contrariedades
Toda narrativa trabalha com diversas
contrariedades. Alto e baixo, claro e escuro, natural e artificial, feminino e masculino, moderno e antigo, e assim por diante.
Quando mapeamos as contrariedades de
uma história e vemos como elas estão
vinculadas umas às outras, podemos entender certos aspectos que, muitas vezes,
não são fáceis de perceber inicialmente. A
análise de oposições nessa história pode
partir da oposição mais óbvia, raposa e
galinha, que remete a diversas outras:
selvagem e doméstico, floresta e fazenda,
predador e presa, etc. Podemos listar esses termos conforme o Quadro 1:
Quadro 1 – Valores contrários
Valor positivo
Valor negativo
Galinha
Raposa
Fazenda
Floresta
Doméstico
Selvagem
Presa
Predador
Fonte: elaboração dos autores.
A função dessa listagem é evidenciar
determinadas tendências ideológicas,
passíveis de questionamento, veiculadas
no texto. Será que a galinha é mesmo
boazinha e a raposa má? Por que a raposa é má? Porque ela come galinhas?
Mas nós também não comemos galinhas?
Então, somos maus? E se a raposa não
comer a galinha, o que acontecerá a ela?
Os animais que moram na fazenda são
bons e os da floresta são maus? Isso é
verdade? Todos esses questionamentos
são possibilidades que surgem a partir da análise das oposições presentes
na história e podem transformar-se,
imediatamente, em perguntas a serem
levantadas nas atividades em sala de
aula. É possível encontrar muitas outras oposições, e algumas delas poderão
auxiliar o professor a planejar formas
interessantes de explorar o conteúdo
da obra.
Atividades exemplares
As atividades a seguir foram aplicadas em uma escola da rede municipal
de Guarulhos, no estado de São Paulo,
em duas turmas diferentes, por uma
professora efetiva da rede desde 2008.
A primeira delas foi aplicada, em 2010,
em uma turma de 1º ano do ensino fundamental, com alunos com idades entre
5 e 6 anos. Em 2011, a segunda atividade
foi aplicada em uma turma distinta, em
um 2º ano do ensino fundamental, com
alunos com idades entre 6 e 7 anos. O
objetivo dessas aplicações foi situar e balizar as formulações analíticas em função
de contextos concretos de ensino, para
verificar em que medida os instrumentos
teóricos empregados encontram correspondência em situações de sala de aula,
além de planejar, dirigir e interpretar as
atividades didáticas ocorridas. Os dados
foram coletados por meio de anotações
diárias, escritas pela professora durante
e após as atividades.
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Atividade 1: “A raposa vai te pegar!”
as imagens tornam evidente a intenção
da raposa. Nesse primeiro comentário,
nota-se que os alunos compreendem
que deve haver uma relação entre texto
e imagem.
Observamos que, enquanto um dos
alunos narrava o caminho percorrido
pela galinha, os outros apontavam para
elementos secundários presentes na
ilustração, como os animais que faziam
parte do contexto da história e as características próprias de um ambiente
rural, muitas árvores e plantações, entre
outros aspectos.
Na primeira turma de alunos, com
idades entre 5 e 6 anos, a maior parte
das crianças estava em fase inicial de
alfabetização. Na primeira atividade,
os alunos foram divididos em grupos.
Inicialmente, cada grupo folheou o livro,
depois, sem intervenção da professora,
os alunos contaram a história uns para
os outros. Nos grupos em que não havia
nenhuma criança alfabetizada, os alunos
acompanharam a história apenas pela
sequência das imagens. Foi solicitado
aos alunos que narrassem a história
contada no livro.
A torcida e o desfecho
Percebemos como a história despertou a curiosidade das crianças, pois,
em diversos grupos, antes de a história
terminar, os alunos tentavam imaginar o
que aconteceria. Em determinado grupo,
dois alunos acharam que a galinha seria
morta. Outros dois defenderam a ideia
de que ela permaneceria viva. Alguns
alunos se identificaram com o papel da
galinha e argumentaram que ela seria a
mais inteligente por não ter sido pega. Ao
mesmo tempo, outras crianças identificaram-se com a raposa, com sua esperteza
e sua rapidez, além de destacarem a
beleza do animal. Essas afirmações das
crianças, feitas aleatoriamente, foram
posteriormente reafirmadas na proposta
de um desenho da história, quando muitas desenharam o animal com o qual se
identificaram.
Os alunos narram a história
Ao compreender o enredo da história,
os alunos demonstravam preocupação
com a galinha, ficavam agitados a cada
tentativa da raposa de avançar sobre
a presa e ainda mais interessados em
continuar a história. Uma das crianças
chegou a dizer, espontaneamente: “Cuidado galinha, a raposa vai te pegar!”.
Essa fala demonstrou que os alunos
interagiam com a história para tentar
solucionar o problema existente e queriam avisar a galinha de que estava
correndo perigo.
Enquanto narrava a história, um dos
alunos perguntou à professora se em
determinada frase estava escrito que a
raposa tentava pegar a galinha, o que
sabemos que não ocorre no texto. Mas
a frase a que o aluno se referiu estava
nas primeiras páginas do livro, nas quais
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Há um vilão na história? As relações
entre os animais
Em um momento seguinte, a professora fez perguntas previamente preparadas a respeito de temas que ainda não
haviam sido trazidos espontaneamente
ou aprofundados pelos alunos. Essas
questões abordaram, basicamente, o
hábitat natural dos animais e seus
hábitos alimentares. Uma vez que os
alunos já haviam mencionado os diversos
elementos componentes da história e
demonstrado clareza quanto ao local em
que esses animais vivem, percebe-se que
os alunos tinham informações e ideias
corretas sobre o assunto. Entretanto, ao
serem questionados sobre a intenção da
raposa de comer a galinha, houve uma
divisão de opiniões em que a questão da
ética se sobressaiu.
Duas crianças atribuíram valores morais à situação, apontando a raposa como
má pelo fato de querer comer a presa. A
situação foi, então, problematizada, para
que esses alunos pudessem pensar nos
motivos para a raposa ter essa atitude.
Nesse momento, a professora perguntou:
“Mas, se a raposa não comer a galinha,
o que ela vai comer?”. Então, um dos
participantes do grupo comentou que a
raposa precisava comer outros animais.
Os demais demonstraram compreender
a razão da atitude da raposa e fizeram
até outra problematização: “É mesmo, se
a raposa não comer ela pode morrer”. As
crianças identificaram a história como
uma situação real porque ela apresenta
animais num ambiente em que é possí-
vel sobreviver – a fazenda. Além disso,
comentaram sobre histórias pessoais
que se passaram em fazendas e sítios,
também com a presença de animais representados na história.
Atividade 2: “O passeio da raposa”
Na aplicação com a segunda turma de
alunos, consideramos as diversas possibilidades de interação das personagens
da história com o meio ambiente, a relação presa-predador e as características
do local em que se desenvolve a narração,
que não faz parte do cotidiano dos alunos
que moram na região urbana em que o
trabalho foi desenvolvido. Além disso,
focamos em elementos que permitissem
ampliar o conhecimento dos alunos,
como as imagens do moinho, do lago
e da colmeia, e a presença de animais
desconhecidos por muitos alunos, como
o bode e a marmota.
O que será da galinha?
Ao perceber o enredo da história,
muitos alunos demonstraram preocupação com a galinha, e a cada vez que a
raposa tentava avançar sobre a presa,
os alunos ficavam agitados e ainda mais
interessados em continuar a história.
Tal como na primeira turma, os alunos
ainda não alfabetizados demonstraram
interesse em saber o que estava escrito
em algumas partes do livro, em geral
nas páginas que ilustravam a raposa
muito próxima à sua presa. Vários grupos expressaram sua curiosidade, pois
antes mesmo de terminar a história,
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verbalizavam desfechos imaginados. No
final, a professora fez a leitura do texto
em voz alta para a classe e muitos alunos
demonstraram sua preocupação quanto
à sobrevivência da galinha.
Os conhecimentos dos
animais do sítio
Além de elementos característicos de
um ambiente rural, os alunos apontavam a presença de animais secundários.
Embora alguns animais fossem menos
conhecidos, como o bode e a marmota, alguns alunos que os conheciam tomaram
a iniciativa de dizer aos colegas quais
eram os nomes deles e onde os tinham
visto – na televisão ou até mesmo no
zoológico. A professora pediu então à
classe o nome de cada animal retratado
no livro. Os alunos folheavam o livro
identificando os animais presentes em
cada conjunto de imagens e, logo após,
escrevendo os nomes em seus respectivos cadernos. Os integrantes dos grupos
ajudavam os colegas que sentiam mais
dificuldade, repetindo o nome do animal ou até mesmo lembrando as letras
correspondentes aos sons da palavra.
Alguns alunos demonstraram interesse
em escrever os nomes na lousa. Assim, o
restante da sala pôde observar a escrita
na lousa e compará-la com sua escrita
pessoal. Houve alunos que questionaram o uso de determinadas grafias e,
em seguida, propuseram alterações nas
palavras escritas na lousa e no caderno.
Os alunos identificaram os seguintes
animais: galinha, raposa, sapo, passarinho, bode, rato, castor e abelha. Eles
não conheciam o nome marmota, mas
o castor, que é um animal fisicamente
semelhante, era de conhecimento geral.
Como não podemos afirmar categoricamente que aquele animal é um castor ou
O espaço do sítio
Os alunos expressaram conhecimentos prévios em relação ao espaço em que
a história se passava, identificando os
ambientes como a plantação e o lago.
Suas falas revelaram que sabiam como
é uma fazenda ou sítio. Este momento
caracterizou-se como interligação do
processo de construção da escrita com a
sequência narrativa. Foi possível observar também a organização dos grupos e
o interesse de alguns alunos em ajudar
os colegas. Foi realizada também uma
etapa de encontrar e circular no texto as
palavras que designavam os locais por
onde a galinha passou. Todos os grupos
se empenharam. Alguns dividiram as
tarefas de modo que cada integrante
do grupo circulasse uma palavra. Caso
algum aluno não conseguisse ler, os
outros o auxiliavam na leitura para que
ele identificasse a palavra procurada. Ao
registrar na lousa os locais circulados
pelos alunos, apenas um elemento não
era do conhecimento de todos: o moinho.
Embora alguns já o tivessem visto em
desenhos ou em filmes, não conseguiam
explicar sua função.
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dúvidas dos outros colegas e até mesmo
tentarem solucioná-las, segundo seus
conhecimentos.
uma marmota, optamos por identificá-lo
como castor.
Desenhando e recontando a história
Análise do
desenvolvimento das
atividades
A etapa final da atividade foi recontar
a história utilizando figuras desenhadas
pelos próprios alunos, que foram enriquecidas pelo conhecimento que muitos
detinham sobre o ambiente e também
pela compreensão que demonstraram
ter sobre a necessidade de a raposa se
alimentar, como ocorreu na atividade
anterior. As crianças demonstraram interesse em participar da atividade e até
certa euforia para recontar a história.
Foi dessa forma, também, que realizaram a atividade de fazer um desenho
sobre o livro, demonstrando interesse
em representar aquilo que mais lhes
chamou a atenção, seja pela ilustração
do livro, seja pela situação, engraçada
ou perigosa, em que as personagens se
encontravam.
A reescrita da história, narrando “O
passeio da raposa” – título escolhido
pelos alunos –, contribuiu em diversos
aspectos. Em primeiro lugar porque
os alunos tiveram de criar argumentos
para justificar o interesse da raposa em
ir atrás de Rosinha e verificar a possibilidade de haver outra interpretação da
mesma história. Além disso, a atividade
contribuiu para a fase de alfabetização
em que os alunos se encontravam. O
texto foi copiado no caderno de cada
aluno. Durante os debates envolvidos
nessas etapas, foi possível reservar
momentos para os alunos escutarem as
Chamar a atenção das crianças para
os detalhes é favorecer a habilidade de
observação. A relação estabelecida com
os elementos estéticos do livro infantil
aponta para interpretações variadas e
que vão além do texto escrito. São esses
apontamentos que possibilitam que as
crianças falem sobre suas identificações
com a história, suas interpretações sobre
as conotações dos personagens em suas
relações naturais e sobre as previsões
diante dos desfechos possíveis, o que
acontece antes mesmo de a professora
propor discussões ou questionamentos
a respeito das temáticas científicas que
se direcionam a isso.
As interpretações trazem concepções
da ciência sobre os animais identificados, que podem ser aprofundados com
a mediação do professor. Vale a pena
considerar, ou pedir que elas mesmas
opinem, sobre o porquê das diferenças
entre animais reais e ilustrados. Por
que será que o desenhista fez as modificações que observamos? Claro que não
existe resposta “correta” nesse caso e,
possivelmente, nem mesmo o próprio
desenhista tem consciência desses porquês. De qualquer maneira, essa prática
favorece o desenvolvimento de habilida-
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de, ao menos, propor que as crianças
os classifiquem de forma genérica, com
perguntas do tipo: que animais vocês julgam parecidos? Por quê? Apenas nessa
história, há exemplos de três mamíferos
(raposa, marmota e bode), duas aves
(galinha e pássaro), um anfíbio (sapo) e
dois insetos (borboleta e abelha).
Se o professor dispuser de livros
ilustrados com fotos de animais (enciclopédias, guias ilustrados, etc.), poderá
realizar uma atividade que busque não
só identificar os animais da história, mas
também compará-los a outros similares.
Outra alternativa é o uso de imagens
obtidas na internet, que poderão ser
impressas ou projetadas, mas isso depende muito dos recursos disponíveis
na escola. Para crianças em fase inicial
de alfabetização, em uma escola que
disponha de computadores (ou ao menos
de um computador e de um projetor),
uma ideia interessante é utilizar sites de
busca de imagens. Se o professor estiver
familiarizado com esse recurso, poderá
usar um dos mais conhecidos (Google,
Yahoo ou Bing) e, na página correspondente de busca de imagens, solicitar
que as crianças digitem o nome de um
animal no campo de busca. Sapo, pássaro
e borboleta são exemplos interessantes,
pela variedade de imagens disponíveis.
As crianças podem ser estimuladas a
procurar imagens que se assemelhem às
do livro e a distinguir fotos de desenhos
realistas e desenhos caricaturais.
Uma sugestão de abordagem a partir
dessa constatação seria pedir aos alunos
que narrassem a história do ponto de
des de interpretação e de análise crítica
por parte das crianças.
Com isso, também encaminhamos
algumas das questões sobre os animais.
Observamos, na análise realizada sobre
a obra, que a galinha é representada na
história como um animal passivo diante
das situações do meio, diferente do seu
comportamento natural, o que pode contribuir para a construção das concepções
da relação que as crianças estabelecem
com esse animal, essencialmente quanto
a refletir sobre seu valor comercial e econômico. Vale a pena, para complementar
essa análise de conteúdo, voltar a atenção para todos os animais presentes na
história, o que pode proporcionar outro
momento de atividade com as crianças.
Nas imagens, além da galinha e da
raposa, há: borboletas; sapos; pássaro;
ratos; bode; marmota e abelhas. Nem
todos os animais são fáceis de identificar
e, certamente, haverá dúvidas em relação à marmota, por exemplo. Um animal
similar é o castor, que vive apenas em
ambientes aquáticos (à beira de riachos),
os quais não são retratados na história.
Em relação ao pássaro, é possível que o
desenhista tenha se inspirado em uma
espécie específica, presente no ambiente
que ele procurou retratar. Outros animais, como sapos, borboletas e abelhas,
também são divididos em inúmeras
espécies, que, em geral, as pessoas não
especificam ao identificar o animal. De
um modo ou de outro, é bastante interessante chamar a atenção para todos
os animais e considerar a possibilidade
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a atitude da raposa. Há também animais
que não fazem parte de criações, mas habitam normalmente a fazenda ou fazem
uso de seu espaço, como os pássaros, as
borboletas e os sapos, que, a princípio,
não são indesejados pelo proprietário
rural. Podemos perguntar às crianças
se esses animais têm alguma utilidade,
do ponto de vista do fazendeiro. É bom
lembrar que sapos e pássaros são predadores de insetos e que borboletas e
pássaros são essenciais na polinização.
Vale a pena questionar as crianças a
respeito de diversos desses pontos. O fato
de a fazenda não ser o ambiente natural
da raposa, o que a faz se defrontar com
diversas situações inesperadas, pode ser
uma linha argumentativa, mas é aconselhável deixar que as crianças pensem
de forma crítica sobre o assunto e que
imaginem alternativas.
Algumas perguntas que podem gerar
bastante discussão são: por que a galinha
mora na fazenda e a raposa não? Será
que a galinha foi morar na fazenda por
sua própria vontade? Qual é a função
dela ali? E a raposa, por que vai buscar
alimentos na fazenda? Ela não tem o
que comer em seu ambiente natural?
Por quê? Veja que essas questões remetem ao uso dos recursos naturais pelo
homem e ao impacto que isso provoca na
natureza, gerando importantes pontos de
discussão com as crianças. As respostas
às questões colocadas pelo professor, ou
pelos próprios alunos, permitem que verifiquemos se eles estão compreendendo
os assuntos de ciências apresentados.
vista da raposa. É uma história mais
complexa, pois ela passa por diversas
situações. Ela não anda simplesmente
por cima do monte de capim (na verdade,
feno), ela acaba por entrar no meio da
pilha e também mergulha na água do
lago, é coberta pela farinha, e assim por
diante. Podemos questionar as crianças a
respeito de cada um desses espaços, o que
eles representam e qual sua função na
fazenda. Também é possível considerar
a relação entre os animais e o ambiente.
Há animais que são da fazenda, fazem
parte de criações. A galinha, o bode e as
abelhas estão ali por razões econômicas,
por fornecerem determinados recursos,
como ovos, leite e mel. Tudo isso pode
ser levantado e questionado. Também há
animais que estão nesse local a contragosto do fazendeiro, que preferiria que
eles se mantivessem afastados, como é o
caso da raposa e da marmota. Podemos
questionar as crianças sobre o porquê
de esses animais irem até a fazenda. E
se a fazenda não é, de fato, sua morada
original, qual seria essa morada, e por
que razão eles não permanecem lá? Essas perguntas levam a questionamentos
sobre o meio ambiente.
Como vimos na análise, os elementos
do espaço interagem com a raposa de
forma negativa, sempre que ela tenta
capturar a galinha, os objetos do espaço
a atrapalham, contribuindo para que as
crianças percebam os dois animais principais e sua relação alimentar sob duas
diferentes conotações, de bom e de mal,
visto que há uma espécie de punição para
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veremos que as diferenças são muito
grandes entre o desenho e a fotografia, e
estimular as crianças a verificar e questionar semelhanças e diferenças é sempre uma atividade bastante produtiva.
Esse processo contribui, também, para
o desenvolvimento do raciocínio e para
a organização das ideias ao explicar as
respostas dadas ou apresentar dúvidas.
Durante as atividades, as crianças
perceberam a narrativa, ou partes dela,
como um problema a ser resolvido. Entendemos que a investigação ou a resolução de um problema pode funcionar como
um ponto de partida para a discussão de
temáticas científicas que possam estar
relacionadas com as histórias, além de
estimular as crianças a elaborar hipóteses, considerar distintas possibilidades
e comprová-las.
Compreender novos conceitos e relacioná-los à realidade é uma tarefa
muito importante para os alunos. Como
o conteúdo ou o assunto só serão valorizados pelo aluno se fizerem sentido
para ele, é importante estimular esse
processo de reflexão a partir de, por
exemplo, diálogos com o outro. Esse
processo é necessário para que os alunos
possam não só expressar suas próprias
dúvidas, mas também compreender as
dos colegas, levantar hipóteses, elaborar respostas e relacioná-las com as
explicações fornecidas pelo professor,
ampliando, assim, seus conhecimentos.
O processo que realizamos com a galinha
pode ser igualmente estendido para a
raposa, também com o uso de fotografias
de animais reais. Vale a pena procurar
imagens que se assemelhem à raposa
retratada na história, porque é possível
que o desenhista tenha se inspirado em
uma espécie existente. Mesmo assim,
Considerações finais
A utilização de livros infantis para
abordar conceitos de uma determinada
área do conhecimento tem demonstrado
contribuir significativamente para o desenvolvimento de habilidades cognitivas
e afetivas durante o processo inicial de
escolarização, conforme os apontamentos
realizados inicialmente. Tal evidência
garante ainda mais relevância e espaço
no processo educacional, dada a sua
importância histórica.
Os resultados observados corroboram
tal percepção, porém potencializam
ainda mais as possibilidades de uso em
sequências didáticas, uma vez que percebemos o livro infantil enquanto produto
cultural, que pode se tornar um propulsor de questionamentos sociais acerca
de temas variados. A análise contextual
realizada demonstra ser uma etapa
fundamental para identificar os temas
presentes na narrativa, tanto das imagens quanto do texto escrito, permitindo
que o olhar da professora esteja atento
aos aspectos não necessariamente destacados ou percebidos em uma primeira
leitura ou mesmo pelo próprio autor. É
a leitura crítica e aprofundada da obra
que permitirá a elaboração de questões
norteadoras capazes de propiciar o en-
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e a sua obrigatoriedade, é necessário estimular o desenvolvimento da habilidade
de leitura e escrita, além de possibilitar
situações problematizadoras que permitam despertar a compreensão de outras
leituras possíveis das histórias, para
além da descrita pelo autor, demonstrando aos alunos que nem sempre há apenas
uma maneira de perceber os fatos. Nessa
perspectiva, o livro infantil configura-se
como um meio pelo qual é possível articular aspectos e conceitos dos âmbitos
científico, linguístico e social.
caminhamento de temáticas, as quais
nem sempre são apresentadas espontaneamente pelos alunos.
Compreendemos que o viés ideológico
suscitado pelos diversos elementos culturais na produção de um texto apresenta
concepções e maneiras de perceber o
mundo aos seus receptores, contribuindo
para o reforço ou a negação de mudanças
sociais, assim como para a reprodução
e a manutenção de determinados comportamentos. Os animais representados
na história são construídos sob uma
ambivalência entre os elementos da
natureza real e a figurativização da
narrativa, conduzindo a interpretações
sobre temáticas científicas que possam
ser levantadas.
Abordamos o livro infantil sob a perspectiva educacional e da arte considerada na relação dialógica entre o lúdico e
a aprendizagem, o imaginário e o real, a
ciência e a fantasia. Nessa perspectiva,
nosso esforço consistiu em identificar
e promover alguns encaminhamentos
possíveis para um uso crítico do livro infantil, uma vez que, enquanto produto de
uma cultura, este veicula determinadas
visões referentes aos aspectos de gênero
figurativizados nas personagens apresentadas e à relação com o outro e com
o meio. Compreendemos, contudo, que
outras abordagens, também com temas
de ciências, podem ser desenvolvidas em
atividades com o livro.
Considerando que a escola ocupa um
lugar de significativa relevância social,
dados o seu caráter de formação humana
Rosie’s walk: articulating
social and biological knowledge
in childhood through literature
Abstract
In this paper, we seek to discuss a
perspective of approaching social issues articulated to biologic knowledge in the childhood school by using
children’s storybooks as a didactic
resource. We choose such kind of
books since they are largely employed in teaching to this public. We
present here a historical overview of
this literature and then exemplify our
proposal based on the greimasian semiotic analysis of a specific literary
work of children’s storybook, establishing, from this, different social
themes that can be approached at the
classroom context and relates to the
day-to-day life of schoolchildren. Our
analyzes demonstrate ambivalences
between animal representations and
scientific themes, but also in relation
to the children’s book as an educational object. Finally, we conclude that
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an articulation of different knowledge fields for the development of an
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