ORIENTALISMO E CRÍTICA SOCIAL EM OBRAS DE
ARTUR AZEVEDO E EÇA DE QUEIRÓS:
O CASO DE DOIS O MANDARIM
ORIENTALISM AND SOCIAL CRITICISM IN WORKS OF
ARTUR AZEVEDO AND EÇA DE QUEIRÓS: THE CASE OF
TWO THE MANDARIN
José Carvalho Vanzelli *
jose.vanzelli@usp.br
Antonio Augusto Nery **
gutonery@hotmail.com
A China esteve no centro das atenções do Ocidente durante o Oitocentos. Talvez,
por isso, na literatura ocidental oitocentista, a imagem do ‘mandarim’, representação, por vezes estereotipada, do chinês que detinha prestígio político, econômico
ou cultural em seu país de origem é constante. Em Portugal, por exemplo, foi publicada no Diário de Portugal, em 1880, a novela O Mandarim de Eça de Queirós. Já
no Brasil, foi encenada no Rio de Janeiro, quatro anos mais tarde, a peça igualmente
intitulada O Mandarim, escrita por Artur Azevedo e Moreira Sampaio. A similaridade de títulos e a proximidade de datas de publicação propiciam uma série
de questões: em que sentidos esses dois O Mandarim se aproximam ou se distanciam? Poderia ser a novela de Eça uma espécie de inspiração à peça de Azevedo e
Sampaio? Como teriam esses autores trabalhado com a representação do oriental
que dá títulos às obras? Este artigo busca responder a essas e outras questões surgidas durante a leitura comparativa dos textos homônimos.
Palavras-chave: O Mandarim, Eça de Queirós, Artur Azevedo, literaturas de língua
portuguesa, século XIX.
China has been under the spotlight from the West throughout the nineteenth
century. This is probably one of the reasons why nineteenth century literature has
* Universidade de São Paulo (USP), São Paulo, Brasil.
** Universidade Federal do Paraná (UFPR), Curitiba, Brasil.
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JOSÉ CARVALHO VANZELLI & ANTONIO AUGUSTO NERY
frequently depicted the often-stereotyped image of the ‘Mandarin’ as the representation of the Chinese who holds political, economic or cultural prestige in his country of origin. In Portugal, for example, the novel O Mandarim, written by Eça de
Queirós, was published in Diário de Portugal in 1880. In Brazil, a play authored by
Artur Azevedo and Moreira Sampaio and staged four years later in Rio de Janeiro
was also called O Mandarim. The closeness between both titles and the proximity of
dates may raise a series of questions: how far are these two “The Mandarim” similar
or different from each other? Could Eça’s novel have been a kind of inspiration to
Azevedo and Sampaio’s play? How have these authors dealt with the representation
of the Chinese who has lent both texts their title? This article will try to answer
these and other questions arising from our comparative reading.
Keywords: O Mandarim, Eça de Queirós, Artur Azevedo, Portuguese literature,
19th century.
•
Em julho de 1880, Eça de Queirós (1845-1900), como substituição do prometido original de Os Maias, publica no jornal Diário de Portugal a novela
O Mandarim, texto inicialmente visto como um “descanso da análise severa
do homem” (Queirós 1992, p. 199), de acordo com a classificação dada pelo
próprio autor, mas que traz em suas linhas uma complexidade artística e
uma pluralidade de leituras que abrange diversas questões de sua época.
Quatro anos mais tarde, após a novela ter saído em livro e no mesmo ano
em que foi publicada sua edição francesa, é representada pela primeira vez,
no Teatro Príncipe Imperial do Rio de Janeiro, a revista de ano O Mandarim,
escrita pelos dramaturgos brasileiros Artur Azevedo (1855-1908) e Moreira
Sampaio (1851-1901). Essa peça se tornou a primeira do gênero a fazer
sucesso no Brasil e foi responsável pelo “modelo que foi posteriormente adotado pelos outros revistógrafos brasileiros” (Faria 2002, p. 161).
A proximidade das datas de publicação entre os dois textos, a similaridade do título das obras e os nomes escolhidos dos personagens orientais que dão título às obras – Ti-Chin-Fú, em Eça; e Tchin-Tchan-Fó, em
Azevedo e Sampaio – trazem algumas questões primárias: 1) em que sentidos esses dois O Mandarim se aproximam ou se afastam?; 2) poderia ser
a novela de Eça uma espécie de inspiração à peça de Azevedo e Sampaio?;
e 3) como teriam esses autores trabalhado com a representação do oriental
que dá título às obras?
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A fim de tentarmos responder a essas questões, primeiramente, é preciso destacar a diferença de gênero de cada uma das obras. Afinal, Eça
escreve uma obra em prosa, relatada em primeira pessoa. Já O Mandarim
de Azevedo e Sampaio é uma peça satírica.
Também, é necessário verificar como o enredo de cada uma das tramas
se constrói para avaliarmos o grau de proximidade desses textos homônimos.
A novela de Eça tem sua história desenvolvida parte em Portugal e
parte na China1 e é pautada no chamado “paradoxo2 do mandarim”, ou seja,
na problemática que envolve a seguinte questão:
Manter-se-ia o homem na virtude, se não temesse a sanção do crime? (…) [Tal
crime] promete impunidade. Não havemos de esquecer, embora transpondo-as para o abstrato, as suas características essenciais: o delito é um assassínio; a
vantagem, a riqueza; a vítima, um desconhecido; o local do crime, longe do criminoso; a causa da morte, uma ordem mental ou um simples gesto. (Martins
1967, p. 14)
Desde o emblemático estudo de Coimbra Martins (1967), sabe-se que
a fórmula “tuer le mandarin” (“matar o mandarim”) não é criação de Eça.
Muito pelo contrário. Ela já havia aparecido em diversos textos da literatura, em especial, a francesa.3 Portanto, o escritor português trabalha com
uma questão já bastante em voga na literatura ocidental. A novela queirosiana, narrada em primeira pessoa, conta a história de Teodoro, amanuense
lisboeta que, tentado por uma figura diabólica, toca uma sineta e herda
toda a fortuna do Mandarim Ti-Chin-Fú, que falece “apenas com um suspiro, nesses confins da Mongólia” (Queirós 1992, p. 85). Teodoro se torna,
então, rico e ascende socialmente. Mas, logo passa a ver o fantasma do falecido Mandarim, “todo vestido de seda amarela, morto, de pança ao ar, sobre
1 De acordo com Beatriz Berrini, a descrição da China foi mais esquemática na primeira versão,
publicada no Diário de Portugal. Maiores detalhes dos momentos de Teodoro em solo chinês
foram acrescentados na versão em livro, cuja primeira edição data do mesmo ano (Berrini
1992, pp.24-26).
2 Como nos lembra Berrini, em sua “Introdução à edição crítica d’O Mandarim”: “a palavra
‘paradoxo’ é aqui usada no sentindo etimológico grego, de história inacreditável” (Berrini 1992,
p. 40).
3 Chateaubriand (1802); Balzac (1835); Alexandre Dumas (pai) (1844); Vitu (1848); Monnier /
Martin (1855); Louis Protat (1860); e Didier (1864) são alguns dos nomes que, de acordo com
Martins (1967, p. 251) e Berrini (1993, p. 199), utilizaram-se dessa fórmula. Ainda, de acordo
com Sapega (2002, p. 444) a expressão “tuer le mandarin” já aparece em dicionários da França
desde 1866.
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a relva verde: e nos braços frios (…) o seu papagaio de papel, que parece tão
morto como ele” (idem, p. 97). Com o objetivo de se livrar das atormentadoras visões, o protagonista viaja a China a fim de restituir a fortuna à família de Ti-Chin-Fú e, assim, fazer desaparecer as aparições fantasmagóricas.
No entanto, todas suas tentativas são malogradas. Retornando a Portugal e
como última tentativa de fazer desaparecer a imagem do chinês, tenta voltar à antiga rotina de amanuense, mas, sem obter êxito algum, passa novamente à vivenciar as mordomias de seu palácio em Lisboa onde se mantém
“semanas inteiras num sofá, mudo e soturno, pensando na felicidade do
não-ser...” (idem, p. 189).
Já a revista de ano de Artur Azevedo e Moreira Sampaio, “o primeiro
grande sucesso desse tipo de peça” (Faria 2002, p. 160), mostra um chinês,
mandarim de 1ª classe, que chega ao Rio de Janeiro a fim de abrir “um estabelecimento de bugigangas chinesas” (Azevedo & Sampaio 1985, p. 259) e de
averiguar “se este país é digno de receber em seu seio os filhos do Sol” (idem,
p. 223). Tchin-Tchan-Fó vem acompanhado de sua ciumenta esposa, Peky,
deixada em um hotel carioca enquanto o marido corre atrás de Olímpia,
“um peixão” ao qual o Mandarim “não resiste” (idem, p. 221). Olímpia seduz
Tchin-Tchan-Fó visando seus recursos financeiros, enquanto despreza Lírio,
seu outrora rico noivo que ainda a adora. Peky, ao perceber as intenções de
seu marido, se junta com o desprezado Lírio e, juntos, perseguem TchinTchan-Fó e Olímpia em busca de um flagrante dos amantes e de vingança
pela traição. Após uma série de acontecimentos paralelos à trama principal,
em que a sociedade carioca da época é fortemente satirizada, descobre-se
que Lírio é, na verdade, o filho desaparecido de Tchin-Tchan-Fó e Peky, que
fora sequestrado por franceses muitos anos antes. Assim, a peça se encerra
com os dois casais juntos e felizes novamente.
Os fios condutores das tramas, descritos nesse breve resumo, nos leva,
inicialmente, a afastar os dois textos. Afinal, enquanto Eça de Queirós, conforme dissemos, parte do “paradoxo do mandarim”, questão em voga na
literatura ocidental desde o início do século XIX, Azevedo e Sampaio parecem não colocar nenhuma referência relacionada a esse ‘mito’. É bastante
possível que os dramaturgos conhecessem o texto de Eça, uma vez que,
ainda em 1880, a história foi ampliada, revisada e publicada em livro pelo
português. Entretanto, a revista de ano brasileira parece muito pouco ou
nada influenciada pela novela queirosiana. Qual teria sido, então, a motivação de Azevedo e Sampaio?
Para tal esclarecimento, é necessário analisarmos algumas das principais características desse gênero teatral. Diz João Roberto Faria:
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A revista de ano, como o próprio nome sugere, passa em revista os principais
acontecimentos do ano anterior. Tudo que foi importante ou que obteve repercussão – um fato político, um crime, uma invenção, a criação de um jornal, a
falência de um banco, uma obra literária, um espetáculo teatral, uma epidemia,
etc. – é personificado em cena e ganha tratamento cômico, algumas vezes de
alcance crítico ou satírico. Como a opereta e a mágica, com as quais se irmana,
seja porque requer encenação vistosa, inclusive lançando mão das mutações em
cena e apoteoses, seja porque tem números de música e dança, a revista de ano é
também um gênero que se distancia da literatura e que pretende apenas divertir
o espectador. (…) o prazer que ela proporciona ao espectador é o rever na cena
figuras e os incidentes que ele já havia visto na vida real. (Faria 2002, p. 161)
Pois, em outubro de 1883, um chinês ligado ao governo de seu país,
Tong King-sing4, visitou o Rio de Janeiro a fim de conhecer a agricultura
chinesa, comercializar carne e estudar a introdução da mão de obra chinesa no Brasil. O visitante oriental, inclusive, fora fortemente ironizado por
Lélio, pseudônimo de Machado de Assis, em dois artigos da seção “Balas
de Estalo” do jornal carioca Gazeta de Notícias nos dias 16 e 23 de outubro
de 1883.5 As ironias machadianas ao visitante chinês não passaram despercebidas por Azevedo e Sampaio, que fazem referências diretas às críticas
publicadas no periódico brasileiro no texto da peça. Citamos o trecho:
MANDARIM – Oh! minha senhora! Tenho muito prazer em travar relações
com Vossa Excelência... Já de há muito a conhecia, mas não ligava o nome à
pessoa. Como passa Dona Filomena Borges, essa interessante senhora que se
acha atualmente alojada no pavimento térreo da casa de Vossa Excelência.
GAZETA DE NOTÍCIAS – Perfeitamente, obrigada (Oferecendo-lhe um rebuçado, que tira do bolso) Há de permitir que lhe ofereça uma bala...
MANDARIM (recuando) – Uma bala?
GAZETA DE NOTÍCIAS – De estalo. São inofensivas. […]
MANDARIM – Aceito (Chupando a bala e fazendo uma careta, à parte). Pode
ser que seja feita de açúcar, mas amarga como fel! (Azevedo & Sampaio 1985,
p. 265).
4 Tong King-sing (1832-1892) foi negociante e intérprete chinês durante os últimos anos da
dinastia Qing. Tendo estudado em uma escola de missionários ingleses, era fluente em inglês o
que lhe garantiu trabalho junto ao governo colonial de Hong Kong. Tong King-sing participou
de uma série de projetos comerciais oficiais do governo e esteve em outubro de 1883 no Rio de
Janeiro para conhecer a agricultura brasileira, comercializar carne e tratar de questões de utilização de mão de obra chinesa em substituição da escravidão negra. Cf. Leite 1992, p. 242-247.
5 Cf. Assis, 2015, p. 461-463.
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Assim, Azevedo e Sampaio parecem encontrar na chegada do ainda
incomum estrangeiro em terras cariocas o mote principal para fazer a sua
revista dos principais acontecimentos do ano anterior. Sob esse ponto de
vista, a revista do ano está diretamente ligada à questão da imigração chinesa ao Brasil, tema bastante discutido entre as décadas de 1880 e, principalmente, 1890 na capital federal.6
Vale ressaltar que, apesar de Eça de Queirós não tratar da questão da
imigração chinesa em sua novela, o escritor não esteve alheio à discussão
desse movimento migratório ao Brasil e ao continente americano. Será,
no entanto, em sua produção não ficcional que o escritor tece comentários sobre esse tema. Entre 1872 e 1874, quando foi cônsul de Portugal em
Havana, Eça conviveu com uma considerável leva de imigrantes chineses,
os denominados coolies, em sua maioria trazidos a Cuba para trabalhar
nas fábricas de açúcar em condições escravagistas. Em carta ao ministro e
secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros de Portugal, João Andrade
Corvo (1824-1890), datada de 17 de maio de 1873, o escritor assim se posicionou sobre a situação, em claro tom de denúncia:
Os colonos trabalham desde a alva (quatro ou cinco da manhã) até as AveMaria (sete ou oito da tarde) tendo um descanso no meio do dia de duas horas,
mas na força dos trabalhos, há engenhos em que o colono trabalha das quatro
da manhã às onze da noite! O castigo ordinário é o cepo e às vezes as algemas,
com as quais todavia - trabalham! (…) Assim é, Ex.º Snr. que em todos os
exemplos da servidão humana - eu não conheço - a não ser o fellah no Egypto,
e na Nubia, ninguém mais infeliz que o coolie. E se a justiça não é uma mera
categoria de razão, a condição dos colonos na América central não é compatível com a dignidade desta época. (Queirós apud Lima s/d., p. 65)
Em 1874, Eça, recém-retornado de Havana, redige o documento A
Emigração como Força Civilizadora (1979). Neste estudo, o escritor tece
uma série de considerações sobre os movimentos migratórios pelo mundo,
a incluir a imigração europeia e asiática à América. Vinte anos mais tarde
(1894), cumprindo a função de correspondente internacional do jornal
carioca Gazeta de Notícias, o mesmo em que Machado ironizara o visitante
chinês Tong King-sing, o autor de Os Maias publica o artigo “Chineses e
Japoneses”. Tendo como mote inicial a guerra sino-japonesa (1894-1895)
pela posse da península coreana, o autor debate de maneira mais aprofundada as possíveis consequência de uma imigração chinesa ao Brasil, que se
intensificaria com a iminente derrota da China no conflito bélico.
6 Cf. Oliva, 2008, p. 66-84.
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Ao compararmos a peça de Azevedo e Sampaio e a novela de Eça, um
aspecto interessante a se notar é a maneira com que o autor português e os
dramaturgos brasileiros constroem as personagens que dão título às suas
obras. Em Eça de Queirós, embora a figura do Mandarim seja onipresente e
importante para o desenvolvimento do enredo, é uma figura espectral, traduzida pela imaginação de Teodoro. Tudo que se sabe (ou supõe-se saber)
vem das afirmações da figura diabólica que ‘tenta’ o protagonista ou dos
pensamentos e convicções que Teodoro tem acerca do ‘ser chinês’. Por exemplo, nas primeiras páginas da novela, Teodoro, ao comprar o livro “Brecha
das Almas” na feira da ladra de Lisboa, lê o paradoxo do mandarim:
“No fundo da China existe um Mandarim mais rico que todos os reis de que
a Fábula ou a História contam. Dele nada conheces, nem o nome, nem o semblante, nem a seda de que se veste. Para que tu herdes os seus cabedais infindáveis, basta que toques essa campainha, posta a teu lado, sobre um livro. Ele
soltará apenas um suspiro, nesses confins da Mongólia. Será então um cadáver:
e tu verás a teus pés mais ouro do que pode sonhar a ambição de um avaro. Tu,
que me lês e és um homem mortal, tocarás tu a campainha?” (Queirós 1992,
p. 85).
Perturbado com a capciosa pergunta “tocarás tu a campainha?” e sem
conseguir ler mais o in-fólio “que parecia exalar magia” (ibidem), passa aos
poucos a ter duas visões, como em um sonho acordado:
(…) de um lado um Mandarim decrépito, morrendo sem dor, longe, num
quiosque chinês, a um ti-li-tim de campainha; do outro toda uma montanha de
ouro cintilando aos meus pés! Isso era tão nítido, que eu via os olhos oblíquos
do velho personagem embaciarem-se, como cobres de uma ténue camada de
pó; e sentia o fino tinir de libras rolando juntas (idem, p. 86).
A primeira imagem formada por Teodoro é a de um chinês decrépito.
O texto presente em “Brechas das Almas” nada diz sobre o chinês. Pelo contrário, lá é dito que “dele nada conheces”. No entanto, em sua imaginação,
o protagonista o desenha como decrépito. Não deixa de ser uma visão caricata e redutora criada a partir de conhecimento nenhum ou, no máximo,
de um imaginário comum.
Assim, pode-se supor que Eça, ironicamente, concebe a imagem do
chinês a partir da caricatura comum que a população do velho continente
tinha dos orientais de um modo geral, conforme demonstrará, um século
mais tarde, Edward Said em seu afamado estudo Orientalismo (1978).
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Já na peça de Azevedo e Sampaio, o Mandarim não só é personificado, como também possui características singulares. Tendo ido ao Rio de
Janeiro para abrir “um estabelecimento de bugigangas chinesas” (Azevedo
& Sampaio 1985, p. 259) e para estudar “se este país é digno de receber em
seu seio os filhos do Sol” (idem, p. 223), Tchin-Tchan-Fó possui características típicas de um capitalista, quer pela exploração do trabalho, quer
pelo comércio. Ainda, há de se destacar que todo o fio condutor da peça
gira em torno da perseguição de Peky e Lírio a Tchin-Tchan-Fó e Olímpia,
sendo que o chinês e a brasileira buscam a todo custo um momento a sós.
Ela, para conseguir presentes e ele para tê-la em seus braços. Portanto, o
Mandarim de Azevedo e Sampaio é intensamente marcado pelo desejo de
aventuras, ‘econômicas’, mas, sobretudo, afetivas, pois, sem dúvidas, estamos diante de um incansável mulherengo.
Mandarins tão distintos, no entanto, não impedem que se estabeleçam
críticas semelhantes em ambos os textos.
Destacamos o caráter capitalista fortemente marcado em TchinTchan-Fó. Na novela queirosiana, apesar de o mandarim ser uma figura
ausente e morrer de maneira insólita, fazendo com que Teodoro ‘herde’ seus
bens também de maneira inexplicável, não é através de recursos fantásticos
que Teodoro efetivamente ‘herda’ a fortuna de Ti-Chin-Fú. Citamos um
relevante trecho.
– São notícias para Vossa Senhoria! Consideráveis notícias! O meu nome é
Silvestre... Silvestre, Juliano & Cª... Um serviçal criado de Vossa Excelência...
Chegaram justamente pelo paquete de Southampton... Nós somos correspondentes de Brito, Alves & Cª, de Macau... Correspondentes de Craig and Cª, de
Hong-Kong... As letras vêm de Hong-Kong...
O sujeito engasgava-se; e a sua mão gordinha agitava em tremuras um envelope repleto, com um selo de lacre negro.
– Vossa Excelência – prosseguiu – estava decerto prevenido... Nós é que o
não estávamos... A atrapalhação é natural... O que esperamos é que Vossa
Excelência nos conserve a sua benevolência... Nós sempre respeitámos muito
o carácter de Vossa Excelência... Vossa Excelência é nesta terra uma flor de
virtude, e espelho de bons! Aqui estão os primeiros saques sobre Bhering and
Brothers, de Londres... Letras a trinta dias sobre Rothschild...
A este nome, ressoante como o mesmo ouro, saltei vorazmente do leito:
– O que é isso, senhor? – gritei.
E ele, gritando mais, brandindo o envelope, todo alçado no bico dos botins:
– São cento e seis mil contos, senhor! Cento e seis mil contos sobre Londres,
Paris, Hamburgo e Amsterdão, sacados a seu favor, excelentíssimo senhor!...
A seu favor, excelentíssimo senhor! Pelas casas de Hong-Kong, de Xangai e de
ORIENTALISMO E CRÍTICA SOCIAL EM OBRAS DE ARTUR AZEVEDO E EÇA DE QUEIRÓS
263
Cantão, da herança depositada do mandarim Ti-Chin-Fú! (Queirós 1992, p.
103).
Eça poderia ter feito o dinheiro aparecer de maneira mágica para
Teodoro. No entanto, dá uma origem bastante capitalista à fortuna do amanuense. Frier destaca:
(…) em um nível literal, sua riqueza é derivada não de algum fantástico
esquema diabólico, mas do exercício do clássico neo-imperialismo capitalista,
em que o valor excedente é extraído por investidores na Europa a partir do
trabalho feito em seu nome por distante trabalhadores sem rostos (neste caso,
na China (…)) (Frier 2010, p. 153-154, tradução nossa)7
Além disso, nesse sentido, cabe mencionar o artigo crítico de Gilda
Santos, intitulado “O Mandarim: uma fábula prefiguradora da globalização?”(2001), no qual a estudiosa propõe uma série de observações que aproximam Teodoro da atitude imperialista exercida pela Inglaterra durante o
Oitocentos, pois, depois de deixar a condição de amanuense, restrito aos
“vinte mil réis mensais”, o protagonista tem à sua disposição seis contos de
réis, movimentados em bancos espalhados por todo o mundo, permitindo-lhe negociar e intervir em diversas partes do globo.
Deste modo, Ti-Chin-Fú e Tchin-Tchan-Fó se aproximam numa construção capitalista de exploração do trabalho desses “chineses sem rostos” e
em sentido global, ou globalizante.
Os textos de Azevedo e Sampaio e Eça de Queirós também dialogam
no que tange a uma equiparação entre Ocidentais e Orientais. Na peça
de Azevedo e Sampaio, por exemplo, pode-se verificar que a personagem
oriental, Tchin-Tchan-Fó, é posta em um mesmo patamar das Ocidentais,
principalmente se comparado com a figura de Olímpia, uma vez que se
o chinês é já um rico capitalista que vem ao Brasil a fim de, obviamente,
enriquecer ainda mais com seu estabelecimento ou com o “comércio” de
mão de obra não qualificada. Olímpia é igualmente desejosa de lucro ao
trocar de amantes, sempre em busca de um homem mais rico que possa lhe
dar colares, braceletes, joias e presentes caros. Ou seja, tanto os orientais
quantos os ocidentais presentes na peça são marcados por características
depreciativas, sendo, então, satirizados.
7
(…) at a literal level his wealth is derived not from some fantastic diabolical scheme but from
the exercise of classical capitalist neo-imperialism, where surplus value is extracted by investors
in Europe on the basis of labour carried out on their behalf by faceless, distant workers (in this
case in China (…)). (no original)
264
JOSÉ CARVALHO VANZELLI & ANTONIO AUGUSTO NERY
Eça de Queirós também coloca Oriente e Ocidente em um mesmo
nível. Para isso, porém, percorre outro caminho. Se em Azevedo e Sampaio,
Tchin-Tchan-Fó e Olímpia se aproximam por conta dos interesses econômicos e de lucros, Eça percebe o problema da cultura na relação dos
povos. Pois, se, por um lado, será a partir de imaginários e estereótipos
que Teodoro construirá sua imagem do Mandarim e suas impressões acerca
da China, por outro, o ex-amanuense também será julgado por uma visão
redutora que os orientais tinham dos ocidentais.
No capítulo VI da novela, após descobrir a suposta vila em que
Ti-Chin-Fú vivera, Teodoro e seu guia Sá-Tó partem a Tien-Hó. Lá, na
mesma noite de sua chegada, são atacados e afugentados pela população
local, meramente por Teodoro ser visto como “diabo estrangeiro”, ou seja,
simplesmente baseado em um imaginário comum. Teodoro, então, passa a
odiar a China e, pouco tempo depois, retorna a Portugal. É notável como
Eça coloca uma visão similar do ‘outro’ tanto do ponto de vista chinês
quanto do ponto de vista europeu. “Nas palavras de David (2007, p. 73),
“para os Chineses, Teodoro era um bárbaro com o qual nenhuma senhora
da família do Mandarim poderia casar. Para Teodoro, aquele mundo era
bárbaro e duro”. A incompreensão, a visão redutora e idealizada é mútua.
Assim, por vias distintas, tanto Azevedo e Sampaio quanto Queirós,
ao nivelar Ocidentais e Orientais pelas suas desvirtudes, desmontam o discurso padrão euro e etnocêntrico de um Ocidente civilizado e um Oriente
selvagem, concepção em voga tanto em Portugal, como também nas elites
brasileiras oitocentistas.
Outro ponto interessante que pode ser percebido em ambos os O
Mandarim está na desconstrução do imaginário sobre a China.
Coimbra Martins dá grande destaque à “voga parnasiana” na imagem da China ao longo do século XIX, que remeteria à “estância ideal de
arte, requinte, fantasia delicada e fino prazer” (Martins 1967, p. 151). Ou
seja, uma imagem positiva e edênica do Império do Meio. Carlos Jorge, ao
analisar comparativamente as obras O Mandarim de Eça de Queirós e As
Tribulações de um chinês na China, de Julio Verne (1879), também destaca
a imagem da China na qualidade de “pátria de valores éticos e filosóficos,
como os do confucionismo e do budismo” (Jorge 1999, p. 251). Todavia, esta
idealização do Império chinês é desfeita em ambos os textos aqui em causa.
Eça de Queirós em dois momentos desconstrói a imagem da China
paradisíaca. No quarto capítulo de sua história, Teodoro conversa com
o general russo Camiloff, seu anfitrião em Pequim, sobre seus planos de
como acalmar o fantasma do chinês assassinado. Camiloff, então, questiona
ORIENTALISMO E CRÍTICA SOCIAL EM OBRAS DE ARTUR AZEVEDO E EÇA DE QUEIRÓS
265
cada um dos planos de seu hóspede português. Citamos um longo, porém
importante trecho:
O meu estimável hóspede pretende esposar uma senhora da família Ti-Chin-Fú,
continuar a grossa influência que exercia o Mandarim, substituir, doméstica e
socialmente, esse chorado defunto... Para tudo isto dispõe da palavra ‘chá’. É
pouco.
Não pude negar – que era pouco. O venerando russo, franzindo o seu nariz
adunco de milhafre, pôs-me ainda outras objecções que eu via erguerem-se diante do meu desejo como as muralhas mesmas de Pequim: nenhuma
senhora da família Ti-Chin-Fú consentiria jamais em casar com um bárbaro;
e seria impossível, terrivelmente impossível que o imperador, o Filho do Sol,
concedesse a um estrangeiro as honras privilegiadas de um mandarim...
– Mas porque mas recusaria? – exclamei. – Eu pertenço a uma boa família
da província do Minho. Sou bacharel formado; portanto na China, como em
Coimbra, sou um letrado! Já fiz parte de uma repartição pública... Possuo
milhões... Tenho a experiência do estilo administrativo... (…)
– Não é – disse ele enfim – que o imperador realmente o recusasse: é que o
indivíduo que lho propusesse seria imediatamente decapitado. A lei chinesa,
neste ponto, é explícita e seca.
– (…) Se eu entregasse metade dos meus milhões ao Tesouro chinês, já que
não me é dado pessoalmente aplicá-los, como mandarim, à prosperidade do
Estado...? Talvez Ti-Chin-Fú se calmasse...
O general pousou-me paternalmente a vasta mão sobre o ombro:
– Erro, considerável erro, mancebo! Esses milhões nunca chegariam ao Tesouro
imperial. Ficariam nas algibeiras insondáveis das classes dirigentes: seriam dissipados em plantar jardins, coleccionar porcelanas, tapetar de peles os soalhos,
fornecer sedas às concubinas: não aliviariam a fome de um só chinês, nem reparariam uma só pedra das estradas públicas... Iriam enriquecer a orgia asiática. A
alma de Ti-Chin-Fú deve conhecer bem o Império: e isso não a satisfaria.
– E se eu empregasse parte da fortuna do velho malandro em fazer particularmente, como filantropo, largas distribuições de arroz à populaça faminta? É
uma ideia...
– Funesta – disse o general, franzindo medonhamente o sobrolho. – A corte
imperial veria aí imediatamente uma ambição política, o tortuoso plano de
ganhar os favores da plebe, um perigo para a Dinastia... O meu bom amigo
seria decapitado... É grave... (Queirós 1992, p. 135-137)
Ao invalidar os planos do protagonista, Camiloff destrói também as
ideias e concepções que Teodoro, o representante da pequena burguesia
lisboeta, possuía sobre a China e a cultura chinesa. Deste modo, através da
fala do general russo, Eça realiza uma tentativa de compreensão do pensa-
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JOSÉ CARVALHO VANZELLI & ANTONIO AUGUSTO NERY
mento do “outro”, fazendo, também, juntamente com seu leitor, um exercício de alteridade. Ainda nesse capítulo, Teodoro realiza um passeio por
Pequim. A cidade, dividida em duas principais partes – a Cidade Tártara e a
Cidade Chinesa – é descrita pelo narrador. Ao sair dos muros da chamada
Cidade Tártara, onde fica sua hospedagem, e adentrar a Cidade Chinesa,
Teodoro encontra uma paisagem que nada lhe remete à “estância ideal de
arte (…) e fina arte” (Martins 1967, p. 151). Citamos:
E lá fomos penetrando na Cidade Chinesa, pela porta monstruosa de TchinMen. Aqui habita a burguesia, o mercador, a populaça. As ruas alinham-se
como uma pauta; e no solo vetusto e lamacento, feito da imundície de gerações
recalcada desde séculos (…)
Dos dois lados são – ora terrenos vagos onde uivam manadas de cães famintos,
ora filas de casebres fuscos, ora pobres lojas com as suas tabuletas esguias e
sarapintadas, balouçando-se de uma haste de ferro. (…) Uma multidão rumorosa e espessa, onde domina o tom pardo e azulado dos trajes, circula sem
cessar; a poeira envolve tudo de uma névoa amarelada; um fedor acre exala-se
dos enxurros negros; (…)
Ao passar junto ao Templo do Céu, vejo apinhada num largo uma legião de
mendigos; tinham por vestuário um tijolo preso à cinta num cordel; as mulheres, com os cabelos entremeados de velhas flores de papel, roíam ossos tranquilamente; e cadáveres de crianças apodreciam ao lado, sob o voo dos moscardos.
Adiante topámos com uma jaula de traves, onde um condenado estendia,
através das grades, as mãos descarnadas, à esmola... Depois Sá-Tó mostrou-me respeitosamente uma praça estreita: aí, sobre pilares de pedra, pousavam
pequenas gaiolas contendo cabeças de decapitados: e gota a gota ia pingando
delas um sangue espesso e negro... (Queirós 1992, p. 145-147).
Cenário semelhante será descrito pelo protagonista, com os mesmos contornos de abjeção, ao adentrar a cidade de Tien-Hó, no já citado
Capítulo VI:
Já a tarde declinava, e o Sol descia vermelho como um escudo de metal candente, quando chegámos a Tien-Hó.
As muralhas negras da vila erguem-se, do lado do sul, ao pé de uma torrente
que ruge entre rochas: para o nascente, a planície lívida e poeirenta estende-se
até a um grupo escuro de colinas onde branqueja um vasto edifício – que é
uma missão católica. E para além, para o extremo norte, são as eternas montanhas roxas da Mongólia, suspensas sempre no ar como nuvens.
Alojámo-nos num barracão fétido, intitulado Estalagem da Consolação
Terrestre. Foi-me reservado o quarto nobre, que abria sobre uma galeria fixada
em estacas; era ornado estranhamente de dragões de papel recortado, suspen-
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sos por cordéis do travejamento do tecto; à menor aragem aquela legião de
monstros fabulosos oscilava em cadência, com um rumor seco de folhagem,
como tomada de vida sobrenatural e grotesca.
Antes que escurecesse fui ver com Sá-Tó a vila: mas bem depressa fugi ao fedor
abominável das vielas: tudo se me afigurou ser negro – os casebres, o chão
barrento, os enxurros, os cães famintos, a populaça abjecta... Recolhi ao albergue – onde arrieiros mongóis e crianças piolhosas me miravam com assombro.
(Queirós 1992, p. 163)
Para Teodoro, a China edênica só é encontrada quando está sob os cuidados do general Camiloff, na embaixada russa de Pequim, ou no convento
dos lazaristas, já nos últimos momentos da novela.
Na revista de ano brasileira, a China também tende a ser mostrada como
uma terra nada idealizada. Tal fato já pode ser depreendido nas descrições
da própria figura chinesa que vem ao Brasil com uma finalidade meramente
exploratória. Assim, quer no microcosmos chinês do “Hotel da China” no
Rio de Janeiro, definido por Peky como “uma bodega” (Azevedo & Sampaio
1985, p. 245), quer nas poucas referências à China feitas por Tchin-Tchan-Fó,
a imagem do país e de sua população também tende a ser afastada do típico
imaginário oitocentista descrito por Coimbra Martins. Tal fato pode ser
depreendido da fala do Mandarim que, ao ver o sistema público e político
brasileiro, diz: “tanta calamidade junta nem na China!” (idem, p. 225). Tal
expressão, obviamente posta com o intuito de escarnecer a sociedade brasileira, também remete a uma representação chinesa bastante distante do país
“ético e filosófico”, comum ao imaginário ocidental oitocentista.
De fato, a fala de Tchin-Tchan-Fó evidencia, talvez, o principal aspecto
da peça de Azevedo e Sampaio: a crítica à sociedade carioca do final do
século XIX. Paralelamente ao fio condutor da encenação, a história de
Tchin-Tchan-Fó no Rio de Janeiro, a revista de ano traz uma grande quantidade de quadros episódicos, que escarnecem a sociedade e representam
uma das principais características do gênero teatral revista de ano. Nas
palavras de João Roberto Faria:
Outro aspecto importante da revista de ano (…) é a coexistência harmônica
em seu interior de ‘dois estágios de ações diferentes’: o estágio do fio condutor e o dos quadros episódicos”. (…) O fio condutor era construído com simplicidade: ‘uma busca ou perseguição a alguém ou alguma coisa’. Ou seja, as
personagens estão o tempo todo se movimentando, fugindo ou perseguindo,
e nessa correria passam de um quadro – ou episódio – ao outro. (Faria 2002,
p. 162-163)
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Esses quadros críticos da vida social, para além da função de entretenimento do “gênero mais popular do teatro brasileiro nos dois últimos decênios do século XIX” (idem, p. 163), foi utilizado por Azevedo e Sampaio
para zombar da hipocrisia da sociedade fluminense da época.
Exemplificamos tal fato com as cenas 2 e 3 do quadro primeiro da
peça, momento em que Tchin-Tchan-Fó chega ao Brasil acompanhado do
Barão de Caiapó, seu cicerone, e é apresentado à personagem “Política” e
à Olímpia.8 Ao se saber que se trata de um “mandarim de primeira classe”
(Azevedo & Sampaio 1985, p. 222), todos passam a tratar aquele inusitado
estrangeiro como um “ilustre” e “distinto” (ibidem) convidado. O mesmo
acontece no quadro nono da peça9, quando o mandarim é apresentado aos
diversos periódicos presentes na capital federal brasileira. A todo momento,
o chinês é bajulado pela imprensa e pelas principais esferas de poder da
sociedade brasileira devido explicitamente aos seus recursos financeiros.
Tal tratamento dado ao Mandarim pelas personagens da elite carioca
na peça vai ao encontro do que nos relata José Roberto Leite, em seu estudo
A China no Brasil: influências, marcos, ecos e sobrevivências chinesas na
sociedade e artes brasileiras (1992). Diz Leite, citando os comentários de
G. A Butley, que Tong-King-sing, o verdadeiro “Mandarim” que visitou o
Rio de Janeiro em 1883, fora recebido como “o herói do dia e considerado
como um Messias (…), um hóspede muito em vista e muito festejado”
(Leite 1992, p. 243).
Eça de Queirós também evidencia a hipocrisia social de Portugal. Duas
cenas da novela O Mandarim são exemplares no que tange a essa questão.
No capítulo 3, Teodoro recebe a fortuna de Ti-Chin-Fú e, através de
seus novos recursos financeiros, adentra a alta sociedade lisboeta:
Entretanto Lisboa rojava-se aos meus pés. O pátio do palacete estava constantemente invadido por uma turba: olhando-a enfastiado das janelas da galeria,
eu via lá branquejar os peitilhos da Aristocracia, negrejar a sotaina do Clero,
e luzir o suor da Plebe: todos vinham suplicar, de lábio abjecto, a honra do
meu sorriso e uma participação no meu ouro. Às vezes consentia em receber
algum velho de título histórico: – ele adiantava-se pela sala, quase roçando o
tapete com os cabelos brancos, tartamudeando adulações; e imediatamente,
espalmando sobre o peito a mão de fortes veias onde corria um sangue de três
séculos, oferecia-me uma filha bem-amada para esposa ou para concubina.
Todos os cidadãos me traziam presentes como a um ídolo sobre o altar – uns
8 Cf. Azevedo & Sampaio, 1985, p. 220-225.
9 Cf. Azevedo & Sampaio, 1985, p. 263-272.
ORIENTALISMO E CRÍTICA SOCIAL EM OBRAS DE ARTUR AZEVEDO E EÇA DE QUEIRÓS
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Odes votivas, outros o meu monograma bordado a cabelo, alguns chinelas ou
boquilhas, cada um a sua consciência. Se o meu olhar amortecido fixava, por
acaso, na rua, uma mulher – era logo ao outro dia uma carta em que a criatura,
esposa ou prostituta, me ofertava a sua nudez, o seu amor, e todas as complacências da lascívia. (Queirós 1992, p. 115-117).
Já no capítulo final, ao tentar voltar à sua vida de amanuense e, assim,
apaziguar o fantasma do falecido chinês, diz Teodoro:
Abandonei o palacete ao Loreto, a existência de Nababo. Fui, com uma quinzena coçada, realugar o meu quarto na casa da Madame Marques: e voltei à
Repartição, de espinhaço curvo, a implorar os meus vinte mil réis mensais, e a
minha doce pena de amanuense!... Mas um sofrimento maior veio amargurar
os meus dias. Julgando-me arruinado – todos aqueles que a minha opulência
humilhara cobriram-me de ofensas, como se alastra de lixo uma estátua derrubada de príncipe decaído. Os jornais, num triunfo de ironia, achincalharam
a minha miséria. A aristocracia, que balbuciara adulações aos pés do Nababo,
ordenava agora aos seus cocheiros que atropelassem nas ruas o corpo encolhido do plumitivo de secretaria. O clero, que eu enriquecera, acusava-me de
«feiticeiro»; o Povo atirou-me pedras; e a Madame Marques, quando eu me
queixava humildemente da dureza granítica dos bifes, plantava as duas mãos à
cinta, e gritava: – Ora o enguiço! Então que quer você mais? Aguente! Olha o
pelintra!... (Queirós 1992, p. 189)
Pelos trechos citados, pode-se perceber que, apesar das maneiras distintas, ambos os textos traçam críticas sociais bastante próximas e que dialogam entre si – Eça de Queirós com sua famosa e ferina ironia; e Azevedo
e Sampaio através da sátira zombeteira.
Considerando esse e outros aspectos que vimos elencando até aqui,
apesar de pertencerem a gêneros diferentes e possuírem motivações e enredos pouco próximos, as obras O Mandarim de Artur Azevedo e Moreira
Sampaio e O Mandarim de Eça de Queirós mantêm diversos diálogos em
comum.
Por fim, a proximidade entre as duas ficções poderia ser traçada a partir do fato de ambas serem consideradas por muito tempo como sendo
obras “menores” entre as produções dos autores. No caso de Eça, mesmo
tendo sido publicada há quase cento e quarenta e quatro anos, foi apenas
nas últimas décadas que passou a ser lida pela crítica como uma obra de
valor semelhante aos afamados romances do escritor lusitano, classificados
como exemplares da estética realista em Língua Portuguesa. Exceção, feita,
obviamente, ao incontornável estudo de Coimbra Martins que data de 1967
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e que, de certo modo, possibilitou que O Mandarim de Eça pudesse ser
visto com olhos menos redutores. Já a peça de Azevedo e Sampaio, embora
ainda hoje pouco estudada, sempre sofreu por ser supostamente um texto
de um gênero voltado mais ao entretenimento do que à arte. De acordo
com João Roberto Faria, na época de publicação da peça, Artur Azevedo
era acusado como um dos responsáveis pela decadência do teatro brasileiro
ao deixar a arte de lado e valorizar as peças mais comerciais10, entretanto,
o crítico esclarece que o próprio autor se defendia dos questionamentos, e
reconhece que quando escreve, “sozinho ou de colaboração com Moreira
Sampaio, Aluísio Azevedo e Lino de Assunção, há – quer queiram ou não
queiram – certa preocupação de arte que as separa de algumas baboseiras
que sob o nome de revistas de ano se têm exibido nos nossos teatros” (Faria
2002, p. 174).11 Assim sendo, dado o evidente caráter artístico que se nota
ao ler a peça e à qualidade do texto de Azevedo e Sampaio, vê-se que esta
peça, do mesmo modo que a novela queirosiana, passou por um processo
de subestimação por parte da crítica.
Soma-se a este fato, todos os diálogos críticos destacados ao longo deste
estudo: a desconstrução da imagem da China e do chinês; o nivelamento de
Ocidentais e Orientais desconstruindo, assim, os discursos etnocêntricos;
a hipocrisia social tanto na sociedade lisboeta quanto carioca. Com tudo
isso em vista, percebe-se que apesar de percorrem caminhos independentes, os textos homônimos de Artur Azevedo e Moreira Sampaio e Eça de
Queirós caminham para uma mesma direção. Entender e refletir sobre tais
problemáticas são questões muito importantes hoje em dia, pois muitos
dos estereótipos e concepções troçados nos textos estão presentes em nossa
contemporaneidade. Tal constatação só vem a corroborar a atualidade e a
importância dos textos desses autores das literaturas do Brasil e de Portugal.
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461). São Paulo: Editora Nova Aguilar.
Assis, J. M. Machado de (2015). 23 de outubro de 1883. In id., Obra completa. vol. 4 (p.
462-463). São Paulo: Editora Nova Aguilar.
10 Cf. Faria, 2002, p. 171.
11 De acordo com Faria (2002, p. 174), este folhetim de Azevedo foi publicado no jornal A Notícia,
a 5 e 12 de março de 1896 e transcrito na Revista de Teatro da SBAT, no número 325, de janeiro
e fevereiro de 1962, à página 16.
ORIENTALISMO E CRÍTICA SOCIAL EM OBRAS DE ARTUR AZEVEDO E EÇA DE QUEIRÓS
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[recebido em 21 de setembro de 2017 e aceite para publicação em 5 de janeiro de 2018]