Diretoria
A B R A L I C 2005/06
Presidente
José Luís Jobim (UERJ/UFF)
Vice-presidente
Lívia Reis (UFF)
1° Secretário
Antonio Carlos Secchin (UFRJ)
2° Secretário
João Cezar de Castro Rocha (UERJ)
1° Tesoureiro
Roberto Acízelo Quelha de Souza (UERJ)
20 Tesoureira
Claudia Maria Pereira de Almeida (UERJ)
Conselho
Audemaro Taranto Goulart (PUC/MG)
Eduardo Coutinho (UFRJ)
Gilda Neves Bittencourt (UFRGS)
Ivia Iracema Duarte Alves (UFBA)
Maria Cecília Queirós de Moraes Pinto (USP)
Maria Eunice Moreira (PUC/RS)
Reinaldo Martiniano Marques (UFMG)
Rita Terezinha Schmidt (UFRGS)
Suplentes
Márcia Abreu (UNICAMP)
Tania Regina Oliveira Ramos (UFSC)
Conselho editorial
Benedito Nunes, Bóris Schnaidermann, Eneida Maria de Souza,
João Alexandre Barbosa, Jonathan Culler, Lisa Bloch de Behar,
Luiz Costa Lima, Marlyse Meyer, Raul Antelo, Silviano Santiago,
Sonia Brayner, Tania Franco Carvalho!, Yves Chevrel.
ABRALIC
C.G.C.04901271/0001-79
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)
Instituto de Letras
Rua São Francisco Xavier 524, 11 0 andar - CEP 20559-900
Bairro Maracanã - Rio de Janeiro 1 RJ
Fone/Fax: (21) 2587-7313
E-mail: abrallc@terra.com.br
4
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
© 2006 Associação Brasileira de Literatura Comparada
A Revista Brasileira de Literatura comparada (ISSN- Dl 03-6963J é uma
publicação anual da Associação Brasileira de Literatura Comparada
(AbralicJ, entidade civil de caráter cultural que congrega prOfessores
universitários, pesquisadores e estudiosos de Literatura Comparada,
fundada em Porto Alegre, em 1986.
Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta revista poderá ser
reproduzida ou transmitida, sejam quais forem os meios empregados,
sem permissão por escrito,
Editores
Formatação e
produção gráfica
Tiragem
José Luís Jobim
Lívia Reis
Antonio Carlos Secchin
João Cezar de Castro Rocha
Roberto Acízelo de Souza
Claudia Maria Pereira de Almeida
Casa Doze Projetos & Edições
2000 exemplares
Revista Brasileira de Literatura Comparada / Associação
Brasileira de Literatura Comparada - v,l, n,l (1991 ),Rio de Janeiro: Abralic, 1991v, ,n,9, 2006
ISSN 0103-6963
1, Literatura comparada - Periódicos, I. Associação
Brasileira de Literatura Comparada,
CDD 809,005
CDU 82,091 (05)
5
A revista e o X Congresso Internacional
da ABRALlC
José Luís Jobim
Lívia Reis
Antonio Carlos Secchin
João Cezar de Castro Rocha
Roberto Acízelo de Souza
Claudia Maria Pereira de Almeida
editores
Este segundo número da Revista Brasileira de Literatura
Comparada, editado em nossa gestão, aponta para a possibilidade
de nos igualarmos ao patamar desejado pela CAPES, de dar ênfase aos periódicos científicos que tenham periodicidade no mínimo
bianual nas avaliações do QUALIS.
O lançamento desta edição no X Congresso Internacional
da ABRALIC, realizado entre 31 de julho e 4 de agosto de 2006,
na Universidade do Estado do Rio de Janeiro - em promoção
conjunta com a Universidade Federal Fluminense e a Universidade Federal do Rio de Janeiro - faz parte também das comemorações referentes aos 20 anos de atividades ininterruptas de nossa
associação, como não poderia deixar de ser.
Agradecemos aos pesquisadores de todo o país e do exterior que responderam ao callfor papers, e não podemos deixar de
dizer que gostaríamos de ter mais espaço para acolher ainda mais
artigos do que o já elevado número que ora publicamos. De todo
modo, a própria diversidade dos articulistas que contribuem para
este número é uma comprovação expressiva da importância nacional e internacional desta nossa Revista, e um fato a ser celebrado.
Agradecemos também aos nossos pareceristas ad hoc, que
trabalharam muito e em tempo recorde, para que pudéssemos lançar este número ainda em nosso evento de 2006.
Quanto ao evento em si, foi no período entre 31 de julho e
04 de agosto de 2006 que se realizou o X Congresso da ABRALIC,
6
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, envolvendo professores e pesquisadores do Brasil inteiro e do estrangeiro, e contando com mais de 2.000 inscritos.
É sempre bom lembrar que a ABRALIC foi fundada em
1986, na UFRGS, completando assim 20 anos em 2006. Desde
então, promoveu 10 congressos e 10 encontros regionais, nas seguintes Universidades: UFRGS, UFMG, UFF, USP, UFRJ, UFSC,
UFBa, UFMG e UERJ. Seus últimos dois congressos (UFMG e
UFRGS) reuniram, cada um, cerca de 1.700 professores e pesquisadores. Hoje, a ABRALIC é a associação científica mais antiga e
com maior destaque na nossa área, e a maior associação de estudos literários da América Latina. Sua diretoria é eleita bianualmente,
compondo-se de 6 pesquisadores/docentes (na atual, seus membros são da VERJ, UFF e UFRJ), responsáveis por todas as atividades no biênio. Há também um Conselho, integrado por ex-presidentes e por pesquisadores de destaque na área, que dialoga
com a diretoria, nos assuntos de interesse da ABRALIC.
O X Congresso Internacional da ABRALIC discutiu o local, o regional, o Ilacional, o inter-nacional, o planetário: lugares dos discursos literários e culturais, e teve como subtemas:
Lugares dos discursos literários e culturais. Construção de identidades: local, regional, nacional, internacional, étnica, sexual,
lingüística, religiosa, de classe, de grupo. Centro e periferia. Metrópole e colônia. O colonial e o pós-colonial. Herança ibérica e
Novo Mundo. Relações culturais e blocos transnacionais
(MERCOSUL e União Européia). Exceção cultural e
globalização. Homogeneidade e heterogeneidade. Políticas culturais nacionais e internacionais. Interseções, compartilhamentos,
articulações, singularidades, diferenças, assimetrias e hierarquias
nos fluxos literários e culturais. Quadros de referência da circulação e aquisição do saber cultural e literário. As teorias e seus
lugares de enunciação. Modos de ver, modos de julgar, descrições
e prescrições.
Como "lugar" acabou sendo a palavra-chave que presidiu
tanto o Encontro Regional da ABRALIC-2005 quanto este X Congresso Internacional da ABRALIC, convém aqui reiterar a nossa
concepção deste termo:
"Um lugar é, antes de mais nada, uma construção elaborada
A revista e o X Congresso Internacional da ABRALIC
I Jobim, J.L. ABRALIC:
Sentidos do seu lugar. Rev.
Brasileira de Literatura
Comparada, Rio de Janeiro, 8,
p. 95-112, 2006.
por várias gerações de homens e mulheres que nele habitaram
ou por ele passaram, e que ajudaram a formular o sentido que
tem. Ele é constituído por redes públicas de sentido, formadoras de subjetividade. Nele se constituem interpretações públicas simbolicamente mediadas, inclusive sobre o sentido deste
lugar e sobre o que significa estar inserido nele. Num lugar,
circulam elementos que de algum modo impõem sentido às
experiências singulares dos sujeitos, elementos em relação aos
quais estes sujeitos interpretam suas experiências (e os textos
que lêem), bem como direcionam suas ações. Em outras palavras, o lugar é sempre fonte de pré-concepções que de alguma
maneira contribuem para a elaboração de nosso dizer, pois
nele se situa o sistema de referências deste dizer - incluindo
determinado universo de temas, interesses, termos etc. -, sistema que sempre já estabelece um limite dentro do qual nosso
campo de enunciação se circunscreve. Lugares têm sempre
história, e mesmo o apagamento de certos elementos
constitutivos da história do lugar também é decorrente de razões históricas." 1
Mais do que nunca, hoje, faz-se necessário estudar as correlações entre os lugares e os discursos literários e culturais, gerando
construções de toda ordem, derivadas não só de relações políticas
assimétricas, mas também de todo um quadro complexo de interseções, compartilhamentos, articulações, singularidades, diferenças,
assimetrias e hierarquias nos fluxos literários e culturais.
Com o evento de 2006, pretendemos, entre outras coisas:
1) Dar prosseguimento ao trabalho acadêmico que até o presente
momento vem caracterizando o perfil da Associação Brasileira de
Literatura Comparada (isto é, situar o estudo da Literatura em
relação a problemas teóricos fundamentais para a discussão do
quadro de referências em que se situam estes estudos, bem como
em relação a pesquisas desenvolvidas em outras áreas das Ciências Humanas); 2) Buscar uma maior integração acadêmica entre os
associados, objetivando gerar novos projetos e parcerias interuniversitárias, a partir da realização dos simpósios temáticos e da
sinergia gerada pelo congresso; 3) Oferecer uma contribuição reflexiva em relação aos quadros de referência que delimitam fluxos
literários e culturais; 4) Incentivar a emergência de novas parcerias e projetos entre pesquisadores da área; 5) Enfocar as mais recentes teorias e projetos sobre o tema do Encontro, destacando a
7
8
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
atividade literária e seu papel de verdadeira intersecção entre as
diversas áreas de conhecimento, perspectiva que mantém o caráter multidisciplinar dos eventos da ABRALIC.
Tivemos a presença dos seguintes pesquisadores, como conferencistas convidados do X Congresso da ABRALIC, todos com
reconhecida qualificação e produção acadêmica: Ana Pizarro (Universidade de Santiago de Chile), Benjamin AbdallaJr. (USP), Edson
Rosa da Silva (UFRJ), Eduardo Portella (ABL), Hans Ulrich
Gumbrecht (Stanford University), Lucia Helena (UFF), Luiz Costa
Lima (UERJ), Eduardo Coutinho (UFRJ), Pablo Rocca
(Universidad de la República - Uruguai), Jean-Marc Moura
(Université de Lille), Luisa Campuzano (Universidade de Havana), Patrick Imbert (Universidade de Ottawa), Regina Zilberman
(PUC-RS), Reinaldo Martiniano Marques (UFMG), Silvano Peloso
(Universidade de Roma - La Sapienza), Zilá Bernd (UFRGS).
Ressalte-se que a publicação em livro das conferências, a
exemplo do que ocorreu com as palestras do Encontro Regional
da ABRALIC-2006, permitirá a um público mais amplo o acesso
ao resultado do evento.
As atividades, em todos os dias do congresso, foram distribuídas em mesas-redondas, na parte da manhã e ao final da tarde,
da qual participaram os pesquisadores convidados, e em Simpósios,
organizados por Professores e pesquisadores, selecionados pela
Comissão Organizadora. O Encontro teve o total de 10 (dez)
mesas-redondas, cada uma com 2 (dois) conferencistas, e 71 (setenta e um) Simpósios, funcionando em um turno (manhã ou tarde), durante os dias do evento.
Três universidades participam diretamente da organização desse Encontro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ),
sede do evento, Universidade Federal Fluminense (UFF) e Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). A Diretoria da ABRALIC
foi responsável pela organização, junto com uma Comissão
Organizadora mais ampla, composta dos seguintes nomes: José Luís
Jobim (UERJIUFF); Lívia Reis (UFF); Antonio Carlos Secchin
(UFRJ); João Cezar de Castro Rocha (UERJ); Roberto Acízelo
Quelha de Souza (UERJIUFF); Claudia Maria Pereira de Almeida
(UERJ); Carlinda Fragale Pate Nunez (UERJ); Ana Lúcia de Souza
Henriques (UERJ); Roberto Mibielli (UFRR); Luiz Edmundo
Bouças Coutinho (UFRJ); Fernando Casaes (UERJ)
A revista e o X Congresso Internacional da ABRALIC
9
Além dos acima nomeados, contamos com 54 monitores, indispensáveis para tornar possível a realização do X Congresso Internacional da ABRALIC. Agradecemos a eles e a todos aqueles
cujo trabalho foi fundamental para o sucesso do empreendimento.
Para terminar, gostaríamos de chamar a atenção sobre o novo
sistema de envio de todos os textos completos das comunicações a
serem apresentadas em cada simpósio, para publicarmos, de modo
que, no primeiro dia do Congresso, cada participante pudesse receber, junto com o material do congresso, os anais, com a sua comunicação já publicada.
Este novo procedimento permitiu que os coordenadores de
simpósios, a seu critério, pudessem fazer apenas a discussão dos
trabalhos, já que estes estavam disponíveis bem antes do evento.
Este é um novo procedimento, já que o próprio formato dos congressos de nossa área não beneficia um possível aprofundamento
crítico dos temas e objetos pesquisados, pois a estrutura básica de
nossos congressos consiste em apresentações de cerca de 20 minutos, sem discussão posterior - ou, pelo menos, sem uma discussão
que mereça, até pelo tempo a ela dedicado, ser considerada como
relevante. Assim, planejar eventos nos quais, ao invés de se levarem
papers que são lidos sem discussão, se possa introduzir a prática de
disponibilizar os textos anteriormente para, durante o evento, dedicar-se apenas a discutir o que antes foi disponibilizado, pode levar a
um maior adensamento geral das argumentações desenvolvidas sobre os diversos temas, pois o debate, inclusive com a verbalização
de opiniões contrárias, obriga ao acuramento de posições. Ressalte-se que tanto a decisão sobre a disponibilização e circulação (ou
não) dos textos antes do evento (por exemplo, através de anexos
em e-mails para os participantes dos simpósios) quanto a sua forma
de apresentação ou discussão no próprio evento foram decisões
does) próprio(s) coordenador(es) de cada simpósio.
A todos os sócios e participantes do X Congresso Internacional da ABRALIC, nossos agradecimentos por sua contribuição.
Sumário
A revista e o X Congresso Internacional
da ABRALlC
5
Artigos
A formação, os deslocamentos: modos de escrever
a história literária brasileira
Joana Luíza Muylaert
13
Antonio Candido e o projeto de Brasil
Regina Zilberman
35
A rota dos romances para o Rio de Janeiro no século XIX
Sandra Guardini Teixeira Vasconcelos
49
A crônica na imprensa periódica oitocentista:
Machado de Assis e a formação do público leitor
Patrícia Kátia da Costa Pina
65
O marido da adúltera, de Lúcio de Mendonça, ou as estratégias
de publicação de um romance como folhetim
Socorro de Fátima Pacífico Vilar
79
De São Paulo aI Aconcagua: una trayetoria latino americana
para Monteiro Lobato
Marisa Lajolo
99
Euclides da Cunha e Vargas Llosa: dois olhares sobre Canudos
Délia Cambeiro
107
Matériaux pour une étude de la réception de la littérature
brésilienne en France
Pierre Rivas
129
Lições de viagens, devoção religiosa e sobrevivência nos
trópicos: o Brasil no romance juvenil francês oitocentista
Andréa Borges Leão
141
Os cadernos de campo de Roger Bastide:
entrecruzamentos múltiplos
Maria de Lourdes Patrini-Charlon
161
Da representação do horror ao vazio da representação
Edson Rosa da Silva
181
12
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
A literatura e a virtualização do texto literário
Rogério Lima
A ficção brasileira contemporânea e as redes hipertextuais
Ana Cláudia Viegas
O hipotexto de N 011
Luiz Gonzaga Marchezan
Outras palavras: o Catatau de Paulo Leminski em três tempos
Marília Librandi Rocha
Narrar ou perecer: Sérgio Sant' Anna e Ricardo Piglia, sobreviventes
Ângela Maria Dias
Transcriar, transubstanciar: a homenagem dos "cinco sentidos" de
Harotdo de Campos- a Gius-eppe Ungaretti
Maria Luíza Berwanger da Silva
As ironias da ordem: Carlos Drummond de Andrade
e Fernando Pessoa
Maria Esther Maciel
Lendo e re-escrevendo o passado: Shakespeare apaixonado
Thais Flores Nogueira Diniz
Luuanda 40 anos: a força das palavras mais velhas
Laura Cavalcante Padilha
191
213
229
243
259
269
283
293
307
Resenhas
Dom Quixote: utopias
André Trouche e Lívia Reis, org.
Rodrigo F. Labriola
Conceitos de literatura e cultura
323
Eurídice Figueiredo, org.
Maisa Navarro
Jacques Derrida: pensar a desconstrução
327
Evando Nascimento, org
Carla Rodrigues
História. Ficção. Literatura.
330
Luiz Costa Lima
Sérgio Alcides
336
Apresentação dos autores 345
l3
A formação, os deslocamentos:modos
de escrever a história literária brasileira
Joana Luíza Muylaert de Araújo
(UFU)
Introdução
As relações entre culturas literárias diversas têm recebido
da crítica brasileira contemporânea tratamentos distintos, conforme o ponto de vista teórico inseparável das escolhas do crítico e
da sua sensibilidade para certos temas, autores e textos, e não
outros. Mas, como se sabe, nem sempre a natureza provisória e
inacabada das interpretações é assumida explicitamente nos textos de críticos e historiadores da literatura. A pergunta que então
proponho, neste trabalho, refere-se à possibilidade de se postular
histórias da literatura brasileira orientadas para os vazios, para as
rupturas do que se estabilizou como sistema nacional coerente e
orgânico, cristalizando-se assim um certo modo de perceber a
tradição ou a formação de textos canônicos brasileiros.
Em síntese, a proposta também poderia ser nos termos, a
seguir, formulada: compreendendo a formação da literatura brasileira não como linha evolutiva de uma identidade essencialista e
original a ser revelada, mas como imagem construída no cruzamento da cultura e da subjetividade dos diversos intérpretes, passaríamos então a identificar váriasformações da literatura brasileira, tantas
quantas propuseram os historiadores desde o romantismo.
Em outras palavras, o que poderíamos interpretar, talvez
equivocadamente, como desacertos da crítica, oferece-nos ao contrário os elementos indispensáveis para a afirmação de uma escrita caleidoscópica da história, diversa e dispersa, com as aporias
incontornáveis e constitutivas de todo trabalho rigoroso de crítica
e historiografia.
A hipótese aqui apresentada pressupõe a reavaliação de ques-
14
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
tões teóricas pertinentes ao campo da historiografia literária, bem
como ao terreno da crítica no Brasil, marcada pela insistência no
descompasso das produções literárias brasileiras em relação às literaturas européias. E, uma vez que toda opção teórica nos compromete em atitudes práticas, o ponto de vista escolhido me levou a assumir o gesto propositivo de afirmar em relação aos
textos não o que teriam deixado de cumprir, mas o que neles
efetivamente se realizou.
Nesse gesto está implicada, portanto, uma perspectiva crítica em relação às abordagens totalizantes da literatura brasileira,
uma perspectiva plural e mais arriscada da história literária como
representações assumidamente fragmentadas e inacabadas ou, nas
palavras de Siegfried J. Schmidt, como construções "tão
multifacetadas quanto os historiadores que as escrevem" (OLINTO,
1996, p. 116). E é desse ponto de vista que proponho examinar a
possibilidade de outras escritas da história literária brasileira, além
das que vem sendo elaboradas a partir da idéia de "formação" como
um percurso evolutivo, relativamente contínuo, de estilos, formas e
temas literários ou, ainda, como superação da tradição.
A reflexão pretendida implica, em síntese, afinidade com as
principais vertentes da historiografia literária contemporânea, comprometidas com a redefinição dos paradigmas que sustentaram a
historiografia tradicional, dentre os quais destacam-se os de literatura nacional, de história e narrativa ficcional enquanto gêneros
estanques, de época e de periodização e, particularmente, a categoria dos textos canônicos, os chamados clássicos universais da
literatura. São questões da teoria literária, inseparáveis da
historiografia, que o historiador contemporâneo - compelido a
problematizar o seu ofício - deve incorporar na sua escrita. Duplo
desafio, portanto: além de uma inescapável opção teórica entre as
diferentes concepções a respeito da história, deve ao mesmo tempo teorizar sobre as mudanças constantes dos padrões estéticos
ou as várias representações do que chamamos literatura, pois do
historiador se espera que assuma a responsabilidade crítica,
explicitando seus pressupostos teóricos e seus métodos, revelando, até onde isso é possível, as marcas de sua subjetividade na
construção das histórias que narra e problematiza.
No caso dos críticos brasileiros, distinguimos aqueles que,
em seus trabalhos de crítica historiográfica, vêm promovendo des-
A fonnação, os deslocamentos: modos de escrever a história literária brasileira
locamentos importantes nos modos de percepção de tudo o que
se compreendeu até então como história da literatura nacional,
tanto no que se refere a uma suposta brasilidade perceptível nos
textos considerados quanto no que diz respeito a uma também
presumível continuidade de formas e estilos sucedendo-se numa
relação linear de causas e efeitos. Antes, porém, de expor algumas
propostas dentre as mais representativas de uma historiografia não
apenas mais plural e abrangente, mas, sobretudo, crítica de suas
próprias premissas, considero necessária uma breve nota sobre o
s-entido da idéia de "formação" e seus desdobramentos na
historiografia literária moderna no Brasil, destacando-se os trabalhos de Antonio Candido e Roberto Schwarz.
o sentido da formação na historiografia de Antonio
Candido
Momento decisivo para a historiografia literária brasileira é
o trabalho de Antonio Candido que, na esteira aberta pela crítica
de autores como Silvio Romero e José Veríssimo, desenvolverá
conceitos fundamentais como os de sistema e formação literária,
pilares de seu trabalho historiográfico, construído a partir da idéia
de que, como todo discurso, a história literária brasileira consiste
na construção política/ideológica de um projeto mais ou menos
consciente e deliberado de um conjunto de autores, leitores e instituições, interessados em solidificar a sua própria literatura. Com
o necessário distanciamento em relação ao mecanicismo de algumas abordagens sociológicas da literatura, o autor pretende, conforme ele mesmo escreve, "chegar mais perto de uma interpretação dialética", ao tratar dos "aspectos sociais que envolvem a vida
artística e literária nos seus diferentes momentos" (CANDIDO,
1976, p.17 -18). Para o objetivo almejado, o crítico dispõe de um
conjunto de princípios balizadores das análises que empreenderá.
Em linhas gerais, a noção de sistema liter~rio, desenvolvida pelo
autor, sustenta-se· na inter-relação dos três fatores - produção,
recepção e transmissão - que asseguram a formação e a continuidade de uma tradição literária no país. A respeito, escreve o autor,
explicitando seu método, que a mútua dependência entre autor,
obra e público interessa na medida em que "esclarecer a produção
artística", pois importa estudar as relações da literatura com a
15
16
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
vida social a partir de uma dupla perspectiva, que possibilite perceber "o movimento dialético que engloba a arte e a sociedade
num vasto sistema solidário de influências recíprocas" (CANDIDO,
1976, p. 24).
Situar a obra de Antonio Candido, ressaltando a sua singular "dissonância" no conjunto de autores clássicos que procuraram explicar o Brasil, orientados pelo comum propósito de apreender as "linhas evolutivas mais ou menos contínuas" do processo
social e cultural do país, é matéria do recente trabalho de Paulo
Arantes sobre o sentido da idéia de formação, "verdadeira obsessão nacional", na ensaística brasileira.! No ensaio em questão,
. interessa ao autor traçar a história crítica de uma destacada linhagem de "intérpretes do Brasil", iniciada pelos escritores românticos e retomada por críticos do final do século XIX, como Silvio
Romero, Araripe e José Veríssimo, salientando-se a figura de
Machado de Assis, e mais recentemente redefinida, a partir de
novos princípios teóricos, por Antonio Candido e Roberto
Schwzarz, aos quais coube resgatar criticamente a tradição, desse
modo compreendida "não como peso morto, mas como elemento
dinâmico e irresolvido, subjacente às contradições contemporâneas" (ARANTES, 1997, p.34).
I ARANTES, Paulo Eduardo e
ARANTES, Otília Beatriz
Piori. Sentido da formação.
São Paulo: Paz e Terra, 1997.
Roberto Schwarz: tradição e modernidade descompassos da cultura brasileira
É na esteira aberta por Candido que Roberto Scwharz vai
empreender a reflexão sobre a obra de Machado de Assis, dando
continuidade ao que permaneceu sugerido nas últimas linhas do
segundo volume da Formação da literatura brasileira. Escreve
Roberto Schwarz, em conhecido ensaio sobre os descompassos
da cultura brasileira, que a experiência da segregação entre as
elites intelectuais do país e as classes populares passou a ser percebida como um impasse - que inviabilizava a sintonia da nação
com os países europeus mais avançados - apenas a partir da metade do século XIX. 2
No mencionado estudo, parte o autor de uma passagem de
Sílvio Romero, em polêmico e equivocado julgamento a respeito
SCHWARZ, Roberto. Nacional por subtração. In: - . Que
horas são? São Paulo: Cia das
Letras, 1989.
2
A fonnação. os deslocamentos: modos de escrever a história literária brasileira
de Machado de Assis. Na passagem em questão, o crítico e historiador evolucionista, equívocos à parte, acusa no quadro intelectual brasileiro uma cisão social, um disparate: de um lado, uma
pequena elite europeizada, distanciada do grosso da população,
sem outro talento senão o de "copiar"; de outro, a maioria inculta,
produtores anônimos do folclore, da arte popular. A cópia, o arremedo, o pastiche seriam a conseqüência natural de uma produção
intelectual realizada por escritores, políticos e estudiosos sem nenhuma relação com o mundo à sua volta.
Certo é que o problema não poderia ser reduzido a um esquema tão simples como o exposto nessa descrição realizada pelo
escritor, em que são apontados os efeitos de questões cujas raízes
foram apenas aludidas.
A explicação para o descompasso cultural no interior da sociedade brasileira e entre o país e as nações centrais desenvolvidas
não poderia ser de natureza racial, conforme propunha Sílvio
Romero; sem considerar os disparates das mesmas teorias raciais,
basta a evidente constatação de quem imitava no caso não eram os
mestiços do povo, mas a elite branca, europeizada, como observa o
autor de Que horas são? O pecado original, nas palavras de Roberto
Schwarz, não residia na cópia, mas no fato de que só uma classe
copiava. Sílvio Romero vê nos tempos coloniais um relativo espírito de coesão nacional e atribui isso à "hábil política de segregação"
que nos mantinha num circuito de idéias exclusivamente portuguesas e brasileiras. Foi apenas depois com a vinda de D. João VI para
o Brasil e, sobretudo, a partir do Império, que a cópia do modelo
europeu e a distância entre elite letrada e população inculta passaram a ser percebidas como "disparate" ou "descompasso". O que
sempre existiu - a imitação, a separação entre elite e classes populares - desde os tempos da colônia, tomou -se um impasse, um dilema teórico para as gerações de intelectuais a partir da metade do
século XIX. Dilema teórico que expressa, por sua vez, os impasses
de natureza econômica, social e política do país. Como a passagem
da colônia a Estado autônomo não acarretou, no Brasil Império,
uma real modificação da estrutura básica característica da antiga
colônia, assentada na escravidão e no latifúndio, o contraste entre
formas de vida do Brasil Colônia e formas modernas de civilização
burguesa, entre velhos princípios e as idéias liberais apenas acentuou as dimensões de um problema já antigo.
17
18
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
Diante desse quadro, é compreensível que tudo o que significasse moderno fosse, simultânea e paradoxalmente, desejado e renegado como ameaça estrangeira à "coesão" e à "identidade nacional".
A tese da cópia cultural proposta por Sílvio Romero surge
como tentativa de explicar a discrepância entre os dois Brasis.
Evitando a imitação, estaria solucionado o problema, o país se
reconciliaria consigo próprio, a cultura nacional estaria salva. Mas
esse, como se vê, constitui um falso problema. A renúncia à cópia
é, na verdade, impensável'e mesmo indesejável; de fato, não somos atrasados porque imitamos, antes imitamos "mal" porque somos atrasados. A cópia não constitui necessariamente um valor
negativo, menos ainda é ela a causa de graves desigualdades sociais e culturais no interior de uma mesma sociedade. Mas essas,
porém, são avaliações possíveis segundo uma perspectiva contemporânea nossa, do século XX; juízos portanto que não estavam no horizonte de um autor do século passado, inspirado por
teorias raciais e pelo darwinismo social, como é o caso de Sílvio
Romero. Em linhas gerais, essa é a leitura crítica de Roberto
Schwarz que, em nova chave, segundo a perspectiva política dos
conflitos de classe, retoma o problema anunciado no século XIX.
Roberto Schwarz: forma - expressão e matéria social
na obra de Machado de Assis
Tradicionalmente, Machado de Assis é considerado uma
das raras exceções na experiência literária nacional; escritor universal - voltado para uma temática centrada em problemas que
afligem todos os homens de todos os tempos e lugares - construiu uma obra cujos procedimentos mais se aproximam dos
modernos esquemas da forma narrativa contemporânea ao escritor do que da provinciana prosa de acentuada cor local. Esse
aspecto do romance machadiano, porém, nem sempre foi considerado uma qualidade. Basta lembrar as antigas polêmicas em
torno do sentimento nacionalista, supostamente precário e mesmo ausente, na obra do escritor.
Seguindo as propostas sugeridas pelo próprio Machado no
célebre artigo "Notícia da atual literatura brasileira - Instinto de
nacionalidade", Roberto Schwarz afirma o nacionalismo da fic-
A formação, os deslocamentos: modos de escrever a história literária brasileira
ção machadiana expresso na forma, não a forma como a entendem os formalistas, mas numa "forma-expressão" da estrutura do
país. O que significa essa "forma-expressão" para o crítico?
O grande desafio para os escritores brasileiros do final do
sécclo era estar em sintonia, simultaneamente, com a realidade
nacional e com a forma "mais ilustre do tempo", o romance. "Adotar o romance" implicava "acatar também a sua maneira de tratar
as ideologias". O romance é uma forma importada da Europa "cujos
pressupostos, em razoável parte, não se encontravam no país, ou
encontravam-se alterados". Ora, o único modo de ser verossímilisto é, de ser fiel à nossa condição já que a "dívida externa nas
letras", tão inevitável quanto nas demais esferas da sociedade, nos
conduzia à imitação de uma forma imprópria, inadequada para expressar a realidade do país - era explicitar essa impropriedade, essa
inadequação na forma importada. E essa "façanha" coube a Machado de Assis que soube reiterar, em nível formal, os deslocamentos
de ideologias, próprias de nossa formação social, utilizando para
isso, de modo consciente e crítico, a forma importada. Machado
encontrou na sátira e na ironia a forma adequada a uma nova matéria. Na segunda fase de sua obra, o escritor conseguiu obter uma
forma brasileira verossímil filiando-se, como era inevitável, às tendências européias/cosmopolitas na literatura. Em outras palavras,
Machado foi original porque soube imitar de modo criativo.
O nacionalismo de Machado, portanto, não exclui a universalidade, presente em sua narrativa sob uma forma caricata, como
é o caso de Memórias póstumas de Brás Cubas em que a
indissolubilidade entre forma literária e matéria social se revela
mais explícita na própria construção do enredo através do narrador.
Analisando esse romance, Roberto Schwarz procura demonstrar
que, por meio da atitude desabusada, prepotente e voluntariosa
do narrador-personagem, atitude que expressa um comportamento típico da elite intelectual brasileira, da qual Brás Cubas fazia
parte, Machado conseguiu revelar a realidade nacional utilizando
uma forma universal importada. Brás Cubas representa o homem
culto brasileiro que "dispõe do todo da tradição ocidental", adotando a esse respeito uma atitude de superioridade irreverente e
afetada, sem consistência crítica. O cosmopolitismo de Brás Cubas não passa de uma farsa, de uma caricatura, pois a cultura geral
que ostenta se mostra "uma espécie de pacotilha, na melhor tradi-
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ção pátria, em que o capricho de Brás Cubas toma como província a experiência global da humanidade e se absolutiza". Brás é
um provinciano pretensioso que, sem nenhum respeito pelo conhecimento acumulado, banaliza "todas as idéias e formas à disposição de um homem culto do tempo", substituindo-as constantemente de acordo com as suas veleidades pessoais. Ora, a universalidade da narrativa machadiana reside exatamente no fato de
a forma romance utilizada desmascarar, na sua própria construção, o provincianismo do narrador-protagonista. Sintetizando a
proposta de Roberto Schwarz, a volubilidade do narrador é, ao
mesmo tempo, tema (conteúdo) e princípio formal do romance;
fórmula que, presente na prosa machadiana da segunda e grande
fase, assegurou, para o universo cultural brasileiro, "provinciano,
desprovido de credibilidade", um lugar no primeiro plano da literatura contemporânea universal, embora reconhecido apenas bem
mais tarde e, ainda assim, em círculos restritos. 3 Machado teria
encontrado, desse modo, a solução para o problema apresentado
há algum tempo em "Instinto de nacionalidade", conforme já indicamos. Mas, como reiterou em vários artigos, o crítico entende
que o verdadeiro antagonismo reside nos conflitos de classe sociais, por sua vez refletidos e refratados nas formas literárias; se as
causas dos impasses nas esferas cultural e literária são em essência de natureza histórica, a crítica deve pôr em relevo as relações
entre forma artística e necessidade histórica. A insistência de
Roberto Schwarz na perspectiva sociológica se contrapõe a algumas das recentes tendências da crítica literária brasileira, mais afinadas com o pensamento desconstrutivista europeu. São vários
os textos em que o autor discute essa questão, reformulando o
problema da "formação", central na obra de Antonio Candido. A
propósito, deve-se ressaltar o procedimento incomum, e louvável, na crítica brasileira; que é o apreço pelo pensamento crítico
das gerações anteriores, resgatado, é claro, em novas bases, conforme já apontamos ao mencionar o estudo de Paulo Arantes a
esse respeito.
É ainda Roberto Schwarz quem chama a atenção para a
vida intelectual no país, marcada pela ausência de "um campo de
problemas reais, particulares, com inserção e duração histórica
próprias, que recolha as forças em presença e solicite o passo
adiante" (SCHWARZ, 1989, p.31). Embora considerando a rele-
'As observações de Roberto
Schwarz sobre Memórias
Póstumas de Brás Cubas,
comentadas neste artigo,
encontram-se em L'm mestre na
periferia do capitalismo:
Machado de Assis. São Paulo:
Duas Cidades, 1990.
A formação, os deslocamentos: modos de escrever a história literária brasileira
vância do problema da "formação em descompasso", conforme
discutido por Roberto Schwarz e Antonio Candido, é com o olhar
voltado para o que há de próprio e ajustado nos escritos brasileiros que pretendo circunscrever um campo de problemas críticos
pertinentes ao conjunto da produção literária nacional e suas relações com o contexto mais amplo da literatura universal, assim
denominada provisoriamente. Ao incorporar as abordagens críticas inspiradas na perspectiva da história literária como representação de uma tradição inventada, sempre contingente em relação
a nossas concepções e a nosso presente, encaminho essa reflexão
para uma outra direção, diversa e, em certa medida, divergente,
en relação à dos dois autores mencionados, cuja historiografia se
enraíza na idéia de tradição como sistema mais ou menos coerente e coeso de obras e autores nacionais.
Pressupostos da idéia de "formação": recortes
Em conhecido texto, tanto quanto polêmico, Haroldo de
Campos (1989) pretendeu desvelar os pressupostos básicos da
Formação da literatura brasileira: momentos decisivos. Valendo-se de teóricos como Walter Benjamim e Derrida, entre outros,
o crítico opôs as noções de "constelação" e "disseminação" aos
princípios de "sistema" e "origem", eixos da historiografia de
Antonio Candido. Em linhas gerais, seus argumentos se baseiam
na afirmação de que a perspectiva histórica fundamentada na origem, na suposição de um começo não inventado ou
deliberadamente construído, corresponde a uma "visão
substancialista da evolução literária" correlata, por sua vez, a "um
ideal metafísico de entificação nacional". Sem considerar as diferenças entre a historiografia do século XIX e a proposta de
Candido, ressalta o propósito comum, verificável em todas elas,
de estabelecer uma "tradição contínua" de "estilos, temas, formas
ou preocupações", o que leva o crítico a reduzir a concepção
historiográfica de Candido a mera reedição do modelo romântico
de história literária, "voltada para o desvelamento evolutivogradualista" da literatura nacional.
Outro escritor foi mais conseqüente na crítica dirigida à
Formação, sobretudo pelo êxito em conciliar o respeito ao "mestre" (LIMA, 1992, p.168) e um rigoroso exame da obra. Sóbrio
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no tom e consistente na argumentação, Luiz Costa Lima inicia o
ensaio com observações sobre o que denomina de "eixos da atividade crítico-literária no século XX" (LIMA, 1992, p.153), visando, a partir dessas observações, situar no panorama contemporâneo o trabalho historiográfico de Candido. Ou, nas palavras do
ensaísta, dirigir-se à Formação indagando "como ela se localiza
quanto aos eixos aludidos", a saber: "a questão da especificidade da
linguagem literária", "a relação da linguagem literária com a sociedade" e "a idéia de literatura nacional" (LIMA, 1992, p.153-156).
Submetendo ao crivo de uma leitura crítica passagens do
prefácio à segunda edição e o capítulo teórico-metodológico da
Formação, Costa Lima afirma inicialmente que o que poderia parecer "afastamento das histórias orientadas pela exclusividade do
fator nacional" revela-se, ao inverso, dele tributário (LIMA, 1992,
p.156). Tarefa nada fácil, devemos reconhecer, a de se propor a
crítica de um discurso extremamente refinado e sedutor que, na
sua urdidura narrativa, parece ter pretendido suprimir os rastros
de seus pressupostos teóricos e juízos de valor, ao eleger "vários
caminhos, conforme o objeto em foco", determinando assim "a
realidade superior do texto" (CANDIDO, 1975, p.33; 36).
Ainda mais levando-se em conta a astúcia de uma crítica
que, longe de negar a subjetividade inerente ao seu exercício, pelo
contrário, incorpora-a assumindo sem meias palavras a responsabilidade de suas escolhas, conforme atesta o parágrafo final do
capítulo introdutório da Formação:
Sob este aspecto, a crítica é um ato arbitrário, se deseja ser
criadora, não apenas registradora. Interpretar é, em grande
parte, usar a capacidade de arbítrio; sendo o texto uma
pluralidade de significados virtuais, é definir o que se escolheu, entre outros. A este arbítrio o crítico junta a sua linguagem própria, as idéias e imagens que exprimem sua visão,
recobrindo com elas o esqueleto do conhecimento objetivamente
estabelecido (CANDIDO, 1975, p.39).
Ora, o que se revela nessas, como em muitas outras passagens, é uma atitude crítica, derivada "de uma concepção a-histórica da forma", nos termos de Costa Lima (LIMA, 1992, p.157) e
de uma insustentável dicotomia entre interpretação e conhecimento
objetivo. Em outras palavras, a declarada subjetividade crítica não
A formação, os deslocamentos: modos de escrever a história literária brasileira
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se faz acompanhar de uma explicitação das teorias e métodos
adotados e, ao que se sabe, é precisamente a teoria o elemento
esclarecedor da "conduta interpretativa do crítico" (LIMA, 1992,
p.157). Sendo assim, "o favorecimento da tolerância metodológica"
(presumivelmente solidário de uma atitude consciente de seus limites, derivados das idiossincrasias do crítico), ao contrário do
que poderia parecer, pretende na verdade fazer desaparecer as
marcas da subjetividade inicialmente assumida e, no mesmo passo, legitimar a objetividade da crítica, uma vez colada ao seu objeto, de fato e de direito, "a realidade superior do texto"
(CANDIDO, 1975, p.33; 36). Tomo a citar Costa Lima, que, com
leve ironia, descreve o impasse desse "crítico-caçador":
Atividade dirigida por valores, a cadeia de decisões em que a
crítica se insere - a cadeia formada por pressupostos teóricos,
operacionalização metodológica e pragmática crítica - implica
que seu agente não mais pode ser confundido com um caçador
que, em busca da caça, se orienta pelos rastros que a presa
deixa. Ao crítico, assim como ao historiador, só cabe a analogia com o caçador se se lembrar que um e outro não só perseguem rastros, mas que, assim fazendo, produzem outros rastros: os rastros do rastreador (LIMA, 1992, p.158).
Além da concepção a-histórica da forma, acima mencionada, Costa Lima acusa um outro rastro na Formação, em sintonia
com o primeiro: o pretendido "distanciamento do autor", "assegurado pelo tom descritivo da narrativa" (LIMA, 1992, p.160).
Esses traços do autor na obra, longe de garantir objetividade, são antes reveladores dos inevitáveis, incontornáveis, juízos
de valor. Isso porque "a estabilidade estética" - ou visão a-histórica da forma - não se deveria apenas ao primeiro eixo da moderna historiografia no século XX (a questão da especificidade da
linguagem literária), mas a "uma concepção mais tributária de uma
visão tradicional do que se estava disposto a admitir" (LIMA,
1992, p.l59).
Examinada a suposta evidência da idéia de sistema literário,
assegurada na volumosa descrição dos fatos literários, Luiz Costa
Lima lança a pergunta que Candido não fez, mas cuja resposta
estaria diluída tanto na exposição de seus pressupostos quanto
nos capítulos dedicados à história dos "momentos decisivos" da
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formação literária brasileira:
[... ] quão extensa deverá ser a recepção para que se lhe tenha
como dec1aradora de um sistema? Bastará uma recepção atestada para que o sistema se afirme em funcionamento? Se o
fosse, a fama local de Gregório não justificaria sua exclusão.
Se, portanto, não basta uma recepção localizada, qual a extensão necessária? (LIMA, 1992, p.162).
Na passagem da Formação, abaixo destacada por Costa
Lima, reúnem-se os dois traços que confirmam "a articulação decisiva da Formação ( ... ) com o que se chamara o terceiro eixo da
preocupação crítica contemporânea, precisamente aquele que derivava da atitude dominante no século XIX" (LIMA, 1992, p.l64),
a idéia de literatura nacional. Citando Candido, Costa Lima assinala: '[ ... ] Os escritores brasileiros que [... ] lançaram as bases de
uma literatura brasileira orgânica, como sistema coerente e não
manifestações isoladas' (LIMA, 1992, p.163). Nesta frase, estão
explícitos - embora não explicados nem assumidos pelo autor da
Formação - os conceitos de coerência eforma orgânica derivados do funcionalismo antropológico inglês. Costa Lima, apesar
de não se deter largamente nesse aspecto, ressalta "a importância
decisiva desse legado na concepção de sistema" (LIMA, 1992,
p.163) incorporada na historiografia de Candido. Em síntese, afirma o autor "que o decisivo na armadura teórica da Formação é
menos a idéia de articulação entre produção e recepção literárias
do que sua extensão nacional e seu caráter de coerência" (LIMA,
1992, p.163), favorecendo a "coesão homogeneizante" na interpretação da história da literatura brasileira. O fato de o barroco
ter sido excluído da Formação se explica "não tanto porque sua
circulação fosse drasticamente menor que a dos árcades, senão
porque impede que se lançassem as bases de uma literatura brasileira orgânica, como sistema coerente" (LIMA, 1992, p.164).
Tanto a exclusão de Gregório como a inclusão dos árcades "só se
explicam porque o peso decisivo recai na qualificação de sistema
nacional" (LIMA, 1992, p.164).
Retomando a pergunta de Costa Lima sobre a efetiva
representatividade de um sistema literário, vejamos como o crítico formula o problema, antes enfrentado por Haroldo de Campos. Ao reivindicar o resgate do barroco, sua inclusão no cânone,
A formação, os deslocamentos: modos de escrever a história literária brasileira
Haroldo de Campos reitera o primado do nacional na escrita das
histórias literárias. Dito de outra forma, Haroldo de Campos
polemiza com Antonio Candido no terreno de seu adversário e,
por esse motivo sobretudo, perde força, em grande parte, o conjunto de seus argumentos. Incluir ou excluir, essa não é a questão,
Tendo como alvo principalmente a idéia de sistema, Haroldo de
Campos parece ter-se esquecido de formular uma pergunta decisiva: o que se entende por nacional?
Na esteira de João Adolfo Hansen, Costa Lima ,vem nos
lembrar que a sátira barroca era prevista e codificada nos tratados
poéticos, o que "impediria, se não por vezo anacrônico, que se
envolvesse a poesia de Gregório em algum propósito nacional"
(LIMA, 1992, p.165).
Um outro problema, portanto, no centro da polêmica sobre
a formação da literatura brasileira e que gerou, assim como a questão do nacional, algumas respostas equivocadas, contra as quais
se manifestaram outros críticos, além dos aqui citados. Em relação ainda ao "seqüestro do barroco", muito oportunamente escreve Lígia Chiappini:
A contradição básica de Haroldo de Campos está em, ao mesmo tempo, contestar a história contínua, a tradição que Antonio Candido se propôs a perseguir nos momentos decisivos de
sua constituição, e integrar aí Gregório de Matos que, no entanto, vê como ruptura, Recusar como ideológica essa tradição
e, no entanto, querer incluí-lo nela. Trata-se, no mínimo de um
equívoco. Gregório só poderia entrar em um outro livro, não
neste. E outro teria de ser o projeto do historiador, não este
(CHIAPPINI, 1992, p.175).
Devemos ainda ressaltar o anacronismo muitas vezes não
percebido por críticos de Antonio Candido, que, ao postularem a
inclusão de Gregório de Matos na Formação, não se dão conta
dos princípios que abraçam, julgando contradizê-los. Noções como
uma suposta origem absoluta (que, aliás, Candido não postulou) e
uma periodização tributária da concepção romântica retomam à
cena, comprometendo o adequado entendimento da Formação,
apontando erros onde houve extrema coerência em relação aos
propósitos do autor, devidamente explicitados. A esse respeito,
recorro mais uma vez às palavras esclarecedoras de Lígia Chiappini:
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"a origem não é um problema para Antonio Candido, mas para
seus críticos. O que lhe interessa não é defender uma tradição
hegemônica, mas entender a constituição de uma hegemonia, projeto que ele explicita claramente para leitores que queiram entender" (CHIAPPINI, 1992, p.174), no primeiro capítulo, "Literatura como sistema".
Não sendo a "origem" propriamente um problema, voltamos então ao que, ao lado da idéia de formação, motivou este
texto: a idéia de sistema literário nacional, preponderante nas histórias de literatura brasileira. Eis, como vimos, uma questão bem
mais complexa do que supõe uma crítica apressada.
Este e outros problemas a ele relacionados - como os vínculos entre culturas literárias hegemônicas e periféricas - têm recebido da historiografia brasileira contemporânea tratamentos distintos, conforme o ponto de vista teórico inseparável, sempre, das
escolhas e da sensibilidade do crítico para certos temas, autores e
textos, e não outros.
A essa altura já podemos perguntar se seria possível, dentro
do registro da formação, postular histórias da literatura que não
impliquem a noção de sistema nacional coerente e orgânico. Ou
ainda: é possível, é desejável escrever uma história literária não
propriamente desvinculada da idéia de formação mas, simultânea
e paradoxalmente, dela partindo e dela se deslocando.
Em outros termos: entendendo a formação da literatura brasileira não como percurso evolutivo de uma identidade supostamente essencialista e original (ou, no entender de Candido, como
"continuidade ininterrupta de obras e autores" (CANDIDO, 1975,
p.25), mas como construção discursiva de seus diversos intérpretes, representação até certo ponto inseparável de seu próprio referente, seria mais apropriado falar deformações da literatura brasileira, do romantismo às mais recentes teorias da história literária.
A propósito, a idéia de "formação de um sistema literário",
proposta por Candido, parece se alinhar, conforme ele próprio
explicitara, com o projeto romântico de construção nacional e da
literatura. Essa noção, como sabemos, fez escola, inaugurando
uma considerável tendência do pensamento crítico brasileiro no
século XX. Coube a Roberto Schwarz, nas. palavras de Paulo
Arantes, "tirar as devidas conseqüências do roteiro traçado por
Antonio Candido, reapresentando o problema da formação como
A formação, os deslocamentos: modos de escrever a história literária brasileira
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uma questão material de acumulação da experiência intelectual
nas condições francamente proibitivas da dependência"
(ARANTES, 1997, p.32-33). Desde então, "o sentimento
acabrunhador da posição em falso de tudo o que concerne à cultura brasileira" (ARANTES, 1997, p.14) tem sido a tônica de toda a
crítica brasileira solidária com o autor das "idéias fora do lugar".
Reconhecendo "o permanente sentimento de inadequação
que desde a origem vem alimentando o mal-estar definidor de nosso
trato enviesado com as idéias" (ARANTES, 1997, p.33) como
uma das possibilidades de se reapresentar o problema da formação literária brasileira, penso em leituras sobre os escritos brasileiros, motivadas por outro sentimento - o de que, em matéria de
prosa ou poesia literária, nem sempre a crítica comparativa provoca sensação de descompasso ou desacerto, a menos que se identifique o historiador da literatura brasileira ao historiador da nação brasileira, incluindo aqueles cujo olhar privilegia os laços
indissociáveis entre literatura e sociedade.
Porque, não é redundante nem excessivo reiterar, o que na
verdade está em pauta é, antes, uma questão de perspectiva teórico-política, em jogo nas diversas propostas críticas da produção
literária brasileira. E o ponto de vista adotado bem poderia resultar de uma outra convicção: a de que o sentimento de sermos
ainda uma cultura periférica em desacerto com a cultura
hegemônica central - ou "uns desterrados em nossa terra", conforme célebre formulação de Sérgio Buarque de Holanda, no parágrafo de abertura de Raízes do Brasil (1995, p.31) - não seria
privilégio do brasileiro, mas sentimento comum às culturas modernas, à margem dos grandes centros de decisão política e econômica, que vem se aprofundando na mesma proporção dos
impasses e contradições da sociedade contemporânea.
Na impossibilidade de se sentir em casa, familiarizado com
o que seria próprio de sua cultura, na impossibilidade de superar o
desterro ou acertar os ponteiros do relógio nacional, por que não
assumir e incorporar a estranheza que nos constitui? Por que não
acentuar, nos escritos em prosa e verso de tantos escritores - desde o nosso, nem sempre compreendido, romantismo - a afirmação desse gesto em meio ao que neles eventualmente tenha se
traduzido como expressão de uma melancólica ou nostálgica busca do que nunca teria ou terá existido?
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É com o sentimento paradoxal de estranha familiaridade
que assumimos identidades que não nos pertencem, assim, poetas, prosadores e (por que não?) historiadores deveriam narrar
suas histórias como se fossem um outro, com o olhar oblíquo de
quem, não se reconhecendo de forma imediata no objeto que tem
diante de si, precisa criar as conexões, os vínculos, ali onde as
lacunas, as fraturas não permitem uma imagem coesa e coerente.
A história da literatura, percebida como busca criativa de um sentido para as experiências de uma coletividade, solicitaria do historiador o mesmo gesto de deslocamento, de pôr-se no lugar do
outro, a que recorre o narrador ficcional. Admitindo a impossibilidade de apreensão totalizante e absoluta da experiência literária,
esse historiador sustentaria na sua própria voz as múltiplas e dispersas vozes da cultura, construindo, no lugar das histórias tradicionais teleológicas, narrativas caleidoscópicas, micro-histórias, anotações à margem.
Considerações finais
Gostaria de encerrar essas considerações/recortes evocando dois autores argentinos que, em seus ensaios crítico-poéticos
sobre a história e a tradição literária de culturas à margem, revelam percepções inteiramente novas para quem havia se habituado
a pensar o problema como impasse, beco sem saída, ou ainda como
contradição a ser, num futuro incerto, superada.
De Jorge Luis Borges, comento dois textos bastante conhecidos - "O escritor argentino e a tradição" (BORGES, 1998) e
"Sobre os clássicos" (BORGES, 1999) - em que o problema se
apresenta de forma clara, precisa e, arrisco afirmar, definitiva. Eles
não se apresentaram casualmente à minha lembrança. Ao contrário, esses textos, em forma e tom de despretensioso ensaio, sem
qualquer veleidade teórica definitiva, produzidos, pois, de um outro
lugar - não propriamente acadêmico/disciplinar - pareceram-me,
por isso mesmo, talvez mais apropriados ao pronunciarem uma
palavra outra que não as que costumam soar dos lugares já conhecidos e percorridos.
Como de costume, em sua prosa quase austera em contraste com a ironia que a perpassa, Borges surpreende ao explicitar as
A formação, os deslocamentos: modos de escrever a história literária brasileira
principais contradições implícitas na noção de obras clássicas. Clássico, nos lembra o autor, "é aquele livro que uma nação, ou um
grupo de nações, ou o longo tempo decidiram ler como se em suas
páginas tudo fosse deliberado, fatal, profundo como o cosmos e
passível de interpretações sem fim" (BORGES, 1999, p.168). Contingentes e, em certa medida, imponderáveis, essas decisões variam
tanto quanto as formações históricas sobre as quais se erigiram.
Levando mais longe a provocação, relembra que, se houve
um tempo em que "acreditava que a beleza era privilégio de uns
poucos autores", agora sabe "que é comum e está a nossa espreita
nas casuais páginas do medíocre ou em um diálogo de rua"
(BORGES, 1999, p.168). Até aqui nada de muito novo nos é revelado, não fossem as palavras simples, diretas e incisivas com as
quais relativiza julgamentos consagrados pela crítica a respeito de
um conjunto de obras e autores, como na passagem a seguir:
Para alemães e austríacos, o Fausto é uma obra genial; para
outros, uma das mais famosas formas do tédio, como o segundo Paraíso, de Milton ou a obra de Rabelais. Livros como o de
Jó, a Divina Comédia, Macbeth (e, para mim, algumas das
sagas do Norte) prometem uma longa imortalidade, mas nada
sabemos do futuro, salvo que diferirá do presente. Uma preferência pode muito bem ser uma superstição (BORGES, 1999,
p.l68).
Sendo assim, a "beleza" de um texto não se revela na forma,
na estrutura, na imanência textual, nem tampouco em qualidades
vagas, transcendentes que nos permitiriam afirmar a existência de
obras clássicas eternas. Essa "beleza" é antes resultado de um
encontro do texto com o leitor ou, nas palavras Borges: "A glória
de um poeta depende, em suma, da excitação ou da apatia das
gerações de homens anônimos que a põem à prova, na solidão de
suas bibliotecas" (BORGES, 1999, p.168).
Antes de passar ao outro texto do autor, quero ressaltar
ainda o deslocamento radical da perspectiva centrada na obra (e,
portanto, no autor) para uma direção, senão oposta, divergente,
destacando-se nesse passo, ao mesmo tempo, a necessidade inevitável de referências e sua extrema precariedade, construídas que
são sobre o movediço, incerto território do tempo. Movimento
divergente também no sentido de que desloca o foco para outras,
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diversas, diferentes literaturas, por nós não apenas desconhecidas, mas quase sempre sequer suspeitadas. Num gesto de sincera
modéstia, reconhece: "Assim, embora meu desconhecimento das
letras malaias ou húngaras seja completo, tenho certeza de que, se
o tempo me propiciasse a ocasião de seu estudo, encontraria nelas
todos os alimentos que o espírito requer" (BORGES, 1999, p.l68).
Concluindo, na questão dos clássicos interferem as barreiras lingüística, política ou mesmo geográfica, obrigando aqueles
que da literatura se ocupam a admitir as limitações de seus
parâmetros de "beleza", que são também as da coletividade de
que fazem parte. Afinal, a preferência por determinados autores e
textos é tanto uma questão pessoal quanto das "gerações de homens" que, "urgidas por razões diversas, lêem com prévio fervor
e com uma misteriosa lealdade" os livros tornados clássicos
(BORGES, 1999, p.169).
Isso posto, poderíamos pensar que Borges, um iconoclasta,
desconsidera ou minimiza a importância dos clássicos, quando o
que se passa não é exatamente assim. Em outro texto, tratando do
escritor argentino e da tradição, afirma com veemência o
pertencimento à cultura ocidental do escritor argentino e de todos
os sul-americanos, de um modo geral (BORGES, 1998).
Como no caso dos clássicos, a tradição ocidental do outro/
nosso colonizador é também "um gosto adquirido", incorporado
e transformado por sua vez em outra tradição, nossa, própria, e
do outro simultaneamente. Numa certa medida, não haveria como
escapar desse fechamento, dessa clausura que tem condenado "o
escritor à margem" ao beco sem saída das imitações mais ou menos bem feitas do modelo europeu ou do sonho romântico de uma
literatura autêntica, surgida de um outro lugar, de uma pátria de
origem imaculada, não de outros povos mas própria supostamente. Estaríamos assim ligados à cultura ocidental por destino ou
fatalidade histórica e portanto não teríamos escolha.
Por outro lado, a condição de culturas e tradições à margem (uma vez que se expressam nos limites de um centro, tão
imaginado quanto real, mas em relação ao qual não se percebem
tão estreitamente vinculadas que não possam com ele romper sem
que, com esse gesto, se sintam órfãos de origem e de valores partilhados) proporciona inesperadas possibilidades de transgredir,
inovar sem a imposição de uma "devoção especial" diante de toda
A formação, os deslocamentos: modos de escrever a história literária brasileira
a cultura ocidental herdada. "Creio que os argentinos, os sul-americanos em geral ( ... ) podemos lançar mão de todos os temas europeus, utilizá-los sem superstições, com uma irreverência que
pode ter, e já tem, conseqüências afortunadas", é o que nos diz
Borges (BORGES, 1998, p.295), postulando o direito a ser europeu sendo argentino, descartando com essa atitude todos os lugares comuns da velha questão sobre o local e o universal.
Em outros termos, é essa a perspectiva de Ricardo Piglia.
"O olhar oblíquo", "a troca de lugar" deveriam constituir as qualidades do escritor do "próximo milênio", conforme uma "sexta
proposta" para a literatura, imaginada pelo autor de Nome falsoHomenagem a Roberto Arlt, para ser acrescentada às de Ítalo
Calvino já conhecidas. O "deslocamento" a que se refere Piglia
(2001) - da periferia para o centro - não mais diz respeito ao
mapeamento geográfico das culturas hierarquizadas. Não seria esse
o sentido do gesto próprio do escritor "à margem". Piglia fala de
um lugar específico - "do subúrbio do mundo" - é verdade, mas
para mostrar que esse é o lugar da linguagem, ou da literatura,
nesse caso tomadas sinônimas.
A verdade tem a estrutura de uma ficção de onde outro fala.
Fazer na linguagem um lugar para que o outro possa falar. A
literatura seria o lugar em que sempre é outro o que vem falar.
"Eu sou outro", como dizia Rimbaud. Sempre há outro aí. Esse
outro é aquele que tem que saber ouvir para que isso que se
conta não seja uma mera informação e tenha a forma da experiência. Parece-me, então, que poderíamos imaginar que há uma
sexta proposta. A proposta que eu chamaria, então, a distância, o deslocamento, a troca de lugar. Sair do centro, deixar
que a linguagem fale também na fronteira, naquilo que se ouve,
naquilo que chega do outro (PIGLIA, 2001, p.3).
Creio que é desse lugar distanciado em relação à própria
palavra, quase sempre cristalizada, que o historiador da literatura
libertaria outros sentidos para a história que narra, libertaria a verdade da correspondência, no limite impossível, com os fatos, aproximando-se do narrador ficcional na medida em que cede espaço
para a entrada em cena do outro que nos constitui. O historiador
contaria não exatamente o que aconteceu mas, como o poeta!
prosador, o que poderia ter acontecido. Ou, ainda, como quer
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Piglia, "O ponto cego da experiência, que quase não se pode transmitir", a menos que se "suponha uma relação nova com a linguagem dos limites" (PIGLIA, 2001, p.2).
Referências
ARANTES, Otília Beatriz Fiori e ARANTES, Paulo Eduardo. Sentido da
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33
35
Antonio Candido e o projeto de Brasil
Regina Zilberman
(PUC-RS)
Mas olhemos antes, em sua generalidade, a Formação da literatura brasileira. O livro, fundamental como poucos outros serão
em nossa cultura - do porte, digamos, de Um estadista do Império, Casa-grande e senzala, Raízes do Brasil -, é, antes de mais
nada, uma história do Brasil. Mas uma história que se desenrola
numa região mental diferente. Trata-se do Brasil pensando a si
próprio. O monólogo interior do Brasil.
Antonio Callado
1 Cf. ANDERSON, Benedict.
Nação e consciência nacional.
Trad. de Lólio Lourenço de
Oliveira. São Paulo: Ática,
1989.
No estudo sobre o que chama de comunidades imaginadas,
Benedict Anderson escrutina o modo como, nas diferentes regiões do globo terrestre, se constitui o sentimento de nação ou a
consciência nacional. 1 Se, na Europa, a introdução da imprensa fraturou a unidade do latim, promoveu a ascensão das línguas vemáculas
e, com isso, enfraqueceu o poder centralizador da Igreja, na América o processo foi distinto. Nesse continente, a consciência nacional
associou-se ao movimento separatista, resultante do fortalecimento
de uma sensibilidade singular, conforme a qual as pessoas geradas
no Novo Mundo começaram a se perceber vinculadas ao espaço
natal, a se entender desde uma noção de pertença à terra de origem,
a qual desejaram transformar em nacionalidade.
Anderson indica que, na Europa da imprensa nascente, houve
a territorialização da língua, que fragmentou a unidade até então
garantida pela fé e pelas dinastias imperiais. Essas adquiriram cunho "nacional", condição que garantiu sua permanência na Idade
Moderna. Na América, talvez seja possa afirmar que a
"territorialização" foi literalmente telúrica, graças à assimilação
36
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
entre o espaço e o sentimento suscitado por ele.
Provavelmente foram os Estados Unidos o lugar em que a
associação entre nacionalidade e conquista do território tenha se
dado de modo mais completo. Ainda que a independência tenha
envolvido a área ocupada pelas treze colônias originais, a expansão na direção do Ocidente já se anunciava no século XVIII; e, na
primeira metade do século XIX, o país incorporava a Louisiania,
disputava o Texas e avançava célere rumo à conquista da região
junto à orla do oceano Pacífico. A Doutrina Monroe, ambígua aos
olhos atuais, significou, em 1823, uma tomada de posição política
que tinha como referência o desenho geográfico do Estado que se
apresentava à população norte-americana.
Outros povos elegeram fórmulas distintas, sem abrir mão
da relação entre nacionalidade e espaço físico. Alguns colocaram
a literatura na função de intermediário, transferindo-lhe a tarefa
de representar o sentimento da nacionalidade que se definia por
um apreço especial conferido à pátria, local de nascença e permanência. No Brasil, o processo tomou configuração particular, pois,
mais do que representar ou traduzir aquele sentimento ou consciência nacional, coube à literatura substituí-lo, tomar seu lugar e
constituir, ela mesma, a encarnação do nacional.
Não foram os teóricos e militantes da Independência que
delegaram à literatura aquela missão, pois a tarefa definiu-se algumas décadas após a separação da metrópole. Foi preciso, inicialmente, suplantar o sentimento antilusitano experimentado pelos
intelectuais que tiveram de aceitar o governo de D. Pedro I, depois apear o imperador do poder e então buscar na história os
dados que ajudariam a encorpar a consciência da nacionalidade. É
que essa não podia se construir à revelia das relações mantidas,
desde o período colonial, com a Metrópole, de modo que se fez à
custa da conciliação entre separatismo e aceitação da dependência econômica e cultural.
O aparecimento, em 1838, de instituições como o Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro, modelado conforme o de Paris, colaborou para que o intuito nativista se concretizasse. Mas o
fato de que, no começo da década de 1840, seus membros ainda
buscassem fórmulas que ensinassem "Como se deve escrever a
história do Brasil", tema do concurso promovido em 1840 e vencido, em 1845, por um estrangeiro, o cientista alemão Carl F. Philip
Antonio Candido e o projeto de Brasil
2 Cf. MARTIUS, Carl Friedrich
Philipp von. Como se deve
escrever a História do Brasil.
Revista do Instituto Histórico
e Geográfico Brasileiro. Rio
de Janeiro 6 (24) : 389 - 411.
Janeiro de 1845. Cf. igualmente
ZILBERMAN, Regina Romance
histórico, história romanceada. In: .
AGUIAR, Flávio; MEIHY,
José Carlos Sebe Bom;
V ASCONCELOS, Sandra
Guardini T. (Org.). Gêneros de
fronteira. Cruzamentos entre o
histórico e o literário. São Paulo:
Xamã, 1997.
Cf. DENIS, Ferdinand.
Resumo da história literária
do Brasil. Trad. e notas
Guilhermino Cesar. Porto
Alegre: Lima, 1968. Cf.
GARRETT, Almeida. Bosquejo
da História da Poesia e Língua
Portuguesa. In: _ . Parnaso
Lusitano. Paris: J. P. Aillaud,
1826.
J
SILVA, Joaquim Norberto
de Sousa. "Bosquejo da
história da poesia brasileira."
In: ZILBERMAN, Regina;
MOREIRA, Maria Eunice. O
berço do cânone. Porto Alegre:
Mercado Aberto, 1998. p. I üO.
Originalmente publicado em
Modulações poéticas. Rio de
Janeiro: Tipografia Francesa,
1841.
4
von Martius, é sugestivo das dificuldades experimentadas por aquele colegiado, numa época em que a autonomia política parecia
assegurada. 2
A mesma década de 40 do século XIX presenciou fenômeno interessante: se ainda era preciso estabelecer parâmetros para
a redação da história do Brasil, que, da sua parte, não podia evitar
a afirmação da presença e influência portuguesa, a história da literatura, por outro lado, já propunha algumas formulações bem definidas. As primeiras propiciaram-nas estrangeiros interessados na
trajetória literária que o país parecia dispor: em 1826, tanto o
francês Ferdinand Denis, quanto o lusitano Almeida Garrett, ambos residentes na ocasião em Paris, conferiam detida atenção aos
poetas nascidos no Brasil, comparando-os a seus confrades lusitanos. 3 Mas os brasileiros não demoraram a se manifestar, valendo a pena destacar que, em 1841, Joaquim Norberto de Sousa
Silva,já então membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, redigia o "Bosquejo da história da poesia brasileira", bastante calcado nos predecessores Denis e Garrett, mas, ainda assim, confiante de que ''já possuíamos uma literatura, senão legitimamente nacional, - que raras o são -, ao menos em parte",4
sintoma de que igualmente contabilizávamos um passado e consistíamos uma nação.
A literatura corporificou doravante a nação, respondeu por
ela e prestou contas, em nome da autonomia e da auto-suficiência, ausente talvez em outros setores da vida pública e social. Os
historiadores da literatura converteram-se em avalistas da nacionalidade, o que, se, de um lado, aumentou sua responsabilidade,
de outro, afiançou a notoriedade que alcançaram, bem como sua
inserção nos aparelhos de Estado: no século XIX, o Colégio de
Pedro 11 e o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro; no século
XX, a universidade, onde exercem seu ofício.
A história da história da literatura é, pois, a da trajetória da
busca, encontro e afirmação da nacionalidade, expressa e materializada pelas obras que formam aquele acervo. Antônio Candido
situa-se num ponto fulcral desse percurso, porque, assim como se
integra ao processo, revela seus limites e aponta para suas contradições, indicando, por extensão, as alternativas que se abrem ao
pesquisador a partir do modo como desempenhou sua função.
37
38
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
1. Uma história de formações
Quando publicou, em 1959, a Formação da literatura brasileira: momentos decisivos, Antonio Candido já tinha percorrido
os caminhos da história da literatura, matéria de sua Introdução
ao método crítico de Sílvio Romero, de 1945, e de sua participação, com o capítulo "O escritor e o público", no projeto encabeçado por Afrânio Coutinho e intitulado A literatura no Brasil. O
crítico literário talvez fosse mais notório, graças à atuação na revista Clima, no começo da década de 1940, e nos jornais Folha
de São Paulo, Diário de São Paulo e Estado de São Paulo (cujo
famoso Suplemento Literário ajudou a planejar e a manter), nos
anos 40 e 50, de que resultaram os estudos reunidos em Brigada
ligeira, de 1945, e O observador literário, de 1959.5
Quando publicado, "Formação da literatura brasileira:
momentos decisivos" constituiu, contudo, seu produto mais extenso e encorpado, revelador de seu profundo conhecimento da
tradição da literatura brasileira, com ênfase na documentação dos
séculos xvrn e XIX, citada ao longo dos dois volumes do livro.
Candido costuma falar com certa modéstia da obra, atribuindo
sua feitura à encomenda do editor José de Barros Martins, que o
encarregara de elaborar "uma história da literatura brasileira,
aos origens aos nossos dias, em dois volumes breves, entre a divulgação séria e o compêndio", aguardara pacientemente "nada
menos de dez anos" e acolhera um texto distinto do solicitado,
portador de um título não muito usual nos meios literários. 6
Vale lembrar, por outro lado, que, no mesmo ano, Celso
Furtado publicava a Formação econômica do Brasil e que, na
década anterior, mais exatamente em 1942, Caio Prado Júnior
editara Formação do Brasil contemporâneo: colônia, enquanto
Nelson Werneck Sodré, em 1944, escrevera e publicara, pela coleção Documentos Brasileiros, da José Olympio, a Formação da
sociedade brasileira. Um ano antes do aparecimento da Formação da literatura no Brasil, em 1958, Raymundo Faoro lançara
Os donos do poder, cujo subtítulo informava tratar a obra da "Formação do patronato político brasileiro".
O capítulo das "formações" congregava importantes intelectuais e pesquisadores do Brasil até o princípio da década de
60, que, por meio do título de seus livros, confessavam determi-
S Cf. D'INCAO, Maria AngeIa;
SCARAB6TOLC, Eloísa
Faria (Org.). Dentro do texto,
dentro da vida. Ensaios sobre
Antonio Candido. São Paulo:
Companhia das Letras; Poços
de Caldas: Instituto Moreira
Salles, 1992.
CANDIDO, Antonio. Prefácio
da la edição. In: ___
6
o
Formação da literatura
brasileira.
Momentos
decisivos. 2. ed. revista. São
Paulo: Martins, 1964. V. I, p.
13.
Antonio Candido e o projeto de Brasil
7 IGLÉSIAS, Francisco.
Introdução. In: FURTADO,
Celso. Formação econômica
do Brasil. Brasília: Editora
Universidade de Brasília, 1963.
Cf. NIETZSCHE, Friedrich.
El nacimiento de la tragedia.
Introdução, tradução e notas
Andrés Sánchez Pascual.
Buenos Ayres: Alianza, 1998.
8
9
Cf. NIETZSCHE, Friedrich.
La genealogía de la moral.
Introdução, tradução e notas
Andrés Sánchez Pascual.
Buenos Ayres: Alianza, 1998.
nada afinidade intelectual entre si.
No prefácio à Formação econômica do Brasil, Francisco
Iglésias destaca que, ainda que o autor do livro, Celso Furtado,
fosse economista, a atitude que assume na redação da obra é a do
historiador. O mesmo atributo confere Iglésias a Caio Prado Júnior,
que, em 1945, escreve a História econômica do Brasil. Nesse
caso, destaca que o trabalho de Prado Júnior importa sobretudo
para a história, tal qual o de Furtado, embora o pesquisador paulista
talvez desejasse ser acolhido pelos economistas.? A observação
de Iglésias indica como o termo "formação", presente direta ou
indiretamente nos títulos, vincula-se ao âmbito da história, apresentando-se como uma das facetas da investigação das genealogias.
O estabelecimento das "formações" é uma maneira de fazer
história, que, desde logo, nega uma tendência do gênero, a de
buscar as origens ou o ato primordial da fundação. Esse procedimento vigorou no século XIX, sobretudo quando se estabilizaram
as histórias nacionais, caracterizadas pelo esforço de fixar o momento, ou a data, de nascimento da pátria. Aceito o episódio inicial, estruturava-se a cronologia, contínua e ascendente, na direção
do aperfeiçoamento das marcas iniciais e diferenciadoras, que viriam distinguir e assegurar o perfil nacional.
O século XIX mostrou-se pródigo no que diz respeito a
histórias nacionais desse feitio, modelo absorvido e assimilado pelas
histórias da literatura. Também essas movimentavam-se na busca
dos incidentes fundadores, a gênese mítica, a partir da qual se
construía uma tradição; marcada por especificidades e diferenças.
O pensamento romântico, valorizando as origens e a primitividade,
colaborou para fundamentar teoricamente a historiografia da literatura, que assim se consolidou e expandiu-se, firmando-se sobretudo graças à sua aliança com a escola e o ensino.
N a passagem do século XIX para o XX, pensadores como
Friedrich Nietzsche questionaram o arranjo da história, de um lado,
entendendo o nascimento como um evento consagrador, e não
como manifestação de primitividade inacabada e imperfeita, de
que é exemplo seu estudo sobre a tragédia grega;8 de outro, valorizando a pesquisa em nome das genealogias, momento de revelação, compreensão e análise da natureza dos temas e objetos que
vêm a ser matéria da reflexão do filósofo. 9
A pesquisa focada na genealogia privilegia o começo, acom-
39
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Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
panhando a transformação, e não sua evolução. Só que o começo
é móvel, porque corresponde ao tempo em que a investigação
inicia, ocasião escolhida e fixada pelo pesquisador, que a elege em
sintonia com o tema a estudar e a perspectiva a assumir. Se o tema
perde em autonomia, o estudioso ganha em compromisso com o
trabalho executado, passando, doravante, um a depender do outro. O ângulo metodológico adotado faz com que o tema dependa
do sujeito que o investiga; mas esse precisa responder pelas formulações apresentadas.
O modo como Antonio Candido lida com a formação da
literatura brasileira guarda afinidades com essa proposta de se fazer história, cujo resultado permitiu-lhe, por extensão, refletir sobre a sociedade brasileira a partir de paradigmas que suplantam as
limitações impostas pela ótica romântica.
2. Formação e sistema
Candido explica o entendimento da noção de formação na
introdução de sua obra, dividida em quatro capítulos. O primeiro
começa por uma tomada de posição, estando declarado no parágrafo de abertura que" este livro procura estudar a formação da
literatura brasileira como síntese de tendências universalistas e
particularistas"; 10 logo a seguir, explica que, para melhor compreender o "processo formativo", cabe distinguir entre "manifestações literárias" e "literatura propriamente dita", sendo essa
considerada "um sistema de obras ligadas por denominadores
comuns".11
Na perspectiva de Antonio Candido, o reconhecimento de
que os textos literários estão interligados garante a identificação
do sistema. A literatura não se confunde com a obra; pelo contrário, ultrapassa-a, constituindo uma armação que acolhe ou rejeita
criações distiI1tas que se apresentam a ela. Essa descrição não esgota, porém, a r.~,:[c de sistema, que transcende o universo artístico, ao incluir umà r~de de sujeitos e de concepções vigentes no
meio onde a criação individual aparece. Eis a natureza dos denominadores comuns, assim discriminados pelo Autor:
Estes denominadores são, além das características internas, (língua, temas, imagens), certos elementos de natureza social e
10 CANDIDO, Antonio. Op. cit.
p.25.
11
Id. p. 25. Ênfases do A.
41
Antonio Candido e o projeto de Brasil
12
Id. p. 25-26.
13 CANDIDO, Antonio. "A
literatura e a vida social". In:
. Literatura e sociedade.
Estudos de teoria e história
literária. São Paulo: Nacional,
1965. p. 27. Ênfases do A.
14 Cd. JAKOBSON, Roman.
Lingüística e poética. In: _.
Lingüística e comunioação. 2.
ed.Trad. Isidoro Blickstein e
José Paulo Peso São Paulo:
Cultrix, 1969. p. 123.
psíquica, embora literariamente organizados, que se manifestam historicamente e fazem da literatura aspecto orgânico da
civilização. Entre eles se distinguem: a existência de um conjunto de produtores literários, mais ou menos conscientes do
seu papel; um conjunto de receptores, formando os diferentes
tipos de público, sem os quais a obra não vive; um mecanismo
transmissor, (de modo geral, uma linguagem, traduzida em estilos), que liga uns a outros. O conjunto dos três elementos dá
lugar a um tipo de comunicação inter-humana, a literatura, que
aparece, sob este ângulo como sistema simbólico, por meio do
qual as veleidades mais profundas do indivíduo se transformam em elementos de contato entre os homens, e de interpretação das diferentes esferas da realidade. 12
Candido refere-se a três elementos - sumariamente resumidos ao produtor literário, ao conjunto de receptores, e ao mecanismo transmissor, a linguagem - que possibilitam a uma obra
literária aparecer e amalgamar-se a um processo de comunicação
interpessoal. Percebe-se desde logo que o sistema conta com, pelo
menos, quatro fatores, pois um deles, a linguagem, definida de
modo muito amplo no excerto citado, inclui tanto um suporte
material, que varia segundo sua especificidade, quanto um código
virtual.
No ensaio, datado de época aproximada, "A literatura e a
vida social", Candido insiste no modelo triádico, referindo-se aos
"três momentos indissoluvelmente ligados da produção, e [que J
se traduzem, no caso da comunicação artística, como autor, obra,
público."13 Trata-se, porém, de uma simplificação de sua intuição
metodológica, que, de certo modo, condiz com o modelo preferido pela teoria da comunicação, formado por seis elementos em
permanente integração e comutação: 14
contexto
emissor ou remetente mensagem ou obra
recebedor ou destinatário
canal
código
Na perspectiva de Candido, esse modelo, ainda que orgânico, não é estático, mas dinâmico, já que a interação entre os fato-
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Revista Brasileira de Literatura Comparada, n. 9, 2006
res da comunicação aciona e anima o sistema. Além disso, confere
papel categórico ao público, noção coletiva que abriga os destinatários das manifestações dos produtores literários. Por último,
materializa o significado da formação, pois essa somente se concretiza quando estão presentes os sujeitos, os meios e as intenções artísticas que, conjugados, mobilizam-se para prover de cultura e de literatura a um determinado ambiente ou cenário geográfico.
No Brasil, segundo Antonio Candido, "isto ocorre a partir
dos meados do século XVIII, adquirindo plena nitidez na primeira metade do século XIX": 15
É com os chamados árcades mineiros, as últimas academias e
certos intelectuais ilustrados, que surgem homens de letras formando conjuntos orgânicos e manifestando em graus variáveis
a vontade de fazer literatura brasileira. 16
15
CANDIDO,
Antonio.
Formação da literatura
brasileira. V. I, p. 27.
16
Id. p. 27.
Amparado na noção de sistema, Candido pode enraizar a
formação num determinado tempo e em certo espaço, liberandose dos atos fundadores, dos atestados de nascimento e de batismo, das manifestações isoladas, dos voluntarismos individuais. A
formação não constitui processo abstrato, nem o sistema opera
no vácuo, já que inclui, como se fosse um sétimo fator, uma dada
intenção - no caso, a vontade de fazer literatura brasileira. O historiador da literatura retoma ao ponto de onde saíram os pesquisadores que o antecederam, para oferecer sua interpretação dos
acontecimentos. O sistema pode não ter início, mas dispõe de uma
finalidade, matéria principal do projeto da historiografia literária
brasileira.
3. Início e projeto
Em 1996, Antonio Candido publicou uma Iniciação à literatura brasileira, resumo originalmente destinado a fazer parte
de obra coletiva a ser publicada na Itália "no quadro das comemorações do 5° Centenário do descobrimento da América" .17 A coletânea programada não se concretizou, o autor conservou o original até decidir lançá-lo "como texto interno da nossa Faculdade
de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São
Paulo", com o intuito de "oferecer aos jovens da Casa uma espé-
17 CANDIDO, Antonio. Nota
prévia. In: _ . Iniciação à
literatura brasileira. 3. ed. São
Paulo: Humanitas, 1999. p. 9.
43
Antonio Candido e o projeto de Brasil
I8
Id. ibid.
19 CANDIDO, Antonio.
Apresentação. In: _./nicillção
à literatura brasileira. p. 11.
20
Id. p. 12.
cie de aide mémoire que esclareça o desenho geral da literatura
brasileira e sirva de complemento a textos mais substanciosos."18
Mais uma vez a modéstia da apresentação não faz jus ao
texto, que, ao substituir a "formação" pela "iniciação", retoma
pontos fundamentais da obra de 1959. O primeiro deles aparece
na introdução, em que o autor observa, primeiramente, a pertença
da literatura do Brasil às "do Ocidente da Europa". A seguir, lembra que, no nosso caso, "o conceito de 'começo' é nela bastante
relativo", porque, ao contrário do que ocorreu com as "literaturas matrizes" (como a portuguesa, em relação à brasileira), 19 não
houve uma paulatina e simultânea constituição da língua, da literatura e da sociedade. Na América, deu-se o imediato e cabal transplante de uma tradição literária já existente:
Assim, a literatura não 'nasceu' aqui: veio pronta de fora para
transformar-se à medida que se formava uma sociedade nova. 20
A seguir, o autor completa e explícita o paradoxo:
21
Id. p. 13.
Num país primitivo, povoado por indígenas na Idade da Pedra,
foram implantados a ode e o soneto, o tratado moral e a epístola erudita, o sermão e a crônica dos fatos. 21
Além de paradoxal, o processo tem um significado ideológico que evidencia o papel exercido pela literatura durante a colonização e a trajetória subseqüente da sociedade brasileira:
22
Id. p. 13.
A história da literatura é em grande parte a história de uma
imposição cultural que foi aos poucos gerando expressão literária diferente, embóra em correlação estreita com os centros
civilizadores da Europa. 22
A conclusão', surpreendente pela convicção, motiva a necessidade de explicar o sentido da palavra "imposição":
Esta imposição atuou também no sentido mais forte da palavra, isto é, como instrumento colonizador, destinado a impor e
manter a ordem política e social estabelecida pela Metrópole,
através inclusive das classes dominantes locais.
Com efeito, além da sua função própria de criar formas ex-
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pressivas, a literatura serviu para celebrar e inculcar os valores cristãos e a concepção metropolitana de vida social, consolidando não apenas a presença de Deus e do Rei, mas o monopólio da língua. Com isso, desqualificou e proscreveu possíveis fermentos locais de divergência, como os idiomas, crenças
e costumes dos povos indígenas, e depois os dos escravos africanos. Em suma, desqualificou a possibilidade de expressão e
visão-de-mundo dos povos subjugados.
Essa literatura culta de senhores foi a matriz da literatura
brasileira erudita.23
Rejeitando, por outra via, o conceito de fundação ou começo mítico, tal como fizera na Formação, Candido, na Iniciação,
reitera o caráter motivado e pragmático que acompanha a presença e a ação da literatura no espaço americano. Mais explicitamente materialista que nos anos 50, não tem ilusões quando ao papel
que exercem os aparelhos culturais e a tradição literária no processo de ocupação e colonização do Novo Mundo. Contudo, não
se deixa levar pela perspectiva reducionista, tratando de evidenciar o modo dialético com que se dá o desenvolvimento da literatura nas condições impostas pelo meio - físico, econômico, socialoriginal. Eis por que lembra que cabe "discemir na literatura brasileira um duplo movimento de formação", decorrente da ação de
dois fatores diversos que requereram harmonização: de um lado,
a necessidade de converter a realidade observada, diferente da
que caracterizava a literatura européia, em tema artístico, o que
significou inserir o novo no corpo do tradicional; de outro, a necessidade de alterar as formas convencionais, para que tivessem
condições de absorver os dados locais, o que significou adaptar o
velho às formulações do até então desconhecido.
O jogo que se estabelece determina a permanente e
irremovível tensão experimentada pelos produtores literários brasileiros, que se expressam com mais intensidade à medida que o
sistema se consolida. Esse adquire forma a partir da segunda metade do século XVIII, reproduzindo-se na Iniciação o recorte histórico proposto na Formação, agora com nome e sobrenome, pois
o período é designado "era de configuração do sistema literário", antecedido pela "era das manifestações literárias" e sucedido pela "era do sistema literário consolidado" .24 Sistema, por
23
Id. p. 13.
!4
Id. p. 14. Itálicos do A.
45
Antonio Candido e o projeto de Brasil
sua vez, recebe definição ligeiramente diversa, ainda que o pensador não resista a defini-lo conforme um modelo triádico:
25
Id. p. 15.
Em "Literatura e desenvolvimento", Candido vale-se
mais uma vez da triplice repartição
paraentendere descrever a escala
de re-presentação do subdesenvolvimento pela literatura
brasileira. Cf. CANDIDO,
Antonio. Literatura e desenvolvimento. In: _. A educação
pew noite & outros ensaios. São
Paulo: Ática, 1987.
26
27 Cf. VERÍSSIMO, José.
História da literatura brasileira. De Bento Teixeira
(1601) a Machado de Assis
(1908).4. ed. Brasília: Ed. da
Universidade de Brasília, 1963.
Entendo aqui por sistema a articulação dos elementos que constituem a atividade literária regular: autores formando um conjunto virtual, e veículos que permitem o seu relacionamento, definindo uma "vida literária": públicos, restritos ou amplos, capazes de ler ou ouvir as obras, permitindo com isso que elas
circulem e atuem; tradição, que é o reconhecimento de obras e
autores precedentes, funcionamento como exemplo ou justificativa daquilo que se quer fazer, mesmo que seja para rejeitar. 25 .
Talvez seja o impacto do método dialético, debitado a Hegel
e, depois, a Marx, que leve Antonio Candido a repartir em três
parcelas a noção de sistema que elege, assim como acontece ao
recorte histórico proposto, que apresenta invariavelmente três etapas. 26 A etapa intermediária corresponde à antítese da primeira
desde sua designação, pois, tal como na Formação e em ensaios
posteriores, opõe as já mencionadas "manifestações literárias" à
"literatura", correspondendo essa a uma estrutura definida e complexa. Por decorrência, não pode encampar a divisão usual, preferida pela historiografia romântica e não desmentida depois, entre
as literaturas anterior e posterior à Independência, divisão aceita
mesmo pelo nada romântico José Veríssimo, embora esse justifique a repartição em termos estéticos, e não exclusivamente históricos. 27
Com efeito, conforJTle Candido, tanto o que precedeu a separação política de Portugal e o Romantismo, quanto esse último
movimento constituem uma única etapa, relativamente homogênea e contínua, caracterizada não por estilos, temas ou escolas,
mas pela adoção de um projeto comum.
É na Formação que Candido refere-se pela primeira vez a
esse projeto, descrito ainda na introdução da obra. Dado o fato de
que ele define a natureza da literatura brasileira, desenhando sua
personalidade e percurso, o projeto revela-se metodologicamente
mais importante para a construção da história literária do que o
reconhecimento do sistema e seu funcionamento. Esse constitui
pré-condição da literatura, mas corresponde a uma armadura que
requer preenchimento, o corpo e a alma traduzidos pelo projeto.
46
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
Que, no caso da literatura brasileira, tem o seguinte teor:
Os escritores neoclássicos são quase todos animados do desejo
de construir uma literatura como prova de que os brasileiros
eram tão capazes quanto os europeus; mesmo quando procuram exprimir uma realidade puramente individual, segundo os
moldes universalistas do momento, estão visando este aspecto.
( ... )
Depois da Independência o pendor se acentuou, levando a considerar a atividade literária como parte do esforço de construção do país livre, em cumprimento a um programa, bem cedo
estabelecido, que visava a diferenciação e particularização dos
temas e modos de exprimi-los. Isto explica a importância atribuída, neste livro, à "tomada de consciência" dos autores quanto
ao seu papel, e à intenção mais ou menos declarada de escrever
para a sua terra, mesmo quando não a descreviam. 28
Ao identificar o projeto que anima os escritores brasileiros,
nascidos ou residentes na América portuguesa, Candido procede
a uma importante inversão. Diferentemente dos historiadores da
literatura que o antecederam (e a alguns que o sucederam), ele
não vai atrás da expressão nacional, que conferiria distinção e
autonomia às obras produzidas no torrão natal ou relativas a ele.
Pelo contrário, ele transfere a busca para os autores estudados:
são os intelectuais e criadores de boa parte dos séculos XVIII e
XIX que trataram de se mostrar brasileiros, produzir uma arte
"legitimamente americana", segundo os termos utilizados por Joaquim Norberto, antes citados, e, com isso, competirem em pé de
igualdade com seus confrades europeus, em vez de emularem-nos.
Candido não incorpora tal busca como sua, de modo que
não precisa cobrar dos homens que fizeram a história da literatura
brasileira a realização de uma idéia pré-concebida e antecipada pelo
pesquisador. Em vez de ver o tecido pelo avesso, como seguidamente agiu a intelectualidade nacional perante seu próprio passado,
ele analisa o lado direito, verificando o que foi alcançado na direção
da realização de um projeto que fez do Brasil uma nação.
Nação com seus problemas e paradoxos, sem dúvida. Como
se observou antes, os românticos elegeram a literatura para, mais
do que representar, corporificar a nacionalidade; da sua parte,
porém, o país, povoado por iletrados, na maioria escravos, depois
28 CANDIDO, Antonio.
Formação da literatura
brasileira. V. I, p. 28.
A rota dos romances para o Rio de laneiro no século XIX
47
imigrantes oriundos de regiões muitos pobres da Europa, só poderia frustrá-los. Antes disso, como o próprio Candido destaca, a
literatura tinha sido instrumento de dominação, imposição cultural, incu1cação de valores estranhos aos habitantes originais da
América; tinha sido também instrumento de exclusão, pois apenas
no século XX, e nas últimas décadas principalmente, as formas de
expressão populares receberam atestado de legitimidade artística,
podendo ser inseridas ao cânone e circular pela escola e pelas
instituições culturais.
Por tudo isso, a literatura parecia o veículo menos adequado a passar atestado de autonomia e nacionalidade a seus usuários. Foi ela, contudo, que recebeu a incumbência, e narrar sua história é igualmente acompanhar um trajeto de muitos fracassos e
poucos sucessos. Trata-se, porém, de uma história consolidada,
frágil no que diz respeito aos resultados, mas resistente enquanto
itinerário compacto e contínuo. Entendê-la eqüivale a entender a
nós mesmos e a nosso lugar no trajeto percorrido, tendo, sempre
que possível, a obra de Antonio Candido como nosso guia.
49
A rota dos romances para o Rio de
Janeiro no século XIX
Sandra Guardini Teixeira Vasconcelos
(USP)
o objetivo principal deste artigo é lançar luz sobre o mercado livreiro europeu das primeiras décadas do século XIX, com
especial ênfase nos editores que exerceram um papel fundamental
na disponibilização e circulação dos romances ingleses no Brasil
oitocentista. O interesse principal, aqui, recai sobre os mecanismos e práticas de mercado que possibilitaram que o principal porto
brasileiro naquele período fosse um dos centros de irradiação e disseminação dos romances para o restante do território nacional. Trata-se de investigar um dos importantes atores no processo de difusão do gênero, na medida em que foram responsáveis por criar condições materiais para a implantação do romance também no Brasil.
O assunto de que vou tratar aqui foge do terreno propriamente literário. Ele forma, porém, junto com outros componentes, tais como a disponibilidade de equipamentos e bens culturais
e a instituição de espaços públicos de leitura, a base material que
possibilitou o acesso dos leitores aos livros durante o período que
se seguiu à chegada da Corte portuguesa ao Rio de Janeiro em
1808. A abertura dos portos às nações amigas e os interesses comerciais em ambos os lados do Atlântico favoreceram a integração
do país no mercado livreiro internacional, que experimentava, por
sua vez, um momento de notável expansão mundial. O ato do
Príncipe Regente ocorria, ao que tudo indica, num momento bastante propício para os livreiros europeus, ansiosos por expandirem suas vendas e encontrarem novos consumidores para os livros que imprimiam e vendiam.
Antes de penetrar nesse território, no entanto, gostaria de
explorar alguns dos argumentos que Franco Moretti apresenta em
50
Revista Brasileira de Literatura Comp~rada, n.9, 2006
seu Atlas do Romance Europeu l , para, por um lado, confirmar
algumas de suas observações, e por outro complicar ligeiramente o quadro que ele desenha dos mercados narrativos por volta
da primeira metade do século XIX. Entre suas principais teses,
Moretti demonstra a existência, nesse período, do que ele denomina de "duas superpotências narrativas" - a Grã-Bretanha e a
França - como centros produtores e exportadores de ficção, fato
que em si não deveria causar estranheza na medida em que esse
predomínio apenas reproduziria, no plano literário, o papel central que a base franco-britânica exerceu na "transformação do
mundo entre 1789 e 1848"2. Os mapas de Moretti se restringem
aos circuitos percorridos pelos romances franco-britânicos no restante da Europa e lhe permitem afirmar que, "na maior parte dos
países europeus, a maioria dos romances são, muito simplesmente, livros estrangeiros"3. Embora não tenha sido seu propósito
incluir na sua geografia literária os países deste lado de cá, se o
tivesse feito, as constatações de Moretti dificilmente seriam diferentes. Da mesma maneira que húngaros, italianos, dinamarqueses e gregos 4 , também os leitores brasileiros iriam se familiarizar com o novo gênero por meio dos romances ingleses e
franceses que, predominantemente, passaram a circular no Rio
de Janeiro de modo cada vez mais significativo a partir das primeiras décadas do século XIX e a se espraiar para as outras
províncias do Império logo em seguida. O Brasil integrava-se,
dessa forma, às rotas transatlânticas do mercado literário, que
tinha seu centro na França e na Grã-Bretanha.
Restaria, assim, verificar se o que Moretti lê nos mapas europeus, a preponderância expressiva dos romances canônicos e
um "padrão regular e monótono" de entusiasmo pelos mesmos
tipos de livros - ou, em suas próprias palavras, "uma Europa
unificada por um desejo pelo que Peter Brooks chamou de 'imaginação melodramática"'5 -, também vale para caracterizar as
obras de ficção que se alugavam ou vendiam nas boticas e livrarias e que se emprestavam nos gabinetes de leitura e bibliotecas
fluminenses. Um exame dos romances à disposição dos leitores
brasileiros revela não apenas uma espécie de monopólio das estantes por autores como, por exemplo, Walter Scott, Charles
Dickens, Daniel Defoe e Eugene Sue, mas também exibe uma interessante diversificação de títulos e subgêneros novelísticos, pos-
I Franco Moretti. Atlas of the
Europea1l Novel, 1800-1900.
London. Verso, 1999. Trad.
bras.: Atlas do Roma1lce
Europeu, 1800-1900. Trad.
Sandra Guardini Vasconcelos.
São Paulo. Boitempo, 2003.
Ver capítulo 3, "Mercados
narrativos, c. 1850", p. 153208.
Eric J. Hobsbawm. Ver
prefácio, A Era das
Revoluções, Europa J 7891848_ Trad. Maria Tereza
Lopes Teixeira e Marcos
Penchel. Rio de Janeiro. Paz e
Terra, 1977, p.l5.
2
3
Moretti, p. 197.
4
Moretti, p. 197.
, Moretti, p. 187.
A rota dos romances para o Rio de Janeiro no século XIX
Ver José de Alencar. "Como e
porque sou romancista". Obra
Completa. Rio de Janeiro, Ed.
José Aguilar, 1959, vol. I, 125155.
6
7 Silver{ork: designação jocosa
para se referir aos romancistas
de princípios do século XIX que
tratavam da vida e dos
costumes elegantes, derivada
das descrições que o Fraser 's
Magazine fazia de Edward
Bulwer-Lytton como "polidor
de garfos de prata". Embora
Lytton afirmasse que seus
propósitos eram satíricos, esses
romances ofereciam aos leitores
uma experiência vicária da vida
em sociedade. Entre os
romancistas "silver-fork"
encontravam-se Lady Charlotte
B ury, Lady Blessington,
Benjamin Disraeli e Catherine
Gore, cujos romances encontramos nos acervos dos
gabinetes de leitura fluminenses.
, Na sua análise da produção e
circulação do romance na
Europa, Moretti se vale da
teoria de Wallerstein para
identificar os países que
pertenceriam ao centro,
semi periferia e periferia do
sistema. Ver op. cit., p. 184.
9
Moretti, p. 190.
10
Moretti, p. 191.
51
sivelmente facilitada pela posição periférica do Brasil nesse mercado. Isto é, para cá os livreiros mandaram um pouco de tudo:
Richardson e Marivaux, Lesage e Sterne, Radcliffe e Paul de Kock,
Charlotte Bronte e Chateaubriand, Bulwer-Lytton e Fenélon,
Fielding e Dumas, só para citar alguns freqüentadores assíduos
dos anúncios de jornal ou dos catálogos dos gabinetes de leitura
desse período. Chegaram igualmente aqueles que Moretti afirma
não terem tido presença significativa nos outros países da Europa
além da Grã-Bretanha e França, como as aventuras do Capitão
Marryat, tão apreciadas por José de Alencar6 , Ainsworth, Miss
M.Elizabeth Braddon, Wilkie Collins, ou Georgiana Fullerton, as
"industrial noveIs" de Elizabeth Gaskell e os romances "silverfork"7. Poderíamos pressupor, portanto, que essa diversidade teria colocado em circulação no Brasil um amplo e importante acervo de temas, formas, procedimentos e técnicas para os primeiros
brasileiros que se arriscaram no terreno da ficção. Talvez mais
amplo do que tiveram à sua disposição seus sucedâneos nos países da semi-periferia e da periferia da Europa. 8
Por outro lado, ao atribuir a seleção a forças culturais particulares de cada lugar - "o padrão geográfico sugere uma afinidade cultural entre a forma específica e o mercado específico"9 -,
Moretti deixa na sombra um dos elos fundamentais nessa cadeia
de circulação, pois sequer menciona o papel exercido pelo comércio livreiro no processo. Não seria razoável imaginar que, numa
fase de industrialização da produção de livros, os interesses comerciais possam também ter estado na base dessas exportações?
Se assim for, é possível complicar ligeiramente o quadro dos mercados narrativos construído por Moretti trabalhando com a hipótese de que não são necessariamente "o catolicismo que 'seleciona' os romances religiosos para o público italiano" ou "a maior
emancipação das mulheres [que] seleciona narrativas de livre escolha emocional nos países protestantes"lO os únicos fatores responsáveis pela circulação de certas obras, e não de outras, nos
diferentes países. A conclusão lógica nos levaria a supor, dessa
maneira, que, se de um lado os países importavam os livros, na
outra ponta livreiros de olho no mercado podem muito bem ter
imposto escolhas e padrões de gosto, apostando no que já havia
sido previamente testado, aprovado e se mostrara bem-sucedido
no centro do sistema.
52
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
Nessa perspectiva, o comércio livreiro se juntaria aos outros componentes do circuito de circulação dos livros, tais como
os jornais, os periódicos especializados e os críticos, nessa função
de mediação e de estabelecimento de um cânone literário que, no
caso do romance, foi se construindo paulatinamente desde o século XVIII. As disputas e polêmicas entre livreiros, críticos e periódicos são um capítulo curioso da história do romance inglês
setecentista e dão bem a medida de quão influente era sua atividade e quão explícitos os seus interesses comerciais. ll
Essas são algumas das trilhas que gostaria de explorar nesse
ensaio, na tentativa de retraçar os caminhos dos romances da Europa para o Brasil, na primeira metade do século XIX. É evidente
que não se pode esquecer a presença dos livreiros franceses e
portugueses no Rio de Janeiro entre 1808 e a suspensão da censura em 1821, estudados por Maria Beatriz Nizza da Silva, Lúcia
Maria Pereira das Neves, Tânia Bessone e Leila Algranti 12. Como
salienta essa última, esse foi um período em que várias casas e
editoras de origem francesa, estabelecidas em Portugal desde o
século anterior, "começaram a abrir filiais no Brasil, enviando seus
representantes para atuarem no comércio de livros"13 , atividade
que, a essa altura, não era especializada - "eram negociantes que
em meio a várias quinquilharias e objectos de luxo também vendiam livros" .14 Havia, ainda, os negociantes franceses que, fugindo
da Restauração ou em busca de melhores condições de vida, haviam entrado no Brasil a partir de 1815 e que, estabelecidos em
diferentes tipos de negócio, vendiam livros.1 5 Por ora, entretanto,
pode ser proveitoso inverter a direção do olhar e buscar reconstruir os circuitos de que participaram os homens que fizeram a
história do livro na Europa no século XIX.
Não cabe, aqui, investigar de forma exaustiva o comércio
livreiro nessa primeira metade do século XIX, mas creio ser possível desenhar um quadro desse momento de expansão do comércio internacional do livro na Europa e arriscar algumas hipóteses
sobre seu impacto na circulação de livros em nosso país, naquele
período. Quero salientar que, embora meu recorte sejam sempre
os romances ingleses, eles são representativos desse comércio internacional, que engloba britânicos, franceses, portugueses e as
tão conhecidas contrafações belgas. De qualquer forma, essa expansão do comércio europeu e os efeitos que surtirá por aqui só
11 Ver Sandra Guardini T.
Vasconcelos. A Formação do
Romance Inglês. Ensaios
Teóricos. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas, Universidade de São
Paulo, 2000. Tese de LivreDocência, 3 vol.
12 Maria Beatriz Nizza da Silva.
Livro e sociedade no Rio de
Janeiro (1808-1821), Revista
de História, vol. XLVI, n. 94,
abril-junho 1973, p. 441-457;
Lúcia Maria Bastos Pereira das
Neves. Comércio de livros e
censura de idéias: A actividade dos livreiros franceses
no Brasil e a vigilância da
Mesa do Desembargo do Paço
(1795-1822). Ler Histâria, n.
23, 1992, p. 61-78; Leila
Mezan Algranti. Censura e
comércio de livros no período
de permanência da corte portuguesa no Rio de Janeiro
(1808-1821). Revista Portuguesa de Histâria, voI. 23, n.
1,1999,p.631-663.
13 Leila Mezan Algranti.
Política, religião e moralidade: a censura de livros no
Brasil de D. João VI (18081821). In: Maria Luiza Tucci
Carneiro (org.). Minorias
Silenciadas. História da Censura no Brasil. São Paulo,
EDUSP/ Imprensa Oficial do
EstadG"FAPESp, 2002, p. 1Il-112
14 Lúcia Maria Bastos Pereira
das Neves, op. cit., p. 64.
i5 Ver Tânia Bessone da C.
Ferreira e Lúcia Maria Bastos P.
das Neves. Livreiros franceses
no Rio de Janeiro: 1808-1823.
História Hoje: Balanço e
Perspectivas. IV Encontro
RegionaldaANPUH-RJ.Riode
Janeiro, Associação Nacional
dos Professores Universitários
de História, 1990, p. 190-202.
A rota dos romances para o Rio de Janeiro no século XIX
16 Depoimentos de comerciantes estrangeiros no Rio de
Janeiro, na década de 1810, dão
notícia das dificuldades e
demora na entrega dos produtos
e no desembaraço alfandegário
e da falta de infra-estrutura
portuária. Ver Herbert Heaton.
A Merchant Adventurer in
Brazil 1808-1818. The
Journal of Economic History,
vol. 6, n. I, maio de 1946.
17 Ver Frédéric Barbier. Le
Commerce Intemational de la
Librairie Française au XIXe
Siecle (1815-1913). Revue
d'Histoire Moderne et
Contemporaine. Torne XXVIII,
janvier-mars 1981,p. 94-I17.
18 Fonte: National Archives
(PRO), CUST 9/1 e CUST 9/
35, respectivamente.
19
Barbier, op. cit., p. 11 O.
20 "De la situation actuelle de la
librairie et particulierernent des
contrefaçons de la librairie
française dans le nord de
l'Europe", in Revue Britannique,
Paris, torne XXVI, 4e. série, mars
1840, 52-97. A revista traz um
quadro com valores comparativos
à página 80.
irão se fazer sentir a partir da década de 30, quando o Brasil já
gozava de sua condição de país politicamente independente.
Em tomo do decênio de 1840, as inovações, melhorias e
maior rapidez nos transportes terrestres (ferrovias) e marítimos
(vapores), nas transações bancárias l6 e nos serviços postais, as
mudanças nas técnicas de impressão e nos modos de produção e
distribuição, somadas à expansão do público leitor graças ao aumento da alfabetização, começavam a facilitar significativamente
a circulação dos livros na Europa. O comércio livreiro, a partir
principalmente de Londres e Paris, passou por um processo de
profissionalização, com a substituição do antigo "bookseller" responsável pela impressão, edição e venda ou aluguel de livros, pela
figura do "publisher", o editor moderno especializado apenas na
edição dos livros. Além disso, a reordenação jurídica do comércio
livreiro internacional, que passou a incluir convenções, leis de
propriedade literária e acordos bilateriais entre editores, possibilitou estabelecer redes de vendas, permitindo o contato e a relação
direta entre profissionais, por meio da figura do livreiro comissário
permanente. Muitas vezes, o livreiro exportador acabava por fundar uma verdadeira sucursal no exterior, por intermédio de um membro da sua própria família l7 , como foi o caso de B.L. Garnier no
Rio de Janeiro a partir de 1844. A abertura dos portos brasileiros
ocorria, portanto, num momento absolutamente auspicioso para os
livreiros europeus. Já em 1812, os registros alfandegários da GrãBretanha informavam exportações da ordem de f346 em "livros
impressos". E se até 1848 seu crescimento esteve longe de ser excepcional, tendo atingido apenas f404 naquele ano lS , a participação da França aparece como muito mais expressiva, com 11 toneladas de livros em português e em latim impressos ali e enviados ao
Brasil em 1821. 19 Segundo dados da Revue Britannique, no ano de
1838 a França expediu 230.000 francos em livros para o Brasil, ao
passo que no ano anterior as contrafações belgas que também tiveram o nosso país como destino haviam somado 16.000 francos. 2o
A análise das referências bibliográficas relativas aos romances ingleses que circularam no Rio de Janeiro apresenta resultados
interessantes do ponto de vista da atividade editorial européia. Longe
de exibir uma concentração, no entanto, o total de 99 autores e 502
títulos coletados se divide entre casas editoriais diversas e procedências várias, como podemos verificar nos quadros abaixo:
53
54
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
Autores britânicos (identificados)
Séc. 18
Séc. 19
30
69
Obras anônimas
Séc. 18
Séc. 19
11
24
Sem dados
9
Língua
Inglês
Francês
Português
Espanhol
225 títulos
146 títulos
128 títulos
3 títulos
Editoras: origem
França
Inglaterra
Portugal
Bélgica
Alemanha (Leipzig)
Brasil (Rio de Janeiro)
EUA (Nova York)
Suíça (Genebra)
84 títulos
81 títulos
40 títulos
33 títulos
24 títulos
11 títulos
11 títulos
2 títulos
Tamanha dispersão dos títulos por tantas editoras européias
obriga a levantar diferentes hipóteses para tentar explicar o caminho desses livros até o Brasil. Do lado de cá, as licenças concedidas pela Mesa de Desembargo do Paço dão testemunho das atividades de livreiros como Paulo Martim Filho (estabelecido à Rua
da Quitanda), João Roberto Bourgeois, que não só fazia negócios
com Luanda, Lisboa, Porto e Londres, mas enviava livros do Rio
de Janeiro para diversos cantos do Brasil, e Pierre Constant Dalbin,
que foi também editor de obras de Cervantes, Fénelon,
Chateaubriand e Lesage, entre outros. 21 Além disso, sabemos, por
exemplo, que, assim que se abriram os portos em 1808, "os britânicos chegaram em grande número. Por volta de agosto, tinham
entre 150 e 200 comerciantes ou agentes comerciais no Brasil".22
21 Tânia Bessone da C. Ferreira
e Lúcia Maria Bastos P. das
Neves. Livreiros franceses no
Rio de Janeiro: 1808-1823. p.
194 e ss. Fernando Guedes
informa que a casa Rolland
tinha entre seus "importantes e
perduráveis clientes no Rio de
Janeiro" um certo João Baptista
Bourgeois. com quem Rolland
fez "negócios entre 1798 e
1815". Ver Fernando Guedes.
O Livro e a Leitura em
Portugal. Lisboa. Ed. Verbo,
1987. p.148-150. nota 1.
A rota dos romances para o Rio de Janeiro no século XIX
22 Rory Miller. Britain and
Latin America in the
Nineteenth and Twentieth
Centuries. Longman, 1993, p.
42. Herbert Heaton: "Por volta
do final de 1808 haviam sido
enviados ao Rio de Janeiro
produtos britânicos no valor de
pelo menos cinco milhões de
dólares. Com eles ou antes deles
foram os comerciantes britânicos
ou agentes comissionados às
vintenas. Em setembro, era
possível reunir sessenta e duas
firmas britânicas no Rio para
subscrever um abaixo-assinado;
e, uma vez que eles descreviam a
si mesmos como compreendendo
'uma grande maioria dos
comerciantes respeitáveis
residentes aqui', parece seguro
supor que, se acrescentásssemos
a minoria e os não respeitáveis,
alcançaríamos um total de cem
negociantes britânicos apenas no
Rio." In: A Merchant
Adventurer in Brazil 18081818, op.cit., p. 6.
23
Ver Geoffrey Jones.
Merchants to Multinationals.
British Trading Companies in
the Nineteenth and Twentieth
Centuries. Oxford, Oxford
University Press, 2000. Há
notícia de que 60 casas
comerciais britânicas estavam
funcionando no Rio de Janeiro
em 1820. Ver D.C.M. Platt.
Latin America and British
Trade, 1806-1914. London,
Adam & Charles Black, 1972.
Nelson Schapochnik
menciona o gabinete de leitura
de Cremiêre, na Rua da
Alfândega, e os de Mongie,
Dujardin e Mad Breton, na Rua
do Ouvidor. Veja "Contextos de
Leitura no Rio de Janeiro do
século XIX: salões, gabinetes
literários e bibliotecas", in
Stella Bresciani (ed.). Imagens
da Cidade. Séculos XIX e XX.
(ANPUH/São Paulo: Marco
ZeroIFAPESp, 1993), 147-162.
Villeneuve, Didot, Mongie,
Crémiêre, Garnier, Plancher,
Dujardin eram alguns desses
livreiros.
24
55
Muitos começavam como "commission merchants" e serviam como
agentes dos fabricantes e atacadistas britânicos, negociando diretamente com eles. Mais importante mercado latino-americano para
a Grã-Bretanha até o final do século XIX23 , quando foi suplantado pela Argentina, o Brasil portanto passou a fazer parte de uma
rede que, além dos negócios diretos com as editoras européias,
muito provavelmente se valeu dos correspondentes e dos viajantes para estabelecer as rotas percorridas pelos romances até chegar aos leitores brasileiros. O mercado livreiro local, mesmo que
incipiente no iníci024 , logo se expandiu a ponto de tornar possível,
algumas décadas mais tarde, encontrar livros publicados por Aillaud
e Hachette em Paris, por Routledge e Bentley em Londres, ou
Bernhard Tauchnitz em Leipzig. Ele se mostrava, dessa forma,
extraordinariamente atualizado em relação às modas literárias européias, e adotava práticas semelhantes às da famosa Mudie's
Library 25, que incluiu a tática de anunciar sua seleta de livros nos
jornais para aquecer as vendas e acabou por se transformar na
melhor propaganda que podia haver para qualquer romance. A
biblioteca circulante de New Oxford Street possuía um Departamento de Exportação para os excedentes e recebia encomendas
não só do continente europeu, mas também de locais tão distantes
quanto São Petersburgo, Índia, China e América. 26 Seu maior rival era W.H. Smith, que abriu sua primeira banca de livros na
Euston Station, em Londres, e por volta de 1862 possuía uma
rede de 185 filiais em estações ferroviárias inglesas, fazendo negócios e entregas em toda a Inglaterra e também no estrangeiro.
O tamanho desses empreendimentos pode justificar o comentário
de Anthony Trollope em 1870: "We have become a novel-reading
people [... ]"27.
A história do acesso da burguesia à cultura letrada, no século XVIII, e, posteriormente, da classe operária ao mundo da ficção, no século XIX inglês se fizera graças à formação de um circuito de que participaram livreiros, bibliotecas circulantes e edições cada vez mais acessíveis, colocando o livro ao alcance de um
número cada vez maior de pessoas. Esses circuitos letrados foram
fundamentais na formação do leitor médio. Concorreram para isso
coleções como a Routledge's Railway Library, a Bentley's Standard
NoveIs, a The Parlour Library (com 279 títulos publicados entre
1847 e 1863) e a Routledge's Standard NoveIs, que reuniam ro-
56
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
mances tanto do século XVIII quanto do século XIX, como por
exemplo Caleb Williams, Thaddeus of Warsaw, Frankenstein,
Hungarian Brothers, Otranto, Vathek, St. Leon. A Bentley's
Standard NoveIs, cujas três séries somaram 158 volumes 28 , representou um notável avanço no processo de democratização de leitura, graças às suas edições baratas de romances conhecidos.
Michael Sadleir afirma que "( ... ) quando [os editores] lançaram a série [Bentley's Standard NoveIs] não a planejaram
deliberadamente como uma série barata de ficção popular contemporânea, mas sim como uma tentativa de registrar a fama permanente de certos romances escritos desde o grande período do
romance do século XVIII, que, entretanto, não haviam sido
republicados adequadamente até o momento, de forma barata e
acessível"29. Entretanto, o fato é que essas coleções contribuíram
decisivamente para disponibilizar obras de ficção a um contingente cada vez mais substantivo de leitores. Público para isso havia,
já que a classe operária havia começado a ganhar acesso à educação formal na Inglaterra oitocentista. (Enquanto na década de 1790
Edmund Burke estimava a dimensão do público leitor na GrãBretanha em cerca de 80.000 indivíduos, em torno de 1814 a
Edinburgh Review contabilizava não menos de 200.000 pessoas
dos setores médios da sociedade como o público para as leituras
de entretenimento e instrução.)30
Iniciada em 1831, com 126 volumes, a coleção da Bentley's
Standard NoveIs só se encerrou em 1862, constituindo-se, ainda
de acordo com Sadleir, "num marco da história da publicação de
edições baratas". Em 1849, a Routledge lançava a sua prolífica,
bem-sucedida e longeva Railway Library que, sem qualquer pretensão de ater-se a textos significativos, tinha como objetivo publicar ficção popular a preços populares. Até 1899, havia publicado 1.277 títulos, os famosos "yellowbacks", livros de formato
pequeno e baixo preço vendidos nas bancas das estações ferroviárias, para serem lidos durante as viagens de trem e que receberam essa denominação por causa de suas capas cuja cor predominante era o amareloY Acrescente-se ainda a Smith, Elder's
Library of Romance, com apenas 15 volumes, formada por ficção
completamente original e especializada nas histórias romanescas,
como o próprio título da coleção indica32 . Muitos desses livros
aqui chegaram ainda em suas edições originais, não traduzidas,
" Tendo iniciado suas
atividades com uma pequena
loja em 1844, Charles Edward
Mudie expandiu seus negócios
em 1852, tendo se tomado um
dos mais influentes livreiros do
século XIX inglês. Era
conhecido como "Leviatã
Mudie". Ver Guinevere Griest.
Mudie's Circulating Library
and the Victorian Novel.
David & Charles, [1970].
26
Ver William C. Preston.
Mudie's Library. Rep. Good
Words, October 1894;
Guinevere Griest, op. cit.
G. Griest, op. cit.[número de
página não recuperado1
27
Priorizando novas tiragens
de romances em formato
acessível e em grande escala,
essa coleção marcou época
com suas três séries: la. série
(1831-1854, com 126 títulos;
2a. série (1854-1856), com 22
títulos; 3a. série (1859-1862),
com 10 títulos, agora sob o
nome geral de "BentIey's
Popular Noveis". Ver Michael
Sadleir, XIX-Century Fiction.
28
A bibliographical record
based on his own collection.
London, Constable & Co.,
1951,2 vols.
No original: "In other words,
when they [the editors]
launched the series they did not
deliberately foresee it as a
cheap-edition series of current
popular fiction, but rather as an
attempt to register the
permanent fame of certain
noveis written since the great
period of eighteenth-century
novel-writing, but not hitherto
fittingly reprinted in handy and
cheap form". Michael Sadleir,
op. cit., vol. 2, p. 94.
29
dados podem ser
encontrados em William SI.
Clair, The Reading Nation in
300S
the
Romantic
Period.
Cambridge ,C ambridge
University Press, 2004.
A rota dos romances para o Rio de Janeiro no século XIX
" Ver Chester Topp. Victorian
Yellowbacks and Paperbacks,
1849-1905. Denver, Hennitage
Antiquarian Bookshop, 19931999,4 vols; Michael Sadleir.
Collecting "Yellowbacks"
(Victorian Railway Fiction).
Constable, London, [1938], p.
127-161.
A Smith, Elder & Co. foi
fundada em 1816eeraumadas
editoras de grande prestígio no
século XIX, tendo publicado
Charlotte Bronte, William
Thackeray, Anthony Trollope,
Elizabeth Gaskell e George
Eliot. Ver Robin Myers &
Michael Harris. A Genius for
Letters. Booksellers and
Bookselling from the 16th to
rhe 20th century. Winchester,
St. Paul's Bibliographies;
Delaware, Oak Knoll Press,
1995. Foi a Smith, Elder & Co.
que publicou o Catálogo da Rio
de Janeiro British Subscription
Library.
31
lJ Os dados podem ser
encontrados em Richard D.
Altick. The English Common
Reader. A Social History ofthe
Jfass Reading Public, 18001900. 2nd ed. Columbus, Ohio
State University Press, 1998.
Ver Appendix B, p. 383-384.
" Romances publicados em
série ao preço de um penny
(moeda inglesa).
57
como é o caso de Marryat, W.H. Ainsworth e G.P.R. James (dignos representantes da Railway Library), dos anônimos The
Disinherited and The Ensnared e The Mascarenhas, da Smith,
Elder & Co. Outros, chegaram em tradução, vindos de Lisboa,
Paris, Bruxelas ou Leipzig, como é o caso de M. Banim, M.E.
Braddon, Wilkie Collins, etc.
A aposta na edição ou reedição em coleções baratas dos
romances favoritos do público (entre os 279 títulos da The Parlour
Library, por exemplo, se reeditaram romancistas como Elizabeth
Gaskell, Jane Austen, Elizabeth Inchbald, Anne Bronte, Jane
Porter, etc.) rendeu vendas que nos deixam espantados, mesmo
dentro dos padrões dos dias de hoje: Guy Mannering, de Scott,
vendeu 2.000 cópias no dia seguinte ao de sua publicação; Rob
Roy, também de Scott, vendeu 10.000 numa quinzena e mais de
40.000 até 1836; Pickwick Papers, de Dickens, vendeu um total
de 800.000 exemplares até 1879; A Christmas Carol, também
de Dickens, vendeu 16.000 só no dia de sua publicaçã033 • São
números que impressionam não só como indicadores de verdadeiros fenômenos editoriais - os best-sellers do século XIX mas também porque são prova concreta da existência de um círculo cada vez maior de leitores e de um processo inegável de
democratização do acesso ao livro.
As edições baratas não se restringiram aos romances do século XVIII ou aos escritores mais consagrados como Scott e
Dickens. Aos poucos, elas deram lugar à produção de novos tipos
de ficção para atender à mudança de gosto dos leitores das classes
mais baixas. Os velhos romances reeditados em novas tiragens
haviam prestado um bom serviço mas decerto devem ter começado a parecer fora de moda aos novos leitores citadinos - sua linguagem era destoante e soava antiquada, a vida que retratavam
parecia estranha e era necessário um estilo mais contemporâneo,
mais próximo e adequado aos novos tempos.
Decorrente da industrialização e da migração do campo para
a cidade, a formação de uma nova cultura urbana, se deu início a
uma era de ficção de massa, nas décadas de 1840 e 1850, confirmou no. gosto popular os nomes de Ann Radcliffe, cuja influência
na ficção popular foi enorme, e de Walter Scott, cujo Ivanhoe foi
onipresente e gozou de uma popularidade que atravessou o século. As penny-issue novels34 , embora tenham elegido outros temas
58
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
e interesses, mais afeitos a essa cultura urbana, fundiram o gótico
e o histórico e imitaram exaustivamente esses modelos. Segundo
Louis James 35 , The Pickwick Papers (1836-7) de Dickens foi o
livro mais plagiado de seu tempo. As penny-issue noveis estão
fora do escopo dessa discussão, mas o que interessa ressaltar aqui
é que, com freqüência, foram as edições baratas dos romances
populares na Inglaterra que chegaram ao Rio de Janeiro.
Até 1829, as vinte e cinco Waverley noveis de Walter Scott
haviam vendido 500.000 exemplares e até 1860, em torno de 2 a
3 milhões 36 • Scott também teve papel fundamental na consolidação de um formato de edição que se iniciou com seu Waverley, em
1814. Como significava bons negócios para as bibliotecas
circulantes e gabinetes de leitura porque podia ser alugado para
três leitores simultaneamente, o romance em três volumes virou
moda pelas mãos de Charles Edward Mudie, que não só ajudou a
difundi-lo como lhe conferiu status, dignidade literária e seriedade, em comparação com os "yellowbacks", considerados leitura
leve e de entretenimento. Mais importantes, porém, foram as conseqüências que esse formato teve na própria estruturação dos romances pelos romancistas, que se viram obrigados a levá-lo em
conta e passaram a adequar suas narrativas à extensão dos "threedeckers": o uso de incidentes, a tendência a longas descrições, os
enredos múltiplos, a ênfase nos retratos das personagens, a riqueza de detalhes, as digressões autorais, as reflexões ou as conversas com o leitor. Não se trata, como se poderia supor, de simples
pormenores, uma vez que esses procedimentos serão aqueles que
se tornarão familiares também para os nossos escritores, desse
lado de cá do Atlântico.
Enquanto Richard Bentley logo adotou, também ele, o formato dos três volumes mas tratou de baixar os preços, e George
Routledge e W. H. Smith apostavam nas "railway libraries", os
editores franceses imediatamente reagiram com edições baratas
(caso de Charpentier, Levy e Hachette, entre 1838 e 1855)37 e
com as coleções do "chemin de fer"38 . Assim como os ingleses,
também eles haviam se aberto para o estrangeiro (Gosselin,
Bossange e Didot eram livreiros exportadores), chegando alguns
inclusive a se instalar nas colônias, ou ex-, como foi o caso das
falTI11ias Bossange e Garnier, no Rio de Janeiro. 39 Os irmãos Michel
e Calman Levy, por exemplo, criaram uma biblioteca familiar a
Louis James. Fictionfor the
working man, 1830·1850.
35
London, Penguin, 1974.
Ver WiIliam St. Clair, op.cit.,
ver quadro à p. 221.
36
37 Jean. Yves MoIlier. L'Argent
et les Lettres. Histoire du
Capitalisme d'Édition, 18801920. Paris, Fayard, 1988.
Em lo de abril de 1852,
Louis Hachette propôs-se, em
nota às Compagnies de
Chemins de Fer, a publicar o
sucedâneo francês das "railway
noveis": "MM. L. Hachette et
Cie ont eu la pensée de faíre
toumer les 10isirs forcés et
l'ennui d'une longue route au
profit de I' agrément et de
l'instruction de tous." Cf. Jean
Mistler, La Librairie Hachette
de 1826 à nos jours. Paris,
Hachette, c. 1964, p. 123. 40
Mollier, L'Argent et les Lettres,
p.365. Ver também Jean
MistIer, op. cit., p. 269.
38
Baptiste-Louis Gamier (18231893) foi o irmão que se
estabeleceu no Rio de Janeiro em
I 844,segundoinforma Laurence
Hallewell. O Livro no Brasil. são
Paulo,EDUSP, 1985,p. 127-128.
Martin Bossange, por sua vez,
juntamente com seus dois filhos
Adolphe e Hector, forma urna
empresa familiar com ramificações internacionais, com lojas
emLeipzig,Madri,noMéxico,em
Montréal, Nápoles, Nova Iorque,
OdessaeRiodeJaneiro. VerDiana
Cooper-Richet. L'imprimé en
Iangues étrangeres à Paris ao XIXe
siecle: lecteurs, éditeurs, supports.
39
In: Revue française d'/ústoire du
livre, ns. 116-117, 3e e 4e
trirrestres, 2002, p. 203-235 (p. 213).
A rota dos romances para o Rio de Janeiro no século XIX
40 Mollier, L'Argent et les
Lettres, p. 365. Ver também
Jean Mistler, op cit., p. 269.
A Revue Britannique de
março de 1840 ressaltava a
importância dos colporteurs e
da colportage na distribuição
dos livros. Ver nota 16.
41
42
Jean-Yves Mollier, op. cito
Ver Jean-François Botrel. La
librairie "espagnole" en France
au XIXe siecle. In: Jean-Yves
Mollier. Le Commerce de la
Librairie en France au X/Xe
siecle, /789-1914. Versailles,
IMEC Éditions; Paris, Éditions
de la Maison des Sciences de
I'Homme, p. 292-3. Nota
explicativa: quintal é uma
antiga medida de peso
equivalente a 4 arrobas; um
quintal métrico equivale a cem
quilogramas.
43
Frédéric Brubiec lb! Publishing
Industry and Printed Output in
Nineteentb-Centwy France. In:
Kennetb Carpenter (ed.). Books
andSociety in History. New Yorlc,
R.R. Bowker, 1983, p. 199-230
[p.205].
44
Jean-Yves Mollier, L'Argent et
/es Lettres, p. 91.
45
46Williamst. Oair,op.cit., p. 296297. Segundo Diana CooperRichet, Giovanni Antonio
GaIignani insta1anocentm de Paris
uma livraria, um gabinete de
leitura e uma casa editora, consagrados à literatura britânica e a
jornais em inglês, enquantoLouisClaude Baudry lança. em 1829, a
coleção Ancient and modem
BritishAuthors, com 32 títulos. A
partir dos anos 30, Galignani e
Baudry iriam se associar, oferecendo aos leitores Walter Scott,
Maria Edgeworth, Dickens e
Thackeray. Ver L'imprimé en
languesétrangêresà Paris au XlXe
siecle: lecteurs, éditeurs, supports.
In: Revue française d'histoire du
livre,ns.1l6-1l7,3ee4etrimestres,
2002, p. 203-235.
59
um franco o volume e, em 1889, seu catálogo contava com 1.414
títulos de 277 autores, aí incluídos Dickens, Ann Radcliffe e G.R.
Reynolds,40 Enquanto uma rede de colporteurs41 e de viajantes
comerciais ou vendedores itinerantes (os "commis voyageurs")
era o ponto de contato entre os comerciantes e os clientes e consumidores e garantia as exportações para a América do Sul durante o século XIX42, os números demonstram que no começo do
século XX a França já havia exportado para a América Latina
"(Argentina, México e Brasil, essencialmente) uma média de 1.100
quintais métricos de livros em línguas estrangeiras ou mortas".43
Paris, centro das modas, tinha um público leitor capaz de
transformar em best-seller qualquer aventura literária44 e, ao final
da guerra de 1815, tornou-se um dos grandes centros de publicação de textos em língua inglesa. Enquanto os irmãos Firmin Didot
tinham a propriedade literária das obras de Scott45 , Baudry publicava textos em inglês e, já ao final da década de 1820, os novos
romances ingleses eram vendidos em Paris no prazo de três dias
de sua publicação em Londres, em edições de boa qualidade e por
um preço quatro vezes menor que o britânico. Também se tornaram comuns os acordos e as sociedades, como a de Baudry e
Galignani, ou a de Firmin Didot e Hachette, com fins de
compartilhamento da produção e distribuição dos livros. Entre
1830 e 1850, Baudry e Galignani ofereciam um bom catálogo de
literatura inglesa recente46 e o mesmo Baudry, assim como Aillaud
e Pillet Ainé, publicava ainda traduções de romances em português, Constata-se, dessa maneira, o quanto esses livreiros e editores
contribuíram para as trocas e transferências culturais e como,
mesmo que indiretamente, exerceram um papel fundamental no
processo de difusão e disseminação de autores e romances em
circuitos ml iro mais amplos e territórios muito mais distantes do
que o dos países europeus.
Cada uma das casas editoras tem, obviamente, sua história.
Para ilustrar esses caminhos tortuosos do romance pelo mundo,
valho-me dos casos mais representativos no que diz respeito àquele
conjunto de 502 romances ingíeses que chegaram ao Rio de Janeiro no século XIX, O primeiro abarca um conjunto de títulos
que, embora tenham sido publicados por editoras diferentes, representa a participação inglesa nesse mercado, com suas inventivas soluções para a democratização do livro. Refiro-me especifi-
60
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
camente às edições populares da Routledge, da Chapman and Hall
(1849-1902), da Bentley, da J.S. Pratt e da S. Fisher, com uma
contribuição diferenciada mas tendo em comum o fato de estarem
todas envolvidas na produção de encadernações baratas. De todos, talvez George Routledge (1812-1888) seja o exemplo mais
paradigmático. Tendo começado suas atividades como livreiro em
1836, Routledge já em 1844 havia se tomado editor, publicando
tanto grandes autores quanto romancistas menores, e também obras
estrangeiras em inglês, como as de Lesage, Eugene Sue, Balzac,
Cervantes e Dumas. 47 "Imitação deliberada e não totalmente escrupulosa da ParIour Library", editada por Simms & M'Intyre de
Belfast e cujo propósito era difundir boa literatura num formato
elegante e barat048 , a bem-sucedida Railway Library, a um shilling
o volume reimpresso, foi a versão de Routledge para aquela série.
Tacada certeira, sua iniciativa de associar o símbolo do progresso
e modernidade da Inglaterra vitoriana e industrial - o trem, as
ferrovias e as viagens de trem - e o romance sobreviveu meio
século, até 1899, e foi imitada do outro lado do Canal da Mancha
por Louis Hachette e em Portugal pelo editor Manuel Antonio de
Campos Júnior, com sua coleção "Leitura para Caminhos de Ferro", de 1863. 49 Tanto em Londres quanto em Paris, esforços similares em estabelecer uma política de preços baixos e edições populares criaram novos parâmetros editoriais e produziram os exemplares que atravessaram o oceano e vieram aportar no Rio de Janeiro. Seriam eles também destinados aos eventuais viajantes das
estradas de ferro brasileiras, implantadas a partir do decênio de
1850 pelas companhias inglesas?50
O segundo caso diz respeito à conhecida Casa Hachette.
Responsável por uma coleção de 150 volumes vendidos a um franco cada - a Bibliotheque des Meuilleurs Romans Étrangers -,
Louis Hachette ajudou a divulgar na França um conjunto de autores estrangeiros, entre os quais os ingleses ocupavam um lugar de
honra: Bulwer-Lytton, CharIotte Bronte, Benjamin Disraeli,
Mayne-Reid, William Thackeray e CharIes Dickens. É este último
que me interessa particularmente aqui, porque representa um caso
emblemático das mudanças que passavam a ocorrer no mundo da
edição. Desde 1854, algumas obras de Dickens figuravam no catálogo da Bibliotheque de Chemins de Fer e, desde as décadas de
1830 e 1840, vários de seus romances podiam ser lidos em fran-
Ver Chester Topp. Victorian
Yellowbacks, vol I.
47
Michael Sadleir, op. cit.,
volume lI, p. 167.
48
Ernesto Rodrigues. Cultura
Literária Oitocentista. Porto,
Lello Editores, 1999, p. 13.
49
britânicos estiveram
envolvidos na construção e
operação das ferrovias brasileiras desde o início (a
primeira linha foi inaugurada
em 1854) e nos últimos anos do
Império havia vinte e cinco
delas controladas por grupos
britânicos em diversos cantos
do país, como por exemplo a
The São Paulo Railway, The
Minas and Rio Railway
Company, The Recife and São
Francisco Railway, etc. Fonte:
Catálogo da Exposição "Os
Britânicos no Brasil", São
Paulo, Centro Brasileiro
Britânico, 2001.
500S
-\ rota dos romances para o Rio de Janeiro no século XIX
61
cês, seja em traduções livres como a de Mme Niboyet para As
Aventuras de Mr. Pickwickem 1838, ou o David Coppeifield que
Pichot havia traduzido para a Revue Britannique, tendo como
ponto comum entre todas elas a infidelidade das traduções. Para
fazer frente aessa situação, emjaneiro de 1856 Dickens e Hachette
assinam um contrato de publicação e logo depois Paul Lorain é
escolhido para supervisionar o trabalho de tradução da série de 28
romances do escritor inglês, iniciando-se uma parceria estreita entre
autor, editor e tradutores que vai render frutos no sentido de uma
maior profissionalização dessas relações. Além disso, Dickens assume o papel de conselheiro na escolha dos romances ingleses
para tradução e coopera com Hachette nos contatos que o editor
francês busca estabelecer com outros autores ingleses da época.
Em minuta de carta a Dickens, datada de maio de 1856, Hachette
declarava:
'I Citado por Jean Mistler,
op.cit., p.l60. Devo todas as
informações referentes à Casa
Hachette a essa obra e a JeanYves Mollier, Louis Hachette
11899-1864). Le fondateur
d'un empire. Paris, Fayard,
1999.
Sobre esse tópico, ver
Herman Dopp. La Contrefaçon
des Livres Français en
Belgique,J 815-1852. Louvain,
Liv. Universitaires, Uystpruyst
Éd., 1932; François Godfroid.
Nouveau Panorama de la
Contrefaçon Belge. Bruxelles,
Académie RoyaJe de Langues
et de Littérature Françaises,
[1986].
52
Je désirerais maintenant étendre ces relations [avec Milady
Fullerton, auteur de Lady BirdJ aux autres écrivains dont les
ouvrages sont les plus estimés en Angleterre et son de nature à
être le mieux accueillis en FranceY
Como seus sucedâneos, Hachette também tinha uma atividade importante na exportação por meio do Départment Étranger
Hachette (D.E.H.) e especial interesse na Inglaterra e Alemanha,
mantendo representantes e viajantes e às vezes até mesmo seus
dirigentes em andanças pelo mundo, a partir do final do Segundo
Império. O dado de que os esforços da casa editora se dirigiam
sobretudo à América Latina pode ser comprovado pelo fato de
que a coleção de romances ingleses em circulação no Rio de Janeiro no século XIX publicados por Hachette consta de 44 títulos, a maior por parte de um só editor.
Haveria ainda que ressaltar a presença e a participação das
contrafações belgas, nessa coleção. A controvérsia que cerca a
propriedade ou impropriedade do uso do termo e sua definição é
conhecida e exige uma certa cautela na sua aplicação. Associada
ou não à idéia de fraude e plágio, vista como imoral e corruptora
do gosto, a contrafação foi fenômeno mundial e não apenas belga,
favorecido pela ausência de regras e de regulamentação internacional quanto a direitos autorais e legais. 52 Assim, tanto Aillaud, em
62
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
Paris, quanto Bassompiere, em Liege, os Baudoin freres e Berthot,
em Bruxelas, Chapman, em Londres, Dujardin em Gand e
Tauchnitz em Leipizig, podiam ser incluídos na lista dos
contrafacteurs. No entanto, foram os belgas que souberam tirar
proveito da maior liberdade de imprensa vigente nos Países Baixos, livres da censura e dos impostos pesados que marcavam as
atividades na França sob Napoleão, e a contrafação belga viveu
seu período de apogeu entre 1815 e 1850, quando entrou em
declínio graças à assinatura da primeira convenção franco-belga
de direitos do autor, em 1852. "Une réproduction à bon marché",
conforme a definiu Herman Depp 53 , a contrafação belga adotou o
formato reduzido (in-12, in-18 ou in-32) no lugar do in-8 D
parisiense, com papel de qualidade inferior e tipos mais cerrados.
E, embora a contrafação belga de livros em língua inglesa tenha
sido modesta, dada a universalidade do francês como língua de
cultura, foram vários os livreiros belgas que publicaram autores
ingleses: em 1825, P.J. de Matt de Bruxelas tinha em catálogo os
romances de Walter Scott; em 1835, Wahlen publicou sua
"Collection d' Auteurs Anglais Modernes", além de Banim,
Blessington, Gore e Radcliffe; Méline ou Wahlen publicaram ainda Bulwer, Dickens, Edgeworth, Goldsmith, G.P.R. James,
Marryat, Scott, Trollope.
Os franceses, é evidente, se ressentiram da concorrência
belga, mas, como Emile de Girardin deixou claro, "La Bélgique a
fait ce qu'elle avait le droit de faire, et ce que la France n'avait
aucun scrupule de pratiquer à l' égard des livres anglais ... "54 , o que
dá a medida de quão generalizada era a prática nos dois países.
A Revue Britannique de março de 1840 comentava:
MM. Galignani et Baudry, de Paris, sont les seuls qui, à force
de soins et de persévérance, soient parvenus à donner à la
contrefaçon des ouvrages anglaises une certaine importance.
Ces éditeurs ont pour clientelle les trente mille familles anglaises
qui habitent la France, la Suisse, la Savoie, l' ltalie et les diverses
parties de l' Allemagne ( ... )55
Vindos de Bruxelas, são trinta e três os títulos de romances
ingleses que compõem o acervo fluminense, dos quais trinta e um
em francês e dois em inglês, o que apenas confirma a avaliação da
mesma Revue Britannique a respeito da predominância flagrante
53
Herman Dopp, op. cit., p. 12.
54
Citado por Herman Dopp, op.
cit, p. 12.
55
Revue Britannique, mars
1840, p. 60-61.
.-\ rota dos romances para o Rio de Janeiro no século XIX
56 William Todd & Ann
Bowden.Tauchnitz International
Editions in EnglishJ 84J-1955. A
Dibliographical history. New Yolk,
BibliographicalSocietyofAm'rica,
1988, p. 3.
57 Idem, ibidem, p. 770 e 1022.
63
e universalidade da língua francesa, considerada como "instrument
de haute sociabilité" no período. Como dizia o autor (não identificado) do artigo, os editores belgas sabiam muito bem como explorar o filão que a apatia dos franceses parecia deixar de lado,
aproveitando-se ainda do fato de que "aujourd'hui, Londres
consomme par semaine de 12 [sic] à 1.500 francs de contrefaçons
belges". É curioso lembrar que a própria Revue Britannique, originalmente editada em Paris, tinha sua similar belga, com uma
tiragem de 1.200 exemplares.
Por outro lado, os títulos em inglês, originários de fora da
Grã-Bretanha, se concentram nas mãos de outro dos casos interessantes que vale a pena destacar. Trata-se de outro pequeno
conjunto de 24 romances, que também circularam no Rio de Janeiro naquele período, todos produzidos pelo mesmo editor, um
alemão de Leipzig. Bernhard Tauchnitz (1816-1895) fundou a
editora em 1837 e a partir de 1841 passou a publicar uma coleção
de autores britânicos e norte-americanos em inglês, um costume
bem-estabelecido no continente, como o provava a parceria entre
as firmas de Baudry e Galignani. 56 A editora encerrou suas atividades apenas em 1943, ao ser destruída em um bombardeio. Naquele ano, a coleção havia atingido a impressionante cifra de 5.370
volumes, a maior parte deles de ficção. 57
O principal alvo de Tauchnitz não era o mercado britânico,
mas o próprio continente europeu, e as ferrovias faziam o transporte de seus livros para diversos pontos da Europa, para dali
serem enviados para o exterior: de Bremen para os Estados Unidos, de Dresden para Viena, de Paris, para a Espanha, Portugal,
África e Oriente Próximo. Por contrato com os autores, os volumes não podiam ser exportados para a Grã-Bretanha, mas acabavam lá chegando pelas mãos de turistas britânicos que os compravam durante suas viagens ao continente. Uma oferta de publicação vinda de Tauchnitz significava uma consagração, e não nos
surpreende saber que Dickens, Marryat e Bulwer-Lytton foram
alguns dos romancistas que autorizaram o editor alemão a publicálos. Pelham, or the Adventures of a Gentleman, de Bulwer Lytton,
e The Posthumous Papers ofthe Pickwick Club, deDickens, inauguraram a coleção em 1842, que anunciava como seus traços distintivos a correção do texto, a elegância exterior e os baixos preços, e podia se gabar de que, muitas vezes, a "edição internacio-
6.+
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
nal" era lançada muito antes de sua contraparte nacional. Segundo dados de 1937, a firma havia produzido mais de 40 milhões de
exemplares e o legendário Barão de Tauchnitz havia recrutado
6.000 livreiros em todo o mundo. 58
Quer seja nas ediçõés de Hachette, de Tauchnitz ou da
Routledge Railway Library, ou em contrafações belgas, os romances ingleses que circularam no Rio de Janeiro ao longo do século
XIX ajudam a contar a história dos circuitos, rotas e caminhos
percorridos por esses livros a partir dos diversos centros europeus em seu longo percurso até os portos brasileiros. O que eles
nos mostram é que os mercados narrativos de que fala Moretti
são efetivamente sem fronteiras. Por ocasião do centenário de
Tauchnitz, um outro editor, Walter Hutchinson (1887 -1950), prestou-lhe uma homenagem, lembrando-lhe as realizações:
There are no boundaries in literature - neither race nor creed,
and books, I sometimes think, fonu probably the best basis for
that true internationalism which it is hoped will one day be
established in the world. Baron Tauchnitz, whose Centenary it
is to be fittingly celebrated throughout the world, was, in my
opinion, one of the greatest of embassadors, for he made
available to millions of people the works of the greatest authors
af alI nations. Baron Tauchnitz's brilliant idea developed into
an internatianal institution and few men have left behind them
in their work a more enduring memoriaP9
Mesmo que se ouça nessas palavras um certo exagero
encomiástico, característico dessas ocasiões, é forçoso reconhecer que, assim como ocorreu no caso de Tauchnitz, o grande feito
desses homens foi ligar os continentes por meio dos livros. Foi
graças a esses espíritos empreendedores, ao seu faro para os negócios e à sua ousadia que os livros se tornaram mais baratos, que
as tiragens aumentaram e que obstáculos foram transpostos para
que os romances chegassem às mãos de seus leitores, mesmo que
eles fossem em pequeno número e estivessem distantes, do outro
lado do oceano.
" Cf. Tauchnitz-Edition. The
British Library, London, 1992.
59
Idem, ibid.
65
A crônica na imprensa periódica
oitocentista : Machado de Assis e a
formação do público leitor
Patrícia Kátia da Costa Pino
(UESC)
I. Oralidade e jornalismo
1 CAMPOS, Humberto de.
"Elogio do Analfabetismo". 1.1.:
Diário da Tarde. Ilhéus, 28 de
março de 1933,. p.2
, Idem.
No dia 28 de março de 1933, o escritor Humberto de Campos publicou, na página dois do Diário da Tarde, periódico ilheense
de destaque na sociedade da época, o protesto "Elogio do Analfabetismo", de onde destaco o fragmento a seguir: "Brasileiro que
sabe ler o nome não pega mais no cabo da enxada, abandona a
lavoura, e vem para a cidade ... "l . Sua concepção de ordem social,
cultural e econômica fica clara no texto em questão: há indivíduos
privilegiados - os donos das terras - que podem e devem estudar,
dominar as letras e os cálculos; há, por outro lado, aqueles que,
desprovidos da posse das mesmas e de quaisquer outros bens,
devem contentar-se em "servir aos senhores". Campos termina a
crônica: "Quem planta alfabeto não apanha feijão"2 . Ou seja, para
esse intelectual, poucos deveriam ler e escrever, e muitos deveriam, com seu suor cotidiano, sustentá-los, na eterna reprodução
de uma ordem social patriarcal, capitalista e, mais que tudo, cruel.
Esse patriarcalismo brasileiro remonta aos tempos coloniais
e vem do outro lado do oceano. A Metrópole construiu, nos séculos em que explorou nossas riquezas materiais e humanas, um país
dividido entre os que tinham e sabiam e os que não tinham e não
conseguiam nunca saber. Não tínhamos escolas, ou as tínhamos
em pequeníssimo número; não tínhamos imprensa; não tínhamos
meios de produção e ampla circulação de conhecimento, enfim.
Somente a partir de 1808, o Brasil conquistou o direito de
contar, oficialmente, com tipografias, direito este que, nos sendo
66
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
negado nos séculos precedentes, reduziu nossas letras impressas
à marginalidade. Com a chegada de D. João VI e a transferência
da Corte para cá, entramos, tardiamente, na era da imprensa. Mas,
tudo o que é impresso demanda leitura, supõe-se. E como, até
então, o impresso era raro, a habilidade da leitura era um tanto
ociosa, pelo menos, no que tange aos grupos populares e, em
particular, às mulheres e aos negros.
Na parte introdutória deA letra e a voz, Paul Zumthor estuda três formas de oralidade: a primária, própria de grupos analfabetos, sem contato algum com a escrita; a mista, que sofre influência externa da escrita; a terceira, chamada segunda, que se refaz pelo papel e pela tinta. Assim ele distingue cultura escrita
(possuidora de uma escritura) e cultura letrada, na qual " ... toda
expressão é marcada mais ou menos pela presença da escrita... "3
Mesmo voltadas para a Idade Média européia, as reflexões
de Paul Zumthor abrem caminho para que se reflita sobre as práticas culturais oitocentistas brasileiras. Nós não eliminamos radicalmente a oralidade; aqui, escrita e oral partilham a cultura. A
voz surge como alternativa para o olho, permitindo que a leitura
fique na interseção visual/auditivo e contactando diretamente o
universo oral do leitor.
a Brasil do início do século XIX era carente de editoras,
livrarias e periódicos. Com o correr do século, a situação muda
em parte, surgem livreiros, editores de periódicos4 • Mas os leitores, esses espécimes raros, demandavam uma verdadeira empreitada de caça por parte dos produtores de bens culturais impressos. Essa precariedade, se criou obstáculos para a formação de
grupos de leitores, por outro lado, viabilizou o aproveitamento
dos protocolos de comunicação oral que reinavam por estas plagas,
deu margem à sua incorporação aos padrões do impresso, aproximando este último de possíveis receptores.
Tal incorporação, como a entendo, significou, de certa forma, fazer do papel e da tinta substitutos do corpo e da voz dos
contadores de causas, dos porta-vozes das instâncias administrativas etc, num processo de modernização das ações de produção e de
recepção. Se, nas práticas culturais marcadas pela oralidade, o tom,
o gesto, dão suporte à voz, no âmbito das práticas letradas, tornouse necessário o estabelecimento de instrumentos que orientassem a
recepção do impresso, mediando o trânsito do oral para o escrito.
3
ZUMTHOR, Paul. A letra e
a voz: a "literatura" medieval.
Tradução de Amálio Pinheiro e
Jerusa Pires Ferreira. São
Paulo, Companhia das Letras,
1993.p.18
4
PINA, Patrícia Kátia da Costa.
Literatura e jornalismo no
oitocentos brasileiro. Ilhéus,
EDITUS, 2002. p.29-59.
A crônica na imprensa periódica oitocentista: Machado de Assis e a formação 00 público leitor
5
LAJOLO, Marisa e
ZILBERMAN, Regina. A
formação da leitura no Brasil.
São Paulo, Ática, 1996. p. 16
67
Segundo Marisa Lajolo e Regina Zilberman, " ... só existem o
leitor, enquanto papel de materialidade histórica, e a leitura, enquanto prática coletiva, em sociedades de recorte burguês, onde se
verifica no todo ou em parte uma economia capitalista."5 Leitor e
consumidor são, portanto, termos equivalentes no dezenove, não
só brasileiro. Enquanto indivíduo de carne e osso, o leitor do
dezenove é o mantenedor do comércio cultural: orientar seu gosto,
estabelecer modos de habituá-lo a determinado tipo de texto e/ou
de publicação eram ações autorais/editoriais importantíssimas.
Nesse contexto, o jornalismo foi fundamental. Suas características - periodicidade, universalidade, variedade de temas e
matérias, atualidade, difusão - fazem dessa prática cultural um
grande instrumento de agregação de público (leitores e/ou ouvintes). O jornalismo desenha o espaço social, marca seus contornos,
suas áreas de interseção; tudo, nas páginas dos jornais, tem uma
seqüência, obedece a uma ordem. Dessa forma, os produtores de
cultura impressa, especificamente, os tipógrafos e editores de jornais, desde os inícios do século XIX, constroem suas páginas, a
fim de que pudessem atender às necessidades e expectativas dos
indivíduos que, em função da nova ordem social e econômica,
passavam a ser vistos como consumidores em potencial.
Em 1859, Machado de Assis publica, no Correio Mercantil,
uma apologia ao Jornal:
Tudo se regenera: tudo toma uma nova face. O jornal é um
sintoma, um exemplo desta regeneração. A humanidade, como
o vulcão, rebenta uma nova cratera quando mais fogo lhe ferve
no centro. A literatura tinha acaso nos moldes conhecidos em
que preenchesse o fim do pensamento humano? Não; nenhum
era vasto como jornal, nenhum liberal, nenhum democrático,
como ele. Foi a nova cratera do vulcão. 6
o
ASSIS, Joaquim Maria
Machado de. "O Jornal e O
Livro". In.: --o Obra
completa. 5ed. Rio de Janeiro,
Nova Aguilar, 1985. V.3.
p.943-944
6
Aos vinte anos de idade, o Bruxo do Cosme Velho lança um
de seus feitiços, através do texto "O Jornal e O Livro", do qual foi
retirado o fragmento acima. O feitiço a que me refiro é a confissão
pública de sua paixão pelo jornalismo, paixão que ele almejava
contagiante.
Referindo-se ao jornal como uma alavanca de Arquimedes
no que tange à inteligência humana, é à possibilidade jornalística
de penetração social que Machado de Assis rende homenagem.
68
Revista Brasileira de Literatura Comparada, 0.9, 2006
Para enfocar a importância do jornalismo, o romancista fluminense
faz uma breve reflexão sobre as relações entre a imprensa e o livro:
o livro era um progresso; preenchia as condições do pensamento humano? Decerto; mas faltava ainda alguma cousa; não
era ainda a tribuna comum, aberta à família universal, aparecendo sempre com o sol e sendo como ele o centro de um sistema planetário. A forma que correspondia a estas necessidades,
a mesa popular para a distribuição do pão eucarístico da publicidade, é propriedade do espírito moderno: é o jornaP
o livro era pouco: de circulação restrita, de manuseio difícil, interessando diretamente quase que apenas a um grupo seleto
de indivíduos cujos hábitos culturais foram estabelecidos quer no
convívio escolar e acadêmico, quer no convívio social com outros
indivíduos de formação cultural erudita, caso do próprio Machado de Assis, o livro só atendia em parte aos anseios de difusão
cultural próprios desse escritor e de seus contemporâneos.
Reside aí a importância do jornal: diários, semanais, quinzenais ou mensais, os periódicos vinham preencher uma imensa lacuna no Brasil oitocentista - vinham mediar as relações entre a
cultura oralizada, ou auditiva, que se constituiu e firmou no Brasil
Colônia, e a cultura letrada, pautada pela inserção e circulação do
impresso como mídia veiculadora e organizadora do pensamento.
Erafáciller um jornal: suas folhas se dobravam, era pouco volumoso, podia ser guardado até nas algibeiras. Podia ser lido na
esquina, compartilhado por muitas pessoas. O jornal incluía, assim, os trânsitos cotidianos oitocentistas em suas possibilidades
de apropriação, as quais já estavam previstas e configuradas em
sua materialidade, em sua forma.
Na teorização de Luiz Costa Lima, há uma distinção entre
oralidade e auditividade. O primeiro conceito é por ele entendido
como próprio de culturas desconhecedoras da escrita, as quais
têm na palavra falada o instrumento maior para a construção e a
manutenção da memória e das tradições grupais. O segundo, por
sua vez, caracteriza o uso de estratégias de aprendizagem, produção e circulação de conhecimentos de natureza oral, por parte de
culturas que conhecem e dominam a escrita. A auditividade, assim, traz um peso negativo, pois implica o desprestígio do escrito
e do impresso. Para o referido pesquisador, " ... a cultura auditiva
,--o op. cit., p.945
A crônica na imprensa periódica oitocentista: Machado de Assis e a formação do público leitor
LIMA, Luiz Costa. "Da
Existência Precária: O Sistema
Intelectual no Brasil". In.:-.
Dispersa demanda: ensaios
sobre literatura e teoria. Rio de
Janeiro, Francisco Alves, 1981.
p.16
8
é profundamente uma cultura de persuasão. Mas da persuasão
sem o entendimento. Donde, da persuasão sedutora."8 Considerando a cultura brasileira como marcada pela auditividade, Luiz
Costa Lima a caracteriza como uma espécie de reino do espetáculo, onde viceja o ornamental e ilusório. Como se organizaria a
empresa jornalística nesse Brasil espetaculoso?
Ao jornal caberia a tarefa de estabelecer um universo de
receptores, a partir daquilo que era vivenciado no cotidiano da
sociedade. Os antecessores do jornal diário - dentre eles destaque-se a leitura coletiva, em praça pública, de ordens, leis, avisos
oficiais - supriram, por alguns séculos, as necessidades de comunicação dos que aqui viviam e contribuíram para que se estabelecesse uma tradição de oralidade. O jornal dialoga com as marcas
deixadas por essa tradição, revi sita-a e a coloca em interação com
as mudanças culturais trazidas pelo século XIX.
Trata-se de um processo por demais complexo, no qual o
jornalismo brasileiro tenta se inserir desde 1808, com a chegada
da Família Real, a Imprensa Régia, a Gazeta do Rio de Janeiro e
o Correio Braziliense, tendo, a princípio, Portugal como referência e, com o periódico de Hipólito da Costa, o Brasil como núcleo
explícito de suas tentativas de construção de um grupo receptor
expressivo, que consumisse o produto cultural, fazendo-o circular mais ampla e livremente.
lI. O jornal e sua importância como suporte da escrita
Para Machado de Assis,
9 ASSIS, Joaquim Maria
Machado de. Op. cit., idem.
o jornal apareceu, trazendo em si o gérmen de uma revolução.
Essa revolução não é só literária, é também social, é econômica, porque é um movimento da humanidade abalando todas as
suas eminências, a reação do espírito humano sobre as fórmulas existentes do mundo literário, do mundo econômico e do
mundo social. 9
Além de mudar as práticas de produção literária, e isso por
envolver um público amplo, "democrático", diferente das elites
habituadas ao consumo do livro, o jornal - e os demais periódicos, acrescente-se - abalaria as estruturas das sociedades a ele
69
70
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
sujeitas. E por que tal convicção? No Brasil, especialmente, porque o jornalismo, na ótica machadiana, efetuaria um processo de
educação informal, levando esse novo público, historicamente
habituado aos ornamentos discursivos que incentivavam a crença
e a adesão às idéias alheias, a fazer contato com uma maneira de
produzir e divulgar bens culturais cuja ênfase vai para o individual, o particular, o reflexivo.
Cumpre ressaltar que a questão não é problematizar uma
possível ameaça ao livro pela "popularidade" do jornal. André
Belo assinala que
o sentimento de que o livro estava ameaçado apareceu pela
primeira vez na segunda metade do século XIX, no momento
em que, por razões econômicas, culturais e tecnológicas, a leitura dos jornais se popularizou, chegando a novas franjas de
leitores que não liam livros habitualmente. 10
As relações entre livro e jornal medem-s~ exatamente pelo
tipo de público a que cada uma dessas mídias atende, pelos usos a
que cada uma dessas mídias pode se submeter. O livro tem um
leitor raro no Brasil Colônia e no Brasil Império, raro por inúmeras razões: pouca escolaridade da população, desprestígio histórico da leitura em favor da audição, preço das publicações etc. Para
Marisa Lajolo e Regina Zilberman, " ... 0 livro configura-se como
lugar em que a noção de propriedade mostra a cara, conferindo
visibilidade a um princípio fundamental da sociedade capitalista.
construída a partir da idéia de que bens têm donos, fazem parte
das transações comerciais ... "1l O livro é patrimônio, é bem durável, pertence a uma ordem social ligada à noção de permanência e
de valor material agregado. O livro não era e não é para "qualquer
um". Infelizmente...
O jornal responde a uma demanda diferenciada: seu consumidor queria e quer um contato com o cotidiano imediato, quer
entretenimento barato, quer conhecimento suficiente para "manter a prosa na esquina". E mais que tudo: não queria - e ainda não
quer - perder a segurança de se sentir parte de um processo maior, um processo que não o exclui através de mecanismos de seleção que o caracterizam negativamente em comparação com segmentos sociais privilegiados.
:0 BELO, André. História &
liwo e leitura. Belo Horizonte,
Autêntica, 2002. p.20
11 LAJOLO, Marisae
ZILBERMAN, Regina. O
preço da leitura: leis e números
por detrás das letras. São Paulo,
Ática, 2001. p.l8
A crônica na imprensa periódica oitocentista: Machado de Assis e a formação do público leitor
12
LIMA, Luiz Costa.
"Machado de Assis: Mestre de
Capoeira 11". In.: Jornal do
Brasil. Caderno Idéias. Rio de
Janeiro, 4 de janeiro de 1997.
p.5
7\
Em "Machado de Assis: Mestre de Capoeira lI", publicado
no Caderno Idéias do Jornal do Brasil, a propósito da edição das
crônicas machadianas feita por J ohn Gledson, Luiz Costa Lima dá
uma pequena amostra de como se configuraria o caráter auditivo
da cultura brasileira na página jornalística: "Ora, curiosamente, o
êxito de Machado dependia de que seus leitores estivessem habituados, como ele próprio diria, às letras grandes, tipos in oitavo,
com muitas ilustrações nas margens."12 Essa transposição para o
impresso de elementos ornamentais, sugestivos de práticas culturais auditivas, era efetivamente necessária para que o jornal pudesse ter acesso aos novos consumidores que na época ganhavam
visibilidade - para que pudesse, sim, seduzi-los. E nessa afirmação não vai nenhum desdouro, é uma questão de "economia de
mercado".
A sociedade brasileira, até a difusão da imprensa, em meados de século XIX, mantém hábitos culturais formados no âmbito
da oralidade, isto é, o leitor brasileiro foi criado nos liames da
palavra-espetáculo. O ornato o seduz, a reflexão o afasta. É preciso reeducá-lo. Para Machado de Assis, o jornal é a mídia adequada para levar essa tarefa a bom termo, conjugando práticas orais e
práticas letradas.
Segundo Lúcia Santaella, a linguagem jornalística insere-se
perfeitamente no mundo de consumo capitalista:
o jornal, por seu lado, após um primeiro momento (suas fases
13
SANTAELLA, Lúcia.
Cultura das mídias. 2ed. São
ainda artesanais) de importação de beletrismo literário, foi
gradativamente desenvolvendo seu próprio know-how (pós-industrialização) buscando para si uma imagem de objetividade,
economia e imparcialidade que o mosaico jornalístico parecia
realizar, satisfazendo a necessidade de condensação informativa e fornecendo ao leitor doses cotidianas para sua reserva de
acontecimento - (ficção). J3
Paulo, Experimento, 2000.
p.53
Enquanto suporte de informação e cultura, o jornal pode
suprir as necessidades intelectuais do leitor. Mesmo em sua fase
inicial, no Brasil do século XIX, ele poderia ser lido em qualquer
lugar, por uma ou por várias pessoas, poderia ser alvo de uma
leitura coletiva, alcançando, assim, até mesmo receptores analfabetos - poderia ser, também, emprestado, vencendo limites, imposições e dificuldades financeiras.
72
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
A viabilização da leitura como ato social, da leitura por grupos, da audição do lido, faz do jornal o elemento revolucionário a .
que se refere Machado de Assis.
EmA ordem dos livros, Roger Chartier ressalta a importância do meio material do impresso para a efetivação de um processo receptivo:
Manuscritos ou impressos, os livros são objetos cujas formas
comandam, se não a imposição de um sentido ao texto que
carregam, ao menos os usos de que podem ser investidos e as
apropriações às quais são suscetíveis. As obras, os discursos,
só existem quando se tomam realidades físicas, inscritas sobre
as páginas de um livro, transmitidas por uma voz que lê ou
narra, declamadas num palco de teatro. 14
o suporte da escrita, então, influi diretamente no processo de
recepção. O livro, ao surgir, incrementou uma elitização da leitura:
quer voltado para o estudo, quer para o lazer, o livro demanda, em
geral, uma leitura particular e silenciosa, a partir da qual o leitor
dialoga tão só com o lido. O livro é objeto de status, de determinação do lugar social dos grupos que com ele são habituadas.
Luiz Costa Lima, em "Comunicação e Cultura de Massa" ,
afirma que, no século XIX europeu, há imensa quantidade de publicações, entre jornais, romances-folhetim etc, mas não há, ainda
uma efetiva "cultura de massa", uma vez que se mantém enorme
distância entre produções culturais destinadas à elite citadina, ao
homem urbano, e ao homem rural, por exemplo. Segundo ele, "A
comunicação cultural tem suas centrais indicadas nos mapas das
cidades: são os teatros e seus sucedâneos, os chás recitativos, os
jornais matinais, as salas de concerto." 15 Isso significa que, na
ótica do teórico em questão, nem a produção cultural que se queria voltada para novos e amplos segmentos sociais efetivava seus
objetivos de circulação e consumo. Mas, já é um começo de mudança, já é um sinal de incorporação de frações sociais até então
excluídas do circuito cultural.
Ao relacionar livros e jornais, Luiz Costa Lima tem um ponto
de vista conteudístico: entre a adaptação de um dado assunto para
um livro e para um artigo de jornal há uma boa distância, o que
não impediria que "questões graves" fossem tratadas nos dois
veículos. Na verdade, enquanto mídias da escrita, livros e jornais
14 CHARTIER, Roger. A ordem
dos livros: leitores, autores e
bibliotecas na Europa entre os
séculos XIV e XVII. Tradução
de Mary Del Priore. Brasília,
Editora da Universidade de
Brasília, 1994. p.8
l' LIMA, Luiz Costa.
"Comunicação e Cultura de
Massa". In.: MOLES, Abraham
A. et alii. Teoria da cultura de
massa. Introdução, comentários e seleção de Luiz Costa
Lima. 4ed. Rio de Janeiro, Paz
e Terra, 1990. p 40
A crônica na imprensa periódica oitocentista: Machado de Assis e a formação do público leitor
\6 CHARTIER, Roger. Op. cit.,
p.16
17 _ _ • "Do Livro à Leitura".
In.: - . et alii. Práticas da
leitura. Tradução de Cristiane
Nascimento. Introdução de
Alcir Pécora. São Paulo,
Estação Liberdade, 1996. p.96
73
têm funções, em geral, diferenciadas: pela periodicidade curta,
pela freqüência da publicação, pela multiplicidade de assuntos
enfocados em uma mesma edição, as folhas tendem a tratar panoramicamente o que noticiam, informando o público dos aspectos
essenciais de cada fato; os livros, por outro lado, dão um enfoque
verticalizado aos assuntos que abordam e isso, no mínimo, por
uma questão de volume e extensão.
Segundo Roger Chartier, "O essencial é compreender como
os mesmos textos podem ser diversamente apreendidos, manejados e compreendidos" .16 Essa diversidade não implica, necessariamente' marcas de hierarquização, não faz, por exemplo, o livro
melhor que o jornal, mas aponta para a relação indispensável entre conteúdo e suporte material do texto.
Em "Do Livro À Leitura", Chartier trabalha com a questão
da posse do livro e com a questão dos usos do impresso e das
formas de apropriação do mesmo, colocando a história do impresso como uma história das práticas culturais a ele associadas:
ele expõe duas formas de abordagem da história do impresso e da
leitura - a que enfoca a produção de textos e a que aborda a produção de livros. O que importa para a investigação da leitura via
produção de textos são as senhas, explícitas ou implícitas, trabalhadas pelo autor, suas instruções ao leitor, as quais têm duas estratégias, a saber, inscrever no texto convenções sociais ou literárias e empregar técnicas que objetivam a produção de um determinado efeito:
Existe aí um primeiro conjunto de dispositivos resultantes da
escrita, puramente textuais, desejados pelo autor, que tendem a
impor um protocolo de leitura, seja aproximando o leitor a uma
maneira de ler que lhe é indicada, seja fazendo agir sobre ele
uma mecânica literária que o coloca onde o autor deseja que
esteja. 17
Essas instruções, no entanto, se cruzam com outras, relacionadas ao suporte material da escrita e que envolvem questões tipográficas, como disposição e divisão dos textos, ilustrações etc. Tal
trabalho editorial, essa maquinaria externa ao texto, interage com
ele, e traz implícito o tipo de leitor a que o impresso se dirige:
74
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
Os dispositivos tipográficos têm, portanto, tanta importância
ou até mais, do que os 'sinais' textuais, pois são eles que dão
suportes móveis às possíveis atualizações do texto. Permitem
um comércio perpétuo entre textos imóveis e leitores que mudam, traduzindo no impresso as mutações de horizonte de expectativa do público e propondo novas significações além daquelas que o autor pretendia impor a seus primeiros leitores. 18
o enfoque do suporte material da escrita abre, portanto,
espaço para o social. Os protocolos de leitura implicados no impresso indiciam os possíveis usos que cada grupo social pode fazer dele. Como afirma Márcia Abreu: "A leitura não é prática neutra. Ela é campo de disputa, é espaço de poder."19 A percepção da
problemática envolvida no consumo do impresso implicou, desde
seus começos, um investimento em estratégias capazes de abrir
caminhos para que livros, jornais, folhetos, enfim, pudessem circular produtivamente nas sociedades.
Faustino Xavier de Novaes, em tom bastante divertido, publica em O Futuro, uma "Chronica", texto bastante interessante,
do qual retiro o seguinte fragmento, para reflexão: "Um periódico
que encerra cinco artigos, ocupando 40 páginas, e uma gravura, e
que só desagrada pelo formato, é um excelente periódico. Faltalhe só crescer, ou diminuir, e tudo isso poderá suceder com o
tempo."20 Pode-se perceber que o cronista parece se dar conta da
importância do suporte material do impresso em seu processo de
consumo e apropriação: tamanho, quantidade de textos, de páginas, presença de ilustrações, localização das mesmas, relação entre o lugar do texto e o dos anúncios, enfim, são fatores decisivos, ao que tudo indica, na relação entre o bem cultural impresso
e seu possível e desejado consumidor.
No século XIX brasileiro, ao que tudo indica, independentemente de o escrito circular no livro ou no jornal, sua transformação em moeda cultural de troca cotidiana foi objetivo comum a
toda a nossa elite intelectual. O consumo da cultura impressa tornou-se capital nessa época. Aumentá-lo era prioridade, ao contrário do desejo de Humberto de Campos, expresso no protesto de
1933, cuja abordagem deu início a este estudo. Para isso, era preciso tornar essa cultura impressa não apenas um instrumento de
educação distensa, informal: o consumidor educado dentro de determinados padrões passaria a exigir a permanência desses mes-
IS _ _ •
Op. cit., p.98
19 ABREU, Márcia. "Prefácios:
Percursos da Leitura". In.:-.
(org.). Leitura, história e
história da leitura. Campinas,
Sp, Mercado das Letras,
Associação de Leitura do
Brasil; São Paulo, FAPESP,
2002. p.IS
NOVAES, Faustino Xavier
de. "Chronica". In.: O Futuro:
periodico litterario. Fundação
Casa de Rui Barbosa, Rev20 1,
V.I, n I, set.l862. p.1
20
.:..
~rônica
na imprensa periódica oitocentista: Machado de Assis e a formação do público leitor
mos padrões. Ele teria as marcas dos textos que lhe eram impostos, até porque essa imposição não era explícita. Era preciso revolucionar o horizonte de expectativas da época.
IH. Na impossibilidade de uma conclusão ...
ASSIS, Joaquim Maria
\, lachado de. "29 de outubro de
1893". In.: --o A semana. Rio
de Janeiro/São Paulo/Porto
Alegre, W. M. Jackson Inc.,
1957. V. I. p.409
21
" - . Op. cit., p.435
No dia 29 de outubro de 1893, Machado de Assis publica,
em A Semana, uma curiosa crônica. Trata-se da representação de
uma conversa entre uma leitora insatisfeita e um cronista, que se
afastara da coluna na semana anterior por problemas de saúde. A
leitora reclama a presença do cronista, colocando sob suspeita a
doença alegada e imputando ao texto a característica de soporífero. 21 É uma leitora ousada, sem dúvida.
O espaço deixado vago por Machado de Assis na Gazeta de
Notícias do dia 22 de outubro foi ocupado por um texto de Ferreira
de Araújo, diretor do referido periódico. Houve, apenas, uma alteração no título da seção usualmente ocupada pelo escritor
fluminense: em lugar de "A Semana", "Uma Semana". Trocar a
definição do "A" pela indefinição do "Uma" poderia dar ao leitor
habituado à coluna uma idéia de exceção, camuflando a lacuna e,
simultaneamente, exibindo-a.
Ferreira de Araújo demonstra grande empenho em desculpar-se com o leitor:
Doente o cronista, doente ou alistado em um batalhão de voluntários, voluntário ou preso sem noção de culpa, preso ou
nadador barrigudo, força é que alguém o substitua por esta vez
só, amigo leitor, que há tempos trazes o paladar apurado pelo
manjar dos deuses, que todos os domingos te servem. 22
O absurdo das desculpas evidencia a necessidade das mesmas: somente por doença, guerra ou prisão o cronista poderia
afastar-se do jornal, quebrando uma cadeia de publicações que
simultaneamente criava e alimentava o horizonte de expectativas
do leitor oitocentista. Era necessário ocupar o lugar deixado por
Machado de Assis. Outra questão que ressalta do fragmento acima: o leitor é um "amigo", alguém a quem não se poderia decepcionar, um "amigo" que já se habituara a encontrar "manjares
jornalísticos" naquela mesma seção do periódico, todo domingo.
75
76
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
o hábito estabelecido pelo cronista machadiano parece ter
um papel fundamental na interação do jornal com o receptor:
resguardá-lo, ao que tudo indica, é essencial. Na crônica de 29 de
outubro, em que retoma Machado de Assis, um outro aspecto dessa necessidade de se criarem e alimentarem hábitos de recepção
aparece no diálogo do cronista com a leitora ousada e irrequieta:
- Não, não me mande embora, deixe-me ficar ainda um instante. É tão bom vê-la, mirá-la ... E depoi's, advirto que estou apenas na tira oitava, e tenho de dar, termo médio, doze.
- Vamos; fale por tiras.
- Tomara poder falar-lhe por volumes, por bibliotecas. Não
esgotaria o assunto: tudo seria pouco para dizer os seus feitiços e o gosto que sinto em estar a seu lado. 23
o cronista parece ficar à mercê do consumidor: pede que
este continue a lê-lo. Só que a advertência de que um determinado número de tiras deveria ser preenchido, além de apontar para a
obrigação profissional do jornalista - que deve ocupar um determinado espaço no papel, espaço este que lhe é prévia e sistematicamente indicado - dá outra dimensão ao relacionamento escritor/jornal/público: o termo mediano desse circuito - o jornal tinha sua organização particular, a qual precisava ser seguida pelos dois outros termos - escritor e público, isso para que se estabelecessem hábitos de consumo para a mercadoria adquirida, emprestada ou ouvida, i.e., a fim de que o que estivesse impresso
pudesse ser conhecido. Assim, o aparecimento repetitivo da mesma coluna, nos mesmos dias, em um dadO periódico, seria, de um
lado, garantia de circulação para o jornal e, de outro, garantia de
distração para o consumidor.
Dividir o espaço do papel impresso entre o texto literário
ou não e anúncios de Semolina, espartilhos, máquinas de costura;
usar o texto como moldura para uma ilustração central; conversar
familiarmente com os leitores; publicar as seções sempre na mesma página e em dias pré-determinados; usar linhas separadoras de
colunas e condutoras do olhar do leitor; trabalhar com tipos maiores para facilitar a leitura. 24 Todas essas estratégias, muitas delas
simbolizando uma incorporação de práticas culturais auditivas ao
espaço da escrita, funcionaram para persuadir, seduzir, envolver o
receptor oitocentista brasileiro.
23 _ .
Idem, p.409
PIN A, Patrícia Kátia da
Costa. Op. cit., p.149-162
24
A crônica na imprensa periódica oitocentista: Machado de Assis e a formação do público leitor
Todas elas indiciam o imenso valor cultural da página
jornalística nesse processo de construção de hábitos de leitura e
consumo do impresso, permitindo que se reflita sobre sua funcionalidade social, sobre como o jornal, enquanto suporte da escrita
- literária ou não -, contribuiu para uma espécie de educação
informal do público, tomando-se, até hoje, mídia privilegiada no
reino da escrita, configurando-se como a alavanca de Arquimedes
a que se referiu Machado de Assis, em 1859.
Referências
ABREU, Márcia. "Prefácios: Percursos da Leitura". In.: - . (org.). Leitura,
história e história da leitura. Campinas, Sp, Mercado das Letras, Associação
de Leitura do Brasil; São Paulo, FAPESP, 2002.
ARAÚJO, Ferreira de. "22 de outubro de 1893". In.: ASSIS, Joaquim Maria
Machado de. A semana. Rio de Janeiro/São PaulolPorto Alegre, W. M. Jackson
Inc., 1957. v.I.
ASSIS, Joaquim Maria Machado de. "29 de outubro de 1893". In.: --o A
semana. Rio de Janeiro/São PaulolPorto Alegre, W. M. Jackson Inc., 1957. VI.
--o
°
"O Jornal e
Livro". In.: - . Obra completa. 5ed. Rio de Janeiro,
Nova Aguilar, 1985. V.3.
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o marido da adúltera, de Lúcio de Mendonça,
ou as estratégias de publicação de um romance
como folhetim
Socorro de Fátima Pacífico Vilar
(UFPB/Cnpq)
o marido da adúltera faz parte daquele rol de obras do
século XIX que foram relegadas por certa história da literatura
brasileira que "dividia o tempo em segmentos demarcados pelo
surgimento de grandes escritores e grandes livros" (DARNTON,
1990, p. 132). No Brasil, além de esquecidos alguns livros, também o foram o suporte por onde circularam - predominantemente
o jornal- e os leitores que os leram e participaram indiretamente
da sua elaboração. É nosso objetivo portanto, trazer para o centro
do debate tanto a figura de Lúcio de Mendonça, como escritor
importante do século XIX, como também o seu romance e o papel que o jornal desempenhou na formulação de um gênero literário, fundamental para a formação da literatura brasileira, que é o
romance-folhetim.
Para não fugir a essa tradição de escritor jornalista ou jornalista escritor tão peculiar ao século XIX, a carreira de Lúcio de
Mendonça, autor de O marido da adúltera, objeto de análise deste ensaio, esteve desde muito cedo ligada ao jornal. Sabe-se que,
quando aluno do Colégio Pimentel, em 1864, fundou e manteve
como redator e proprietário um pequeno jornal, A Aurora
Fluminense. Em 1867, já na Corte, funda outro jornal A Tesoura,
que é ilustrado. Na década de 70 passa a trabalhar no jornal A
República, como tradutor e noticiarista, ao lado de Machado de
Assis, José de Alencar, Quintino Bocaiúva, entre outros, convivendo assim com várias gerações de escritores. Depois da passagem pelo jornal Colombo do interior de Minas Gerais, Lúcio de
Mendonça volta ao Rio de Janeiro em 1888 e funda o jornal O
Escândalo, porta-voz do caráter militante desse autor: "Chamase O Escândalo esta revista porque vivemos num tempo tristíssimo,
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Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
delimitado, constrito, impregnado de convenção e de mentira tempo que é escandaloso dizer a verdade. Pois havemos de dizê-la,
nua e crua, em todos os assuntos, custe o que custar, doa a quem
doer" (MENDONÇA, 1934, p.32).
Com o fim desse jornal, Lúcio de Mendonça passa a trabalhar na a redação de O País e do Jornal do Brasil. No Rio, estabelece contato com outros escritores, entre os quais Pardal Mallet,
Olavo Bilac, Luís Murat e Raul Pompéia. Com Machado de Assis,
Medeiros de Albuquerque e outros, ele funda a "Panelinha", que
consistia de encontros mensais, em que aproveitavam almoços e
jantares para discutir interesses da profissão. Em 1889, outro lugar de reunião desses intelectuais, para um diário chá das cinco
foi a redação da Revista Brasileira, onde Lúcio de Mendonça,
agora membro do Supremo Tribunal Federal, teria ressuscitado a
idéia de criar a Academia Brasileira de Letras, "a ser fundada oficialmente pelo governo republicano". Desde então, a "Academia
passou a ser tema de interesse dos debates dos presentes, que,
concordando com Lúcio, iniciaram uma intensa campanha pelas
páginas dos jornais em prol do apoio governamental na
implementação do plano acadêmico" (RODRIGUES, 2001, p. 34).
Talvez porque, como afirma João Paulo Rodrigues, o projeto original de uma Academia patrocinada pelo Estado tenha falhado, o
nome de Lúcio de Mendonça é muito pouco lembrado na criação
da Academia, cabendo todo o mérito de fundador à figura Machado de Assis. Além do caráter de fundador, Machado de Assis foi
responsável pela idéia equivocada, segundo João Paulo Rodrigues,
de que a instituição tinha e tem caráter "apolítico": "Era [Machado de Assis] o exemplo maior de escritor que havia conseguido se
manter puro, o que significava que conservara sua produção e sua
postura afastadas da ingerência política ( ... )" (Idem, p. 60).
Apenas em 1901, em um jantar em que se reuniram vários
escritores em um almoço oferecido por Lúcio, em homenagem ao
lançamento do seu livro Horas do bom tempo, "Valentim Magalhães proclama-o, em público, 'o verdadeiro fundador da Academia Brasileira" (Idem, p. 68). Sobre sua participação no surgimento
da Academia, Coelho Neto assim comenta:
Lúcio era o mais corajoso e solícito dos aios da pobrezinha.
Foi ele que a vacinou com a linfa da perseverança. Foi ele que
o marido da adúltera, de Lúcio de Mendonça, ou as estratégias de publicação de um romance como folhetim
a curou da coqueluche, que lhe pôs ao pescoço o colar de âmbar
para evitar as crises de dentição, que a batizou no templo das
musas e que lhe incutiu na alma a grande fé, tônico que a fortaleceu para vencer os percalços da primeira infância ... "(Apud,
MENDONÇA, p. 175)".
I Sua obra consiste principalmente de livros de poesia
(conf. MENDONÇA, 1934)e
alguns trabalhos jurídicos, além
da sua colaboração em jornal.
Foi no jornal Colombo, onde Lúcio de Mendonça trabalhou
de março de 1879 a junho de 1885, que foram publicados os capítulos do folhetim O marido da adúltera, seu único romance l . Como
a maioria dos jornais e folhas das cidades do interior, o pequeno
jornal da província de Campanha, do estado de Minas Gerais, tanto circulou por todo o estado e país, como fez circular em suas
páginas matérias e artigos dos principais jornais da corte e de outras províncias. O certo é que este romance só foi publicado em
livro em 1882, pela tipografia de Oliveira Andrade, proprietário
do jornal Colombo.
Lúcio de Mendonça dedica O marido da adúltera, que chama de "ensaio de romance", ao colega Dr. Esperidião Eloy de B.
Pimentel Filho, a quem confessa, pedindo a benevolência do amigo que do romance nada pode esperar como obra de arte, uma
vez que fora
Escrito para folhetim do Colombo, quase sempre à hora de
fechar-se o correio da Campanha, e impresso em folha de livro
logo depois da publicação periódica, sem tempo de corrigir-se,
sem prévia leitura do trabalho completo, o que deu causa a
numerosas retificações posteriores (... ) (p. 22)
Na sua dedicatória, Lúcio de Mendonça encena uma concepção bastante corrente no século XIX acerca do jornal. Morando em São Gonçalo, ele enviava pelo correio o folhetim a ser
publicado no jornal Colombo, da cidade de Campanha. Assim, o
texto escrito para o jornal é sempre fruto da urgência, redigido ao
calor da hora, sem burilamento ou correção, o que caracteriza o
demérito com que foram tomadas as publicações em jornais. Ao
mesmo tempo, a divulgação de um romance em jornal era essencial para os autores, pois ele dava projeção aos folhetins, muitos
dos quais, rapidamente transformados em livros, de onde eram
apagadas as marcas que lhes dava o jornal. É o que se observa no
depoimento de Coelho Neto, autor de obra tão volumosa que, ao
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contrário da pressão sempre alegada como transtorno pelos escritores, sentia grande prazer enquanto escrevia, mas se assustava
depois com os erros ali encontrados: "Tenho um processo de trabalho constante. Só as novelas foram acabadas e retocadas antes
de serem entregues aos editores. resto da minha obra tem sido
escrito dia a dia para os jornais. Assim fiz a Capital Federal, o Rei
fantasma, O turbilhão" (In RIO, 1907, p. 56).
Talvez porque tenha lhe faltado essa revisão é que no romance de Lúcio de Mendonça percebemos de forma bastante evidente as características do romance-folhetim, revelando, como está
implícito nas palavras do autor, que o jornal imprime um modo de
escrever e constitui um gênero que lhe é bastante peculiar. Tratase do romance-folhetim, cujo "texto é definido externamente pela
forma como é apresentado: o fragmento cotidiano do jornal que
vai por sua vez constituindo fascículos que levam ao todo do volume" (MEYER, 1996, p. 159). Em outras palavras, segundo
Antonio Hohlfeldt (2003, p. 40), citando Lise Queffélec, a caracterização do romance-folhetim francês possui as seguintes características do ponto de vista da sua estrutura e circulação:
°
Seu suporte é o jornal e, por isso, ele deve possuir atualidade
em seus temas; divulgado na seqüência diária do rodapé do
jornal, exige rapidez de escrita mas, ao mesmo tempo desenvolvimento do próprio enredo, exigindo por vezes o retomo de
alguma personagem ou não valorizando determinada figura para
a qual o romancista havia reservado um papel de maior significação na narrativa.
Há ainda que se considerar o romance-folhetim a partir do
tipo de conteúdo e do público que o lê. Assim temos que havia os
romances para homens, o romance para mulheres e aqueles destinados a crianças e jovens; naqueles dedicados às mulheres, como
é o caso de O marido da adúltera, prevalecem os de narrativa
"lacrimenjante ou sentimental", as narrativas de "alcova", cujo
relato principal diz respeito à traição (HOHLFELDT, p. 45).
Mesmo correndo o risco de toda a generalização, podemos
afirmar que O marido da adúltera e A conquista de Coelho Neto
são uns dos raros romances do século XIX que deixam explícita
essa íntima relação entre jornal e literatura. Em A conquista, Coelho Neto tem como objetivo mostrar o jornal e sua importância
o marido da adúltera, de Lúcio de Mendonça, ou as estratégias de publicação de um romance como folhetim
nas conquistas e na "odisséia" de toda uma geração de escritores,
a quem dedica o livro. Como ele mesmo afirma na dedicatória,
dele é apenas a memória, que utiliza para tratar da vida de todos
os que "venceram" e não perderam a esperança. Seu romance traz
para o centro do debate, o modo como alguns dos principais intelectuais da época se utilizaram e trabalharam no jornal. Entre eles,
Aluisio de Azevedo, Arthur Azevedo, Olavo Bilac, José do Patrocínio, Pardal Mallet, Guimarães Passos e Paula Ney (OLIVEIRA,
1985, p. XIII). No romance A conquista, o autor encena esse cotidiano de trabalho através do personagem Anselmo, que todos
identificam com ele próprio. Nele, Anselmo afirma que "levantava-se muito cedo, tomava o seu banho e descia para a cidade,
sentando-se imediatamente à mesa de trabalho. Escrevia o artigo
de fundo, a Boêmia, romance au jour le jour, a crônica do dia,
redigia o noticiário e todas as seções" (p.21O).
Em A conquista, a literatura ganha um suporte e uma
materialidade e os escritores deixam de ser príncipes de poetas e
passam à condição de empregados e trabalhadores. Como afirma
Cristiane Costa em Pena de aluguel, esse brilhante estudo sobre a
relação entre os escritores e o jornal, "o jornalismo também estava longe de ser uma profissão bem-remunerada. Para conseguir
melhor renda, até os mais famosos escritores eram polígrafos obrigados a se dividir por vários órgãos de imprensa" (2005, p.55).
Mas apesar da presença constante da literatura e do jornal, não há
na construção do romance os elementos próprios a outros livros
do mesmo autor, construídos para e no jornal, como Capital Federal, o Rei fantasma, O turbilhão, acima referidos.
Segundo Flora Sussekind, em um dos raríssimos estudos
motivados pelo romance O marido da adúltera, "o papel preponderante do jornal na organização da narrativa e como elemento
que se faz referência a todo o momento" (1993, p.219). O romance Marido da adúltera é construído por cartas da personagem
central Laura e do amigo de Luís, seu marido, Otávio à redação
do jornal O Colombo. Denominadas respectivamente de "Cartas
de uma desconhecida" e "As confidências do morto". Em ambas,
o autor utiliza mais do que as cartas aos leitores do jornal, pois faz
uso das cartas pessoais de Luís dirigidas ao amigo e de cartas de
Laura a amiga Malvininha, bem como de uma cópia de seu livro
de lembranças. Todo esse artifício próprio ao romance-folhetim,
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conforme analisaremos a seguir, serve para contar a história de
uma moça do interior que, ao se mudar para o Rio de Janeiro,
deixa-se seduzir pelo primeiro rapaz que encontra. Baseado no
determinismo, o autor tenta provar a influência da família no caráter de Laura, a personagem principal. Aliás, é a família quem vê
em Luís, jovem bacharel, a oportunidade de tramar o casamento
da filha, a fim de "reparar" o erro do passado. Luís, por sua vez,
ama Eugenia que é obrigada a casar com um jovem rico. Laura
depois de casada vai com o marido para o interior, onde passa a
traí-lo, movida pelo tédio e pela falta de amor. O último caso de
Laura será na casa da irmã, que era uma cortesã, famosa pelos ruidosos casos amorosos com homens ricos. Numa rocambolesca trama, Luís toma conhecimento do adultério e se mata em seguida.
Em O marido da adúltera, do título ao leitor implícito, do
uso que a narradora faz do pseudônimo, passando pelas cartas em
que são contadas as desventuras da adúltera e do seu marido,
observamos as marcas explícitas dessa relação. Na verdade, até
mesmo o capítulo inicial, "À redação do Colombo" onde Laura
pede ao redator para que publique por sua vez, reproduz o argumento do primeiro capítulo de Os dramas de Paris, de Ponson du
Terrail, onde este vai contar como submeteu um manuscrito ao
diretor do jornal La Patrie, que constava de mais de 100 folhetins,
(MEYER, 1996, p.147).
Entre as tantas razões para se justificar o pouco caso que a
história da literatura teve com a contribuição do jornal para sua
consolidação, pode-se incluir a rígida divisão que colocou em lados opostos jornalistas e escritores, ou que identificou a literatura
com a "alta cultura e o jornalismo com a cultura de massa". Cristiane
Costa tenta retomar e compreender os laços que uniram o jornalismo e a literatura e indagar sobre essas entidades que são autor jornalista e autor literário e de "como e quando os dois campos se
constituem em separado. Para ela, "somente na década de 20 do
século passado é que a literatura (ou, antes, o beletrismo) será expulsa do jornal", mas "essa separação será tão naturalizada que se
esquecerá que as duas atividades começararnjuntasem 1808" (2005,
p. 14). Para analisar essa relação nas primeiras décadas do século
XX, a autora toma como base o célebre Momento Literário, de
João do Rio, especificamente uma das cinco perguntas: "O jornalismo, especialmente no Brasil, é um fator bom ou mal para a arte
o marido da adúltera, de Lúcio de Mendonça, ou as estratégias de publicação de um romance como folhetim
literária?" (Rio: 1907, p. XVIII). As respostas, sejam em forma
de cartas, seja através das entrevistas, foram publicadas primeiramente na Gazeta de Notícia - seguindo um caminho bem conhecido do texto literário - e só em 1907 tiveram sua publicação em
livro. Segundo nota de seu editor, os depoimentos fizeram tanto
sucesso, "que os principais jornais dos principais Estados não duvidaram em aplicá-los às respectivas literaturas" (Idem, p.VII).
Em geral, tinha-se uma visão ambígua do jornal. Ao mesmo
tempo em que se reconhecia sua importância para a formação da
literatura brasileira e para a consolidação e reconhecimento da
carreira do autor, revelava-se o que consistia a queixa mais comum: o teor superficial, ligeiro e pouco profundo dos textos produzidos em jornal, marcados pela necessidade de serem produzidos de forma rápida e cotidiana, fazendo com que os jornalistas
escrevessem sob pressão. Acreditava-se que, movidos pela pressão, dificilmente conseguiriam produzir algo de qualidade. Nada
diferente do que afirmava, em 1859, Machado de Assis na crônica
"O folhetinista". Para ele, o folhetinista é uma planta européia que
se alastrou pelo mundo afora "por onde maiores proporções tomava o grande veículo do espírito moderno, o jornal" (1986, p.
967). Ele não tem dúvidas que o folhetinista é uma "nova entidade
literária", que une a "arte do útil e do fútil, o parto curioso e
singular do sério, consorciado com o frívolo", com dias tecidos a
ouro, a não ser por aqueles em que tinha que escrever, quando
"passam-se séculos nas horas que o folhetinista gasta à mesa a
construir a sua obra". Essa dificuldade, segundo o autor, originase do "cálculo e do dever". Essa imagem do folhetim - que será o
espaço por excelência do literário -, do romancista, do poeta e do
jornal criada por Machado de Assis é modelo de uma concepção
que se fortalecerá durante o século XIX. Esta lógica do literário
como o fútil útil, parece nortear a personagem José do Patrocínio
do romance A conquista, de Coelho Neto, que ao propor a criação de um jornal, inclui a crônica literária, mas com a ressalva de
que para ele, as "duas coisas sérias do jornal são o noticiário e a
gerência" (COELHO NETO, 1985, p. 150).
Na desvalorização do texto publicado em jornal, está implícita a valorização do livro pelo tempo que se lhe podia dispensar
na revis~~, na correção dos erros tipográficos e até mesmo para
evitar-se algo muito comum aos folhetins que era a inverossimi-
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lhança, muitas vezes constatada na morte de um personagem que
voltava à trama muitos meses e capítulos depois, em um sinal claro de que o autor não lia o escrevia e era traído pela memória. Na
verdade, o escritor de folhetins contava com a desatenção do seu
leitor, ou leitora, como sempre explicitou Machado de Assis, uma
vez que estes eram publicados emjornais que circulavam em dias
alternados, às vezes semanalmente, outras vezes quinzenalmente.
É o caso do jornal Colombo, onde primeiramente foi publicado o
romance em questão, que saía apenas nos dias 2, 8, 14,20 e 26 de
cada mês (MENDONÇA, 1934, p.23). Mesmo que fosse publicado em dias espaçados, os leitores do jornal, a quem Lúcio de ~len
donça, editor do Colombo e personagem do romance não queria
desagradar, prezavam a seqüência, o desenrolar de toda história e
a perspectiva de desenlace final, razão por que ele temeu que a
carta que dava início àquela história não fosse seguida por outras:
"publica-se a primeira carta (que ela havia dirigido aos redatores
para que fosse publicada). Mas as outras? Mas publicar a primeira
e ter talvez de seqüestrar as seguintes? É nada menos que excitar
a curiosidade dos leitores e deixá-la insaciada: má ação em todo
caso, talvez desgosto para os assinantes, descortesia com certeza" (p. 25). A preocupação com os leitores revela as injunções
que este começava a exercer no tocante às assinaturas dos jornais.
Observe-se que não há por parte do redator do jornal qualquer manifestação no sentido de não publicar a carta. Por isso,
que no gesto de Laura da certeza da publicação de suas cartas,
assim como no do amigo de Luís o outro narrador da história,
revela-se uma imagem bastante próxima do que ocorria nos jornais: esse era um espaço propício a vários gêneros literários 2 • À
parte todos os propósitos políticos e libertários do jornal, dirá
Silva Ramos em O momento literário, há uma "feição essencialmente mercantil das folhas diárias, revelada nas pequeninas preocupações de furos, curiosidades de senhoras vizinhas, folhetins de
sensação, ao paladar das criadas de servir ( ... ) (1907, p. 179)".
Deixando de lado os preconceitos de Silva Ramos, suas observações talvez nos ajudem a entender por que alguns escritores trataram de "retirar" de seus textos as marcas do jornal. Afinal, as
folhas e jornais eram muitos e toda a colaboração era bem-vinda.
Como sugerem as palavras do editor Lúcio de Mendonça em relação ao desejo de Laura de ter suas cartas publicadas: "aí vão para
, Para Flora Sussekind (1993,
p. 2 I 6), o fato de o missivista ir
se tornando o narrador principal
do relato, deve-se à simpatia do
diretor de O Colombo, uma vez
que este não poderia deixar de
se aliar a "alguém que encara o
jornal como um espaço
polêmico, plural, à semelhança
da imagem liberal que sonha
para0 país".
) marido da adúltera, de Lúcio de Mendonça, ou as estratégias de publicação de um romance como folhetim
a imprensa as suas cartas, e irão pelo mesmo caminho as que vierem. Se, porém, como é mais provável, Laura de M. quer fazer
romance sentimental, ainda que verdadeiro, que o faça embora; só
temos que lhe agradecer a colaboração, que é interessante" (p.
26). Não havia seleção, nem critérios para a publicação dos textos
no jornal e grande parte do que se publicava era ou anônimos, ou
sob pseudônimos.
Como argutamente observa Flora Sussekind (1993), o jornal exerce no romance o papel de protagonista, pois que foi através dele que Laura conheceu Luís Marcos, naquilo que era muito
comum: os bacharéis iniciarem (muitos evidentemente não conseguiram passar dos anônimos e da "colaboração solicitada") sua
carreira literária, publicando em jornais de São Paulo, o que foi o
caso do próprio Lúcio de Mendonça. Laura "já conhecia o nome
de Luís Marcos, e sabia de cor muitos versos dele publicados em
folhas de São Paulo que o bacharel mandava à família" (p. 59/60).
O jornal era O Apóstolo lido não só por Laura, mas por sua amiga
beata que também já conhecia o rapaz de nome e lamentava que
ela viesse a casar "com um inimigo da religião" (p. 99). Há também o episódio, já notado por Flora Sussekind, em que Laura,
planejando um futuro na Corte para ela, imagina uma carreira
jornalística para o marido para a qual tinha os pré-requisitos necessários: "tinha amizades no jornalismo fluminense, podia obter
que o tomassem para colaborador de alguma das folhas diárias" ... (p.
123). Há inclusive um momento irônico, visto pelo próprio Luís,
minutos antes de ele mesmo ler em um jornal a sua nefasta história. Ao entrar em uma barbearia, enquanto esperava viu um rapaz
"muito embebido na leitura de umjornal do dia, em que colaboravam escritores novos. Imaginei pelo interesse, que estaria lendo
algum artigo dele próprio" (p. 148). É através da leitura de jornais
que Luís toma conhecimento da traição da mulher. É também pelo
jornal que seu amigo se inteira da morte dele. No jornal, ele reconhece a história de Luís e identifica no pseudônimo a verdadeira
autora do folhetim.
Mais que isso, o jornal era o lugar das disputas amorosas,
palco dos amores impossíveis, dos amores risíveis, revelados numa
guerra de textos nem sempre tidos por "literários", seja através de
poemas amorosos - muitas vezes em forma de carta - seja em
trovas populares, mas todos de uma forma preponderantemente
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marcados pelo anonimato, escondidos pelo pseudônimo, recurso
utilizado por praticamente todos os escritores e muitos leitores
que viam seus textos publicados, como fez Laura, com o nome
Ângela do folhetim que Luís leu. Dentro da narrativa mesma, percebe-se que anteriormente esta história, que era lida através de
cartas, veio a público, em um jornal, quando um "amigo literato
distinto" propôs a Otávio que se revelasse a traição de Laura,
"num conto engenhoso, que só os interessados entendessem" (p.
145). Outro uso para o jornal também está descrito no romance.
Trata-se de uma fala de João, padrinho de Laura, inconformado
com o fato de sua família não lhe ter procurado quando passaram
aperto financeiro: "- Diabo! - dizia com voz velada de comoção.
- Por que não me escreveram... para toda parte do mundo ... ainda
que fosse pelo jornal? .. "( p. 53).
Muito nos ajudaria poder consultar os originais onde foi
publicado pela primeira vez O marido da adúltera, para determinar com precisão o número de exemplares e meses em que foi
dado a público. Mas pela estrutura dos capítulos e a informação
de que O Colombo saia pelo menos 5 vezes por mês, podemos
nos aproximar desse tempo real. O livro é composto de 14 partes,
dividas entre as cartas que Laura escreve aos leitores do jornal e
aquelas que escreve a sua amiga Malvininha, além das memórias
do seu livro de lembranças, que formam os IX capítulos denominados de "Cartas de uma desconhecida"; a outra parte denominada de "As confidências do morto", refere-se às cartas do narrador
ao jornal e àquelas de Luís que lhe chegaram às mãos. Ao todo
são 6 cartas distribuídas em 3 capítulos. Essa variedade de gêneros e multiplicidade de vozes, ou "virtuosismo rocambolesco"
como observa Marlyse Meyer, ao analisar os romances de Poison
du Terrail, são constituídas pelas "famosas gavetas características
do romance arcaico ... ". Segundo a autora (1996, p. 159):
Internamente o texto apresenta os mais variados processos narrativos, que emprestam todos os modelos para compor uma
vertiginosa construção em abismo estruturada em embuste e
ardil como forma de articulação do enredo: embuste de verdade, embuste de mentira, vítimas de mentira (cúmplices e préinformados) etc.
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Nessa "construção em abismo", há o embuste da narradora,
"ardilosa" como mulher e também como narradora; se ela enganou o marido, engana agora os leitores. Primeiramente, faltando
com a verdade, quando surge um outro narrador, amigo de Luís,
o marido traído, que resolve contar a verdadeira versão da história. História do passado aliás que ele conhecia em detalhes, mas
que resolvera ocultar do seu amigo; era o segredo de Laura, seu
envolvimento com o jovem oficial rio-grandense. Se por um lado
Laura escreve para que seu exemplo seja "lição proveitosa a algumas outras", supondo serem as leitoras quem liam os seus escritos
e os romances-folhetins, por outro, o missivista duvida que seja
uma mulher aquela quem escreve as cartas. Trata-se de outro
embuste, agora com relação à própria escrita: "Digo que deve ser
um homem porque não é de pena feminina aquele estilo embebido
de realidade; o mais que digo vê-se pela desapiedada nudez em
que se revelam os fatos vergonhosos dessa vida de mulher" (p.
73). Não se trata de falta de capacidade ou de talento para escrever um romance, mas da necessidade que estes romances têm do
engodo, do ardil para o "bom" andamento do folhetim.
Considerando que a maioria das cartas e dos capítulos
corresponde ao espaço do jornal destinado ao folhetim, à exceção
do capítulo VI, muito longo, que provavelmente foi dividido em
sua publicação, temos que este romance levou algo em torno de 4
meses para ser publicado. Como um bom romance-folhetim, escrito quase sempre no limite da hora, como sugere a dedicatória
do autor, O marido da adúltera possui um "mistério do passado"
(MEIYER, 1996) que vai nortear toda a trama. Primeiramente,
em relação à própria Laura que esconde do marido o fato de já
haver tido um relacionamento no passado, o que na moral
oitocentista já se constitui como um adultério; Luís Marcos por
sua vez amava Eugênia que casou com um homem rico. Em meio
a esses pequenos segredos, há um maior que não é o adultério,
nem o motivo pelo qual ela o pratica, mas a pergunta principal:
teria, portanto o suicídio de Luís Marcos relação com esse episódio? Teria o marido tomado conhecimento da traição de Laura?
Como se deu a traição? Este era o verdadeiro mote para o desenrolar do folhetim.
Contrariando o estereótipo do folhetim sobre adultério, nesse
romance a adúltera não é punida com a morte, nem com a reclu-
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são, porém, sua "falta"deveria ser reparada com a expiação pública do seu remorso. A narrativa tem início com a personagem Laura
de M. justificando a publicação de sua história como sendo uma
forma de provar aos amigos dele que agora compreendia, "ainda
que muito tarde, o homem honrado que foi [seu] marido - para
desgraça sem remédio e para meu desesperado remorso" (MENDONÇA, 1974, p. 23)3. Mas o narrador faz questão de mostrar
ao leitor que se trata de mais um engodo dela, posto que depois
da morte do marido, "só depois de gasta e repelida, tendo descido
toda a escala da degradação, é que se foi refugiar na província se
na devoção, refugium peccatorum", onde passa a escrever sua
história (p. 152).
Pois qual não é a surpresa do leitor contemporâneo - que
pode voltar as páginas do texto e confirmar que o marido estava
morto quando ela deu início à narrativa - quando no último capítulo, surge uma carta do marido de Laura, o dr. Luís Marcos de
Lima, ao missivista narrador em que conta como tomou conhecimento da traição da mulher. A citação é longa, mas será fundamental para acompanharmos como a narrativa construída com esses
fragmentos diários não tem compromisso com a verossimilhança,
mas com movimento vertiginoso da elaboração "simultânea":
Na estação, comprei as folhas do dia, a Gazeta, o Jornal, a tal
folha dos rapazes. Na travessia fui lendo a Gazeta; no ferrocarril, abri o jornal, e embrenhei-me nas correspondências da
Europa até que me faltou luz. A poucos quilômetros da estação terminal, abri o jornalzinho. Atraiu-me o folhetim ...\ngela,
assinado por um pseudônimo auspicioso; mas , à proporção
que me adiantava, a leitura ia ganhando para mim um interesse
terrível. Ângela era um feliz retrato de Laura, completo. minucioso, desenhando até um imperceptível defeito que ela tem no
lábio inferior. O marido, designado apenas por doutor, era eu,
visto através de um baixo ódio que eu não conhecia (p. 149).
Voltemos pois ao primeiro capítulo como leitores da narrativa integral, publicada em livro, desconfiados do fazer folhetinesco.
Nele, a protagonista dirige sua carta aos leitores do jornal Colombo,
tempos após a morte do seu marido. Como se observa na passagem acima, a história que Luís lê, a mesma história publicada em
o Colombo, está contada em outro jornal, o tal jornalzinho "em
'.-\ partir dessa citação, fart;
referência apenas ao número da
página do romance de Lúcio de
\1endonça.
'J marido da adúltera, de Lúcio de Mendonça, ou as estratégias de publicação de um romance como folhetim
que colaboravam escritores novos"(p. 148). Portanto, temos aqui
duas possibilidades bastante plausíveis em se tratando de um folhetim. Primeiramente, o folhetim Ângela, não representaria uma
outra história apenas parecida com a sua, como somos quase obrigados a considerar. Mesmo cor' a total inverossimilhança desta
passagem, esta seria a mesma história escrita por Laura com a
finalidade de precipitar o fim trágico e intensificar embuste e o
ardil da personagem. Nesse caso, levando em conta a forma de
escrever e ler um folhetim, a coerência não se daria com os capítulos iniciais, mas com aquilo que tinha sido recentemente publicado, pouco importando se o que se passava naquele momento
diferia do início do romance. A citação acima é do último folhetim, separado do clímax da narrativa por uma cópia de carta, em
que com tom momo, Luís se despede do amigo narrador e
confidencia o amor impossível que nutria por Eugenia, bem como
o sofrimento ao se despedir dela. Esse capítulo, referente à quinta
carta das "Confidências do morto" é precedido pela "Cópia do
meu livro de lembranças", onde Laura, sem nenhum pudor ou
culpa - diferentemente do que afirmava no primeiro capítulo narra sua aventura com o jovem estudante de medicina, na mansão da sua irmã em S. Lourenço, tal qual descrito pelo folhetim
Ângela. O capítulo do folhetim termina com a inesperada viagem
do marido e a possibilidade de ela passar três dias e três noites
com o amante.
Segundo, a outra possibilidade, bastante plausível do ponto
de vista do romance-folhetim, é a de Otávio ter levado a cabo a
sugestão do amigo "literato distinto" de revelar tudo a Luís, através "de um conto engenhoso, que só os interessados entendessem", e que foi publicado no jornalzinho lido pelo marido traído.
Seja qual for a solução encontrada pelo autor, ambas, são perfeitamente adequadas ao desfecho de um folhetim publicado emjornaI. O importante para a ação deste tipo de romance é que ele
descobrisse os atos da mulher. Descobri-lo pelo jornal então, é
uma forma de negociar o sentido do texto, diminuindo a assimetria
entre este e o leitor (ISER, 1999, p. 28), favorecendo a produção
de sentido do qual o leitor também participa, haja vista que ele
está lendo a mesma história também numa folha de jornal. Dessa
forma, temos aqui uma estratégia sabida dos escritores do século
XIX, que pela boca da personagem Teixeira, médico e filósofo de
91
92
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
A conquista consiste em oferecer ao público leitor que "está ainda
no período infantil do deslumbramento", os romances preferidos
que "são os de complicado enredo, os magnificentes, os emaranhados que não passam de ampliações de contos de fadas para
crianças grandes. Não há ainda o critério estético, não sei se posso dizer assim. O leitor não se preocupa com a substância nem
com a forma; a inverossimilhança é o seu ideal, quanto mais irreal melhor" (COELHO NETO, p. 132, Grifos nossos).
Filiado à estética realista, O marido da adúltera, ao mesmo
tempo em que "aumenta a complexidade do espaço de jogo" (ISER,
1999, p. 69), ao apresentar a trama sob vários olhos, precisa de
alguma forma manter presente o contexto citado, na referência
implícita que faz a outros romances do gênero. Dessa forma, o
adultério, ou a tese naturalista que o romance tenta provar - a de
que o caráter da personagem foi forjado pela herança familiar e
pelas condições do meio - compreende a "citação" da "alta literatura", aliada aos ingredientes fundamentais do "baixa literatura"
característica do romance-folhetim, publicado no jornal. Assim é
que, para Lúcio de Mendonça, editor do jornal e personagem do
romance, a primeira carta de Laura revela um "caso literário dos
mais atraentes e dos menos embaraçosos" numa alusão explícita a
um assunto comum a esse gênero de romance, ao mesmo tempo
em que ela "por mais que nos queira prevenir em sentido contrário, é, apesar de sua desgraça, ou por amor dela própria, uma
romântica. Sinto dizer-lho: mas está se vendo ... " (p. 25). Assim,
ao considerá-la romântica, o autor traz para dentro do texto outras personagens de romances realistas, por sua vez, leitoras de
folhetins e romances românticos, cujo paradigma é a personagem
Madame Bovary, aludida seja pelo adultério, seja pelo tédio que
sentia quando passou a morar em B. depois do seu casamento,
como relata em carta para a amiga Malvininha:
Malvininha, está decidido: a tal roça, que os senhores poetas
nos impigem como um ninho de tranqüilas felicidades, é um
mar morto de tranqüila pasmaceira, de inesgotável aborrecimento!
[ ... ]
Mas as horas vazias de trabalho precisavam ser cheias de outra
equivalente ocupação se é que outra assim existe; e não o eram.
o marido da adúltera, de Lúcio de Mendonça, ou as estratégias de publicação de um romance como folhetim
Desta falta me veio o tédio, que é caminho certo da perdição
para as naturezas imaginativas, como infelizmente é minha vida
Cp. 120)
Os amores de folhetim e o adultério estão presentes também na leitura que o narrador, amigo de Luís, faz do Processo
Clémenceau, de Alexandre Dumas Filho e discute com Luís e
Otávio, no tempo em que eram estudantes em São Paulo. Nele, o
marido adulterado mata a adúltera, uma jovem que ele mal conhecia, mas com quem resolvera casar. O narrador defende a conduta
do marido traído. Já Luís argumenta de forma contrária, justificando que como o homem casara com sua fantasia - já que não
conhecia a família, nem a origem da mulher - fora ele e não ela
quem traiu. O fato é que Luís Marcos, ao acusar o marido que
mata a adúltera, está se condenando, assumindo para si toda a
responsabilidade pelo que viria a fazer dali a dois anos. Suas palavras são ao mesmo tempo antecipação e excesso folhetinesco na
medida em que toma mais "vil" a traição de Laura que o enganou
antes do casamento; ele já é uma "vítima da verdade" antes mesmo de ela vir à tona, pois se este o não previu, se o não evitou, é
com certeza, culpado (p. 76).
Ao contrário do narrador, Luís Marcos vê como única saída
para o marido traído do Processo Clémenceau, o "dever de matar-se". Otávio, seu amigo e narrador, embora fique sabendo do
segredo de Laura, evita escrever para o amigo contando, na esperança de encontrá-lo em breve. Mas os ardis supostamente montados pela família dela para que passe a noite com Laura e o casamento de Eugênia, seu verdadeiro amor, precipitam e exigem dele
o casamento. O amigo por sua vez, o sujeito pré-informado a qual
se refere Marlyse Meyer, toma-se cúmplice do passado de Laura,
levando o amigo a ser vítima da mentira. Porém, ao narrar a história, tenta de alguma forma justificar aos leitores de o Colombo a
sua atitude.
Outra estratégia de romance folhetim trazida para este romance diz respeito ao passado do próprio Luís Marcos. Este também tinha um segredo que nunca chegou a conhecer. Na segunda
carta do seu amigo, ficamos sabendo "que a família a que Luís,
enjeitado, apenas julgava pertencer por adoção e caridade, era
sua pelo sangue, e a herança do homem que o criou, renunciada
93
94
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
por ele em favor dos colaterais, não era mais do que uma restituição, e desfalcada, da herança do próprio pai". Assim, quando mais
tarde o tio movido pela culpa, na tentativa de reparar seu erro,
instituiu Luís seu herdeiro universal, este sem o saber repudiou a
herança num gesto heróico e de desprendimento.(p. 82).
Outro aspecto típico do folhetim é o título que nos remete
diretamente ao assunto tratado, sem as sutilezas machadianas de
nomear D. Casmurro um romance sobre adultério. Nesse caso, o
título é até redundante, pois segundo Marlyse Meyer, o adultério
é sempre do gênero feminino (1996, p. 253). Na verdade, esse
título revela uma das nuances dos romances-folhetins, publicados
em jornais, que antecipavam o lançamento de um novo romance,
a poucos dias de finalizar o que estava em publicaçã0 4 • Muitas
vezes, esses anúncios vinham até mesmo sem o nome do autor, o
que revela a importância de um título direto, chamativo, que antecipasse para o leitor de folhetins o teor daquilo que iria ler como
algo já conhecido. Assim foram Anjos e demônios, de Aléxis
Bouvier, Os companheiros do crime, E. Chavett, A carne de Oscar Metinier, Caixão Negro de George Pradel, entre tantos. Coelho Neto trata desse aspecto quando conta a João do Rio a história do seu livro Rajah de Pendjab. Como estava precisando de
dinheiro propôs escrever um folhetim para substituir aquele que
fora perdido pela Gazeta. Sugeriu como título O príncipe encantado, o que não foi aceito por se tratar de um "'título velho".
Sugeriu Rajah de Pendjab, que foi aceito e proposto para dar
início em dois dias: "E a reclame foi feita para um romancista
francês, de que a Gazeta deu o retrato reproduzindo a cara do
Humphreys" ... (RIO, 1907, p. 57).
Em seu ensaio, "O romance epistolar e a virada do século"
Flora Sussekind (1993, p. 211) chama a atenção para o fato de
que "o romance brasileiro também passou ao largo da trilha
epistolar", razão pela qual ela dedica seu estudo a dois exemplares desse gênero: O marido da adúltera e A correspondência de
uma estação de cura de João do Rio, de 1918. Embora escassa no
romance, a carta freqüentou com muita assiduidade o jornal, principalmente nas polêmicas e debates, como aquela que travam Laura
e Luís pela versão verdadeira da história. Na carta cabiam os vários tipos de texto literário: poesia, narrativa,"ensaio". Pelo menos
nos jornais paraibanos, desde 1854, encontramos cartas polêmi-
Quando faço referência à
circulação do texto literário em
jornais, ela diz respeito aos
jornais paraibanos nos quais
desenvolvo pesquisa. Faltamme dados sobre os jornais que
circularam no Rio de Janeiro,
mas creio que o processo
verificado nas Províncias
repetia aqueles da Corte.
4
o marido da adúltera, de Lúcio de Mendonça, ou as estratégias de publicação de um romance como folhetim
95
cas, de caráter político e cartas mais pessoais, como aquelas que
Laura, Luís e seu amigo escrevem. Ainda está por se fazer uma
pesquisa sobre os gêneros utilizados pelos jornais, que foram apagados depois de sua publicação em livro.
Ein uma nota de Vida literária no Brasil- 1900, Brito Broca informa que o gênero epistolar tomava-se comum em algumas
revistas, entre elas O Pirralho (1911 - 17) e que aquela era uma
voga francesa(BROCA, 1958, p. 229). Exemplo dessa utilização
da carta pelo cânone da literatura brasileira, é o das cartas escritas
por Machado de Assis que, não se adequando aos propósitos dos
priorizados por Afrânio Coutinho, organizador de suas obras
completas, prefere juntar todas sob o epíteto de Miscelânea, nome
bastante apropriado, pois que sob essa rubrica se enquadrava toda
a sorte de escritos. Mas o certo é que nessa Miscelânea se incluem várias cartas, entre as quais "Carta à redação da imprensa acadêmica", publicada no jornal de mesmo nome, de São Paulo, cujo
teor visa responder a críticas que foram feitas a sua comédia Caminho da porta. Outra, dirigida a Henrique Chaves e publicada na
Gazeta de Notícias, faz o necrológio de José Telha Ferreira de
Araújo. Há ainda outro exemplo clássico do uso de cartas no jornal, que são aquelas que deram a José de Alencar notoriedade,
quando começou a escrevê-las sobre a Confederação dos Tamoios,
publicadas em 1856, com o pseudônimo de Ig, no Diário do Rio
de Janeiro, nas quais critica o poema épico de Domingos Gonçalves de Magalhães, dileto do Imperador e considerado então o maior
poeta da literatura brasileira (LIRA NETO, 2006).
Na verdade, a carta é um dos elementos fundamentais para
uma das "marcas sui generis"do folhetim que é o exagero amplificador. A perspectiva levantada por Marlyse Meyer (Idem, 160),
na análise da obra de Ponson du Terrail, e bastante apropriada ao
romance de Lúcio de Mendonça, demonstra que "um bom exemplo desse excesso são as cartas, as narrativas intercaladas, as leituras de depoimentos, testamentos, etc ... ". Como já comentamos,
O marido da adúltera lança mão dessa estratégia para cativar o
leitor e prolongar o enredo folhetinesco, além de permitir as tais
gavetas literárias a que se refere Marlyse Meyer. Do ponto de
vista de Laura, há a carta intencionalmente elaborada para a leitora do jornal Colombo, com vistas ao propósito nobre de tirarem
delas "lição proveitosa". Do ponto de vista da construção do
96
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
folhetim e dos leitores que o lêem, uma adúltera arrependida, tentando provar as conseqüências de uma "educação corruptora e
falsa" não é matéria de interesse. Tanto que sua primeira traição do ponto de vista da moral oitocentista - ao manter relações com
o jovem estudante, é perdoada por um padre. É preciso, portanto,
provar o seu engodo e para isso, surgem as cartas que escreve
para Mal vininha - "acabado produto da educação com que se criara, entre mimos babões e brutalidades viloas, na ociosidade, na
ignorância e no namoro" - cujo caráter assim descrito pelo narrador
aproxima-a mais do perfil de Laura e justifica por que a escolheu
para fazer suas confidências. Nelas não é a adúltera arrependida
quem narra, mas a mulher entediada, insatisfeita com o marido e o
casamento. Seu livro de lembranças, por sua vez, vai revelar a
"verdadeira" Laura, que se deixa seduzir por uma única frase do
estudante, com quem terá um caso. Do lado do narrador, as cartas
que publica como "As confidências do morto" são compostas da
memória desse narrador e de cartas escritas por Luís a ele que,
cúmplice involuntário da mulher, se sentirá na obrigação de restaurar a verdade e eximir-se da culpa.
Enfim, pode-se concluir, que o estranhamento causado as
soluções estéticas de O marido da adúltera causam certa estranheza ao leitor contemporâneo, porque desnuda em sua estrutura
as estratégias e o modelo de narrar próprios ao folhetim. Estes,
por sua vez, fazia-se a partir de um leitor real, o leitor de jornal.
"Leitor intencionado, ficção do leitor no texto" (lSER, 1996, p. 79),
a quem autor e narrador originalmente se dirigiram, cujas injunções
foram determinantes na elaboração do romance-folhetim.
=" marido da adúltera, de Lúcio de Mendonça, ou as estratégias de publicação de um romance como folhetim
97
Referências
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COELHO NETO. A conquista. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1985
COSTA, Cristiane. Pena de aluguel. Escritores jornalistas no Brasil 19042004. São Paulo: Companhia das Letras, 2005
DARNTON, Robert. O beijo de Lamourrette. Mídia, Cultura e Revolução.
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HOHLFELDT, Antonio. Deus escreve direito por linhas tortas.O romancefolhetim dos jornais de Porto Alegre entre 1850 e 1900. Porto Alegre:
EDPUCRS, 2003. (Coleção Memória das Letra, 12)
ISER, Wo1fgang. "Teoria da Recepção". In ROCHA, João Cezar de. Teoria
da ficção. Rio de Janeiro: EDUERJ, 1999
_ _ _o
O ato da leitura. São Paulo: Ed 34,1996. V. 1
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Globo, 2006
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Brasileira, 1934 (Publicação da Academia Brasileira)
MENDONÇA, Lúcio de. O marido da adúltera. Rio de Janeiro: Três, 1974
MEYER, Marlyse. Folhetim: uma história. São Paulo: Companhia das Letras,
1996
OLIVEIRA, Franklin. "Ler Coelho Neto" In COELHO NETO. A conquista.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1985
RODRIGUES, João Paulo Coelho de. A dança das cadeiras. Literatura e
política na Academia Brasileira de Letras (1896 - 1913). Campinas: Editora
da Unicamp, Cecult, 2001
SUSSEKIND, Flora. Papéis colados. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1993
99
De São Paulo 01 Aconcagua: una
trayectoria latinoamericana para
Monteiro Lobato 1
1
Texto presentado en la 8'
Jomadns Andinns de Literatura
wtitw Americana (Lima, 9 a 13
de agosto de 2004).
Marisa Lajolo
(Unicamp)
Para Octavio Ianni, in memoriam
, "São muitos os estudos sobre
o romance, a poesia, o teatro, o
cinema, a pintura e a música,
entre outras linguagens, nos
quais está presente, explícita ou
subjacente, a idéia de"
nacional". ( ... ) Sem prejuízo
das contribuições realizadas e
possíveis a partir do emblema
nacional, cabe experimentar a
perspectiva aberta pela idéia de
contato, intercâmbio, permuta,
aculturação, assimilação,
hibridismo, mestiçagem ou,
mais propriamente, transculturação." (p.94-95) In: Ianni,
Octavio. "Transculturação".
In: - . Enigmas da modernidade mundo. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira. 2000
Sus cuentos fueron publicados
bajo los siguientes títulos:
Urupês. São Paulo: Ed. Revista
do Brasil, 1918; Cidades
.\fortas. São Paulo: Ed. Revista
do Brasil, 1919; Negrinha. São
Paulo: Revista do Brasil e
Monteiro Lobato & Cia. 1920
J
Muchos son los estudios sobre la novela, la poesía, el teatro,
el cine, la pintura y la música - entre otros tantos lenguajesen los cuales se encuentra presente - de forma explicita o
subyacente la idea de " nacional" ( ... ) Sin prejuicio de las
contribuciones realizadas y posibles a partir deI emblema nacional cabe experimentar la perspectiva abierta por la idea de
contacto, intercambio, permuta, aculturación, asimilación,
hibridismo, mestizaje o - mas propiamente dicho transcul turación 2
EI escritor brasileno José Bento Monteiro Lobato nació en
Taubaté -ciudad deI interior paulista- en 1882. Su abuelo -el
Vizconde de Tremembé-, era propietario de ti erra en una región
de agricultura y economía decadentes a partir de fines deI siglo
XIX. La madre de Monteiro Lobato era hija ilegítima deI Vizconde,
pero ese origen -en aquella época estigmatizado- no impidió que
su hijo se tomase heredero deI abuelo.
De su origen rural, Monteiro Lobato parece haber mantenido
una sensibilidad bien sintonizada con personajes, situaciones y
paisajes interioranos. Sus cuentos magistrales 3 giran en tomo a la
identidad de este campesino -el polémico jeca tatu-,
inevitablemente atropellado por el progreso, que en las primeras
décadas deI siglo XX arruinó pequenas ciudades deI interior
paulista. De ahí surge la metáfora ciudades muertas , la cual da
100
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
título aI libro en cuyo afí.o de lanzamiento (1919) vendió más
de cuatro mil ejemplares. pn 1918 Urupês tuvo tres ediciones,
alcanzando la estupenda cifra de cinco mil ejemplares. Reeditada
aI afí.o siguiente, en 1919 la obra parece haber llegado a doce
mil ejemplares. Cidades Mortas vendió 4 millares durante el
afí.o de su lanzamiento, y ambos libros (Urupês y Cidades Mortas) fueron reeditados en 1920, cuando junto con el nuevo título -Negrinha-, prosiguieron su carrera de éxito, totalizando
20 mil ejemplares en 1920.
Como todos los jóvenes de su c1ase social, Monteiro Lobato
estudió Derecho y se graduó en 1904. En 1907 fue nombrado
promotor público en otra pequefí.a ciudad deI interior paulista Areias-, y allí vivió durante algunos afí.os. Con la muerte deI abuelo
en 1911, Monteiro Lobato hereda la hacienda a la cual se muda
con su familia (se había casado en 1908). Desde allí envía artículos para la prensa, colaborando con el periódico O Estado de São
Paulo y con la Revista do Brasil. Ambos eran vehículos de gran
circulación y de sólida respetabilidad.
Fue en un gran periódico paulista que en 1914 Monteiro
Lobato publicó los dos artículos que tornaron famoso su nombre
en todo el país: "Velha praga" (12 de noviembre de 1914) y
"Urupês" (23 de diciembre deI mismo afí.o). En ambos, Lobato
hacía una crítica ácida e implacable a las costumbres interioranas.
Es en la Revista do Brasil que, poco tiempo después, inicia su
trayecto de éxitos como editor y empresario de cultura.
De colaborador, Monteiro Lobato se convierte en propietario
de la Revista do Brasil. En efecto, en 1917 vende la hacienda, se
muda a São Paulo y aI afí.o siguiente compra la Revista do Brasil.
Y es desde la mesa de redacción de tal revista, que comienza a
planear y construir una dimensión latinoamericana para la literatura. Para su literatura, para la literatura brasilefí.a, para la literatura latinoamericana.
Son tradicionales, ai menos en la tradición de los estudios
literarios brasilefí.os que conozco, las investigaciones que tratan
de "encontrar" o "construir" convergencias temáticas y estéticas
entre intelectuales latinoamericanos brasilefí.os y no brasilefí.os.
Investigaciones de este tipo son instigantes, sin embargo pueden
enriquecerse aún más con estudios que le confieran materialidad a
las convergencias estéticas y críticas que ellas rastrean. Esta
Je São Paulo ai Aconcagua: una trayetoria latinoamericana para Monteiro Lobato
verti ente de recorte materialista, histórico y recepcional resulta
esencial para desarrollar un discurso crítico comprometido con
una teoría literaria de América Latina, en oposición a una teoría
literaria en América Latina.
Siguiendo la estela de Ángel Rama, Cornejo Polar, y Antonio Cândido, este trabajo parte de la hipótesis de que no siempre
las categorías críticas forjadas en los centros hegemónicos
responden de manera satisfactoria a las prácticas literarias vigentes en la periferia. Del centro a la periferia es el rayo que cubre la
distancia entre las expresiones teoría literaria en América Latina
y Teoría Literaria de América Latina.
Monteiro Lobato puede ser una clave para el estudio de
estas relaciones literarias latinoamericanas. Por lo tanto es hacia
él que llamo la atención de los colegas, invitándolos a revisitar la
obra deI escritor que habitó en los estantes de lectura y en los
corazones infantiles de América Latina, de México a la Patagonia,
de los Andes aI Pão de Açúcar.
Monteiro Lobato fue uno de los primeros arquitectos de la
utopía de una América unida por libros y lectores ... Asi que en su
vasta obra podemos rastrear manifestaciones reincidentes -aunque
tenues y efímeras- de un proyecto para la formación de un sistema
literario latinoamericano.
Desde la perspectiva de Antonio Candido, la existencia de
un sistema literario resulta fundamental para que se puedan discutir las diferentes articulaciones de la literatura con la sociedad. En
el caso de nuestra América, tal sistema necesita responder a las
diferentes e inestablés articulaciones entre las diversas literaturas
latinoamericanas, y de todas y de cada una de ellas con la sociedad
pluriétnica, polilingüística y no homogéneamente letrada de
nuestros países.
Las relaciones entre autores, obras y públicos, la mediación
de intermediarios entre estos tres polos de la lectura literaria, las
formas históricas asumidas por tales relaciones y mediaciones, la
base técnica disponible y la legislación que reglamenta el comercio nacional e internacional de libros, junto a los datos cuantitativos
y cualitativos de públicos disponibles, son elementos que le
confieren materialidad a (concretizan) lo que se estudia cu ando
se estudia literatura, sobretodo desde una perspectiva historicocomparativa .
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Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
En el material sobre el cual me apoyo para la construcción
de este sistema comienza a revelarse de forma modesta y doméstica, a través de una carta de 1920. En ella Monteiro Lobato, ya
de gran renombre y propi~tario de la Revista do Brasil, le escribe
a Luís da Câmara Cascudo (1898-1986), entonces un intelectual
todavía inédito de una lejana provincia deI nordeste brasileno (Rio
Grande do Norte). La carta es pequena, sin embargo, ya documenta el empeno de Lobato en la construcción de una red entre
intelectuales de diferentes puntos de América: en la misma le anuncia a Câmara Cascudo el envío de una obra argentina, de la cual
había recibido algunos ejemplares para distribuirIos en Brasil:
Y espero mandarle un libro interesante que la "Nosotros", revista argentina, me encomendó que distribuya entre nuestros
hombres de letras.
Esta promesa fija la figura de Monteiro Lobato como
intermediario y difusor de la literatura argentina en territorio
brasileno, aI colocar en circulación a escritores deI país vecino, no
sólo más allá de las fronteras argentinas, sino también más allá deI
eje Rio de Janeiro -São Paulo.
Muchas y muchas cartas deI acervo de Monteiro Lobato
depositadas en la UNICAMP por sus herederos refuerzan y
detallan este su papel de divulgadorA. EI autor integra una red de
intelectuales -en especial brasilenos y argentinos- que no sólo
intercambiaban libros y divulgaban sus respectivas producciones,
sino que también debatieron y desarrollaron proyectos para
viabilizar el intercambio literario entre sus países. En la Revista do
Brasil, Monteiro Lobato publica a escritores argentinos, aI tiempo
que varios de sus textos circulan por Argentina durante los anos
veinte deI siglo pasado. 5
Estas traducciones muestran que no fue apenas desde la
posición de distribuidor que Monteiro Lobato dia curso aI (hasta
hoy) ambicioso proyecto de dar amplitud latinoamericana a un
proyecto cultural y literario. Algunos anos más tarde, también
consiguió una abundante (y hasta hoy probablemente inigualada)
circulación de sus obras en la América hispánica.
En carta de 1943 ,el comenta con su esposa las grandes
expectativas que depositaba en el mercado argentino:
4 Los herederos de Monteiro
Lobato depositaron un valioso
acervo dei escritor en el Centro
de Documentação Alexandre
Eulálio, en el Instituto de
Estudos da Linguagem, de
Unicamp. La investigación de
dicho acervo - de la cual este
trabajo es un resultado parcial
- cuenta con financiamiento de
la Fapesp y dei CNPq.
5 Urupês es publicado en
Argentina en J 921, en la
Biblioteca de Novelistas
Latinoamericanos (trad. de
Benjamin Garay), y en ese
mismo ano la revista Nosotros
(a. 15, v. 38, n. 145, mayo de
1921, pp. 96-100) publica el
ensayo "Letras brasilenas:
visión general de la literatura
brasilefia". También en ese afio
La Novela semanal (a. 5, n.
183, 16 de mayo) publica el
cuento "Negrinha" con el título
de "Alma negra" (Cf Artundo,
Patrícia. Tesis de Doctorado.
USP,2OO2).
De São Paulo ai Aconcagua: una trayetoria latinoamericana para Monteiro Lobato
6
Maria Pureza da Natividade
Lobato era la esposa de
"'Ionteiro Lobato .
Ruth Monteiro Lobato
(t 916- XXXX) fué la ultima
ruja de Monteiro Lobato y D.
Purezinha.
7
Purezinha 6 :
( ... )
Recibí el contrato de la edición de todos mis libras infantiles en
espanol en la Argentina. Todos. Y para comenzar saldrá un
bloque de cinco. El negocio me parece excelente, pues alIá podré
tener una renta tal vez mayor que la de aquí, y de ese modo
podré reservar una de esas rentas para ir acumulando una
fortunita para ti y para Ruth 7. Mi preocupación ahora son
sólo tú y Ruth. He de dejarlas bien. Tranquilicénse. Ahorrando
unos 5 contos por ano, en pocos anos estarán seguras -y habrá
la renta de mis libras aquí y alIá. Hasta 60 anos después de mi
muerte. No le temas aI futuro ( ... )
Efectivamente la promesa se cumple, aunque sólo en parte.
ÉI no se hace rico, pero su obra circula por toda América Latina.
Y algunos anos después de esta carta, Lobato sigue el camino de
sus libros: entre junio de 1946 y junio de 1947 se muda a la Argentina, donde junto a algunos amigos funda la editora Acteon.
La persistencia con que Monteiro Lobato invierte en Argentina es reforzada por una carta de ( 13 de) agosto de 1946 enviada
desde Buenos Aires aI amigo brasileno Otaviano (Alves de Lima).
En ella , Monteiro Lobato muestra una aguda percepción de las
especificidades y potencialidades dei mercado argentino (en
oposición ai brasileno). En ese sentido demuestra un tino comerciai poco común entre los hombres de letras, si bien ésto ya lo
había probado con anterioridad en los anos 20, cu ando transformó
una pequena casa editorial en la mayor editorial brasilena.
EI escritor atribuye la pujanza dei mercado editorial argentino a la gran difusión del idioma espanol, así como a una legislación
que prácticamente subsidia la producción dellibro, aI no tas ar su
materia prima:
En el campo editorial, Argentina goza de dos grandes ventajas
sobre Brasil: 1) el papel para libras entra libre de derechos de
aduana; 2) existe un mercado exterior para la producción. EI
ano pasado la praducción de libras fue de diez mil toneladas,
de las cuales cinco mil fueran exportadas. Fíjate que maravilla.
Ahí no exportamos libra alguno y sobre el papel importado
tenemos una tasa equivalente aI 100% deI precio de costa.
Solamente existe exencÍón para el papel de periódicos y revis-
103
104
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
tas. Esto explica el tremendo desarrollo de la industria editorial argentinas.
Nunes, Cassiano (org),
Monteiro Lobato vivo. RJ.
MPM Propaganda / Record
1986, p. 122
8
Es así que a lo largo de toda su vida, Monteiro Lobato fue
multiplicando sus lazos con el mundo editorial/literario
latinoamericano. De regreso a Brasil, en carta a otro amigo Godofredo Rangel - relata que
( ... ) este mes escribí 20 libritos nuevos para la Editorial Codex
de Buenos Aires, libritos juguetes, de poco texto y muchas
ilustraciones coloridas. Saldrán en dos lenguas. Y abora voy a
escribir unos seis para un editor de México -que más tarde
también podrán salir aquí. -( ... ) (30.07.1947)
Ya en su Historia dei mundo para los ninas 9 - la versión
que Lobato da de la conquista de América por los espanoles tiene
un acento critico poco comun en livros infantiles anteriores a lo
politicamente cierto de nuestros días. Ya en aquel entonces
ensefiaba Lobato que
La conquista de América por los europeos fue una tragedia
sangrienta . i A hierro y fuego i era la divisa de los predicadores
dei cristianismo . Mataran a diestra y siniestra , destruyeron
todo 10 que encontraron y llevaron todo el oro que había. Otro
espanol , llamado Pizarro, hizo en el Perú lo misino con los
incas, otro pueblo civilizado, muy adelantado que existía allí
(108)
Las lecciones de este narrador las aprendían bien los
personajes que, a semejanza de lo que se quería que se pasase
con los lectores, preguntan a quien les contaba la historia:
- Pero, l, qué diferencia hay, abuelita, entre estos hombres y
aquel Átila, o aquel Gengis Khan, que marchá hacia Occidente
con los terribles tártaros, matando, arrasando y saqueándolo
todo l,(1l0)
A esta tan sencilla cuanto actual pregunta, le contesta
Dona Benita ,la abuela tantas veces en la obra de Lobato alter
ego deI escritor :
Se trata de una adaptación dei
libro Child's history of the
world de Y.M.Hiller , publicada
en 1933 en Brasil, y que
alcanzara 9 ediciones hasta
1943. En 1947 la versión
espaiiola de este Iibro se publica
en dos volúmenes por el
editorial argentino Arnericalee.
Unacuartaedición (traducción
deM.J. de Soza) sale alaluzen
1956 por el editorial Losada (
copyright by Editorial
Americalee) . Ias citas vienen
de esta edición .
9
De São Paulo al Aconcagua: una trayetoria latinoamericana para Monteiro Lobato
- La unica diferencia es que la historia ha sido escrita por los
occidentales, y nada más natural que lleven el agua a su molino.
De ahí que nuestros historiadores consideren como fieras a
los tártaros de Gengis Khan y como heroes a los conquistadores europeos. ( 110)
Se ve asi muy temprano en su obra, la comprensión critica
de Monteiro Lobato respecto la historia de Latinoamérica. Pero
es cu ando todavía vivía en la Argentina, que el da retoques finales,
y casi inesperados, aI antiguo proyecto de una literatura de identidad
latinoamericana. En esta nueva versión de la antigua utopía, la
latinoamericanidad lobatiana va más allá deI intercambio deI mercado editorial latinoamericano. Lobato , desde Buenos Aires,
propone la latinoamericanización de su discurso literario y se
prepara para ello.
( ... ) me voy aI Peru. Esto aquí, de la misma forma que ahí, no
tiene profundidad. Son dos países que comenzaron con la llegada
dei europeo. Pero el Peru ya tenía mil metros de profundidad
cuando el europeo llegó. De modo que allá existe una
superposición de civilizaciones y razas - cosa mucho más
interesante que este inrnigracionismo de aquí y de ahí.
10 La carta es citada por Edgar
Cavalheiro que, infelizmente,
no indica la fecha ni la
localizaci6n de las cartas; pero
la veracidad de la fuente es
confinnada por otras cartas
depositadas en la Unicamp, que
también se refieren al abortado
proyecto peruano de Monteiro
Lobato.Ell4deenerode 1947,
porejempl0, e1 escritor informa
a su amigo Rangel que "(. .. )
Habiendo ya visto y hecho
amistad con los árboles de
Buenos Aires, puedo mudarme
de país y ando pensando en eso.
Escogiendo uno. Por el
momento Perú está en primer
lugar ( ... )"
Como se ve la inspiración para este salto cualitativo
latinoamericano de su proyecto literario viene deI Peru 10 :
( ... ) En estos tres meses me voy ai Peru, a vivir por allá algún
tiempo, a incarme, llamarme, guanacarme, chinchilarme, etc.,
y escribir rni mayor libro: mi pandilla de allá deI Sitio, hundida
en el Peru de Atahualpa, presencia el drama de la conquista por
los fascinerosos Pizarro y Almagro, los nazistas de la época.
(
... )
Incarse, llamarse, guanacarse, chinchilarse es una linda
metáfora deI ritual de iniciación latinoamericana para un escritor
brasilefío: pues solo después de incarse, guanacarse, llamarse
y chinchilarse, Monteiro Lobato se cree listo para escribir un
libro sobre
( ... ) toda la tragedia de la destrucción de los incas, aztecas y
mayas por los espaõoles invasores.l,La historia de América se
105
106
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
sabe por boca de quién? iDel Aconcagua! Sólo un Aconcagua
puede tener la necesaria ausencia de ánimo para contar la cosa
como realmente fue, sin falsedades patrióticas, nacionalistas,
raciales o humanas ... Cp. 233)11 .
Infelizmente, el plan no se realiza. Lobato no viaja aI Peru,
ni escribe ellibro anunciado. Deja la tarea inconclusa para que
otros la realicen, tal vez hoy, quizás nosotros . Dicho sea de paso,
aI recontar desde otra perspectiva la tragedia brasilefí.a de Canudos, tal vez Vargas Llosa haya dado un gran paso en ese sentido
de nosotros contarmos la historia los unos de los otros. EI caso es
que Monteiro Lobato regresó a São Paulo y murió un afí.o después,
el 04 de julio de 1948.
No obstante no haber escrito la historia de América por boca
deI Aconcagua, esto no impide que Lobato ocupe un lugar importante en la historia de la literatura de esta América. En la historia
de la literatura de la
América deI Sur
América deI Sol
América de Sal,
para hablar como un contemporáneo de Monteiro Lobato, Oswald
de Andrade. Así, bien antes de la formalización de las teorías de la
globalización, Monteiro Lobato parece haber sido un escritor
latinoamericano que percibió la fecundidad de la mirada oblicua
con que, observándonos los unos a los otros, vamos construyendo
una identidad que , sin embargo sus múltiplas fauces, tiene en
cada una y en todas sus vertientes la solidez fuerte deI Aconcagua
o deI Pão de Açúcar. Identidad de la cual los estudios literarios
tienen que dar cuenta lo que puede empiezar por construirse una
base de datos de las relaciones letradas y literarias latinoamericanas
y por inventar la epistemología de la oblicuidad.
II Cavalheiro, Edgar, Monteiro
Lobato: vida e obra. Tomo 2.
São Paulo: Editora Brasiliense.
3'. Ed., 1962, p. 233.
107
Euclides da Cunha e Vargas Llosa:
dois olhares sobre Canudos
Délio Combeiro
(UERJ)
U ma sintética introdução
Nunca será demasiado avivar-se a memória para o
terrível massacre de Canudos, que em 5 outubro de 2007 completará 110 anos, para a figura de seu idealizador e a de seus seguidores. Muitos títulos encontrará o pesquisador, ou um simples leitor, cuja curiosidade intelectual o leve à indagação. Desde o aparecimento de Os sertões, surgiram numerosos documentos - alguns ficcionais -, que, por vezes, fixaram alguns estereótipos a
respeito da rica temática, mas, não se pode negar, acumulam importante material de estudo. São inúmeras críticas a uma possível
influência - o comentado Facundo, de Domingo Sarmiento -; à
dura dicção euclidiana em julgar o fenômeno - o Conselheiro e
sua gente são casos patológicos -; além de tantos outros instigantes
juízos. Além disso, ao mesclar segmentos interpretativos, outros
de cunho criativo, com forte dose de imaginação sobre o fato,
provoca classificações, que a situam como uma obra híbrida, circulando entre a História e a Literatura. Raros textos, entretanto,
conseguiram subtrair-se à influência da análise de Euclides e, sem
dúvida, o autor denunciou o crime cometido contra uma coletividade, também provocou uma interpretação do Brasil.
Para esse breve trabalho de marcas comparatistas,
cotejam-se trechos de Os sertões com os d' A guerra do fim do
mundo, de Vargas Llosa, obra também extensa e cerrada. Pela
impossibilidade de nele comentarem-se as inúmeras articulações e
cenas da trama complicada e bastante enovelada, privilegiar-seão algumas passagens onde se evidenciam mais vivamente a refle-
108
Revista Brasileira de Literatura Comparada, 0.9, 2006
xão de Llosa sobre Canudos. Focaliza-se o diálogo respectivamente entre as personagens ficcional e histórica Galileu Gall e frei
João Evangelista. Pretende-se refletir sobre a representação literária dos elementos evidenciados nas primeiras linhas desse ensaio.
Uma tentativa de cotejo
Quando esteve no Rio de Janeiro, ao ser entrevistado sobre
por que escrevera uma obra sobre o sertão brasileiro, Vargas Llosa
explicou que fizera um roteiro para a Paramount, em parceria
com Rui Guerra. Não se realizou o filme - La guerra particular
ou Los papeles deI infierno - mas, desejando escrever a "Guerra
e Paz" latino-americana, ele transformou o roteiro em livro. Deslumbrado com Os sertões, assinala ter sido a obra fator importante para escrever A guerra do fim do mundo, confessando que,
através dela, o trágico episódio não fora completamente esquecido, como outros violentos choques havidos na América Latina.
Sobre Canudos, lera imensa bibliografia, assinalando a falta
de representatividade dos vencidos nos textos pesquisados. Portanto, em seu reescrever palimpséstico, retocando, à sua maneira,
o mosaico euclidiano, entrelaçou vozes representativas de níveis
sociais, econômicos e culturais. A escrita de Vargas Llosa articula
acontecimentos verídicos já longamente descritos por Euclides
da Cunha, porém, mesmo tendo como fonte a famosa obra, questiona o texto núcleo e abre imaginativos vôos, não só na construção da narrativa, bem como nos meandros da fábula. Recriando,
por outro viés, a epopéia daqueles seres despossuídos do arraial
baiano, Llosa pintou um monumental painel de imagens - misto
de crônica e situações factuais - ao repensar, em perspectiva crítica/criadora, o que chamou de um "mal-entendido nacional".
Munido do distanciamento crítico, ao inverso de Euclides, devido
à separação temporal quanto às ocorrências de Canudos, vai mesclando reflexões dialéticas às novas faces e visões do que teria
sucedido à época, por meio de um narrador onisciente e inúmeras
personagens. Desse modo, no mundo contemporâneo, sua escrita
ilumina, com agudeza, aquele sangrento episódio da História do
Brasil.
Prêmio Ernest Hemingway de 1985, essa representação da
Euclides da Cunha e Vargas LJosa: dois olhares sobre Canudos
epopéia brasileira - uma alegórica luta entre ordem e transgressão
- entrelaça experiências pessoais de diversas personagens verda. deiras e fictícias, que emergem na trama, enredadas em montagem bem atual. Os episódios sempre fragmentados retardam a
trama, modificam os focos narrativos, em alternado jogo de ações,
que, pouco a pouco, pelos vários pontos de vista introduzidos por
um único narrador onisciente, vão-se fechando e concluindo, em
micro estruturas aparentemente estanques. Embora independentes, elas se coligam por mestria técnica: na concepção de Baktin,
trata-se de uma escrita polifônica, em que vozes em contraponto,
tal qual na partitura musical, harmonizam-se, unem-se, em igualdade de importância, sem haver sobreposição hierárquica de discurso. Com essa técnica Llosa sugere ao leitor a impossibilidade
de a verdade sobre aqueles fatos ser totalmente conhecida.
O tempo narrativo reflete a fragmentação daquele universo
em múltiplas linhas cronológicas, estruturadas em constante fluxo
de idas e vindas, com imagens focadas/desfocadas, mas que se
interligam num "plot", ou seja, em uma intriga subjacente, nervo
da ação que tudo comanda: a história de Canudos e a energia
magnetizadora do Conselheiro. Pode-se dizer que, na obra, a sinuosidade temporal (re)trabalha os fatos, na tentativa de
compreendê-los, sem estabelecer visões binárias redutoras, tentando criar um tertius inclusivo e auxiliar na leitura plural do homem em situação.
A arquitetura textual sugere uma estrutura mutante - de
certa forma caleidoscópica - pois os episódios amarram/desamarram, em sucessão cambiante de quadros, impressões e sensações,
produzindo, em síntese, a ação global, deflagradora da questão
política e religiosa nacionais. A narrativa, portanto, prima pela
ausência de um ponto de vista único ou exclusivo, com seus artifícios desconstrutores, ramifica-se em histórias particulares coligadas à grande História. Tudo emerge do ataque a Canudos que,
no relato, está acontecendo, bem como da influência que a expedição ao arraial suscitou na vida de cada personagem.
Apesar de desencadeador da "guerra do fim do mundo",
Conselheiro não assume a força da enunciação. Tudo o que se
sabe a seu respeito afIora indiretamente pela descrição, atos ou
diálogos de certas personagens que gravitam pelas bordas do relato. Ancorada na História e na ficção, A guerra do fim do mundo
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Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
conserva alguns nomes históricos da obra euclidiana, entre eles,
Moreira César, que aparece em ação, como representante da ordem. Nela é qualificado de temperamento "fanático" e "obsessivo": acusações freqüentes, em Os sertões, mas em relação ao
Conselheiro. Cria também outros, de conotações não raro irônicas ou de marcas universalmente expressivas, que, por analógicas
ilações, suscitam reflexão pelo pensamento renovador que demonstram. Expressivo exemplo é Galileu Gall, cujo nome composto
lembra dois cientistas: Galileu, físico, astrônomo e escritor italiano do século XVI-XVII (1564-1642), introdutor da luneta na astronomia, além de outras inovações científicas e seu
posicionamento diante da Inquisição; Gall, o médico alemão Franz
Josef Gall (1758-1828), criador da frenologia, teoria que estuda o
caráter e as funções intelectuais e humanas, baseando-se na conformação do crânio.
Aliás, na obra de Vargas Llosa, essa personagem - amálgama
de dois cientistas - desempenha relevante papel crítico. Com a
luneta de seu olhar inquiridor, tudo para ele é objeto de pesquisa,
de questionamentos da ordem lógica e social. Na novela, ele é
também frenólogo, além de um revolucionário politicamente
engajado, com posições anarquistas, também é correspondente
de um jornal francês, cujo nome Etincelle de la révolte já acena
para a própria centelha da lucidez, o gérmen do fogo, o estopim
clarificador da rebeldia, através de idéias desconstrutoras. O
iconoclástico Galileu Gall parece ser um alter ego do narrador,
que, por meio deste, exercita sua posição diante dos fatos, valorizando os atos libertários daquele herege nos confins de Belo Monte.
Entre inúmeros da galeria imaginária de Llosa, há o Jornalista Míope, irônico epíteto, transformado em onomástico, pois
no desenrolar da narrativa jamais é dito o seu verdadeiro nome.
Sem dúvida, o autor pontua também sua crítica em relação ao
jornalista Euclides da Cunha, ao enxergar, com lentes deturpadas/
desfocadas, a veracidade das ocorrências, segundo a opinião
subliminar que mina do texto. Gall enxerga melhor do que o Jornalista Míope, que forçado a fugir chega ao arraial completamente desvinculado com o mundo de Canudos. Ele deseja escrever
um livro para relatar a guerra, porém perdera os óculos - portanto, não via - e ficara sem pena e sem tinta durante a fuga - logo,
não escrevia. Por isso, lembra Euclides, criticado por sua visão
Euclides da Cunha e Vargas Llosa: dois olhares sobre Canudos
míope da realidade de Canudos.
Em diversificadas elucubrações, Llosa transita por vários
patamares em tomo da História acontecida. Apreende o problema, contorna-o através de olhares diversificados, inverte-o em
choques de abordagens que se "dialetizam" na narrativa in fieri,
ou seja, no próprio processo de escrita. Em meio às entrelinhas,
nas dobras e subterrâneos do discurso, múltiplas são as peripécias
das personagens impregnadas de situações críticas.
No ludismo verbal de tempos e de espaços acoplados, delineia-se na obra o comportamento e a psicologia do Conselheiro,
caracterizando seu desempenho no grupo, como organizador político - o mito do herói civilizatório - como orientador espiritual
- o mito do guardião do sagrado congregador.
O narrador abre o texto com o retrato físico do Conselheiro, aludindo a seu aspecto alto e magro que parece "estar sempre
de perfil". Os mesmos trajes usados aproximam-no do perfil
eternizado por Euclides da Cunha: a mesma túnica de azulão e as
sandálias de pastor. Os detalhes focalizam parte de seus hábitos
simples, desprovidos de qualquer preocupação corporal, chegam
ao famoso epíteto - Conselheiro - que lhe deu fama e, aos poucos, compõe-se a aura mítica do chefe político-religioso. Em seguida ao primeiro retrato físico e psicológico, tem-se lírica descrição do ambiente natural dos vilarejos do sertão, à hora do
crespúculo, do qual participavam os que se sentiam amparados
por suas palavras. Nesse momento, todos o "escutavam em silêncio, ( ... ) o interrompiam para tirar dúvidas milenaristas,
escatológicas. Terminaria o século? Chegaria o mundo em 1900?"
(VARGAS LLOSA, 1987,p.17). Essas e outras alusões fornecem
subsídios para uma interpretação de ele estar ligado à experiência
do sagrado, não só pelas previsões e anúncios das desgraças dos
últimos dias, mas pela força de sua presença coroada de intensa
atmosfera mística. O epíteto de Conselheiro, que Antônio Vicente
Mendes Maciel recebeu, também corresponde àjustiça divina e à
humana, reunindo as funções essenciais de conselheiro do espírito
e da carne. Além da força carismática que exercia sobre o outro,
ele atraía seus ouvintes - já seguidores ou não - por meio da potência da linguagem que empregava em seus sermões.
Euclides da Cunha afirmou que na apreciação dos fatos o
tempo substitui o espaço para a focalização das imagens e que o
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historiador precisa de certo afastamento dos quadros que contempla, desta forma, nota-se a preocupação em compor um quadro mais fiel possível dos acontecimentos já ocorridos. Sem
aprofundarem-se opiniões de que sua obra suscita várias interpretações quanto à sua classificação, Euclides preocupou-se em transmitir um relato compromissado com a verdade impessoal dos acontecimentos, com a história e não imaginá-los - oposto a Vargas
Llosa, que, longe do espaço e do tempo de Canudos, acrescentou
a verdade ficcional da trama romanesca à realidade história do
administrador daquela cidade santa. A vida material em Canudos
era dividida por tarefas entre os adeptos, porém passava obrigatoriamente pelo crivo do líder, ratificando sua função de chefe
religioso e de legislador político. No entanto, interferir no mundo
imaterial, no sobrenatural, apenas o Conselheiro poderia fazer,
sobretudo nos tempos de luta contra o Anticristo, pois eram dele
as profecias do que haveria de acontecer. Ele já revelara em seus
sermões que as forças do "cão" viriam prendê-lo e passar na faca
toda a cidade. Por isso, com as perseguições das tropas, com o
"começo do fim do mundo", toda Canudos se uniu em tomo do
Conselheiro.
Nos dois escritores, encontra-se referência à tolerância do
Conselheiro quanto ao amor livre e à pregação contra a República, "porque o dominador, se não estimulava, tolerava o amor livre. Nos conselhos diários não cogitava da vida conjugal, traçando normas aos casais ingênuos" (VARGAS LLOSA, 1987, p.146).
Também no texto de Llosa, acentua-se o fato de os seguidores
negarem o casamento civil e praticarem, com base nas leis propostas pelo chefe, algo que a personagem Lélis Piedade - reproduzindo a fala do consenso - comenta ser promíscuo e representar a instituição do amor livre. A personagem acrescenta que, com
tal prova de corrupção e de heresia, as autoridades expulsarão os
fanáticos. Tal é a visão preconceituosa da personagem, nas freqüentes discussões dialéticas que atravessam o livro, engrandecido pelas possibilidades de diferentes leituras dos fatos.
A rebeldia quanto às normas do estado civil salienta-se nos
dois autores, confirmando-se acentuado interesse por temas de
insubordinação libertária de minorias. No caso dos iconoclastas,
o repúdio às leis da República significava estarem apenas preocupados com as de Deus, confirmadas no casamento religioso. Para
Euclides da Cunha e Vargas Llosa: dois olhares sobre Canudos
eles, era de vital importância a união frente a Deus e não diante
dos homens.
Quanto à rebeldia, Canudos é descrito como reduto de
revoltosos durante o relato de Oall sobre encontro com Frei João
Evangelista do Monte Marciano - participante do famoso Relatório sobre os acontecimentos. Nas considerações do revolucionário, Canudos sugere, dependendo do olhar que o aborde, um utópico falanstério, à maneira de Fourier, ou refúgio de insurretos
desobedientes das leis. Em comentário ao célebre Relatório, o
jornalista e frenólogo coloca a visão do Frei, que, enviado pelo
Arcebispo da Bahia ao povoado devido a denúncias de heresia,
fica assustado e enojado com o que viu. Porém, refletindo sobre o
relato do capuchinho, Oall conclui que, logicamente, por causa da
condição de religioso, sua experiência no arraial deveria ter sido
difícil de compreender, até mesmo amarga. Para suas conclusões
norteadas por princípios libertadores, diz Oalileu Oall que:
Para um ser livre o que o Relatório deixa entrever por entre
suas remelas eclesiásticas é apaixonante. A pretexto de refrear
o casamento civil, o povo de Canudos aprendeu a unir-se e a se
desunir livremente sempre que homem e mulher estejam de acordo, pois, (... ) seu condutor e guia - a quem chamam de Conselheiro - ensinou-lhes que todos os seres são legítimos pelo simples fato de nascer (VARGAS LLOSA, 1973, p. 56).
Sem dúvida, ele é um advogado das normas circulantes em
Canudos, comunga com o ideário da harmonia entre os seres envoltos pelo mesmo desejo. A entrevista do frenólogo com o
capuchinho é a oportunidade de reforçar a geografia libertária de
Canudos, opondo-se, então, à idéia de distopia eternizada por
Euclides, ao utilizar famosos sintagmas depreciativos como "urbs
monstruosa", "refúgio de fanáticos", e "civitas sinistra do erro",
Tal encontro fictício, entre Oall e o padre, realizado no refeitório
do Mosteiro é comentado com entusiasmo pelo correspondente;
confirmaria, também, nesse diálogo, a opinião de que em Canudos a gente humilde e sem experiência praticava coisas que os
revolucionários europeus consideravam necessárias para implantar a justiça na Terra. Sublinha-se aqui um dos veios essenciais: os
seres são mobilizados religiosamente pelo anseio de eqüidade social. Em Euclides, o líder, que não escondia o horror que tinha
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Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
pelo sexo feminino, chegando a não encará-las, é comparado ao
frígio Montano, no que tange a restrições impostas à aparência
física das mulheres, proibidas de se cuidarem. Já os seguidores, a
uma "farândola de vencidos da vida, gente ínfima e suspeita, avessa ao trabalho, heróis da faca" (CUNHA, 1993, p.120).
O relato do capuchinho enfatiza haver no arraial uma multidão de seres esquálidos, cadavéricos, amontoados em cabanas de
barro e palha, além de armados até os dentes "para proteger o
Conselheiro, que as autoridades tinham tentado matar antes"
(V ARGAS LLOSA, 1987 ,p.57). O padre assegurava ter visto em
Canudos facínoras perigosos, mencionando para Galileu o nome
de João Satã, um dos tenentes do Conselheiro. Tal constatação
estarrecera o religioso que, em missão ao lugar, interpelou o próprio bandido sobre a existência de delinqüentes numa aldeia que
se diz cristã. O padre recebeu como resposta que o desejo do
Conselheiro era o de fazê-los homens bons e que se algum dia roubaram ou mataram foi pela condição em que viviam. Se fossem
banidos dali cometeriam novos crimes. Além disso, entendiam a
caridade do chefe como a que Cristo praticara. A declaração entusiasma o anarquista, que a ela se refere em carta endereçada a revolucionários europeus: "Essas frases, companheiros, coincidem com a
filosofia da liberdade" (VARGAS LLOSA, 1987, p. 57).
A novela de Llosa, portanto, desenha uma geografia da liberdade e da fartura, sedimentada no mito de um espaço utópico,
criado literariamente com esse nome por Morus e, de certa forma,
materializado em Canudos por seus habitantes, pois respeitavam
o direito do outro e os bens coletivos. O arraial é enfocado como
um lugar de paz, abençoado, recebendo os seguidores o mesmo
tratamento que Jesus Cristo dispensara a seus fiéis, sugerindo a
aproximação do Conselheiro com o Filho de Deus. Com isso, a
narrativa desenha a figura do líder como um protetor, um salvador - um soter - levando sua palavra a fim de redimir não apenas
os sofrimentos materiais, a miséria, mas o crime, o pecado. Se em
A guerra do fim do mundo, Canudos aparece como terra de acolhida e aperfeiçoamento espirituais, incrustada numa geografia protetora, salvática e sobretudo revolucionária, onde o chefe legislava em leis fundamentadas no ius profano e no fas divino, em Os
sertões, a sociedade foi interpretada como bastante negativa. Gall
engrandece os seguidores, comenta que as pessoas de Canudos
::c:dides da Cunha e Vargas L1osa: dois olhares sobre Canudos
115
chamam-se a si mesmas de jagunços, palavra que quer dizer revoltados e que para elas Anticristo e República são a mesma coisa, considerando as palavras do líder religioso uma verdadeira
música revolucionária para seus ouvidos. O novo regime, perturba a estrutura consignada, é considerado o responsável por todos
os males, alguns abstratos, sem dúvida, mas também pelos concretos e reais, como a fome e os impostos. Já em Euclides, jagunço não possui a mesma conotação: no texto de Llosa recebe uma
carga romântica. O significado de revoltado, atribuído à palavra
jagunço na obra do peruano, não encontra aproximação na do
brasileiro, que o representa como um bandido. Deve-se também
considerar que a interpretação de Gall torna a palavra
engrandecedora e heroicizante, pois, etimologicamente, jagunço
não remete a revoltado. Jagunço prende-se a zaguncho, uma arma
de arremesso, semelhante à azagaia. O valor semântico atribuído
ao termo liga-se à ação defensiva da chamada Guarda Católica do
Conselheiro e de seus fiéis, tratados como fanáticos e revolucionários, em A guerra do fim do mundo e como facínoras, em Os
sertões.
Na crítica à fala conservadora do capuchinho, Gall duvida
de que ele e sua ordem sejam grandes entusiastas do novo, pois, a
República, paraíso de maçons, significou um enfraquecimento da
Igreja. Para o religioso, os conselheiristas formavam uma seita
político-religiosa insubordinada contra o governo constitucional
do país, Canudos era um Estado dentro do Estado, pois lá não se
aceitavam as leis, as autoridades não eram reconhecidas nem o
dinheiro da República admitido. Preocupado com as mudanças no
vilarejo, garantia que, da mesma forma com que se instituíra a
promiscuidade de sexos, também se estabelecera em Canudos a
promiscuidade de bens: tudo era de todos. Para Gall, contrário a
essa visão, o Conselheiro praxilizava idéias sociais novas no sertão, ainda que tão antigas no espírito humano. As "novas" idéias
sociais, segundo o revolucionário, encontravam-se taticamente veladas sob pretextos religiosos, devido ao nível cultural dos
conselheiristas. Ao final de uma carta, ele pergunta aos destinatários se não era notável que no fundo do Brasil um grupo de insurretos
formasse uma sociedade em que se aboliu o casamento, além do
dinheiro; onde a propriedade coletiva substituiu a individual.
Fiel a ideais políticos reformadores, afirma não participar
116
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
da consternação de Frei Marciano, quanto aos fenômenos observados em Canudos, pois o que experimentava com a concreta
realização de uma possível utopia na Terra era "alegria e simpatia
por esses homens graças aos quais, dir-se-ia, no fim do Brasil,
renasce de suas cinzas a Idéia que a reação acredita haver enterrado na Europa no sangue da revoluções derrotadas" (VARGAS
LLOSA, 1987, p.59).
Portanto, a partir da fala de uma personagem fictícia, Galileu
Gall, e de uma outra histórica, Frei Marciano, constrói-se no texto literário, através de dialético questionamento, a figura
emblemática do Conselheiro conforme a concepção míticomessiânica, quando um salvador viria para exercer o poder religioso e o político em uma Terra desprovida da dor e do mal. Em
sutil intertextualidade com as lendas apocalípticas do fim do mundo e com a escrita de Os sertões, Vargas Llosa retoma, em várias
passagens, o filão mítico tão difundido na cultura luso-brasileira,
oriundo da Península Ibérica, desenvolvido, sobretudo, por
Bandarra, nas Trovas, e por Vieira, em A história do futuro.
Retornando-se ao foco em que Gall se manifesta com insistentes reflexões questionadoras, tem-se, em outra carta, remetida
aos mesmos correligionários, relatos concernentes a experiências
junto a homens do povo, defensores dos objetivos do "santo guia".
Comenta a vitória dos fiéis contra os soldados do governo, diz
que os acontecimentos constatados de que os jagunços derrotaram cem soldados que marchavam contra Canudos "confirmavam
os indícios revolucionários". Contudo, acrescenta, refletindo sobre a estratégia dos seguidores, que intuições e ações corretas se
misturavam com superstições inverossímeis. Deste modo, apesar
de entusiasmo pelas práticas daqueles homens rudes, ele consegue emitir dialética visão, situando-se entre dois horizontes: louva as corretas ações, mas vislumbra arraigados aspectos supersticiosos entre os fiéis daquele cenobita. Em certa medida, nesse elo
de uma práxis concreta, desconstrutora do status quo vigente
concomitante a aspectos arcaicos de arraigadas crendices, reanima-se, na escrita de Llosa, a própria ambiência em que eclodiu a
utopia do Conselheiro: em Euclides, "um infeliz [que] destinado à
solicitude dos médicos, veio, impelido por uma potência superior,
bater de encontro a uma civilização, indo para a história como
poderia ter ido para o hospício" (CUNHA,1993, p.120). Quanto
Euclides da Cunha e Vargas Llosa: dois olhares sobre Canudos
117
a superstições, a intuições dos conselheiristas convém notar seus
comentários cientificistas sobre a dúbia psicologia do grupo:
o clã tumultuário de Antônio Conselheiro ( ... ) continuou a
marcha do desnorteado apóstolo, pervagando no sertão. ( ... )
Não cogitava de instituições garantidoras de um destino na
Terra. Eram-lhe inúteis Canudos era o cosmos (... ) transitório
e breve: um ponto de passagem terminal, de onde descampariam
sem demora (... ) (CUNHA, 1993, p. 36).
Demonstra-se, assim, a diminuição de valor na análise do
clã do Conselheiro. Tem-se o perfil "tumultuário", em que o condutor se configura um homem sem rumo, um "desnorteado apóstolo". Para Euclides, Canudos não possui a chave soteriológica,
não havendo ali uma conjuntura estável, garantindo a seus prosélitos eficaz apoio material. Aquele topos não seria um eterno cosmos, mas um caos transitório e breve. Já em Vargas LIosa, superstições e intuições são motivos que participam do traço particular
da psicologia do grupo de maneira positi va, desprovida de linguagem cientificista, caracterizadora do pensamento euclidiano.
Ainda por intermédio de GalI, em carta aos amigos, tem-se
a tentativa de questionamento racional, porém, não depreciativo,
segundo a lógica do revolucionário. Ele vai atrás de todos os indícios clarificadores do problema, sem pretender a Verdade absoluta. Logo, sem descartar quaisquer hipóteses, questiona:
São os símbolos religiosos, místicos, dinásticos, os únicos capazes de sacudir a inércia de massas submetidas há séculos à
supersticiosa tirania da Igreja e, por isso, utiliza-os o Conselheiro? Ou tudo isso é obra do acaso? Nós sabemos, companheiros, que na história não há acasos, e por arbitrária que
pareça, há sempre uma racionalidade encoberta atrás da mais
confusa aparência. Imagina o Conselheiro a perturbação histórica que está provocando? Trata-se de um intuitivo ou de um
espertalhão? Nenhuma hipótese é descartável, e, menos que as
outras, a de um movimento popular espontâneo, não premeditado. A racionalidade está gravada na cabeça de todo homem,
mesmo na do mais inculto (... ) (VARGAS LLOSA, 1987, p. 93).
Advogando a racionalidade, aliás tônica que permeia o discurso de Euclides, refletindo as coordenadas dos fins do século
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Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
XIX, Gall utiliza esse artifício lógico através de teses e antíteses,
pois diz que nenhuma hipótese é descartável, a fim de ratificar o
valor de Canudos e de seu fundador. Valoriza, entretanto, uma
racionalidade "outra", diferente do pragmatismo cartesiano que
se manifesta na observação de Euclides daqueles "sertanejos broncos"; abre, assim, a possibilidade de que se perceba com novo
olhar os que não comungam a fala oficial. A tentativa de Gall é de
compor uma explicação convincente e não preconceituosa, para
aqueles fatos advindos de um chamado profético, de marcas
escatológicas, de um imaginado corte da História pelo líder e que
culminaram na formação da cidade. Em Os sertões, o arraial concretizou a irracionalidade geográfica pelas mãos de um pietista
ansiando pelo reino de Deus e abrigaria uma horda de loucos.
Sublinhando a irracionalidade e a psicose coletiva, os seguidores
teriam sido atraídos para lá pelos "despropósitos do Santo
endemoninhado" cuja missão pervertedora levou-os a um "fanatismo que não tem mais limites". O lugar era visto como uma
distopia insana, "uma cidade dobrada por um terremoto", um
"dédalo desesperador" e um "baralhamento caótico" que "traíam
a fase transitória entre a caverna e a casa (00') traduzindo, mais do
que a miséria do homem, a decrepitude da raça" (CUNHA, 1993,
p. 232-239). Já o texto de Llosa fornece outros pontos de observação contrastantes, quanto aos elementos humanos e geográficos encontrados em Os sertões.
Eternizando por meio do texto ficcional a compreensão do
fenômeno como um todo harmonioso, lê-se no autor peruano que
"a diversidade humana coexistia em Canudos sem violência, em
meio a uma solidariedade fraterna e um clima de exaltação que os
escolhidos não haviam conhecido" (VARGAS LLOSA, 1987, p.
97). Em Llosa, não se encontra alusão ao "diagnóstico" euclidiano
dado a Canudos de loeus horrendus da loucura e do banditismo.
A população não é considerada uma turba de "temperamento
vesânico" guiada por um chefe "dominador incondicional", por
um "grande desventurado" e "retrógrado do sertão". O texto de
Llosa alude sim a uma heteróclita comunidade de necessitados e
de abandonados: índios, negros, brancos, mulatos, homens considerados de bem - ou mesmo bandidos - todos juntos em uma
comunidade de destino, unidos em constante harmonia de pensamento e de objetivos, como desejava Charles Fourier. Eram co-
Euclides da Cunha e Vargas Llosa: dois olhares sobre Canudos
mandados pelo Conselheiro, que delegava à Guarda Católica a
defesa do território sagrado e, como diz o narrador sobre o "santo", o santuário atraía peregrinos de todo o mundo, também a
atenção do Anticristo República.
Em A guerra do fim do mundo, a fala depreciativa encontrada na obra de Euclides é assumida por personagens da classe
dominante e do poder constituído. Um diálogo entre Moreira César
e o barão de Canabrava - rico latifundiário da região - retoma
idéias contidas em Os sertões quanto aos "escolhidos". Note-se
que o famoso coronel da República fala dos seguidores como hereges dementes, incendiários e ladrões de fazendas, que matavam
com balas explosivas e fuzis modernos. No entanto, o barão, suspeito de proteger os "jagunços", desmente as afirmações, declarando que tudo não passava de uma manobra para se fazer todo o
país acreditar que Canudos significava aquele perigo tão propalado.
Acrescenta, ainda, a seus argumentos:
Esses miseráveis não têm armas modernas de nenhum tipo. As
balas explosivas são projéteis de limonita, ou hematita parda
se prefere o nome técnico, um mineral que (... ) os sertanejos
usam em seus bacamartes há muito tempo. (... ) Os fuzis ingleses, sim. Foram trazidos por Epaminondas Gonçalves, seu mais
fervoroso partidário na Bahia, e para nos acusar de aliança
com uma potência estrangeira e os jagunços. E quanto ao espião inglês de Ipupiará, ele também o fabricou, mandando assassinar um pobre-diabo que, para sua desgraça, era ruivo. O
senhor sabia disso? (VARGAS LLOSA, 1987, p.92).
Mas a crítica atualizada, tendo como idôneo apoio reflexivo
Ataliba Nogueira, repensou a perseguição ao Conselheiro e a destruição de Canudos. A partir de conceitos desenvolvidos pelo estudo da revisão de Os sertões por A. Nogueira,
deduz-se não ser apropriado o título de herege dado ao fundador de Canudos. Antônio Conselheiro não pregava idéias heterodoxas. Não pode ser chamado de gnóstico, muito menos de
bronco, pois sabia ler e escrever, deixando obras de fé cujo
lastro é de raiz ortodoxa católica. Ratifica-se, dessa forma, que
ele não se opôs aos dogmas da Igreja, (... ) nunca se nominou
Messias, muito menos Salvador,( ... ) mas se negava a seguir
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Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
ordens de seus representantes. Portanto não foi um dissidente
radical da Igreja romana, como afirmou Euclides da Cunha.
estudioso viu a dinâmica do fenômeno captada, de alguma forma, porum espírito pré-concebido. (... ) Quanto a possíveis anseios
de esperanças escatológicas ( ... ), seria possível que tais fantasias místicas circulassem no imaginário coletivo dos conselheiristas,
da mesma forma que circularam em vários grupos religiosos de
várias épocas (CAMBEIRO, 2003, p. 468-470).
°
Tal linha crítica, seguida por Roberto Ventura, atribui
o ataque ao temor das classes dirigentes de que o arraiallibertário
se tomasse ameaça regional e nacional do ponto de vista da propriedade, além de constituir-se em um Estado dentro do Estado,
como diz o capuchinho a Galileu Gall. Para R.Ventura, a destruição de Canudos
se deveu menos ao anti-republicanismo do Conselheiro do que
a fatores políticos, como os conflitos entre facções partidárias
na Bahia, a atuação da Igreja contra a atuação pouco ortodoxa
dos beatos e pregadores e as pressões dos proprietários de terras contra a comunidade, cuja expansão trazia escassez de mãode-obra e rompia o equilíbrio político da região. (VENTURA,
1997, p. 90).
Assim, o diálogo entre o coronel da República e o latifundiário demonstra que o tema da propriedade é fundamental, sendo
trabalhado em A guerra do fim do mundo. Também o diálogo
entre Gall e um determinado jagunço aborda a questão da terra
como ponto de honra para os proprietários da região se defenderem contra outras possíveis investidas dos "conselheiristas fanáticos". Ao tentar explicar que a perseguição ao Conselheiro e a sua
Jerusalém eram uma defesa da burguesia contra o ataque de minorias carentes à propriedade privada, o jagunço negou ser esta
a verdadeira causa.
Para o ponto de vista daquele homem simples, o poder,
representado no coronel, enviara soldados porque os fiéis estavam construindo templos, visto que a República queria acabar
com a religião, oprimir a Igreja, os fiéis e todas as ordens religiosas. Pior ainda: instituíra o casamento civil. Replicando as afirmativas do conselheirista sobre a interpretação das causas da
Euclides da Cunha e Vargas Llosa: dois olhares sobre Canudos
guerra, Gall diz que
abolir a propriedade e o dinheiro estabelece uma comunidade
de bens, faça-se em nome do que quer que seja, mesmo no de
nebulosas abstrações, é algo ousado e valioso para os deserdados
do mundo, um começo de redenção para todos. E que essas
medidas desencadearão contra eles, cedo ou tarde, uma dura
repressão, pois a classe dominante jamais permitirá que frutifique semelhante exemplo: neste país há pobres de sobra para
tomar todas as fazendas. O Conselheiro e seus seguidores têm
consciência das forças que estão acionando? (VARGAS
LLOSA, 1987, p. 92).
Confinuando o diálogo existente nas duas obras, tem-se também a alusão ao movimento da Vandéia, acontecido durante a
Revolução Francesa. Esse sectarismo manifestado aos ideais revolucionários do século XVIII, comentado pela personagem de
Vargas Llosa como movimento retrógrado, inspirado pelos padres, foi também objeto de comparação com as leis internas de
Canudos. Em Os sertões, Euclides da Cunha refere-se aos acontecimentos de Canudos como "a nossa Vandéia", aludindo a ela em
seu livro e também em um artigo na imprensa, a possíveis "forças
monarquistas em luta contra a República ainda jovem ... "
(ANDRADE,2002,p.122).
Canudos - historicamente um "divórcio trissecular entre o
litoral e o sertão" (ANDRADE, 2002, p. 179) - em Llosa representa um autêntico paraíso concretizado, em Euclides, mesmo
guardando o caráter de um éden, o arraial é definido como um
primitivo abrigo de fanáticos e de bandidos. Para o peruano, o
Conselheiro é retratado como agente de um singular, expressivo e
importante fenômeno de uma cidadela libertária, sem dinheiro,
sem patrões, sem polícia, sem padres, sem banqueiros nem proprietários, um mundo construído com a fé e o sangue dos pobres
mais pobres. Comparando-se o texto de Euclides com o de Llosa,
mas respeitando-se as devidas diferenças de época e de visão,
conclui-se, parcialmente, que em Vargas Llosa existe uma continuidade literária do mito do chefe e da utopia salvadora, símbolo
de um mundo sem maldade, sem doenças, nem miséria. Tal espaço fora criado e liderado por Antônio Conselheiro, ser carismático
capaz de preparar os fiéis em uma comunidade sonhada, uma re-
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Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
produção da Canaã e da Jerusalém bíblicas para o milênio tão
esperado e propiciador da volta ao Paraíso. Entretanto, Euclides
da Cunha cita nomes e termos correntes à época, para descrever e
esboçar, ante o olhar de futuros historiadores, o que chamou de
um crime. Ele pretendia descrever o acontecimento sob a ótica
da realidade lógica e acabou seduzido também por pretensas manifestações sebastianistas encontradas em quadrinhas dentro dos
casebres e anotadas em sua caderneta, embora isso fosse refutado
por estudiosos, dentre estes, Ataliba Nogueira e Roberto Ventura.
Porém, cabe enfatizar que, se Euclides se preocupava
principalmente com o fato histórico, com a visão científica e racional do fenômeno, Vargas Llosa, ao contrário, investiu na romanesca recriação da história, de forma diversa, imaginativa, que,
sem abandonar o factual, descreve literariamente o movimento de
Canudos. Confirma-se na obra do escritor peruano a perspectiva
mítico-sagrada do fenômeno e, por ironia, essa constatação se
estende, ainda, à obra euclidiana, pois, ao assinalar crendices e
ignorâncias míticas/místicas, sublinha a permanência de algo primordial naquela sociedade. Inconscientemente e sob a égide da
cientificidade, que deseja demonstrar e esclarecer, em seu relato
histórico-cientificista deu relevância suficiente aos mitos que transitavam no universo de Canudos. Perpetuava-se no texto dos dois
escritores o momento em que se consolidava, na sociedade arcaica de Canudos, a metamorfose de temas confluentes, tais como:
milenarismo, heresia, utopia, messianismo. Desta forma, manifestaram dados armazenados no imaginário cultural, captaram em
épocas diversas da História fenômenos que eternizaram as ações
humanas e canalizaram para o texto a emergência do mito do chefe político-religioso.
Na tentativa de concluir sem esgotar possibilidades de outras futuras reflexões, pode-se dizer que a figura literária do Conselheiro, em Os sertões, é negativa. O autor alude ao chefe como
um evangelizador fatal e sinistro. Interpreta ter sido o Conselheiro quem arrastara aquela pobre gente para uma desgraça incalculável. A obra, apesar de registrar o mito atualizado de uma figura
carismática, carece da intenção engrandecedora, encontrada em
Vargas Llosa. Já em A guerra do fim do mundo, focalizaram-se
também as supostas ligações anti-republicanas de Canudos, desenvolvendo-se, da mesma forma, o mito do chefe político-religi-
::<.IClides da Cunha e Vargas Llosa: dois olhares sobre Canudos
oso simbolizado no sebastianismo corrente na Baixa Idade Média
portuguesa revigorado no líder. Diversas vezes, tem-se o relato
de que os fanáticos sebastianistas queriam restaurar o Império,
com a ajuda do Conde D'Eu, dos monarquistas, da Inglaterra,
apesar de a literatura encaminhar a interpretação para um movimento messiânico capaz de fundar um "mundo às avessas": um
dos topoi literários mais conhecidos (CURTIUS, 1996, p. 139144), onde não existissem dores.
Quanto à ajuda extramuros enviada por anti-republicanos
para Canudos, está igualmente tratada. Durante um diálogo entre
Moreira César e Padre Joaquim, pároco de Cumbe, a idéia de
conspiração estrangeira é apresentada em situações ridículas para
o poder. O padre, preso por suspeita de levar munições para os
jagunços, gozava de toda a liberdade no arraial, rezando missa,
visitando sua companheira e filhos, sendo interrogado por isto
pelo obsessivo Coronel:
- Falemos das balas explosivas (... ) Entram no corpo e estouram como uma granada, abrindo crateras. Os médicos não tinham visto feridas assim no Brasil- de onde vêm? Algum milagre, também? (... )
- Que um padre tenha filhos não me tira o sono - diz Moreira
César. Preocupa-me, apenas, que a Igreja Católica ajude os
facciosos. Diga o nome de outros sacerdotes que ajudam Canudos (VARGAS LLOSA, 1987, p. 254-255).
Durante o diálogo entre o coronel e o padre, aparece mais
uma vez a descrição psicológica dos jagunços através da ótica do
poder, sugerindo-se no perfil ambíguo do seguidor a concepção
da natureza do chefe: louco, místico, santo e bandido.
Durante o interrogatório, as dúvidas e os mistérios
envolvendo o Conselheiro também se mostram:
- O Conselheiro? - pergunta Moreira César, sarcástico. - Um
santo, sem dúvida?
- Não sei, Excelência - diz o prisioneiro. Eu me pergunto todos
os dias, desde que o vi entrar em Cumbe, há muitos anos. Um
louco, pensava no princípio. (... ) Apareceram uns padres
capuchinhos, enviados do Arcebispo, para investigar. Não entenderam nada, assustaram-se, também disseram que era lou-
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Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
co. Mas como se explica então, senhor? Essas conversões, essa
paz de espírito, a felicidade de tantos miseráveis?
- E como se explicam os crimes, a destruição de propriedades,
os ataques ao Exército? - interrompe o Coronel (VARGAS
LLOSA, 1987, p.256-257).
Além da interferência das personagens Gall, Frei Damião e
Padre Joaquim, chega-se a uma configuração de Canudos, do
Conselheiro e dos fiéis, através do Jornalista Míope, que apresenta outro ângulo do fenômeno. Os pensamentos do Jornalista sobre tudo o que se passava e o futuro da guerra são investigados
pelo narrador.
Acompanhando os acontecimentos, estava presente no instante da conversa entre o Padre e o Coronel. Após o encontro, o
Jornalista Míope foi tocado por questões instigantes, buscando
mentalmente respostas esclarecedoras. Ele faz indagações para
compreender se Canudos podia ser explicado somente através dos
conceitos de conjuntura, rebeldia, conspiração, intrigas dos políticos que pretendiam a volta da Monarquia. Com as palavras do
padre tivera a certeza de que não era bem assim. Para ele, formava-se o contorno de algo "difuso, desatualizado, incomum, algo
que seu ceticismo não o impede de chamar divino ou diabólico ou
simplesmente espiritual" e que uma dúvida sobre a verdade o leva
à pergunta: "O que é então? (VARGAS LLOSA, 1987, p.233).
Uma conclusão parcial
Justamente tal pergunta gerou, nos textos literários e críticos uma série de conceitos os mais variados sobre o fato. Uma
polêmica se instala quanto ao comportamento de alguns seguidores, encarregados da defesa de Canudos contra ataques externos.
Nas descrições de Euclides da Cunha e Vargas Llosa, os adeptos
aparecem como guerreiros e se igualam na força aos militares.
Todavia, é considerado estranho um grupo de pessoas religiosas
apresentarem uma milícia armada. Os jagunços, em Os sertões e
em A guerra do fim do mundo, formaram a Guarda Católica, ambígua designação das "tropas" conselheiristas. Os dois autores
atestam a existência de uma brigada de defesa composta de fanáticos e de antigos perseguidos pela polícia. Outra observação é
::udides da Cunha e Vargas Llosa: dois olhares sobre Canudos
feita a respeito de armamentos, citados pelo dois autores, mas
refutado, no incidente das madeiras, pela crítica revisionística, em
especial de A. Nogueira. Quanto ao porte de armas, a explicação
é simplificada, já que normalmente um sertanejo traz sempre algo
que o defenda do ataque de um animal ou de um salteador em
suas incursões pelo mato.
Sejam eles jagunços armados - significando um revoltado
ou um bandido - ou simples fiéis fanáticos, deve-se recorrer à
força do Conselheiro que, em suas peregrinações e sermões persuasivos, conseguiu arrastar todos os componentes da margem para a página da existência. Tentando colocar o ser humano
acima dos desejos e paixões da vida material, ela atraía a atenção
dos ouvintes com suas promessas de um futuro restaurador, de
uma romântica ordem social igualitária. Por se sentirem atacados,
constituíram um grupo defensivo, apavorados pelo medo de serem dispersados. Os bens que conseguiram recolher, trazidos por
aqueles que aderiam à causa, eram de todos. Eles temiam que
acabassem em mãos do Anticristo República, a força
desarticuladora de Canudos - para Euclides, um "dédalo
desesperador de becos estreitos, ( ... ) em absoluta desordem, ( ... )
[obra de] uma multidão de loucos" (VENTURA, 1992, p.91) porém experimentado como omphalos, como o centro do mundo,
pelos seguidores.
Em A guerra do fim do mundo, Antônio Conselheiro é, para
alguns, um santo e um revolucionário desejando efetivar, socialmente, ideais igualitários. Para os representantes do poder é um
fanático rodeado de bandidos. Já em Os sertões, é um doente paranóico aliciador dos desprovidos que viam na sua figura e palavra a única salvação propagada em seus sermões. O organizador
religioso e político sugerido por Vargas Llosa, em Euclides da
Cunha, é um louco apóstolo extravagante, perseguido por estigma atávico, portador de uma "psicologia especial". Ressaltado
por Vargas Llosa como um líder organizador, preocupado não
apenas em salvar os homens do Anticristo República, emA guerra do fim do mundo, ele é o líder social e religioso de seus seguidores, munido de autoridade necessária para livrá-los do pecado e
conduzi-los à salvação após o juízo final.
Assinala-se que a essência rebelde e a síntese revolucionária
da utopia imaginada e concretizada por Antônio Conselheiro é
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Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
indicada ainda por Gall, aquele idealista que se identifica com o
líder e com o arraial. Mas sua preocupação é com o material, com
o quotidiano, assim, afasta seu questionamento sobre a desigualdade entre os homens do campo metafísico e místico, não se empenha em responder às questões que lhe coloca, a personagem
Jurema:
- O senhor acredita que o Conselheiro foi mandado pelo Bom
Jesus? Acredita nas coisas que ele anuncia? Que o mar será
sertão e o sertão mar? Que as águas do Vaza-Barris vão virar
leite e suas barrancas, cuzcuz de milho pra que os pobres comam? (VARGAS LLOSA, 1987, p.233).
Para finalizar, destaca-se a passagem em que durante sua
viagem rumo a Canudos, a fim de conhecer a cidade prometida e
seu fundador, Gall encontra um grupo de sertanejos que vagava
e lhes fala da seguinte maneira, em clara adesão àquele tão criticado projeto:
_ Não percais a coragem, irmãos, não sucumbais ao desespero. Não estais apodrecendo em vida porque um fantasma escondido atrás das nuvens assim o decidiu, mas porque a sociedade está mal formada. Estais assim porque não comeis, porque não tendes médicos nem remédios, porque ninguém se
preocupa convosco, porque sois pobres. Vosso mal se chama
injustiça, abuso, exploração. Não vos resigneis, irmãos. Do
fundo de vossa desgraça, rebelai-vos, como vossos irmãos de
Canudos. Ocupai as terras, as casas, apoderai-vos dos bens
daqueles que se apoderaram de vossa juventude, que roubaram vossa saúde, vossa humanidade ... (VARGAS LLOSA,
1987, p. 233).
Euclides da Cunha e Vargas Llosa: dois olhares sobre Canudos
127
Referências
ANDRADE, O. de Souza. História e interpretação de Os sertões. 4.ed. rev. e
aum. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras, 2002.
CAMBEIRO, D. A figura literária de soter e herege em Os sertões, de Euclides
da Cunha. In: MALEVAL, M. A. T. e PORTUGAL, ES. (orgs.) Estudos
galego-brasileiros. Rio de Janeiro: H. P. Comunicações, 2003.
CUNHA, E. da. Os sertões. São Paulo: 1993, Cultrix.
CURTIUS, E. Literatura européia e Idade Média latina. São Paulo: Hucitecl
USP,1996.
NOGUEIRA, A. António Conselheiro e Canudos. São Paulo: Editora Nacional,
1974.
VENTURA, R. Canudos como cidade iletrada: Euclides da Cunha na urbs
monstruosa. In: B. A. Junior e I. M. Alexandre (orgs). Canudos: palavra de
Deus sonho da terra. SãoPaulo: SENAClBoitempo, 1997.
VARGAS LLOSA, M. A guerra do fim do mundo. 16.ed. Rio de Janeiro:
Francisco Alves, 1987.
129
Motérioux pour une étude de lo réception
de lo littéroture brésilienne en Fronce
1 Ce texte est la version
3ugmentée d'une communi.:ation, « Littérature brésilienne
en France : limites et fondements », au colloque de
i' Université de Pau organisé par
!e Centre de Recherches
Poétiques et Histoire Iittéraire :
Bourlinguer en écriture. Les
:nfluences croisées francobrésiliennes organisé par Eden
víana Martin et Nadine Laporte,
(janvier 2006), inédite, à
paraitre. Ce texte s' adressait au
départ à un public français non
spécialisé. 11 reprend des
éléments parus dans FranceBrésil (direct. Michel Riaudel,
ADPF, 2005), « La réception de
la littérature brésilienne en
France », p.67-72. 11 integre
également des éléments de la
communication du colloque sur
« La formation du roman au
Brésil ». Pour Ie détail des
ceuvres traduites, je renvoie à la
Bibliographie francobrésilienne de Georges Raeders
(Rio de Janeiro, 1960) qu'on
complétera avec Estela dos
Santos Abreu: Brasil França,
ouvrages brésiliens traduits en
France (B.N., Rio, 2004).
Pour I'histoire de la traduction
et de la réception de cette
littérature,je renvoie à mes deux
livres Encontro entre literaturas .' França Portugal
Brasil (Hucitec, 1995) et
Dialogos
interculturais
(Hucitec, 2005). On se reportera
aussi à Mario Carelli, Cultures
croisées, Nathan, 1993 et à
Marie Hélene Catherine Torres :
Variations sur l' étranger dans
les lettres.' cent ans de
traductions françaises des
lettres brésiliennes (Artois
Presses, Université 2004).
Pierre Rivas
(Sorbonne Nouvelle, Paris 111)
La littérature brésilienne se situe, dans le systeme de la
littérature mondiale, comme ultra-périphérique, au sens ou les
organismes intemationaux parlent de centre, périphérie, semipériphérie, périphérique longtemps par rapport au Portugal, luimême périphérie de la Péninsule ibérique. La relation CentrePériphérie, théorisée un temps, dans le sillage post Braudel de
I' «économie-monde» a élaboré I' idée de dépendance culturelle:
une littérature du soupçon, entre plagiat et épigonisme, voire
exotisme, la frappant d'illégitimité, car transposant des idées
«intempestives hors de leur lieu»l
Pareillement périphérique, la place du portugais dans le
systeme mondial de la traduction, ses flux et refluxo Les
spécialistes ont montré que les langues du monde constituent un
systeme de communication hiérarchisé, qui se vérifie dans le flux
des traductions. 11 y a des langues dominantes et des langues
dominées. L'anglais est aujourd'hui la langue hypercentrale :
50 % des traductions se font à partir d'elle ; puis des langues
centrales : le français (10 %) et I' allemand ; puis des langues semipériphériques : espagnol, italien ; les autres langues : arabe, russe,
chinois, portugais, se situent au-dessous de 1 % (on voit donc
que la hiérarchie d'une langue est indépendante de son extension :
il y a des langues internationales et des langues régionales, même
avec des milliards de locuteurs). 11 y a une relation entre hiérarchie
des langues et flux des traductions; si paradoxal que cela paraisse,
plus une langue est dominante et plus on traduit à partir d' elle et
moins elle traduit vers elle. Le systeme anglo-saxon est tres auto-
130
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
centré; la France s'est longtemps nourrie d'elle-même ; elle
traduit aujourd'hui plus de littérature brésilienne que les USA2.
Le handicap brésilien est ici encore manifeste: position
périphérique ; une langue «rare» selon la terminologie officielle,
et Iongtemps non institutionnalisée dans l'enseignement (et à
I' avenir incertain et menacé aujourd'hui).
Handicap encore: une insularité géo-culturelle face aux vingt
Amériques hispaniques qui n'ont jamais perdu le contact avec
I' ancienne métropole espagnole, laquelle leur a servi de relais et
de chambre d'échos dans le monde hispanique et le reste du monde, en particulier grâce aux maisons d'édition à Barcelone, et au
rôle d'agents littéraires. Tel n'est pas le cas du Portugal, exmétropole qui a vu sa colonie grandir et s' auto-centrer, ou les
relations littéraires se sont distendues au point, parfois, de s' ignorer.
Handicap encore: I' écrivain hispano-américain écrit pour un
immense public, vingt pays, une ex-métropole attentive, dans une
langue intemationale. Cela explique le «boom» latino-américain,
auquelle Brésil ne participe pas. L'écrivain brésilien écrit dans
une langue méconnue et sans échos autres, parfois, que son «état»
régionaI, hors de grands centres légitimant (São Paulo, Rio). En
ce sens, la littérature brésilienne est une littérature «mineure», au
sens de Deleuze, «périphérique» au sens néo-marxiste. L'héritage
portugais Iui-même, prestigieux et trop ignoré, est une voix
solitaire, élégiaque et désaccordée face à I' ostentation espagnole.
Le Portugal salazariste a longtemps tenu à I' écart cette littérature
d'un modemisme subversif et, malgré le Prix Camões, ces deu x
littératures se connaissent mal.
La littérature hispano-américaine a su trouver depuis
longtemps sa consécration à Paris, capitale de la République
Mondiale des lettres, qui a intemationalisé ces littératures, imposant
Borges malgré la réticence de ses compatriotes, ou Paz. La présence
d'écrivains, diplomates ou en exil, d'universitaires, de colonies
importantes «d'expatriés» ont été des relais fondamentaux, en
particulier dans l'université. Tel n'est pas le cas pour les Brésiliens,
émigrant peu, et I' enseignement de leur Iangue a été essentiellement
investie par des Portugais.
Se pose donc ici le problême central des intermédiaires et
des traducteurs. Ferdinand Denis a été au XIxe siêcle le fondateur
des études brésiliennes (et, d'une certaine maniêre, l'apôtre et le
2 HEILBRON, 1. et SAPIRO, G.
in Actes de la Recherche en
Sciences sociales, n° 144. Les
traductions représentaient en 2003,
2,8 % du total de la production
éditoriaIe ~ricaine.
\'Iatériaux pour une étude de la réception de la littérature brésilienne en France
SurcesnoIm,cf.rresdeuxlivres
cités en note 12, et le colloque
Lisbonne atetier du lusitanisme
.trançais, études réunies par 1.
PENJON et P. RIVAS, Paris,
Presses Sorbonne Nouvelle, 2005,
l04p.
.1
" Voir «V Latbaud, agent secret
des littératures luso-brésiliennes en
France» et «Demiere tentation de
V Latbaud,le Brésil", in Cahier
des Amis de V. Larbaud,
respectiverrent n° 34, 1997,87 p.
et n° 5, nouvelle série, Edit des
Cendres, 2005, 157 p. (études
réunies par P. RIVAS).
5 Je renvoie à mon article <<Fortune
et infortunes de 1. Amado en
France, réception comparée de
I'reuvreamadienne»,inJ.Amado,
lectures et dialogues autour
d'une lEuvre, Paris, Presses de la
Sorbonne Nouvelle, 2005, p. 23 à
30. Sur le régionalisrre,je rappelle
\estravauxd' Anne-MarieThiesse.
On sait que le régionalisme n' est
qu' une variante de I' exotisme : le
paysan mêrre Français, est <<I1otre
frere farouche» plus proche du
caboclo que du Parisien.
parrain d'une Iittérature brésilienne autonome). Ces médiateurs
Iittéraires indispensables ne sont pas toujours des traducteurs, IesqueIs
manquent OU de rigueur ou de gout, sans réelle formation jusqu' à
récemment. Hommage ici à des passeurs inspirés teIs Phileas
Lebesgue, Pierre Hourcade ou Armand Guibert3 • Roger Caillois a
joué un rôle central avec La Croix du Sud, mais Ies trop rares titres
brésiliens se circonscrivent à une veine essentiellement régionale. V.
Larbaud a été «1' agent secret des Iittératures Iuso-brésiliennes» ; Ie
Brésil fut sa «demiêre tentation»4 . C' était un exceptionnel «passeur»,
mais isolé, mal épaulé par des traducteurs peu inspirés ; et la maladie
a vite mis un terme à cette trop brêve saison.
II faut ici insister sur une question centrale s' agissant de la
réception de cette Iittérature. Le BrésiI est un pays-continent, qui,
à l' inverse de I' Amérique hispanique, ne s' est pas balkanisé. Mais
l'unité impériale n'a subsisté qu'au prix des autonomies régionales.
La littérature brésilienne est une, mais constituée de régionalismes
Iittéraires spécifiques, des «comarcas» (AngeI Rama). La
cartographie littéraire du Brésil ne cOIncide pas avec sa réception
à l' étranger. Une Iarge partie de cette littérature ne passe pas à
l'étranger. L'horizon d'attente du lecteur français (mais
généralisable) ne s'intéresse qu'à une partie três géographique et
circonscrite: la littérature du Nord-Est.
Donc, il faut analyser la réception de cette littérature dans
ses diversités régionales : quelles régions Iittéraires retiennent
principalement, voire exclusivement, I' intérêt français? C' est une
question épineuse et qui génêre beaucoup de malentendus dans le
dialogue France-Brésil.
Depuis le Romantisme, avec F. Denis, l'intérêt français va
naturellement, vers la différence, de I'!ndien au XIXe siêcle jusqu' à
la reconnaissance du Noir au xxe siêcle. Phileas Lebesgue «adapte» Iracema pour un public adolescent. Mais il faut surtout insister
sur l'importance de la littérature régionaliste en France au début
du siêcle. Les deu x principaux traducteurs français, Lebesgue et
Gahisto, sont des militants régionalistes, venus du Nord,
provinciaux hostiles à la littérature parisienne, mondaine,
psychologique ou avant-gardiste, et séduits par I'idée de race, non
raciste mais enracinée, celle d'un «peuple», de «I' intérieur»5 . Cette
séduction ethnographique explique leur attention au courant
régionaliste, en particulier à Monteiro Lobato, à l'Enfer et au
131
132
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
Paradis vert amazonien, mais aussi à Alcides Maya, ou au caboclo
de C. Neto. Ce sera aussi le cas de I' autre important intermédiaire,
Jean Duriau. Les trois collaborent à la Revue de ['Amérique [atine
qui est entre les deux guerres, la principale revue ouverte à ces
pays. Ajoutons qu'ils sont pareillement hostiles aux avant-gardes
littéraires tenues pour jeux gratuits du parisianisme. Or le Brésil
doit se libérer de ces modeles. À peine sacrifient-ils au «roman
psychologique et mondain» d' A. Peixoto.
Les «fortunes contrastées» de Machado de Assis et Graça
Aranha relevent pareillement de stratégies idéologiques,
diplomatiques et mondaines. Le succes de ce dernier relevant de
I' antigermanisme alors frénétique en France, de son «nacionalismo para barressiano» (G. Freyre), et, accessoirement, du «roman
philosophique à idées» mis à la mo de par Paul Bourget. Bergson
le loue comme «le représentant par excellence de la pensée
brésilienne». Pour O. Lima, présentant Machado en Sorbonne, le
plus grand éloge est de le placer entre Mérimée, Renan ou Daudet;
de le réduire, en fait, à la tradition de la latinité quand Aranha
serait aux avant-postes du combat pour la civilisation. Canaan,
pour Jacques Bainville, est I' équivalent des Déracinés de Barres.
Machado est un artiste, Aranha un penseur, trop peu «Brésilien».
II faudra attendre Roger Bastide pour le restituer au lecteur français
à sa brésilianité intérieure fonciere dans sa préface à la traduction
de Quincas Borba en 1955. La traduction de Dom Casmurro en
1936 avait quelque peu déplacée les références, d' Anatole France
vers Sterne (René Lalou dans les Nouvelles littéraires) et voire
Dickens (Gahisto dans le Mercure de France en 1937). Tous ces
traducteurs sont plus sensibles au courant loca liste (ils traduisent
C.Neto, M. Lobato, A. Azevedo, etc.) qu'au versant cosmopolite
(ni Machado, ni les modernistes) ; à la poésie néoparnassienne
(Bilac), pas à la modernité poétique - accessoirement Ribeiro
Couto, en poste en France.
Ces stratégies officielles de 1'idéologie de la latinité rendent
ainsi hommage, en Sorbonne, en 1909, à Machado de Assis sans
lui rendre justice: honoré, à peine traduit et inaperçu. On lui
préférera Graça Aranha, plus idéologue. Son statut rappellera assez
celui de Eça de Queirós à qui on préférera Teixeira de Pascoaes,
plus idiosyncrasique. Mais le roman réaliste européen, Galdos,
Verga, Fontane, ne trouvera pas plus de curiosité en France,
\latériaux pour une étude de la réception de la littérature brésilienne en France
133
attentive à-Ia- seuIe- singularité- anglaise ou -russe: La politiqueofficielle fait traduire Nabuco ou Rui Barbosa sans aucun écho.
Les relations mondaines, la comédie des gens de lettres faciliteront
les traductions de A. Celso ou A. Peixoto et plus encore celle de
Graça Aranha. Mais beaucoup de ces traductions sont à compte
d'auteur (Eneas Ferraz, etc.).
L'absence de relais éditoriaux est ici manifeste malgré la
présence de l'éditeur Garnier, O Bom Ladrão, dont Figueiredo
Pimentel disait que son représentant au Brésil ignorait tout de
cette littérature.
L' officialité incline à une lecture sollicitée de cette littérature.
Ainsi de I'Anthologie de Victor Orban publiée en 1913, à la demande de O. Lima, et qui est bien contestable et trop officielle. Un
paradigme regne encore, celui, dysphorique, de I' anthropologie
des Lumieres, de De Paw à Buffon et Hegel: continent de
«l'immaturité physique et morale ... pays inachevés ... enfants
inconscients [simple] écho du vieux monde» ... expression d'une
vie étrangere, dit Hegel dans la Raison dans l'histoire.
«La formation du roman brésilien», laborieuse et difficile
est le propos du livre en français de B. Costa, le Roman au Brésil
(1918). Il cite à peine «Mémoires d'un sergent de la Milice», qui
n' aurait qu'une valeur documentaire. Ronald de Carvalho, dans la
Revue de Geneve d' avril 1921 sera moins fervent de Aranha, plus
ouvert à Macedo, attentif à Lima Barreto, «un Sterne plus ému,
un Gorki moins rude». Les références de B. Costa sont «Ia haute
littérature française» : Bourget, Hermant, MareeI Prevost, Anatole
France. Voulant analyser les «moments mentaux» du Brésil,
montrer «I'éclosion du roman au Brésil, son développement», il
retient quatre écri vains de référence: Machado de Assis, la colonne
ionienne, sobre et élégante; A. Azevedo, naturaliste «dorique»,
Coelho Neto, néo romantique composite, et, culmination et
couronnement, Graça Aranha, colonne corinthienne (à I' exception
de Machado, tous ces écrivains sont aujourd'hui absents des
librairies françaises, comme le sont Abel Hermant, MareeI Prevost.
Paul Bourget).
Graça Aranha et Coelho Neto seront les écrivains les plus
traduits, ou les plus loués. lei se vérifie encore la géographie
littéraire du Brésil français: Alencar, Azevedo, etc., tous écrivains
du Nord, du Nord Est, du Maranhão, de Bahia, de l' Amazonie,
134
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
attentifs à une lignée d'expression sociale, romantique ou réaliste,
aux «scenes de la nature» quasi ou franchement exotiques. Ce
sont des écrivains «bombásticos», boursouflés, qu' on qualifierait
de néo-baroque, ou d' épais sensualisme.
Vn peu de cette constance pourrait se retrouver dans le
succes de J. Amado en France, qui fut considérable et qui, s' il doit
un peu au départ, aux stratégies politiques, l'a incontestablement
transcendé, en faisant l' écrivain le plus lu et par un lectorat
largement ouvert. Mais son succes permet de revenir sur la lecture
«idéologique» et téléologique de Costa, pour qui le roman brésilien
- à I' image du français - devrait passer du pur phénoménisme de
Macedo ou de Almeida, du grossier sensualisme de Azevedo (et
sans doute aurait-il pensé ainsi de Amado), au «grand» roman
idéologique de Aranha. On a à juste titre soutenu que la matrice
du roman brésilien du XIXe siecle ne se trouve pas dans le roman
européen du XIXe siecle, mais dans celui du XVIIle siecle chez
Steme ou Diderot, et, au-delà, chez Cervantes ou Rabelais, comme
le dit Milan Kundera. D'ou la modemité, aujourd'hui reconnue,
de Macedo ou de Manuel Antonio de Almeida.
Il faudra attendre, dans la lecture et la réception de la
littérature brésilienne en France, les travaux de Roger Bastide apres
la Seconde guerre, pour qu'un changement de paradigme, décisif,
se produise et que la littérature brésilienne soit reconnue dans son
altérité et Machado dans sa radicale et universelle différence. Mais
le modemisme brésilien, la littérature du Sud, reste encore
largement étrangere au lectorat français. La «dépendance» parait
jouer en sa défaveur. «Simple écho du vieux monde»? Le saut
qualitatif du modemisme brésilien par rapport aux avant-gardes
européennes échappe encore à nos ethnocentrismes.
L'unité de la littérature brésilienne est faite de tension entre
deux pôles, le cosmopolitisme et le localisme pour reprendre
I' opposition de Antonio Candido. Littérature à double registre,
fatalité de I'héritage colonial - entre Mémoire européenne et
Fondation américaine, entre tentation centrifuge et vocation
centripete, entre Machado de Assis, écrivain de stature
intemationale à la mesure d'un Flaubert, et Euclides da Cunha,
I' auteur de l' épopée nationale des Sertões, entre Clarice Lispector
qui n'est pas indigne de V. Woolf et Jorge Amado, le chantre de
Bahia. S'il fallait réduire tres vite l'horizon d'attente du lecteur
~ fatériaux
pour une étude de la réception de la littérature brésilienne en France
• Voir mon article <<Le Brésil
dans l'imaginaire français:
tentation idéologique et
récurrences mythiques», in
Images réciproques du Brésil
etdelaFrance,IHEAL,1991.
français face au Brésil, on hasarderait le fantasme duprimitivisme
sous ses deux formes, répondant aux deux moments fondateurs
de son émergence ; celui de la Découverte, des «descobridores»
et, disait Borges, dans ce mot, il y a or: vision de l'Eldorado, du
Paradis Terrestre, le pays du désir (Hegel), de lajouissance (Lacan)
et, à I' opposé, celui des «conquistadores» colonisateurs cruels:
l'Enfer, la violence, l'esclavage, l'anthropophagie, marquant
négativement conquérants et autochtones. Ce sont ces deux veines
qui traversent I' imaginaire français de Montaigne et Jean de Lery
à Cendrars et Lévi-Strauss.
Dans l'imaginaire français, sur la longue période, le Brésil
appara'it à la fois comme remords (colonial) et désir (fantasme)
d'une incomplétude française. C'est la veine «exotique» et
primitiviste qui travaille nos fantasmes brésiliens. Elle constitue
l'horizon d'attente français, à la fois son fondement et ses limites. Limites quand la France réduit le Brésil à sa latinité
périphérique pour des raisons géo-politiques; cette littérature est
une «copie» du modele français et Machado de Assis un Anatole
France des Tropiques. Les Modernistes de São Paulo, pour Blaise
Cendrars ne font que singer les modes parisiennes, tard et mal.
Cette littérature est donc, dans sa dimension universaliste ou ses
modalités modernistes, frappée d'illégitimité ou d'épigonisme.
C' est la veine régionaliste, la plus idiosyncrasique pour les uns,
la plus «exotique», se plaindront beaucoup de Brésiliens ouverts
à la Modernité et en quête de reconnaissance internationale, qui
retiendra le lecteur français - non plus le double de la France, sa
pâle copie, mais sa contre-figure. L'horizon d'attente français,
dans les années 30, perd de sa superbe ethnocentrique et travaille
les tréfonds archai'ques et primitivistes: crise de la raison
occidentale, émergence de I' ethnographie, du freudisme, du
marxisme, du Surréalisme6 • Ces tropismes vont trouver dans la
veine régionaliste «enracinée», «archai'que», du Nord-Est leur
«Supplément d'âme»: le roman social, surtout celui de Jorge
Amado, dont on ne saurait sans injustice réduire le succes à
I' acti visme de I' internationale communiste, ni à son seul exotisme,
ni, plus tard, à son côté érotico-populiste.
Pourquoi cet intérêt pour le roman régionaliste-social
nordestin, cette ignorance des grands romans urbains de Machado de Assis et ce constant désintérêt pour le Modernisme ? Blaise
135
136
Revista Brasileira de Literatura Comparada, 0.9, 2006
Cendrars n' avait que sarcasmes pour ces modernistes de São Paulo
qui I' avaient accueilli si généreusement, assurant qu' il ne resterait
d' eux que « quelques romans illisibles et une pincée de plaquettes
rares », leur préférant Bahia et Pernambuco, «les deux mamelles
des Belles Lettres et des Arts Brésiliens [ ... ] qui ont mis le Brésil
dans le grand courant de la littérature mondiale à côté des USA»
(préface à I'Enfant de la plantation de Jose Lins do Rego, repris
dans Trop c' est trop). II y aurait à dire et à redire sur les propos et
sur la position de Cendrars dans le champ littéraire français d' alors.
II y a un double malentendu, de Cendrars, Robinson Suisse
s'ensauvageant dans le Brésil «archa'ique» et fuyant les milieux
littéraires (à la maniere de Jean Jacques) et des modernistes tentant
de fonder une tradition nationale que «le pirate du Lac Léman»,
«pourri de littérature» dit Mario de Andrade pourrait compromettre
dans son utopie de la «tabula rasa ».7 II y a un double malentendu
entre Cendrars et les Modernistes à propos de deux Brésils - des
deux Brésils. Mais les choses n' ont guere changé, même apres
qu' on a traduit, édité, étudié, le Modernisme 8 • Et le succes
d' Amado perdure.
Le Brésil est bien la contre-figure du modele français. Face
à une littérature du soupçon, s' épuisant en psychologisme,
minimalisme, néoclassicisme, formalisme, narcissisme
autofictionnel, le roman nordestin affirme sa confiance dans le récit,
son abandon au Iyrisme, sa force tellurique, sa dimension épique:
I' émergence de ce que Milan Kundera appelle «le roman du Sud
et sa généalogie : Rabelais, l' oralité, le créole, I' esthétique de
I' invraisemblance, Rushdie, Naipaul, Garcia Marquez,
Chamoiseau» .
Face à I'utopie de lamodernité à I'heure de la mondialisation
arasante, le roman du Sud - y compris Faulkner et Glissantoppose, selon I'expression d'Homi Bhabha (O local da cultura)
«des cultures de la contre modernité, résistant à leurs oppressives
technologies assimilationistes». Le Brésil est le pays de I' «homem
cordial» contre I' individu sérialisé.
Mais I' altérité brésilienne ne se réduit pas à la nature tropicale,
la vitalité du Noir ou I'énigme de l'Indien. Le mystere des origines
et la fascination de la transe exportent beaucoup de stéréotypes et
de clichés alimentant en retour et multipliant les fantasmes français
et leurs écrits sur le Brésil, et pas seulement chez Cendrars.
l' ai esquissé ces poiots in
«Ceodrars Homme Nouveau,
Nouveau Monde», in Europe,
spéciaI Ceodrars, oo 566, juin
1976 ; dans «B1aise Cendrars et
I' avant-garde» in Blaise Cendrars
20 ans apres, Klincksieck, 1983,
et dans <<Éloge du déserteUD>, in
B. Cendrars, le bourlingueur des
deux rives, A. Colin, 1995 (sous
la direction de Qaude Leroy).
7
g
Sur le Modernisrne brésilien, voir
Ie nurnéro 599 d' Europe, mars
1979.
Matériaux pour une étude de la réception de la littérature brésilienne en France
137
Cette réception - et cette veine française - désesperent le
Brésil du Sud face à la persistante méconnaissance de leur avantgarde littéraire et de leurs grands écrivains classiques. Littérature
exotique d' exportation: putes aguichantes et voyous au grand creur.
Mais la France a exporté aussi nos paysans madrés de Maupassant
et les Marseillais de Pagnol. Et on a plus lu à l' étranger Hervé
Bazin que Julien Gracq.
11 faudrait ici distinguer entre auteurs lus - et trop «lisibles»
(Gide de Amado) et auteurs reconnus dans le canon littéraire à
I' étranger - cas des hispano-américains Borges, Cortázar, Paz.
Machado de Assis est une référence pour Susan Sontag ou Carlos
Fuentes. Son reuvre, relue à la lumiere, non plus de Anatole France,
mais de Steme, voire de Dostolevski ou de Pirandello, est un peu
mieux reconnue d'une élite restreinte et mérite de I' être davantage.
Le seul auteur brésilien qui a trouvé un certain statut littéraire
est Clarice Lispector, à travers Helene Cixous; le relais se fait à
travers la littérature féministe qu'elle n'a jamais prétendu
représenter. Elle est une référence dans un certain systeme littéraire
français, mais en marge, que sa qualité littéraire transcende
infiniment.
Entre le grand lectorat - Amado - et les instances de
légitimation - Clarice - qu'y a-t-il ? Des noms, souvent éphémeres.
Le modemisme pauliste n'a pas trouvé son public, même restreint
à une élite et Graciliano Ramos pas beaucoup plus. La prégnance
en France du roman nordestin et amazonien est corroborée par les
tropismes des chercheurs français. Lévi-Strauss, RogerBastide
enseignant à São Paulo, mais travaillant sur 1'lndien et le Noir et
ignorant les travaux de leurs collegues du Sud (Sergio Buarque de
Holanda ne sera traduit - Racines du Brésil- que tres tardivement
alors que Gilberto Freyre est traduit et fêté à Cerisy-Ia-Salle). Les
manifestations de cette Année du Brésil- de I' ouverture indienne
au Grand Palais aux musiques nordestines et aux expositions sur
l' Amazonie en sont encore la preuve.
La réception d 'une littérature étrangere donne toujours lieu
à des malentendus : la place de Poe en France, celle de Laforgue,
de Corbiere ou de Supervielle en Angleterre le montre assez. La
différence brésilienne est particulierement manifeste s' agissant de
la poésie et sa réception spécifique. Vn lectorat partout réduit et
davantage en traduction ; la nécessité de traducteurs inspirés
138
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
maitrisant la langue source et la langue cible ; des maisons d' édition
dévouées. Mais il faut dire encore que la trajectoire de la poésie
brésilienne au XX e siêcle est irréductible, elle ne recoupe pas les
grands courants poétiques internationaux, le Surréalisme par
exemple, à l'écart des grandes tendances, y compris sudaméricaines. Le Modernisme, dans sa radicalité, et le concrétisme,
derniêre utopie de I' avant-garde, ont pu retenir I' intérêt de quelques
revues, de quelques maisons d' édition et paraitre même parfois
confisquer toute la parole poétique brésilienne dans des chapelles
ou des ghettos de revues. Quelques grands ont été traduits (Carlos
Drummond de Andrade, Ferreira Gullar). Mais on ne trouve aucun
recueil de Bandeira, de João Cabral de Melo Neto. On peut se
féliciter de voir traduit quelques figures féminines exemplaires:
Ana Cristina Cesar, Hilda Hilst, etc. Là encore, c' est la singularité
de cette poésie, à I' écart des grandes tendances, qui peut expliquer
leur isolement : un certain schématisme formeI, une réticence
certaine aux images, un ostinato rigore dans la philosophie de la
composition, une radicalité extrême dans I' expérimentation, aucun
de ces grands poêtes qui aient connu la consécration d'un Neruda,
d'un Borges, d'un Paz, d'un LezamaLima. De grands poêtes exilés
et ensevelis dans leur insularité.
La facile séduction brésilienne et son exotisme réducteur
cachent la difficile altérité brésilienne et son opacité. Le vertige de
I' altérité peut se tradu ire dans les épiphanies de Clarice Lispector
mais plus difficilement dans I' ethos amazonien ou I' aridité du sertão. - qui est une image de I'âme - chez Euclides da Cunha ou
Guimaraes Rosa: le paradis vert est surtout un enfer9 • La culture
orale, qui est la matrice de cette littérature, donne sa séduction
aux romans de J. Amado, et sa difficile appréhension à ceux de G.
Rosa.
Pour Hegel, l'Europe désormais, c'était la Prose. L'Épopée,
la Poésie, le Mythe étaient le terrain et le terreau du Nouveau
Monde, pays ou I'on rencontre le Diable, les Esprits, la Mort, le
Double, le Merveilleux médiéval ; pour la théorie post-coloniale,
les sociétés périphériques sont la mémoire et le laboratoire des
contre-cultures. Ceci se vérifie au Brésil plus qu'ailleurs. D'ou
peut-être la difficulté d'appréhender ces lectures sinon à travers
stéréotypes et clichés? Mais est-ce une bonne approche que ce
réductionnisme socio-critique ou idéologique ?
La veine nordestine a retenu
I' édition française. L' autre grande
fascination est I' Amazonie. Mais
le grand livre amazonien pour le
lecteur français est Forêt vierge,
l'reuvre du portugais Ferreira de
Castro <<tIaduit" par B. Cendrars.
9
Matériaux pour une étude de la réception de la littérature brésilienne en France
10 On trouvera un état de la
question dans le n° 919/1920
d' Europe, Littérature du Brési~
nov.-déc. 2005, organisation
Michel RIAUDELet P. RIVAS
et dans France Brésil, ADPF,
2005, sous la direction de M.
RIAUDEL, qui releve I'état
présent des traductions
disponibles actuellernent dans la
librairie française. On trouvera
égalementdans cetouvrage,sous
le titre «La réception de la
littérature brésilienne en France»,
une prerniêre ébauche de ce texte
sur les Matériaux ici repris,
élargi et augmenté.
Cetlcprésenlaliondel'é1mpresem
de la littérature brésilienne en
France, sommaire, rapide,
panoramique, certainement
arbitraire, s' adresse à des lecteurs
français non avertis. On peut la
prendre, de même que ces
Matériaux, comrne une vision
française qui, à ce titre, avec ses
limites et ses limitations peut
intéresserle~brésilien
comrne docwnent.
En conclusion, faisons le point sur I' état présent de cette
réception de la jeune littérature lO •
On peut la résumer par ces deux pôles constitutifs dês I' origine,
entre tradition naturaliste et régionale et cosmopolitisme
international. La lignée néo-naturaliste de la «Génération de 90»
s'établit pour nous dans la tradition fondatrice de notre imaginaire
comme terre de la sauvagerie, de la violence, de la cruauté. Les
Nouveaux Cannibales sont les jeunes des banlieues sensibles, «les
sauvageons» de la périphérie. Ce sont les romans de lafavela: ainsi
de la Cité de Dieu de Paulo Lins, de Tant et tant de chevaux de Luiz
Ruffato ou des romans de Patricia Melo. Trafiquants de drogue,
psychopathes, marginaux, romans de la violence urbaine, dont le
pêre est Rubem Fonseca. Littérature à la lisiêre du document, de
l'image, dans un néo-naturalisme exacerbé, un hyper réalisme brutal, alimenté par et alimentant les media, telenovelas ou films assurant ainsi continuité et rupture dans notre horizon d' attente et
nos premieres images : la Terre du Mal, de I' exces, de la démesure.
L' image édénique, la nostalgie des origines, notre rêverie
récurrente, primitiviste et amazonienne s'infléchit en nostalgie non
plus de I' espace, mais du temps et de la mémoire chez Milton
Hatoum, auteur amazonien mais habité de sa mémoire libanaise et
orientale, tissant de songe une élégie mélancolique. Cette veine
orientale (Raduan Nassar) voire orientaliste (Alberto Mussa)
dessine, dans une littérature généralement expressionniste, un filon
qui déréalise le réel. Ce travail de déréalisation est au centre de
romans de Chico Buarque (Budapest) et de Bernardo Carvalho,
plus maniériste et post modeme (Mongolia, Neuf nuits) traduisant
l'incertitude, la perplexité, l'instabilité d'un Brésil déraciné de son
terreau rural et perdu dans ce Nouveau Brésil.
Vision dilacérée de ces deux Brésils, entre enfer et paradis,
qui s'inscrit dans la lignée d'un imaginaire brésilien de Cendrars à
Orsenna, de Peret à Rufin, voire dans l'émergence d'un roman noir
français chez Bernard Mathieu ou Mathieu Térence, entre euphorie
et dysphorie, enchantement et désenchantement du monde. Le succes
intemational de Paulo Coelho, dans son formatage de best-sellers
déterritorialisé, laisse peut-être encore sourdre un peu de cette
prégnance d'une quête et d'une nostalgie d'un autre monde.
l39
141
Lições de viagens, devoção religiosa e
sobrevivência nos trópicos: o Brasil no
romance juvenil francês oitocentista 1
I A pesquisa de que resulta este
texto só foi possível graças a uma
temporada de estudos no Centre
de Recherche sur le Brésil
Contemporain da École des
Hautes Études en Science
Sociales, Paris, onde realizei, no
priIreim seJreStre do ano de 2005,
um estágio pós-doutoral. Para
tanto, contei com a orientação de
Jean Hébrard e obtive bolsa de
estudos da CAPES.
2 Sobre
os dados biográficos de
Amelie Schoppe, consultar
Brinker-Gabler (1986). Maria
Teresa Cortez (2003) apresenta
um estudo sobre a representação
do Brasil na novela alemã Die
Auswanderer Nach Brasilien
Oder Die Hütte Am
Gigitonhonha, de Amelie
Schoppe, no qual oferece
indicações sobre o percurso
intelectual da autora
Andréa Borges Leão
(UFC)
República mundial das letras juvenis
Amelie Weise Schoppe nasceu em Fehmarn, uma ilha ao
norte da Alemanha, no dia 09 de outubro de 1791. Com o pai, o
Dr. Friedrich, foi iniciada na arte de curar, e, após a morte do
"médico da cidade", em 1798, mudou-se para Hamburg. Lá, instalou-se na casa de um tio acabando por abrir uma escola para
meninas, em 1823, com uma educadora chamada Fanny Tarnow.
Antes disso, Amelie cumpriu o destino das moças de seu tempo:
casou-se com um jurista, teve três filhos e ficou viúva. Seu casamento não lhe trouxe muita felicidade. Após a morte do marido,
passou a escrever livros com o objetivo de sustentar a família.
Publicou, então, obras com lições de sabedoria e moral a fim de
guiar as crianças na vida prática, além de colaborar para muitas
revistas e editar jornais de moda na Alemanha e em Paris, dentre
os quais se destaca a Revista Para Jovens Iduna. Suas obras somam mais de 200 títulos e, além do francês, algumas foram
traduzidas para o inglês, o holandês e o tcheco. Em 1851, a escritora emigrou para os Estados Unidos onde faleceu no dia 25
de setembro de 18582 •
Julie Nicolase Delafaye-Bréhier nasceu na cidade francesa
de Nantes, então capital da Bretanha, no dia 15 de março de 1785.
Seus pais eram um casal de burgueses comerciantes, Jean Julien
Marie Bréhier e Marie Jeanne Pichon. Em 1793, Julie trocou a
Bretanha por Saintonge, a região de sua mãe, abandonando o catolicismo e tornando-se protestante. Cresceu educada pelo tio,
Auguste, um cura constitucional e poeta a quem a escritora dedi-
142
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
cou seu livro L'[ntérieur d'une Famille ou Le Récit du Voyageur.
Com o pai, não menos afetuoso e severo que o tio, Julie definiu-se
escritora. No texto da dedicatória - À la mémoire de mon pere do livro Le Robinsonfrançais, publicado logo após a morte de
Bréhier, a autora traça o perfil de uma figura austera a qual nunca
teve coragem de glorificar em vida. A conduta do pai lhe servira
para a composição dos personagens. Em 1812, casou-se com o
médico Gratien-Claude Delafaye. Julie cultivou uma longa relação de amizade literária com seu primeiro editor, o livreiro especializado em coleções juvenis Alexis Eymery, dedicando-lhe o livro Le petit voyageur en Gréce ou lettres du jeune Evariste et de
safamille. Julie Nicolase, ou Mme. Delafaye-Bréhier, consagrouse escritora de sucesso de livros juvenis classificados como romance moral, gênero bastante popular. Faleceu em 1850, após
concluir sua maior obra - o romance histórico Histoire de ducs de
Bretagne: raconté par um pere ases enfants, publicado pela casa
Lehuby, herdeira dos Eymery, em 1851 3 •
O que há em comum entre as trajetórias individuais dessas
duas mulheres de letras? Se partirmos de suas origens sociais,
linhagem materna e paterna, e de suas estratégias de aliança no
universo letrado, suas inserções na República das Letras, veremos duas figuras femininas típicas do período: familiarmente bem
dotadas por capitais escolar e cultural, os quais convertem em
educação e escrita. Essas mulheres constituem-se pólo dominado no mundo da produção intelectual. Às vezes, de tão discretos, seus trabalhos são, por longos anos, invisíveis, o que, no
entanto, não as impede de cultivar a singularidade do próprio
nome, reivindicando publicamente suas autorias. Os exercícios
de cópia, o gosto pelas cartas e pelas narrativas dialogadas que
orientam os romances epistolares, a prática dos deveres de estilo, o cuidado com os usos das palavras, todas as experiências da
intimidade, levam as duas escritoras à entrada num lento percurso de afirmação da individualidade, que tem corno conseqüência
imediata o investimento na carreira literária através da escrita de
livros para ajuventude. Não por acaso as duas caprichavam nos
prefácios e dedicatórias que antecediam os textos de seus livros,
segredando detalhes de suas vidas domésticas, desenhando-se
como criadoras singulares e, claro, preparando elas mesmas a
recepção de seus romances.
3 Para os dados biográficos de
Julie Nico1ase Delafaye-Bréhier,
consultar D' Amat e Prevost
(1982). E os seguintes documentos: Catalogue Général
des Livres Imprimés de la
Bibliotheque Nationale (s/d);
Catalogue Général de la
Librairie Française Pendant 25
ans (1840-1815).
Lições de viagens, devoção religiosa e sobrevivência nos trópicos: o Brasil no romance juvenil francês oitocentista
Amelie Weise Schoppe e Julie Nicolase Delafaye-Bréhier
têm em comum um élan criador e a paixão pela educação moral.
Partilham um universo de temas, preocupações e referências comuns que define suas autorias no gênero da literatura de formação pedagógica. Como mulheres de letras cumprem seus papéis
no longo processo de interiorização das obrigações sociais através dos dispositivos de imposições e apropriações das práticas de
leitura. Afinal, o leitor que aprende a lição, domina a emoção.
Amelie e Julie Nicolase ocupam lugar de honra nas experiências
que orientam o processo de civilização (Elias, 1994), e, a uma
certa altura de suas carreiras, chamam a atenção dos livreiroseditores. Daí a conveniência em publicá-las e a aposta feliz no
sucesso comercial de suas obras.
Uma outra disposição bem mais desafiadora revela o traço
de união entre as duas: uma rica imaginação literária, misto de
sensibilidade e razão, que as conduz ao exotismo tropical. Amelie
e Julie Nicolase elegem o Brasil e o sistema de relações coloniais
como tema de um de seus romances juvenis. As duas escritoras
parecem contar com as mesmas fontes de inspiração e trabalho,
que orientam a trama dos enredos e a descrição de personagens
índios e negros americanos, viajantes e emigrantes europeus, tão
próximos e distantes. Lendo seus livros, chega-se à conclusão de
que as duas damas estavam muito bem informadas sobre a história
do Brasil e de que seus conhecimentos não eram apenas documentais e livrescos.
De início, suas obras destacam-se pela excelente aceitação
obtida daqueles que' referendam as leituras na Europa do século
XIX: os livreiros-editores e o público leitor. No ano de 1828, é
publicado, em Berlim, um romance de Amelie Schoppe intitulado
Os Emigrantes no Brasil ou Cabana de Gigitonhonha. Ilusão, sabedoria e moral para viver, que conta a história da vinda de uma
família de emigrantes alemães para o Brasil. Esse livro conhece uma
longa vida na França. Inicialmente é traduzido livremente do alemão por Mlle. R. Du Puget para a Librairie de L'Association pour
la Propagation et la Publication de Bons Livres, tal era a recomendação de suas lições de sabedoria e moral para viver.
Em 1839, a narrativa alemã dos Emigrantes no Brasil inicia
sua longa carreira de imitações francesas (adaptações livres do
texto original) feitas por Louis Friedel para a Biblioteca da Juven-
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144
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
tude Cristã dos impressores-livreiros católicos Alfred Mame, de
Tours. A obra é devidamente aprovada pelo Arcebispo daquela
província. Em 1842, alcança a 3° edição, em 1853, está na 7°, e
em 1870 comemora uma 9° edição de puro sucesso pedagógico e
comercial. A partir de 1851, é traduzida do alemão também em
sucessivas edições por F-C. Gerard, para a livraria-editora
Mégard, de Rouen. Na nova casa, compõe a Biblioteca Moral da
Juventude e ganha, em 1862, o título de Robinson Brasileiro. Suas
tiragens variam entre 3.000 a 4.000 exemplares, garantindo sucesso de vendas para os Mégard até 1866. A partir daí, a obra é
publicada até o ano de 1918 pela casa editora Eugene Ardant, de
Limoge, não mais como tradução, e sim como imitação de F. C.
Gerard, indicando a transação de compra e venda entre os livreiros.
O romance Os Portugueses da América - lembranças históricas da guerra do Brasil em 1635 (contendo um quadro interessante dos costumes e usos das tribos selvagens, e detalhes instrutivos sobre a situação dos colonos nessa parte do Novo Mundo), de Julie Nicolase Delafaye-Bréhier, tem sua trama ambientada durante as batalhas da primeira fase da ocupação holandesa em
Pernambuco. Obtém aprovação do Arcebispo de Paris no dia 28
de outubro de 1846. Dois meses após, em dezembro, obtém sua
inscrição na Bibliographie de la France - founal Géneral de
L'imprimerie et de la Librairie, para ser definitivamente publicado pela casa Lehuby, em 1847. Classificada como uma obra destinada à juventude, mais precisamente como uma "Americana ao
uso da juventude", chega a três tiragens no ano de sua publicação.
A primeira, publicada em um volume in-8 ilustrado com 12
litogravuras em duas cores, preto e branco, pelos artistas Auguste
Lemoine, Janet-Lange e Giraud, é vendida aos livreiros a 250 francos (o exemplar custa 6 francos). A segunda, oferece as mesmas
ilustrações, mas baixa de preço, custando 175 francos. Já a terceira, vem nas cores ouro, vermelho, azul e violeta, num exemplar de
charmosa capa e apresenta nova queda de preço: toda a tiragem
custa apenas 100 francos.
Este artigo analisa o modo pelo qual os livros Os Emigrantes no Brasil ou Cabana de Gigitonhonha (na versão francesa de
P-C Girard), e Os Portugueses da América colocam o problema
da colonização, da nacionalidade, da instrução religiosa e da aplicação mOfal. O ponto de vista adotado é o de uma sociologia
Lições de viagens, devoção religiosa e sobrevivência nos trópicos: o Brasil no romance juvenil francês oitocentista
histórica das práticas culturais (Chartier, 1990). Associando a categoria de representação do mundo social aos modos de produção, difusão e apropriação dos objetos culturais, essa abordagem
privilegia, na análise do trabalho de construção dos significados
das obras, o estudo dos processos a partir dos quais os textos
conhecem suas publicidades.
N as histórias imaginadas por Amelie e Julie Nicolase, os
povos selvagens adquirem o estatuto de modelos e contra-modelos postos ao uso dos leitores e de seus pais em todas as etapas da educação moral. A popularização de suas obras, com sucessivas reedições e imitações por todo o século XIX, produz
gerações de leitores europeus que, na onda da expansão do comércio de livraria para a América Latina, acabam encontrando
os leitores de além-mar, como as crianças e os jovens brasileiros. Isto supõe a existência de um universo cultural comum entre as duas comunidades de leitura, com os mesmos modos de
recepção das mensagens, os mesmos preconceitos e categorias
de percepção do mundo social da América Portuguesa, configurando uma república mundial das letras juvenis.
Em 1858, mais de dez anos após a primeira edição parisiense,
Os Portugueses da América entram para a biblioteca de obras instrutivas e recreativas do catálogo de venda da Livraria de BaptisteLouis Garnier e passam a ser adquiridos na loja da Rua do Ouvidor.
O romance entra no Brasil como obra importada, jamais obtendo
tradução para o português. Os Emigrantes no Brasil igualmente
não foram traduzidos para o português e muito menos entraram
para as coleções de livros importados da livraria francesa.
Lições de viagens: o romance moral sobre o Brasil
No século XIX, a formalização do Brasil como nação não é
recurso exclusivo da historiografia ou das narrativas ficcionais de
escritores brasileiros. Antônio Candido (1959) nos chama a atenção para a importância do pensamento crítico do francês Ferdinand
Denis, que, pioneiramente, no livro Résumé de I'histoire littéraire
du Portugal suivi du résumé de l'histoire littéraire du Brésil (1826),
reconhece e confere tratamento literário aos temas nativistas, à
natureza e ao índio brasileiro. A consciência de autonomia e independência da literatura brasileira em relação a Portugal formulada
145
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Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
por Denis, que viveu alguns anos no Brasil, acaba por contagiar
um grupo de jovens escritores que, entre os anos de 1832 e 1838,
morava em Paris. Dentre eles, estava José Gonçalves de Magalhães e Manuel de Araújo Porto-Alegre. Em 1836, Magalhães
publica um ensaio sobre a história da literatura brasileira na revista do grupo denominada Niterói, no qual traça seu programa de
renovação estética fincando os marcos do início francês do romantismo brasileiro.
Ao lado dos homens de letras e de ciências que se formavam em viagens pedagógicas a Paris, os livreiros estrangeiros estabelecidos no Rio de Janeiro são personagens decisivos para a
criação do mito nacional. O projeto intelectual que orienta suas
partidas para a América Latina e, uma vez firmado o negócio da
livraria, as trocas internacionais possibilitadas pela circulação dos
textos, a importação e tradução de obras clássicas, sua distribuição em função de categorias específicas - como as idades - para
posterior organização em coleções temáticas - como as Bibliotecas Juvenis -, assinalam práticas que vão muito além da pura e
simples relação comercial com os clientes ou da imposição de
modelos culturais.
A categoria de "brasileiro", com a correlata invenção das
tradições nacionais, não se define apenas pelo trabalho estilístico
da escrita. A rede de edição sobre a América e, como parte dela,
sobre o Brasil, formada em países como a França e a Alemanha,
também contribui para a invenção nacional. Essa produção toma
por base tanto registros descritivos, dos quais os livros de viagens
e os compêndios de história natural são bons exemplos, como
romances destinados ao público juvenil, os quais elegem a vida e
a natureza tropical - as florestas com histórias recheadas de
heroísmos e barbáries dos índios, a escravidão negra e a vinda dos
emigrantes -, como temas e guias para desenvolver o senso moral
dos jovens leitores. A prática da venda de livros é também a disseminação de idéias e modelos de escrita.
A voga do exotismo tropical na produção literária para a
juventude mostra que a conjuntura que antecede a especialização e industrialização do mercado editorial francês é marcada
por um sistema estético produtor de singularidades, com amplo
espaço para os países americanos, e para o Brasil em particular,
ao mesmo tempo em que se desenvolvem as apostas do comér-
Lições de viagens, devoção religiosa e sobrevivência nos trópicos: o Brasil no romance juvenil francês oitocentista
cio de livraria na expansão internacional. Enquanto a livraria
francesa se instala no Brasil, a partir de meados do século XIX,
ou mais exatamente, enquanto os livreiros Garnier desenvolvem
o livro na Corte do Rio de Janeiro, o Brasil é produzido literariamente na França.
No Rio de Janeiro oitol;entista, já podemos vislumbrar um
princípio de diferenciação do incipiente público leitor. Haja vista a
variedade temática das coleções classificadas nos catálogos, por
exemplo, de venda da Livraria de Baptiste-Louis Garnier para os
anos de 1857-1858, que vão desde as obras importadas de recreação juvenil, as novelas e romances ilustrados franceses, os livros
de artes militares, de história natural e religião, dos dicionários e
compêndios escolares em várias línguas, até as obras de legislação, comércio ou economia política. Esses livros, saídos dos prelos franceses e belgas, podiam ser lidos ou tomados de empréstimo nos clubes e gabinetes de leituras de obras estrangeiras. Alguns anos antes, havia um, de propriedade do francês Cremieux,
situado na Rua da Alfândega, que tinha como sócio e freqüentador
assíduo o jovem José de Alencar. Foi lá que o futuro escritor conheceu os romances "marítimos" de Walter Scott e Cooper, assim
como os clássicos de Alexandre Dumas e Balzac, Arlincourt,
Frederico Soulié e Eugene Sue (Alencar 1998: 54-55).
Ademais, sabemos, por intermédio de Márcia Abreu (2003:
118-131), que de há muito os cariocas apreciavam as leituras de
livros importados. Com a abertura dos portos, levas de estrangeiros, adultos e crianças, passaram a residir no Brasil e, certamente,
a se constituir público leitor para os clássicos ingleses, franceses e
espanhóis. Alguns jovens conheciam autores como Berquin,
Fénelon ou Mme. Leprince de Beaumont. Mesmo com a fiscalização exercida pelo Desembargo do Passo, entre os anos de 1808 e
1826, aponta ainda Abreu (2003: 124), era expressiva a presença
de livros juvenis importados no Rio de Janeiro. Exemplo do título
Les escoliers en Vacance, de Mme. Delafaye-Bréhier, que teve
autorizada sua entrada e permanência no Brasil. Destaca-se, no
período, a presença das governantas estrangeiras nos espaços
europeizados das famílias - as senhoras professoras. Essas damas
tinham como função a educação sentimental de crianças e jovens
(Leite, 1997). Elas modelavam, assim, de acordo com suas referências culturais e lingüísticas, o gosto de seus discípulos.
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Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
Por isso mesmo, Baptiste-Louis Garnier mantém, num de
seus catálogos (1857-1858), quase duzentos títulos em francês
classificados como lembranças, crônicas, anedotas, geografias,
viagens e descrições. Em muitos deles, o Brasil figura como tema.
A literatura de viagem atrai a curiosidade pelo pitoresco da aventura, realçando a coragem dos marinheiros diante das intempéries
na travessia, narrando histórias de naufrágios e fazendo descrições romanceadas dos modos de vida e crenças de povos desconhecidos, quase sempre os índios americanos. Na França, as bibliotecas de educação moral e formação religiosa passam a incluir
títulos que se destacam pelas interpretações das comunidades ditas selvagens (indígenas e africanas) oferecendo uma forma de
instrução que não representa perigo para a fé porque fundada nos
ritos da conversão, do batismo e do matrimônio.
Além dos romances, as descrições metódicas das cinco partes do mundo, Europa, Ásia, África, América e Oceania, os mapas, tratados de geografia, pequenos fragmentos do universo, estimulam o interesse pela ciência natural, pelas visitas aos museus
e o convite aos gabinetes. Mas, aos olhos desembaraçados de uma
criança, as serpentes, monstros e festins antropofágicos devem
em muito mais aguçar os medos e satisfazer a curiosidade. Nesse
momento, o descobridor Cristóvão Colombo entra para o panteão
dos heróis da juventude e sua história passa a constar nas biografias de crianças célebres, servindo como modelo cultural. Tanto é
que o famoso escritor Julio Veme acaba romanceando sua biografia.
Com relação aos escritos sobre o Novo Mundo, é principalmente sobre a vida do índio brasileiro que recai o novo projeto de
aplicação das regras morais. Seus costumes, a alegria emanada
dos cantos, danças e festins, as caçadas e lendas apaixonadas sobres suas origens, tomam-se motivos para reflexões sobre os excessos provocados pela barbárie, como a condenável prática da
antropofagia, que até os podia excluir dos domínios da civilidade,
mas, ao contrário do esperado, os elege como preferidos dos leitores. A Europa testemunha o nascimento de uma paixão romântica e juvenil pelo exotismo tropical.
Esses temas constam nas coleções de livros juvenis da livraria parisiense dos irmãos Garnier e, uma vez firmado o gosto do
público francês pela literatura de viagem, são exportados para o
Brasil. Para os leitores europeus, representam o conhecimento da
Lições de viagens, devoção religiosa e sobrevivência nos trópicos: o Brasil no romance juvenil francês oitocentista
Não se pode desconhecer que o
século XIX foi marcado pela
leitura como competência
universal dos franceses e que a
extensão da familiaridade com o
objetos escrito, impresso e
manuscrito, só tenha sido possível
tardiamente aos brasileiros. Mas,
estudando os catálogos de venda
parnajuventude da livraria carioca
Garnier, tive a dimensão do
leitorado juvenil diretamente
educado em francês, que era
numeroso o suficiente para
justificar a oferta dos quase
duzentos títulos de livros
importados. A respeito da leitura
no século XIX naFrnnça, consultei
Crubellier (1990) e Hébrard
(\990).
4
diferença, mas para os leitores brasileiros, as descrições funcionam acima de tudo como espelho e memória. Um universo cultural comum liga, por laços de afinidade na leitura, uma elite intelectual e juvenil do.Yelho e do Novo Mund04 • E para os produtores de textos, "a descoberta da América e os fracionamentos da
cristandade tornam-se instrumentos de um duplo trabalho de classificação e conhecimento: a relação com o homem selvagem e
com a tradição religiosa" (Certeau 2000: 213). É nesse domínio
que uma cultura encontra-se com a outra.
O gênero classificado como viagem, ainda que composto
de textos heterogêneos entre si, acaba por fazer parte de um
outro gênero de perfil mais ficcional - o romance de formação
moral. As descrições são apropriadas pelo novo regime literário
e passam a intervir como referências e contra-referências nas
etapas previstas para a educação. Preferencialmente, o romance
moral destina-se aos adolescentes. Seus objetivos são confessos
- a aplicação dos princípios cristãos através das ações modelares
dos personagens. Define-se como literatura espiritual, divertida
e instrutiva. Seus livros visam a produzir uma sensibilidade
engajada na crença e antes de serem publicados necessitam passar pelos comitês eclesiásticos de leitura, que funcionam como
primeiros censores, anteriores mesmo aos livreiros e aos pais.
Esses comitês inauguram um sistema jurídico-religioso de controle dos textos. Os editores Mégard, de Rouen, grandes distribuidores de livros de coleções infantis por toda a França e, através dos Garnier, difusores da literatura francesa para o Brasil,
não dispensam o exame prévio das autoridades responsáveis pela
educação religiosa. Essa prática assinala uma submissão ao que
Jean-Yves Mollier (2000) chama de "lógica da demanda social"
- no caso, atendendo aos objetivos da Igreja Católica -, característica do antigo regime da produção editorial.
Se a observação dos sentimentos de homens primitivos,
quase próximos aos animais, e o estabelecimento de comparações
com os homens civilizados, nutre uma imaginação literária, acaba
também por suprir necessidades de ordem pedagógica. Uma viagem para o Brasil mobiliza sentimentos de medo e fascínio, ao
mesmo tempo que nutre sonhos de fortuna alimentados pelas notícias das terras férteis e das minas de pedras preciosas. É o que
propõe a saga dos Emigrantes no Brasil. Amelie Schoppe, sua
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Revista Brasileira de Literatura Comparada, 8.9,2006
autora, tira todos os proveitos das situações de incerteza e perigo,
caminhando na tradição pedagógica dos contos de advertência,
prevenindo os jovens europeus contra o fascínio e a cegueira da
ilusões. Fazer a América era o mesmo que escolher o abandono a orfandade.
A literatura "novomundista" de aplicação moral compara a
escravidão branca, a qual se vêem submetidos os emigrantes no
Brasil, com o sistema da escravidão negra, levando os leitores a
incorporar, ou a manter bem sólido, o valor moderno da liberdade
do indivíduo - principal conquista da Revolução Francesa.
Note-se que o âmbito de circulação do romance moral é o
universo cultural juvenil, não contando ainda essa classe de textos com o estabelecimento da Sociologia como ciência explicativa
do comportamento. Os modelos e contra-modelos oferecidos
pelos índios e negros escravos americanos, a antropofagia, as
fugas e insurreições, a constituição de uma estrarlha República
dos Palmares, entre uns, e os maus hábitos da nudez, entre outros, ambos relacionados à heresia, à perda do decoro da civilidade e aos perigos de embrutecimento dos comportamentos, ou,
tudo posto ao contrário, as virtudes da vida natural, deveriam
levar a mocidade a voltar-se para o seu interior e, partindo da
intimidade, compreender os motivos da ação e fortalecer suas
relações com a crença.
O bom e o mau selvagem, figuras do pensamento romântico
europeus, entram no projeto moral pedagógico na condição de
parâmetros de comparação frente às desvantagens e máculas da
civilização. Por isso mesmo, o romance moral pode igualmente
surtir efeitos contrários, uma vez que as práticas e significações
produzidas pela leitura nem sempre correspondem aos anseios e
imposições dos autores e livreiros-editores. E, se o novo leitor se
identificasse com a vida nas florestas tropicais, livre de bússolas,
mapas ou quaisquer constrangimentos morais? Acima de tudo,
qual o efeito disso para os leitores brasileiros?
Para colocar a moralidade em ação faz-se necessária, acima
de tudo, a pronta adesão das mulheres de letras, como Amelie e
Julie Nicolase, aproximando-as dos eclesiásticos. Observa-se um
processo de transferência de sacralidade dos padres para as escritoras, nesse momento particular da disputa pela posse do poder
legítimo sobre a aplicação da moral, travada entre o conhecimen-
5Há uma vasta linhagem do
pensamento intelectual europeu
sobre o fudio americano, e, por
conseguinte, sobre os brasileiros.
Destaco as fontes clássicas dos
séculos XVI e XVIII; Montaigne
eRousseau. UmafillVedeconsulta
muito iIqxxtanteé o livro pioneiro
de Afonso Arinos de Melo Franco
(2005).
Uções de viagens. devoção religiosa e sobrevivência nos trópicos: o Brasil no romance juvenil francês oitocentista
to cientifico, que já se esboça, e a tradição da velha Igreja Católica, detentora da legitimidade intelectual. Deste modo, as funções femininas mais se adequam à posição eclesiástica. A posição dos arcebispos que cumpriam a função de revisores de textos. Ora, uma autora deveria se situar no curso do processo de
civilização, cabendo-lhe articular da melhor forma possível um
discurso sobre as diferenças. A vida dos habitantes dos trópicos
- sempre relacionada a um sistema regulador de censuras e proibições - se tornaria mais compreensível, e, até, mais suportável,
se posta em uma operação escriturária.
Lições de sobrevivência nos trópicos: os emigrantes no
Brasil
Antes do aparecimento das versões francesas da novela de
Amelie Schoppe, a narrativa de viagem pedagógica baseada na
imaginação do mundo colonial como mundo naturalizado (selvagem e preguiçoso), que, de acordo com Francis Marcoin (1999),
experimenta as delícias da geografia através da errância romanesca, já havia mostrado toda sua força aos jovens leitores europeus.
Em 1839, Alexis Eymery escreve e publica uma coleção de livros
- de pequeno formato e com muitas páginas - sobre aventuras de
viagens a várias partes do mundo, incluindo o continente americano e, ao sul dele, o Brasil- Universo em miniatura ou as viagens
do pequeno André sem sair de seu quarto. Utilizando a técnica do
diálogo entre pai e filho, mais que adequada ao estilo confessional
do romance de formação, esses livros apresentam quadros instrutivos e divertidos para guiar a infância no conhecimento das quatro partes do mundo: África, Ásia, América e Oceania.
A passagem pelo Brasil inicia-se com o elogio ao jovem
príncipe, herdeiro da Casa de Bragança. Em seguida, passeia-se
pelo enorme bazar no qual se transformara o comércio do Rio de
Janeiro realçado pela descrição de ruas estreitas por onde desfiIam escravos carregando damas indolentes nas liteiras. Sobressaem as perucas e bijuterias. Mas o Brasil imaginado por André é,
antes de tudo, um reino de pedras preciosas, rubis. diamantes e
com muitos papagaios, situado entre a floresta da Tijuca e o distrito de Diamants. Ap~nta-se, então, o vale do rio Gigitonhonha
(Jequitinhonha), metáfora de mais uma ilha deserta. No romance
151
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Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
de Amelie, o vale é porto de salvação para uma família de
Robinsons oitocentistas perdida no Brasil tropical. As margens
férteis do rio Gigitonhonha é palco da trama imaginada no livro
Os Emigrantes no Brasil.
Com uma série de advertências aos jovens europeus sobre
as ameaças e os perigos da partida para os países da América do
Sul, a narradora tem como objetivo denunciar a experiência das
várias famílias de colonos alemães em princípios do século XIX,
oferecendo pistas das armadilhas nas quais se viam envolvidas
logo no embarque. No porto de Amsterdã, de onde partiam os
navios para o Rio de Janeiro, capitães inescrupulosos propunham
a assinatura de contratos de compra e venda da força de trabalho
dos emigrantes, em troca do pagamento da viagem. Entra em cena
o drama da escravidão branca. Nesse romance, a ênfase das viagens recai sobre a aplicação de uma moral religiosa entre cristã e
moderna, combinando os desígnios de Deus à preservação dos
direitos individuais do cidadão. Por isso mesmo, a narradora ao
tirar o máximo de proveito das advertências e conselhos acaba
por instaurar uma pedagogia do medo.
Na tradição dos Robinsons que partem em família (Soriano,
1982), Riemann é um fazendeiro viúvo e arruinado pela seca que
assola seu país. Um dia, ouve trechos de uma canção que diz: o
Brasil não é longe daqui. Toma, então, a decisão de partir da Alemanha em direção ao Brasil, levando sues filhos: Conrad, o mais
velho, Anna, Marguerite e Wilhelm. Um deles, entretanto, deveria
sacrificar-se pelos outros. Tamanha provação só poderia recair
sobre Conrad, o primogênito, que vende-se ao capitão do navio.
A travessia é marcada por infortúnios, fome e sede, algumas tempestades, além de doenças como o « mal do mar ».
Ao chegar no Rio de Janeiro, uma cidade de ruas estreitas,
cheia de Igrejas e magníficas casas (cenário semelhante ao descrito por Eymery), o proprietário do jovem alemão leva-o ao mercado de escravos negros. A família resta petrificada diante de tantos
horrores. No mercado, a liberdade de Conrad é novamente vendida. Desta vez, o comprador é o inspetor do jardim imperial, um
homem bastante rico. Conrad desaparece das vistas de seu pai e
de seus irmãos.
Enquanto isso, Riemann segue para o Palácio do Governador, a fim de obter os papéis que o tomam proprietário de um
Lições de viagens, devoção religiosa e sobrevivência nos trópicos: o Brasil no romance juvenil francês oitocentista
terreno no vale de Gigitonhonha, a maior mina de diamantes do
Brasil. Antes da viagem, ouve as advertências de um secretário
alemão do Palácio: não comprar jamais diamantes dos negros
que trabalham nas minas, são todos roubados e as penas para
esse delito são bastante severas. Esses conselhos, fala a narradora, devem servir de regras de conduta, porque as lições de
moral próprias ao gênero no qual foi classificado a novela de
Amelie devem agir através dos personagens. A essa altura, o pai
Riemann já se deu conta de que as promessas feitas aos emigrantes jamais se cumpriam.
Ao chegar em Gigitonhonha, a familia de heróis descreve a
mesma trajetória de Robinson Crusoé, o personagem de Daniel
Defoe. Riemann e seus filhos são europeus civilizados postos diante das aventuras da natureza: alimentam-se de legumes e frutas
frescas oferecidas pela terra fértil, e de peixe do rio. Constróem
uma cabana, fabricam os utensílios domésticos com a argila do
lugar, modelam toscos instrumentos de trabalho necessários ao
cultivo da terra e ousam até reunir troncos de árvores para fabricar uma canoa. Afinal, como os leitores poderiam se apropriar dos
(des )caminhos postos à fanu1ia Riemann? Responde a narradora:
aprendendo com a experiência e com as situações de necessidade.
Bem adiantada a narrativa, a família conhece Claus, um soldado alemão que servia no exército brasileiro. O novo amigo compra, por uma bagatela, o diamante de um negro a quem protegia.
O escravo escondera (na verdade, roubara) a pedra de seus feitores num dia de trabalho nas minas. Claus, então, oferece o diamante a Riemann, que com ele poderia reaver a liberdade do filho.
Apresenta-se à família um dilema moral, ao mesmo tempo que
jogo educativo para o leitor: como aceitar a oferta de um roubo?
Riemann, então, parte para o Rio de Janeiro. Chegando lá,
reencontra o funcionário alemão, M. Albrecht, que conhecera no
Palácio do Governo. Após narrar suas heróicas robinsonadas, o
emigrante pede ajuda ao amigo a fim de restituir o diamante à
Coroa. Não foi difícil. Nessa época, o Brasil possuía uma jovem
imperatriz da Áustria que gostava de proteger os alemães. Triunfa
o caminho do bem. Comovida com a história da escravidão branca, a Princesa D. Maria Leopoldina, esposa do Imperador D. Pedro
I, restitui a liberdade a Conrad. É feita a vontade de Deus e a
família Riemann funda uma colônia alemã no Brasil.
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Lições de devoção religiosa: Os portugueses da
América
Para alimentar a produção do sistema literário do qual tratamos, havia uma vasta bibliografia sobre o Brasil em disponibilidade no mercado do livro europeu, que ia desde as sucessivas
edições dos relatos dos viajantes do século XVI - as experiências
de Jean de Léry e André Tevet na França Antártica -, passando
pelas fontes documentais do século XVIII, como o estudo de
Rocha Pitta, até chegar às viagens de exploração e missões dos
naturalistas contemporâneos, como Henry Koster, Spix e Martius
e Auguste de Saint-Hilaire, à boa acolhida da sociologia dos costumes brasileiros do próprio Ferdinand Denis, ou o célebre compêndio de história pátria Histoire du Brésil depuis sa découverte
en 1500 jusqu' en 1810, de Alphonse de Beauchamp, publicado,
em três tomos no ano de 1815 pela casa de Alexis Eymery.
Em Os Portugueses da América, Julie Nicolase DelafayeBréhier tece uma história situada em terras do Nordeste brasileiro, na cidade de Olinda, e em tempos coloniais, 1635, período da
ocupação holandesa. Os personagens são colonos portugueses,
do sangue azul da casa de Bragança, índios tapuias, de feroz origem tupinambá, e negros sublevados na República de Palmares. O
texto narra a execução de um plano de vingança - seqüestro seguido de cativeiro na floresta tropical - imaginado pelos índios
contra seus senhores e algozes, os colonos portugueses. Duas
damas, Élvire e Héléna, são raptadas pelas suas escravas domésticas, a velha Mocap - mentora do plano -, e ajovem mestiça YassiMiri, ama de leite do pequeno Sebastião, filho de Élvire. Amiip,
escravo pessoal de Dom Aleixo, marido de Élvire, também adere
ao plano. Aproveitando-se da confusão causada no dia da ocupação da cidade pelos holandeses, Mocap foge com as duas mulheres, Yassi-Miri e Sebastião, tomando o rumo da tribo dos tapuias.
Só ela, a velha tupinambá, conhece os desvãos da floresta e seu
retomo para sua tribo acompanhada de duas senhoras cativas era
prova maior de triunfo e conquista.
Enquanto ocorre o rapto das senhoras brancas, Dom Aleixo
segue, com ArraYp, para o forte de Matias de Albuquerque. Depois de travar longos debates teológicos com seu escravo - todas
as criaturas não são filhas de um mesmo Deus, então, o que justi-
Lições de viagens, devoção religiosa e sobrevivência nos trópicos: o Brasil no romance juvenil francês oitocentista
"Em várias passagens, encontramos as famosas descrições de
Jean deLél)' e Andréa 1bevet
fica a captura e os maus tratos aos índios?, quer saber Arralp -, o
nobre português toma-se prisioneiro dos negros-cidadãos sublevados da República de Palmares. Testemunha a organização de
uma República tropical, com deveres e direitos, mas, horroriza-se
ante as bebedeiras nas festas da colheita do milho, que levavam a
excessos. A escravidão, para os povos selvagens, brutalmente livres, se bem conduzida e cristianizada, poderia ser uma etapa da
civilização, defende a narradora.
A imaginação européia do mundo colonial é naturalizada, e o
desafio maior para a trama do romance moral é a cristianização da raça.
Dom Aleixo consegue libertar-se, mas, andando alguns passos, encontra um grupo de índios ferozes, que o fazem refém. Desta
vez, o nobre português é presa de um festim canibal. Prestes a ser
devorado - chega até a jogar pedras nos executores, segundo o
costume narrado pelos viajantes do século XVI6 - é salvo por um
missionário inaciano. Reencontra Arralp e descobre a traição.
Abre-se uma via para a inversão de papéis entre dominantes e dominados - e se os senhores se tomassem escravos e os
escravos,senhores?
O pano de fundo da narrativa, a ocupação holandesa da cidade de Olinda serve apenas como cenário para o desenvolvimento da trama. Todos os personagens se encontram na floresta. Durante uma longa jornada pela mata tropical, enfrentando serpentes, monstros e rios, as duas damas vão confrontando seus valores
aos dos tapuias, afirmando os preceitos da religião católica, a fé
nos sacramentos e a inexorável conversão dos bárbaros americanos. Ignoram seus destinos. Ao fim, correm o risco de serem devoradas. Nesse momento, ameaças e preces não surtem mais o
menor efeito, lembram "o vento que sopra em uma planície deserta". As duas escravas fugitivas regozijam-se com a nova situação,
movidas por um forte sentimento - selvagem, civilizado ou cristão? - de vingança, definido pela narradora como "compromisso
com a dignidade", perdida nos maus tratos da escravidão, o que
abre uma discussão sobre a fidelidade e o medo da traição à raça.
Desenrola-se novo debate teológico sobre a humanidade dos
índios, suas virtudes e vícios, a condenável prática da antropofagia, o ressentimento, tanto dos índios brasileiros em relação aos
portugueses, quanto destes em relação aos holandeses, a quem
reputavam de povos heréticos. Afinal, Deus não se manifesta em
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todas as coisas? Mas seria preciso cristianizar a barbárie, civilizála, ainda que a civilidade fosse representada também como
corrupção da natureza e frivolidade artificial cortesã, revelando a
narrativa, a essa altura, um confronto de inspiração tipicamente
roussseauniana. Na composição dos personagens estão as propriedades que definem as figuras do bom e do mau selvagem.
Em OI inda, Héléna levava a vida lasciva dos colonos portugueses. Nascida no Brasil, filha de um senhor de engenho arruinado, Dom Álvaro Rodriguez, é inclemente no castigo aos escravos. Já Élvire, nascida em Portugal, é modelo de boa cristã. Aos
selvagens que a seqüestraram, aplica a virtude do perdão. Para
embaralhar um pouco esse jogo colonial e colocar o problema da
mestiçagem, a autora faz os personagens indígenas descenderem
de uma pequena tribo que fora governada pelo português Diogo
Álvares Correia, o Caramuru. Eles também demonstram, a seus
modos, alguma polidez e desvelo para com o sofrimento das cativas. Essas senhoras jamais se habituaram aos rigores do trabalho.
Entremeando ficção e episódios da história, Mme. DelafayeBréhier não demonstra medo de se ferir ou perder nessa estrada.
As florestas, animais,jibóias, festins, caçadas e a poligamia selvagem, bizarros costumes dos índios brasileiros, são realisticamente
narrados aos jovens europeus.
No cativeiro das duas damas portuguesas, feitas escravas
de suas escravas tapuias, colocam-se dois graves problemas de
ordem moral e religiosa. O primeiro diz respeito à educação do
pequeno Sebastião, que deveria, pelos novos costumes, furar seu
lábio inferior e orná-lo com uma pedra azul. Aos olhos de sua
mãe, isto parece uma mutilação. O chefe tapuia, verdadeiro sultão
selvagem, apaixona-se pela portuguesa Héléna, desejando-a para
sua sétima esposa. Como poderia uma cristã casar-se com um
homem já por seis vezes casado? Na ocasião em que Héléna sai
para buscar água no rio, as outras esposas do chefe, descontentes
com a iminência da perda de posição para uma estrangeira, raptam-na, torturam-na, arrastando-a pelos cabelos, para finalmente
amarrá-la ao tronco de uma árvore perto da qual passa um rio
habitado por serpentes venenosas. Héléna desaparece, e o chefe,
colérico, expulsa Mocap e sua derradeira cativa, Élvire, da tribo.
Os personagens seguem mais uma rota de aventuras pelo deserto,
desta vez, de volta à cidade de Olinda. Mocap morre de sede du-
Lições de viagens. devoção religiosa e sobrevivência nos trópicos: o Brasil no romance juvenil francês oitocentista
rante a travessia, não sem antes ser batizada por Élvire, que junto
com Yassi-Miri e o pequeno Sebastião, acaba sendo encontrada
por Dom Aleixo. Anos após, Héléna também é reencontrada, vivendo no deserto com uma farru1ia holandesa, demente. O cristianismo triunfa sobre os vícios e poucas virtudes da vida selvagem.
A escravidão, de acordo com a moral da história, é, de fato, etapa
necessária para o longo e tumultuado processo de civilização e da
conversão ao cristianismo.
Na composição de seu romance moral, Mme. DelafayeBréhier se baseia claramente nos clássicos relatos de viagens do
século XVI - nos textos de Jean de Léry, Viagem à terra do
Brasil, e de André Thevet, As singularidades da França Antártica. Não consta que ela mesma tivesse feito viagem ao Brasil. Se,
como diz Michel de Certeau (2000), os itinerários dos viajantes
são previamente esboçados nas operações da escrita, mesmo em
configurações históricas diferenciadas, Mme. Bréhier, Jean de
Léry e André Thevet acabam compondo um mesmo texto. Porque os três tomam posse de um mesmo objeto literário, a descrição do índio brasileiro.
A história dos Portugueses da América conduz seus leitores
ao questionamento dos papéis sociais, que, mesmo na rigidez
emanada pela ordem das coisas do século XIX, não estão para
sempre fixados. A história colonial também pode ser escrita ao
contrário. As regras de dependência e assimilação dos colonizados em relação aos colonizadores podem ser deslocadas. A narrativa do cativeiro tapuia de senhores portugueses acaba por tecer
um sistema de contradições que culmina com uma desmontagem
do mundo de certezas da colônia portuguesa no Brasil, ainda que
essa desmontagem esteja limitada pelo final triunfante do cristianismo. Afinal, a literatura de Julie Nicolase Delafaye-Bréhier não
poderia contradizê-la.
O mais sedutor é que toda essa história foi composta muitos
anos antes de José de Alencar imaginar O Guarani, com o heroísmo
do índio brasileiro e toda nossa mitologia de fundação. Sendo
assim, só nos resta imaginar o escritor cearense saindo da Livraria
Gamier, ou antes do gabinete de leitura do francês Cremieux, com
Os Portugueses da América nas mãos.
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Consideraçãoes finais
o modo como se organizava a escrita sobre o Brasil na França oitocentista deixa evidente uma rede de relações de
interdependência funcional entre as mulheres de letras, seus tradutores e os livreiros-editores responsáveis pela classificação e
organização dos livros nas coleções juvenis. A novidade pedagógica representada pelo Brasil como tema do romance moral uniase ao empreendimento comercial da difusão internacional dos livros franceses.
Nesse sentido, o empreendimento comercial dos irmãos
Garnier na América Latina desempenhou papel decisivo. Com a
livraria francesa no Brasil intensificava-se o movimento das trocas culturais entre o Velho e o Novo Mundo. Enquanto BaptisteLouis Garnier instalava-se na corte do Rio de Janeiro, em 1844, o
Brasil era produzido literariamente na França. Os livros analisados demonstram verdadeiro sistema produtor de singularidades
que, seguindo a tradição das narrativas de viagem do séc. XVI,
alimentava um grosso filão do mercado editorial europeu - as
bibliotecas cristãs e morais dajuventude - , ao mesmo tempo em
que dava os rumos da invenção literária do Brasil.
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Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
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161
Os cadernos de campo de Roger
Bastide: entrecruzamentos múltiplos
Maria de Lourdes Patrini-Charlon
(UFRN)
Este trabalho de análise dos cadernos de campo de Roger
Bastide inscreve-se na dupla dimensão da antropologia e da história cultural. Os cadernos de campo do antropólogo representam
um conjunto notável de escritura autográfica preparatória no seio
dos quais encontram-se expostos os passos de uma produção e do
itinerário de sua viagem à África do Oeste, em 1958. Neste artigo,
proponho-me a examinar a variedade e o conteúdo do material
manuscrito e dos suportes sobre os quais repousa a escritura do
pesquisador francês. As diferentes ações de escritura, assim como
a variedade de suportes e de conteúdos, serão apresentados através da "mise en relation", realizada pela interlocução observada
nos manuscritos encontrados nos arquivos do "fundo Bastide".
Essa "mise en relation" está presente entre a escritura e o suporte,
entre as práticas de escritura, entre os suportes, entre os dados e,
igualmente, entre as vozes de pesquisadores que, de uma forma
ou de outra, são sujeitos participantes da pesquisa do estudioso.
Estarei privilegiando a escritura de campo e, enquanto suporte, os
cadernos, porque eles estão em relação direta com o meu real
objeto de pesquisa. O material selecionado e os conteúdos privilegiados pela minha pesquisa encontram-se classificados na« categoria » NOTES, na « rubrica» Notes de lecture et de voyages.
do inventário elaborado pelo Institut Mémoires de L' édition
Contemporaine (IMEC), na França.
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A escritura de campo de Bastide: o pesquisador escritor
Se Gustave Flaubert deu início a uma nova geração, a dos
"escritores - pesquisadores"!, podemos dizer que Roger Bastide
pertence a uma geração de "pesquisadores - escritores". Seus
manuscritos constituem uma quantidade considerável de notas
autográficas e de notas de trabalho que dão a dimensão da força
de investigação e de verificação do antropólogo que, além de uma
curiosidade científica sempre presente, fez de seu objeto de estudo a causa de seu percurso. Segundo suas próprias palavras, "escrever" é sempre retirar das profundezas do "eu" todos os tesouros escondidos, todas as flores noturnas do subconsciente, e é
também, por conseqüência, despertar todos os demônios e os deuses escondidos, liberar os antepassados". (Bey lier, 1944a: 3-4) 2.
Bastide concebe uma problemática central sobre os contatos culturais e sistemas simbólicos em um campo bem preciso e
que ele jamais abandonará. Seu campo de observação será a França, a África do Oeste e o Brasil. Sua escritura de campo revela sua
escolha e confirma seu engajamento e busca constante concernentes
a essas questões:
Lundi J8 aotu -lettre n. J5, Bastide anota em seu Cahier Mon Journal 3 : COl1versation avec V. sur la comparaisoll entre
Eguns à Bahia et ici 4 •
Se em suas pesquisas Bastide privilegia a comparação, ele
confere ao mesmo tempo uma importância consideráwl às trocas
assimiláveis, ao modo assimétrico sobre a forma na qual as coisas
se passam, sabendo como levar em conta o resultado de um produto híbrido. Desde o início de sua produção sobre o Brasil, Bastide
procurou conhecer bem as relações íntimas existentes entre os
negros e brancos na sociedade brasileira, marcadas por
distanciamentos e reaproximações múltiplas. Ele se perguntava
freqüentemente: "Comment penser le contradictoire?" (Beylier,
1978: 221). Para ele o Brasil é um exemplo da interpenetração de
civilizações e é o lugar onde se realiza o cruzamento de tradições
intelectuais distintas. Segundo o pesquisador, esse cruzamento lhe
permitia compreender as especificidades do país e de seu povo e
também de onde ele extrairia os instrumentos conceituais necessários para a análise de seu objeto de estudo. Para Roger Bastide
I Ver artigo de BIASI, Pierre·
Marc de. "Notion de carne! de
travail : le cas F1aubert". In:
Carnets d'écrivai/ls. Paris,
Éditions du Centre National de
la recherche scientifique
(CNRS), 1990, pp. 23-56.
BEYLIER, Charles. "Le sujet
et l'objet". In: BASTIDE,
Roger. Images du /lordes te
mystique e/l no ir et bla/lc.
Pandora/Des Sociétés, Paris,
1978. p. 222. (Bey1ier cite
Bastide). (tradução nossa).
1
3 MO/l ]our/1al estará no texto
sempre em itálico, pois esta
denominação foi dada por
Bastide ao ca/lier I.
Neste texto todas as citações
de Bastidc estarão em itálico.
4
Os cadernos de campo de Roger Bastide: entrecruzamentos múltiplos
, Todos os documentos
manuscritos de Roger Bastide
sobre sua viagem de estudos à
África são inéditos.
Sobre esta experiência,
Bastide escreveu um artigo que
foi publicado com fotos de
Pierre Verger na revista
Etnografia, n.18, Museu
Nacional de Etnografia e
História. Junta Distrital do
Porto, 1968. (N. O.) e em
Verger-Bastide: dimen,w"jes de
uma amizade, Rio de Janeiro,
Bertrand Brasil, 2002. No
entanto, o texto manuscrito
encontrado no caderno de
campo é ainda inédito.
6
VERGER, Pierre. "Roger
Bastide". In: LUHNING,
Angela (org) Verger-Bastide:
dimens(jes de uma amizade,
Rio de Janeiro, Bertrand Brasil,
2002, pp.255-257.
7
, LUHNING, Angela (org)
Verger-Bastide : dimens(jes de
uma amizade, Rio de Janeiro,
Bertrand Brasil, 2002, pp. 3954.
'Conforme conceito desenvolvido por Paul Ricoeur em
Temps et Récits. Paris, Seuil,
3v. 1985.
era necessário ir ainda mais longe em sua compreensão, por isso
quis conhecer as fontes, ver, entender, enfim estar no campo. Assim, ele parte em viagem para a África do Oeste (Benin e Nigéria)
em 1958, por setenta e dois dias. Durante sua permanência nessa
região africana, ele recolhe um corpus que reúne mitos, narrativas, rituais, canções, provérbios, danças, expressões típicas e fatos folclóricos 5 • Ele compartilhou esta experiência com seu amigo, o antropólogo Pierre Verger6 • É, pois, o próprio Verger quem
nos informa dizendo que, infelizmente, Bastide não redigiu o livro
que queria ter preparado a partir das notas obtidas na África - e
complementa: "Fato lamentável, pois não há dúvida de que ele
teria sabido nos transmitir tudo o que havia visto, com aquela
mistura de poesia e humor que ele sabia incluir na sua obra de
sociólogo"7. Em "As múltiplas atividades de Roger Bastide na
África (1958)" 8 , Pierre Verger reafirma ainda: "Bastide, infelizmente, não publicou um livro apresentando o conjunto de impressões e experiências vividas por ele durante sua estada no Golfo de
Benin ( ... )". Além das articulações mencionadas, nessa matéria
manuscrita e inédita há outras presentes entre a escritura de campo e as notas de leitura, os desenhos, as fotos e os mapas de itinerários. Trata-se de uma escritura que acolhe ainda: seleção mais
ou menos voluntária dos fatos, deslocamentos, organizações cronológicas e diacrônicas de acontecimentos que, elaborados dentro de uma dinâmica, serão os responsáveis pela construção de
uma trama9 entre os documentos manuscritos. Assim, jogos de
interações constantes são estabelecidos, revelando as interferências entre o "eu" e o "grupo", um "eu" que não sai jamais impune
da experiência, pois com Bastide não há de um lado o observador
e do outro a realidade que ele estuda.
Os manuscritos: articulações em vários sentidos
1 - Dos manuscritos com o inventário
Entre os documentos e o inventário há uma dinâmica que é
absolutamente estabelecida no momento da organização e da distribuição dos documentos. Isso requer do pesquisador muita atenção, pois ele deve estar sempre pronto a usar sua experiência para
perceber exatamente onde se encontram os pontos nevrálgicos
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das relações entre os manuscritos: Como foram estabelecidos?
Quais os critérios e caminhos escolhidos pelos técnicos que os
manusearam ordenando-os, com o objetivo de dar-lhes coerência? Definir o lugar mais adequado para cada um dos documentos
é, sem dúvida, o primeiro desafio para quem vai realizar este trabalho, chegar a um conjunto no qual cada peça deve estar em
relação corri as outras, respeitando sempre o tempo, o espaço, o
contexto, a história dos documentos e a tradição terminológica, o
que não é tão evidente como pode parecer à primeira vista. Nos
arquivos do "fundo Bastide" não temos documentos classificados
sob a categoria "cadernos de campo" e nem "cadernos de trabalho", por exemplo. Esses são alguns dados que indicam que o
pesquisador tem que construir suas próprias trilhas no inventário,
para isso ele tem que conhecer minimamente o objeto de estudo e
a obra do estudioso. Por exemplo: o primeiro título consultado
[LE CANDOMBLÉ DE BAHIA ET LA CÉRÉMONIE DE aNDO (KOBE)] pertence à "categoria" NOTES, logo à "rubrica" Notes de lecture et
des voyages. A descrição dos documentos contidos nesse título
anuncia, entre outros documentos: Mss - cahier de notes avec
quelques dessins. Na realidade, o que havia era um caderno do
tipo brochura (50 páginas), com um título sobre a capa da frente:
Le candomblé de Bahia, escrito por Bastide. Na quarta capa (verso), Bastide anotou: Cérémonie de Ondo, Kobe, 22 juillet, (fête
des Ignames Neuves). O título do inventário anuncia, mas não
explica nem especifica seu conteúdo. Em um mesmo conjunto
(pasta) estão reunidos o candomblé da Bahia e a cerimônia de
ando. Isso vai exigir explicações mais precisas, principalmente se
considerarmos que nesse caderno há duas práticas de escritura
diferentes: uma de trabalho e a outra de campo. Qual percurso
deverá percorrer o pesquisador para concluir que o caderno em
que o antropólogo registrou suas notas de campo da cerimônia de
ando corresponde à estada de Bastide na África, em 1958? Sabemos muito bem que Bastide esteve na África diversas vezes. Se as
notas de campo correspondem apenas a um dia de observação, o
dia 22 de julho, como encontrar o ano correspondente? A data
colocada na capa do caderno não traz o ano. Como precisar as
datas com tais incertezas se o pesquisador está com esses documentos pela primeira vez nas mãos? O título é o primeiro entre
mais de sessenta existentes nessa categoria do inventário lO • Na
10 Entretanto, a pesquisa que eu
estava realizando na categoria
Notes, na rubrica Notes de
lecture et de voyages,
mostrava-me a cada dia que, se
os cadernos de campo
realmente existissem, havia
uma grande chance de eles
estarem classificados naquela
rubrica.
Os cadernos de campo de Roger Bastide: entrecruzamentos múltiplos
rubrica Notes de lecture et de voyages encontramos dois
subconjuntos: notas de leituras e de viagens. O caderno em questão não se insere nem em notas de viagens nem tão pouco em
notas de leitura. Ele foi denominado simplesmente caderno de
notas, sem qualquer outra especificação. Isso me levou a pensar
que havia uma grande possibilidade de o conteúdo ter sido
priorizado na classificação dos documentos, sem levar em conta
os suportes e tão pouco as práticas de escritura, a não ser aquelas
já consagradas, como a correspondência. Para mim algo estava
claro: a nomenclatura 'caderno de campo' estava excluída dessa
classificação, até porque o interesse por essa prática de escritura
autográfica é bem recente. Na realidade, Bastide dividiu materialmente esse caderno em duas partes, utilizando ações de escritura
diferentes. Na frente, trata-se de um caderno de trabalho e no
verso de um caderno de campo. Na frente temos a correção por
página do livro Le Candomblé da Bahia-Brésil: evidentemente
não se trata de notas de leitura, nem de viagem, nem de campo,
pois estas notas estariam mais próximas de notas de trabalho, ao
invés disso, trata-se de correções das provas preparatórias da edição do livro. No verso, temos as notas que Bastide tomou durante
uma cerimônia de Ondo, a que assitiu em Kobe, África do Oeste,
em 1958, mas isso eu só pude descobrir e confirmar depois de ter
avançado bastante na leitura dos documentos. Primeiramente, foi
necessário encontrar o Cahier I - Mon ]ounal e depois de muito
trabalho de análise consegui estabelecer as relações. Em seu diário de campo, no dia 22 de agosto, ele registra o acontecimento,
apenas anunciando o fato' e dizendo: voir autre cahier. Essa
bipartição da classificação em lecture / voyage assim como a de
caderno de notas não foi feita por Bastide. No conjunto em que
foi colocado este caderno de "notas", como foi denominado, há,
igualmente, um texto manuscrito de Roger Bastide sobre o êxtase. Esse texto se refere provavelmente ao capítulo V: "La structure
de l'extase", de seu livro Le Candomblé de Bahia-Brésil. Nesse
sentido, constatamos que essa classificação não é satisfatória, nem
globalmente do ponto de vista dos títulos, nem localmente do ponto
de vista dos documentos e muito menos do ponto de vista dos
suportes. Ressaltamos que se os cadernos de campo encontrados
fazem parte da "rubrica" notes de leitura e de voyages, essa "rubrica" abriga uma vasta nomenclatura: caderno de notas, caderno
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de viagem, diário de viagem, carnê de viagem, notas de viagem,
notas de visitas e carnê de notas. Essas são todas as denominações que foram dadas ao suporte cadernos. Nesse caso, percebese muito bem que a noção de "caderno" e de "viagem" é um tanto
quanto ambígua. Inicialmente, é preciso esclarecer que nós não
podemos misturar caderno de campo, caderno de trabalho, caderno de viagem se quisermos respeitar a tradição terminológica. Para
o técnico que elabora o inventário é, sem dúvida, difícil reconhecer a importância de certos elementos que caracterizam os manuscritos e as práticas de escritura. Entretanto, para o pesquisador se dar conta, num primeiro contato, de que um caderno utilizado frente e verso, sem data completa, contendo práticas de escritura e conteúdos diferentes possa ser identificado, ao menos
em uma de suas partes como um caderno de campo e que possua
relação estreita com as anotações diárias feitas por Bastide no
Cahier 1- Mon Journal durante sua estada em 1958, na África,
não é também nada simples. Um documento é às vezes colocado
em um título que, de início, pode parecer revelador, mas que esconde elementos e, em alguns casos, os mais importantes. A escritura de campo desse caderno foi organizada de forma particular, o
antropólogo elaborou seu texto respeitando as partes da cerimônia assistida. ele não se serviu de uma escritura diária. A
especificação f suporte. conteúdo, escritura) dos cadernos está
longe de ser estabelecida segundo uma terminologia mais adequada e a escolha do título notes de lecture et de voyage não dá
senão uma indicação muito geral do conteúdo da rubrica. Assim,
um documento manuscrito (reunido em um título específico) pode
pertencer a um "título", que normalmente indica seu conteúdo,
mas ele pode estar, às vezes, em relação mais estreita com outros
documentos, ou seja, fazendo parte de outros conjuntos. em títulos diferentes. Dessa forma, a leitura de outros documentos colocados em títulos ou até mesmo de rubricas diferentes é necessária
para se encontrar o fio orientador. Os outros documentos do mesmo conjunto não são sempre esclarecedores, eles exigem também
outros percursos mais elaborados da parte do pesquisador. Enfim,
o corpus é extremamente diverso e heterogêneo, por isso trabalhoso, exigindo conhecimentos específicos sobre os seus conteúdos. Apesar de todos os esforços para se dar certa clareza, um
inventário merece ser sempre retrabalhado, pois há continuamen-
Os cadernos de campo de Roger Bastide: entrecruzamentos múltiplos
te a necessidade de novos ajustes. Com as evidências que ternos,
cabe ao pesquisador descobrir os caminhos nos quais o inventário
foi construído para poder reorganizar sua busca. Mesmo se a construção do inventário obedeceu a técnicas propagadas, é preciso
saber que as evidências seqüenciais não são sempre credíveis,
porque as verdadeiras chaves não são encontradas senão após
muito trabalho. Com isso, quero dizer que as rotas apresentadas
pelo inventário são preciosas para que o pesquisador possa começar seu trabalho, mas cabe a ele assumir a tarefa de restabelecer
um novo caminho onde os documentos manuscritos serão deslocados de um lado a outro, para serem recolocados em contato
com os seus pares, formando um conjunto coerente.
2 - Dos suportes com a escritura de campo
Para Roger Bastide a escolha do suporte é urna questão de
menor importância. Folhas avulsas de todos os tamanhos e cores,
diversos tipos de papéis assim corno materiais destinados a um
uso bem preciso, tais corno os envelopes, os calendários ou as
cartas de visita podem ser suportes para os seus registros. Da
mesma forma que nos cadernos convivem práticas de escritura
diferentes, encontramos a prática de escritura de campo em urna
variedade de suportes. Essa diversidade vai exigir urna disposição
considerável para a leitura de documentos que, se à primeira vista
não se assemelham aos materiais que estão sendo buscados, podem, no entanto, conter a chave para certos mistérios. A prática
tem nos mostrado que as classificações dos manuscritos e seus
suportes jamais podem nos dar urna garantia e que os desvios
merecem, algumas vezes, mais atenção que a rota bem traçada.
Deixando de examinar um documento, estaremos arriscando deixar para trás algo precioso. Corno selecionar toda essa matéria?
Talvez seja menos complicado quando se procura o manuscrito
de urna obra específica, mas quando se trata de escrituras preparatórias corno os registros de campo, o pesquisador deve absolutamente esmiuçar todo o inventário, pois a ausência de urna nomenclatura que defina suporte e conteúdo exige urna busca que
vá além da questão da terminologia utilizada e que ultrapasse a
questão das evidências. Exemplo: as folhas azuis avulsas classificadas e descritas no inventário corno 'algumas notas de leitura' no
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título [CAHIER DE VOYAGES : DAHOMEY ET NIGERIA I] contêm, além
das notas de leitura e referências bibliográficas, uma classificação
e uma descrição com algumas indicações das páginas dos conteúdos de cada um dos cadernos de campo elaborados por Bastide
durante sua permanência na África em 1958. A leitura minuciosa
dessas folhas levou-me a descobertas preciosas, que significaram
um ponto de chegada e ao mesmo tempo um ponto de partida.
Nessas folhas, Bastide elabora índices sobre alguns conteúdos de
seus cadernos, mas onde estariam os suportes com tais conteúdos? Assim uma lista de assuntos com as páginas numeradas do
Cahier I continua até a página 188, onde ele anota: Yhovisme
(sublinhado por Bastide). Nesse Cahier I, o pesquisador ressalta
as páginas que abrigam suas notas de leitura. No entanto, quem
conhece bem esse caderno sabe que as notas de leitura estão na
mesma seqüência em que se encontram a escritura profissional,
diária, com dados obtidos no campo e também algumas extraídas
de arquivos documentais, além da escritura pessoal. Na prática de
escritura de campo não vamos encontrar sempre a linearidade e a
seqüência habitual tão desejada. No caso de Bastide, podemos
dizer que tanto para a classificação dos cadernos quanto para as
ações de escritura e para os suportes, as tônicas são a variedade e
a diversidade.
Seguindo a classificação do antropólogo (na folhas l,4 azuis)
saltamos do caderno I ao caderno 111 e mais tarde, ele retorna ao
caderno 11.
Cahier des Baptêmes à Agoue 1846 - 1880 n. lll"
+
[esses sinais estão no manuscrito]
p.l - Bres. cath.
Bres. Et armé de Français
p. 15 - Bres. cath. (1956)
p. 17 - Bres. cath. Histoire + p.l8 (Fétichisme)
p. 19 - Les maisons brésiliennes à Lagos (articIe)
A lista vai até a página 29 - cimetieres, inscriptions '2 .
Ao lado das páginas acima citadas, Bastide anota entre colchetes : [Papiers à part Brésiliens Porto Novo, liste, mariages
etc.]
Em seguida e após o traço de separação habitual há a lista
de páginas do caderno 11.
"Indicação e descrição do
conteúdo de algumas páginas
do caderno UI.
12 Esses conteúdos das páginas
fazem referências aos dados
oriundos de documentos.
Os cadernos de campo de Roger Bastide: entrecruzamentos múltiplos
"Indicação e descrição do
conteúdo de algumas páginas
do caderno 11.
p. 1 - Visite Negres à Chacha
Mais adiante, ao lado das páginas, ele anota: n.lI 13
p. 13 - Port des esc1aves Ouidah
p. 15 - Baptêmes à Ouidah. 1876 - 1881 / 1866 - 1873
Bastide anota ao lado da p. 15 : Suite carnet ;aune -1880 e
embaixo dessa informação:
+ cahier bleu c1air - 1875.
É interessante observar que, diferente do Cahier I, os conteúdos das páginas não se referem somente às notas de leitura no
Cahier 11 e no Cahier 111, ou seja, encontramos exemplos extraídos do campo nesses cahiers, por exemplo: p.lO - Visite d'
Almeida; e igualmente anotações oriundas de fonte documental,
por exemplo: p.15 - Baptêmes à Ouidah et p. 87 - Rôle Bres.
Guerre 1914.
Assim, num mesmo caderno convivem notas de trabalho,
de campo e anotações pessoais. Talvez a necessidade de traçar
um percurso, organizando seus instrumentos de trabalho e seus
dados em relação ao seu objeto de estudo é que motivou Bastide
a elaborar esses índices dos cadernos. De qualquer forma, para
mim, esta classificação foi extremamente útil. A partir dessas informações, pude identificar e selecionar alguns dos cadernos existentes no inventário. Entre os meus achados, eu sabia faltava ainda encontrar outros cadernos. A variedade de documentos é uma
constatação, seja do ponto de vista do material, seja em relação
ao conteúdo e ao suporte. No entanto, isso não me impediu de
penetrar nesses conjuntos e, assim, tentar analisar a escritura do
antropólogo, conhecendo mais de perto suas experiências de trabalho de campo. Normalmente, a escritura de campo e seus suportes (cadernos, carnês) constituem-se em tomo de uma exigência material, da continuidade textual e por isso o pesquisador tenta evitar a priori o uso de folhas avulsas, mas isso está claro que
para Bastide é uma norma que se transgride. Escrever, anotar,
registrar são as ações que orientam a conduta do estudioso e isso
ocorre sempre dentro de uma dinâmica. Freqüentemente, ele interrompe seus registros para anotar uma questão que será refletida e discutida mais tarde, faz desenhos, esboços diversos, faz referências a títulos de obras, menciona trabalhos de outros pesquisadores, enfim, sua escritura profissional revela um diálogo
permanente entre o "aqui" e o "agora", momento performático da
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ação do pesquisador e sua experiência acumulada. Bastide elabora inventários para tudo: sobre seus artigos, leituras, livros, publicações, listas de obras lidas ou para serem lidas, correspondências, nomes de pessoas e de amigos e isso tudo pode estar em meio
às notas de campo. Apesar de muitas vezes constatarmos a sua
falta de interesse por um suporte mais adequado ao exercício de
seu ofício, ele demonstra, de uma maneira particular, muito rigor
nas suas ações de escritura. No entanto é possível que, para esta
viagem de pesquisa, ele tenha escolhido alguns cadernos como
suporte, pois ele chegou mesmo a elaborar durante a viagem de
1958 um diário de campo14 - Mon Jounal, como ele mesmo
denominou. Eu diria que Roger Bastide, além do pouco interesse
que demonstra pelo suporte, parece preferir os suportes mais simples e os mais acessíveis. Prova disso é que, entre os cadernos de
campo de Bastide examinados, o Mon Journal é um simples caderno do tipo escolar, dois outros trazem sobre a capa a denominação de caderno de "rascunho" e um outro é um caderno de
publicidade (Air France). Enfim, todos os cadernos se assemelham a cadernos escolares.
3 - Entre as práticas de escritura do Mon Journal
Para tratar dessa articulação interna, ou seja, da "mise en
relation" que observamos nas ações escriturais de Roger Bastide
no interior de um mesmo caderno - o Cahier I - Mon Journal,
podemos começar dizendo que ele contém a escritura nômade e a
sedentária que pode se efetuar através de duas ações e em dois
momentos distintos. O antropólogo serve-se desse caderno, enquanto suporte, também em dois momentos distintos e com funções distintas: suporte nômade e suporte sedentário. Entretanto,
no que se refere às práticas de escritura, as fronteiras não são
assim tão delimitadas. Em cada um desses momentos, podemos
ter a presença da escritura profissional e a pessoal. Assim, num
mesmo dia ou numa mesma página, podemos encontrar notas com
descrições dos dados obtidos no campo, notas de leitura, referências bibliográficas, registros de comentários posteriores, resumos
de observações, algumas notas à margem e anotações pessoais.
Em meio a esta variedade observei ainda a presença de anotações
feitas após a observação, frases conclusivas que resumem reflexões,
14Entre os cadernos encontrados, este é o único que foi
construído com a escritura
diária, dia-a-dia, durante os 72
dias que passou na África, em
1958.
Os cadernos de campo de Roger Bas\ide: entrecruzamentos múltiplos
15 Conforme a classificação
feita por Bastide, há duas
denominações: Journal ou
cahier.
novas hipóteses, diferentes problemas, lembretes (Ver V. photos),
enfim, nada parece escapar da pena do pesquisador que mantém
tudo sob controle. Importante ressaltar que, ao lado da escrita diária obtida no trabalho de campo, há ainda a presença de outros
dados, mas dessa vez oriundos de arquivos (fonte documental)
O Cahier I - Mon Journal é do tipo quadriculado, brochura, 192 páginas, capa cartonada de cor cinza, formato 22cmx 16,
Sem, tipo escolar. As páginas do caderno foram numeradas, elas
comportam somente a escritura manuscrita, desenhos e esboços
também de autoria do antropólogo. Ele preencheu todas as páginas com uma caneta do tipo esferográfica azul com uma escrita
minúscula, de leitura difícil. Como já foi dito anteriormente, estão
presentes nesse caderno a escritura profissional e a pessoal, distribuídas da seguinte maneira por Bastide 15 : da página 1 à página
182 - escritura de campo - Mon Journal- e as 10 páginas finais
foram consagradas quase que exclusivamente à escritura pessoal.
No entanto, a parte destinada à escritura profissional, como já foi
bem evidenciado, não contém somente a escritura de campo:
Mercredi 27 aout lettre n022
( ... ) Visite du tombeau du roi Glebe. Enorme mausolée,
avec son lit au centre et moustiquaire, pour que son âme puisse
se reposer. ( ... ) Apres visite au cartier des forgerons - bijoutiers.
Essas páginas estão entremeadas por notas de pesquisa documental, de leitura e também pela escritura pessoal :
Puis lu un peu. L'apres-midi ai pris documents potitiques sur
Brésiliens à la commission des Affaires Politiques du
Gouvernement. Passé I' apres-midi et la soirée à les tire et à
prendre des notes.
Às vezes estas interferências se dão de forma ainda mais
surpreendentes. Nesse caso, a escritura profissional se justapõe
com a pessoal, intensificando-se mutuamente:
Samedi 16 aout lettre n013
Aujourd'hui fait un peu de correspondance. Je ne suis pas sorti. V. est un peu fatigué. V. me parle malgré son mal de tête à
nouveau de Ondo. Lui se demande, étant donné que le rituel. ..
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( ... )
Mercredi 27 aout lettre N°22
Départ à 11 h30 de Ouidah. Nous passons para Allada, Agun,
Bohian. Arrivée à Abomey, à prés de 14h. l'avais mangé
quelques bananes en route (... ).
Algumas vezes, quando a escritura pessoal ganha espaço,
ela é sempre entremeada por uma escritura de memória, de agenda que acaba por remeter de forma mais ou menos direta ao
trabalho de pesquisa:
Lundi 15 septembre
lettre 37
Ce matin course et promenades dans Porto Novo
Vendredi - 29 aoút - Écrire à Christiane (fille de R.Bastide)
Lundi 1° septembre
Le soir Cotonou. Diner chez Platonoff. Rentré vers 11h Y2.
Bavardé avec V. presque vers 1 heure.
Dimanche 14 septembre
Ce matin resté à la maison p. travailler. Un peu de fievre
No entanto, a partir da página 183, ele anota:
« Appendices l6 » (páginas não numeradas). Desta vez a escritura
profissional está menos presente, trata-se sobretudo de uma escritura pessoal: contabilidade, listas de compras e de presentes para
a família. Temos aqui a presença do Bastide organizador de listas
intermináveis. Entretanto, a escritura profissional entra sorrateiramente e se mistura à escritura pessoal de uma forma menos acentuada, mas suficientemente verificável.
4 - Da escritura profissional com a correspondência e a
fotografia
Na obra autográfica de Roger Bastide há uma forte presença de colaboradores, como se houvesse uma sociabilidade de criação. Nos traços da sua escritura autográfica o coletivo junta-se
ao individual. A importância da correspondência se faz num diálogo a quatro mãos e confirma uma vez mais o atributo coletivo
bem marcado na sua escritura. Em seu diário de campo - Mon
lournal, ao lado da data ele registra o número da carta que escreveu assim como o número da foto que certamente está relaciona-
16 Como já explicamos, trata-se
apenas de uma divisão material
do suporte, pois em matéria de
ações de escrituras, elas
continuam a transgredir as
fronteiras das partes materialmente estabelecidas.
Os cadernos de campo de Roger Bastide: entrecruzamentos múltiplos
da com as notas ali registradas. Exemplo:
p. 25, ele anota: Lundi 28 - Lettre nO 1.
p. 27 : Mardi 29 -lettre n02
Vendredi 5 Septembre. Lettre nO 28 (photo 3)
Fizemos a leitura de grande parte da correspondência de
Roger Bastide. No que concerne aos destinatários sei que uma
grande parte era de amigos e colegas de profissão; representantes
de órgãos públicos interessados em pesquisas científicas, representantes de editoras e revistas especializadas. Bastide sempre
trocou cartas (profissionais e pessoais) com seus alunos, seus exalunos e colegas de profissão. O Cahier I, Mon Journal informanos que, além das cartas destinadas aos amigos e colegas, estão
também registradas as que ele enviava à sua família.
A carta por definição é algo que se compartilha. Ela tem
muitos aspectos: enquanto prática de escritura, é um objeto que
se troca, um ato no qual estão em cena "eu, ele e os outros". A
carta, um texto autográfico, distanciado de seus atores toma-se
documento. Assim, enquanto documento a correspondência vai,
como outros documentos, estabelecer uma rede de relações,
possibilitando interlocuções com os destinários/remetentes, mas
igualmente com os dados de campo registrados por Bastide em
seus cadernos e seu objeto de estudo.
Na África, em 1958, em Mon Journal, Bastide conserva
ainda viva a questão do "desafio popular", discussão mantida com
intelectuais brasileiros durante décadas:
Mercredi 27 aout - lettre n.22
Visite du Palais des Rois (... ) lmportance du symbolisme. Le
symbolisme dicté par les proverbes. Ce qui fait que I' objet a à
la fois 1 sens concret et 1 sens abstrait. II y a là 1 trait de
mentalité africaine que je retrouve dans le desafio: la mentalité
rébus.
A leitura da correspondência é que tomou possível, primeiramente, a compreensão mais aprofundada deste registro de campo e ainda me deu a oportunidade de acompanhar o debate sobre
o "desafio" que durante décadas Bastide, pacientemente, manteve com escritores, poetas e intelectuais brasileiros.
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Uma quantidade considerável de cartas endereçadas a
Bastide consta do arquivo (de Mário de Andrade, Câmara Cascudo,
Manuel Bandeira, Gilberto Freyre, entre outros). Algumas delas
tratam de assuntos bem precisos, discutem conceitos e produções
científicas (17 cartas de Lévis-Strauss 11 ), outras abordam diretamente a pesquisa, algumas tratam diretamente de questões pessoais e há aquelas em que a escritura profissional e a pessoal convivem no texto em perfeita harmonia. Nesse sentido, citaríamos as
cartas de Pierre Verger 18 • Das 44 cartas classificadas no título
[Bibliographie (Voyage Afrique)], algumas delas tratam especificamente da viagem à África, em 1958. Nelas o antropólogo P.
Verger coloca-se à disposição para receber e acompanhar o amigo e colega no seu itinerário de pesquisa. Envia também informações detalhadas sobre a viagem e a chegada. Sobre a confirmação
destas trocas preliminares que antecederam a viagem de Bastide,
podemos encontrar algo similar na primeira página do M on
Joumal, de Roger Bastide.
No que se refere às fotografias ali anotadas, elas são na
maioria de autoria de Pierre Verger. Isso vai possibilitar, sem dúvida, a produção de uma iconografia das idéias, mas também dos
documentos manuscritos e inéditos de Roger Bastide.
Uma folha branca avulsa (A4) traz uma lista feita por Bastide
sobre sua produção de artigos, os que ele tinha a intenção de escrever e publicar. Esta lista nos informa o interesse do pesquisador em
divulgar os resultados de seu trabalho realizado durante sua estada
na África com Pierre Verger. Aqui também o material fotográfico,
principalmente o de Pierre Verger, é integrado a sua produção.
1- Livre? - Remontée aux Sources R.B - Photos V. (10 à 14)
2- Bulletin Etudes Dahoméennes - (pour Lombard) - P.V et
R.B
Description d'une cérémonie religieux Photos V.
3- Pour Monod - Bulletin IFAN ? - (simple article sur Ies
aspects) R.B
Une étude sur les Brésiliens
4- Peut être ultérieurement livre les plus développé sur les
Brésiliens d' Afrique qui a déjà un éditeur si Monod ne Ie prend
pas, la VI Secteur va Ie demander
5- Pour le Congres : Rapport Général sur Ies Marchés P.VetR.B
6- Pour Annales de L.Febvre Iong article sur les Marchés -
17 A autorização para a leitura
das cartas foi concedida por
Claude Lévi-Strauss através de
carta manuscrita.
18 Recebi, igualmente, autorização da Fundação Piem: Verger
(Salvador/BA) para ler as
cartas de P. Verger.
Os cadernos de campo de Roger Bastide: entrecruzamentos múltiplos
P. V. et R.B 2 à 4 Photos V.
7- Articles Revue de Paris: Fêtes d'Oxum ? ou autre
eérémonie ? R.B
5 - Das viagens com os temas
19 Temos neste caso mais uma
prova que a classificação do
inventário considerou mais a
pertinência entre os conteúdos.
As viagens de trabalho se sucedem na vida de Bastide. Em
cada uma delas, o pesquisador carrega consigo os seus temas de
estudo, bagagem cara ao estudioso que segue sempre acompanhado de suas problemáticas e hipóteses. E, assim, fazendo parte
da mesma trama, os fios se multiplicam (dados), fortificando os
laços (relações e conclusões) que a experiência outorga ao estudi0so. Os documentos reunidos no título [CAHIER DE VOYAGES :
DAHOMEY ET NIGERIA I], especificamente uma folha branca avulsa
que traz um texto de Bastide sobre o Bumba-meu-boi (Burrinha),
ilustra de forma exemplar o que acabo de afirmar. Este texto faz
parte do mesmo conjunto do Mon Joumal, diário de campo de
1958 19 , e está datado: (Dimanche 27 mars 19~6 - Ouidah.
Association Francisco da Rocha).
Ainda não encontrei mais informações sobre esta viagem à
África feita por Bastide em 1966. Entretanto, os dados de campo
obtidos por Bastide confirmam que a viagem de 1966 aconteceu,
pois identifiquei em sua escritura de campo uma comparação entre os dados obtidos nessa viagem e na viagem anterior, realizada
em 1958. A escritura contida na folha avulsa interage com a escritura diária, Bastide estabelece relações entre as viagens, entre os
dados, fazendo mais uma vez circular no tempo, no espaço e no
contexto o seu objeto de estudo:
Aujourd'hui dans la même ville de Ouidah, variation par rapport
à ee qui j' avais vu la demiere fois = il semble done bien que si
même strueture ou sehéma, grand rôle de spontanéité créatrice
des animateurs.
(... ) Noter aussi variation des masques vu encore même type,
mais le Water mamy, malgré ses 2 serpents, avec sa figure
blanche, ses lunettes = 1 vieille danse créole davantage que
mythique). Par les bouviers avec son grand chapeau de paille
etc. (ver p.2 do diário de campo, de 1958).
O confronto de relações que assinalamos durante esse tra-
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balho está mais uma vez presente na variedade das práticas de
escritura assumidas pelo estudioso. Para ilustrar o que acabo de
afirmar, podemos citar o artigo sobre a "Burrinha" publicado em
2002. Ao lê-lo, sentimos a presença da escritura preparatória realizada no campo, fonte imprescindível para que uma outra ação de
escritura desse a luz ao artigo, tornando pública uma experiência
única e pessoal. Da mesma forma, pude perceber numa leitura em
seqüência as relações estreitas existentes entre as duas produções
escriturais, apesar de cada uma estar escrita em uma língua diferente, pois o artigo foi publicado em português, e parece dar continuidade ao primeiro, estabelecendo uma relação circular entre a
escritura de campo e escritura da obra.
No artigo "A Burrinha de Uidá", (texte de Roger Bastide et
photos de Pierre Verger), publicado no livro VERGERlBASTIDE
- Dimensões de uma amizade, temos a revelação de um desejo
que será responsável por mais uma viagem, e a confirmação da
busca permanente de temas que lhe são caros e que circulam nos
interstícios da terras do Brasil e da África. Assim escreveu Bastide:
"Foi essa vontade de rever o. Brasil que me levou, nestas férias, a
ir ter com meu amigo Pierre Verger entre os « brasileiros» de
Uidá, de Porto Novo e de Lagos, que ele conhece tão bem. E o
Brasil- esse Brasil importado para a terra africana pelos descendentes dos antigos escravos que voltaram para lá com a religião, a
língua e os costumes do Brasil - mais uma vez realizou meus desejos: no próprio dia em que desembarquei do avião, sem ter tido
tempo de desfazer a mala, de me instalar, Verger me arrastou a
Ui dá para assistir a uma "Burrinha" deliciosamente brasileira."
(Bastide, 2002: 77)
Primeira página do diário de campo:
13 juillet
Arrivée Kotonou - Verger m'attend avec camionnette IFAN
20 • Beau temps, mais nuages vers le soir. Départ pour Ouidah21
(40 Km environ) un dtner chez M. Bisson, ma ire. La maison
me rappelle étrangement le Brésil " on mange dehors, en se
servant soi-même, parmi les fleurs, les arbres, sous un
manguier. Paysage un peu récifien 22 • un peu Apipucos.
Plusieurs membres de la «colonie française », blancs ou
Martiniquais, Guyanais - Le matin, visite du marché - L'apresmidi, visite du quartier « Brésil ». Répétition de la
IFAN: Institut français de
I' Afrique noire
20
21
Ouidah = Uidá.
22 Os dicionários Larousse
(2002) e Le PerU Roberr (CD
2001-2003) trazem o substantivo récif e o adjetivo
récital - e - aux. A forma
utilizada por Bastide não consta
nesses dicionários. A palavra
recifien talvez faça parte das
conhecidas adaptações (francês
e português) criadas e utilizadas
por Bastide.
23 "Burrinha" é o nome que
recebe em Dahomey a festa
popular do "Bumba-meu-boi".
Os cadernos de campo de Roger 8astide: entrecruzamentos múltiplos
A palavra fazendaire pode
ser o mesmo caso da palavra
recifien: adaptações lingüísticas.
24
Escolhi esse sinal ( = )
para representar as palavras não
legíveis.
25
26 Escolhi esse sinal (l1I1I1I/)
para
representar as rasuras do texto.
Burrinha 23 ». 2 pandeiros, 2 tambours (plusieurs noms
donnés, «marcha» = marcha militaire) - Danses de 2 masques (masques achetés chez commerçants) ,- apparition de
« cheval marin », tres bien - La déesse des eaux avec son
allure de dame fazendaire2 4 , avec ses lunettes, etc., et ses
serpents caraibes (quelle peut bien être l' origine de ce masque ?) avec ses 2 dames d'honneur, 1 plus « brésilienne »
d' allure et I' autre plus africaine, avec coiffure africaine, toute
jeune est tres jolie, dignité de reine, orgueil. Répétition des
sambas. Loi de la mémoire collective .- fragments de phrases
brésiliennes et tn::n:::n:(25 phrases détachées, remplissage ave c
de phrases africaines (syncrétisme linguistique), mais intérêt I
11111j26 Verger leur copie les chants plus nettement brésiliens
de Porto-Novo - La fê te était tombée en désuétude, le nouveau
maire qui veut redonner vie à Ouidah (peu I' égal à Kotonou)
IIIII demande de la reprendre.
«
As viagens, os temas, as ações de escrituras, os autores e as
experiências colocam-se em relação dinâmica onde também vozes se cruzam. O exemplo mostra como surge da escritura de
Verger a escritura de Bastide, desta vez vinda da experiência do
campo que ambos compartilharam. Deixando para trás o contato
diário com o campo de pesquisa, muda a ação da escritura, preserva-se a experiência vivida, muda-se a ação do olhar, dá-se continuidade à trama, fios intermináveis, "mise en relation" de uma
prática, de uma obra, de uma vida e assim a viagem continua e é
Bastide quem diz:"Mas outros deveres me esperam em Paris, e eu
não verei outra vez as 'iaôs' de Xangô, que me fizeram sonhar em
pleno coração de África, e as suas irmãs que estão do outro lado
do oceano"(Verger:2003, p.SO).
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181
Da representação do horror ao vazio
da representação
Edson Rosa da Silva
(UFRJ / CNPq)
*
BATAILLE, Georges.
L'Érotisme. Paris: Minuit,
1957 (1979), p.4I.
L'horreur, en effet, ne s' annule que par un exces d'horreur.
Georges Bataille. L'Érotisme*
o livro que André Malraux escreveu sobre o pintor espaIMALRAUX, André. Satume;
le destin, I' art et Goya. Paris:
Gallimard, 1978. Doravante, S,
seguido do número da página.
2 Longe
de qualquer interpretação romântica da arte como
meio de salvação do artista,
importa perguntanno-nos em
que sentido a arte pode realmente ser um anti destino. Se
não pode constituir um
instrumento eficaz no combate
contra a violência e a morte,
pode ao menos, como diria
Malraux no prefácio de Le
Temps du mépris ''tentar dar
aos homens consciência da
grandeza que ignoram em si
mesmos" (Le temps du mépris.
Paris, Gallimard, 1935, p. 9).
Ou, se pensarmos na questão da
metamorfose através dos
tempos, havemos de entender
que o antidestino da arte - ou
seja: o fato de sempre escapar
à fixação das formas e do
sentido - é a bem dizer seu
primeiro destino enquanto obra
de arte.
nhol Goya em 1950, intitulado Satume', sempre me pareceu
revelador de sua relação com a idéia de sagrado e a idéia de morte. Não com a idéia de religião, mas com uma dimensão sagrada
. que ultrapassa qualquer crença ou ritualização dogmática. É a partir
desse sagrado que, segundo Malraux, obseda Goya e «que nos
a..tinge por seu caráter negativo» (S, 156) que ele analisa a obra
~troz do pintor espanhol. Mas como se manifesta esse sagrado?
Não seria certamente por uma «invisível presença sugerida pelos
mitos» ou por uma luz que para ele apontasse, diz Malraux, que
acrescenta a seguir: «O único meio que possui a arte de tentar a
expressão [de tal sagrado] é o de restabelecer o contato com tudo
aquilo que transforma o artista apenas num momento de passagem: o sangue, o mistério, a morte» (S, 157).
Duas idéias estão embutidas aí: a de que o artista não pode
resgatar de forma romântica e nostálgica o que a morte destruiu
(o que me leva a contestar uma compreensão ingênua da famosa
afirmação de Malraux: «A arte é um antidestino»2 , que não cabe
aqui discutir); e a outra idéia que afirma que é só pelo contato
com a morte que o artista conseguirá exprimir o sagrado,
É claro que este sagrado a que me refiro não é o sagrado
dicotômico do cristianismo: é o sagrado pleno, aquele que,
etimologicamente, reúne puro e impuro, aquele que, no rastro da
reflexão de Nietzsche, poderíamos chamar de sagrado dionisíaco,
182
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
em que não há dualismos nem separações, em que se encontram
criação e destruição, prazer e dor. Ao tratar do tema da violência
e do sagrado, Georges Bataille, não sem sugerir a filiação
nietzschiana, insiste ao longo de sua obra na íntima relação entre
o homem e a animalidade, e acentua a tensão que o abjeto, a
souillure, introduz no humano, estabelecendo assim um vaziofora-da-humano onde as antinomias se esvanecem, onde a experiência (que Bataile chama sempre de experiência interior) confronta o que se pensa e o que se vive. É nesse timbre que busca
conjugar todas as formas do aparentemente humano com as inevitáveis conseqüências do inumano que diz, em O erotismo, que «o
horror da morte não se acha unicamente ligado ao aniquilamento
do ser, mas ao apodrecimento que lança as carnes mortas na fermentação da vida» 3 •
Tento construir, assim, um instrumental conceitual que me
permita tratar o abjeto como um cruzamento de sentidos, em
que se encena um paradoxo: o do abjeto (ab-jectum) rejeitado
pelo humano, mas que do humano provém. O abjeto é uma metáfora da repulsa / atração da morte. Eis por que a representação do horror sempre choca e, ao mesmo tempo, fascina o humano. Eis porque o mal, muitas vezes temido e rechaçado, é,
por vezes, necessário e desejado.
É sobre esse jogo antitético - extremamente baudelairiano
- que gostaria de discorrer, comparando alguns episódios que
me parecem altamente significativos dentro dos romances de
André Malraux nos quais podemos contemplar a beleza terrível
e sagrada da morte, a fascinação do mal e os processos da abjeção: o primeiro trata do momento em que Claude e Perken, personagens do romance La Vaie royale [A Estrada real, 1930] que
se passa na floresta do Camboja, reencontram Grabot, personagem prisioneiro de uma tribo selvagem local; e o outro é aquele
em que Garine e o narrador do romance Les Conquérants [Os
Conquistadores, 1928], que trata da guerra de Cantão, em 1925,
na China, encontram o corpo de um combatente alemão terrivelmente torturado.
3 BATAILLE, Georges, op. cit.,
p.63.
183
Da representação do horror ao vazio da representação
*
Je suis la plaie et le couteau !
Je suis le soufflet et la joue !
Je suis les membres et la roue,
Et la victime et le bourreau !
L'héautontimorouménos »,
in : Oeuvres completes, t. I.
Paris: Gallimard, 1975,78.
4«
Todas as citações dos
romances remetem à
edição coletiva da Pléiade:
MALRAUX, André. Romans.
Paris: Gallimard, 1976. A
página será indicada entre
parênteses, precedida da sigla
do romance em questão: VR
5
(La Voie Royale), C (Les
Conquérants), CH (La
Condition Humaine). As
traduções são de minha
responsabilidade.
Charles Baudelaire 4
As primeiras alusões à vida de Grabot o fazem mergulhar
numa atmosfera de lenda e de mistério. Enquanto buscamos com
Claude, um arqueólogo, e Perken, um aventureiro conhecedor da
região, os templos khmers perdidos na floresta asiática, participamos ao mesmo tempo da ansiedade de Perken à medida que nos
aproximamos da região onde se encontra aquele personagem. A
partir da terceira parte do romance, a busca arqueológica deixa de
constituir o centro de interesse da expedição, cedendo o lugar à
luta do Perken pela libertação de Grabot.
Ao partir para a região dos conflitos na Ásia, esse personagem não o fizera tão simplesmente por interesses econômicos ou
políticos; buscava, sobretudo, responder a uma necessidade imperiosa de «acertar as contas consigo mesmo»5 (VR, 219). Voltase para sua própria solidão. Algo o separa dos outros e o torna
diferente: é a sua coragem. Esse é o germe do conflito que também vai dominar Tchen, o famoso terrorista da Condição Humana. Para esses dois personagens, arriscar a vida é um prazer, já
que a morte não lhes causa medo; ao contrário, ela os fascina.
Gtabot é capaz de ultrapassar todos os limites para expor-se e
perder-se, para gozar de um prazer terrível: o prazer de sua própria dor. É nesse sentido que, segundo Bataille, a perda se instala
como um meio de aquisição de um poder sobre si mesmo e uma
nova força sobre o mundo. É nesse sentido que ultrapassa a dimensão humana para alcançar uma dimensão sagrada, na qual o
gesto da morte e o ato do sofrimento participam da força de um
sacrifício ritual.
É assim que a mutilação, que Grabot se impõe causando a
destruição do próprio olho com pus blenorrágico, permite-lhe, na
experiência da dor, a vitória da coragem sobre o medo. Diante de
um escorpião que lhe causa forte repulsa, sua atitude é a mesma:
ao invés de fugir, expõe-se e deixa-se picar de propósito (VR,
184
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
245-246). Toma-se assim um agente do mal, um transgressor.
Como os reis das comunidades primitivas que, no momento de
sua entronização, transgrediam as leis mais sagradas e eram agredidos pelos súditos que os sujavam de sangue e excrementos para,
assumindo o abjeto, conquistarem o poder de exorcizar a própria
abjeção: contaminando-se com o impuro, absorviam o veneno do
mal. A singularidade do gesto de Grabot confirma seu isolamento.
Com efeito, não é o ato de violência que lhe impõe a
marginalização. Pelo contrário, sua exclusão precede o ato e exige o sacrifício, pois a exclusão é a marca da eleição. Enquanto
pharmakos, espécie de vítima sacrificial, ele encerra a ambigüidade característica do sagrado: etimologicamente a palavra latina
sacer, sacra, sacrum possui dois sentidos que se excluem: sagrado e maldito, aquilo que não se pode tocar sem sujar e o que não
se pode tocar sem se sujar. Carregando no seu próprio corpo o
bem e o mal, Grabot se distingue fisicamente do homem comum,
tomando-se dessa forma o ponto de convergência das diferenças,
o objeto multiforme, o homem-animal, humano-inumano, resolução das antíteses.
Prisioneiro dos selvagens, Grabot é condenado a empurrar
a mó de um moinho, como num círculo infernal absurdo. Quando
Claude e Perken penetram na palhoça sem janelas para libertá-lo,
eles o reencontram como um objeto aterrorizador, « um rosto
aviltado» (VR, 260), cujos olhos não vêem, um corpo brutalizado
(por ele mesmo e pelos outros). A reação dos dois traduz o embaraço angustiante diante do desconhecido que o corpo do escravo
ainda misterioso lhes impõe. A impossibilidade de aproximar-se
dele reside no fato de que «suas pálpebras esticadas coladas em
um osso ausente» davam a esse rosto o aspecto de uma degradação terrível. Grabot parecia um cadáver, imagem da decadência
humana.
Exorcizar o mal é, para ele, antes de tudo, encarná-lo, assumindo assim uma forma inumana. Assustadora ilustração do paradoxo da paixão de viver e da intimidade com a morte, contra cujo
absurdo luta sem tréguas. E o melhor meio de fazê-lo é antecipar
sua forma abjeta, é incorporá-la com toda a consciência, consciência semelhante à do Sísifo de Camus, opondo-se dessa forma ao
jogo do destino, atacando-o com as mesmas armas.
Nesse sentido, o rosto de Grabot que tentei esboçar, evoca,
185
Da representação do horror ao vazio da representação
a meu ver, a figura do homem em uma espécie de nudez fora do
tempo. Sem voz e sem visão, esse corpo assusta e fascina, como
se alcançasse o silêncio mais eloqüente e a visão mais ilimitada.
Se aludi à análise que faz Malraux dos desenhos de Goya, é que
vejo ali, sob a forma de um ensaio, a mesma imaginação que gerou os personagens romanescos. Falando dos torturados dos Desastres da guerra, Malraux afirma: "Quando o que ele pinta tem
relação com o atroz - que o tenha visto, que lhe tenham contado
ou que ele mesmo imagine - Goya mantém sua ligação com o
intemporal. O supliciado, o homem de braços cortados suspensos
nos galhos, que evocam a tortura milenar [... ] estão nus - fora do
tempo." (S, 115). Ora não poderíamos evocar aqui Grabot, que
acabamos de ver?
*
Leurs yeux, dont la divine étincelle est partie,
Comme s'ils regardaient au loin, restent levés
Au ciel ; on ne les voitjamais vers les pavés
Pencher rêveusement leur tête appesantie.
Ils traversent ainsi le noir illimité,
Ce frere du silence étemel.
.«
Les
Aveugles
»
,
BAUDELAIRE, Charles, op.
cit,92.
Charles Baudelaire6
Garine e o narrador de Les Conquérants encontram em uma
sala o corpo do combatente alemão Klein terrivelmente torturado, ao lado de três reféns chineses.
Diante desses corpos mortos e degradados, os personagens
se sentem confusos, como se se encontrassem subitamente face a
face com algo misterioso e incompreensível. Com efeito, a sensação de estranhamento que os invade é a súbita revelação de um
outro mundo. Eis o que diz o narrador: «esses corpos de pé têm
algo, não de fantástico, mas de surreal nessa luz e nesse silêncio.
Consigo respirar de novo agora, e, com o ar que aspiro, invademe um odor que a nada se assemelha, animal, forte e insípido ao
mesmo tempo: o odor dos cadáveres» (C, 129).
A presença dos mortos transforma inteiramente o espaço
em que se encontram. A posição ereta dos corpos contra a parede
186
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
dá uma dimensão diferente a esses cadáveres que não têm a postura habitual dos mortos, mas que parecem invadir, de certa forma, o mundo dos vivos. Donde a reação do narrador que, penetrando na luz radiante e no silêncio, vê aí algo que ultrapassa os
limites do real. Tudo se transformou, como o ar, dominado por
um odor animal mais forte do que a presença dos homens.
É um momento ao mesmo tempo de ruptura e de reencontro: ruptura com a vida e reencontro do humano com o inumano.
E desse encontro nasce, como uma força estranha e dominadora,
a fascinação. Os corpos torturados de Klein e dos três chineses
projetam na atmosfera silenciosa da sala uma aura sagrada. E,
diante dessas vítimas, Garine e o narrador são submetidos a uma
experiência mística: aproximam-se da morte e estabelecem com
ela laços de intimidade.
Aos olhos do narrador, o corpo de Klein impõe-se como a
imagem concreta da tortura. E à descrição inicial do romance,
quando o texto apresenta o militante como um homem grande e
forte, vem sobrepor-se a de um corpo mutilado, com «uma enorme mancha no meio do rosto: a boca rasgada com uma navalha)),
diante do qual o narrador desvia os olhos: « feridas abertas, grandes manchas escuras de sangue coalhado, olhos revirados, todos
os corpos se parecem. Foram torturados ... » (C, 130). É impossível não se pensar em Goya diante deste quadro! Como Goya,
Malraux rompe com a tradição do belo, do real agradável à vista,
e descobre em um percurso por outros já trilhado a beleza do mal.
Por isso, sua obra é pontilhada de quadros atrozes que, como o de
Klein e como a produção do pintor espanhol, trazem a revelação
ou a sedução do horrível: « A terrível forma da sedução chama-se
fascinação»7. Ora, diante de Klein e dos Chineses, achamo-nos
diante desse in temporal de que fala Malraux a propósito de Goya
- a tortura milenar - que nos transporta para fora do tempo.
A chegada da mulher de Klein introduz nesse quadro já tão
denso e sobrenatural um personagem novo. Imóvel diante daquele corpo, sem chorar, ela o contempla. De súbito, cai de joelhos.
Não reza. Parece atraída pelas marcas das atrocidades, como se,
por elas, e apenas por elas, se lhe revelasse naquele momento a
significação mais profunda do sangue: a eterna questão da morte
dos homens. E num gesto de amor, essa mulher-sem-nome, essa
mulher-sofrimento, «toma nos braços o corpo» do marido (C, 131),
\1ALRAUX, André. Dessins
de Goya au Musée du Prado.
Genêve : Skira, 1947, p. XIII.
7
187
Da representação do horror ao vazio da representação
recuperando, assim, no romance (e na obra, onde a presença feminina é tão reduzida) a imagem terna da Pietà. A figura da mãe
não é incompatível com o universo cruel e violento que aí vivemos e ainda menos com a mulher do militante alemão. Aliás, a
Pietà é ela própria uma figura plena de contrastes, pois reúne para
sempre (como um destino petrificado!) a dor e o amor. Ela abraça
a morte com um gesto convulsivo: «sacode a cabeça com um
movimento incrivelmente doloroso de todo o busto .... ». Esfregando-se contra o sangue derramado, maculando o próprio corpo
com os restos do humano, essa pobre mulher acentua o caráter
absurdo da morte: «com uma terrível ternura, esfrega seu rosto,
de forma selvagem, sem um soluço, no lençol ensangüentado, nas
chagas» (C, 131).
Esse quadro tão expressivo que Malraux nos apresenta reúne também - e de forma magistral- pela presença da mulher amada ao lado do cadáver do marido as figuras de Eros e de Tânatos.
Em outras palavras, funde numa mesma imagem dois gestos que
se assemelham fundamentalmente: o do amor e o do sacrifício. E
com seu gesto de amor, a mulher confunde-se com a morte, em
uma comunhão fascinante e terrível, em um diálogo que, embora
mudo, diz muito mais do que qualquer tratado sobre a morte.
*
Os exemplos que apresentei como formas de pensar e de
representar o abjeto são apenas dois momentos dos inúmeros que
encontramos nas literaturas e nas artes. Nada de novo. A primeira
questão que me movia nessa reflexão era delimitar um espaço de
significação do abjeto que é, ainda, a meu ver, e continuará sendo,
muito amplo, pois envolve manifestações diversas de um gesto
que lança longe (ab-jecta) aquilo que nos repulsa, mas que, por
outro lado, não se pode inteiramente separar do ser humano. A
segunda questão referia-se à aura sagrada que esse abjeto instaura. O terrorista é um sacrificador: o homem-bomba imola e Se
imola. Por isso, emaranhando vozes como Bataille. Kriste\"3..
Nietzsche, mesmo se nem sempre mencionados. circunscreYi esse
abjeto em torno da morte e de seus avatares.
A terceira questão é pensar a representação do abjeto e indagar sobre sua eficácia. É inegável que a arte constitui para o
188
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
artista um manancial de vida, um espaço de ressurreição onde,
apesar da violência e da morte, reencontra ou tenta reencontrar
ainda o equilíbrio das coisas. O artista cria, instaura novas relações, um novo mundo (mesmo que imaginário). Seu gesto tem
força demiúrgica, tem poder contra a violência. Mas até que ponto?
Em Notas de literatura, onde Adorno discute a função da
obra engajada, essa pergunta assume um lugar de destaque. Referindo-se à peça de Sartre, quando alguém pergunta em Morts sans
sépulture se há sentido em viver enquanto existem homens que
batem em outros até que os ossos se quebrem, diz que uma pergunta se impõe ao mesmo tempo: a arte ainda pode existir? Em
um diálogo com o espanhol Alvear, professor de História da Arte,
Scali, intérprete de Masaccio e de Piero della Francesca, professor da Universidade de Florença, diz no romance A Esperança,
que relata a guerra civil espanhola de 1936: «Nas Igrejas do sul,
onde combatemos, vi diante de quadros enormes manchas de sangue. As telas perdem sua força» (E, 835). Ao que responde Alvear:
« Seriam necessárias outras telas, só isso».
O que Alvear queria dizer com isso não fica claro. Creio
que cada tempo exige sua arte, novos engajamentos, e novas representações. Que escritores e artistas venham apresentando constantes protestos contra a violência que grassa ao nosso redor, não
há a menor dúvida. O que eu queria arriscar como reflexão é observar que, ao lado de inúmeras formas concretas de representação, a representação do vazio tem cada vez mais lugar e é plena
de sentido.
Temos assistido na literatura e nas artes a uma reflexão constante sobre a ausência, o vazio, o silêncio. A linguagem perfeita
do silêncio escaparia a toda e qualquer materialidade física que a
pudesse macular. A ausência do livro, para Blanchot, parece não
querer corporificar a obra, mas alimentar o processo, como se,
pela não existência, nada se pudesse corromper.
Penso que há uma migração da representação concreta para
uma representação pela ausência. Dois exemplos me vêm à lembrança. Visitei em julho de 2004 o Judisches M useum em Berlim,
construído pelo arquiteto Daniel Liebeskind. O museu é organizado a partir de três eixos que se entrecortam: o da continuidade,
o do exílio e o do holocausto. São salas altas, grandes, corredores
Da representação do horror ao vazio da representação
imensos e tudo quase vazio. Há salas com quadros de artistas
judeus e outras salas vazias, numa ausência eloqüente de quadros
que sumiram, foram destruídos, ou nunca existiram. Talvez se
pudesse chamar isso de uma instalação do Vazio da Morte. A sala
das máscaras humanas, de aço, sobre as quais somos convidados
a caminhar, causando um barulho metálico, agressivo, hostil barulho abjeto - do humano desumanizado é algo que causa dor e
repulsa.
O segundo exemplo é o monumento que, naquele julho, ainda
estava por terminar: pedras tumulares negras em pleno centro de
Berlim, a algumas quadras apenas da porta de Brandenburg.
Túmulos vazios, plenos de lembranças. Era o centro do III Reich.
Parece um cemitério. Mas não há corpos. Só pedras. É o monumento da ausência.
Creio que é possível pensar essa ausência-plena. Plena de
memória, vazia de forma humana. Ainda não sei bem como elaborar essa reflexão. Mas parece-me que a forma vazia, tal qual a
linguagem do silêncio, é uma forma de proteger o já desumanizado,
ou pelo menos de impedir a sua nova desumanização. Forma precária, talvez, de preencher o vazio com a memória que não se
apagou. Parece um simples jogo de palavras, mas não é. Pelo menos
para mim não é. Cria-se o espaço da morte, onde não há morte,
porque a morte nada pode contra a morte.
Fiquei perplexo como diante do sagrado. Recolhido. Emocionado. Muito mais do que diante da exibição abjeta dos cabelos,
das malas e dos sapatos de Auschwitz.
Estou convencido de que a ausência é uma nova forma de
reflexão e de representação da catástrofe e do horror.
189
191
A literatura e a virtualização do texto
literário
Rogério Limo
(UnB)
'Lady Makby, marido Ideal
(1895), in Beckson, Karl (Org).
O melhor de Oscar Wilde.
Tradução Dau Bastos. Rio de
Janeiro: Garamond, 2000.
'Ulman, Ellen. Perto da
máquina. Tradução Márcio
Grillo. São Paulo: Conrad
Editora do Brasil, 200 I, p. 123.
Nada mais perigoso do que ser demasiado moderno: corre-se o risco
de sair de moda muito rapidamente.
Oscar Wilde I
Viver virtualmente é uma arte. Como qualquer arte, a virtual idade não
é nem estável nem segura.
Ellen Ullman 2
o pós-moderno e a literatura Frankenstein
lKolata, Gina. Clone: os
caminhos para Dolly e as
implicações éticas, espirituais e
científicas. Tradução Ronaldo
Sérgio De Biasi. Rio de Janeiro:
Campus, 1998, p. 21.
4Perrone-Moisés, Leyla.
Derrida no Rio. Folha de São
Paulo, Caderno Mais! São
Paulo, 8 de julho de 2001.
'Huxley, Aldous. Admirável
mundo /lOvo. Tradução Vidal
de Oliveira e Lino Vallandro.
26a. edição - São Paulo:
Editora Globo, 2000, p. 9-10.
'Kolata, Gina. Clone: os
caminhos para Dolly e as
implicações éticas, espirituais e
científicas. Tradução Ronaldo
Sérgio De Biasi. Rio de Janeiro:
Campus, 1998, p. 7.
Chamamos atenção para a seguinte questão: talvez se deva
pensar a questão do virtual, ou de sua invasão do território literário, enlaçando, pelo menos para começar, três referências inevitáveis: complexidade, velocidade, interdisciplinaridade. Elas nos
proporcionarão, combinadamente, outras possibilidades de reflexão. E neste momento, diante da polimorfia do virtual, da lentidão da letra e da velocidade da imagem, a saída jamais terá de ser
a clonagem da literatura.
Segundo Gina Kolata a clonagem é uma metáfora e um espelho. "Ela nos força a contemplar a nós mesmos e os nossos
valores e a decidir o que é importante para nós e por quê."3 Para
Jacques Derrida a clonagem se configura como uma repetição
calculada da identidade genética de um indivíduo4 , da mesma forma como Huxley denuncia o fato em seu Admirável Mundo Novo
ao descrever a fria racionalidade do Processo Bokanovisky 5. A
bokanovskização é a metáfora de Huxley para a aplicação da linha de montagem fordiana à reprodução humana. A clonagem
implica na produção e não na geração de um ser6 ; essa afirmação
coloca a literatura em um impasse entre a criação e a produção.
192
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
A clonagem da literatura deve ser interpretada como uma
repetição em série daquilo que já está posto pela própria literatura. O pós-modernismo opera justamente no sentido contrário ao
da clonagem, que entendemos estar muito mais afeita ao cânone
ou próximo do que Barthes chama de texto legíveU Os textos
legíveis "São produtos (e não produções) que constituem a enorme massa de nossa literatura". 8 Esses são textos da esfera do possível e não do virtual.
O pós-moderno trabalha com os signos cristalizados da cultura e tem por finalidade questionar valores estabelecidos e elaborar um novo objeto artístico, utilizando como material de sua composição elementos da própria cultura. 9 É possível que com esse
tipo de ação viéssemos a ter uma literatura Frankenstein JO , mas
não uma literatura clonada. "A literatura sempre antecipa a vida
nunca a copia: ela a molda segundo seus próprios objetivos".!! Os
corpos textuais, legíveis, produzido pela literatura pós-moderna
são corpos fraturados, dotados de virtualidades e virtualizações
(problematizações) internas ao texto e externas ao seu funcionamento, enquanto artefato técnico de comunicação de uma forma
de arte em transformação.
A literatura e a mídia digital
O advento da mídia digital de massa e das recentes
tecnologias de informação/comunicação colocou em xeque o papel tradicional da literatura e da arte como um todo, desencadeando um movimento de autoquestionamento a partir de seus próprios fundamentos. Estes questionamentos ocorrem sob diversos
aspectos, dentre os quais podemos citar: a noção e concepção de
autoria, a fragmentação da narrativa, as novas relações textuais
- criadas a partir do conceito de hipertexto (matriz de textos
potenciais), da relação textolimagem, da interatividade, da
virtualização do texto literário e da introdução do conceito de
ciberliteratura.
Diante deste quadro, começa a ser esboçada uma poética da
literatura pós-moderna e de suas relações com o mundo virtual,
atentando-se especialmente para as obras que procuram redefinir
e ampliar o estatuto do literário seja pelo diálogo intersemiótico
7Barthes, Roland. SfZ: uma
análise da novela Sarrasine de
Honoré de Balzac. Tradução
Lea Novaes. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1992, p.38.
'Ibidem, p. 39.
9Lima, Rogério. O dado e o
Óbvio: o sentido do romance na
pós-modernidade. Brasília:
Editora da Universidade de
Brasília/Editora Uni versa,
1998.
1°0 termo Frankenstein ou
Frankensteinização tem sido
usado por diversos segmentos da
crítica e autores como Nízia
Villaça e Rosa Maria Rodríguez
Magda para desig-nar o texto
literário pós-moderno em suas
diversas formas de realização e
elementos textuais integrados
por ele. Nízia Villaça com o
apelo à metáfora do termo alude
"ao fato de que o texto
eletrônico, no complexo informático/com unicacional,
participa de um imaginário
maquínico que, visto a partir de
um horizonte do corpo enquanto
dado natural, é considerado
agente de desumanização,
robotização, controle tecnológico." VJllaça, Nízia. "Robinson
Crusoé, Babel, Prankenstein e
outros mitos: corpo e tecnologia. In Villaça, Nízia.GÓes,
Fred e Kosovski, Ester (Orgs.).
Que corpo é esse? Novas
perspectivas. Rio de Janeiro:
Mauad, 1999.
Para Rosa María Ro-drigues
Magda, "Nos encontramos en
el seno de la frankensteinizaçíon
de la cultura, de la sociedade y
de lavida. Mientras las
sociedades avanzadas nos
ofrecem un modelo hologramático, retroviral, de redes
informáticas, de fusión cyborg
entre la biología y la técnica, el
mundo en su conjunto nos
retroatrae al territorio preindustrial do monstruoso, fragmentos
distorsionados e irrecic1ables de
un sigl0 que se acaba, deformes
presencias milenaristas, la
A literatura e a virtualização do texto literário
multiplicidad heterogenia de
nuestros fantasmas recientes
engarzados en una fisiología
excrescente, descomunal y atroz.
Síntesi imposible, monstruosa
por tanto, de la historia en
nuestro presente, y presencia
acechante dei monstruo de lo
otro que en vano pretendemos
recluir más aliá de nuestros
limites de seguridad.
Con la denominación "modelo
Frankenstein" pretendo metaforizarestas dos vertientes: porun
lado, la pervivencia de los restos
cadavéricos de nuestro pasado:
teoóas, estéticas, religiones ...
que
retornan
en
una
contemporaneidad convulsa,
que no compone sin más un
mosaico de datación diversa sino
que lo integra en un dinamismo
redivivo y mutante; y, por otro
lado, plasmar la presencia y eI
horror de lo monstruoso en los
limites de nuestra conciencia y
nuestrageografía: el extranjero,
el fanático, el violento, el
marginal, las minoóas diferentes
y ladiferenciaen suma." Magda,
Rosa María Rodríguez. El
modelo frankenstein: de la
diferencia a la cultura post.
Madrid: Editorial Tecnos, 1997.
11 Vivian, em "A decadência da
mentira", 1891. In Beckson,
Karl (Org). O melhor de Oscar
Wilde. Tradução Dau Bastos.
Rio de Janeiro: Garamond,
2000.
12 Guattari, Félix. Da Produção
da Subjetividade. In Imagem
máquina. São Paulo: Editora
34, 1993.
13 Kubrick, Stanley. 2001 Uma
Odisséia no Espaço. MGMI
UA HOME VIDEO, VÍDEO
ARTE DO BRASIL, 1968.
63Deleuze, Gilles e Guattari.
Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Vol. I. Tradução
Aurélio Guerra Neto e Célia
Pinto Costa. São Paulo: Editora
34, la Reimpressão, 1996, p.
16.
do texto com imagens, sons e movimentos, seja pelo
questionamento de conceitos sobre leitura, autoria, narrativa e
representação. No bojo de todas as discussões surgidas em torno
da literatura neste final de século e que, atualmente, têm merecido
lugar de destaque no campo das ciências humanas está, sem dúvida, a questão relativa ao pensamento e à produção literária na era
do digital. Diante deste fato, buscamos com este trabalho refletir
sobre as seguintes questões: até que ponto, e de que maneira, se
diferenciam a forma e a sensibilidade literária da modernidade e
da pós-modernidade frente ao avanço da tecnologia digital e como
se processará a relação leitor/texto diante do novo quadro que se
estrutura? Para responder a essas questões trabalharemos com a
crítica da cultura que irá nos fornecer instrumental teóricoinvestigativo para que tornemos possível a formulação de alguns
pressupostos teóricos acerca de uma nova lógica existencial para
o sentido da literatura, num mundo dominado por imagens, velocidade, informação em tempo real.
Definitivamente, - como diz Félix Guattari 12 - entramos
na era da subjetividade maquínica, não de uma subjetividade
reterritorializada, mas de uma subjetividade controlada pelas máquinas: mídias, bancos de dados, a temporalidade dos computadores (tempo real), telecomunicações. Não se trata aqui de dizer
que as máquinas tomarão o poder e dominarão o homem % a
ficção científica já fez essa previsão e ela não se concretizou, não
da forma como foi profetizada ou como o computador HAL 9000,
de 2001 Uma odisséia no espaçol3, tentou impor a sua lógica
coisificada de máquina. Mas de apenas constatar o fato de que,
cada vez mais, e com maior intensidade, a nossa subjetividade
está entrando em máquina: esta é a era que Guattari classifica
como era da idade da informática planetária. Segundo Freeman
Dyson, não há nenhum perigo concreto de que a inteligência humana venha a ser superada pela artificial, pois está continuará a
ser uma ferramenta sob controle humano. 14 O perigo real reside
no uso e na conformação que pode ser dada às máquinas abstratas
(políticas, econômicas, científicas, e outros)15 que podem agenciar a nossa consciência e sensibilidade de forma danosa.
193
194
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
o virtual como problema
Segundo Jean Baudrillard, hoje não pensamos o virtual; somos pensados por ele. Baudrillard aborda a questão do virtual de
forma bastante negativa. Segundo ele, não é possível imaginarmos o quanto o virtual já transformou todas as representações
que temos do mundo. O virtual, na sua opinião, caracteriza-se
pela eliminação da realidade, mas não só, pois também inclui o
apagamento da imaginação do real, do político, do social "- não
somente a realidade do tempo, mas a imaginação do passado e do
futuro (a isso chamamos, em função de uma espécie de humor
negro, de "tempo real")."16
O virtual apresenta-se como uma ilusão que é perpassada e
dominada pela entrada em cena da informação, pelo fim do pensamento com o surgimento da inteligência artificial. Para esclarecer
o seu pensamento, Baudrillard usa um exemplo bastante delicado,
devido ao fato de estar situado ao longo do acontecimento mais
assustador e mais incompreensível de nossa história moderna: a
exterminação dos judeus nos campos de concentração nazistas e
os que negam a sua ocorrência histórica, os chamados
negacionistas. A postura negacionista é absurda e aberrante, pois
vai contra a realidade histórica e objetiva da exterminação. No
tempo histórico os fatos aconteceram e as provas estão ao alcance de qualquer um, que as queira investigar. Mas Baudrillard chama a atenção para o fato de não estarmos mais no tempo histórico; de agora em diante estamos no tempo real. No tempo real não
há mais prova de nada. É impossível verificar a exterminação no
tempo real. O negacionismo é visto como um absurdo na sua própria lógica, mas ajuda a esclarecer por meio do próprio absurdo o
surgimento de uma outra dimensão:
% paradoxalmente chamada tempo real, mas onde precisamente a realidade objetiva desaparece, não somente a do acontecimento presente, mas também a do acontecimento passado e a
do futuro. Tudo se esgotando numa total simultaneidade que os
atos aí não acham sentidos, os efeitos não acham suas causas e
a história não pode mais aí se refletir. 17
O tempo real é visto por Baudrillard como um gênero de
14 Dyson, Freeman./nfinito em
todas as direções. Tradução
Laura Teixeira Motta. São
Paulo: Companhia das Letras,
2000, p. 342.
15 Deleuze, GiIles e Guattari,
Félix. Mil Platôs: capitalismo
e esquizofrenia. Vol. 5.
Tradução Peter Pá! Pelbart e
Janice Caiafa. São Paulo:
Editora 34, p. 227.
16 Baudrillard, Jean. Tela Total.
Porto Alegre: Sulina, 1997, p.
73.
17
Ibidem, p. 73.
A literatura e a virtualização do texto literário
" Lévy, Pierre. O que é o
virtual. Tradução Paulo Neves.
São Paulo: Ed. 34, 1996.
(Coleção Trans) p. 18.
buraco negro, onde nada penetra sem sofrer um esvaziamento de
sua substância. Os campos de exterminação - argumenta o filósofo- tornam-se virtuais e só têm existência na tela do virtual.
Todos os horrores decorrentes do Holocausto e os testemunhos
da sua ocorrência são lançados, apesar dos negativistas, apesar de
nós, no que ele chama de abismo do virtual onde os acontecimentos ou os fatos só existem o tempo que existem e nada mais.
A visão de Baudrillard em relação ao virtual é altamente
cética e desencantada. Ele pressente no virtual a desestabilização
da verdade e a derrota do pensamento histórico e crítico. Com
isso ele quer dizer, na verdade, que há o triunfo do tempo real
sobre o presente, sobre o passado, sobre toda e qualquer forma de
articulação lógica da realidade.
O mesmo não pode ser dito de Pierre Lévy que busca nos
seus trabalhos uma compreensão diferenciada do virtual. Lévy
apresenta uma visão mais positiva, pois vê no virtual a sua oposição ao atual. Fugindo ao senso comum o autor retira o conceito de virtual da ordem da ilusão, da ausência de existência. Desta forma, ele passa a ser entendido não como oposição ao real,
mas ao atual. Vírtuahdade e atualidade são apenas duas maneiras de ser diferente. A atualização pertence à esfera da solução
de um problema, invenção de uma solução para um complexo
problemático; enquanto que a virtualização pode ser entendida
como o movimento inverso da atualização, ou seja, ela está situada no contexto da problematização. Porém, não deve ser entendida como uma desrealização (transformação de uma realidade num conjunto de possíveis), mas como uma transformação
de uma identidade, um deslocamento do "centro de gravidade
ontológico" do objeto considerado que, ao invés de se orientar
para uma solução (atualização), "a entidade passa a encontrar
sua consistência essencial num campo problemático". Virtualizar
uma entidade qualquer deve ser entendido como encontrar uma
questão geral à qual ela se relaciona: consiste em fazer mover a
entidade em direção a essa interrogação e em reorientar a atualidade de partida como resposta a uma questão particular. 18 Partindo desta conceituação, buscamos virtualizar a construção do
sentido na narrativa da chamada pós-modernidade, pois entendemos que o texto do romance no seu percurso do moderno
para o pós-moderno se desterritorializou rumando na sua
195
196
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
virtualização (problematização) para uma ressurgência da cultura do texto.
o virtual e suas relações
Devemos fazer aqui algumas observações acerca de alguns
conceitos como real e virtual, possível e atual, atualização e
virtualização. Considerando, inicialmente, a oposição entre real e
virtual, no seu uso ordinário, a palavra virtual é utilizada para
indicar ausência de existência, a não-materialidade de uma "realidade" tangível. O real pertence à ordem do tenho, o virtual está
situado na ordem do terás, estando, dessa forma, circunscrito ao
campo semântico da ordem da ilusão (ideal, ilusório, imaginado,
imaginário, irreal, quimérico, utópico, possível). Esta compreensão do virtual, produzida no âmbito do senso comum, tem como
maior conseqüência - advinda da ironia fácil desse pensamento
- a produção de um entendimento enganoso e grosseiro da relação real-virtual e, conseqüentemente, das diversas formas de
virtualização. Ainda que demasiado grosseiro para constituir uma
teoria geral, essa maneira de enfocar a questão tem um fundo de
verdade que se revelará bastante útil, conforme poderá ser constatado mais adiante.
A respeito das novas relações pessoais e comerciais
estabelecidas ou impostas pelas novas formas de vida mediada
pela tecnologia digital e do virtual, Ellen Ullman escreve:
Houve um tempo (ainda vivo na memória) em que "virtual"
era uma palavra livre no idioma. Significava "quase verdadeiro" ou "para todos os efeitos, mas não por completo. Não de
fato". A pessoa podia dizer: "Eu estava virtualmente feliz".
Encontrava-se feliz de fato? Não, porque junto com o "virtualmente" havia um quê de falsidade, alguma coisa ausente, um
estado inefável de que a felicidade não era tanta assim. Então,
dizer "tenho uma empresa virtual" deveria significar que tenho
uma empresa que não é tão real assim, algo próximo da realidade de uma empresa, mas sem algum elemento essencial.
Outras pessoas, por exemplo.
Entretanto, a palavra "virtual" já não vaga livre no idioma. Foi
aprisionada pelas máquinas. Hoje "virtual" significa viver nesse
lugar - que não é tão aqui assim - do computador e do
197
A literatura e a virtualização do texto literário
software. A palavra conserva um quê de ausência, daquilo que
não é real. Mas, de alguma forma, essa negação virou uma
coisa boa. Ter vida efêmera e vagar nesse lugar indefinível que
agora conhecemos como ciberespaço é considerado excelente.
Os semideuses vivem ali. "Tenho uma empresa virtual" - ótimo, maravilha, formidável. 19
19 Ulman, ElIen. Perto da
máquina. Tradução Márcio
Grillo. São Paulo: Conrad
Editora do Brasil, 2001, p. 120.
o
vocábulo virtual na sua origem do latim escolástico
virtuale significa aquilo que existe como faculdade, porém sem
Hollanda, Aurélio Buarque
de. Novo Aurélio Século XXI:
Dicionário da Língua Portuguesa - Dicionário Eletrônico.
Rio de Janeiro: Editora Nova
FronteiralLexikon Informática,
2000.
20
21 Lévy, Pierre. O que é o
virtual. Tradução Paulo Neves.
São Paulo: Ed. 34, 1996.
(Coleção Trans) p.IS.
22 Deleuze, Gilles. Diferença e
repetição. Tradução Luiz
Orlandi, Roberto Machado. Rio
de Janeiro: Graal, 1988, p.33S.
exercício ou efeito atual. Suscetível de se realizar; potencial. Dizse do que está predeterminado e contém todas as condições essenciais à sua realização. Opõe-se, nesta acepção, à idéia de potencial e atuaPO . "O virtual tende a atualizar-se, sem ter passado,
no entanto, à concretização efetiva ou formal". 21 Exemplificando,
a semente contém virtualmente a árvore. Em termos filosóficos, e
como vimos na acepção da palavra elencada acima, o virtual não
se opõe ao real, porém se coloca em total oposição ao atuaF2 . As
categorias virtualidade e atualidade se configuram somente como
dois modos de ser diferente.
Conforme escreve Deleuze:
o virtual possui uma plena realidade. Do virtual, é preciso
23lbdem, p. 339-340.
dizer exatamente o que Proust dizia dos estados de ressonância: "Reais sem serem atuais, ideais sem serem abstratos", e
simbólicos sem serem fictícios. O virtual deve ser mesmo definido como uma estrita parte do objeto real- como se o objeto
tivesse uma de suas partes no virtual e aí mergulhasse como
numa dimensão objetiva. 23
Deleuze traz à luz a distinção entre possível e virtual, chamando a atenção para o perigo de se confundir o virtual com o
possível:
Com efeito, o possível opõe-se ao real; o processo do possível
é, pois, uma "realização". O virtual, ao contrário, não se opõe
ao real; ele possui uma plena realidade por si mesmo. Seu processo é a atualização. É um erro ver nisso apenas uma disputa
de palavras: trata-se da própria existência. Cada vez que colocamos o problema em termos de possível e de real somos forçados a conceber a existência como um surgimento bruto, ato
puro, salto que se opera sempre atrás de nossas costas, subme-
198
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
tido à lei do tudo ou nada. Que diferença pode haver entre o
existente e o não existente, se o não existente já é possível,
recolhido no conceito, tendo todas as características que o conceito lhe confere como possibilidade? A existência é a mesma
que o conceito, mas fora do conceito. Coloca-se, portanto, a
existência no espaço e no tempo, mas como meios indiferentes,
sem que a produção da existência se faça num espaço e num
tempo característicos. A diferença só pode ser então o negativo
determinado pelo conceito: seja a limitação dos possíveis entre
si para se realizarem, seja a oposição entre o possível e a realidade do real. O virtual, ao contrário, é a característica da Idéia;
é a partir de sua realidade que a existência é produzida, e produzida em conformidade com um tempo e um espaço imanentes
à Idéia. 24
Em segundo lugar, o possível e o virtual se distinguem ainda
porque um remete à forma de identidade no conceito, ao passo
que o outro designa uma multiplicidade pura na Idéia, que exclui radicalmente o idêntico como condição prévia. Enfim, na
medida em que o possível se propõe à "realização", ele próprio
é concebido como a imagem do real, e o real como a semelhança do possível,25
24
Ibdem, p. 335-336.
25
Ibid, p. 340.
o possível, como coloca Deleuze, é exatamente igual
ao
real, já constituído, porém caracteriza-se como um real
fantasmático, desrealizado, desprovido de existência, que congrega
um conjunto de possíveis. Segundo a leitura que Lévy faz de
Deleuze, "A realização de um possível não é uma criação, no sentido pleno do termo, pois a criação implica também a produção
inovadora de uma idéia ou de uma forma".26 Sendo a diferença
entre possível e real puramente lógica. Para o narrador deA biblioteca de Babel, de Jorge Luis Borges, - em sua busca pelo livro
que contivesse todos os livros - o possível na sua relação com o
real é a própria garantia de existência de um objeto. "Não me
parece inverossímil que nalguma divisão do universo haja um livro total". Em nota a esta especulação ele afirma:
Repito-o: basta que um livro seja possível para que exista. Somente está excluído o impossível. Por exemplo: nenhum livro é
ao mesmo tempo uma escada, ainda que, sem dúvida, haja livros
que discutem e neguem e demonstrem essa possibilidade e outros cuja estrutura corresponde à de uma escada. 27
Lévy, Pierre. o que é o
virtual. Tradução Paulo Neves.
São Paulo: Ed. 34, 1996.
(Coleção Trans) p. 16
26
Borges, Jorge Luís. "A
biblioteca de Babel" In
Ficções. 6ª edição. Tradução
Carlos Nejar. São Paulo:
Globo, 1995, p. 90.
27
199
A literatura e a virtualização do texto literário
28
Ibidem. p.16.
Na relação das oposições estabelecidas o virtual não se opõe
ao real, mas sim ao atual. O virtual se configura como um complexo problemático: um nó de tendências ou forças que segue uma
situação, um acontecimento, um objeto ou uma entidade qualquer, e que aponta para um processo de resolução que se materializa na atualização. Desta forma, a virtualidade pode ser entendida como uma problemática inerente a um ser, já a atualização se
caracteriza como a solução, que não estava previamente enunciada, de um problema. Segundo Lévy a atualização é criação, "invenção de uma forma a partir de uma configuração de forças e de
finalidades".28 É possível apontar uma relação entre o pós-moderno e atualização devido às características desta nova forma de
sensibilidade e da atualização? A resposta a esta pergunta é afirmativa. Lido pela ótica do virtual, o pós-moderno contém em si a
virtualização, que se presentifica sob a forma de problematização
- característica que lhe é imanente - e a atualização, que se estabelece como resposta às questões impostas pelo pós-moderno.
Na relação entre possível e real, vimos que o possível é o
real desrealizado à espera de uma dotação de realidade que o retire do limbo. O que toma o real semelhante ao possível. Na correlação de forças entre virtual e atual não há nenhuma relação de
similaridade, pois se o real é análogo ao possível, o atual não guarda
nenhuma relação de semelhança com o virtual, pois a sua função é
responder a ele. A relação entre virtual e atual se configura da
seguinte forma: o virtual se apresenta como problema e o atual
como solução para esse problema, resultando daí a atualização.
Lévyescreve:
Se a execução de um programa informático, puramente lógica,
tem a ver com o par possível/real, a interação entre humanos e
sistemas informáticos tem a ver com a dialética do virtual e do
atual.
A montante, a redação de um programa, por exemplo, trata um
problema de modo original. Cada equipe de programadores
redefine e resolve diferentemente o problema ao qual é confrontada. A jusante, a atualização do programa em situação de
utilização, por exemplo, num grupo de trabalho, desqualifica
certas competências, faz emergir outros funcionamentos, desencadeia conflitos, desbloqueia situações, instaura uma nova
dinâmica de colaboração ... O programa contém uma
200
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
virtualidade de mudança que o grupo - movido ele também
por uma configuração dinâmica de tropismos e coerções atualiza de maneira mais ou menos inventiva. 29
29
Ibid, p.l7.
30
Ibid, p.l7.
31
Ibid, p.18.
o processo da virtualização
o processo da virtualização se constrói e pode ser definido
justamente como um movimento na contramão da relação e do
movimento que vai do virtual ao atual: atualização. Pois, na economia da virtualização a ordem dos fatores é invertida, alterando
substancialmente o produto. O ponto de partida agora é a atualização (uma "solução") na direção de um problema, ou seja, constitui-se como uma passagem do atual em direção ao virtual, gerando dessa forma a virtualização. Ao contrário do possível (realização, ocorrência de um estado pré-definido) a virtualização não
é uma desrealização (a transformação de uma realidade num conjunto de possíveis), mas uma mudança de identidade, "um deslocamento do centro gravitacional ontológico do objeto considerado".30 Em lugar de deixar-se conhecer de maneira exata, de expor-se com precisão por meio de sua atualidade, ou seja, pelo viés
da solução, a entidade transita para um campo problemático, onde
descobre sua consistência essencial. 31 Retomando, a virtualização
de uma entidade qualquer se funda no movimento de invenção de
um problema geral à qual ela esteja relacionada, em fazer transitar
o objeto em direção a essa questão e redefinir a atualidade de
partida como resposta a uma questão particular. O virtual tem
para si a "realidade de uma tarefa a ser cumprida, assim como a
realidade de um problema a ser resolvido; é o problema que orienta, condiciona, engendra as soluções, mas estas não se assemelham às condições do problema". 32
Para exemplificar o processo da virtualização Lévy utiliza a
transformação do espaço de trabalho na era digital:
Tomemos o caso, muito contemporâneo, da "virtualização" de
uma empresa. A organização clássica reúne seus empregados
no mesmo prédio ou num conjunto de departamentos. Cada
empregado ocupa um posto de trabalho, precisamente situado
e seu livro de ponto especifica os horários de trabalho. Uma
empresa virtual, em troca, serve-se principalmente de
teletrabalho; tende a substituir a presença física de seus empre-
Deleuze, Gilles. Diferença e
repetição. Tradução Luiz
Orlandi, Roberto Machado. Rio
de Janeiro: Graal, 1988, p.341.
32
201
A literatura e a virtualização do texto literário
JJ Lévy, Pierre. O que é o
virtual. Tradução Paulo Neves.
São Paulo: Ed. 34, 1996.
(Coleção Trans) p. 18.
gados nos mesmos locais pela participação numa rede de comunicação eletrônica e pelo uso de recursos e programas que
favorecem a cooperação. Assim, a virtualização da empresa
consiste, sobretudo, em fazer das coordenadas espaço-temporais do trabalho um problema sempre repensado e não uma
solução estável. O centro de gravidade da organização não é
mais um conjunto de departamentos, de postos de trabalho e
livros de ponto, mais um processo de coordenação que
redistribui sempre diferentemente as coordenadas espaço-temporais da coletividade de trabalho e de cada um dos seus membros em função de diversas exigências. 33
Constatamos aí a ocorrência da desterritorialização do trabalho, fato este que tem gerado diversas controvérsias no que diz
respeito às rápidas transformações tecnológicas que os setores produtivos têm sofrido e as interferências e mudanças que estas transformações impõem à organização do trabalho e aos trabalhadores.
A autora e engenheira de software norte-americana Ellen
Ullman descreve com perfeição, em seu ensaio autobiográfico, o
que é viver essa deriva da empresa virtual e o quanto ela pode
gerar de assombro:
Mas a vida virtual das empresas tecnológicas exige algo além
da inspiração. O que se mostra indispensável é passar para o
resto do mundo uma idéia de existência real. Devemos parecer
uma empresa no sentido habitual da palavra, com a sala cheia
daquele zumbido empreendedor. Não há nada mais estranho do
que estar de calça moletom suja e atender ao telefone dizendo
"Ellen Ullman aqui" com voz madura e eficiente. É como projetar-me (sic) num outro universo, onde visto um terninho e
meu ca~elo está limpo, algum lugar que não tem nada a ver
com o mundo que habito de moletom. Enquanto falo ao telefone - com um cliente ou diretor - , tenho a consciência de que
coloquei a voz de maneira correta e de que vêem como desejei
ser vista: uma mulher inteligente e empreendedora num apartamento requintado de paredes de tijolo. Desligar então é quase
doloroso. Clique. Volto a mim mesma: criatura a nadar sozinha no mar do tempo.
Além de certa entonação de voz, a fachada da realidade
construída é totalmente eletrônica - e, portanto, virtualizada
mais uma vez. Endereço na internet com nome da empresa; fax
com nome da empresa saindo do outro lado; secretária eletrô-
202
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
nica que atende com voz de recepcionista, não a nossa; número
de telefone terminado em zero alguma coisa, para pensarem
que telefonaram para nossa linha privada, e não para a única
que temos; timbres feitos por impressora a laser; recibos produzidos em Excel, Quattro Pro ou QuickBooks - tudo isso e
mais alguma coisa para criar a ilusão necessária e inequívoca
de existência padrão. É meio assustador pensar na facilidade
que é fazer tudo isso.34
A desmaterialização dos espaços tradicionais se corporifica
sob uma nova forma de localização no ciberespaço: o endereço
eletrônico, virtual. A desterritorialização total ocorre com a configuração do pontocom:
Agora até Wall Street quer deixar Wall Street. Alguns meses
depois voltei de Nova York, li um artigo no Wall Street Joumal:
a Bolsa de Valores de Nova York precisa de mais espaço para
equipamentos eletrônicos e já fala em sair da cidade. Serão
mais lojas fechadas em Wall Street, na verdadeira Wall Street,
o lugar que um dia foi o sustentáculo da cidade. Imaginei como
se chamaria depois da mudança: www.wallstreet.com?
Mas por que a bolsa não deveria se mudar? Por que os profissionais da área não deveriam viver como os diretores, fazendo
telecomutação de suas lindas casas em Connecticut? A Nasdaq
é apenas um grande sistema de informações. 35 Então, por que
não a Bolsa de Valores de Nova York? O prédio na Wall com a
Broad, na esquina do nosso, poderia talvez se transformar em
atração para turistas. Talvez alguns corretores de carne e osso,
pudessem ficar ali com suas camisas de corretor e gritar pelo
microfone para transmissão de identificação de voz no sistema. Por que não? As cidades parecem ter se transformado em
franquias de parque de diversões .36 As grandes lojas da Times
Square são exatamente as mesmas Virgin, Gap, e Disney da
Union Square, em São Francisco, da Praça Catalunha, em
Barcelona, ou do Champs Élysées. Os mesmos Mickey Mouses,
Levis e hamburguesas. Então, por que não grandes lojas da
Bolsa de Nova York?37
A percepção da invasão do campo do real pelo virtual é um
sentimento que paira sobre todos os que se dispõem a uma olhada
rápida aos acontecimentos a sua volta. Em meio a tanta velocida-
Ulman, Ellen. Perto da
máquina. Tradução Márcio
Grillo. São Paulo: Conrad
Editora do Brasil, 2001, p. 123.
H
" Grifo nosso
'" Grifo nosso.
Ulman, Ellen. Perto da
máquina. Tradução Márcio
Grillo. São Paulo: Conrad
Editorado Brasil; 2001, p. 71.
37
203
A literatura e a virtualização do texto literário
Auster, Paul e Wang, Wayne.
Sem Fôlego. Produção: Peter
Newman/lnteral Production em
associação com NDFIEURO
SPACE "BLUE IN THE
FACE" com Harvey Keitel Madona - Michel J. Fox - Jim
Jarmusch - Lou Reed - Roseanne
- Mira Sorvino - Lily Tomlin .
Elenco: Heidi Levitt, figurino:
Claudia Brown, Di-retor de
Fotografia: Adam Holender .
A.S.C, editor: Christopher
Tellefsen. 1995, tempo
aproximado 89 minutos, EUA.
38
39 Jean-Claude Carriere em
entrevista a Catherine David in
David, Catherine et al.
Entrevistas sobre () fim dos
tempos. Tradução de José
Laurenio de Melo. Rio de
Janeiro: Rocco, 1999.
de é preciso diminuir a marcha e andar mais devagar. Assim como
o personagem criado por Paul Auster para o filme Sem Fôlego 38 ,
Auggie Wren. Wren, ao mostrar um álbum de fotografias para
Paul Benjamin, e logo após este reclamar que eram sempre as
mesmas fotos tiradas de um único ângulo e de um mesmo lugar,
responde para Benjamin "V á mais devagar ou você não entenderá
nada". Guardadas as devidas proporções, esta é a mesma postura
adotada por Jean-Claude Carriere em seu elogio da lentidão: "O
principal é talvez não ter um relógio digital, domar cada dia, tomar o seu tempo em vez de ser tomado por ele". 39
Baudrillard, tomado pela sensação de canibalismo do real
pelo virtual, alerta para a disneylandização dos espaços comerciais e industriais produtivos invadidos pelo virtual apontada por
Ulman:
No começo dos anos 80, quando a metalúrgica Lorena entrou
em crise definitiva, os poderes públicos tiveram a idéia de atenuar esse desabamento criando um parque europeu do lazer,
parque de temática "inteligente", destinado a dar fôlego à região: foi chamado de SchtroumpfIand. O diretor da siderurgia
defunta tornou-se diretor do parque de atrações, e os
metalúrgicos desempregados foram recontratados como
"Schtroumpfmen" no quadro desse novo SchtroumpfIand. Infelizmente, quando o parque teve, por razões diversas, de fechar as portas, os ex-metalúrgicos convertidos em
"Schtroumpfmen" acharam-se desempregados. Destino Sombrio que, depois de ter feito as vítimas reais do trabalho gerou
os fantasmas do lazer, e finalmente os desempregados de ambos.
Mas SchtroumpfIand era apenas uma miniatura. O empreendimento Disney tem outra dimensão. Para se ter uma idéia, é
preciso saber que Disney "Illimited", depois de ter anexado
uma das maiores redes de televisão americana, está prestes a
comprar a rua 42, em Nova York, a parte "quente" da rua 42,
para fazer uma zona de atração erótica, sem mexer em nada,
ou quase, ali: simplesmente transformar ao vivo, in situ, um
palco sagrado da pornografia em sucursal da Disneyworld.
Transformar os empresários da pornografia, as prostitutas,
como os metalúrgicos de SchtroumpfIand, em figurantes de seu
próprio mundo, uniformizados, museificados, disneificados.
Como foi que o general Schwarzkopf, estrategista da guerra
204
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
do Golfo, comemorou a sua "vitória"? Com uma gigantesca
party na Disneyworld. Digna conclusão, com essa alegria coletiva no templo do imaginário para uma guerra virtua1. 4o
'" Baudrillard, Jean. "Disneyworld
Company" in Tela Total. Tradução
Juremir Machado da Silva Porto
Alegre: Sulina, 1997,p.l22.
Desterritorialização e identidade
A questão da desterritorialização do trabalho e a perda da
identidade são os temas principais do filme A rede 41 , filme que
segue a tradição das produções de entretenimento no sistema dos
grandes estúdios hollywoodianos. Em A rede a personagem principal, Ângela Bennett - uma experta em encontrar defeitos (bugs)
em programas de computadores, que tem o seu escritório de trabalho em sua residência - após receber de um colega de trabalho
um arquivo contendo um programa de computador se vê no meio
de uma conspiração. A conspiração envolve a segurança de sistemas de informação do governo americano e uma grande
corporação que pretender monopolizar o mercado de programas
de segurança informatizada do país.
Como Bennett tem acesso ao plano da conspiração, por meio
de um disquete de computador, que supostamente conteria um
programa defeituoso enviado por seu amigo, a corporação busca
eliminá-la substituindo a sua identidade pela identidade de uma
criminosa perigosa, procurada pela polícia. Devido ao fato de
Ângela Bennett viver totalmente em função de seu trabalho sempre em casa conectada à Internet - , desterritorializada e
virtualizada, apenas mantendo vínculos mínimos com o mundo
real e sem existência exterior até mesmo para a vizinhança, não
consegue provar a ninguém, quando confrontada pela polícia, que
ela é quem diz ser. Isto ocorre devido ao fato de nem mesmo os
seus vizinhos mais próximos nunca a terem visto, ou de a terem
visto muito poucas vezes para que pudessem fixar uma identificação segura da personagem. A única pessoa que poderia provar
que ela quem diz ser é sua mãe. Porém, essa sofre do mal de
Alzheimer, ou seja, não tem memória (função cognitiva), melhor
dizendo é portadora de uma memória em ruína, num processo
crescente de "desconexão cortical"42. A mãe de Bennett não é
capaz de estabelecer a relação dialética entre recordação e esquecimento, principal característica da memória43 e, dessa forma,
garantir o reconhecimento e a confirmação da identidade da per-
Winkler, Irwin. A rede (The
Net). Sandra B ullock, Jeremy
Northam, Denis Miller Rot,
John Brancato e Michael Ferris.
Produzido por Irwin Winkler e
Rob Cowan. Cor. Aprox. 105
minutos. Aventura. Copyright
1995 Columbia Pictures
Industries Inc. Distribuição
Columbia Tristar Home Vídeo,
LK-TEL Vídeo. Sony Music
Enterteinement (Brasil) Ind. e
Com. Ltda (Distribuição
Exclusiva).
41
4'Leibing, Annette. "O homem
sozinho numa estação: a
doença de Alzheimer e as
práticas do esquecimento no
Brasil". In Leibing, Annettee
Benninghoff-LühI, Sibylle
(Orgs.). Devorando o tempo:
Brasil, o país sem memória.
São Paulo: Editora Mandarim,
2001.
Humberto Eco em entrevista
a Catherine David in David,
Catherine et a!. Entrevistas
sobre o fim dos tempos.
Tradução de José Laurenio de
Melo. Rio de Janeiro: Rocco,
1999.
43
205
A literatura e a virtualização do texto literário
sonagem. No filme, identidade está diretamente ligada à memória,
que estacionada em bancos de dados oficiais tornou-se um objeto
frágil e passível de todo o tipo de ataque digital, podendo, por
essa via, vir a ser alterada a qualquer momento conforme adverte
Ângela Bennett:
Pense. O mundo todo está dentro de um computador... Tudo. A
sua carteira de motorista, registro da Previdência ... Cartão de
crédito, histórico médico, está tudo lá ... Tudo está lá ... Tudo
está guardado numa sombra eletrônica que todos temos ... Implorando para ser alterada. Eles fizeram isso comigo e farão
com você também. 44
44
Winkler, Irwin. A rede (The
Net). Sandra Bullock, Jeremy
Northam, Denis Miller Rot,
John Brancato e Michael Ferris.
Produzido por Irwin Winkler e
Rob Cowan. Cor. Aprox. 105
minutos. Aventura. Copyright
1995 Columbia Pictures
Industries Inc. Distribuição
Columbia Tristar Home Vídeo,
LK-TEL Vídeo. Sony Music
Enterteinement (Brasil) Ind. e
Com. Ltda (Distribuição
Exclusiva).
45 Lévy, Pierre. O que é ()
virtual. Tradução Paulo Neves.
São Paulo: Ed. 34, 1996.
(Coleção Trans) p. 25.
Integrante da Escola de
Crítica Alemã juntamente com
Erich Auerbach, Leo Spitzer e
Frederic Gundolf. A crítica
alemã, inicialmente em 1915,
no interior da universidade,
depois em processo de
imigração sob o regime nazista,
produziu trabalhos fundamentais que, por seu método e
espírito de síntese - herdeiros
de vasta tradição - renovaram
o panorama dos estudos
literários.
46
Ao longo de toda a trama da narrativa de A Rede a personagem busca recuperar a sua identidade roubada e provar a sua inocência em crimes que não havia cometido. A questão da identidade é um dos temas que passou a dominar a cena das discussões
críticas no final do século XX, impulsionada pelo avanço das novas tecnologias de comunicação e conseqüente desenvolvimento
do ciberespaço, lugar onde as identidades se diluem e se transformam de maneira vertiginosa.
Pierre Lévy escreve:
As coisas só têm limites claros no real. A virtualização, passagem à problemática, deslocamento do ser para a questão, é algo
que necessariamente põe em causa a identidade clássica, pensamento apoiado em definições, determinações, exclusões, inclusões e terceiros excluídos. Por isso a virtualização é sempre
heterogênese, devir outro, processo de acolhimento da alteridade.
Convém evidentemente não confundir a heterogênese com seu
contrário próximo e ameaçador, sua inimiga, a alienação, que eu
caracterizaria como reificação, redução à coisa, ao "real". 45
No âmbito da crítica literária, entre tantas, há algumas questões que apontamos como exemplos de processos de virtualização
do entendimento da literatura: a primeira delas se refere ao crítico
Ernst-Robert Curtius 46 e a sua proposição de procedimento crítico de apagamento de todas as fronteiras temporais e espaciais,
que configuram o impedimento da proliferação de uma visão
universalista no estudo crítico-literário. Ainda que Curtius tenha
206
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
elaborado as bases do seu procedimento crítico tendo em mente a
preservação e guarda da literatura européia, numa clara manifestação do mais puro eurocentrismo, ignorando até mesmo a literatura norte-americana, no momento em que o mundo já havia se
fragmentado por causa do avanço totalitarista do nacional socialismo na Alemanha e da Segunda Guerra Mundial. 47 Ao propor a
eliminação das fronteiras temporais e espaciais, Curtius virtualizou
a questão da crítica e da teoria literária, em sua época, assim como
Albert Béguin48 que via com grande desconfiança as categorias literárias' os estilos, as zonas geográficas: "A fixação da vida do espírito em categorias estáveis não é benéfica à inteligência dessa vida".
A segunda questão diz respeito ao romance Iracema, de
José de Alencar. O romance de Alencar é considerado uma das
obras mais importantes da literatura brasileira, e responde pela
representação da construção da nacionalidade brasileira em sua
narrativa. Esta é uma questão que coloca o romance numa posição de acomodação na série literária brasileira, representada pelo
Romantismo e sua realização no Brasil. Analisado pelo viés da
virtualização é possível reinvestir o romance de uma
problematização que o recoloca na cena da crítica não como obra
canônica da literatura brasileira, mas como obra que carrega consigo questões que não foram tocadas, e por isso mesmo, não foram resolvidas ao longo da narrativa, devido ao fato de não se
configurarem como preocupação do autor, à época em que foi
escrito o romance, ou de a figura feminina e os problemas que
suscita não encontrar ecos substanciais, no círculo de leitores e
intelectuais do século XIX, relativos à sua condição perante a
crítica. Uma das questões em Iracema que validam uma leitura
pelo processo de análise da virtualização refere-se à identidade da
personagem situada no âmbito da expressão objetiva da natureza.
Como conseqüência desta opção na elaboração das caracterÍsticas da personagem se cria condições para a sua dominação pelo
colonizador branco e sua conseqüente perda de identidade. Desta
forma, teremos a sua destruição em favor da manutenção do status
quo do branco dominador que, para a personagem, no seu primeiro encontro, aparece como sedutor e depois como "marido".
O processo de esvaziamento, perda e destruição da identidade de Iracema, levam-na a romper com as leis de seu povo, da
própria natureza, e instaura uma desordem absoluta, restando à
Tadié, Jean-Yves. A crítica
literária no século XX.
Tradução Wilma Freitas Ronald
de Carvalho. Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil, 1992, p. 53
47
Albert Béguin (1901-1957)
integrante da escola de
Genebra juntamente com
Marcel Raymond, George
Poulet. Jean Rousset e Jean
Starobinski; fazia a chamada
crítica da consciência cujas
bases de trabalho critico seguiam
o itinerário do sentido e
buscavam dar, com esse mesmo
movimento, sentido à literatura,
ao mundo e a nós mesmos.
48
A literatura e a virtualização do texto literário
49Balandier, Georges. A
desordem: elogio do movi·
menta. Tradução de Susana
Martins. Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil, 1997.
50Lévy, Pierre. O que é o
virtual. Tradução Paulo Neves.
São Paulo: Ed. 34, 1996.
(Coleção Trans) p. 25
51 Silva, Anazildo Vasconcelos
da. Semiotização literária do
discurso. Rio de Janeiro: Elo,
1984.
52Maranhão,Haroldo. Memorial
do fim: a morte de machado de
Assis. São Paulo: Marco Zero,
1991.
53 Deleuze, GilIes e Guattari.
Mil platôs: capitalismo e
esquizofrenia. VaI. 1. Tradução
Aurélio Guerra Neto e Célia
Pinto Costa. São Paulo: Editora
34, la Reimpressão, 1996, p.
25.
personagem a fuga. A fuga é o movimento49 que encaminha a
personagem para a recomposição da ordem, ainda que ela mesma
não saiba disso. Quanto mais Iracema se afasta de seu povo mais
se aproxima do abismo no qual irá cair. Com a quebra dos laços
tribais e familiares, a personagem é lançada em um não-lugar, um
território vazio. Desterritorializada resta à personagem apenas o
sofrimento e a morte. Iracema passa a ter uma existência
virtualizada (problematizada e não-presencial), pois a sucessão
de seus atos a transforma em um problema para a sua tribo; pesa
sobre a personagem uma fatalidade: "O guerreiro que possuísse a
virgem de Tupã morreria", e, conseqüentemente, a sacerdotisa,
pela quebra de seus votos.
A virtualização se configura na passagem do ser para a questão que põe em demanda a identidade clássica, idéia baseada em
definições, determinações, exclusões, inclusões e terceiros excluídos. 50 A questão do não-lugar se adequa muito bem ao caso de
Iracema, pois diferentemente do limbo que a colocaria no reino
do possível-já que limbo significa esquecimento, e o que é esquecido está desrealizado e, a qualquer momento, pode ser lembrado - garantindo, desta forma, a sua possibilidade de sobrevivência. O não-lugar não oferece condições de sobrevivência ao
personagem, pois este se encontra em total desconformidade com
o seu mundo. A perda da identidade será cobrada pelo espaço e
todas as suas convenções sociais, no momento de imposição da
sua lógica narrativa; como conseqüência da imposição da lógica
do espaço, a única saída para o personagem está na sua morte. 51
O conceito de não-lugar está relacionado a outro conceito que é o
de não-presença. Com o exemplo de Iracema, inserimos a questão do não estar presente ou da virtualização como êxodo.
Outra obra na qual podemos exemplificar a ocorrência da
virtualização como forma problematizadora é Memorial do fim: a
morte de Machado de Assis, de Haroldo Maranhão52 • Memorial
do fim integra a categoria de escritura que pode ser classificada
como rizomorfa53 e hipertextual. O hipertexto que a obra traz
consigo é construído por fragmentos da ficção machadiana e por
elementos culturais e históricos do mundo no qual essa obra esteve e está imersa. Memorial do fim virtualiza pontos importantes
da literatura machadiana e da leitura da obra machadiana, do próprio fazer literário e das relações do autor com as figuras históri-
207
208
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
cas do seu tempo, atualizando-as. Tomando a atualização como
criação e invenção de uma forma, partindo de uma estruturação
dinâmica de forças e de finalidades, é possível afirmar que o romance na pós-modernidade produz e introduz qualidades novas
na narrativa, produz uma transformação das idéias, um verdadeiro devir que realimenta o virtual, enquanto força
problematizadora. 54 Questões da mesma ordem aparecem no romance A laranjeira, de Carlos Fuentes.
A Laranjeira é formada por cinco novelas, frutos de uma
mesma árvore, que simbolicamente significa a fecundidade para
vários povos e está intimamente ligada à história da conquista do
continente americano e à formação do imaginário dos espanhóis
conquistadores e dos povos conquistados.
A narrativa de A Laranjeira é bastante sedutora, apesar de
carregar consigo o tema da morte como fio condutor de suas cinco novelas. As duas margens é o título da primeira das cinco novelas que é narrada por Jerónimo de Aguilar, espanhol que participou da Conquista da América como língua (intérprete castelhano/
náhuatle) de Hernán Cortés. Jerónimo de Aguilar,
machadianamente, faz um balanço amargo da grande empresa
marítima espanhola e das traições dos conquistadores e dos conquistados. O narrador de As duas Margens, a mais importante das
cinco novelas, ao longo de sua narrativa toca em questões fundamentais da cultura.
Com a sua autoridade de morto ele passeia pela crônica histórica, por uma discussão sobre o uso da língua como instrumento
de dominação e traição, levantando questões acerca da validade da
narrativa e sobre a moralidade do conquistador e do conquistado.
História e ficção se misturam ao longo das cinco novelas,
sempre mediadas por um narrador morto, ou que logo estará morto,
como ocorre ao personagem Vince Valera, narrador de Apolo e as
putas. As putas são sete anãs que trabalham para uma cafetina
conhecida como Branca de Neve, que não sabem o que fazer com
seu cliente morto em pleno mar, durante uma orgia sexual, num
caíque que não sabem conduzir e sem comida. Em meio a essa
situação tragicômica, só o que lhes resta, para resolver o problema de comida, é usar o pênis de Vince Valera como isca para
pescar. Enquanto se deteriora, Valera pode perceber a verdadeira
,. Lima, Rogério. O dado e o
óbvio: a significação no
romance da pós-modernidade.
Brasília: Editora Universidade
de BrasílialUniversa, 1998.
209
A literatura e a virtualização do texto literário
" Numância, antiga cidade da
Espanha (a modema Sória).
alma dessas mulheres do México, mas não a si próprio. Ele não sabe
o que representa, e nem pode saber verdadeiramente quem é, pois
como morto está impedido de olhar-se no espelho.
Em Os filhos do Conquistador há um embate ácido entre os
dois filhos de Cortés: Martin I, filho do conquistador com espanhola Juana de Zúfíiga, e Martin 11, com a índia Malinche. Num
diálogo longo, provocativo e cheio de rancor aparecem as contradições da Conquista, as traições da Coroa a Cortés e o menosprezo pelos filhos de espanhóis nascidos na América. A morte aparece como espetáculo e o sentimento dominante é o de nostalgia de
um país que não chegou a nascer.
Em As duas Numâncias 55 o tema da narrativa e da verdade
da história aflora, a dualidade surge como problema, o duplo se
apresenta como uma questão que atormenta filosoficamente o
narrador. A narrativa é discutida como uma invenção que satisfaz
a curiosidade daquele que não consegue saber o que se passa além
dos muros da cidade sitiada. O espelhamento e o estilhaçamento
do eu e da narrativa são temas caros em As duas Numâncias.
A última novelaAs duas Américas fala de um paraíso descoberto por Colombo, que nele permaneceu e se estabeleceu,
lançando apenas uma garrafa ao mar com a sua descrição e localização, com a finalidade de dar conta da sua descoberta à Coroa
espanhola. Colombo permanece no seu paraíso durante anos,
até que finalmente chegam os japoneses e suas grandes
corporações e globalizam a América, transformando-a em um
não-lugar, num grande parque de diversões do turismo internacional, tendo Colombo como seu testa-de-ferro e gerente. O
destino da América na visão de Carlos Fuentes é extremamente
irônico e trágico, pois na busca de sua identidade não há espelho
que lhe sirva para lhe mostrar quem ela é verdadeiramente.
Fuentes se comporta como o personagem Políbio, narrador de
As duas Numâncias, que imagina o que se passa dentro da cidade cercada para, perversamente, dizê-lo ao general romano conquistado. Imaginar e narrar a América é fundamental. Esse gesto é perverso, mas é também caridoso, pois sem a ficção não
saberíamos o que aconteceu à América.
Lévy chama atenção para o fato de que:
Fazer de uma coerção pesadamente atual (a da hora e da geo-
210
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
grafia, no caso) uma variável contingente tem a ver claramente com remontar o inventivo de uma "solução" efetiva em direção a uma problemática, e, portanto, com a virtualização (... ).
Era, portanto, previsível encontrar a desterritorialização, a saída da "presença", do "agora" e do "isto" como uma das vias
régias da virtualização. 56
Assim como Albert Béguin via com grande desconfiança a
fixação de categorias literárias, estilos ou zonas geográficas como
ação não benéfica à inteligência dessa vida, e por este motivo propunha a eliminação destes entraves conceituais, o pós-moderno
impõe às categorias história e ficção o mesmo que o virtual opera
em relação a espaço e tempo, ou seja, transforma-as em um variável contingente que remonta uma "solução", que remete a uma
problematização da forma de narrar na pós-modernidade e dos
elementos que são motivadores da ficção pós-moderna, sendo,
por esse motivo, uma virtualização, rigorosamente nos padrões
que foram definidos anteriormente.
56 Lévy, Pierre. o que é o
virtual. Tradução Paulo Neves.
São Paulo: Ed. 34, 1996.
(Coleção Trans) p. 21
Vetores de virtualização
A literatura é o campo do virtual e da virtualização por excelência e são os seus representantes modernos, entre tantos, Jorge Luís Borges, com seu Pierre Menard autor do Quixote, Tlon
Uqbar Orbius Tertius, Franz Kafka, com a sua Metamoifose, James
Joyce, com o Ulisses. O virtual irrompe na cena literária por conta do não-lugar da literatura, do nomadismo que ela incorpora ao
migrar de um leitor para outro, de uma época para outra, de um
significado para outro. Por mais que pareça estranho fazermos tal
afirmativa a literatura, a nosso ver, não tem a existência física que
o objeto livro tenta lhe conferir. Enquanto livro, a literatura não
tem existência, pois o livro não passa de um objeto, "um amontoado mudo de palavras estéreis, o que há de mais insignificante no
mundo", conforme avalia Maurice Blanchot57 ,jazendo, às vezes,
empoeirado em alguma prateleira de alguma biblioteca.
A realização da literatura só é concretizada por intermédio
da leitura, que, por sua vez, se processa num não-lugar - lugar
virtual, problematizador. Referimo-nos aqui não a um espaço físico e material determinado onde é possível localizar o ato da leitu-
Blancho!, Maurice. O espaço
literário. Tradução de Álvaro
Cabral. Rio de Janeiro: Rocco,
1987, p. 13.
57
A literatura e a virtualização do texto literário
58 Banhes, Roland. "Escrever a
leitura" in O Rumor da língua.
Tradução Mario Laranjeira. São
Paulo: Brasiliense, 1988, p. 42.
'9 Mcluhan, Marshall. A
galáxia de Gutenberg: a
formação do homem tipográfico. Tradução de Leônidas
Gontijo e Anísio Teixeira. São
Paulo: Cia. Editora Nacional,
Editora da USP, 1972.
ra. Esse espaço pode conter o corpo do leitor, mas não garante
que o leitor, propriamente dito, esteja contido nele. Pois, de modo
algum, é possível afirmar que esse espaço contenha o leitor, a
literatura e sua virtualidade (a leitura enquanto ato
problematizador). A questão é: em que ponto da conexão leitorobra ocorre a realização da leitura e da literatura? Barthes - questionando a localização da letra - afirma que a leitura resulta de
formas transindividuais: as combinações produzidas pela letra do
texto nunca são - não importando a atitude que seja tomadaanárquicas; "elas são sempre tomadas (extraídas e inseridas) dentro de certos códigos, certas línguas, certas listas de estereótipOS".58 É possível afirmar que a realização de um autor se dá em
sua obra, mas permanece a questão onde se dará a realização da
obra? Na sua virtualidade e na virtualidade da sua leitura.
A reprodução técnica do livro proporcionada pela Galáxia
de Gutemberg59 permitiu a disseminação da obra de arte literária
e do objeto livro mundo a fora, mas não garantiu a realização da
leitura e, conseqüentemente, da literatura. Pois, como vimos anteriormente, a literatura só se realiza no ato da leitura, o que exige
contato físico com o objeto livro. Não ocorrendo esse contato
não há literatura, somente a persistência do objeto.
Barthes escreve:
Abrir o texto, propor o sistema de sua leitura, não é apenas
pedir e mostrar que podemos interpretá-lo livremente; é principalmente, e muito mais radicalmente, levar a conhecer que não
há verdade objetiva ou subjetiva da leitura, mas apenas verdade lúdica; e ainda mais, o jogo não deve ser entendido como
uma distração, mas como um trabalho - do qual, entretanto,
se houvesse evaporado qualquer padecimento: ler é trabalhar o
nosso corpo (sabe-se desde a psicanálise que o corpo excede
em muito nossa memória e nossa consciência) para o apelo dos
signos do texto, de todas as linguagens que o atravessam e que
formam como que a profundeza achamalótada das frases. 60
Barthes, Roland. "Escrever a
leitura" in O Rumor da língua.
Tradução Mario Laranjeira. São
Paulo: Brasiliense, 1988, p. 42.
00
Wachowski,Andye WacIDwski,
Larry . Matrix. Cor. EUA.
Elenco: Keanu Reeves, Laurence
Fishbume, Carrie-Anne Moss,
Hugo Weaving, Joe Pantoliano,
1999. 136 minutos.
61
211
o
livro é somente o meio, a porta de entrada para a
virtualidade da literatura. Funciona como as pílulas vermelha e
azul ofertada por Morpheus ao personagem Neo no filme MatriX'1 ,
que colocam para o personagem o problema da escolha. Uma vez
aberto o livro é possível ter acesso a uma "verdade ficcional" que,
212
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
no retorno da leitura, faz com que lidemos com a realidade de
maneira alterada, assim como a personagem Clair Torneur, em
Até o fim do mundo62 , após ser curada do vício das imagens. Aqui
introduzimos a seguinte questão: existe a possibilidade da fundação
de uma pertinência da leitura? Qual a função do desejo no
estabelecimento dos protocolos de leitura? É possível uma relação recalcada entre o leitor e o livro? Qual é o lugar do sujeito na
cena da leitura na era do virtual? O seu lugar são todos os lugares
escrevíveis: a deriva, as multiplicidades rizomáticas63 , o virtual.
Wenders, Wim. Até o fim do
mundo. Majestic Films.
Produção: Jonathan Taplin e
Anatole Dauman. Distribuidor:
Top Tap Horne Vídeo. Willian
Hurt - Solveig Dommartin Sam Neill - Max Von Sydow Rüdiger Vogler - Emie Dingo Jean Moreau - Fotografia:
Robby Müller. Música: Graerne
Revell. Edição: Peter Przygodda.
1990.
62
6' Deleuze, Gilles e Guattari.
Mil platôs: capitalismo e
esquizofrenia. Vol. I. Tradução
Aurélio Guerra Neto e Célia
Pinto Costa. São Paulo: Editora
34, la Reimpressão, 1996, p.
16.
213
A ficção brasileira contemporânea e as redes
hipertextuais
Ana Cláudia Viegas
(UERJ / PU C-Rio)
As intersecções entre literatura e informática suscitam diversas questões teóricas, não necessariamente inéditas, mas
redimensionadas pela reconfiguração do circuito de produção,
circulação e consumo da escrita pela internet: intercruzamento
das figuras do leitor e do autor, através do modo de leitura
hipertextual e das práticas de criação coletiva de textos; discussão
das noções de autor e obra, a partir da disseminação da colagem,
montagem, apropriação e recriação como processos de criação
artística, dando-se mais um passo no deslocamento da aura da
obra de arte; delicadas questões sobre a autoria e seus direitos
jurídicos de propriedade sobre o texto, cuja legislação necessita
revisões e atualizações, de acordo com esse novo modo de circulação do texto literário; redefinição dos critérios de atribuição de
valor ao texto literário, dada a sua circulação em meio a uma
multiplicidade de tipos de textos, imagens e sons.
Pensar as mudanças sociais trazidas pelos novos meios implica não pensá-los como fontes de inovações em si, mas, sim, a
interação entre essas novas práticas de comunicação e as transformações sociais. Ou seja: deslocar a análise dos meios até as mediações sociais (Martín-Barbero 2001). Walter Benjamin (s/d). em
seu clássico texto sobre a "reprodutibilidade técnica", aponta para
a historicidade tanto dos valores estéticos como da percepção
humana, indicando que novos meios significam transformações
nos corpos, consciência e ações humanas, e não somente novas
formas de expressão.
Na virada do século XX para o XXI, a articulação dos cir-
214
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
cuitos de produção, transmissão e recepção da literatura com outras esferas da mídia e a apropriação de recursos expressivos destas pelos textos literários lançam novos desafios para essa prática
tradicionalmente fundamentada na cultura do livro, mas hoje
hibridizada com gêneros não-literários e meios de comunicação
audiovisuais. Afinal, a difusão desses meios, sobretudo a televisão
a partir dos anos 1950, e, já no final da década de 1970, os computadores, marcaria um novo limite nas transformações das representações e dos saberes. Para autores como Pierre Lévy, viveríamos um destes raros momentos em que, a partir de uma nova
configuração técnica, "um novo estilo de humanidade é inventado" (Lévy 1993: 17).
Uma concepção dinâmica de leitura embaralha as funções
de leitor e autor, na medida em que aquele, na posição de navegador, edita o texto que lê, participando da estruturação do hipertexto,
criando novas ligações. O questionamento da noção de identidade autoral vista como uma subjetividade integrada, responsável
pela doação de sentido ao texto, também encontra eco na leituraescrita hipertextual, na qual a condição do texto singular, propriedade de um autor único, cede lugar ao texto em constante transformação pela participação das múltiplas vozes autorais.
A conexão em rede permite ao internauta navegar através
de sites e links diversos, fazendo da leitura da tela um deslizamento
entre superfícies, acompanhado da montagem fragmentária de
novos textos, num processo semelhante ao ato de "zapear" entre
imagens de diferentes canais de tevê. Trata-se de duas experiências cognitivas e comunicativas a que se pode atribuir a dimensão
corpórea, sensorial identificada como típica da modernidade por
autores como Georg Simmel e Walter Benjamin, ao tratarem, respectivamente, da caracterização do homem da metrópole e da
"experiência do choque".
A base psicológica do tipo metropolitano de individualidade consiste, segundo Simmel, na intensificação dos estímulos nervosos, resultante da alteração brusca e ininterrupta entre estímulos exteriores e interiores. Esses estímulos contrastantes, rápidos,
concentrados e em constante mudança levam à atitude blasé, cuja
essência consiste no embotamento do poder de discriminar. "O
significado e valores diferenciais das coisas, e daí as próprias coisas, são experimentados como destituídos de substância. Elas apa-
A ficção brasileira contemporânea e as redes hipertextuais
recem à pessoa blasé num tom uniformemente plano e fosco; objeto algum merece preferência sobre outro." (Simmel 1979: 16).
As diferenças qualitativas se traduzem pela quantidade, dentro da
"filosofia do dinheiro" (Simmel 1978), o maior dos niveladores,
pois expressa todas as diferenças qualitativas das coisas em termos de "quanto?".
Ao analisar o tema da multidão em Baudelaire, Benjamin
define como "se conquista a sensação da modernidade: a dissolução da aura através da 'experiência' do choque" (Benjamin 1975:
70). A morte da aura na obra de arte nos fala, mais do que da arte,
dessa nova percepção, dessa nova sensibilidade das massas, a da
aproximação, mesmo das coisas mais longínquas e sagradas, com
a ajuda das técnicas. Quando Benjamin elege o cinema como o
cenário privilegiado da atenção distraída e fragmentada, sintoma
de transformações profundas nas estruturas perceptivas, não se
trata de um otimismo tecnológico ou da crença no progresso, mas
de um modo de pensar as transformações da experiência que o
tornam um pioneiro, ao "vislumbrar a mediação fundamental que
permite pensar historicamente a relação da transformação nas
condições de produção com as mudanças no espaço da cultura,
isto é, as transformações do sensorium dos modos de percepção,
da experiência social" (Martín-Barbero 2001: 84).
A indiferenciação e a mudança na percepção, caracterizada
pela "atenção distraída" solicitada por meios de massa como o
cinema e a televisão, nos parecem ferramentas úteis para se pensar o modo de leitura hipertextual. A leitura em computador pode
ser definida como uma edição, uma montagem singular, através
da qual uma reserva de informação possível se realiza para um
leitor particular. Pierre Lévy distingue os pares real/possível e atual!
virtual, de modo que o virtual não se opõe ao real, mas ao atual. O
possível se define por ser como o real, apenas sem existência,
latente. Estando já todo constituído, ao se realizar, não implica
criação. A atualização do virtual, ao contrário, constitui a invenção de uma solução exigida por um complexo problemático. Não
se trata de ocorrência de um estado predefinido ou escolha entre
um conjunto predeterminado, mas de produção de qualidades
novas, invenção de uma forma a partir de uma configuração dinâmica de forças e finalidades. Seguindo estas concepções filosóficas, as imagens digitais não são virtuais, mas imagens possíveis
215
216
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
sendo exibidas. A dialética virtual/atual só se dá com a interação
entre os sistemas informáticos e as subjetividades humanas, "quando num mesmo movimento surgem a indeterminação do sentido e
a propensão do texto a significar, tensão que uma atualização, ou
seja, uma interpretação, resolverá na leitura" (Lévy 1996: 40).
O ato de leitura se define, assim, como uma atualização das
significações de um texto, sendo o hipertexto uma virtualização
dos processos de leitura. A organização do texto escrito em parágrafos, capítulos, sumários, índices, notas, remissões contribui para
sua articulação além da leitura linear, fazendo do ato de ler um
processo de seleção, esquematização, construção de uma rede
intertextual. A estruturação do hipertexto em uma rede formada
por nós e pelas ligações entre esses nós não o restringe ao suporte
digital. Conceitos como os de intertextualidade e dialogismo já
pressupõem o texto como tecido de múltiplas textualidades, assim como a leitura de uma enciclopédia já é do tipo hipertextual.
O que se apresentaria como novo na digitalização seria a rapidez
da passagem de um nó a outro e a associação, no mesmo media,
de textos, sons e imagens em movimento.
Pierre Lévy, em suas reflexões sobre o que é o virtual, afirma que "o texto continua subsistindo, mas a página furtou-se"
(Lévy 1996: 48), apagando-se esta sob a inundação informacional,
indo seus signos, não mais cercados pelas margens, juntar-se à
torrente digital. O texto, desterritorializado, em fluxo e metamorfose constantes, apresenta-se nas telas como a atualização de um
hipertexto de suporte informático.
Os textos literários brasileiros produzidos nos anos 90 do
século XIX e nas primeiras décadas do século XXjá foram estudados a partir de sua interação com as invenções modernas: o
bonde elétrico, o aeroplano, o automóvel, a fotografia, o telefone,
o fonógrafo, o gramofone, o cinema e, em especial, a máquina de
escrever. Escapando das frágeis e oscilantes classificações em pré,
pós ou neo alguma coisa, Flora Süssekind aborda, na ficção brasileira desse período, "um traço que lhe será bastante característico: o diálogo entre forma literária e imagens técnicas, registros
sonoros, movimentos mecânicos, novos processos de impressão"
(Süssekind 1987: 18). Partindo da representação desses artefatos
industriais na literatura da época, a autora analisa como o contato
com essas inovações deixa de ser apenas objeto de descrição ou
A ficção brasileira contemporânea e as redes hipertextuais
217
discussão, para enformar a técnica de certos autores.
Interessa-nos agora pensar como essa interação literaturatecnologia vem se dando nas últimas décadas, na passagem do
século XX para o XXI. Se a máquina de escrever foi a imagem
privilegiada pela autora de Cinematógrafo de Letras para pensar
esse diálogo na virada do século XIX para o XX, quais as marcas
deixadas pelo computador na escrita das últimas gerações? As
chamadas "novas tecnologias", digitais e virtuais, compõem o
cenário contemporâneo, participando tanto do cotidiano quanto
do imaginário atual. Se esses novos meios caracterizam novos
modos de pensar, sentir e perceber, como sua presença se faria
notar nos textos contemporâneos?
Esse diálogo, assim como no caso dos autores que antecederam a Semana de Arte Moderna em 1922, se dá de diversas
formas, estando as tecnologias virtuais presentes tanto como objeto de representação quanto como influência sobre as estratégias
retóricas utilizadas na escrita atual. No primeiro caso, temos a
paisagem urbana repleta de telas, imagens, celulares, computadores e toda uma parafernália tecnológica utilizada por personagens
e narradores das ficções contemporâneas. Quanto a marcas deixadas no fazer literário, podemos citar a fragmentação, a forte
visualidade, a utilização de múltiplos recursos gráfico-visuais, os
microrrelatos. Sem falar, é claro, em toda a produção de textos
não impressos, veiculados pela internet, que adquirem, pelo novo
meio de circulação, características específicas, constituindo, talvez, uma retórica própria.
Ao pensarmos a literatura brasileira contemporânea em diálogo com as novas tecnologias, queremos observar, de um lado,
de que modo o uso destas se traduz em inovações estéticas nas
narrativas atuais, ou seja, como se dá o trânsito entre página e
tela, de que modo a primeira, tendo-se "furtado", se recompõe
para expressar esse texto virtualizado; e, de outro, como o novo
suporte enforma os textos produzidos para nele circularem.
Ao longo da história da literatura, tem havido propostas
inovadoras de narrativas não lineares, assim como a imprensa vem
criando diversos mecanismos opostos ao poder da linha. Tais desafios, contudo, ganham nova dimensão ao disporem de uma nova
tecnologia textual que não tem por base a linearidade. Também
nós, leitores, ao lermos um livro de forma não seqüencial, pulan-
218
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
do capítulos, buscando a informação desejada através de índices
remissivos, compondo novos volumes com textos fotocopiados
de obras diversas, desafiamos a linearidade do texto impresso,
lendo-o como um hipertexto. Colocamos em prática, na produção ou recepção de textos, uma das três linhas evolutivas
identificadas por Benjamin nas intersecções entre arte e técnica:
"em certos estágios do seu desenvolvimento as formas artísticas
tradicionais tentam laboriosamente produzir efeitos que mais tarde serão obtidos sem qualquer esforço pelas novas formas de arte"
(Benjamin s/d: 185).
Narrativas literárias contemporâneas fazem uso de procedimentos e técnicas que parecem provir de gêneros não-literários e
meios de comunicação audiovisuais e digitais. São exemplo das
estratégias retóricas utilizadas por essa geração de escritores que
troca a máquina de escrever pelo computador as obras eles eram
muitos cavalos (2001), Mamma, son tantofelice (2005) e O mundo inimigo (2005), de Luiz Ruffato. Como num zapping urbano,
a narrativa de eles eram muitos cavalos descreve o cotidiano de
São Paulo em setenta fragmentos, numerados e intitulados, sem
nenhuma espécie de continuidade, nenhum enredo como fio condutor, apenas a "montagem efervescente"l de doses que se
entrecortam e justapõem. Trata-se de um mosaico de diversos tipos de textos - um cabeçalho, previsões meteorológicas, anúncios
classificados, orações, cartas, cardápios, conselhos astrológicos,
simpatias, lista de livros, recados de secretária eletrônica, duas
páginas com um retângulo preto - dispostos com diferentes
diagramações, formatos de letras, sinais tipográficos. Traduz-se,
de certa forma, na página impressa, a diversidade textual das páginas da web, por onde a literatura, mais um desses tipos de texto,
também circula.
A leitura pode começar em qualquer ponto e seguir qualquer direção, a multiplicidade desafiando a linearidade, que tropeça e se desdobra indefinidamente. Assim como nos novos espaços virtuais, "em vez de seguirmos linhas de errância e de migração dentro de uma extensão dada, saltamos de uma rede a outra,
de um sistema de proximidade ao seguinte" (Lévy 1996: 96). As
várias pistas intertextuais também nos levam a uma leitura
labiríntica, multilinear. Os textos de Oswald de Andrade, Memórias sentimentais de João Miramar, e Cecília Meireles, Romanceiro
'Néstor García Canclini define
a cidade contemporânea "como
um videoclipe: montagem
efervescente de imagens
descontínuas" (Canclini 1995).
A ficção brasileira contemporânea e as redes hipertextuais
'Sergei Eisenstein (1990) a
define como o "fato de que dois
pedaços de filme de qualquer
tipo, colocados juntos, inevitavelmente criam um novo
conceito, uma nova qualidade,
que surge da justaposiçâo". O
cineasta russo reitera, ainda, a
importância do "princípio
unificador", isto é, do princípio
que deve "determinar tanto o
conteúdo do plano quanto o
conteúdo revelado por uma
determinada justaposição
desses planos". Nos atos de
"zapear" e navegar na internet,
no entanto, a montagem ganha
um novo perfil: revogando o
princípio unificador, que
predetermina a escolha e
combinação das cenas montadas, e a hierarquia de planos
(cf. Eisenstein 1990), justapõem-se, ao acaso, imagens
de diferentes origens. O excesso
de imagens de baixa densidade
semântica e sua repetição em
série permitem cortes e colagens
em qualquer ponto, pois todos
se equivalem. Este novo tipo de
montagem aproxima-se, portanto, da conceituação de
Simmel para a atitude b!asé:
dificuldade de discriminar
devido ao excesso de informação.
219
da Inconfidência, estão virtualmente presentes no hipertexto de
Ruffato, podendo ser atualizados pelo leitor.
O título, reiterado pela epígrafe ("Eles eram muitos cavalos, / mas ninguém mais sabe os seus nomes, / sua pelagem, sua
origem... " - Cecília Meireles) e pela dedicatória ("Para Cecília"),
nos remete à obra de Cecília Meireles, Romanceiro da Inconfidência, abrindo também um link no texto de Cecília, que pode
nos levar a Ruffato. Assim como os personagens do caos urbano
não têm nome, nem se sabe de onde vieram ou para onde vão - só
captamos, no ritmo vertiginoso da narrativa, pedaços de cenas -,
também as palavras, "testemunhas sem depoimento, / diante de
equívocos enormes" (Meireles 1983: 228), galopam em torvelinho, sem origem, reapropriadas, ressemantizadas.
Impossível não ver no texto de Ruffato ecos oswaldianos.
Os fragmentos também numerados e intitulados de Memórias sentimentais de João Miramar, nos quais se misturam vários gêneros
textuais e se ressalta a materialidade gráfica, estão virtualmente
presentes em seu hipertexto, podendo ser atualizados pelo leitor.
Parece, no entanto, que os cortes cinematográficos e a escrita
telegráfica de Oswald de Andrade se aceleraram ainda mais, desfazendo-se até mesmo a tênue trajetória da personagem que perpassa aquelas memórias descontínuas. O ritmo do texto de Ruffato
acompanha a aceleração da vida urbana desde o início da industrialização de São Paulo, objeto da obra modernista de 1924. A
montagem cinematográfica2 cede lugar ao zapping, imagens que
surgem e desaparecem como se pelo comando de um controle
remoto. Neste caso, entretanto, diferentemente da linguagem
televisiva, nem as imagens têm baixo teor semântico, nem os cortes são aleatórios. A página, ao assimilar um traço característico
da estética televisiva, o suplementa: alternando o deboche, a ternura, a violência, a ingenuidade, a esperança, a decepção, expõe
feridas, tensões, causando impacto no leitor. Se o ritmo alucinante
da cidade contemporânea, expresso num texto em permanente
movimento, leva a urna "atenção distraída", esta, ao focalizar-se
instantaneamente, o faz de maneira muito mais intensa.
Pierre Lévy identifica, na passagem de técnicas anteriores
de leitura em rede (índices, sumários, notas remissivas) à
digitalização, urna "pequena revolução copernicana", na qual não
é mais o leitor que se desloca, mas sim o texto. Embora, no caso
220
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
do livro de Ruffato, o leitor ainda se movimente fisicamente no
hipertexto, virando páginas, buscando os livros de Cecília Meireles,
Oswald de Andrade ou outros na estante, também o texto gira,
dobra-se e desdobra-se, caleidoscópico, diante do leitor. Nele, a
interpretação não remete mais exclusivamente a uma intenção
autoral. "O sentido emerge de efeitos de pertinência locais, surge
na intersecção de um plano semiótico desterritorializado e de uma
trajetória de eficácia ou prazer." (Lévy 1996: 49).
Os dois outros livros de Ruffato, Mamma, son tanto felice e
O mundo inimigo, fazem parte do projeto de uma série de cinco
volumes com o título de Inferno provisório. Através de textos
fragmentados, passíveis de serem lidos separadamente, mas, ao
mesmo tempo, complementares, ambos narram a desestruturação
da vida rural frente à modernização. Seus personagens, pequenos
agricultores, imigrantes italianos pobres, sofrem as conseqüências sociais e emocionais do processo de industrialização ocorrido
no Brasil a partir dos anos 1950. As histórias de um e de outro
volume retomam e entrelaçam personagens e situações, fazendo
da leitura e da construção de sentido um efeito da interseção de
planos. Passado e presente se misturam em fragmentos de memória, encaixando peças de um "quase-romance desestruturado"
(Nina 2005). Mudanças tipográficas chamam a atenção do leitor
para os diferentes tempos e vozes presentes nos textos.
Nota-se no segundo volume, no qual alguns personagens
começam a migrar para as cidades grandes, uma aceleração do
ritmo da linguagem, que, assim como em eles eram muitos cavalos, acompanha o aumento da velocidade e da intensidade de estímulos, característico da formação das metrópoles. Podemos imaginar nos próximos livros da série a continuidade desse processo,
como se o cotidiano de São Paulo, descrito nos fragmentos do
livro publicado em 2001, fosse o destino desses personagens.
Uma nota ao fim de cada volume adverte que alguma passagem pode ser reconhecida, já que aí se encontram histórias narradas em outros livros do autor, "reembaralhadas". Assume-se a
criação pela repetição, anunciada pelo enfraquecimento das noções de autêntico e original na era da reprodutibilidade técnica.
Observamos, assim, nas obras de Luiz Ruffato, uma das
vertentes das relações entre a cibercultura e a ficção brasileira
publicada a partir da década de 1990. Utilizando-se de estratégias
221
A ficção brasileira contemporãnea e as redes hipertextuais
retóricas dos meios digitais, sua página se faz tela. Discutiremos,
a seguir, de que modo algumas tendências dessa ficção podem
estar relacionadas ao uso por escritores deste novíssimo século da
internet como importante estratégia de inserção no circuito artÍstico-literário.
***
Se, na virada do século XIX para o XX, o jornal é reconhecido como o caminho mais curto para chegar-se ao editor, atualmente, a internet tem sido usada como uma espécie de vitrine do
texto para o público em geral e/ou os editores. Estes, quando desejam apostar em novos autores ou organizar antologias que buscam mapear um perfil da ficção contemporânea, têm essa ferramenta como fonte. É o caso de Paulo Roberto Pires, diretor da
Editora Planeta, e das obras Paralelos: 17 contos da nova literatura brasileira, Prosas cariocas: uma nova cartografia do Rio de
Janeiro e das antologias de textos escritos por mulheres organizadas por Luiz Ruffato. Di versos jovens autores também utilizam os
blogs como oficina criativa para seus primeiros romances. Podemos citar, a título de exemplo, os livros de Clarah Averbuck
«www.brazileirapreta.blogspot.cOITI» Máquina de pinball, Das coisas esquecidas atrás da estante e Vida de gato; e Corpo presente,de
João Paulo Cuenca.«www.carmencarmen.blogger.com.br». Se os
livros de Averbuck são montados a partir de fragmentos selecionados em seu site, Cuenca, no entanto, resolveu manter on line
uma espécie de making of de seu livro, depois de receber a proposta da editora Planeta para publicá-lo, afirmando em seu blog
que seu livro não é um exemplo de blog que vira livro, mas exatamente o inverso: seu blog é que é sobre o livro e seus processos.
Em Das coisas esquecidas atrás da estante, Clarah Averbuck
discute o papel e o valor da literatura hoje e sua relação com os
blogs. A autora, entretanto, discorda da idéia de que os blogs constituam um gênero específico:
10/9/2003
Coletânea de um bloooog? Sim, amiguinhos, coletânea de um
blog . Existem livros de contos. De poesia. De crônicas. Por
que não uma coletânea de textos publicados em um blog? Afinal, como eu estou cansada de dizer mas continuo repetindo
222
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
porque nunca param de perguntar, blog é apenas um meio de
publicação para o que quer que o autor, dono e soberano do
blog, queira escrever. «www.brazileirapreta.blogspot.com»
o uso desse novo meio, no entanto, deixa marcas no texto:
Vocês notaram que eu desencanei completamente de usar parágrafos neste post? Parei. Parei de usar parágrafos na minha
cabeça também. Notaram também que estou perdendo meu sotaque e falando coisas completamente paulistas como
desencanar? Também tenho falado me amarro e demorô, por
causa dos cariocash. Eu sou a primeira pessoa que pega sotaQue pelo ICQ. (Averbuck 2003: 46)
A interação com o público leitor e a influência deste sobre o
texto escrito, características dos blogs, são tensionadas pela autora, que afirma, em alguns momentos, sua voz como única e a posição do leitor como a de quem, ao escolher ler aquele texto, deve
aceitar o pacto que lhe é proposto.
2/9/2003
A internet não é como uma televisão aberta, onde você zapeia e
passa por canais indesejados e vê coisas que não queria. Para
entrar aqui, no meu blog, é preciso digitar o endereço no
browser, ou entrar em algum link, ou seguir seu próprio
bookmark. Ou seja, tem que Querer entrar aqui. É uma escolha.
E é por isso que eu não entendo esses leitores Mark Chapman
que vêm aqui só pra torrar minha pequena e delicada paciência
e encher minha caixa postal com suas opiniões não solicitadas.
«www.brazileirapreta.blogspot.com>)
No livro Das coisas esquecidas atrás da estante, a primeira
orientação ao leitor é a epígrafe de Charles Bukowski, uma das
referências constantes da escritora. "se você for tentar, vá até o 1
fim. 1senão, nem comece." Aceite o pacto, leitor. As citações (Paulo
Leminski, Lou Reed, Vicente Celestino, Tangos & Tragédias etc.)
compõem a rede hipertextual, afirmando, também no texto impresso, a multiplicidade do sujeito que escreve:
"Eu estou de férias. Agora só vou falar pelas palavras dos
outros até recuperar as minhas próprias, que aspirei nariz aden-
A ficção brasileira contemporânea e as redes hipertextuais
223
tro em uma nota de um dólar. Vou me internar dentro de mim
mesma até saber quem é quem. Esse negócio de ser duas ainda
vai me matar." (Averbuck 2003: 108).
Se considerarmos, de acordo com McLuhan, que "o meio é a
mensagem", podemos afirmar que esse novo modo de circulação
do literário faz surgir um novo tipo de escrita? A constituição do
termo "blog" já traz em si idéias contraditórias: web (página na
internet) + log (diário de bordo) = "diário íntimo na internet".
Como um diário "íntimo" pode ser exposto na rede para quem quiser acessar e, além de ler, comentar, rasurar, participando do processo de criação? Se os diários sempre trouxeram em si um
interlocutor, ~á que toda escrita se dirige a alguém, agora esse outro, ainda que virtual e desconhecido, se explicita e atualiza o processo ativo de toda leitura. Os papéis do autor e do leitor são, assim,
compartilhados, fragmentando a figura do sujeito que se escreve.
O "pacto autobiográfico" realizado entre quem escreve e
quem lê "escritas íntimas" se fundamenta, segundo o clássico estudo de Philippe Lejeune (1975), num contrato de identidade selado pelo nome próprio, que resume a existência do autor, pois
aquele seria a única marca no texto de um fora-do-texto, remetendo a uma pessoa real que assume a responsabilidade da enunciação
do texto escrito. No caso dos blogs, essa identidade se fraciona
tanto pela parceria com os leitores como pela pluralidade de nomes assumidos pelo blogueiro. Embora fale de seu cotidiano, suas
opiniões, não há no texto, necessariamente, essa marca que "remete à pessoa real", podendo, inclusive, uma mesma pessoa ter
vários blogs, identificados por diferentes apelidos.
Ao caracterizar o narrador pós-moderno, em contraponto
aos narradores tradicional e moderno, tal como definidos por Walter
Benjamin, Silviano Santiago questiona: "Só é autêntico o que eu
narro a partir do que experimento, ou pode ser autêntico o que eu
narro e conheço por ter observado?" (2002: 44). Mais adiante,
conclui: "O narrador pós-moderno sabe que o "real" e o "autêntico" são construções de linguagem." (idem: 46-7). Nesse contexto, a noção de um segredo pessoal a ser revelado no papel ou nas
telas se relativiza: "a intimidade era teatro", como disse a poeta
dos anos 70, Ana Cristina Cesar (1987: 50).
O segredo é uma das questões fundamentais para os diários
224
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
íntimos, redimensionada quando esses diários se voltam para o
público numa página da web. Ainda que expostos na internet, os
blogs não excluem o segredo. Há diversos níveis de segredos:
aqueles que se contam aos amigos mais próximos, à família, apenas a alguém muito íntimo ou que não se revelam a ninguém, nem
a si mesmo. Essas diferenças se mantêm nos diários virtuais.
Ao contrário do que se pensa, a exposição na internet não anula a possibilidade de se criar um segredo, mas estabelece novas
formas de compartilhá-lo. (... ) O diarista virtual determina quem
pode se aproximar de seus segredos mais íntimos e quem não
deve suspeitar deles através de senhas, do texto cifrado e do
acesso restrito ao blog. É ele que estabelece o c.uanto o leitor
comum deve saber de sua vida particular e o que deve ser mantido em sigilo. (Schittine 2004: 19-21).
o "contrato de cumplicidade" com o leitor se modifica, podendo a confiança ser reforçada pela distância e o desconhecimento quanto aos leitores ou ser questionada, já que essa mesma
distância facilita o uso de máscaras, fantasias, mentiras. Formamse "redes de segredos": pequenos grupos que dividem segredos
entre si, com alguns nós em comum.
A sinceridade da enunciação "torna-se um falso problema",
como já anunciara Barthes em relação ao "autor de papel": "a sua
vida já não é a origem das suas fábulas, mas uma fábula concorrente com a sua obra" (Barthes 1988: 76). Ou, como diz em sua
autobiografia:
Este livro não é um livro de "confissões"; não porque ele seja
insincero, mas porque temos hoje um saber diferente do de ontem, esse saber pode ser assim resumido: o que escrevo de mim
nunca é a última palavra: quanto mais sou "sincero", mais sou
interpretável, sob o olhar de instâncias diferentes das dos antigos autores, que acreditavam dever submeter-se a uma única
lei: a autenticidade. (Barthes 1977: 130).
Se o que escrevo sobre mim pode mudar de um dia para o
outro, os blogs podem registrar essas mudanças a qualquer
momento, sendo o intervalo de tempo da escrita menor que um
dia. Os diários nas telas permitem que, a cada releitura, o texto
seja alterado ou as "falhas da memória" preenchidas, sem dei-
A ficção brasileira contemporânea e as redes hipertextuais
xar marcas dessas rasuras. Ao contrário dos diários de papel,
que guardam a caligrafia individual e diferentes materialidades
da memória - pétalas, papéis de bombom, recortes etc. -, a
tipografia dos computadores uniformiza. Esses fatores, somados à possibilidade de falha dos dispositivos de memória das
novas tecnologias, levam a um registro imperfeito da memória
pessoal, apesar da sua imensa capacidade de armazenamento
de uma memória artificial. (Schittine 2004: 117-8).
Na "escrita de si" via internet, o trânsito entre documento e
ficção, vida real e virtual, constrói uma intimidade meio encenada, meio realista. Parece-nos que, nessa vertente atual da literatura, vida e obra tornam-se difíceis de distinguir. A figura do autor
aparece dentro do texto ficcional, mas de maneira mentirosa, num
confessional fingido.
Tanto nos blogs como nos livros, podemos constatar uma
tendência para o uso da primeira pessoa em textos que não são
autobiográficos, mas que apresentam pistas da identidade autoral.
No último romance de Marcelo Mirisola, Joana a contragosto, o
personagem-narrador, um escritor, conta seus encontros e
desencontros com Joana, uma leitora com quem mantém inicialmente contato via internet até se conhecerem pessoalmente num
hotel e manterem um breve relacionamento amoroso-sexual. V ários traços biográficos de Mirisola presentes na narrativa - as iniciais M. M., a publicação de crônicas via internet, os livros Azul
do filho morto e Herói devolvido, a transformação de escritores
seus amigos em personagens e até o número da conta no Itaú tornam indecidíveis as fronteiras entre autor e narrador, vida e
ficção. Ao mesmo tempo em que o texto sugere uma
autoexposição, deixa o leitor sempre desconfiado se os fatos narrados têm uma referência real ou são completamente ficcionais:
"Não se tratava apenas de ficção" (Mirisola 2005: 10), "Fui eu
quem a inventei" (idem: 14), "Ninguém vai saber que é você,
Natércia." (idem: 48).
A criação de diferentes identidades, característica das páginas virtuais, extrapola seu suporte técnico, apontando um traço
da subjetividade contemporânea: plural, ambígua, ficcionalizada.
Sabemos que em qualquer relato autobiográfico o compromisso
com a verdade é sempre relativizado pelas falhas da memória e a
225
226
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
contaminação desta pela imaginação. Parece-nos, no entanto, que,
num tempo em que a realidade se define como um cruzamento de
imagens e não como dados objetivos representados por elas, esses textos contemporâneos investem na invenção biográfica, formulando "autoficções".
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229
o hipotexto de NolI
Luiz Gonzaga Marchezan
(UNESP-Araraquara)
Uma reflexão no âmbito das práticas que vivenciamos desde o final do século passado leva-nos a pensar em novas configurações literárias do século XXI, uma vez que, de maneira ímpar
no tempo, tais práticas apresentam-nos resoluções para o texto
verbal que superam medidas e limites lineares, possibilitando-nos,
por isso, imaginar, até, outras concepções para o literário. Ricardo
Piglia (1990, p.3), ainda no século XX e mais voltado para a função representativa do texto literário, a mimética, notou, de forma
paradoxal:
[... ] os espaços ficcionais invadem a vida cotidiana e a sociedade moderna. Essa distinção muito definitiva da estética tradicional, "qual é o campo da ficção, qual é o campo do real?", se
dissolveu. Vai daí que, para mim, esse é o tema que está inscrito na relação entre a literatura e a realidade.
Observou ainda:
Essa relação [literatura/realidade/verdade] seria para mim o
ponto a partir do qual surgem as histórias, as tramas, as questões que devem ser narradas.
As considerações de Piglia são instigantes e recuperam também para a demanda da narrativa a idéia de destino: fatos sucessivos ocorrem na vida dos homens e constituem a sua vida, independentemente da sua vontade. Dessa maneira, observaremos,
em tais narrativas, modos de vida em formas literárias que nos
apontarão uma cifra a desdobrar-se tanto na direção dos enigmas
230
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
do comportamento da vida contemporânea representada, como
em desafios de leitura dessa literatura contemporânea.
Percebemos, no momento, pela mídia ou internet, uma oferta
diversificada de textos, que notamos, divisamos e pouco sabemos
diante do tanto que vemos. Vivemos num mundo no qual nosso
olhar encontra-se refém do espetáculo midiático. A leitura é uma
atividade da vida civilizada, da vida social, coletiva, processada
diariamente no âmbito dos conhecimentos individuais e coletivamente preparados. Diante disso, e da pletora de textos que nos
envolve no dia-a-dia, a pergunta que nos fazemos é pela situação,
condição, categoria ou natureza do texto literário, aquele que, de
forma linear, reúne uma situação discursiva, no caso, operada pela
obra literária, para o leitor de uma realidade textual, que, para
nós, constitui-se naquele que lê o verbal de maneira singular, na e
com a singularidade do texto literário. Trata-se do leitor de um
gesto rapidamente esgotado, sem reiterações, sem os múltiplos
suportes: visuais, eletrônicos; sem vínculos, links, portanto, com
um hipertexto; trata-se de um leitor voltado para o texto literário,
que volta a sua intencionalidade para a realização da arte literária,
prática contemplada, inclusive, dentro das ousadias das configurações do texto literário contemporâneo, pelo hipotexto. Ajustemos, assim, nossa discussão, a mais este contraste.
Compreendemos que os tempos atuais, os que estão em atos,
transfiguram-se, tanto em narrativas compostas em hipertextos
sustentados pela intertextualidade, por múltiplos textos, como em
narrativas compostas por hipotextos, sedimentados pela
interdiscursividade, que incorpora percursos temáticos e ou figurativos, valores, de um discurso em outro. Estas últimas, em especial, explicam-se nas observações novamente de Ricardo Piglia
(2000, p.123), agora, de outra fonte: "La inspiración se construye
a partir de lo que se há escrito antes, cada vez se inscribe com
toda la literatura".
O leitor do hipotexto, do nosso ponto de vista, constitui-se
no leitor que lê o literário, o singular, como salientamos acima;
esse leitor consiste naquele que não sustenta a sua leitura no potencial, no virtual, no desmesurado, características do hipertexto.
O hipotexto volta-se para o pontual, para o momentâneo, a medida de uma hesitação, momento em que "os espaços ficcionais invadem a vida cotidiana e a sociedade moderna", conforme Piglia
231
o hipotexto de NoU
(1990, p.3), características, convenhamos, que sempre demarcaram a demanda das narrativas literárias.
O que lemos, então, em um hipotexto? Observamos uma
história por meio de um discurso, de um código, o literário, elaborado por uma organização e configuração particulares da linguagem.
O nosso objetivo, agora, é o de explorar o literário num
conto de João Gilberto NolI, Bispo da madrugada, um hipotexto,
escrito, inicialmente, para um projeto editorial da Folha de S. Paulo, conforme as rápidas intenções da reportagem da época: "A
Ilustrada passa a publicar, a partir de hoje, uma coluna literária
diária, na página 2, ao lado de Horóscopo". (ILUSTRADA, 1997,
p.l) Nesta reportagem, a Folha anunciou também os titulares da
coluna: Heloisa Seixas, Voltaire de Souza e Fernando Bonassi.
João Gilberto NolI substituiu Heloisa Seixas, em agosto de 1998.
Patrícia Decia (1998, p.l), repórter da Folha, noticiou o ingresso
do ficcionista na coluna literária do jornal, ocasião em que comentou com mais ênfase o projeto da Ilustrada, referendando-o com
Walt Whitman: "quanto mais leitores tocando no tecido do texto,
mais prazeroso e completo é o ato literário". A repórter também
entrevistou NolI (1998, p.l), que expôs, literariamente, suas intenções:
Analisaremos, da coletânea,
o conto Bispo da madrugada,
que, ao lado dos outros,
constitui-se no que o seu autor
nomeou como instantes
ficcionais: uma série de contos
ultracurtos publicados na
Folha de S. Paulo, numa
pequena coluna, Relâmpagos,
mantida pelo autor de agosto de
1998 a dezembro de 2001.
Analisaremos aqui o conto
Bispo da madrugada,
publicado em 20/12198, que,
depois, ao lado de todos os
outros, foi reunido pela Editora
Francis, em 2003, em livro
intitulado Mínimos, múltiplos,
comuns, numa edição que
recebeu o Prêmio Jabuti de
melhor capa e o segundo lugar
para livro de contos, além do
Prêmio ABL de Ficção 2004.
I
Eu quero ter o direito também de fazer pequenas liturgias, pequenos momentos de. elevação a partir do barro da história.
Não acho que homem seja anjo, mas é bom a gente exercitar
esse desejo de superação, de transcendência.
°
A palavra liturgia, no grego, significa função pública. E é isso
mesmo. Noll (1998, p.l) acredita na função pública da sua ficção,
textos com "coisas que dizem respeito à vida cotidiana da grande
maioria das pessoas". Essa função pública na ficção de João Gilberto Noll está nos valores que o escritor reitera, presentes, visíveis,
agora, no projeto gráfico de Mínimos, Múltiplos, Comuns l , na
interdiscursividade, valores com a equivalência de denominadores
comuns, que perpassam seus 338 hipotextos orientados por uma
lógica editorial. Segundo o autor, poderemos ler narrativas que trilham valores bíblicos, "divididos em cinco grandes conjuntos que
pressupõem uma cronologia da Criação: Gênese, Os Elementos, As
Criaturas, O Mundo e O Retomo". (NOLL, 2003, p.23). Bispo da
232
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
madrugada compõe As Criaturas, que, segundo o contista, constitui, ao lado dos cento e setenta do mesmo segmento, o
[... ] mais complexo entre os conjuntos. Parte da uma definição
dos Corpos, que se mostram Despidos; depois unidos carnalmente como Amantes; unidos perante a lei e a sociedade em
Casamento; constituídos em Famílias; gerando Crianças; repartindo espaço e destino com os Animais; vagando e povoando o mundo como Andarilhos; penando de escapar à fúria dos
vencedores como Fugitivos. Os corpos são Feridos e cobremse de cicatrizes; recuperam-se ou não como Convalescentes; e
colocam-se à parte do mundo e das coisas, viventes do outro
plano, como Artistas. (NOLL, 2003, p.23)
Como se lê, o corpo mostra-se como o lugar de resistência
do sujeito, que não cede e defende sua emoção. O corpo, na ficção de Noll, constitui-se numa macrofigura - a figura maior que
se envolve com um conjunto de situações que motivam a narrativa. Ele constitui-se num motivo que se combina com outros e que
dão apoio temático ao conto, no caso: o corpo como o lugar de
vigor físico, que se esvai; o corpo como o lugar da ira, que se
anuncia; o corpo como o lugar que aproxima, de forma grotesca,
o homem do comportamento animal. João Gilberto Nolljoga imagens contra imagens, numa situação em que elas substituem o
contato do homem com o outro, Com uma narrativa ultracurta, o
ficcionista quer um clímax e procura, para isso, movimentá-la com
situações de vigor físico e emocional, o que reverbera na metáfora do corpo, o lugar, a figura dessas manifestações. Abaixo, o
conto anunciado para análise:
De madrugada me ajoelhei na beira do rio. Sentia-me sangrar.
Procurei pelas pernas, peito, barriga, pescoço, cabeça: nada.
Pensei: "É hoje ou nunca, vou sim, eu vou matar". Voltei para
casa e a primeira coisa que fiz foi não acender a luz. Peguei as
cobertas, de pé me enrolei nelas. Eu era um bispo, um rei, um
indigente em trapos. Havia outra alma ali, meu filho pequeno.
Ele ressonava. Em minutos amanheceria e eu faria café. Passei
as unhas pela parede fria, como se querendo me testar. Ao acordar, a criança me contava sempre o mesmo sonho: cobria com
uma toalha de mesa o amigo albino sob o sol do meio dia.
(NOLL, 2003, p.216).
233
:' hipotexto de Noll
A palavra configuração, que desde o início nos orienta nos
fundamentos desse artigo, chama-nos atenção para dois aspectos:
o primeiro, atinente ao aspecto visual do texto, sua mancha; o
segundo, o propósito do texto, sua forma, que ele sustenta, preponderantemente, com figuras. A configuração, quer de um hiper
ou de um hipotexto, está, de maneira nodular, na idéia de texto:
uma seqüência de enunciados encadeada e tramada. Texto é trama,
como nos lembrou Ricardo Piglia. A partir dessa condição fundante
do texto, poderemos divisar, então, suas diferenças nos registros da
sua comunicação, no seu suporte, na configuração do suporte.
Um hipotexto é um texto muito curto. A brevidade, quer
para a prosa ou para a poesia, provoca numa narrativa uma forte
tensão interna. A brevidade intensifica, no caso de uma narrativa
em prosa, uma coerção interna para o estabelecimento da sua trama. Bispo da madrugada tem, como vimos, 112 palavras, que nos
envolvem numa circunstância emblemática que invade o destino
de uma personagem frenética, sem identidade, perdida na sua individualidade, sem que o seu pensamento delirante esteja voltado
para um acontecimento. Não houve, para a narrativa, um acontecimento; não há sequer a pressuposição de um acontecimento. O
conto narra uma situação, algo localizado.
Bispo da madrugada é um conto de situação; elíptico,
multiforme, polissêmico. A elipse, que omite as seqüências do
acontecimento, instala o enigma, sua atmosfera. Exige a participação do leitor, que, em rápidas cenas, lê o enfraquecimento de
um sujeito: de um pai, esgotado, exausto. O filho, a segunda personagem, encontra-se em situação oposta: tranqüilo, desperto de
um sono. O pai é um errante, irado; o filho, fixo num único sonho,
um solidário. Deparamo-nos com uma tensão que condensa, da
parte do pai, vazio, fracasso e, da do filho, redenção, salvação,
plenitude. Defrontamo-nos, sempre, com condensações e elipses;
indefinições, como a figura do tempo: madrugada, momento entre a meia noite e as seis horas da manhã; tempo fluido: corrente,
espontâneo. Ou como na figura espacial do rio que flui e de forma
semelhante como o sangue que a personagem sente correr em
profusão, pelas pernas, peito, barriga, pescoço, cabeça. As figuras
espaciais mostram-se externas e internas. Externas quando à beira
do rio e internas, quando focam o interior da casa. A casa encontra-se fechada. Pai e filho encontram-se com a proteção das co-
23-f
Revista Brasileira de Literatura Comparada, 0.9, 2006
bertas e da casa. O pai, de esgotado, irado, à beira do rio, agora,
no interior da casa, dividido - um bispo, um rei, um indigente. O
filho, enquanto dorme e sonha no seu quarto, uno - um princípio
de vida unificado, de individualidade, de personalidade, de consciência, de solidariedade. O filho encontra-se tranqüilo e ressona
numa cama. Inspira no pai, que fará café ao amanhecer, um alento. O pai crava as unhas na parede: certifica-se. O sonho do filho
será sua certeza sob a luz do sol do meio-dia; num gesto de solidariedade para o desamparo de seu pai. Nesse sonho, o filho cobre um albino com uma toalha, como o pai, dentro da casa, cobrese com uma coberta. Na elipse, na condensação, uma oposição
possível - o desamparo de um diante do amparo do outro. O pai
encontra-se em desamparo, na beira do rio ou em casa; o filho, em
casa, enquanto dorme e sonha, ampara, ajuda, auxilia, socorre.
A leitura de um hipotexto é intrincada e intensa. Ler (do
latim legere ou do grego analegein) significa escolher. Ler, nesses
sentidos, é interpretar, atribuir sentido, sentir alguma coisa que é
reconhecida pela leitura: algo singular e que exige, do leitor, uma
descrição da ação lingüística que produz o texto, numa determinada situação que pressupõe um gênero, um tipo de discurso mediador da construção de um tipo de conhecimento. O leitor precisa entender o texto, saber o que está lendo e compreender algo
importante e atinente à demanda de uma narrativa: ela não tem
tamanho, constitui-se de um enunciado total.
Do enunciado total que é uma narrativa, o conto, do latim
computu, é uma conta, um cômputo, um número (uma representação de cada um dos quadros ou cenas de uma narrativa, de um
espetáculo; representação de uma grandeza mensurável; representação de um conjunto dado), preciso, harmônico, regular na
cadência e disposição de suas palavras. Nesse sentido, conto tem
o significado semelhante a canto. Há, em ambas as composições,
a modulação de uma voz que, no caso do conto, narra, mas também, como no canto, entoa, dentro de um tom (contínuo ou
descontínuo), com escalas (consonantes ou dissonantes).
A comparação que fazemos entre as manifestações do canto e do conto tem uma sintonia com a poética de João Gilberto
Noll. A natureza da forma da sua narrativa em prosa, conforme
entrevista que concedeu a Miguel do Rosário, passa pela
musicalidade, apreendida, desde a sua infância, tanto na audição
o hipotexto de NolJ
235
da composição musical, como na leitura da poesia. NoU, nessa
entrevista, revela-nos que é mais leitor da poesia do que da prosa
e que, ao. escrever, vê-se "arrastado por ritmos, realmente por
ritmos, por voltagens musicais ... ". (NOLL, 2004, pA) Dessa
maneira, Gilberto Noll (2004, p.5) definirá, nessa mesma entrevista, a sua prosa como "uma prosa poética" e que está
"radicalizando cada vez mais isso". Acreditamos que a edição de
Mínimos, múltiplos, comuns, de 2003, contempla aquela
radicalização referendada na entrevista concedida para Miguel do
Rosário em 2004 e sinaliza para os anos em que o autor exercitou-a na Folha de S. Paulo.
Desse modo, uma prosa com o ritmo da poesia, em primeira
pessoa, diante de um temário que celebra situações convulsivas
vividas pelas suas personagens, possibilita a João Gilberto NoU
construir uma atmosfera em que o,poético aproxima-se do mítico
e permite que a narrativa represente, conforme o autor, "uma
certa pulsão por um ethos". (2004, p.8)
Juntamos às considerações uma reflexão sobre o conceito
de conto, o de enredo também nos será interessante. Pode-se
ressaltar do conceÍto de enredo uma diferença entre uma situação inicial e uma final da narrativa. O conto de enredo é modulado numa escala dissonante, a fim de que seu enunciador construa um tom descontínuo entre começo, meio e fim, uma relação
de causa e efeito, um princípio de causalidade. Já o conto de
atmosfera é modulado dentro de uma escala consoante, num tom
contínuo, a fim de que sua enunciação elabore uma consonância
entre o seu início e o seu final. Um enredo mostra-nos
descontinuidade; uma atmosfera, continuidade, circularidade. No
enredo a ênfase transita entre seqüências (e entre elas um episódio será fundamental, terá seu desenlace). O conto de atmosfera
fixa-se num estado, numa situação em que temos a atmosfera, o
ambiente, a situação de uma ação.
O conto que lemos configura-se como um conto de atmosfera, distante da estrutura do conto de desenlace; trabalha a narrativa de forma vaga, diluída, indefinida; as seqüências da sua narrativa não se opõem, elas se neutralizam. O procedimento de
neutralização sustenta o conto de atmosfera, numa relação de agregação entre seqüências; a proximidade entre seqüências é imediata, sem mediação. Essa é a relação única de aproximação entre
236
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
suas situações; o seu objetivo é diluir contrastes e evitar um desenlace. O conto de atmosfera tende a narrar, mais e precisamente, um
estado mental, um estado de espírito, do que uma ação genérica.
Esse conto, como um enunciado total e no modo de tensionar essa
totalidade, qualifica sua narrativa de maneira caótica, heteróc1ita;
faz paralelos, coordenações; intercalações, transições, regressões,
seguindo o fio da narrativa e os perfis das personagens.
Voltemos agora a nossa atenção à função do narrador de
Bispo da madrugada. O narrador é o organizador da ação narrativa; é a voz que narra. Nesse conto, temos um narrador e personagem que organizam, com palavras e imagens, a verdade textual;
é como se sua presença afastasse a do sujeito da enunciação, sempre implícita, mas, muitas vezes, forte, mais organizadora, mais
racional. O narrador do conto é semi-onisciente: não invade a mente
da personagem, com quem contracena, na busca de explicações
para os acontecimentos. Não temos, como vimos, um acontecimento. O que é que aconteceu? Esse narrador capta emoções,
sensações simultâneas.
Bispo da madrugada, como lemos, constitui-se num conto
estranho. Trata-se de uma narrativa sem herói e sem adjuvante,
em torno de algo que ocorre, de maneira única e persiste. O
continuum do mundo, do ponto de vista do protagonista, não se
deixa recortar. A percepção das coisas do mundo, pelo sujeito, no
conto de atmosfera, é contínua. O sujeito, assim, não chega, com
o que percebe, a uma concepção do mundo. Como exprimir as
áreas do inconsciente num conto ultracurto? A construção de uma
inconsciência não admite uma expressão verbal direta e, assim, de
maneira indireta, dedutiva, leremos, em Bispo da madrugada,
como que dados do inconsciente expressos, com elipses,
condensações, como índices de uma sintaxe do inconsciente, por
meio do solilóquio.
O solilóquio procura exprimir emoções, sensações - a vida
interior da personagem fundida à exterior. Ele conforma interpelações deliberativas (um jogo, não necessariamente explícito, entre perguntas e respostas). A palavra base que nomeia solilóquio é
colóquio. Colóquio define-se como a fala entre dois. Solilóquio é
uma palavra derivada de colóquio; significa fala de um só, fala de
alguém consigo mesmo, monólogo. Na verdade, no monólogo,
alguém é interlocutor da própria fala - um arranjo literário, uma
o hipotexto de Noll
237
figura, algo sem lógica - traduz, representa, uma condição do
homem, de solidão. Situa-se num nível menos profundo da consciência. Pode aparecer combinado com o monólogo interior. O
solilóquio, por sua vez, procura exprimir emoções, sensações - a
vida interior relacionando-se com a exterior. Bispo da madrugada configura-se com o veio do solipsismo, na movimentação de
um eu em única realidade do mundo; de um eu que tem nas suas
condições subjetivas a única forma da realidade; de um narrador
sem interlocutor. As ações estranhas não se justificam do ponto
de vista do reconhecimento; não as reconhecemos pela nossa
memória de leitura, nem as reconhecemos pelos antecedentes da
narrativa, derivados da própria intriga. Nos acontecimentos verossímeis e necessários, o contexto exerce um controle na coerência do texto. Pode ser uma coerência de temas e figuras, em
que o tema suporta a rede de figuras; o que é próprio de um texto
que trama, tece relações. Em um texto tramado por meio de ações
estranhas, a continuidade fica à mercê de si mesma e formula a
sua própria condição paradoxal. Em uma narrativa estranha, a
personagem não sabe compreender o que ocorre e nem alterar tal
situação. O seu adversário não é conhecido e, portanto, não pode
ser reconhecido. O estranho é algo que ocorre "fora da ação", da
ação verossímil, sem necessidade. O necessário consiste no que é
inevitável, requerido, forçoso; o que não pode deixar de ser; uma
condição imposta, normativa, que impede escolhas; a necessidade
é fundamental. O necessário é o oposto do voluntário, daquilo
que procede livremente.
O jornalista José Castello (2003a, p.74), em dois momentos, observa a chamada nova geração de escritores brasileiros,
que João Gilberto NoU integra. No primeiro momento, nas páginas da revista Bravo, e no início de suas observações, enfatiza:
As melhores ficções são aquelas que parecem desprovidas de
laços com o seu tempo e com o seu meio, provocando o desconforto de destoarem tanto dos hábitos dos intelectuais ilustrados como das expectativas amestradas do leitor comum.
José Castello, nesse artigo, comenta a maneira como, entre
os novos ficcionistas, há aqueles que não se reconhecem como
parte de uma "nova geração" que não fazem manifestos ou
experimentalismos. Apresentam-se, antes, como uma geração sem
238
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
tendência e que, simplesmente, elaboram uma narrativa tensa e
tendente para o inesperado, o novo, uma nova realidade, uma supra-realidade. O segundo momento das observações de José
Castello (2003b, p.l0-13) ocorreu onze meses depois, no jornal
Valor, em que ele retoma o mesmo viés da questão acerca da literatura contemporânea. Notamos que essa última discussão é mais
densa, e alinha-se às ponderações já destacadas de Ricardo Piglia.
Para o jornalista, o "novo realismo" domina a produção da prosa
brasileira atual, e, sobre ele, observa:
Lidar com a realidade não é tarefa fácil para ninguém, não
só para os escritores. Até porque a realidade é muito mais complexa e enigmática do que supõem essas paisagens simplificadas e
superficiais mostradas pelo "novo realismo".
Nas circunstâncias dessa afirmação, Castello considera João
Gilberto Noll um escritor:
[... ] interessado nesse abismo que separa o sujeito da realidade, [e que] prefere, ao contrário [daqueles "de paisagens
simplificadas"], agarrar-se à potência dos sentimentos e à energia dos estados primitivos. (Castello, 2003b, p.l 0-13)
Com José Castello depreendemos que João Gilberto Noll
produz uma ficção a partir da realidade, delimitando suas personagens no campo do imaginário humano, ocasião em que as encena em situações de crua realidade.
Divisamos, assim, nesses dois artigos de José Castello, com
base em seu ponto de vista sobre o literário e em sua impressão
sobre o texto de João Gilberto Noll, que a nova narrativa não copia
objetos, mas substitui a referencialidade ordinária por outra, extraordinária, por um novo conjunto de significantes. Ou, conforme o
ficcionista, João Gilberto N 011 (1999, p.l 00) j á observara:
Eu gosto de ver a matéria objetiva, de um corpo determinado.
Eu preciso ver um personagem, um corpo com ânimo. Esses
personagens estão um pouco desvinculados de uma instituição
que possa centrá-los. São muito perdidos. Por isso, eles precisam andar à cata dessa coisa que não os faça pura evasão ( ... )
O que me encanta na existência é a forma. Isso não deságua no
o hipotexto de Noll
239
formalismo, na palavra como artefato. O que gera a palavra,
poética ou não, é o drama, a incapacidade do homem de dar um
sentido mais vertical à existência.
o próprio autor, posteriormente, manifestou-se contrário à
tendência realista: "Eu não sou um escritor realista. Eu sou um
escritor de linguagem, é a linguagem que move os conteúdos, que
estrutura os conteúdos". (NOLL, 2004, p.6) O realismo de João
Gilberto NoU está na modulação da sua narrativa, no seu tom que
sustenta uma situação em movimento. A narrativa de NoU tende,
assim, a partir do papel do indivíduo na ficção, a redirecionar o
quadro da referencialidade, alterando a maneira usual da representação, mudando o caráter da composição da subjetividade, à
maneira de abordagem da subjetividade. O imaginado ajusta-se à
forma em que é imaginado, na disposição em que é imaginado,
para ficarmos com Gianotti (2005, p.3):
o referente, o imageado, nasce, pois, desse jogo que, às vezes, trabalha com semelhanças, mas cujo valor estético não
depende delas.
Segundo Gianotti (2005, p.3), desde a Antigüidade, "a imagem tem sido posta como aquela faculdade de ter presente uma
coisa ausente", uma figura à procura da referência. Algo que temos bem distante da estratégia ficcional de Noll (1999, p.lOl):
Não tenho pendor para as grandes narrativas. Gosto do mistério. O mistério humaniza. Não é uma perdição para as forças
sociais, as forças da luz. Eu quero luz, também, como todo
indivíduo. O meu movimento não é antiiluminista.
NoU, entre os novos ficcionistas, não se afasta da compreensão da realidade, da tentativa de apreendê-la; busca, porém.
visualizá-Ia, incorporá-la à realidade humana, labiríntica, visceral
e tal estratégia passa pelo perfil do intelecto da personagem. pelo
seu nível de percepção da existência e pela representação da sua
consciência, da sua subjetividade. A diegésis, assim, mais que a
mimese, dá a direção da trama.
No conto de Noll em questão, mostram-se os
assombramentos de uma personagem diante da serenidade da ou-
240
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
tra. Sombra e luz - figuras alegóricas da verdade; nelas, o mundo
sensível aparece como alegoria de um conteúdo espiritual "imperceptível". Conforme afiançou José CastelIo, nessa alegoria, João
Gilberto NoU mostra o "abismo que separa o sujeito da realidade", próxima da "potência dos sentimentos e à energia dos estados primitivos" e distante de "paisagens simplificadas e superficiais". (2003, p.lO-13)
Percebemos, dessa maneira, pela ficção de NoU, que quadros novos do mundo são pensados e nos ampliam as imagens que
temos do mundo. A mímesis, como vemos, não mais se realiza
como a expressão que presentifica, representa, algo que está ausente, reconhecido pelo processo da leitura. Essa ficção de João
Gilberto NoU elimina a revelação e afirma a percepção. Na narrativa, parece-nos, a memória nada revela. É o casual que desencadeia os processos de consciência e constitui-se na forma de aproximação do texto com a realidade imediata, a maneira como o
mundo interior da personagem transparece no mundo exterior.
Há um veio, um caminho, mostrado no engendramento do
conto que, ao nosso ver, passa sim por um novo realismo, ao lado
de um novo naturalismo. O naturalismo está na transcrição de
uma realidade imediata, no imediatismo, no instintivo, na determinação do imediatismo, que propicia, no texto em análise, o aparecimento, por exemplo, da ira, dos estados primitivos. A realidade, assim, é sonho, esquizofrenia, visões, o objeto misterioso
da ficção. O realismo de João Gilberto NolI realiza-se com o objetivo de vasculhar o obscuro. E, assim, o tempo faz-se perpétuo,
contínuo, tenso, como na lírica.
O conto analisado e os demais de Mínimos, múltiplos, comuns, mostram construções, configurações que buscam novas
referências, novas figuras, um novo "imageado", como quer
Gianotti. Os hipotextos de NoU expressam situações múltiplas,
dispostas em unidades temáticas, por meio de uma ação intensa
da interdiscursividade e num estilo vigoroso, excessivo, elaborado. Dessa maneira, com imagens tensas, ambíguas, narram-se situações transcendentes que aproximam os momentos da história
aos momentos do discurso. A própria obra como medida e à procura de um leitor? Borges, Cortazar, Bioy Casares fizeram contos
curtos com esses parâmetros. João Gilberto NoU não é o primeiro
na ousadia. Aqui também, conforme observa João Alexandre Bar-
o hipotexto de NoU
241
bosa (2003, p.17): "a experiência que se representa é também, ou
sobretudo, uma experiência de leitura". Essa referência, dedicada
à crítica da literatura atual, ajuda-nos a explicar a narrativa de
Noll- a teatralização de gestos, o momento do impulso biológico
do corpo, os movimentos entre o homem e o mundo - como a
representação dos:
[... ] os movimentos de inadequação através dos quais o poético
se expande na criação de um espaço e de um tempo capazes de
romper com os estreitos limites de uma diacronia evolutiva de
causa e efeito. (2003, p.15)
A originalidade na construção dos textos de João Gilberto
N 011 está na busca de um efeito casual, com intensidade e brevidade; sua originalidade está, enfim, em tensionar a narrativa para o
imprevisto. Vêm-nos à lembrança, como numa situação
diametralmente oposta às de No11, as intenções literárias de Edgar
A11an Poe. O tom poético procurado por NoU não é o da melancolia, preferido por Poe. Além disso, o estranho, nas narrativas de
NoU, habita o sujeito e permanece fora do seu alcance. Poe, que
tudo prevê, constrói a estranheza de uma dada situação dentro de
uma combinada unidade de efeito, para a impressão do seu leitor.
O estranho, nas narrativas de No11, habita o sujeito e permanece
fora do seu alcance. A originalidade de João Gilberto No11 está em
elaborar o imprevisto, com imagens diluídas que traz do mundo,
apagadas da sua referencialidade. Desse modo, NoU afasta-se do
mimético. A representação do mundo no seu texto faz-se pela
sobreposição de observações sobre o observado, porém, por meio
de imagens imprevisíveis, constituídas por metáforas sem
previsibilidade, que elidem a cadeia do sentido para o seu reconhecimento, distanciando-se da retórica de "atualização de uma
diferença" (COSTA LIMA, 2000, p.303), a que reconhece, para o
leitor, aquela diferença.
As imagens que João Gilberto NoU traz do mundo para a
literatura são verdadeiramente singulares e não procuram "a equivalência subjetiva de uma cena externa e objetiva" (COSTA LIMA,
2000, p.24), ou conforme as intenções do autor: "O que me interessa é o gesto, é a projeção de coisas sobre as quais não tenho
tanto controle assim" (NOLL, 1998, p.102).
242
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
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2000.
243
Outras Palavras:o Catatau de Paulo
Leminski em três tempos
Marília Librandi Rocha
(UESB)
Este texto versa sobre o romance Catatau (1975), de Paulo
Leminski (1944-1989), tendo em vista discorrer sobre o modo
como o experimentalismo de vanguarda insere-se e, simultaneamente, desloca a tradição do narrador de prosa de ficção no Brasil
desde sua constituição no século XIX. Busca-se saber de que modo
um romance como Catatau liga-se à tradição do narrador
oitocentista corrompendo-a por dentro, minando seus pressupostos, ao mesmo tempo em que os re-atualiza. Um desses pressupostos, talvez o principal, respondia pela adequação de uma ficção atrelada à documentação e que se legitimava por sua mestra,
a História, pelo desejo de fundar um país, a busca da cor local e a
descrição da paisagem baseada nos relatos dos viajantes estrangeiros (cf. SUSSEKIND, 1990). O mesmo viajante, que constitui
a imagem do narrador de romance no Brasil oitocentista como
paradigma do conhecimento e descrição do país, também se encontra aqui só que posto do avesso. "No Catatau", diz Leminski,
"quase nada acontece. No sentido da narrativa do século XIX,
claro. No plano da linguagem e do pensamento, acontece quase
tudo" (Leminski, 1975, p.11). No livro, Leminski ficcionaliza Renê
Descartes, que foi oficial da Guarda de Maurício de Nassau e
poderia ter integrado, juntamente com naturalistas como Marcgravf
e pintores como Franz Post e Albert Eckhout, a comitiva que acompanhou o Príncipe em sua vinda ao país na época do domínio
holandês no Nordeste (1630-1654).
Como uma floresta tropical de palavras que não compõe
proposição válida segundo o critério de Verdadeiro ou Falsa, mas
uma simultaneidade de frases que se autodesfazem, unidas emjus
244
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
taposição mais do que na subordinação de sintagmas como "Penso, logo existo", não há, em Catatau, o "logo", pois nele o lagos
cartesiano delira e ensandece: "muito baralhado esse negócio
brasílico!" (LEMINSKI, 1975, p.63), o que, de outro modo, mantém a figuração de um Novo Mundo em oposição ao Velho. Assim, o livro abre com o famoso ergo sum, imediatamente corrigido para "aliás, Ego sum Renatus Cartesius, cá perdido, aqui presente, neste labirinto de enganos deleitáveis" (LEMINSKI, 1975, p.13).
Em um livro que se quer todo espacial, este estudo, como
abordagem inicial de pesquisa, tem o intuito de mostrar que em
Catatau se cruzam três temporalidades distintas: 1) a do século
XX, em um livro escrito entre 1966 e 1975, no Brasil, segundo
os parâmetros da vanguarda do Concretismo, filiado às experimentações de James Joyce, Guimarães Rosa, Haroldo de Campos, e retomando a linha do projeto modernistaJantropofágico
de Oswald de Andrade; 2) a do século XVII, com o tema da
presença fictícia de Descartes em Pernambuco, o texto parodia
o pensamento clássico, sua ordem geral dos signos, sua mathesis
e taxinomia, para defender a idéia de sua impossibilidade em
terras locais; 3) entre esses dois tempos - os séculos XX e o
XVII - queremos mostrar que o livro de Leminski desfaz em
negativa as bases que constituíram o narrador de ficção no Brasil no século XIX, ao mesmo tempo em que, paradoxalmente,
mantém, com outra palavras, os mesmos pressupostos românticos de um país edênico, lugar incomum, terra "em branco"; questões essas que discutiremos a partir dos estudos de Flora
Sussekind, O Brasil não é longe daqui (1990), e de Roberto
Ventura, Estilo Tropical (1991). De modo que, no livro, as diversas temporalidades não apenas se cruzam, mas coincidem:
"Se nossas épocas coincidirem, nossas conversas serão contínuas" (LEMINSKI, 1975, p.l11), o que conduz à indagação: "A
que época atribuir nossos tempos" (LEMINSKI, 1975, p.38).
Podemos também dizer que em Catatau ocorre o confronto de duas epistemes que o romance encenaria: a episteme do
século XVII europeu, que tem Descartes como pilar e que se
caracteriza pela confiança na representação e no cogito, e a
episteme que na passagem do XVIII para o XIX inaugura a "crise da representação", segundo M.Foucault (1966), e que se estenderia até uma obra de vanguarda e experimentalismo dos anos
Outras palavras: O Catatau de Paulo Leminski em três tempos
de 1970 no Brasil, a qual acentua ou desloca a crise da representação numa incursão pela linguaviagem.
o viajante em trânsito, ° pensamento em transe
Renatus Cartesius, personagem, encontra-se sentado à sombra de uma árvore do horto de Maurício de N assau no palácio de
Vrijburg (1642): "a cidade livre, a Olinda batava, onde em
Pernambuco (paranimabuca, em tupi), Nassau organizou o primeiro zôo e horto botânico só com plantas e animais tropicais"
(Leminski, 1975, p.13). Fumando uma "erva de negros" e com
uma luneta a seu lado, o pensamento claro e distinto do filósofo
perturba-se, dissolve-se e aquece-se sob o sol dos trópicos. A razão dorme ou sonha e o que ele vê são monstros, como diz parodiandoPascal, "O silêncioetemo desses seres tortoseloucos me
apavora" (LEMINSKI, 1975, p. 15).
Comer esses animais há de perturbar singularmente as coisas
do pensar. Palmilho os dias entre essas bestas estranhas, meus
sonhos se populam da estranha fauna e fIora: o estalo de coisas, o estalido dos bichos, o estar interessante (LEMINSKI,
1975, p. 15)
Descartes aguarda Artyczewski (1592-1656), general da
Companhia das Índias Ocidentais, que só aparece ao final do livro, embriagado.
o ilusionismo solipsista (ego-trip) do personagem-Cartésio é o
fiel retrato, em termos de realismo, do estado de espírito do
colonizado, um homem fragmentado, desconexo, perplexo, atônito: alienado (Leminski, 1989b, p.212)
Descartes perde a razão e se metamorfoseia nos animais
que observa. Assim, se "A bicharada, com que começa o Catatau,
emblematiza o pasmo do Europeu (esse desbestializado)"
(LEMINSKI, 1989b, p.212) , no livro o personagem se toma
literalmente besta:
Sinto em mim as forças e formas deste mundo, crescem-me
hastes sobre os olhos, o pêlo se multiplica, garras ganham a
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Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
ponta dos dedos, dentes enchem-me a boca, tenho assomos de
fera, renato fui. Se papai me visse agora, se mamãe olhar para
cá!" (LEMINSKI, 1975, p.36)
Assim, se para o Descartes real o que diferencia os homens
dos animais é serem aqueles "capazes de arranjar em conjunto
diversas palavras, e de compô-las num discurso pelo qual façam
entender seus pensamentos; e que, ao contrário, não existe outro
animal, por mais perfeito e felizmente engendrado que possa ser,
que faça o mesmo" (DESCARTES, 1637, Livro 5, p.61), Leminski
faz entrar em curto-circuito essa capacidade: vingança contra o
cartesianismo, sua lógica e a da colonização. Assim também, se
para Descartes "a razão é um instrumento universal, que pode servir em todas as espécies de circunstâncias" (DESCARTES, 1637,
Livro 5, p.60), para Leminski trata-se de defender a tese contrária.
Uma frase de Oswald de Andrade, no Manifesto Antropófago: " ... nunca admitimos o nascimento da lógica entre nós", parece estar na base de Catatau. A intenção do livro, nas palavras do
autor, é : "mostrar como, no interior da lógica todo poderosa,
esconde-se uma inautenticidade: a lógica não é limpa, como pretende a Europa, desde Aristóteles. A lógica deles, aqui, é uma
farsa, uma impostura. O Catatau quer lançar bases de lógica nova".
(LEMINSKI, 1989b, p.211).
Segundo a Grammaire génerale et raisonnée (1660) e La
logique ou l'art de penser de Port-Royal (1662), como aplicações
do pensamento cartesiano, toda proposição representa o pensamento
que já é representação da apreensão do mundo, portanto, representação da representação, que caracteriza a idade clássica e sua confiança no cogito. Em oposição a essa concepção de transparência
da linguagem em relação a um pensamento que a língua deve apenas traduzir sem interferir nem perturbar, Leminski compõe um livro no qual a proposição, ao invés de representar o pensamento, o
dilui, o desfaz, o liquefaz. Cada frase é um desmentido da anterior.
Não há o desenvolvimento de uma idéia em uma cadeia de proposições compondo parágrafos, mas uma sucessão de provérbios, frases-feitas desfeitas, citações, paródias, idiotismos, estrangeirismos.
::\ão há sequer uma língua única no livro, mas uma mescla:
Seu polilingüismo é o reflexo do polilingüismo do Brasil de
então onde se praticavam as línguas mais desencontradas: o
Outras palavras: O Catatau de Paulo Leminski em três tempos
tupinambá da Costa e centenas de idiomas gês/tapuias, dialetos afros, português, espanhol e, em Vrijburg, cosmopolita,
holandês, alemão, flamengo, francês, iídisch e até hebraico
(LEMINSKI, 1989, p. 212)
Tudo no livro colabora para a confusão babélica em oposição à clareza. Nesse sentido, Leminski compõe um não-livro, como
uma coleção de frases que pode ser lida em qualquer seqüência,
texto cibernético ou hipertexto.
o não-livro para não leitores
o livro se abre com uma inversão: ao invés da tradicional
"Captatio Benevolentiae", o autor repele os leitores com uma
"Repugnatio Benevolentiae": "Me nego a ministrar clareiras para a
inteligência deste catatau que, por oito anos agora, passou muito
bem sem mapas. Virem-se". Propõe-se, assim, como o oposto da
clareza e do bom senso, recusando o leitor comum visado por Descartes em seu Discours de la méthode pour bien conduire sa raison,
et chercher la verité dans les sciences, escrito em francês para popularizar o método em 1637. Esse propósito manifesto de repelir os
leitores insere-se n.o projeto do livro escrito para poucos, no dilema
de leitores recusados-e-buscados, "ego-trip" como é qualificado,
no qual a comunicação com o outro (quer este outro seja o estrangeiro, o nativo, o "civilizado", o "bárbaro" ou o próprio leitor) atinge um estado de entropia: "Mensagem afetada de elevado coeficiente de ininteligibilidade, a legibilidade no Catatau está distribuÍda de maneira irregular" (LEMINSKI, 1989b, p.213). Como diz
ainda o próprio autor, a informação absoluta, sempre nova, acaba
por produzir redundância, logo, informação nula, daí "que a expectativa permanente no Catatau acaba por se tornar um estado 'monótono' (caógeno)" (LEMINSKI, 1989b, p.210).
No Catatau, a expectativa é sempre frustrada. O leitor jamais
sabe o que deve esperar: rompe-se a lógica e as passagens de frase
para frase são regidas por leis outras que não as normas da sintaxe
discursiva 'normal' . Existe literalmente um abismo de frase para
frase, abismo esse que o leitor deve transpor como puder (como
na TV, entre ponto e ponto) (LEMINSKI, 1989b, p.21O).
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Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
Na segunda edição de Catatau, em 1989, Leminski classifica seu livro como um "romance-idéia" aproximando-o, assim podemos entender, de um tratado filosófico. Como efeito de leitura,
diria que o livro parece ser mais interessante para estudar como
"idéia" do que para ler como "romance". Mesmo assim, está mais
próximo de um "projeto de prosa" do que da forma de um "poema em prosa", como define Haroldo de Campos: "Uma prosa que
pende mais para o significante do que para o significado, mas que
regurgita de vontade fabuladora, de apetência épica, de estratagemas retóricos de dilação narrativa" (CAMPOS, 1989, p.217,18),
e completa: "de um comedimento neobarroco, de um ensaio de
liquefação do método e de proliferação das formas em enormidades de palavra, é que se trata" (CAMPOS, 1989, p.214).
Trata-se, diz Leminski, "de um caso textual de 'possessão
diabólica': um texto 'clássico' é possuído por um monstro 'de
vanguarda'" (LEMINSKI, 1975, p.211), chamado Occam (Ogum,
Oxum, Egum, Ogam). Quando ele aparece no texto, as letras das
palavras se alteram, mudam de lugar, "aconstrece": "Occam, acaba lá com isso, não consigo entender o que digo, por mais que
persigo". (LEMINSKI, 1975, p. 18)
Ficção/história
Foi como professor de História do Brasil, durante uma de
suas aulas, que Leminski teve a idéia que orienta o livro.
Referi que, na Europa, o Príncipe Maurício cercava-se de um
séqüito de ilustres. O filósofo francês René Descartes (que, à
moda do tempo, latinizava o nome para Renatus Cartesius) era
fidalgo da guarda pessoal de Maurício. De repente, o estalo: E
SE DESCARTES TIVESSE VINDO PARA O BRASIL COM
NASSAU, para a Recife/Olinda/Vrijburg/Freiburg/
Mauritzstadt, ele, Descartes, fundador e patrono do pensamento
analítico, apoplético nas entrópicas exuberâncias cipoais do
trópico? (LEMINSKI, 1975, p. 207)
Catatau compõe-se assim como uma ficção que refaz a história dos holandeses no Brasil e sua interpretação incorpora na
materialidade da escrita o fracasso desse empreendimento, pois é
a fala dissonante do personagem que faz desabar a razão cartesiana,
Outras palavras: O Catatau de Paulo Leminski em três tempos
249
assim como desabou o projeto batavo nos trópicos.
Deste modo, os Estados Gerais tinham planejado fazer do Brasil uma república muito rica, bela e poderosa, sem as lutas que
ali se verificam presentemente. Pretendiam tomar-se o povo
mais florescente e estimável do mundo (... )". "( ... ) por fim,
pensando ter tudo ganho, tinham perdido tudo. (MOREAU,
1651, p.88).
°
governo de Maurício de Nassau no Recife (1637-1644) é
tido como a Idade de Ouro do domínio holandês, correspondendo
aos seis anos de paz relativa (1641-1645) dentre os vinte e quatro
anos da guerra do açúcar (cf. MELLO, 1975, p.13). Por quê esse
episódio histórico, o poder holandês que se estende do Ceará ao
São Francisco durante vinte e quatro anos se reveste de importância e interesse para o caso que aqui nos interessa, o de sua incorporação pela ficção? Destacamos dois aspectos. Primeiro, a questão
do "nativismo". Segundo a historiografia, o domínio holandês e os
problemas envolvidos na guerra do açúcar favorecem uma primeira
organização especificamente brasileira, manifesta numa guerra de
guerrilha que termina por expulsar os recentes invasores. O episódio estaria assim na origem de um sentimento nativista posterior,
pois que só tomará corpo a partir de 1710 com a guerra dos mascates, como analisa estudo de Evaldo Cabral de Mello (1975). Assim,
se a resistência inicial aos holandeses é marcadamente européia,
com tropas portuguesas, castelhanas e italianas, a guerra de restauração assumirá características brasileiras, com 2/3 de índios e negros como parte do efetivo luso-brasileiro, sendo financiada pela
sociedade colonial do Nordeste. Como diz José Guilherme Merquior
comentando o estudo de Evaldo Cabral de Mello:
tanto o custeio da guerra quanto o recrutamento e abastecer
das tropas, o seu comando e a sua estratégia se tomarão
crescentemente locais e nativos. Exibindo com plena minúcia
fundamentos materiais, econômicos, logísticos e tecnológicos,
desse abrasileiramento da campanha contra o invasor, EeM
realiza uma autêntica sociologização do nexo, que a
historiografia precedente apontara sem demonstrar, entre o
domínio holandês e o sentimento nativista. (MERQUIOR apud
MELLO, 1975).
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Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
Podemos dizer que ao ficcionalizar Descartes nos trópicos
como emblema da colonização batava, Leminski opera, no texto, uma "guerra de guerrilha" contra o pensamento cartesiano,
minando-o na estrutura de sua fala ininterrupta, e a questão do
nativismo, importante para a prosa de ficção que se fixa no século XIX, acaba por ser incorporada, pelo avesso, com outras
palavras, no Catatau, como discutiremos adiante.
De outro lado, trata-se de um episódio histórico que se
caracteriza como uma possibilidade não realizada: e se os holandeses tivessem sido vitoriosos e permanecido no Brasil? Nesse
sentido, arriscamos dizer que o romance de Leminski dá corpo
ficcional à análise de Sérgio Buarque de Holanda, em Raízes do
Brasil (1936), em relação ao fracasso do projeto da Nova
Holanda, ("Seu empenho em fazer do Brasil uma extensão tropical da pátria européia sucumbiu desastrosamente ( ... )",
HOLANDA, 1936,p.34). Dentre os motivos elencados por Sérgio Buarque para esse fracasso estariam o pouco "contato íntimo e freqüente com a população de cor" (HOLANDA, 1936,
p.34), as dificuldades fonéticas dos idiomas nórdicos para os
índios e negros e a pouca aceitação do protestantismo:
o insucesso da experiência holandesa no Brasil é, em verdade,
mais uma justificativa para a opinião, hoje corrente entre alguns antropologistas, de que os europeus do Norte são incompatíveis com as regiões tropicais (HOLANDA, 1936, p.34).
Assim também se manifesta Leminski em relação ao projeto de seu livro: "O Catatau é o fracasso da lógica cartesiana
branca no calor, o fracasso do leitor em entendê-lo, emblema do
fracasso do projeto batavo, branco, no trópico". (LEMINSKI,
1989b, p.216). Como disse Antonio Risério: "Fracassou, por
motivos vários, a colonização holandesa, o projeto-Nassau.
Leminski dá conta de um outro fracasso: pensar o Brasil em
pensamento europeu" (RISÉRIO, p.220, 1976).
Outras palavras: O Catatau de Paulo Leminski em três tempos
251
A "Sensação de não estar de todo" e o "Estilo tropical"
A partir dos estudos de Flora Sussekind e de Roberto Ventura desenvolveremos algumas hipóteses na leitura de Catatau.
Em seu estudo O Brasil não é longe daqui (1990), Flora Sussekind
assinala os "retornos em diferença da imagem do viajante na prosa brasileira" (SUSSEKIND, 1990, p. 155). Seu estudo parte dos
anos de 1830 e 1840, mostrando como o narrador de ficção no
Brasil se institui como um narrador-viajante, um narradorcartógrafo, baseado em dois gêneros não ficcionais: o relato de
viagens e o paisagismo ("sobretudo o que tematiza vistas e exuberâncias tropicais", SUSSEKIND, 1990, p.20). Esse narrador, ligado ao anseio de fundar uma literatura nacional diversa da européia, tem como modelo e "certidão de verdade" o olhar do viajante estrangeiro, o do naturalista que classifica o que vê e o do
paisagista que desenha e mapeia. Como ela demonstra, esses narradores-cartógrafos sofrem uma primeira transformação entre 1869
e 1880, "em direção às máscaras do historiador e do cronista de
costumes" (SUSSEKIND, 1990, p. 155), e seu estudo conclui-se
com a análise da viagem auto-reflexiva dos narradores de Machado de Assis, que desarmam as idéias fixas de natureza e cor local.
Encerrando-se aqui, não deixa, contudo, de apontar para outras
transformações históricas desse narrador ligado à viagem:
E, na prosa modernista dos anos 20 deste século - vide
Macunaíma, Memórias sentimentais de João Miramar, Serafim
Ponte Grande, Pathé Baby - se reinterpretariam viagens e narradores-em-trânsito. Assim como fariam em fins dos anos 60
textos tão diversos como Quarup, de Antônio Callado, e
Panamérica, de José Agrippino de Paulo; na década de 70, o
"Descartes com lentes" perdido no Brasil holandês do Catatau,
de Paulo Leminski, (... ) e um livro que se autodefine como
uma "ao léu viagem" como Galáxias, de Haroldo de Campos
( ... ) (SUSSEKIND, 1990, p. 154,155).
o livro de Leminski apresenta uma ego-trip, o pensamentofala de Descartes ininterrupto; um viajante estrangeiro em terra
recém-conquistada e que tenta descrevê-lo e compreendê-lo; a
descrição da fauna local compondo um bestiário. No entanto, o
que ocorre é uma inversão: o novo mundo impede as construções
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Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
do velho mundo, sendo necessário um outro pensar-dizer, de modo
que o autor desconstrói os pressupostos que orientaram a constituição do narrador de ficção no Brasil oitocentista a partir mesmo
de suas bases.
Ao chegar ao Novo mundo cabe ao sujeito nomeá-lo,
descrevê-lo mapeá-Io, transformar a natureza em "civilização",
desenhar, pintar, escrever sobre essa terra em branco (cf.
SUSSEKIND, 1990, p. 13). Trata-se do papel do conquistador
nos livros de viagem, modelos da prosa de ficção que "passa a se
oferecer não propriamente como literatura, mas como mapa
unificador, tratado descritivo, paisagem útil" (SUSSEKIND, 1990,
p.22). Nessa prosa de ficção estará sempre presente, a partir do
pensamento de Ferdinand Denis, "a crença na força selvagem da
natureza nos trópicos" (SUSSEKIND, 1990, p.27). Assim, mais
do que relato, tem-se o inventário, a classificação naturalista, a
expedição científica, a paisagem pitoresca a ser estudada: "Se ao
viajante cabe narrar, fixar tipos e quadros locais, ao naturalista
caberia classificar, ordenar, organizar em mapas e coleções o que
se encontra pelo caminho" (SUSSEKIND, 1990, p.45).
Como vimos, Leminski define seu livro como "sem mapas",
opondo-se, portanto, à imagem do narrador-cartógrafo-e-paisagista, assim como ridiculariza o "desejo de ao mesmo tempo representar e colecionar a paisagem" (SUSSEKIND, 1990, p. 119), quando, por exemplo, citando Marcgravf e Spix, faz Descartes dizer:
Por eles, as árvores já nasciam com o nome em latim na casca,
os animais com o nome na testa ( ... ), cada homem já nascia
escrito em peito o epitáfio, os frutos brotariam com o receituário de suas propriedades, virtudes e contraindicações.
(LEMINSKI, 1975, p. 34)
o instrumento óptico, a luneta, que acompanha o personagem Cartésio em Catatau, também figura nos relatos analisados
por Flora: "essa verdadeira representação hiperbólica do olhar
armado do viajante naturalista que é o telescópio. Como se vê em
Spix e Martius. Ou à luneta, como se vê na tela O morro de Santo
Antônio no Rio de Janeiro (1816), de Nicolau Antônio Taunay"
(SUSSEKIND, 1990, p. 126). No caso de Catatau, a luneta está
presente quando faz aumentar as próprias letras do texto em maiúsculas, no entanto, mais cega o personagem do que o esclarece:
Outras palavras: O Catatau de Paulo Leminski em três tempos
253
"E os aparelhos óticos, aparatos para meus disparates?"; "Esta
lente me veda vendo, me vela, me desvenda, me venda, me revela.
Ver é uma fábula - é para não ver que estou vendo"; "A figura é
figurada. Desvidro-me. Não representa o que apresenta. Em outras palavras, são outra coisa." (LEMINSKI, 1975, p. 16, 17,19).
Para opor-se à racionalidade matemático-cartesiana,
Leminski cria, assim, um personagem que é como um viajante que
perde totalmente os parâmetros de sua cultura de origem, sofrendo uma espécie de "bloqueio" e "trauma". Ao identificar o que ela
chama de a "sensação de não estar de todo", Flora cita dois exemplos que encontram paralelo no livro de Leminski: o livro de Júlio
Veme, O eterno Adão, no qual os náufragos sobreviventes chegam em um continente desconhecido, mas, ao invés de civilizá-lo,
"não são os 'náufragos' que conquistam o continente descoberto;
é este que parece lentamente devorá-los" (SUSSEKIND, 1990, p.
14). Assim também em Quarup, de Antonio Callado, o personagem que finca a bandeira nacional no centro do país é coberto por
milhões de saúvas, imagem esta retomada ao final de Catatau: "e
as formigas me comendo e me levando em partículas para suas
monarquias soterradas" (LEMINSKI, 1975, p.205).
"Livro-limite", na expressão de Haroldo de Campos, a hipótese que lançamos é a de que Catatau seria o ponto extremo
desse modelo analisado por Flora, seguindo uma linha que se inicia nos decênios de 1830 e 1840. Transgressão máxima desse
modelo, o livro ainda se encontra dentro do mesmo paradigma,
como se o rompimento total não deixasse de ser também o ponto
de chegada dessa tradição. Dubiedade que faz o sucesso/fracasso
do livro. Nesse sentido, o fracasso programático é coerente, pois
trata de desfazer pelo avesso os postulados que orientaram a ficção no Brasil. Dúbio, porque, ao negar com tanta radical idade
essa tradição, acaba, de outro modo, por afirmar o que nega, ou
seja, apesar de sua força contestadora, o livro mantém em outras
bases noções como a de "natureza exuberante", território à parte
não domesticável, e, inclusive, a idéia de um "estilo tropical".
Como mostra o estudo de Roberto Ventura (1991), aliás contemporâneo do de Flora, "A crítica e a história literárias brasileiras
foram marcadas, até 1910, pelas noções de raça e natureza. As
origens do 'estilo' literário eram atribuídas à ação diferenciadora
do meio ambiente ou da mistura étnica" (VENTURA, 1991, p.18).
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Assim Araripe Júnior, em 1888, escreve sobre o estilo tropical, a
partir da adaptação do naturalismo no Brasil, dizendo:
Emigrando para o Brasil, o naturalismo não podia deixar de
passar por uma migração profunda. Zola, neste clima, diante
desta natureza, teria de quebrar muitos dos seus aparelhos para
adaptar-se ao sentimento do real aqui. (JÚNIOR, 1888, apud
VENTURA, 1991, p. 17, 18)
Não poderíamos traduzir essa mesma frase para o caso de
Catatau, alterando apenas os nomes?
Emigrando para o Brasil, o cartesianismo não podia deixar
de passar por uma migração profunda. Descartes, neste clima,
diante desta natureza, teria de quebrar muitos dos seus aparelhos
para adaptar-se ao sentimento do real aqui.
Ou seja, não se trata da mesma idéia com outra roupagem?
E ainda diz Araripe: "A nova escola, portanto, tem de entrar pelo
Trópico de Capricórnio, participando de todas as alucinações que
existem no fermento do sangue doméstico, de todo o sensualismo
que queima os nervos do crioulo" (JÚNIOR, 1888, apud VENTURA, 1991 ,p.I8). Também não é de alucinação e delírio que se
trata no caso da ficcionalização de Descartes, sofrendo a influência do meio no corpo de seu pensar, como revelam as poucas
frases pinçadas a seguir? "Este mundo é o lugar do desvario, a
justa razão aqui delira"; "Este calor acalma o silêncio onde o
pensamento não entra, ingressa e integra-se na massa" ; "Nestes
climas onde o bicho come os livros e o ar de mamão caruncha os
pensamentos" (LEMINSKI, 1975, p.17, 28), dentre muitas outras que poderiam ser citadas.
Ainda seguindo o pensamento de Araripe Júnior, ele assim
define a tropicalidade do estilo: "há estilo que resista, há correção
que se mantenha? O [estilo] tropical não pode ser correto. A correção é o fruto da paciência e dos países frios; nos países quentes,
a atenção é intermitente" (JÚNIOR, 1888, apudVENTURA, 1991,
p. 18). Assim também é intermitente a fala de Descartes em
Catatau: "Pensamento, aqui, é susto";"Tudo o mais que sei não
cabe no que digo, já não há mais o que eu havia dito, já há só o
Outras palavras: O Catatau de Paulo Leminski em três tempos
que nunca se soube. Os sintomas. Os sintomas de tudo, os sistemas totais." (LEMINSKI, 1975, p.19).
Retomando a hipótese levantada: com toda a inversão
demolidora que faz Leminski, não se trata, mesmo que do avesso,
de propor a mesma coisa? A idéia de uma radical diferença dos
trópicos em relação à Europa? O verso e reverso de uma mesma
moeda-idéia? Não se trata ainda de uma obsessão pela natureza
exuberante? A mesma que está na "constituição do narrador de
ficção na prosa romântica brasileira e de algumas de suas transformações históricas" (SUSSEKIND, 1990, p.19)? Portanto, o livro de Leminski insere-se como transformação histórica desse
mesmo modelo inicial, só que problematizando-o em negativa.
Se à prosa de ficção romântica cabia o desejo de mapear o Brasil,
o que faz Leminski é apagar as linhas do mapa, buscando não um
começo histórico, mas a origem entendida como originalidade
absoluta, apagando todas as escritas calcadas na lógica e no modo
europeu de apreensão do Novo Mundo. Espécie também ele de
Marco Zero.
Assim, não haveria também em Catatau a afirmação de uma
"essência original", não da nacionalidade, mas de uma noção de
território à parte, trópicos indomáveis, não domesticáveis, região
inconsciente na qual consciência alguma pode dar conta, como
um resto, um resquício a perturbar a razão? Espécie de pensamento selvagem versus o cogito cartesiano, ou o cogito cartesiano
confrontado com o pensamento selvagem, bricoleur, a destruir a
lógica dos viajantes invasores. Ao mesmo tempo, o livro foi escrito entre 1966 e 1975, em pleno período de ditadura, nesse caso,
seu desejo de falência manifesta, seu afastamento voluntário dos
leitores, sua ilegibilidade programada, não se ligariam também a
um projeto de contestação política? Espécie da autofagia da literatura que se devora a si mesma até desaparecer do mapa ou fazer
desaparecer qualquer mapa. Se, antes, busca-se a nacionalidade,
aqui parece haver o desejo voluntário de perder-se, sumir do mapa,
tornar-se inencontrável.
Busca-se apagar os rastros do já dito, re-fundar uma terra
em branco, justamente o inverso do desejo que movimentava os
narradores de ficção nos decênio de 30 e 40 do século XIX, como
a imagem em negativa desse anseio fundador, cartográfico, descritivo, de expedição científica. Tudo vai abaixo em Catatau
255
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Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9. 2006
(onomatopéia também para queda). Mesmo assim, com todo
esse grau de negativas, ainda se trata de uma transformação
desse mesmo narrador-viajante, situando-se nesse paradigma,
apesar de apontar pra um ponto de não-retomo: o que escrever depois disso?
A falência programática do livro, a nosso ver, viria de um
dilema não resolvido em uma tensão que permanece: a de um
livro de vanguarda que repete com diferença as bases da prosa de
ficção no Brasil e que propõe um rompimento radical com a representação de moldes românticos, realistas, naturalistas, mas que,
paradoxalmente, mantém seus pressupostos, tais como a natureza
exuberante ou a influência do clima. O dilema não resolvido viria
da junção ou justaposição de desconstrução formal unida a uma
ideologia conservadora de um mesmo ideal romântico. Por não
poder mantê-las juntas - a rebeldia, a paródia, a descontrução e a
manutenção de um mesmo ideal do avesso - sem gerar um choque
auto-contraditório, coerente também ele com a proposta do livro,
o fracasso faz-se inevitável, podendo então ser lido como um casolimite, de fato, da ficção do estilo tropical chegada a um ponto de
não-retomo.
A par do atrativo pela idéia-mor do livro: a dissolução do
pensar cartesiano em solo e selva tropical e do cômico da situação
em que coloca Descartes, a par desse interesse e amor que o livro
desperta em nós, leitores, digamos assim, nativos, como uma vingança tropical-concretista-antropofágica, ele se manteria ainda nas
categorias do pensamento romântico. Quer dizer, há um efeito
misto na leitura de Catatau, ou naquilo que no livro podemos
tentar ler já que ele mesmo se apresenta sem mapas nem coordenadas, de atração e recusa. Aqui também "a sensação de não estar
de todo" atinge a leitura e este texto.
Outras palavras: O Catatau de Paulo Leminski em três tempos
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257
258
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
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SUSSEKIND, Flora. O Brasil não é longe daqui.
Paulo: Companhia das Letras, 1990.
°
narrador, a viagem. São
VENTURA, Roberto. Estilo tropical. História cultural e polêmicas literárias
no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.
259
Narrar ou perecer: Sérgio Sanfanna e
Ricardo Piglia, sobreviventes
Ângela Maria Dias
(UFF)
I
FUENTES, 2000, p.7
A tradição inaugurada na literatura brasileira por Machado
de Assis, nas memórias de Brás Cubas, o seu "defunto autor",
dramatiza a escrita como leitura mesclada e desrespeitosa de variado repertório, bem distante falacioso horizonte de objetividade
do preceituário realista. Desde o Pentateuco, passando por Xavier
de Maistre até, muito particularmente, "a forma livre de um Sterne",
este primeiro romance moderno da literatura brasileira, como
divisor de águas entre o romance oitocentista anterior e a descendência que, então, funda, proclama a "loucura da leitura" como a
maior evidência de nossa radical impossibilidade de ser realistas e ou
professar a crença num mundo objetivo acima de qualquer suspeita ..
"Autor incerto de incerto romance"! ,Brás Cubas funda uma
realidade trôpega e deslizante, na qual a "louca leitura" da vida
pelo privilégio da morte, como ponto de vista, transforma-a num
espetáculo desmesurado, arbitrário e absurdo. Tal "ambivalência
na relação entre a verdade e a ficção", radicalizada pela síndrome
da condição colonizada de nossa cultura, permanece, desde então, no horizonte do romance hispano-americano, como a mais
radical estratégia de modernidade: o exercício autoconsciente da
forma como invenção técnica capaz de problematizar a realidade
e desestabilizar o dogmatismo do que é.
Hoje, no início do século XXI, a invasão do real pelas imagens da última revolução tecnocientífica renova e aprofunda a
persistente pergunta ibero-americana sobre quem somos nós. É
que ao bovarismo estrutural gravado em nosso inconsciente coletivo pela História, como bem o reconhece Ricardo Piglia, se soma
um outro:
260
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
••• O bovarismo é uma chave do mundo moderno: a fonna em
que a cultura de massas educa os sentimentos. Existe uma memória impessoal que define o sentido dos atos e a cultura de
massas é uma máquina de produzir lembranças e experiências2 •
Partindo da borgiana concepção da memória como citação
múltipla e renovável, numa infinita espiral de traduções, Piglia
concebe sua literatura também na contracena entre a
heterogeneidade de uma herança híbrida e o vazio de uma tradição amnésica e falhada. A cidade ausente3 , a este respeito, é absolutamente modelar. Na contrapartida à máquina da cultura de
massas em sua aliança às ficções do imaginário do Estado, o escritor concebe uma espécie de poderosa alegoria da narrativa como
espaço de resistência e de desrealização das trampas do poder.
Numa homenagem à Macedonio Fernández - "el escritor
de la nada" - precursor de Borges, Piglia fabula o universo de
uma estranha Buenos Aires conflagrada pelos "efeitos ilusórios"4
de uma máquina replicante, capaz de "tornar viva a memória" e a
lembrança da mulher amada, através da produção de um relato
desdobrável e infindo, "que retoma eterno como o ri0 5 ". A atmosfera onírica e fantasmagórica do implausível confronto entre
a máquina de Macedonio e as "ficções eletrônicas 6 " do Estado
dissemina um clima irrespirável, numa cidade em que "os controles (são) contínuos", "a última palavra (é) sempre da polícia" e,
estranhamente, "todo mundo concorda em sonhar o mesmo sonho", vivendo "confinado numa realidade diferente"7 .
Assim, a narração em 3a pessoa do périplo de Júnior oferece
uma estranha sucessão de enredos nos quais o jornalista itinerante,
obsedado por enfrentar-se com o passado, entra e sai dos relatos
e em que também o leitor submerge, em meio à inconsistência
geral dos enredos e dos personagens. A incerteza da seqüência
narrativa, plena de interseções e recorrências, reitera-se pela própria incerteza do narrador impessoal que, provavelmente, será a
própria máquina desarranjada, com a palavra na última etapa do
relato: "Eu sei que me abandonaram aqui, surda e cega e meio
imortal, se pudesse apenas morrer ( ... ) deixar de ser esta memória
alheia, interminável, construo a lembrança e é SÓS".
Enquanto resposta à política e à televisão, espelhos em que
2
PIGLIA, 1980, p.48
3
Idem, 1997
4
Ibidem, p.80.
'Ibidem,p.126.
fi
Ibidem, p.117.
7
Ibidem, p.73.
8Ibidem,p.137.
Narrar ou perecer: Sérgio Sant' Anna e Ricardo Piglia, sobrevi ventes
9
Ibidem,p.116.
10 Ibidem,p.129.
II
Idem, 1980,p.54.
12 Ibidem,p.129.
13 Ibidem,p.l04.
14SANT'ANNA, 1997.
15 PIGLlA, 1997, p.130.
16SANT'ANNA,1997,p.22.
caras e mais caras aparecem e se olham e se perdem, a máquina é
concebida pelo seu criador, segundo o "princípio construtivo" mediante o qual, "tudo é possível, basta encontrar as palavras"9 .
A busca do passado para preencher o vazio do próprio nome,
faz de Júnior uma espécie de detetive, tão perdido e atônito quanto o leitor, e transforma a narrativa numa investigação, já que
"todo relato é policiapo" e tudo aquilo que escapa à "tendência
generalizada de uniformizar a experiência 11" merece ser
criminalizado. Justamente esta íntima conexão entre narrativa e
poder se explicita na última parte do romance, quando a máquina
interditada reconhece:
A narração (... ) é uma arte de vigias, sempre estão querendo
que as pessoas contem seus segredos, dedurem os suspeitos,
falem dos seus amigos, dos seus irmãos. Então, ( ... ) a polícia e
a assim chamada justiça fizeram mais pelo avanço da arte do
relato que todos os escritores ao longo da história 12 •
A despossessão pela linguagem ou a linguagem como máquina de despossessão, além de atualizar nossa história autoritária, enseja a reflexão sobre a porosidade das mentes e corações às
máquinas, na medida em que o espelho midiático invade e formata
todas as cenas. Entretanto, se "a árvore do bem e do mal é a árvore da linguagem", tal ambiguidade fundamental, ao manifestar "a
forma incerta da realidade"13 ,pode confundir ficção e confissão
ou ainda embaralhar os limites entre narrar e ser narrado.
Não é outro o motivo do peculiaríssimo romance de Sérgio
Sant' Anna, Um crime delicado 14 .. Sua trama de "escorpião
encalacrado", fazendo deslizar as fronteiras entre arte e vida, representação e experiência, crítica, criação ou mistificação, bem poderia merecer como epígrafe mais uma das falas da Máquina de
Macedonio sobre o vínculo entre narrativa, identidade, e investigação: "Todo relato é policial ( ... ) Só os assassinos têm alguma coisa
para contar, a história pessoal é sempre a história de um crime"15 .
A intrigante história do crítico de teatro Antonio Martins
escrita por ele como "peça de natureza quase processuaJl6" para
defender-se da acusação de estupro, e entender-se "intelectual,
afetiva e criticamente" constitui, sem dúvida, um eloqüente testemunho da ambigüidade entre confissão, culpa e encenação.
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Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
Seu envolvimento com Inês, mulher estranha e manca, modelo de um artista plástico de meia idade, desencadeia uma "narrativa autobiográfica 17" que, apesar de invocar para si "a meticu- l7lbidem, p.85.
losidade e os rigores da escrita I8 ", termina por reconhecer a ver- 1" Ibidem, p.l04.
dade como "ideal fugitivo e inalcançável"19 .
19 Ibidem, p.l26.
Qual um detetive, o narrador dispõe-se ao relato, na "busca
apaixonada .( ... ) da verdade 20 ", através de uma auto-investigação 20 Ibidem, p.30.
fluida e escorregadia, vazada numa espécie de estilística da indecisão. Primeiro porque sua própria experiência com Inês começa
sob a aura do esquecimento e da privação de sentidos: "Sofro de
amnésia parcial, às vezes quase total, depois que bebo em excesso, e era preciso rastrear o final da noite para verificar se meus
temores eram mais justificados do que a euforia21 ". Depois pela 21 Ibidem, p.22.
relação indefinida e ambivalente entre Vitório Brancatti e sua
modelo, projetada numa obra, espécie de instalação performática,
que constitui um absorvente work in progress, capaz de engolfar
Inês, e o próprio narrador-crítico com ela envolvido.
Apaixonado pela "modelo e personagem da pintura22 ", An- 22 Ibidem, p.103
tonio Martins, após envolver-se em nebulosos eventos que terminam por levá-lo a julgamento pela acusação de estupro, resolve
dedicar-se à "narrativa autobiográfica", conduzida como "uma
investigação interrra23 ", em que, segundo ele, "mais do que 23 Ibidem, p.27.
(se)defender de acusações controvertidas e tortuosas, tent(a) explicar-(se) e entender-(se), intelectual, afetiva e criticamente 24 ". 24 Ibidem, p.102.
Acontece que, conforme a todo o momento o reconhece o crítico,
sua "escrita minuciosa25 "jamais consegue matizar sentimentos
Ibidem, p.97.
26
contraditórios , ou o íntimo "caos de emoções ". O poço sem 26 Ibidem, p.95.
fundo da própria subjetividade é segundo ele, "uma caixa ilimitada27 " ou ainda o "palco interior", de um teatro onde culpas reais "Ibidem, p.20.
OU imaginárias e afetos díspares podem duelar sem trégua, numa
proliferação incessante de hipóteses e possibilidades.
Nesta intrincada correlação, um "texto cheio de curvas",
Ibidem, p.50.
"pleno de interrogações28 " encena a mística da subjetividade como
fingimento, na própria medida em que, a cada passo, se debruça
sobre a reversibilidade entre experiência e representação, ou ainda entre memória e imaginação. Assim o biombo da tela-instalação de Vitório Brancatti é, de certa forma, a metáfora deste relato
que, como ele, constitui um anteparo, mais capaz de velar do que
esclarecer a experiência através da escrita. Como bem o reconhe15
28
Narrar ou perecer: Sérgio Sant' Anna e Ricardo Piglia, sobreviventes
ce O crítico-narrador, no seu infindável "mise en abime":
29
Idem.
Percebo como a escrita nos distancia, quase sempre, das coisas
reais, se é que existe uma realidade humana que não seja a sua
representação, ainda quando apenas pelo pensamento, como
numa peça teatral a que não se deu a devida ordem, aliás
inexistente na realidade29 •
o caráter ambíguo e construído da confissão como ficção
I A leitura que aqui desenvolvo
baseia-se livremente nas
interpretações de Antonio
Quinet, em seu livro citado na
bibliografia, e no célebre
Foucault de As palavras e as
coisas.
começa sugerido desde as composições das capas, concebidas por
João Baptista da Costa Aguiar, como uma montagem de dois quadros. Na primeira capa, o "Pigmaleão e Galatéia" de Jean-Léon
Gérôme, contornado por grossa moldura de um dourado
acobreado, contém, substituindo o adorno cênico do fundo, o
emblemático "As Meninas" de Velásquez. A quarta capa reproduz
este último quadro, também contornado por moldura idêntica à
da primeira capa, e contendo ao fundo, no lugar da imagem refletida do casal real espanhol, o quadro de Gérôme.
A mútua implicação entre essas duas célebres pinturas constitui o cerne do universo ficcional desta novela, habilmente
conduzida para diluir fronteiras e desterritorializar premissas sobre a suposta distância entre arte como invenção e vida como
experiência concreta. A obra de Gérôme trata do mito sobre a
paixão do criador por sua criatura, a estátua da bela mulher, então
animizada por artes da deusa Afrodite. Por sua vez, o quadro de
Velásquez constitui um clássico metacrítico l , espécie de "tuming
paint" em que o barroco pensa a perspectiva clássica e representa
a representação, na medida em que encena a divisão do sujeito e a
dispersão da interioridade através da duplicação do pintor. Assim,
o pintor-sujeito, em seu auto-retrato, no nível do quadro desdobra-se explicitamente como um duplo: o pintor diante de sua tela,
olhando em frente, a observar seus modelos, o casal real do lado
de fora da tela; e no ponto de fuga, ao fundo do quadro, seu primo, Don José Nieto Velásquez,. Mas, além disso, o pintor também se projeta para fora do quadro, situando-se no ponto infinito,
à direita do espectador, numa diagonal com o pintor que é visto
na tela, como o pintor-sujeito que a olha. A dramatização é abissal,
já que o sujeito dividido comparece vendo o quadro, sendo visto
vendo o quadro ou ainda, numa infinita seqüência, vendo-se ser
visto vendo o quadro e por aí sucessivamente.
263
264
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
Por outro lado, a cena pictórica desborda-se num outro que
é simultaneamente modelo e espectador imaginário. Trata-se do
casal real, incluído no quadro como imagem difusa, refletida no
espelho ao fundo, para quem, supõe-se, toda a cena está montada.
O entrecruzamento de olhares e pontos de vista - do pintor que
olha de fora a própria tela, dos reis, ao mesmo tempo modelos e
espectadores e, portanto, lugar-tenente de quem contempla a obra
- figura, numa leitura psicanalítica, o inapreensível do sujeito no
campo escópico, dividido entre o ver e o olhar, o pensar e o ser,
como significante sempre elidido e continuamente diferido.
A importância da montagem dessas telas, nas duas capas do
livro reside na figuração que oferecem do jogo impalpável operado pela narração entre verdade biográfica, memória e ficção, num
constante deslizamento indecidível entre arte e vida. Da mesma
forma que as telas deslizam de seu suporte, invadindo o mundo do
espectador, e transtornando os limites entre construção pictórica
e existência, no enredo do romance, a obra de Brancatti confunde-se com a vida do pintor e sua figurante, absorvendo o crítico,
com ela envolvido e por fim incluído na obra.
Nesse sentido, o momento em que Antonio Martins, o crítico-narrador, se depara, pela primeira vez, com o quadro de
Brancatti é emblemático .
... mostrava Inês, sentada num tamborete, atrás do biombo negro, capturada no ato de vestir ou despir um penhoar ou
quimono, de modo que se via um de seus seios - um belo, firme
e pequeno seio - enquanto sua perna rija se descobria inteiramente, por estar naturalmente esticada, deixando que se entrevisse, mais acima, a penugem de seu sexo. Sobre a borda do
biombo, num naturalismo ostensivo, estavam jogadas uma
calcinha e um sutiã. Tive um choque, porque era exatamente a
materialização da minha fantasia na manhã posterior à bebedeira, e que, portanto, deixava o terreno da fantasia para entrar
no da realidade 30 •
A visão da tela pelo narrador-personagem, não só relativiza
as fronteiras entre o impreciso da recordação e a suposta nitidez
da vivência, mas, sobretudo, concretiza a idéia da fantasia como
um quadro que o sujeito pinta para responder ao enigma do desejo do Outro 2 • No momento em questão, o quadro pintado de
30
Ibidem, p.55.
Leia-se a respeito do valor cênico
da fantasia o capítulo "Quadro da
fantasia" de Um olhar a mais ver
e ser visto na psicanálise de
Antonio Quinet
2
Narrar ou perecer: Sérgio Sant' Anna e Ricardo Piglia, sobreviventes
265
Brancatti revela-se inteiramente confundido ao quadro mental
composto pelo crítico, na névoa da noite anterior, em profundo
êxtase desejante por Inês.
Nesse sentido, o caráter cênico da fantasia, tomado como
endereçamento ao Outro, fundamenta a narração do crítico tanto
em sua constante fática de apelo ao leitor, quanto na própria concepção do narrador sobre o caráter teatral da subjetividade como
"palco interior", ou ainda na inter-relação estreita através da qual
conjuga e compreende as linguagens artísticas, como a literatura
que produz, o teatro e a pintura.
Assim a natureza híbrida da obra de Brancatti, entre a pintura, a representação teatral ou perforrnática, bem como a ambigüidade de que se reveste como produto das relações particulares
vividas entre a modelo e o artista, amplia-se pela inclusão, em seu
âmbito, do próprio relato de Antonio Martins, conforme ele mesmo o reconhece:
31
Ibidem, p.119.
E se eu pretendia - embora meus atos e atitudes perante a justiça não pudessem assegurar-me disso - ser absolvido, era em
meus termos, que incluíam essa posse conquistada de Inês, elevando-me da mera condição de fantoche manipulado pelo pintor e sua modelo à de ator consciente dentro da obra, apesar de
eu não ter uma certeza cabal disso, procurando iluminá-lo um
pouco melhor em minha própria obra: este relato3l •
Por sua vez, o próprio relato, no espelhamento que promove entre suas múltiplas dimensões - a crítica, autobiográfica e a
ficcional - pode tornar-se, da mesma forma que a obra do pintor
que o inspirou, passível de desconfiança, como uma espécie de
engenhosa mistificação. É ainda a loquacidade do próprio narrador
que o reconhece:
... não poderá uma obra ser ao mesmo tempo péssima e
provocativa, vulgar e estimulante, tomando relativo, para não
dizer inútil, todo juízo de valor? O que, por sua vez, remetia e
remete a uma outra pergunta: não poderá uma peça crítica tornar-se uma obra de criação tão suspeita e arbitrária quanto A
modelo de Vitório Brancatti?
O paradoxo da arte diante do ecletismo pós-moderno, em
266
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
sua fome de celebridades instantâneas e descartáveis em que lixo
e purpurina se misturam, aqui vem sintetizado pelo histrionismo
do crítico-narrador, hábil em efeitos especiais e labirintos retóricos.
A má-consciência dos torneios e o brilho da argumentação, afiada
em jogos antitéticos e afeita ao absurdo, na cooptação do leitor,
escora-se no reconhecimento de que, neste final de século, "as
fronteiras dos valores acabaram por se diluir32 ", e os parâmetros
escasseiam.
Daí, a radical estetização da vida cotidiana e a escorregadia
confusão entre as construções artísticas ou midiáticas e o efeito
de realidade que produzem. Quando a vida é invadida pelo simulacro, o chão da experiência falseia e o desejo passa a ser siderado
pela imagem, desrealizando o mundo à sua volta .. Como na inusitada des-experiência de Antonio Martins:
... eu verificava magnetizado, que, com o deslocamento da luz,
a tela, o estudo, a instalação, a peça, enfim, de Brancatti, com
a muleta, ia adquirindo, independentemente do valor que se lhe
pudesse atribuir, cor, vida, movimento, sob a luminosidade do
dia agonizante (... ) que, aos poucos, em seus estertores, acabou por incidir também em nós, em Inês, como se a modelo e
personagem da pintura que eu vira na exposição houvesse saltado da obra para estar em meus braços, naquele cenário com seus
móveis e adereços, fazendo de nós imagens de um quadro em
movimento, uma cena para dentro da qual eu fora tragado ... 33
Aqui, ao invés do nascimento de Galatéia da tela para a
vida, tem-se, ao contrário, a absorção de seu amante, um Pigmaleão
rebaixado, ao quadro da fantasia que os engolfa e desmaterializa.
O narrador, feito imagem de si mesmo, acolhe nos braços a Galatéia
que não criou e, por isso mesmo - "tanto autor quanto mero
ator"34 - passa a considerar o processo criminal a que é submetido como "um processo estético, um jogo de xadrez 35 ", entre ele
e o pintor. Por sua vez, Brancatti, porque "dera à luz um enigma
plástico e pictórico, ao colocar o real sob suspeita num tipo de
obra total", termina por desrealizar a vida como "teatro", afinal,
tão bem consumado com a interlocução do narrador-rival.
Piglia, ao palmilhar teoricamente o caminho ficcionalizado
por Sant' Anna, reconhece que "em mais de um sentido o crítico é
32
Ibidem, p.90.
33
Ibidem, p.103.
34
Ibidem, p.106.
35
Ibidem, p.121.
Narrar ou perecer: Sérgio Sant' Anna e Ricardo Piglia, sobrevi ventes
36
PIGLIA, 1994, p.72.
37SANT'ANNA,1997,p.27.
]R
Ibidem, p.118.
39Ibidem,p.l31.
4°PIGLIA, 1994, p 78.
41 SANT'ANNA,1997,p.1l8
42
Ibidem.
o investigador e o escritor é o criminoso", o que o leva a pensar o
romance policial como "a grande forma ficcional da crítica literária"36 Neste "crime delicado", a própria identidade indecisa do
narrador-crítico, manifestada em sua escrita confessional e sinuosa, coleciona os atributos. Ele será tanto o detetive que investiga,
quanto o criminoso que escreve.
Não é por outro motivo que, apesar da absolvição judicial,
na "investigação interna"3? que se auto-impõe, Antonio Martins
conclui pela própria culpa, "uma culpa visceral e atávica, um verdadeiro pecado originaPS ". Com mal disfarçado prazer, o narrador
assume, não só a imputação de "estuprador da arte", como também ajornalística caricatura de "vampiro" que lhe fazem 39 .
E mais, como bom personagem de romance noir, ainda segundo a lógica apontada por Piglia40 , o narrador-detetive, quanto
mais investiga, mais crimes produz. É assim que, despedindo-se
dos leitores, não se peja em confessar a ativa participação que
passa a ter na instalação itinerante e então, internacionalmente
famosa de Brancatti, considerada pelo próprio crítico como "vulgaridade \'oyeurística"41 .
Aos desavisados informo que à entrada da instalação itinerante
de Vitório nunca se deixa da afixar cópias do material de imprensa sobre o caso Inês, com traduções para o alemão, o inglês e o francês. Desses recortes, naturalmente, além dos retratos do artista e sua modelo, constam alguns deste crítico, inclusive a foto que o capturou no instante em que contemplava a
pintura de Brancatti em Os Divergentes. E também a caricatura do crítico enquanto vampiro42 •
De um lado, ambivalente e sinuosa, a máquina de Antonio
Martins, ao contrário da de Macedônio, no romance de Piglia,
procura esquecer o desalento diante da constatação de que:
43
PIGLIA, 1997, p.l14.
Um relato não é outra coisa senão a reprodução da ordem do
mundo numa escala puramente verbal. Uma réplica da vida,
caso a vida fosse só feita de palavras. Mas a vida não é feita só
de palavras, infelizmente também é feita de corpos, ou seja,
dizia, Macedonio, de doença, de dor e de morte 43 .
De outro, pelo brilho retórico, ou ainda pelo verniz de cinis-
267
268
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
mo que a envolve, a máquina crítica de Antonio Martins mobiliza
o arsenal da mistificação pós-moderna, e em sua fútil tagarelice,
termina por mimetizar o bovarismo das ficções eletrônicas, infenso
ao penoso reconhecimento da finitude que, certamente daria às
palavras um outro peso, bem diferente do que hoje têm.
Referências
FUENTES, Carlos. "O milagre de Machado de Assis". Folha de São Paulo,
São Paulo, 01 out 2, p78.000. Mais, p.4-11.
PIGLIA, Ricardo. (1980) "Ficção e Teoria: O escritor enquanto crítico". In:
Travessia 33 Revista de Literatura A estética do fragmento. Curso de PósGraduação em Literatura, Ed. da UFSC, nOI, pp.47-59.
--o
A Leitura da Ficção. In: -. O laboratório do escritor. Trad. Josely
Vianna Baptista. São Paulo: Iluminuras, 1994. p.67-76.
--o
Sobre o Gênero Policial. In: -. O laboratório do escritor. Trad. Josely
Vianna Baptista. São Paulo: Iluminuras, 1994. p.77-80.
--o A cidade ausente. Trad. Sérgio Molina. 2aedição. São Paulo: Iluminuras,
1997.
QUINET, Antonio. Um olhar a mais ver e ser visto na psicanálise. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2002.
SANT' ANNA, Sérgio. Um crime delicado. São Paulo: Companhia das Letras,
1997.
269
Transcriar, transubstanciar: a homenagem dos
"cinco sentidos" de Haroldo de Campos a
Giuseppe Ungaretti
Maria Luiza Berwanger da Silva
(UFRGS)
Iluminadas iluminuras ungarettianas (CAMPOS, 1977, p.81).
Esta a imagem lapidar com que Haroldo de Campos, poeta,
crítico, tradutor e teórico da tradução configura a poética de
Giuseppe Ungaretti, poeta italiano cuja permanência no Brasil, de
1936-1942, revitalizou o imaginário nacional.
Sob esta síntese lúcida de Haroldo, dois caminhos cruzam-se
que encontram na tradução o lugar da memória residual de duas línguas, duas estéticas, duas culturas. Desdobrá-las, distendendo-Ihes as
fronteiras geográficas, textuais e simbólicas, em gesto que, ao traduzir,
reinventa e transcria, eis o que guarda intacto o fundo do olhar do
tradutor brasileiro Haroldo de Campos e de que a recente publicação:
Ungaretti - Daquela Estrela à Outra faz-se amostragem exemplar.
"Si l' amitié projette son espoir au-delà de la vie, un espoir
absolu, un espoir incommensurable, c'est par ce que l'ami est [ ... ]
son double idéal, son autre soi-même, le même que soi en mieux",
diz Jacques Derrida em Politiques de ['Amitié (1999, p.20), fixando na amizade literária o arquivo inapagável dos fios e das
imagens a retecer, das afinidades desenhadas entre os dois
poetas-tradutores. Aproxima-os a visualidade, o efeito da luz
como "paisagem primordial" do mundo a ser decifrado; como se
a produtividade do ato tradutório restituísse à poeticidade do ver
a emergência da palavra poética, ampliada e ressimbolizada. Assim, "Iluminadas iluminuras ungarettianas" tanto remetem ao registro de uma amizade memorável, quanto traçam o caminho a
270
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n. 9, 2006
ser percorrido por Haroldo de Campos na retradução de Ungaretti
para o contexto brasileiro. Percebe-se, neste sentido, que a própria dedicatória em italiano a Haroldo como epígrafe à Daquela
Estrela à Outra: "AI caro Haroldo de Campos / per ricordo di /
qualche momento / passato insieme / ad amare la / poesia sempre
/ nuova e sempre / poesia" (Giuseppe Ungaretti, San Paolo, 12/5/
1967), já demarca para Haroldo o conceito da poesia
auto-referencial que tenta nomear o indizível, pela luminosidade
do olhar que atravessa, redescobre e relocaliza o corpo da letra
sobre o branco da página, da poesia, em uma palavra, que imprime no ato de transladar o de transcriar. "Faz, na aérea paisagem
com que eu possa / Ressilabar as ingênuas palavras" (WATAGHIN,
2003, p.l59), confessa um poema de Ungaretti para demarcar a
força poética da reconfiguração.
Em espaços rompidos, em distâncias redimensionadas, em
novas cartografias redesenhadas pelo brilho das estrelas, dispersas em novas constelações, nesta difração luminosa captada do
poeta italiano, o tradutor brasileiro percebe a imagem do "Odi
Melisso" de G. Leopardi, fundo textual em que Ungaretti mescla à
poeticidade da luz a do escutar, mesclas e ressonâncias de som e
de cor que evidenciam para o tradutor a musicalidade do exercício de "ressilabar", na base do projeto poético nomeado de
Ungaretti: marcas aproximam-se mas não se diluem no trânsito de
alteridades revisitadas. "A alteridade é, antes de mais nada, um
necessário exercício de autocrítica" (CAMPOS, 1983, p.125),
afirma, de forma contundente, Haroldo, sublinhando a produtividade do Outro para o Mesmo como decifrador de línguas, linguagens e imaginários vislumbrados pelo olhar que se volta sobre a
própria intimidade. Singular este retorno do sujeito sobre si mesmo do qual Haroldo recolhe do texto estrangeiro os grãos seminais com que reescreverá e ampliará o significado original.
Leitor-crítico maior dos poetas modernistas representativos do Movimento Antropofágico, compreendera o tradutor brasileiro que a travessia da leitura articulada pela devoração do Outro
mostra ao Mesmo, (ao tradutor visto como Mesmo), o ajuste e a
aclimatação de imaginários como marca primeira da subjetividade
que vê e que se vê concentrando na paisagem uma das figurações
exemplares da intimidade lírica. (Exemplar, na medida em que a
paisagem se faz solo comum, território sensível onde o texto tra-
Transcriar, transubstanciar: a homenagem dos "cinco sentidos" de Haroldo de Campos a Giuseppe Ungaretti
I Refiro-me, especialmente, ao
legado do pensamento francês
sobre o ato tradutório
sintetizado pelo desejo de
distanciamento e pela recusa da
"fidelidade" em tradução.
Poetas-tradutores e tradutores
franceses, como Paul Valéry no
ensaio Traduction en vers des
Bucoliques de Virgile (1944),
a própria obra Sous
l'invocation de Saint Jérôme
de Valéry Larboud (1946), a
reflexão luminosa de Maurice
Blanchot em L'amitié (1971),
Henri Meschonnic com a
Poétique du tradu ire (1999),
síntese dos demais percursos
tradutórios deste autor, do
mesmo modo La Communauté
des traducteurs de Yves
Bonnefoy (2000), paralelas à
contribuição definitiva de
lacques Derrida para a
tradução de textos e de imagens
nas Tours de Babel celebrada
em "Ni passeurs ... ni passants",
esta amostragem exemplar
constitui marcas evidentes do
núcleo duro da reflexão
haroldiana sobre o exercício
tradutório como transcriação.
"Teremos [... ] em outra língua,
uma outra informação estética,
autônoma, mas ambas estarão
ligadas entre si por uma relação
de isomorfia: serão idênticas
enquanto linguagem, mas,
como os corpos isomorfos,
cristalizar-se-ão dentro de um
mesmo sistema" (Apud
CAMPOS, Haroldo de (1992).
Da tradução como criação e
como crítica. In:
Metalinguagem e Outras
Metas. São Paulo: Perspectiva.
p.31-32).
2
duzido, tradutor e discurso tradu tório harmonizam-se em vozes
que se consolidam na recepção crítica da tradução, hoje ).1
Em Haroldo, a busca obstinada do visual, manifestando-se
no desejo de "ir más allá", incide na própria necessidade de
dessimbolizar ou desconstruir para ressimbolizar ou reconstruir o
novo, o diverso, o múltiplo captados do movimento da travessia,
no caso em questão, da Itália-brasileira de Ungaretti. Se o atravessar recompensa a prática do olhar com o desenho de "paragens" (DERRIDA, 1999), estes espaços sulcados não só
rememoram a territorialidade do Mesmo (do texto na língua materna do tradutor), mas também relocalizam e o fazem gravitar em
configurações, línguas e imaginários outros.
Transblanco intitula-se o poema de homenagem de Haroldo
de Campos a Octavio Paz, em jogo intertextual que estabelece
com o poema Blanco do poeta mexicano, mediante este fio do
atravessar, "transluminação", denomina Haroldo a esta operação
que prolonga e difrata o poema Blanco:
Numa tradução como esta, que se passa entre línguas tão próximas e aparentemente solidárias como o espanhol e o português os avatares obsessivos do mesmo se deixam, não obstante,
assaltar pelos azares pervasivos da diferença [... ] é que pulsa,
passional, para além da resignada tradução servil [ ... ], a vocação dialógico-transgressora de toda tradução que se proponha
responder a um texto radical entrando no seu jogo também pela
raiz: arraigando-se nele e desarraigando-se num mesmo movimento de amorosa duplicidade (PAZ; CAMPOS, 1994,
p.185-186).
Assim, Transblanco legitima o conceito da tradução
transcriadora como ato crítico (ou transcrítico), posição que reitera ao longo de sua produção, entretanto já presente na reflexão
inaugural de Metalinguagem e Outras Metas (de 1967), mas que
reescreverá ao longo de sua produção teórico-crítica. 2 Dito de
outro modo: tradução e transcriação constituem duas atividades
convergentes na produção haroldiana, "[nela] a intertextualidade
se converte em intervivencialidade", diz Emir Rodríguez ~lonegal
(1986), para assinalar em Haroldo a produtividade do eixo tradução / intertextualidade / crítica para o transcriar. Mas é na tradução dos versos A Alegria (1914-1919) de Giuseppe Ungaretti,
271
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Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
único conjunto, dentre os demais apresentados, que se faz acompanhar de notas críticas, nas quais Haroldo sistematiza as
reconfigurações transcriativas por ele efetivadas. Substituições
lexicais, de rimas e ampliações do significado constituem a base
das operações assinaladas para acentuar o efeito musical; como se
a musicalidade modulasse, retraduzindo, o visual insuperável. Neste
sentido, uma figura desta prática tradutória se desenha em A Alegria, a qual, tomando como ponto de partida a brevidade e o
despojamento dos versos de Mattina, "M'illumino d'immenso",
figuram a inundação do sujeito lírico pela luz que o difrata sob
forma de movimentos intermitentes.
Luz voltada sobre si mesmo e, ao mesmo tempo, luz de
forte irradiação, Haroldo percebeu com uma clareza surpreendente esta dupla figuração do visual em Ungaretti, expressando a
busca do sentimento de fraternidade: "De que regimento / irmãos?
/ Palavra que treme / na noite / Folha neonata / No ar de espasmo
/ involuntária revolta / do homem presente à sua / fragilidade /
Fraternidade" (WATAGHIN, 2003, p.47). É justamente esta percepção dilatada do luminoso que evidencia para Haroldo a substituição de "m'illumino" no poema Mattina, "m'illumino d'immenso"
por "Deslumbro-me de imenso" (WATAGHIN, 2003, p.57),
deslumbrar-se como condensação e expansão ilimitadas da luz e
da clarividência no espaço da subjetividade.
Com igual lucidez o tradutor-brasileiro também percebeu
que a celebração do fraterno, no poeta italiano, deixa-se articular
pelo desejo de compor uma comunidade simbólica de forte resistência poética à melancolia existencial. "Balaustrada de brisa / para
apoiar noite adentro / a minha melancolia" (WATAGHIN, 2003,
p.4I). Concebido por esta poeticidade da luz prismática, o "recueil"
intitulado A Alegria representa o arquivo do lirismo ungarettiano,
tal como uma voz seminal soprando ao tradutor Haroldo o poder
de escuta do Outro, filtrando-lhe ressonâncias e ecos do imaginário estrangeiro. Assim, os demais livros de Ungaretti, traduzidos e
apresentados nesta última publicação de Haroldo de Campos, tais
como Sentimento do Tempo, O Caderno do Velho e Últimos Dias,
configuram-se à propagação luminosa que encontra, em A Alegria, a matriz poética do ato tradutório. Nela, a angústia de exprimir o inexprimível, atenuada pela própria nomeação deste conflito do dizer pelo recurso à transcriação, garante a retração do
Transcriar, transubstanciar: a homenagem dos "cinco sentidos" de Haroldo de Campos a Giuseppe Ungaretti
3 CAMPOS, Haroldo de;
CAMPOS, Augusto de;
PIGNATARI, Décio (1987).
Teoria da Poesia Concreta:
Textos Críticos e Manifestos
1950-1960. São Paulo: Brasiliense.
273
intraduzÍvel do texto original. Agregar, substituir e deslocar sintetizam o esforço da voz tradutora do Mesmo para diminuir o efeito
de estranhamento provocado pelo imaginário do Outro; como se
a ilusão de decifrar uma língua distante devolvesse ao tradutor o
prazer do eterno retorno ao texto primeiro, mas retorno
revitalizado. Restituir ao Mesmo a certeza crescente e ininterrupta
de avançar e de penetrar na paisagem cifrada de Ungaretti através
do efeito do visual, eis, em uma palavra, a própria "alegria" da
operação tradutória como transcriação experimentada por Haroldo
de Campos. Vista deste ângulo, a tradução do poema Perfections
du Nair, escrito em francês por Ungaretti, permite ao leitor evidenciar uma reconfiguração singular da transcriação.
Se imagem desdobrada da Alteridade a reinventar, Perfeições do Negro aproxima-se do projeto visual da poesia concreta
brasileira 3 por marcas tipográficas múltiplas, se rumor ou
musicalidade quase inaudível propõe ao leitor-tradutor o desafio
de tornar convergente a dispersão gráfica sobre a página, mediante a escuta de uma paisagem matricial articuladora do diálogo
tecido e retecido com A Alegria, então este poema sinaliza para a
transcriação o itinerário de uma sublimação captada da poeticidade
da ausência: certas representações visuais permitirão ao tradutor
brasileiro a retradução dos bastidores desta visualidade. Conhecidos e desconstruídos os mecanismos de fabricação das imagens
deste poema como lugar disseminador do nascimento do poético
em Ungaretti, Peifections duNoirentrecruza o traço da visualidade
ao da negatividade:
ecos
ruídos
nos chegam
às vezes
estamos tão longe
de tudo
(WATAGHIN, 2003, p.IOS)
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Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
sem morada
sem família
sem família
sem amores
sem amigos
sem lembranças
sem esperança
o que vem fazer aqui
(WATAGHIN, 2003, p.113)
Reduz o espaço a uma pedra, a apenas uma pedra da qual o
impacto sobre o sujeito, gerado pelo ato de ser lançada no rio,
provoca o movimento de mergulho na interioridade. Mas é nos
versos de conclusão, na identificação do sujeito a pedra deixada à
margem do rio e recuperada por alguém, que a transpoetização
efetuada por Haroldo de Campos, manifesta-se:
il est nu
comme la nuit
comme une plerre
au/it d'unfleuve
polie
comme une pierre
de volcan
rongée
quelqu'un l'a cuellie
dans sa fronde
ou suis-je tombé
I
mettez doncl de côté
cet objet
perdu
(WATAGHIN, 2003, p.114)
Transcriar, transubstanciar: a homenagem dos "cinco sentidos" de Haroldo de Campos a Giuseppe Ungaretti
nu
como a noite
como uma pedra
no leito de um rio
polida
como uma pedra
onde fui eu tombar
de vulcão
roída
alguém a colheu
em suafunda
põe de lado
este objeto
perdido
(WATAGHIN, 2003, p.115)
Nestes versos, a supressão do articulador "donc", na passagem do francês para o português, reconfigura o texto de Ungaretti:
a presença do "donc" no texto original, significando a tomada de
decisão de não mais recuperar o objeto perdido, uma vez o sujeito
transmutado em pedra e jogado ao rio, esta decisão é subvertida
pela ausência do "donc" no texto traduzido, imprimindo no simbolismo da pedra o traço de objeto de memória que remete ao
lugar de nascimento do poema. Peifeiçães do Negro, deste modo,
concede ao leitor um certo efeito de continuidade do momento
liberado da ordem do tempo e do espaço: redesenha a fisionomia
do sujeito-pedra, transformando-o em grão textual e forma dançante captados da visualidade. Decifra, de certo modo, o enigma
da paisagem lírica ao mostrar o dentro à exterioridade, respondendo ao conflito da expressão poética figurada por Eterno, primeiro poema de A Alegria: "Entre uma flor colhida e o dom de
outra o nada inexprimível" (WATAGHIN, 2003, p.23). Embora
breves, estes versos permitem vislumbrar o grau zero do dizer o
indizível, cifrando-se no prazer de resgatar, pela tradução, a
potencialidade da palavra poética de ressignificação inesgotável.
A suavidade, contudo, modula o processo tradu tório da poesia
ungarettiana por Haroldo: compreende o tradutor, que toda prática do transcriar inicia pela percepção e pelo exame dos eixos arti-
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276
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
culares do texto a traduzir. Deste modo, princípios como o da
indeterminação como traço do inexprimível, o do "efeito de fratura abissal", assim denominado pelo próprio Ungaretti, para marcar tonalidade ou mudança de intensidade agregada a uma palavra
em determinada linguagem e, sobretudo, a configuração do fragmento como gênero e como imagem da significação poética múltipla, estes traços da poeticidade ungarettiana encontram a ressonância perfeita na página retraduzida por Haroldo, traços que dão
a ver, na prática, a composição de "formas significantes em um
horizonte móvel, num virtual ponto de fuga" no rastro da
"dispersion volatile de Mallarmé" (CAMPOS, 1987, p.60); como
se a leitura simbólica do fazer poético demarcasse para Haroldo o
caminho do transimaginar, ou, como o dirá em uma nota
introdutória a uma obra compartilhada com seu irmão Augusto de
Campos: "Traduzir e trovar são dois aspectos da mesma realidade. Trovar quer dizer achar, quer dizer inventar. Traduzir é
reinventar [... ] O caráter concluso da obra feita fica provisoriamente suspenso e o fazer reabre o seu processo, refaz-se na dimensão nova da língua do tradutor" (CAMPOS, 1987, p.56).
Trata-se de visualizar a operação transcriativa como uma
das formas de retrair, relativizando, o efeito de estranhamento
experimentado pelo tradutor. Assim, resistir ao impacto da distância a ser atravessada entre duas línguas, dois imaginários e duas
subjetividades de sentidos apenas insinuados no texto a ser traduzido, eis o primeiro gesto que o ato de transcriar concede ao Mesmo
e ao Outro. Se desbabelizado e transgredido, todo texto estrangeiro provoca a ilusão da completude, difratado e ampliado restitui ao
texto original aquele efeito de sublimação de que se reveste toda
cumplicidade, no fundo inapagável de duas memórias aproximadas.
Mais ainda, entrelaçá-las, tomando-as "metáfora viva" da poética
do dom e da doação mútua, eis o segundo gesto a que remete o
exercício da transcriação de Ungaretti por Haroldo de Campos.
Plenitude tradutória ou novos itinerários que o prazer do
texto ressimbolizado vislumbra para o leitor-tradutor? Amostragem
exemplar de uma paisagem transcriada, Daquela Estrela à Outra,
como última publicação de Haroldo de Campos, não só transparece
este "bonheur du traducteur", mas também tece, a seu modo, um
diálogo singular com a produção poética e crítica haroldiana. Vista deste ângulo, a intersecção de La Educación de los Cinco Sen-
Transcriar, transubstanciar: a homenagem dos "cinco sentidos" de Haroldo de Campos a Giuseppe Ungaretti
Ver referência e citações em
SANTAELLA, Lúcia. Transcriar, Transluzir, Transluciferar: a teoria da tradução em
Haroldo de Campos. In:
MOTTA, Leda Tenório da
(Org.) (2005). Céu acima: para
um "tombeau" de Haroldo de
Campos. São Paulo: Perspectiva I FAPESP. (Coleção
Signos, 45). p.221-232.
4
tidos (tradução, 1990), imagem-síntese da poética de Haroldo com
artigos periodísticos (Para além do princípio da saudade, Folha
de São Paulo, 1984, e A transcriação do Fausto, Folha de São
Paulo, 1981, entre outroS)4 já traz em gérmen o projeto da profunda ressonância onde partes e fragmentos reflexivos
harmonizam-se transiluminando-se reciprocamente_ E, em voz que
nomeia, mostrando, os lugares teóricos, críticos e poéticos por
que faz transitar seu processo de transimaginação, a matriz
haroldiana rememora a presença francesa, por vezes inconfessa;
convoca-a por constituir a constelação de marcas, traços e sinais
colhidos da tradução/retradução do Coup de dés de Mallarmé, verdadeira arte tradutória com que Haroldo brinda a poesia brasileira:
recorta da lembrança francesa o próprio dom da visualidade
transgredida pela poética da escuta, dos modos de escuta a que a
escritura da Educación de los Cinco Sentidos lhe permitiu ascender.
Visto sob a transparência francesa, se a recente publicação
de Paul Ricoeur, intitulada Sur la traduction (2004), sublinha a
superação do sentimento do "deuil" pelo tradutor, inserindo-se,
pois, este intelectual na comunidade de pensadores-transcriadores
franceses, considerados como "réelles présences" da reflexão de
Haroldo de Campos já evocadas, é, contudo, na leitura simbólica
e cristalina de Paul Ricoeur pela crítica uruguaia Lisa Block de
Behar (2005) que a operação tradutória de Ungaretti por Haroldo
encontra a luz e a legitimação definitivas:
Si uma obra puede cambiar el curso deI mundo, tal vez no seria
demasiado exagerado afirmar que también una palabra puede
cambiar el discurso deI mundo o el discurso, tout court. Y, en
esta situación de hoy, esa palabra sería travesía o los
movimientos que su acción implica. Ambivalente o
contradictorio, el término no puede sustraerse a ciertas
duplicidades lexicológicas que no eluden los pliegues, que no
ocultan una significación excéntrica - o varias - que se presta
a la preferencia de un estatuto literario privilegiado y que la
pluralidad deI diccionario avaIa (BEHAR, 2005, p.99-1 00).
Por sua vez, esta imagem do "atravessar" como figura do
transcriar guarda, retida, em seu núcleo, um outro grão do pensamento (sempre iluminado e iluminador) de Lisa Block de Behar,
expresso ao longo de sua produção teórico-crítica e sintetizado
277
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Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
na obra sobre Haroldo de Campos, Don de poesía (2004), sob sua
organização, quando diz na Introdução:
Sus escritos teóricos afines a su obra poética, las convergencias
de sus transcreaciones, la caligrafía ideogramatical que configura la visualidad y verbalidad en una misma emergencia relevan
la previsión profética que Haroldo, el poeta que sabe,
emblematiza en escritura en un verso que se ve: "escrever é
uma forma de 'ver'" (BEHAR, 2004, p.20).
Dom do visual, pois, como dom da tradução poética, em
Mestre Haroldo, o incessante desejo de legar ao nacional e ao
transnacional este "don du poeme" faz retornar a La Educación
de los cinco sentidos, onde Le don du poeme, ao evocar um poema de Mallarmé, configura a sedução de abrir o próprio ouvido
deixando-se invadir pelo ouvido do Outro:
un poema comienza
allí donde termina:
el margen de la duda
súbito inciso de geranios
ordena su destino
[ ... ]
domo de signos: y el poema comienza
mansa locura cancerígena
que exige estas Iíneas aI blanco
(allí donde termina)
(CAMPOS, 1990, p.73)
Se o diálogo estabelecido com Mallarmé constitui o solo
comum da atividade tradutória tanto de Giuseppe UngarettP quanto de Haroldo de Campos, a travessia do texto ungarettiano pelo
poeta-tradutor brasileiro e a conseqüente confluência na página
mallarmaica desenham um espaço outro, além dos laços de amizade, um território do imaginário em que duas poéticas
revitalizam-se pela certeza do texto do Outro transcriado. No fundo
das "Iluminadas iluminuras ungarettianas", a luz concentrada como
5 Ver: Conferências e ensaios
críticos de Giuseppe Ungaremi,
compilados por: WATAGHIN,
Lucia. Raz[jes de uma poesia.
São Paulo: EDUSP, [s.d.].
Transcriar, transubstanciar: a homenagem dos "cinco sentidos" de Haroldo de Campos a Giuseppe Ungaretti
medida da distância entre estrelas, expressa a singularidade do
gesto de transubstanciar como homenagem maior que Haroldo de
Campos doa ao poeta italiano, a quem dedica o poema
Transideração:
Transideracão
Ungaretti conversa com Leopardi
1984
Um leão: ruivando arde na voz do leão - Leopardi
(céu noturno em Recanati)
virando constelação:
Odi, Melisso ... E o leão
resgata a um fausto de estrelas
caídas, a lua jamais cadente
e a Ursa, magas centelhas.
Depois, o leão (a Leopardi
tendo dado o que lhe cabe)
passa a medir o infinito
ou desmedi-Io: do longe
daquela estrela (tão longe)
ao longe daquela estrela.
(CAMPOS, 2003, p.194).
Neste poema, a evocação de Leopardi tanto celebra o fio
memorial da paisagem ungarettiana, quanto a transgride. No verso final, o gesto de "medir o infinito" significando a passagem de
constelações nomeadas e conhecidas (asa, Ursa Maior) a desconhecidas retoma ao Don du Poeme da Educación de los Cinco
Sentidos. Em Transideración, Haroldo investe no gesto de "atravessar" o ato de transcriar para "medir el infinito", representando,
através deste ato, não só a figura do tradutor-ressimbolizador ou
"le maitre secret de la différence des langues" como o vira Maurice
Blanchot (1971), mas, sobretudo, como aquele que, ao emprestar
seus "cinco sentidos" à visualidade da paisagem transiderada pela
dança de estrelas como dança de palavras: "O tradutor de poesia
é um coreógrafo da dança interna das línguas tendo o sentido [... ]
não como meta linear de uma corrida termo-a-termo, [... ], mas
279
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Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
como um bastidor semântico ou cenário pluridesdobrável dessa
coreografia móvel" (p.230), dá a ver, além da homenagem, no
texto transcriado ou transubstanciado, o lugar de transferências
estéticas e culturais.
Céu acima: para um "tombeau" de Haroldo de Campos
(2005) como a mais recente publicação no Brasil, composta por
uma constelação de vozes nacionais e transnacionais, restitui ao
transcriador Haroldo a própria homenagem que este tradutor brasileiro prestara a Ungaretti. O prefixo "trans" de "transcriação",
simbolizado pelo título "Céu acima", recolhe o poema que lhe
dedica o poeta paulista Horácio Costa, discípulo dileto de Haroldo
de Campos, a continuidade da "transideración" inapagável:
- Conecta com isso.
E é uma pedra.
- Conecta com isso.
É terra.
- Conecta com isso.
É nuvem. Tem a forma do dragão.
- Conecta com isso.
É onda. Tem a forma da onda.
- Conecta com isso.
É chip. Parece Shangri-Iah.
Não é sílica. Nem silêncio. Nem palavra.
Conecta com isso"
(COSTA, 2005: 307).
Iluminadas iluminuras horacianas.
Transcriar. transubstanciar: a homenagem dos "cinco sentidos" de Haroldo de Campos a Giuseppe Ungaretti
Referências
BEHAR, Lisa Block de. Contradictorias aventuras y desventuras de la travesía.
Revista Brasileira de Literatura Comparada, Porto Alegre: Abralic, n.7, 2005,
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CAMPOS, Haroldo de. A arte no horizonte do provável. São Paulo:
Perspectiva, 1977.
Da razão antropofágica: diálogo e diferença na cultura brasileira. Boletim
Bibliográfico, v.44, n.14, 1983, p.107-125, jan.-fev.
--o
--o Da tradução como criação e como crítica. In: --o Metalinguagem' e
Outras Metas. São Paulo: Perspectiva, 1992.
--o Da transcriação: poética e semiótica da operação tradutora. In:
SANTAELLA, Lúcia; OLIVEIRA, Ana Cláudia. Semiótica da Literatura.
São Paulo: EDUC, 1987. (Série Cadernos PUC, 28). p.53-74.
--o La educación de los cinco sentidos. Trad. de Andrés Sánchez Robayna.
Barcelona: Ambit Serveis Editorial, 1990.
--o Ungaretti: O Efeito de Fratura Abissal. In: WATAGHIN, Lucia (Org.)
Ungaretti - Daquela estrela à outra. Trad. de Haroldo de Campos e Aurora F.
Bernardini. Cotia: Ateliê Editorial, 2003. p.187-195.
CAMPOS, Haroldo de; CAMPOS, Augusto de; PIGNATARI, Décio. Teoria
da Poesia Concreta: Textos Críticos e Manifestos 1950-1960. São Paulo:
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COSTA, Horácio. A fronteira do dizer. In: MOTTA, Leda Tenório da (Org.).
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DERRIDA, Jacques. Politiques de l'Amitié. Paris: Seuil, 1999.
MOTTA, Leda Tenório da (Org.). Céu acima: para um "tombeau" de Haroldo
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PAZ, Octavio; CAMPOS, Haroldo. Transblanco. São Paulo: Siciliano, 1994.
SANTAELLA, Lúcia. Transcriar, Transluzir, Transluciferar: a teoria da
tradução em Haroldo de Campos. In: MOTTA, Leda Tenório da (Org.) Céu
acima: para um "tombeau" de Haroldo de Campos. São Paulo: Perspectiva /
FAPESP, 2005. (Coleção Signos, 45) p.221-232.
281
282
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
WATAGHIN, Lucia COrg.). Ungaretti - Daquela estrela à outra. Trad. de
Haroldo de Campos e Aurora F. Bernardini. Cotia: Ateliê Editorial, 2003.
--o Razões de uma poesia. São Paulo: EDUSp, [s.d.].
283
As ironias da ordem em Carlos Drummond
de Andrade e Fernando Pessoa
Maria Esther Maciel
(UFMG)
o que não está ordenado de um modo definitivamente
provisório o está de modo provisoriamente definitivo.
(Georges Perec)
A palavra inventário designa, como se sabe, a "relação dos bens deixados por alguém que morreu", "o documento
ou papel em que se acham relacionados tais bens", "lista discriminada, registro, relação, rol de mercadorias, bens, etc.", e, em sentido lato, "descrição ou enumeração minuciosa de coisas". Para
além das demarcações do dicionário, é possível ainda identificar
uma afinidade explícita do termo com as palavras "inventolinvenção" (coisa imaginada, criada, feita, engendrada), o que o levaria
a se aproximar - por vias oblíquas - também dos campos do fazer
poético e ficcional.
É precisamente enquanto combinatória desses sentidos possíveis da palavra que se pode falar de uma "poética do
inventário" na poesia de Carlos Drummond de Andrade, visto que
esta se presta tanto ao gesto taxonômico de inventariar coisas
quanto o de inventar formas poéticas alternativas, híbridas, a partir de suas inúmeras listas, catálogos, recenseamentos e enumerações. E mais: de reinventar ironicamente os dispositivos
institucionalizados de classificação, evidenciando que os sistemas
de organização das coisas e do conhecimento - não obstante atendam à necessidade humana de dar sentido à multiplicidade e ao
caos do mundo - são também mecanismos legitimados pela lógica
burocrática do mundo moderno e contemporâneo, com a função
de ordenar, controlar, hierarquizar e rotular nossa vida cotidiana.
Sob esse prisma, são exemplares os poemas drummondianos que
recriam - por vias muitas vezes insólitas - inventários jurídicos,
receitas e bulas de remédio, instruções para uso de produtos, cadastros e listas administrativas, apólices, classificados das páginas
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Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
amarelas, levantamentos estatísticos e descrições imobiliárias, com
o propósito de criticar tais formas de controle e, ao mesmo tempo, desestabilizá-Ias pela força da poesia.
Soma-se ainda a esse exercício irônico que Drummond
faz das classificações um outro gesto taxonômico, de ordem um
tanto distinta: o de registrar/catalogar as coisas e lembranças do
passado, conferindo-lhes o papel de "testemunhos" (aqui, no sentido arqueológico do termo) de um tempo irrecuperável, de modo
a fazê-las durar, como diria Jorge Luis Borges, "para além do
nosso esquecimento". Isso confere a muitos dos inventários e catálogos drummondianos também um traço afetivo, dado que eles
acabam por compor uma espécie de narrativa íntima da história
do próprio poeta e de seus diversos "eus" ou personagens poéticos. Nesse sentido, pode-se dizer que tais inventários configurariam o que Philip Blom, no livro Ter e manter- uma história íntima
de colecionadores e coleções, chamou de "teatro da memória,
uma dramatização e uma mise-en-scene de passados pessoais e
coletivos, de uma infância relembrada e da lembrança após a morte". 1 Isso porque eles garantem a permanência dessas lembranças
ao fixarem em um espaço comum os objetos que as evocam.
Um olhar diacrônico pela vasta produção poética de
Drummond permite-nos identificar esses procedimentos em várias fases de sua poesia, o que atesta o impulso catalogador
drummondiano como uma das linhas de força de sua obra. Já em
Alguma poesia, de 1930, o levantamento de objetos que circundam existências ou definem paisagens íntimas de pessoas se faz
ver, como no poema "Família", no qual a listagem de todos os
elementos que fazem parte do universo prosaico de uma famíl ia é
o que justifica a existência das próprias pessoas da casa. Papagaio, gato, cachorros, galinhas, móveis, aparelhos, cigarros, bilhetes integram o espaço da casa, convertidos em referências vitais de um pequeno grupo composto de três meninos, duas meninas, uma cozinheira, uma copeira e "uma mulher que trata de
tudo". Procedimento esse que, em A rosa do povo (1945), se mostra
de maneira mais clara, haja vista a enumeração caótica de tudo o
que, segundo o poeta, define o presente do mundo de "homens
partidos", no poema "Nosso tempo"; a bela seqüência dos traços
que restam do medo, do asco, dos gritos gagos e da rosa, em
"Resíduo"; os registros administrativos da "Noite da repartição",
lBLOM, Philipp. Ter e manter
- uma história íntima de
colecionadores e coleções.
Trad. Berilo Vargas. Rio de
Janeiro: Record, 2003, p. 219.
As ironias da ordem: Carlos Drummond de Andrade e Pemando Pessoa
2GOODY.Jack.The
domestication of the savage
mind. Cambridge: Cambridge
University Press. 1995. p.74-111.
dentre outras enumerações de coisas e palavras variadas. Isso,
para não mencionar o rol de palavras do poema "Isso é aquilo",
de Lição de coisas (1962), que coloca em evidência a lista como
um dispositivo taxonômico importante, capaz de reforçar o caráter paratático da linguagem poética.
Vale lembrar que o ato de inserir palavras, objetos, animais,
eventos e nomes de pessoas em listas foi uma das primeiras práticas taxonômicas de que se tem notícia nas civilizações alfabetizadas, figurando como o procedimento arquivista mais elementar
advindo da influência da escrita nas operações cognitivas. Como
explica Jack Goody2 , a história documentada dos primeiros séculos das culturas escritas mostra que as listas floresceram exatamente nesse período, tomando a forma de longas tiras feitas de
madeira, pedra, argila, pedaços de pano ou qualquer outro material sólido, nas quais eram gravadas as palavras em série, com
diferentes propósitos: desde a simples nomeação das coisas até
um levantamento mais exaustivo destas. Listas administrativas,
funerárias, literárias, religicsas e lexicais são encontradas em várias culturas antigas, sendo que algumas já funcionam como uma
espécie de protodicionários ou enciclopédias embrionárias. Muitas cobriam um vasto campo de observações astronômicas, climáticas, medicinais. Outras, de caráter lúdico ou didático, já consistiam no levantamento de nomes de pessoas ou coisas começados
com uma determinada letra do alfabeto.
Ao adotar a estrutura de lista/catálogo em alguns de seus
poemas, como o "Isso é aquilo", Drummond confere um sentido
lúdico ao ato de listar, ao mesmo tempo em que deste subtrai a
dimensão meramente pragmática, de ordenação, inserindo-o no
espaço móvel e cambiante da poesia. Além disso, cria uma configuração alternativa para o poema, assentada em princípios
paratáticos e que tem no jogo continuidade/descontinuidade a sua
base. Se toda lista é contínua, isso acontece porque enumera, apresenta as palavras em seqüência. Mas por não oferecer nexos sintáticos entre as palavras listadas, caracteriza-se também pela
descontinuidade. Seus traços constitutivos são, portanto, paradoxais, como aponta ainda Goody, ao arrolar em um parágrafo as
principais características de uma lista:
A lista aposta mais na descontinuidade do que na continuidade;
285
286
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
ela depende de um lugar físico, de uma local; ela pode ser lida
em diferentes direções, de cima para baixo, de baixo para cima,
da esquerda para a direita e vice-versa; ela possui um começo
bem marcado e um fim preciso, ou seja, uma margem, uma
borda, como uma tira de pano. E o que é mais importante, ela
estimula a ordenação dos itens de que se compõe, através de
números, pelo som inicial, por categoria, etc. Além disso, a
existência de margens, externas e internas, traz grande visibilidade para as categorias, ao mesmo tempo em que as toma mais
abstratas 3 •
Pode-se dizer que a lista, como dispositivo paradoxal, foi
usada de diferentes formas por Drummond em A falta que ama
(1968) -livro em que a poética do inventário (em todos os sentidos
apontados no início deste texto) se dá a ver de forma mais explícita.
Basta citarmos o poema "Bens e vária fortuna do padre Manuel
Rodrigues, inconfidente'''' ,que apresenta uma espécie de assemblage
de objetos, ou como disse José Guilherme Merquior, "um readymade lírico tipicamente surreal-modernista", em que a listagem dos
bens materiais de um clérigo ("inimigo da Rainha / a perpétuo degredo condenado") mantém as coisas em um estado de concretude irônica, para não dizer inusitada, como se pode ver no fragmento de um
dos dois inventários dos bens do padre inconfidente:
3 manustérgios
1 corporal
1 brinco com olhinhos de mosquito
2 sanguinhos 3 amitos
1 casaca de lemiste forrada de tafetá roxo
1 ângulo
3 tomos de Cartas de Ganganelli
2 chapinhas de ouro de pescocinho
4 manípulos
2 casulas
1 lacinho de prata com pedras amarelas
1 leito grande de pau preto torneado
1 mantelete
1 bacia grande que terá de peso meia arroba
1 dita pequena de urinar
1 tomo de Obras Poéticas de Garção
( ... )
(p.357)
'Idem,p .. 81.
"Todas as citações de poemas de
Drununond foram extraídas de:
ANDRADE, Carlos Drununond
de. Poesia eprosa. Rio de Janeiro:
Nova Aguilar, 1988.
As ironias da ordem: Carlos Drummond de Andrade e Fernando Pessoa
'ARTIERES,
Philippe.
Arquivar a própria vida In:
Arquivos pessoais. Revista
Estudos Históricos. Rio de
Janeiro: Ed. FGV, vol. 11, n°.
21,1998, p.3. Disponível em:
http://www.cpdoc.fgv.br/
revistaJarQ/234.pdf (última
consulta: 30/03n006).
Sem dúvida, se o conjunto dos bens do padre diz algo de
quem os possui, dado o sabido poder que as coisas têm de evocar
nossas referências e gostos particulares, a seleção e a ordenação
dos objetos na lista funcionam como formas de arquivamento da
própria existência do "personagem", j á que, como apontou Philippe
Artieres em suas reflexões sobre a constituição de arquivos particulares, "a escolha e a classificação dos acontecimentos determinam o sentido" que se deseja dar a uma vida. 5 Por outro lado. a
estranheza das palavras que nomeiam muitos dos objetos da lista
acaba por funcionar como elemento de humor, capaz de abalar a
função pragmática (ou burocrática) do inventário, inserindo-o na
esfera da invenção.
Em muitos outros poemas de livros subseqüentes ao AJalta
de ama, há inumeráveis listas de objetos, como a dos trastes "para
não serem consertados" (tamborete, marquesa, catre, selins, caçambas, embornais, cangalhas, etc.) em um compartimento de uma
loja fechada, no poema "Depósito"; o extenso rol de coisas (que
vão de sedas ajornais e rondós parnasianos) que constitui o que o
poeta chama, não sem certa ironia, de "Império Mineiro"; os artefatos que circundam e definem a "vidalvidinha" de uma solteirona; a lista das mais de cem namoradas mortas no poema
"Retrolâmpago de amor visual"; além da série de selos de uma
coleção (no poema "O prazer filatélico"), a qual é capaz de permanecer apenas até que chegue ao colecionador "o tédio de possuir". Registre-se ainda o poema "Escaparate", de Boitempo (1968)
no qual a relação de objetos dispostos sobre um armário sugere
toda a atmosfera de doença que predomina no quarto antigo de
alguém na iminência da morte:
Sobre o escaparate
preto
o vidro de óleo de rícino
a caixinha de cápsulas
o copo facetado e
a colher inclinada.
Sobre o escapara te
o relógio de algibeira
o bentinho vermelho
e o terço da aflição
a chama
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Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
da vela de espermacete vigiando
no castiçal de prata.
Dentro do escaparate
o ágate expectante do penico.
Em volta do escaparate
a negra cólica da noite - Estou morrendo.
(p.490-491)
No caso específico desse poema, o inventário de coisas atesta
a vida (e também a morte) do sujeito que as possui ou a que elas
se subordina, reiterando, por vias poéticas, aquilo que Jean
Baudrillard afirmou a propósito dos objetos de uma coleção, ou
seja, que os "distintos do modo como deles fazemos uso em um
dado momento, representam algo muito mais profundamente relacionado à subjetividade 6. O que, inclusive, já havia sido, muito
antes, atestado por Walter Benjamin em seu famoso ensaio sobre
a arte de colecionar, ao mostrar que o colecionador é aquele que
instaura "uma relação com as coisas que não põe em destaque o
seu valor funcional ou utilitário, a sua serventia, mas as estuda e
as ama como o palco, como o cenário de seu destino" 7. Creio ser
esta a relação de Drummond com muitos dos objetos que ele arrola em sua poesia, como se estes tivessem a potencialidade de
narrar uma vida, a qual também pode ser compreendida pelo uso
ou desuso que se faz dela. E é nesse sentido que caberia aqui uma
breve referência ao escritor francês Georges Perec, exímio "colecionador", para quem os objetos da vida cotidiana narram a história das pessoas e lhes servem de memória.
Afeito a verbetes de enciclopédia, levantamentos estatísticos, glossários, dentre outras modalidades c1assificatórias, Perec
- que foi um dos mais ativos integrantes do grupo francês OULIPO
(Ouvroir de Littérature Potentielle), surgido nos anos 60 reinventou esses procedimentos em seus romances, a partir de
critérios incomuns de ordenação. Além disso, desenvolveu uma
instigante teorização não-convencional dos sistemas de classificação no livro Penser/Classer, evidenciando "o quão tentador é o
afã de distribuir o mundo inteiro segundo determinados códigos
capazes de reger o conjunto dos fenômenos" 8, embora saibamos
que "lamentavelmente não funciona, nunca funcionou, nunca funcionará". Ou seja, ele reconhece o fascínio do ato de classificar ao
6BAUDRILLARD, Jean. O
sistema dos objetos. Trad.
Zulmira Ribeiro Tavares. São
Paulo: Perspectiva, 2000, p. 94.
'BENJAMIN, Walter. Desempacotando minha biblioteca.
Obras escolhidas 11 - Rua de
mão única. São Paulo:
Brasiliense, 1987, p. 28.
• PEREC, Georges. Penser/
classer. Paris: Éditions du
Seuil, 2003, p. 153.
As ironias da ordem: Carlos Drummond de Andrade e Fernando Pessoa
9
Idem, p. 190.
IOPEREC, Georges. A vida modo de usar. Trad. Ivo
Barroso. São Paulo: Companhia
das Letras, 1991.
IICf. MACIEL, Maria Esther. A
memória das coisas: ensaios
de literatura, cinema e artes
plásticas. Rio de Janeiro:
Lamparina, 2004, p. 97-\09.
289
mesmo tempo em que proclama a instabilidade dos critérios
classificatórios. Mas admitir tal instabilidade, segundo ele, "não
impedirá que sigamos durante muito tempo classificando os animais pelo seu número ímpar de dedos ou por seus chifres ocos" 9 .
E é a consciência desse paradoxo que o leva a adotar o humor e a
ironia para subtrair da classificação suas funções utilitárias, libertando-a para usos imaginativos.
No romance Vida modo de usa rIo ,o escritor conta a vida de
seus personagens a partir das coisas que os rodeiam, detalhando
tudo o que define e compõe o prédio que habitam, além de se
valer de vários recursos taxonômicos como base da narrativa.
Cadeiras, armários, cabides, estantes, livros, cômodas, objetos de
arte, relíquias, malas, latas, utensílios domésticos, produtos de limpeza, dentre inúmeros outros artefatos que confirmam o triunfo
da civilização da propriedade e do consumo, são exaustivamente
listados e descritos por ele, compondo um inventário que - pelo
excesso de ordem - acaba também por perder sua própria eficácia
ordenadora diante da proliferação excessiva dos objetos e detalhes. Para o escritor, se, por um lado, a vida foi reduzida a manuais de instrução, as coisas, por outro, em seu poder de se integrar
ao mundo humano, são capazes também de funcionar como registro sólido e incontestável de nossa presença na terra. O que, como
já foi dito, também se confirma na poesia de Drummond.
Aliás, a descrição de objetos cotidianos que constituem o
espaço de uma casa ou de um edifício também se faz presente em
vários poemas drummondianos, como já tive a oportunidade de
mostrar em um ensaio de 2004"\1 . Sob esse prisma, vale a pena
citar aqui o poema "Torre sem degraus", um poema em prosa que
encerra o A falta que ama, totalmente estruturado enquanto uma
sucessão de fragmentos enumerados, cada um correspondendo
ao andar do prédio que nos é apresentado. Lembrando, ainda que
obliquamente, o edifício de Perec, a torre infinita de Drummond
funciona como um catálogo de objetos, pessoas, animais, acontecimentos, textos, documentos, dentre outras coisas, aparentemente
organizado pelos caracteres numéricos. Entretanto, o absurdo que
dele emerge acaba por arruinar' a ordem da enumeração, convertendo-a em uma espécie de "deri va aleatória", para usar aqui uma
expressão de Flora Sussekind.
Classificar converte-se, assim, em uma forma paradoxal de
290
Revista Brasileira de Literatura Comparada, 0.9, 2006
o poeta burlar os próprios procedimentos legitimados de classificação, já que para ele, se as coisas podem ser postas em ordem
segundo certos princípios reconhecidos cientificamente, elas podem também deixar-se reger internamente por uma "ordem muda",
movida por regras estranhas ou regra nenhuma.
É preciso desconfiar das classificações, ele parece...,-os dizer. Sobretudo quando elas são colocadas a serviço do poder econômico e político, como os classificados de jornais e pág:nas amarelas, os recenseamentos, os anuários estatísticos e as fichas
cadastrais. Isso se explicita em poemas como "Jornal de serviçoleitura em diagonal nas 'páginas amarelas' , composto de nove listas de produtos à venda, sejam eles pessoas (a exemplo dos "peritos em exames de documentos ou em imposto de renda"), sejam
doenças, condimentos, máquinas e fogos de artifício. Em "Receituário sortido", é a vez das receitas médicas, com listas lúdicas e
irônicas de remédios para os tensos, insones, píssicos e ansiosos
do Brasil moderno. O tom pragmático, próprio dos boletins
metereológicos e estatísticos, é o que predomina também em
"Diamundo - 24h de informação na vida do jornaledor", em que
são arrolados nomes e temperaturas de várias cidades do mundo,
índices de poluição, anúncios imobiliários, indicadores econômicos, censos de casos de afogamento, previsões astrológicas, numa
nítida alusão paródica aos clichês taxonômicos dos diários, boletins e informativos institucionais do mundo contemporâneo.
Inventariar aqui todos os poemas em que Drummond burla,
com suas classificações paradoxalmente antitaxonômicas, os discursos oficiais e os clichês do discurso burocrático-institucional
seria um trabalho exaustivo. O fato é que ele, ao construir sua
poética do inventário, não deixa de se inserir em uma instigante
linhagem de escritores modernos/contemporâneos, como Borges,
Calvino e Perec, que se valem dos sistemas de classificaçã%rdenação para criarem seus próprios anti-sistemas, os quais
desestabilizam a própria lógica ordenadora que os define. Uma
linhagem na qual poderia se inserir também, em certa medida, o
português Fernando Pessoa que, ao adotar ostensivamente em seus
ensaios e contos esquemas de c,.tegorização científica, converte o
excesso de ordenação no que Philip Blom chamaria de "caóticas
conflagrações de curiosidades". 12 Para não falar nas listas
heteróclitas que compõem os longos poemas de Álvaro de Cam-
As ironias da ordem: Carlos Drummond de Andrade eFernando Pessoa
l' BLOM, Philipp. Ter e
manter - urna história íntima
de colecionadores e coleções.
Trad. Berilo Vargas. Rio de
Janeiro: Record, 2003, p.1 07.
PESSOA, Fernando. Obra
Rio de Janeiro: Nova
Aguilar, 1982, pp. 706-708.
13
poética.
pOS, que à feição da poesia de Walt Whitman, estariam naquela
categoria definida por Leo Spitzer como enumeração caótica. Aliás,
ao criar toda a sua constelação heteronímica, com descrições, demarcações, mapas e classificações, não estaria Pessoa também
criando um inventário dos outros de si mesmo?
No que se refere especificamente à sua prosa, é impressionante a proliferação de dispositivos classificatórios metodicamente ordenados em caracteres alfanuméricos e com divisões/subdivisões em várias categorias. Em praticamente toda a sua teorização
do Sensacionismo, esse aparente rigor na formulação dos pressupostos estéticos do movimento se impõe, como que dando um
revestimento científico, racional, a idéias e dizeres muitas vezes
insólitos e paradoxais. O que se repete de forma mais explícita no
Heróstrato, um verdadeiro tratado sobre a celebridade, o talento
e o gênio, cheio de tipologias, divisões e tripartições que, pelo
acúmulo, acabam por beirar a desordem, como, por exemplo, a
classificação que ele faz dos homens célebres, considerando os
tipos frustrados e os tipos imperfeitos. Mas é no interessantíssimo
fragmento "Um paranóico com juízo" 13, tido como um texto preparatório da "novela policiária" O caso Vargas, que o rigor excessivo das categorizações é levado aos limites (ou deslimites) do
llOllsense. Com o propósito de descrever e analisar a patologia de
um criminoso, Pessoa constrói o retrato de um assassino, com
base em uma detalhada pesquisa taxonômica do comportamento
humano, que inclui:
"(1) Tipo de inibição: a) receio (não), b) moral (não), (c) fraqueza de vontade (sim). (2) Fraqueza de vontade: (a) da vontade impulso (sim), (b) da vontade de inibição (não), (c) da vontade de coordenação (não) - disposição às avessas destas (isto
é, b, c, a). (3) Fraqueza da vontade do impulso de fraqueza: (a)
por debilidade mórbida, como no idiota (... ) (b) por debilidade
constitucional, como no vadio ... (c) por excesso de atividade
mental. ( ... )" (p. 706-707)
As subdivisões se seguem vertiginosamente, apresentando
modelos de "atividade mental que produz a falta de vontade de
impulso", tipos gerais de concentração, tipos de concentração
emotiva, de emoção repulsiva, de emoção defensiva, etc., até chegar a uma espécie de emoção que "tem o temperamento paranói-
291
292
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
co no fundo com o ocasional na superfície". 14 E o narrador explica esta última categoria como "um paranóico inteiramente lúcido,
isto é, tem todos os característicos da paranóia, menos o delírio
central, que de fato constitui a paranóia." E, entre parênteses, acrescenta: "(Se me é permitido usar de um paradoxo, direi, em conclusão desta série de raciocínios, que o autor deste crime é um
paranóico com juízo)" .15 Os limites desse texto inclassificável que aparece como um "conto de raciocínio", mas prescinde de um
enredo e se furta às demarcações do gênero narrativo - se circunscrevem unicamente a essa classificação inusitada, a qual acaba por instaurar o caos dentro da própria ordenação que a define.
Em decorrência da proliferação dos detalhes e subdivisões, as próprias categorias científicas (ou falsamente científicas) perdem a
eficácia enquanto procedimento taxonômico e revelam sua inevitável arbitrariedade. Assim, movido pelo "demônio da classificação", Pessoa opta por categorias que se sucedem, mas sem que
delas o leitor deduza com claridade nenhuma idéia de sistema. É
nesse sentido que, em oblíqua convergência com a poética
drummondiana do inventário, Pessoa atesta ironicamente o dizer
de Walter Benjamin, segundo o qual "toda ordem é uma situação
oscilante à beira do precipício" 16. Ou - poderíamos acrescentar,
parafraseando Perec - que a ordem e a desordem, em seus limites,
não deixam de ser duas palavras que designam por igualo acaso.
14
!5
Idem, p. 708.
Idem, p. 708.
16 BENJAMIN, Walter. Desempacotando minha biblioteca.
Obras escolhidas II - Rua de
mão única. São Paulo:
Brasiliense, 1987, p. 28.
293
• Esse artigo faz parte da
pesquisa de pós-doutorado
financiada pela Capes em 2003/
2004.
Lendo e re-escrevendo o passado:
Shakespeare apaixonado*
Tha"IS Flores Nogueira Diniz
(UFMG)
I Como não há, em Português,
um correspondente para
"heritage film", o termo será
conservado no original inglês.
A palavra "heritage", entretanto, está sendo traduzida, no
texto, por "patrimônio".
Um objeto, costume ou qualidade que perdura por muitos
anos dentro de uma nação,
grupo social, ou família,
considerado importante e de
valor, e pertencente a todos os
membros.
2
3Existe uma organização
britânica, a "National Heritage",
cuja responsa-bilidade é destinar
recursos da National Heritage
Memorial Fund aos museus e
outras instituições, com o fim de
ajudá-los a adquirir obras de
arte e edificações de interesse
histórico, ou conservá-los em
boas condições. O dinheiro
usado vem da Loteria Nacional
do Reino Unido.
Esse trabalho visa estudar as relações entre o filme de John
Madden, Shakespeare in Love - traduzido no Brasil por
Shakespeare Apaixonado - e o passado histórico da Inglaterra, o
que o caracteriza como um "heritage film"l ,
Segundo o Longman Dictionary of English Language and
Culfure, o termo" heritage" significa "an object, cus tom or quality
which is passed down over many years within a nation, social group,
or family, and is thought of as something valuable and important
which belongs to all its members"2, De acordo com essa definição, qualquer coisa estaria situada dentro do conceito de "heritage",
Em 1983, quando o contexto deixava implícito que o que se queria preservar eram monumentos, grupos de construções e locais
de valor universal, importantes do ponto de vista da História, da
Arte ou da Ciência, uma outra conceituação, proposta pela First
National Heritage Conference, estabeleceu que o termo deveria
referir-se ao que a geração passada preservou e transferiu para a
nossa geração do presente, e que um grupo significativo da população deseja transmitir para a do futuro. A partir de então, o termo
ganhou reconhecimento oficial, sendo a criação de duas entidades
- a Historic Buildings and Monuments Commissionfor England
ou "English Heritage" e a National Heritage Memorial Fund exemplo concreto desse reconheciment0 3 •
O que se vem preservando para as gerações posteriores tornou-se um dos objetos de interesse da sociedade moderna. Gastase muito tempo hoje olhando para trás, na tentativa de recapturar
o passado, muitas vezes considerado superior ao caótico mundo
atual. Esse interesse, uma espécie de nostalgia, deu origem ao
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Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
desenvolvimento da "heritage industry", ou "indústria do
patrimônio histórico", cuja atividade, que vem se tornando lucrativa desde os anos 70, propiciou a multiplicação dos museus, a
popularização dos "Centros de Tradição" em locais históricos, o
entusiasmo crescente pela recuperação de velhas máquinas, e um
aumento visível das visitas anualmente realizadas a abadias, mansões e re-construções do passado. Sua posterior adoção pelo turismo e lazer serviu como um meio de renovação e valorização
das atrações turísticas.
O objetivo do estudo da "heritage" é investigar a maneira
pela qual o passado está sendo usado, apropriado e consumido na
cultura contemporânea. Sua abrangência vai desde os desenhos
animados do Pato Donald, as expectativas dos visitantes de museus, a representação da "Englishness" nas eleições de 1996, até a
formação da identidade nacional e a preocupação com o currículo
das escolas. Entre as inúmeras iniciativas tomadas na Inglaterra
para esse fim, estão a reconstrução do teatro The Globe, em local
próximo ao seu lugar de origem, e o projeto de reconstrução do
The Rose. Algumas outras, menos visíveis, se resumem na mudança de enfoque das obras de arte, entre elas, os filmes.
O cinema inglês nas duas últimas décadas se concentrou
numa espécie de cinema baseado no filme de costumes, comprometido com a maneira como a herança e a identidade da Inglaterra, ou a chamada "Englishness", deve ser compreendida. Esses
filmes, encenados no passado, em reconstruções de período detalhadas e visualmente espetaculares, contam a história da vida e do
passado da Inglaterra (HIGSON, 2003, p. 1). Nos anos 80 e 90,
diferenciados pelo assunto, fonte, pessoal de produção e elenco, e
com ênfase na identidade cultural nacional, foram rotulados de
"heritage films". O termo emergiu, pois, num contexto cultural
particular recente para servir a um propósito especial: a
mercantilização do passado, produto de uma economia que veio a
se denominar "indústria do patrimônio histórico".
Segundo estudiosos, o termo "heritage film" refere-se ao
cinema de costumes, produzido nos últimos 20 anos, baseado em
clássicos populares, inclusive Shakespeare. Mesmo não sendo
originários de obras literárias, os filmes assim denominados recorrem a uma herança cultural popular que inclui figuras e momentos históricos, e também música e pintura. Normalmente pro-
Lendo e re-escrevendo o passado: Shakespeare apaixonado
4Veraesserespeito:
HIGSON, 2003; MONK, 2002.
'Ver bibliografia adequada:
HIGSON, 2003; MONK, 1995;
MONK, 2002; VINCENDEAU,
200 1; MURPHY, 2000.
295
duzidos com orçamento elevado, por diretores famosos que usam
no elenco astros também famosos, apresentam trabalho elaborado de câmara e iluminação e recorrem a muitas mudanças de cenário, a design de interior bem pesquisado, e à música clássica ou
nela inspirada. A mise-en-scene abundante expõe a burguesia ou
aristocracia. Para Vincendeau (2001), esse tipo de filme não constitui propriamente um gênero. Exceto pela presença de vestuário
da época, não se define por uma iconografia unificada, nem por
um tipo definido de narrativa ou de efeito, podendo incluir elementos de outros gêneros como comédias, números musicais e
características góticas ou de romance. Apesar dessa variedade,
"heritage film" se transformou em um termo crítico que tem despertado debates importantes 4 •
Com base na definição provisória acima, compilada a partir
de trabalhos de alguns estudiosos5 , pode-se classificar o filme de
John Madden como um "heritage film" por várias razões. Primeiro, porque retoma, em versão mais moderna, o estilo dos filmes
de época, revigorando-o e procurando atrair novas audiências.
Segundo, porque, em vez de simplesmente investigar o passado,
tem como objetivo principal celebrá-lo. Finalmente, porque o filme está recheado de alusões visuais e textuais, ao descrever aspectos da era elizabetana, particularmente o teatro, com seu personagem principal, Will/William Shakespeare.
No filme, são usadas várias estratégias para retomar o passado, entre elas, a reconstrução do cenário, as citações a obras
anteriores, a atualização de figuras históricas e, principalmente, a
referência aos mitos em tomo da figura do dramaturgo.
O cenário do filme permite aos espectadores uma
reconstituição impressionante da cidade no século XVII, especificamente da margem do Tâmisa, com seus teatros e habitantes. Os
produtores descartaram a filmagem em Stratford-upon-Avon e
construíram sua versão da Londres de 1593, num jardim ao fundo
dos estúdios. Os cento e quinze homens que trabalharam na construção do cenário levaram oito semanas para edificar os dezessete
prédios, incluindo dois teatros, um bordel, uma taverna, uma praça e o sótão onde vivia Shakespeare. São realmente esplêndidas
essas réplicas de ruas, estalagens e teatros que recapturam, de
maneira bastante viva, o alvoroço da Londres de Shakespeare.
Outros locais onde as filmagens aconteceram foram o Broughton
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Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
Castle em Oxford, para a mansão de Viola, o Hatfield House,
para o Palácio de Greenwich e o Great Hall, em Middle Temple,
para o Banqueting Hall, em Whitehall. Por outro lado, as cenas
no Tâmisa foram todas filmadas no próprio rio, e a praia, onde
Viola consegue chegar sobrevivendo ao naufrágio, ao fim do filme, é a de Holkham, em Norfolk6 • Assim, construções e locais de
valor universal importante do ponto de vista da História foram
convincentemente usados na modernização dos fatos.
A segunda estratégia para a retomada do passado é a alusão
a obras anteriores. Para realizá-la, Madden estiliza várias cenas,
apropriando-se de aspectos de coreografia, cenário e interpretações de filmes anteriores. A citação do filme de Laurence Olivier,
Henry V (1944), se dá quando uma tomada panorâmica nos leva
até os detalhes do teatro, que vão surgindo gradualmente, fazendo-nos reconhecer o The Rose, teatro irmão do The Globe. Entre
as cenas do filme de Franco Zeffirelli, Romeu e Julieta, (1968), a
escolhida foi a do memorável salão de baile, onde os jovens se
encontram pela primeira vez. Porém a mais efetiva é a que dá
início ao filme de Trevor Nunn, Twelfth Night, (1996), que retrata
o naufrágio do navio a caminho do Novo Mundo, cena inserida ao
final de Shakespeare Apaixonado. Ela sugere que a continuidade
da verdadeira história do casal de amantes se encontra na comédia
Twelfth Night, que Will, a mando da Rainha e na tentativa de tornar Viola imortal, se propõe a escrever. "Você jamais envelhecerá
para mim, nem murchará, nem morrerá (Norman 150)" diz Will 'a
amada, antes de se despedirem. "Escreva-me bem", (NORMAN,
1999, p. 151) responde Viola, chorosa. Nesses exemplos, o ato de
metanarração lembra ao espectador o lugar que a obra de Madden
ocupa na tradição fílmica, "criando nele um senso de prazer irônico, pela redução da distância entre a audiência e o texto". (DAVIS ,
2004, p. 156) O mesmo prazer é causado por outras imagens,
alusões textuais de natureza visual. A audiência não pode deixar
de pensar, por exemplo, nos fantasmas de Macbeth e Hamlet,
quando Lord Wessex, na catedral, vê o que ele pensa ser o espectro de Christopher Marlowe. Do mesmo modo, o episódio em
que Richard Burbage é atingido por uma caveira, durante a briga
no teatro, leva o espectador a recordar-se do monólogo "Alas,
Poor Yorick", de Hamlet7 .
Além dessas imagens, linhas de diversas peças - Hamlet,
6ANONYMOUS. In: Heat,
1999, p. 10-11.
7Yer a esse respeito: GRAHAM,
1999.
Lendo e re-escrevendo o passado: Shakespeare apaixonado
'Para um estudo sobre todas as
citações a obras de Shakespeare
no filme, ver: ALBERGE, 1999
e também KLETI, 200 I
Para um estudo dessa
passagem no filme, ver:
ROTHWELL,1999.
9
Antônio e Cleópatra, Romeu e Julieta - e alusões a seus personagens são incorporadas, em contexto bem diverso ao de origem,
como convém a uma obra pós-modernista que abdica da responsabilidade tradicional de diferenciar os níveis de culturas e textos.
Temos "a plague of both your houses", palavras de Mercutio, na
boca do pregador, referindo-se, não às casas Montechio e
Capuletto, como em Romeu e Julieta, mas aos dois teatros, Rose
e Curta in. Outras, ainda fora de contexto, merecem ser mencionadas: "To be in love, where scorn .... nights (L i)" e "What light is
light... ofperfection (IH, i)", ambos de Two Gentlemen ofVerona;
"Doubt the stars are fire, doubt that the sun move" e "Words,
words, words", ambos de Hamlet (H, ii), e "Give me to drink
mandrágora", de Anthony and Cleopatra 8 •
Entretanto, sobressaem e assumem papel crucial no filme o
"Soneto 18" e alguns trechos inteiros de Romeu e Julieta. Embora Shakespeare tenha dedicado o referido soneto ao seu patrono,
no filme, Will o dedica a Viola. Sua inclusão determina o tema do
filme: os amantes, mesmo obrigados a se separar pelo casamento
de conveniência, permanecerão inseparáveis para sempre, misteriosamente unidos, através do milagre da arte9 •
So long as men can breathe, or eyes can see,
So long lives this, and this gives life to thee. ("Sonnet 18", 1314)
Os trechos de Romeu e Julieta, incorporados às falas dos
personagens do filme/atores da peça, fluem em dois níveis diferentes, o real (diegético) do filme, e o literário, da peça que está
sendo ensaiada/encenada. De acordo com o filme, a peça Romeu
e Julieta tomou sua forma final graças à Musa de Will, a jovem e
nobre Viola, amante devotada do teatro, que trabalha em cena e
atrás dela, dando origem a uma verdadeira comédia existencial
surgida dessa interação entre a "vida real" - dos personagens do
filme - e a emocional- dos personagens da peça que Shakespeare
vai criando. Quando Will e Viola encenam Romeu e Julieta no
palco, estão apenas consumando, em termos estéticos, o que vêm
fazendo já há algum tempo no quarto. É como se Will traduzisse
para o palco do The Rose o love affair que acontece na vida real,
e alimentasse, no palco, o amor que ele sabe impossível. O roteiro
297
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Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
se vale da montagem, ao intercalar, durante as falas, cenas da vida
e do ensaio, sugerindo a relação entre o amor arrebatador e a
criação artística. Assim composto, o script se beneficia da estratégia pós-moderna de citação e pastiche em alusões textuais e visuais que emprestam ao filme uma sensação de déjà-vu, que apela
para o desejo da audiência pelo reconhecimento cultural.
Trazer para o presente fatos e figuras históricas, a terceira
forma pela qual o filme tenta recapturar o passado, pode ser observada logo na seqüência inicial, quando uma tomada panorâmica vai até o interior do teatro. Após exibir os detalhes da réplicao telhado de palha, as galerias com os assentos para os espectadores abastados, o palco com suas portas para os bastidores, os alçapões, os dois pilares de suporte do telhado do palco, e o chão
empoeirado da arena - a câmara focaliza finalmente um cartaz
impresso, já rasgado e manchado, onde se lê:
7&8 de setembro ao meio dia
O sr. Edward Alleyn e o grupo Admiral's Men
No Teatro The Rose, Bankside
A Lamentável Tragédia do Agiota Vingado (NORMAN, 1999,
p.7)
Essa introdução funciona quase como parte de um
workshoplO sobre o teatro elizabetano, referindo-se ao horário dos
espetáculos, à localização dos teatros e a um deles especificamente, a um grupo de teatro e a um de seus atores mais famosos. A
essa tomada se segue uma outra, onde a câmara, em movimento
rápido através do palco, chega aos bastidores, onde o dono do
teatro, Henslowe, está sendo torturado, É como se fosse uma continuação da "oficina" de teatro, quando os espectadores são informados sobre os preços cobrados. No desenrolar do filme, outras
figuras e fatos da época elizabetana ainda são indiretamente apresentados: Burbage, o ator famoso, Chamberlain, o outro grupo
de teatro, o modo de composição em equipe, sugerido pelo papel
de Christopher Marlowe e da própria Viola, a proibição para mulheres se apresentarem no palco, origem de muito do humor no
filme, o fechamento dos teatros por causa da peste e outros. Esses
sugerem, a princípio, que o filme seja realmente baseado em fatos
históricos. Entretanto, quando o personagem Will que encarna
William Shakespeare é apresentado, vestindo umajaqueta de couro,
IOA idéia de "workshop" apa-
rece no artigo de Mary Murphy.
Lendo e re-escrevendo o passado: Shakespeare apaixonado
"Segundo dados históricos, a
colônia da Virgínia, assim
nomeada em alusão à rainha
Elizabeth, foi fundada em
1607, por John Smith.
11 Para uma atualização sobre
o estado das pesquisas sobre
Shakespeare, consulte MCDONALD,2001.
13 Em um de seus artigos,
Groatsworth of Wit,Greene
exortava seus contemporâneos,
Marlowe, Lodge e Peele a
parar de escrever para os
atores, e estendia sua crítica a
Shakespeare, acusando-o de
pavão vaidoso e plagiador.
l4Em seu livro, Pierre Pelllliless,
his supplicatioll to the Devil,
Nash faz referência a Talhot, o
heróideHenryVJ.
tentando soletrar seu nome, jogando papéis amassados na cesta
de lixo e desenhando o título do filme, percebemos algo ahistórico,
o que é confirmado pelo close-up numa caneca com a inscrição:
"Lembrança de Stratford-upon-Avon". Assim, apesar de tratar de
fatos históricos, o filme também apresenta incorreções e incongruências, numa mistura de fato e ficção, como convém a uma
obra pós-moderna. Como exemplos de incorreções e anacronismos, citamos o "psicanalista" estilizado, Dr. Moth, "consultando"
Will; o barqueiro que se diz escritor; o garçon do bar, anunciando
o prato do dia, totalmente contemporâneo, "pé de porco temperado com vinagre de zimbro, servido com uma panqueca de trigo
sarraceno" e o fato de o pretendente à mão de Viola ter plantações de fumo na Virgínia, antes mesmo que a colônia na América
tenha sido fundada 11 •
Quando consideramos a simultaneidade desses dois aspectos-minúcia no tratamento dos fatos históricos e anacronismosfica claro que o filme estabelece uma relação dialética original
entre passado e presente, relação recorrente ao longo do filme,
mas principalmente na referência que faz à biografia de William
Shakespeare e aos mitos que circundam sua existência.
O dramaturgo nasceu em Stratford em 1564. A construção,
em estilo Tudor, apontada como o lugar de seu nascimento, foi
comprada pelo pai e legada ao filho. Hoje, recuperada para servir
à "indústria do patrimônio histórico" e constituindo um emblema
para os problemas da biografia de Shakespeare, ainda permanece
em Halley Street aberta à visitação. A maioria das pesquisas aponta que Shakespeare viveu em Stratford até 1585. Não existem
relatos sobre os sete anos que se seguiram, até sua chegada a
Londres por volta de 1592, quando os teatros públicos estavam
começando a florescer. É possível que, nesse intervalo, ele se tenha juntado a um grupo de atores que percorria as províncias e
assim tenha aberto seu caminho para o mundo do teatro centrado
em Londres l2 • A partir de 1592, sua presença é registrada numa
cena de teatro em Londres, o que indica ter ele estado ativo por
algum tempo. Além disso, algumas poucas provas de sua atuação
estão contidas no ataque a Shakespeare em um folhetim dessa
data, pelo famoso escritor Robert Greene l3 , e também na referência ao herói da peça Henrique VI, feita pelo dramaturgo e
panfletário Thomas Nashe l4 • Essa escassez de registros, por sua
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Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
vez, incentivou a criação de mitos em torno da figura de William
Shakespeare como escritor e como homem. Estimulado pela quase total ausência de dados biográficos relacionados a esse período
denominado "the lost years", o cineasta/roteirista ficou seduzido
pela esfera da invenção e deu asas à imaginação, permitindo um
tratamento livre aos mitos, sem ferir a autenticidade histórica. Entre
os mitos a que alude o filme, destacam-se o mistério de sua sexualidade e a controvérsia sobre a autoria das obras 15.
O mistério sobre a sexualidade de Shakespeare é um dos
principais mitos que rondam a figura do dramaturgo. Entre suas
obras, apenas os sonetos sugerem detalhes amorosos e sexuais,
que podem ser interpretados como referências a sua vida pessoa1 16 • Logo aços o fechamento dos teatros devido à peste, os poemas Venus and Adonis e The Rape oi Lucrece, dedicados ao conde de Southampton, patrono de Shakespeare, foram publicados.
A lenda diz que o conde recompensou-o com 1.000 libras. A natureza do relacionamento entre o poeta e o patrono não é muito
clara. Porém, qualquer que sejam os termos da ligação, esse fato
dá um colorido aos mitos sobre a sexualidade de Shakespeare. A
seqüência dos 154 sonetos, segundo historiadores, se divide em
dois grupos, de 1 a 126 e de 127 em diante. Nos últimos sonetos,
a voz poética confessa sua paixão por uma jovem infiel, a Dark
Lady, cuja identidade permanece envolta em mistério. A primeira
série, porém, é dedicada a um jovem, que alguns estudiosos identificam com o Conde de Southampton. Se ele não for o jovem
desses sonetos, quem seria? Existem controvérsias acerca desse
assunto e questões relacionadas são acompanhadas por outras,
sobre a ordem dos poemas, as circunstâncias da publicação, as
tendências sexuais do poeta e, sobretudo, a especulação a respeito da narrativa: a seqüência representaria poeticamente as experiências vividas por pessoas reais?
O tema da sexualidade de Shakespeare tornou-se tabu a
ponto de estudiosos tentarem escondê-lo. Em seu artigo, Margreta
De Grazia explora esse tema mostrando as adulterações feitas nos
sonetos para "por um fim a esse segredo, alterando o sexo da
pessoa amada e assim convertendo uma paixão homossexual ignominiosa em uma paixão respeitável heterossexual, mesmo que
adúltera (36)".
O filme também participa da tradição de enterrar o "segre-
" Para uma referência aos
outros mitos que rondam a
figura do dramaturgo, ver:
ROSENTHAL,1999.
16 Algumas peças contêm
detalhes amorosos que, entretanto, não podem ser tomados
como referências à vida pessoal do
escritor.
Lendo e re-escrevendo o passado: Shakespeare apaixonado
do de Shakespeare", mudando o destinatário do Soneto 18. No
filme, esse destinatário é Viola e não o jovem a quem, na verdade,
ele foi dedicado. Embora Viola esteja vestida de homem no momento em que lê o poema, o filme deixa ambígüa a possibilidade
de homossexualidade do poeta, ao retratá-lo como umjovem comum, perdidamente apaixonado pela linda e rica Viola De Lesseps.
Assim, apesar de algumas alusões a esse mistério, como a atração
de Will por Thomas Kent - Viola disfarçada - que culmina com
um beijo no barco, o amor retratado no filme se assemelha ao
manifestado nos últimos sonetos, permitindo assim que a ambigüidade, parte do charme do filme, persista.
As narrativas míticas que se acumularam através dos séculos levaram muitos a descartar os fatos que os pesquisadores estabeleceram sobre a vida de Shakespeare em Londres e Stratford.
Embora não se saiba muito sobre o homem, o que se conhece
sobre a obra torna convincente a história do filho de Warwick que
vai para Londres quando jovem e encontra seu caminho no mundo teatral, encenando, escrevendo e produzindo peças e poemas
que capturaram a imaginação do mundo. Assim, ao acreditar nas
narrativas coloridas e sentimentais que se referem aos anos que se
seguiram à sua morte- que ele fazia discursos inflamados, que
deixou Stratford fugido, que começou a trabalhar em Londres
cuidando de cavalos e só mais tarde se juntou à companhia de
teatro e se tornou seu principal dramaturgo-é possível dar uma
face humana e celebrar a figura desse autor oriundo de uma cultura e um passado distantes. Porém dois fatos recentes entram em
consideração quando discutimos a questão da autoria. Primeiro,
um volume, que merece ser examinado quanto à legitimidade,
publicado pelos que propõem que o Conde of Oxford seja o autor
da obra de Shakespeare. Segundo, a reformulação recente do conceito de autoria, que nos lembra, a todo momento, que as obras
de arte são produtos não do gênio de escritores individuais mas
da cultura que produziu esse escritor.
Embora não se negue a existência de Shakespeare em seu
papel como ator, questiona-se seu papel como escritor. Será que
aquele homem do povo, com pouca instrução, seria capaz de produzir os textos que ele produziu? O argumento usado é que seria
necessário alguém com cultura universitária para escrever as obras
que tratavam do abuso do poder real, da hipocrisia política, da
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Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
vaidade da Corte, da loucura dos monarcas e até de regicídio.
Esse questionamento preconceituoso resultou na proposição de
candidatos mais adequados para figurar como autores das obras
que lhe são tradicionalmente atribuídas. Muitos nomes foram cogitados, desde Christopher Marlowe até a própria Rainha Elizabeth,
porém Francis Bacon e Edward de Vere, o conde de Oxford, são
os favoritos. O que eles têm em comum é serem ambos aristocratas e, conseqüentemente, mais cultos. O mito diz que o Conde
Oxford, por ser um aristocrata, não permitia que seu nome aparecesse à frente do teatro popular e que Shakespeare teria sido seu
"testa de ferro". Porém, assim como há argumentos em favor de
Oxford como autor, outros negam essa autoria. O principal deles é
sua morte ocorrida em 1604, anterior à produção de Macbeth e de
The Tempest, escritas respectivamente em 1606 e 1611 e cujos enredos dependem de eventos ocorridos também depois da sua morte: a invenção da pólvora (1605) e a circulação de panfletos sobre o
Novo Mundo (1610). Quanto a Francis Bacon, escolhido no século
XIX como o "verdadeiro" autor das obras, apesar da fundação de
um jornal onde as obras eram meticulosamente estudadas com o
fim de se encontrar pistas secretas que levariam a origem das peças
a Bacon, não se chegou a uma conclusão convincente. Essa discussão ainda se encontra inconclusa nos meios acadêmicos.
O acontecimento que alimentou ainda mais essa questão foi
a reviravolta sobre o conceito de autoria, ocorrida nas últimas
três décadas, que trouxe mudanças na teoria e na crítica, afetando
o estudo da literatura. A imagem romântica do artista como um
gênio individual e transcendente foi substituída por um modelo de
autoria mais amplo, baseado na cultura. Tem-se dado muita atenção às filiações institucionais e sociais do escritor, com o objetivo
de identificar as condições e detalhes de sua participação numa
comunidade discursiva. Sob essa nova luz, produções literárias de
um autor como Shakespeare, por exemplo, são vistas como condicionadas e determinadas pelas ações das forças históricas e sociais, o que descarta as noções simplistas de autoria e de responsabilidade artística. No passado, os estudiosos tentavam identificar os livros que o escritor teria lido ou os debates de que teria
participado. Hoje descarta-se a noção de influência artística e considera-se, juntamente com as teorias relativas à re-escrita embutida em todos os textos, que são as figuras políticas e as práticas
Lendo e re-escrevendo o passado: Shakespeare apaixonado
303
sociais específicas que contribuem para a criação do texto literário, mesmo quando essa relação não seja evidente. Essa é a análise que faz o "New Historicism". Essa corrente crítica procura encontrar a reciprocidade entre o campo cultural e o artefato literário.
Nesse sentido, tenta investigar como o texto dramático trabalha
para transformar a cultura que o produz, insistindo na dispersão da
responsabilidade pela criação da obra de arte. O autor toma-se um
canal para o fluxo das forças culturais. Essa evanescência da agência individual coincide com uma verdade sobre o teatro: a sua natureza colaborativa, princípio pertinente a muitas áreas artísticas, cujo
produto final resulta de um processo que envolve escritores, copistas,
atores, censores, audiência e até a imprensa.
O filme participa também desse debate na medida em que
apresenta a peça que está sendo escrita como um trabalho
colaborativo. É Christopher Marlowe que, numa conversa de bar,
dá suporte ao argumento de que foi ele o autor da maioria das
peças, sugerindo o tema: "Romeu é ... italiano. Sempre se apaixonando ( ... ) Até que ele conhece a filha do seu inimigo. Seu melhor
amigo morre em duelo com um irmão ou parente de Ethel"
(NORMAN, 1999, p. 36). A cena sugere ainda que os dramaturgos auxiliavam e criticavam as obras uns dos outros, num verdadeiro trabalho de equipe. Ned Alleyn, o ator, propõe a inserção de
uma nova cena, entre o casamento e a morte de Julieta. Nesses e
em vários outros momentos do filme, o processo colaborativo de
criação é ilustrado e implicitamente defendido. Mas o filme participa ainda da idéia de um autor evanescente. Quando Will começa a
escrever a cena da sacada, suas linhas são declamadas em voiceover enquanto somos transportados alternadamente para o quarto
de Viola e para o palco, durante o ensaio.O modo como essas cenas
se fundem sugere a indefinição dos limites entre a arte e a vida. Para
o casal, as linhas vão adquirindo um sentido duplo, à medida que o
poeta escreve a história de ambos. Assim como Romeu e Julieta,
Will e Viola estão condenados a se separar tragicamente, o que é
pré-figurado quando Viola, ao ler as linhas de Romeu, ao fim da
seqüência da montagem, reconhece tristemente:
Receio que ...
Por ser noite, tudo isso não passe de um sonho.
É bom demais para ser verdade. (NORMAN, 1999, p. 87)
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Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
Diferentemente da maioria dos filmes denominados filmes
de Shakespeare, que prioritariamente traduzem para o meio cinematográfico o texto das peças, o filme de John Madden tenta ser
uma biografia dos "anos perdidos" da vida do dramaturgo, à qual
são acrescentados elementos de imaginação e invenção para a forma em que se dá o processo de criação artística durante esses
anos. Mas, a despeito de contemplar essa visão romântica, o filme
sutilmente volta-se para a questão contemporânea de que todo
texto é produto de um processo complexo de criação, realização
e transmissão, mesmo que exista um autor solitário escrevendo.
Na realidade hoje conta menos quem escreveu as peças do que o
fato de que essas foram escritas e são admiradas.
Seguindo a tendência que imprimiu uma mudança nos filmes históricos, tornando-os parte da "indústria do patrimônio histórico", Shakespeare Apaixonado também tentou criativamente
re-escrever o passado, usando, nessa escrita, os artifícios de
intertextualidade e de pastiche, com o objetivo de criar novas formas de história para contar a história não conhecida do "homem
do milênio".
Lendo e re-escrevendo o passado: Shakespeare apaixonado
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1999.
VINCENDEAU, Ginette. (Ed.) FilmlLiterature/Heritage: a Sight and Sound
Reader. London: British Film Institute Publishing, 2001.
307
Luuondo, 40 anos: a força ds
palavras mais velhas
Laura Cavalcante Padilha
(UFF)
Ler Luuanda, para mim, significa realizar um exercício
de prazer e gozo. Sempre que retomo esta obra de José
Luandino Vieira, não posso conter uma espécie de assalto interior pleno de emoção e arrebatamento. Por outro lado, meu
imaginário leitor acaba, também sempre, por entrecruzar
Luandino e Barthes, dois autores que, a meu ver, sabem, como
poucos, organizar linguajeiramente a festa de prazer do texto.
Em tal festa, no caso específico do ficcionista angolano, as
palavras, as frases, o trabalho discursivo, para além do relato,
são os principais convidados. Vale a pena citar textualmente, já
agora, o misto de poeta e ensaísta francês, que é Barthes, para
dizer que, com Luuanda, "corro, salto, ergo a cabeça, torno a
mergulhar" (1977, p. 19). Nasce daíum impasse fundante: o que
escrever, se tudo se faz, nessa minha leitura tão "colada", um
ato de puro gozo e prazer estético? Nada que penso ou digo
parece servir. O texto não se deixa prender; escapa como serpente esperta que resiste a qualquer investida de captura. Assim,
vou tentar sair do impasse, correndo atrás da cobra, sempre
mais rápida do que eu, procurando, nessa quase caçada,
depreender um pouco das cores de Luuanda, seus sinais, sua
"significância", enfim (BARTHES, idem).
Em princípio, para comemorar os quarenta anos da publicação da obra, embora com certo atraso, creio ser pertinente
lembrar ter sido LUllanda publicada em 1964 em Angola, recebendo, então, o Prêmio Mota Veiga na então colônia. Também
em Portugal, em 15 de maio de 1965, é atribuído à obra o Grande Prêmio de Novelística pela Sociedade Portuguesa de Escri-
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Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
tores, prêmio este retirado quando se conhece a identidade daquele que se assinava Luandino Vieira. No dizer de Manuel
Ferreira, então "se inicia a montagem da gigantesca encenação
político-repressiva que vai desenvolver-se, em todas as frentes,
contra a atribuição do Prêmio e a Sociedade Portuguesa de Escritores." (1980, p. 112). Como sabemos, a Sociedade é dissolvida
em 21 de maio do mesmo ano, por ato do Ministro da Educação
do governo fascista português.
Luuanda, desde sua aparição, em 1964, representa uma ruptura na série literária angolana, primeiramente, no que concerne à
espacialidade física e simbólica nela figurada, ou seja, a da cidade
de Luanda. Tal cidade deixa de ser um espaço colonial branco,
para transformar-se em um lugar angolano por excelência, como
tão bem analisa Tania Macêdo. Sua areia vermelha se faz metonímia
explícita do sangue da própria terra que em suas veias geográficas
corre, de modo mais rápido e tenso, nesse momento político em
que, citando Macêdo, "a colônia começa a tornar-se sujeito de
sua história" (2002, 70).
De outra parte, a ruptura também - ou sobretudo - se dá no
universo discursivo, quando, com grande senso de seu ofício artístico, Luandino cria um texto que - se se faz uma abordagem de
leitura mais ligeira - parece muito simples, em termos de expressão lingüística, mas, na verdade, representa um produto literário
altamente sofisticado, em termos de elaboração estética. Por tal
exercício discursivo, a territorialidade física da cidade amada se
transmuta em uma territorialidade humana por excelência. De novo,
recorro a Barthes para melhor explicitar que os três contos da
obra criam, no leitor, um efeito de fruição estética que "faz vacilar
[suas] bases históricas, culturais, psicológicas [... ], a consistência
de seus gostos, de seus valores e de suas lembranças, faz entrar
em crise sua relação com a linguagem." (1977, p. 22)
O presente gesto de leitura, partindo desses pressupostos,
se debruçará sobre os caminhos imagísticos e discursivos de
Luuanda tentando pensar, de um lado, a questão espacial e, de
outro, a estética.
Luuanda 40 anos: a força das palavras mais velhas
1.
Uma cidade e a resistência do fio da vida
Desde o século dezenove, o imaginário de alguns autores
buscou os locais não urbanos como uma forma de reforço
identitário. Pela projeção ficcional desses locais, os produtores
artísticos procuraram resgatar a força simbólica dos modos de
vida autojustificativos do sujeito etno-cultural e sócio-histórico
angolano, contrapondo-os aos do sujeito metropolitano, tanto étnica, quanto sócio-culturalmente.
Há um missosso recuperado por Óscar Ribas, "Quimalauezo"
(1961, v.1, p. 41-64), bastante revelador do sentido desse jogo
espacial. Nele, Lau, o protagonista, filho de um soba, é obrigado
a ir para Luanda por determinação do governador europeu, encantado com sua beleza. Todas as ações subseqüentes se originam
nessa mudança forçada da personagem para o espaço do outro no
qual recebe novo tipo de educação, sem jamais, contudo, esquecer suas ancestrais tradições, como revela sua volta ao "Sobado
dos Estéreis". Esse conhecimento e a força da ficção oral, a que
Lau sempre recorre, se tornam os elementos responsáveis por sua
vitória contra a pérfida madrasta. Misogenias à parte, o missosso
significa um modo de resgate da importância do saber ancestral
nas comunidades de origem.
Podemos levantar, ainda, vários outros exemplos desse reforço identitário. Lembro, a propósito, a negra quissama cantada
por Cordeiro da Matta (1889), cuja sedução é totalmente distinta
daquela das "européias damas". Também Ndreza, depois transformada em Nga Mutúri, na narrativa de Alfredo Troni (1882),
vem do interior, sendo obrigada a desfazer-se de seu "lindo penteado seguro pelo ngunde e tacula [... ] tirando-lhe as missangas e
os búzios e todos os enfeites" (1973, p. 34). Assis Júnior centraliza as ações de O segredo da morta (1935) no Dondo, enquanto
Castro Soromenho escolherá a Lunda para palco de contos e romances por ele escritos, às vezes até em forma de reescrita de
lendas ou narrativas tradicionais.
António Jacinto, por sua vez, estabelece, com Vôvô
Bartolomeu (1952), um corte entre sua criação estética e o modo
de representação colonial, seja pela estória contada, seja pela linguagem nova que a sustenta. No entanto, ele permanece ainda
"apostando" na força espácio-simbólica do mundo rural, em oposi-
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Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
ção ao que se dá nas cidades litorâneas, cobertas pelas marcas
da cultura do colonizador. Por isso mesmo, as ações se passam
em uma senzala e Luanda é mostrada como um espaço branco
e em branco na narrativa. Por sua vivência em tal espaço, não
resgatada diretamente, tia Mariquinhas, a lavadeira, se transforma em uma assimilada "com a mania de pessoa fina e a dizer
que já não sabia kimbundo". E continua o texto, afiando a lâmina de sua faca:
Uma vez começou de chover e a tia Anica disse:
- Eué! Nvula uiza!
e a tia Mariquinhas repreendeu:
- Ai dona! Não fala assim, na língua de pessoa se diz: está
chovar! (1979, p. 25)
o trabalho de recomposição imagística de Luandino Vieira
em Luuanda, de certo modo na esteira do conto de Jacinto, consiste, justamente, em recobrir o corpo da cidade-sede da então
colônia, com outros sinais, sempre postos de lado pelos modelos estéticos hegemônicos da colonialidade política e literária.
Transforma a cidade num espaço coberto pelos "máximos sinais" da alteridade, aqui usando uma expressão de Lourentinho,
sua personagem em outra obra (1981, p. 23). Também João
Vêncio, dirá, sem rodeios, a seu mudo interlocutor, na prisão
onde se dá a longa conversa, base do projeto discursivo
articulador da própria ficcionalidade:
Muadié: eu gramo de Luanda - casas, ruas, paus, mar, céu e
nuvias, ilhinha pescadórica. Beleza toda eu não escoiço. Eu
digo: Luanda - e meu coração ri, meus olhos fecham, sôdade.
(1987, p. 81).
Nasce, nessa geografia imaginária feita de "casas, ruas, paus,
mar, céu e núvias, ilhinha pescadórica", desde Luuanda, uma espécie de nova ancoragem simbólico-cultural cujo motor é um gesto,
mais que tudo, amoroso. Por ele, no caso da coletânea, a própria
palavra nomeadora do lugar de pertença do sujeito ganha uma
espécie de prolongamento gozoso, com a letra dobrada pela qual
se suplementa. Não é apenas Luanda, mas Luuanda. Aninha-se,
nessa repetição da letra, as marcas do amor por tudo que na cida-
Luuanda 40 anos: a força das palavras mais velhas
I Todas as citações de Luuanda
são da edição brasileira de 1982
e, a partir de agora, só serão
marcadas as páginas da obra.
de descalça se institui e a constitui, a começar pelos elementos de
uma natureza animizada cujas ações, sentimentos, formas de ser,
enfim, duplicam os traços característicos dos seres humanos que,
na comunidade formada na obra, ela ampara e sustenta.
A nuvem, por exemplo, é mostrada, na abertura de "Estória
da galinha e do ovo", como tendo "braços" e com "malucas filhas"; a "mulemba velha" possui até "barbas compridas"; os relâmpagos "riem" igualmente "compridos e tortos [... ] falando a voz
grossa de seus trovões" (1982, p. 99)1 . A natureza ganha vida humana, pelas palavras mais velhas que lhe descobrem os segredos,
assim como Beto e Xico, no mesmo conto, o fazem com relação à
fala dos animais, seguindo o que lhes ensinara o velho Petelu. É o
que nos mostra seu entendimento do código não-verbal da galinha
Cabíri, recuperada nesta cena de tradução que resgato:
E então Xico, voz dele parecia era caniço, juntou no amigo e os
dois começaram cantar imitando mesmo a Cabíri, a galinha
estava burra, mexendo a cabeça, ouvindo assim a sua igual a
falar mas nada que via .
... ngêjile kua ngana Bina
Ala kiá ku kuata
kua ... kua ... kua ... kuata, kuata! (p. 108)
A vida humana em expansão transforma a paisagem da cidade, dela fazendo um espaço quase sacralizado, daí a ligação
fundante entre os tempos, erigida pelos contos. O "antigamente",
em todos os sentidos, é percebido como o útero onde o presente
se gera e, para além disso, a gênese de qualquer promessa de futuro. Vale citar o geógrafo e humanista brasileiro Milton Santos,
quando enfatiza a vida e seu poder de transformação infinito:
É a sociedade, isto é, o homem, que anima as formas espaciais,
atribuindo-lhes um conteúdo, uma vida. Só a vida é passível
desse processo infinito que vai do passado ao futuro, só ela tem
o poder de tudo transformar amplamente. (2004, p. 109)
Essa cadeia temporal da vida, assim posta por Santos, se
metaforiza e ganha especial relevo imagístico em Lllllanda, mais
exatamente no conto intitulado "Estória do ladrão e do papagaio".
Tal estória, por sua dimensão discursiva e por seu arcabouço
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temático - ao deixar apenas a representação da vida em direto
do musseque e escolher o espaço da prisão como principal cenário ~ confere ao texto um dos seus simbólicos e ideológicos alicerces. No conto, tal alicerce se projeta na imagem do "cajueiro", metáfora do fio jamais partido da vida. Por isso mesmo, ou
seja, por sua resistência e teimosia em renascer sempre, apesar
de todas as violências e tentativas de destruição por que passa,
"o pau de caju" se faz o
"fio da vida que [... ] mesmo que está podre não parte. Puxando-lhe, emendando-lhe, sempre a gente encontra um princípio
num sítio qualquer, mesmo que esse princípio é o fim doutro
princípio." (p. 52)
A crença na possibilidade de transformação e na força da
indestrutibilidade do "fio da vida" enlaça a obra, dela própria fazendo, no todo, uma palavra mais velha. Tal palavra indica a necessidade de movimento da parte do leitor, convocado a buscar,
ele também, a raiz dos casos contados sob os quais se esconde a
violência da agressão do dominador europeu, empenhado, desde
sempre, em cercear Angola, não a deixando viver a aurora de sua
própria liberdade. A resistência do "pau de caju" e das outras árvores espalhadas nas terras da própria textualidade de modo quase obsessivo - mulembas, sape-sape, acácias, mandioqueiras, paus
de fruta, etc. - se fazem a marca por excelência da territorialidade
cartograficamente expressa em letra e papel e, também, uma forma de resistência do próprio imaginário recuperado pela ficção.
Os contos, de maneira recorrente e quase física, nos fazem
ver essas velhas árvores, obrigando-nos a pensar no que se esconde sob a terra, sempre mãe, na cosmogonia banta. Por isso, somos
convidados por Luandino, pela voz do narrador dos seus casos, a
pensar no e com o cajueiro, a fim de entender que ninguém mata o
fio da vida. Para tanto, temos de deixar
o pensamento correr no fim, no fruto, que é outro princípio e
[ir] de encontro aí com a castanha, ela já rasgou a pele seca e
escura e as metades verdes abrem como um feijão e um pequeno pau está nascer debaixo da terra com beijos de chuva. O fio
da vida não foi partido.
Luuanda 40 anos: a força das palavras mais velhas
E O texto continua, com empenho, a exercitar a ancestral
sabedoria, marca da cultura de Angola:
se querem outra vez voltar no fundo da terra pelo caminho da
raiz, na vossa cabeça vai aparecer a castanha antiga, mãe escondida desse pau de cajus que derrubaram mas filha enterrada doutro pau. (p. 52)
Eis aí uma possível epígrafe ou mote para Luuanda, por sua
vez também uma espécie de longa epígrafe das obras de Luandino
que lhe sucederão. O corpo ideológico dos textos se sustenta na
metáfora da castanha, projetada também para Angola nesse momento histórico em que, na luta por sua libertação, ela pode ser
lida como uma "castanha antiga, mãe escondida" da "árvore", só
na aparência cortada, mas igualmente "filha enterrada doutro pau".
É isto que Luuanda encena: a certeza da renovação da força
incontrolável da vida humana e política de uma nação por vir.
Vejamos um pouco como e/ou por quê.
Comecemos pelo rosto marcado de duas velhas: Xíxi e
Bebeca, cuja pele - principalmente a do rosto - é pintada como
"seca e escura", como a da castanha de caju. Por essas duas mulheres-castanha, tanto em "Vavó Xíxi e seu neto Zeca Santos", quanto
em "Estória da galinha e do ovo", mostra-se a energia e a inteireza
do fio da vida. Não por acaso ambas as velhas são plasmadas artisticamente de uma mesma forma, ou seja, como uma espécie de
guardiãs comunitárias, cuja magreza do corpo esconde a corpulência da solidariedade; da fé no futuro; da confiança na amizade; do
sentido coletivo e do empenho na afirmação do amor pela terra,
pela sua terra angolana. Elas são, respectivamente, para além de
castanha, o sape-sape e o ovo, este, no caso, primeira fonte da vida.
O sape-sape é descrito assim: "sem mais água, só mesmo
com a chuva é que vivia e sempre atacado no fumo preto das camionetas" (p. 25). Elas, como ele, enfrentam a privação e o ataque de
uma ordem social injusta, demonstrando, a exemplo da árvore,
coragem e força para pôr uma sombra boa, crescer suas folhas
verdes sujas, amadurecer os sape-sapes que falavam sempre a
frescura da sua carne de algodão [... ] guardando na sua sombra massuícas pretas de fazer comida de monangambas (idem)
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A sombra por Xíxi e Bebeca projetada, como a do sapesape, era "boa, fresca, parecia era água de muringue" (idem). Por
isso mesmo, as duas vavós são peças importantes na organização
dos seus espaços do viver nos quais representam e defendem as
leis das autoridades locais, em detrimento das estabelecidas pelo
poder branco vigente. De outra parte, são os cimentos da argamassa discursiva formadora do edifício da própria textualidade,
organizada, ela também, como um exercício da sabedoria mais
velha de Luandino Vieira, seu criador.
Por outro lado, Vavó Xíxi e Dona Bebeca são a possibilidade de instauração de um futuro, cuja marca pode ser encontrada
em seus risonhos e gozonos rostos. Elas são o ovo onde a vida
igualmente se guarda, como na castanha de caju. Enquanto esta
se gera, rebenta e reproduz dentro do ventre da terra, o ovo o faz,
ora dentro de Cabíri, a "humana" galinha também protagonista
dos casos, amiga dos miúdos Beto e Xico, ora dentro do útero de
Bina, cujo corpo de mulher é o duplo explícito daquela mesma
terra. Xíxi e Bebeca, empenhadas na manutenção do fio da vida
nunca partido, carregam dentro de si a teimosia da castanha, a
coragem do sape-sape e a força simbólica do ovo.
Não por acaso, a descoberta do grande ovo carregado por
Bina é feita por Xico, uma daquelas crianças a quem caberá buscar, africanamente, o futuro, como ensina o missosso antigo e
reensina Dario de Melo na modernidade de seu conto renovador
do texto dos antigamentes - Quem vai buscar o futuro? (1986).
Vavó Bebeca, por sua vez, como alguém que traz em si o
"ovo" da esperança e fé na vida, sorrindo, no quase fechar-se da
narrativa e "segurando o ovo na mão dela, seca e cheia de riscos
dos anos, o entregou para Bina", respeitosamente perguntando à
dona da galinha "- Posso, Zefa? ... ". Nesse momento, o leitor vê
os "olhos admirados e monandengues de miúdo Xico" fazerem a
grande descoberta, ou seja, que "a barriga redonda e rija de nga
Bina, debaixo do vestido, parecia era um ovo grande, grande ... "
Cp. 123). Eis o ovo da vida, pois, a mostrar-se como outro fio
jamais partido.
Os três contos de Luuanda funcionam metaforicamente
como uma espécie de rito de iniciação pelo qual os neófitos leitores, sobretudo se não angolanos, como no presente caso, ingressam nos segredos e mistérios comunitários. Tais segredos e misté-
Luuanda 40 anos: a força das palavras mais velhas
rios foram sempre elididos na visão dos antigos senhores da letra,
com seu saber redutor. Como ensina Camões, tais senhores mostraram-se sempre perplexos diante da estranha gente cujos costumes, leis e reis se fizeram absolutamente enigmáticos, desde o
tempo dos navegantes por ele cantados. Não por acaso tais
navegantes se perguntam sobre tal gente, em um dos primeiros
encontros dos dois grupos étnicos, nas costas de Moçambique,
encontro assim sintetizado pelo poeta:
- Que gente será esta? (em si diziam)
Que costumes, que lei, que rei teriam? (1972, I, 45. p. 71)
É nesses costumes, nessas leis e, não em reis, mas na força
dessas rainhas mais velhas, que Luandino, como um mestre da
cerimônia de iniciação dos seus textos, faz seu leitor imergir. Por
isso mesmo, a relação entre mais velhos e mais novos é um dos
traços mais expressivos nos três contos, como se sabe: Vavó Xíxi
e o seu neto Zeca Santos; Dosreis e Garrido e mesmo, na inversão
dos papéis, Xico Futa e Dosreis ou Garrido e João Miguel, inversão surgida sempre que um mais novo demonstra sabedoria maior
que um mais velho. Também o traço ressurge na interação de Vavó
Bebeca com as mulheres do musseque, principalmente Zefa e Bina,
e, mais que tudo, em sua relação e na de Vavô Petelu, no conto
apenas referenciado, com a semente do futuro representada pelos
miúdos Beto e Xico.
Evidencia-se, na estética da privação, base imagística dos
três contos, a presença utópica da esperança tão bem metaforizada
por tais mais novos e pelo sol que sempre atravessa os espaços
textuais e copula, às vezes, com o vento, às vezes com o mar. Os
mais novos são duplos desse sol e devem ser iniciados para fazer
frente aos tempos marcados pelas chuvas, ventanias e ribombar
dos trovões, como se dá na abertura da obra com o primeiro conto em que "sai", metonírnica e metaforicamente, não apenas a chuva
avassaladora, mas "o grande trovão" a fazer tremer "as fracas
paredes de pau-a-pique e despregando madeiras, papelões,
luandos". Depois dele, chega "o brilho azul do raio que nasce no
céu, grande teia d' aranha de fogo" Cp. 6). Tal raio nos faz lembrar
aquele que, caindo na cubata onde se guardara o milho, para livrálo da chuva, destrói, em Vôvô Bartolomeu, o sonho do narrador,
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mostrado como um mais novo no corpo da estória. O importante,
e Jacinto reforça isso, é não se dobrar frente aos obstáculos interpostos entre o sujeito e seus sonhos, daí a necessidade de se manter acesa a chama da esperança.
Também a chuva devastadora, nos passos da trajetória
iniciática dos três contos de Luuanda, a exemplo do que ocorre
no de Jacinto, cessa. No segundo deles, tal chuva se transforma
em "chuva de cacimbo" (p. 82), a entrar pelas janelas da prisão de
modo suave e fresco. Por sua vez, o vento deixa de ser uma ameaça, para transformar-se em "vento frio do cacimbo [que] corria
às gargalhadas, com os papéis pelo musseque fora" (p. 76). No
último conto, de modo amigo e apaziguado, esse mesmo vento
ressurge "a soprar devagar as folhas das mandioqueiras" e igualmente "devagar e cheio de cuidados e amizade, [... ] o vestido
gasto [de Bina] contra o corpo novo" (pp. 123 - 124).
Enfim, a hora é de paz, pois o leitor já compreendeu. De
certo modo iniciado, ele não teme mais a violência do primeiro
vento. Acredita que a esperança, angolanamente, não se deixa
morrer e a fome, a miséria, a privação perderão a força no momento da chegada do sol da liberdade. O espaço espremido e torto das ruas e cubatas dos musseques, na geografia instigante do
texto - Rangel, Sambizanga, Lixeira, Braga, São Paulo, Marçal,
etc. -, a exemplo do cajueiro, não será destruído pela ordem erigida
na Baixa, espaço somente referido no texto e entremostrado como
despido das cores da vida vivida com alegria, não obstante toda a
falta e privação.
Os meninos, por sua vez, já sem suas fogueiras, ainda dispõem da sombra amiga das velhas árvores e aprendem a linguagem das gentes e dos bichos de sua terra. De nossa parte, nós,
leitores, como eles, pelo menos no tempo histórico da enunciação
do texto, entendemos ser possível sonhar, acreditando na veracidade do vôo de uma galinha, cuja gordura não a impede de ir em
busca do canto amigo de um companheiro a chamá-la. Picando e
arranhando fundo os braços-grade da ordem outra, repressora por
excelência, do venal sargento, Cabíri nos ensina que, pela resistência ao dominador, se pode voar "na direção do sol" Cp. 122).
Hoje, quase cinqüenta anos depois do momento de escrita
do texto (segundo conversa com Luandino), aprisionados nos braços-grade da globalização neoliberal, não podemos deixar de lem-
Luuanda 40 anos: a força das palavras mais velhas
brar O verso de Drummond - "E agora, José?" (1955, p. 196).
Perguntamos, então, ao outro José, angolano: Cabíri continua a
voar? Xíxi e Zeca Santos podem pescar o peixe hoje para comê-lo
amanhã? Beto e Xico construíram o futuro? E Garrido, Dosreis e
Xi co Futa? Por onde andarão? Teimosamente, só a esperança escondida na castanha, no sape-sape e no ovo será capaz de, revi vida,
poder responder.
2.
Uma festa linguajeira e sua beleza fàrra
Não é preciso explicar onde busquei a expressão "beleza
forra". João Vêncio é o seu "dono", doando-a, a nós, leitores, na
frase pela qual expressa seu medo de rebentar o fio, não mais da
vida, mas da construção da estória, pensada como a resultante de
uma parceria autoral entre ele e seu letrado companheiro de prisão:
Ia rebentando o fio - a missanga espalhava, prejuizão. Que eu
não dou mais encontro com um muadié como o senhoro para
orquestrar as cores. Comigo era mistura escrava; no senhoro é
a beleza forra (1987, p. 81)
Desse segundo fio que, como o da vida, não se pode deixar
partir, gostaria de falar brevemente e de modo bastante
esquemático. Trata-se do fio da escrita artística ou da elaboração
estética da obra, pensada, também ela, na esteira das imagens recorrentes da castanha, do sape-sape e do ovo, como uma possibilidade de interligação de cada princípio com seu fim e vice-versa.
Essa interligação se dá quando o artista inventa cada nova frase,
palavra, imagem, sonoridade, ou mesmo busca o exato movimento dos sentidos expressos na e pela obra artística. A escrita assim
concebida transforma-se também em árvore, fazendo-se forma de
resistência frente à fala impositiva do outro, muitas vezes empenhado em "derrubá-la" por total desconhecimento da eficácia estética de sua força ancestral. Ela é, sobretudo, a responsável pelo
nascimento de outra forma de vida, a ficcional.
O discurso literário de Luandino, por ser árvore, oferece a
sombra sob a qual nos assentamos nós, seus leitores. Como artista, voltando a Barthes, já agora em seus Fragmentos de um discurso amoroso, ele faz "da forma um conteúdo" (1981, p. 132).
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Nasce, por esse seu gesto, a "beleza forra", tal como pensada por
Vêncio, superando-se, assim, qualquer possibilidade de escravidão ou aprisionamento. Volto a lembrar o cajueiro, já agora projetando, para o fio da vida narrativa, o que se dá com o outro fio, o
da vida humana. Para se construir tal fio, já sabemos - "É preciso
dizer um princípio que se escolhe: costuma se começar, para ser
mais fácil, na raiz dos paus, na raiz das coisas, na raiz dos casos, das
conversas" (p. 54). Tanto na vida, como na ficção. No caso desta
última, tal como a concebe VênciolLuandino, ela se esconde no
mágico encontro do "fio" e das "missangas" e na possibilidade de
ambos se acamaradarem, dando origem àquele "colar de cores
amigadas" que é a obra, tal como nos chega às mãos e aos olhos.
A meu ver, para conseguir seu "arco-íris" de palavras,
Luandino aciona dois movimentos que passam, respectivamente
por dois procedimentos discursivos distintos, assim como por dois
- às vezes até mais - códigos lingüísticos. Tais procedimentos e
códigos se atravessam e se suplementam, combinando, de um lado,
no plano discursivo, as cores das missangas, que só o literário
conhece e sabe orquestrar, com o fio da oralidade no qual tais
missangas se sustentam. De outra parte, o atravessamento encontra sua raiz no manejo da língua portuguesajá acamaradada com
as línguas nacionais, em uma clara e nova demarcação do limite
das fronteiras entre dois códigos que, durante muito tempo, se
fizeram astros excludentes e em franca rota de colisão.
Pelo encontro quase genesíaco da ancestralidade angolana
da voz com a modernidade européia da letra, também o passado
se convoca em Luuanda para alimentar o presente e assegurar o
futuro. O texto, como um todo, se faz uma maka, seguindo a
classificação de Chatelain (1964). Nela se encadeiam casos e casos e mais casos. Forma-se, desse modo, um elo instigante de
contos contados ou de textos "falados ouvidos vistos", para usar
uma expressão de Manuel Rui (1985). Tais estórias se aninham no
colo da letra literária, criando um texto suplementado por diversos tempos, matrizes, memórias, saberes. O narrador da escrita
como que veste a pele dos contadores de sua terra, ritualizando
seu dito artístico pelas palavras mais velhas que sua própria sabedoria põe em circulação. A raiz dos casos, das conversas, enfim, o
fio da vida narrativa lá estão, intratáveis, sustentados pela voz que
tudo semeia e sedimenta, como castanha partida de cuja casca
Luuanda 40 anos: a força das palavras mais velhas
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seca e escura nasce o pau de caju do texto literário,
arquiteturalmente tão bem edificado pela letra em festa:
Minha estória. Se é bonita, se é feia, os que sabem ler é que
dizem. Mas juro me contaram assim e não admito que ninguém
que duvida de Dosreis, que tem mulher e dois filhos e rouba
patos [... ]
E isto é a verdade, mesmo que os casos nunca tenham passado.
(p. 96-97)
A "verdade" assegura o caráter de maka do contado, na
melhor tradição da oralidade. Por sua vez, o fato de os acontecimentos nunca se terem passado garante a eficácia da ficção, cumprindo-se a tradição literária do ocidente. Entre esses dois
parâmetros discursivos, Luuanda com seus contos se equilibra,
ela mesma um "papagaio" sem poleiro fixo ou a sombra amiga de
um sape-sape sob o qual nos abrigamos, nós, seus leitores, para
ouvir as estórias de um "mais velho" contador que sabe como
poucos inventar estórias sobre estórias.
Quanto à questão da língua, penso que Luandino, como
Guimarães Rosa, em Grande Sertão: Veredas (1968), por exemplo, dobra a língua em que o texto se escreve, o português, fazendo-a aceitar o uso da terra, única forma possível para que esta
terra ela própria possa falar nos textos. Dá-se, em todos os sentidos, uma forma de tradução, como fazem Beto e Xico com a
língua de Cabíri. Conforme eu mesma afirmei, em ensaio de 1988,
mas só publicado em 1995, Luandino tenta recuperar o fio partido
da imposição da fala alheia, a fim de também torná-la sua. Nesse
afã, desimobiliza sua fala artística, fazendo com que nós, seus leitores, vejamos, ouçamos, sintamos os cheiros e os tatos dessas palavras engravidadas fono-morfo-sintática e semanticamente no corpo
de sua textualidade. O quimbundo se faz o sêmen que possibilita a
criação nova, genesiacamente concebida como diferença.
Como sua personagem João Vêncio ensina, surge, então,
de acordo com o já afirmado, uma "beleza forra", construída por
esse atravessamento linguajeiro no qual tudo serve para extrair a
macia sumaúma das palavras próprias e alheias. Há uma cena narrativa, no segundo conto, recuperada pela memória de Xi co Futa,
que dá bem a dimensão desse atravessamento de línguas e da criação literária luandina, pelo que o autor se faz, novamente, uma
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Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
espécie de experiente mestre de cerimônias do rito iniciático que
só o bom texto literário é capaz de poder assegurar.
Eis a cena: quando o auxiliar da cadeia de Luanda, Zuzé,
segundo o relato de Xi co Futa, chegava às celas pela manhã, cumprimentava os presos, dizendo, dentro da melhor norma da língua
portuguesa: "- Bom-dia, meus senhores!" E completa o amigo de
Dosreis:
Nem nazekele kié-nazeka kiambote, nem nada, era só assim a
outra maneira civilizada como ele dizia, mas também depois
ficava na boa conversa de patrícios e, então, aí o quimbundo já
podia assentar no meio de todas as palavras, ele até queria,
porque falar bem-bem português não podia (p. 44)
A citação recupera de forma explícita, não, como querem
tantos, o "drama" lingüístico do colonizado, mas a natureza de sua
fala própria, construída pelo atravessamento de seu legado lingüístico
ancestral e a língua trazida pelo outro, quando viu concretizado seu
afã de singrar os mares nunca dantes navegados, chegando à África
e à América, dentre outros lugares. As línguas européias viajantes
se encontraram com o quimbundo, o umbundo, o ronga, o macua e
também com o tupi, o quéchua, o guarani e tantas outras guardadas
no cofre das memórias culturais dos povos de origem.
O trabalho estético de Luandino - na esteira de outros que
o precederam em Angola, desde Cordeiro da Matta em "Kicôla!";
passando por Viriato da Cruz com "Makezú" ou mesmo José
Craveirinha, em Moçambique, com o seu "Hino a minha terra" consiste em revolver, na quinda simbólica, as missangas, j á agora
lingüísticas, misturadas em denso e festivo colorido. Com elas,
entrecruzadas, em alegres jogos linguajeiros, o já senhor da letra
encontra os elementos de que necessita para criar os colares das
estórias produzidas por esses mesmos prazeirosos jogos.
Acamaradam-se as línguas, como se dera com a voz e a letra e
tudo se harmoniza, apontando o caminho da esperança.
Para concluir essa minha corrida atrás de uma tão ágil serpente colorida e esperta, chamada Luuanda, só me resta dizer que
José Luandino Vieira consegue, nesta e em outras obras por ele
assinadas, desenhar, com palavras, um belo e surpreendente arcoíris, imagem que parece encantá-lo de modo especial. Esse arcoíris se inventa com os seguintes elementos: a maestria do artista
Luuanda 40 anos: a força das palavras mais velhas
da vida real; a sabedoria dos narradores criados por ele; a força, a
coragem e a solidariedade dos seus seres de papel chamados personagens e, soldando tudo, o amor por sua terra, Angola,
metonimizada por Luanda, talvez, pura e simplesmente, o amor
do amor. Terminamos, por isso, com Vêncio, dizendo de Luuanda,
de Luandino Vieira: esta obra é "beleza forra"! E ponto final.
Referências
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Rio de Janeiro: José Olympio, 1955.
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321
322
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
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Lisboa: Edições 70, 1973.
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--o Lourentino, dona Antónia de Sousa Neto & eu. Lisboa: Edições 70,
1981,
--o João Vêncio: Os seus amores. 2 ed. Lisboa: Edições 70,1987.
323
Dom Quixote: Utopias
André Trouche e Lívia Reis, (orgs.)
Niterói: EdUFF, 2005.
Rodrigo F. Labriola
(UERJ)
Poucas palavras estão hoje tão depreciadas de sentido como
"Quixote" ou "Utopia": ao que parece, durante as Celebrações
Centenárias o mercado simbólico sofre um surto inflacionário que
atinge com singular virulência a cultura li vresca. Depois dessa emissão incontrolada de significantes, geralmente certas obras literárias
remanescem ainda mais longínquas do que já eram para os leitores
não especializados. Tudo isso, caso fosse admissível uma teoria da
economia política dos signos ... Mas talvez seja tempo de nos afastar dos modelos econômicos sobre-impressos à literatura em direção de outras configurações capazes de agir melhor sobre esse fenômeno de esvaziamento nos discursos do cotidiano. Daí o desafio
implícito no título da compilação Dom Quixote: Utopias, organizada por André Trouche (UFF) e Lívia Reis (UFF). Sem aditamentos
nem prevenções, essas poucas palavras previsíveis ganham uma nova
complexidade quando considerarmos a forma e o conteúdo do livro, neste caso feliz e inextricavelmente relacionados.
Com o apoio da Prefeitura de Niterói, a edição se apresenta
cuidada tanto nos textos como na reprodução das imagens que
complementam alguns dos capítulos. Não se trata, porém, de uma
obscena edição de luxo para glorificar costumeiros atos de governo ou de verbas universitárias. A tentativa é refletir sobre a obra
de Cervantes sem apagar nem sua escrita nem seus possíveis leitores contemporâneos. Nesse sentido, um acerto indiscutível é a
inclusão, no mesmo nível dos trabalhos críticos, de quatro fragmentos chaves do Dom Quixote em espanhol, e também das suas
respectivas traduções livres para o português, a cargo de Magnólia
Brasil Barbosa do Nascimento (UFF), Antonio Esteves (UNESP-
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Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
Assis), Susana Planas (UFF) e Heloisa Costa Milton (UNESPAssis). A presença das duas línguas deve ser destacada se levarmos em conta o apoio governamental à edição e a sua esperável
distribuição nas bibliotecas escolares, pois indica uma vontade não
de uma mera difusão mas da procura do ensino efetivo do espanhol no Brasil. Os claros comentários dos tradutores que seguem
aos fragmentos de Cervantes reforçam este objetivo, porque se é
verdade que a boa literaturajá não é de ninguém mas da memória
ou da tradição, então toda língua pode também ser uma forma
extremada das literaturas. Certamente, recuperar o Dom Quixote
é uma ilustre compensação da banalidade de certos materiais didáticos; mas, por outro lado, as traduções junto ao original propõem uma hipótese problemática para a tecnocracia lingüística:
que a vitalidade de uma língua depende em grande medida do
contato com as outras e, sobretudo, da sua apropriação literária.
A liberdade para traduzir, e o conseqüente sinal aberto para que
muitos leitores amadores se atrevam a realizar suas traduções,
constituem de fato uma prazerosa indústria para produzir ou reencontrar sentidos na própria língua, abalando o vazio dos lugares-comuns. Ler não é outra coisa senão isso; nesse ponto, a cultura audiovisual ainda leva fraldas, ou pior.
De maneira complementar, outro mérito da compilação é
não ocultar as tensões decorrentes do caótico estado da questão
em torno da significação atual do Dom Quixote e das utopias.
Percebe-se em todos os autores a preocupação por esse assunto
para além das homenagens oportunistas. Por isso, os textos críticos trabalham por vezes enfoques teóricos que resultam contraditórios entre si, mas a vantagem do livro reside precisamente nessa
pluralidade, que libera o leitor e o autoriza a escolher alguns deles, ou quiçá nenhum. Entre (s temas mais relevantes para a literatura comparada se encontram as múltiplas relações do Quixote
com a obra de Machado de Assis, grande leitor de Cervantes. Maria
Augusta da Costa Vieira (USP) mapeia com rigorosidade a recepção do.Quixote no Brasil, e sua síntese evidencia a necessidade de
aprofundar os estudos das conexões entre o manco de Lepanto e
o bruxo do Cosme Velho, ainda pouco exploradas pela crítica.
Embora limitado aos problemas de gênero, o trabalho de Eurídice
Figueiredo (UFF) serve a tal propósito e adiciona ao quadro a
perspectiva de Flaubert. A mexicana María Stoopen Galán (UAM)
325
analisa a ficção e a língua no Quixote a partir dos discursos sobre
o corpo e a subjetividade, não sem estimulantes surpresas: consegue driblar as fartamente repetidas (e maiormente mal lidas) citações de Michel Foucault e Norbert Elias. Por sua vez, a atualidade
irrompe por duas vias diferenciadas nos textos de Gustavo Bernardo
Krause (UERJ) e Márcia Paraquett (UFF). No primeiro, o ceticismo se alia à ironia em defesa da ficção: é possível que cada metáfora quixotesca carregue a semente estéril de sua própria destruição
(como nas Vanguardas), mas o âmago da literatura goza e faz gozar
disso, entanto o discurso da política a aproveita para fins medíocres: o presidente venezuelano Chaves, e também outros políticos,
são prova disso segundo o autor. Por sua vez, o texto de Márcia
Paraquett estuda com singular ênfase o paradigma de recepção contemporâneo fora da literatura, seguindo o modelo da análise do
discurso. As suas observações sobre uma charge do desenhista N ani
arriscam uma leitura política do (último?) escândalo no governo do
presidente Lula em tomo do ex ministro Palocci.
Menção aparte exigem os artigos de Lygia Rodrigues Vianna
Peres e de Paulo Bezerra, ambos professores da UFF, devido a
sua originalidade. A primeira descreve a "memória literária" do
personagem de Dom Quixote, que dependendo das circunstâncias
e das impressões visuais ao longo da história vai lembrando frases
que poderia ter lido na sua biblioteca ou ouvido dos romances
populares; assim, Alonso Quijano (em tanto leitor fanático) compartilha com Cervantes "a memória como registro específico da
expressão literária". A conclusão é instigante: o Quixote é um delírio motivado pelo temporal e simultâneo esquecimento do autor
e dos seus personagens. Quanto ao trabalho de Paulo Bezerra, a
figura de Sancho Pança é focalizada à luz da carnavalização de
Bakhtin. O deslocamento da leitura para o parceiro lhe permite
estabelecer os diferentes tipos de diálogo do fidalgo com os outros, inclusive com o apócrifo de Avellaneda. O jogo de duplicações reconstrói com sucesso a figura do Quixote como um personagem artificial, plural e polifônico, afastado dos estereótipos tanto
da loucura como do heroísmo.
Cada um dos textos do livro, por vias diferenciadas, tenta
trazer para terra o problema das utopias. Isto é: procura que Dom
Quixote seja um livro destinado à atividade civil da leitura, e que
os leitores pensem sobre o mundo que os rodeia e nas suas possi-
326
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
bilidades. Esse seria um bom exercício para fazer também em outros casos, como o daquele homem que em 1965 escreveu "otra
vez siento bajo mis talones el costillar de Rocinante" no início de
uma carta dirigida a seus pais, antes de ir rumo à Bolívia. A ele
devemos, também, adjudicar uma leitura da obra de Cervantes
talvez bem mais sutil do que cremos.
327
Conceitos de literatura e cultura
Eurídice Figueiredo (org.)
Juiz de Fora: Editora UFJF, Niterói:EdUFF, 2005.
Maisa Navarro
(Universidade Federal do Pará)
o propósito
deste livro é o mapeamento de conceitos
identitários e literários que surgiram desde as vanguardas e transitaram pelas Américas até o final do século XX a fim de lhes rastrear
o sentido, a origem e, sobretudo, o entrecruzamento e a
superposição de noções. Esses conceitos atentam para realidades
culturais às vezes semelhantes, às vezes diferentes, e foram criados e utilizados por teóricos e críticos em várias partes do continente americano e no Caribe.
Resultado de um amplo trabalho de pesquisa desenvolvida
pelo Grupo de Trabalho (GT) da ANPOLL, o livro "Relações literárias interamericanas", organiza-se em forma de um glossário em
que constam 20 ensaios, referentes a 20 conceitos fundamentais
do comparativismo interamericano. Os conceitos e os respectivos
autores são os seguintes:
Americanidade e Americanização - Zilá Bernd
Antropofagia - Heloísa Toller Gomes
Barroco e neo-barroco - Heloísa Costa Milton
Boom e pós-boom - André Trouche
Crioulidade e crioulização - Magdala França Vianna
Entre-lugar - Nubia Hanciau
Heterogeneidade - Graciela Ortiz
Híbrido, hibridismo e hibridização - Stelamaris Coser
Identidade cultural e identidade nacional- Eurídice
Figueiredo e Jovita Maria Gerheim Noronha
Indigenismo - Silvina Carrizo
Literaturas migrantes - Maria Bernadette Porto e Sonia Torres
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Mestiçagem - Silvina Carrizo
Negritude, negrismo e literaturas de afro-descendentes Eurídice Figueiredo, Maria Consuelo Cunha Campos, Ana
Beatriz Gonçalves e Márcia Pessanha
Multiculturalismo e pluriculturalismo - Arnaldo Rosa Vianna
Pós-colonial - Eloína Prati dos Santos
Pós-moderno - Giséle Manganelli Fernandes
Realismo mágico e realismo maravilhoso - Antonio Roberto
Esteves e Eurídice Figueiredo
Regionalismo - Dilma Castelo Branco Diniz e Haydée Ri
beiro Coelho
Textualidades indígenas - Cláudia Neiva de Matos
Transculturação e transculturação narrativa - Lívia de Freitas Reis
Trata-se, portanto, de uma obra de referência, que conta
com a participação de especialistas das várias literaturas nas quatro principais línguas das Américas (inglês, espanhol, francês e
português), que podem dar conta da circulação destes conceitos,
com as referências bibliográficas das fontes, as diversas significações que eles foram assumindo ao longo do tempo e do espaço
percorridos. Muitas destas noções tentam definir o estatuto da
cultura americana e, sobretudo, latino-americana, às vezes mais
particularmente a literatura dos países das Américas em oposição
à literatura européia. Os termos têm origens diversas, ora antropológicas, ora literárias, ora midiáticas.
O estudo das literaturas nacionais, de maneira estanque, às
vezes impede a compreensão de que tendências surgidas em um
país ou área lingüística têm correlação com outras muito mais
amplas que atingem outras regiões da América e especialmente da
América Latina. Assim, as interrelações que os autores dos diferentes ensaios revelam na presente obra devem suscitar outros
desdobramentos a fim de se possam detectar os movimentos por
que passam as literaturas do continente. Os autores ressaltam que,
como um pensamento se inscreve na história de cada país, é preciso ter o cuidado de, ao usar um conceito surgido em outro espaço
de enunciação, refazer todo o seu percurso a fim de não
homogeneizá-Io, eliminando as nuances que constituem a riqueza
e a produtividade que ele tinha em seu surgimento.
329
A literatura comparada no Brasil pode tirar partido das contribuições que os estudos culturais e pós-coloniais proporcionaram, sobretudo nas pesquisas sobre as questões identitárias, nacionais e transnacionais.
330
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Jacques Derrida: pensar a
desconstrução
Evando Nascimento (Org.)
S. Paulo: Estação Liberdade, 2005.
Carla Rodrigues
(PUC-RJ)
Numa entrevista que se manteve inédita até a sua morte,
realizada pelo jornal francês Le Monde} e publicada em caderno
especial póstumo, o filósofo Jacques Derrida responde à questão
que atravessou todo seu pensamento: o que é a desconstrução?
Ele diz: "Se eu quisesse dar uma descrição econômica, elíptica da
desconstrução, eu diria que é um pensamento da origem e dos
limites da questão 'o que é?', a questão que domina toda a história da filosofia. Cada vez que se tenta pensar a possibilidade de 'o
que é', de colocar uma pergunta sobre essa forma de questão, ou
de se interrogar sobre a necessidade dessa linguagem dentro de
uma certa língua, uma certa tradição, isso que se faz nesse momento não se presta senão a um certo ponto da questão 'o que
é"'2. Em outra entrevista, é a psicanalista Elisabeth Roudinesco
quem afirma: "Às vezes tenho a impressão de que o mundo atual
se parece um pouco com o senhor e seus conceitos, que nosso
mundo está desconstruído e que se tomou derridiano a ponto de
refletir, como uma imagem num espelho, o processo de
descentramento do pensamento, do psiquismo e da historicidade
que o senhor contribuiu para pôr em prática"3 O raciocínio de
Roudinesco indicaria que a desconstrução não seria obra de
Derrida, mas algo que, como o próprio filósofo afirma, acontece.
Esse acontecimento, no entanto, não se daria sem traumas.
É em tomo do acontecimento da desconstrução que gira a
coletânea Jacques Derrida: Pensar a desconstrução, organizada
por Evando Nascimento e editada em 2005 pela Estação Liberdade. O principal texto do livro é o inédito "O perdão, a verdade, a
reconciliação: qual gênero?", íntegra da conferência4 do filósofo
I A entrevista foi realizada em
30 de j unho de 1992. Em
edição especial póstuma, o
jornal publicou apenas a
resposta para a pergunta: "o que
é a desconstrução". Le Monde,
12 de outubro de 2004, p. 3.
2 "Si je voulais donner une
description économique,
elliptique de la déconstruction,
je dirais que c' est une pensée de
I' origine et des limites de la
question 'qu'est-ce que? .. .' ,Ia
question qui domine toute
I'histoire de la philosophie.
Chaque fois que I' on essaie de
penserla possibilité du 'qu'estce que? .. .', de poser une
question sur cette forme de
question, ou de s'interroger sur
la nécessité de ce langage dans
une certaine langue, une
certaine tradition, etc., ce qu' on
fait à ce moment-Ià ne se prête
que jusqu' à un certain point à
laquestion 'qu'est-ceque? ... "'.
Tradução minha.
J DERRIDA, Jacques e
ROUDINESCO, Elisabeth. De
que amanhã... Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 2004, p. 11.
Conferência proferida durante
o Colóquio Internacional
"Jacques Derrida 2004: pensar
a desconstrução - questões de
política, ética e estética",
realizado na Maison de France,
no Rio de Janeiro, em agosto de
2004, e promovido pela UFJF
em parceria com o Consulado
Geral da França.
4
331
DERRIDA, Jacques. Papelmáquina. São Paulo: Estação
Liberdade, 2004, p. 348.
5
no colóquio internacional realizado no Rio de Janeiro em agosto
de 2004, dois meses antes de sua morte. Derrida foi um pensador
engajado. Sobretudo, um filósofo interessado nas questões contemporâneas. Foi esse interesse que o levou, ainda em meados da
década de 1980, a acompanhar o processo de fim do apartheid na
África do Sul e suas conseqüências. A partir de 1994, ano em que
Nelson Mandela instituiu a Comissão de Verdade e Reconciliação, que pretendia alcançar a "verdade" como condição para o
perdão, Derrida acompanhou de perto o funcionamento da comissão sul-africana, parecendo particularmente interessado no
mecanismo de vir à tona, identificando aí um movimento oposto
ao do recalque que tudo esconde e oprime.
Ainda que em contextos diferentes, as reflexões de Derrida
remetem o leitor brasileiro para a inegável pertinência do seu pensamento sobre o perdão num país como o Brasil, que escondeu a
escravidão e o racismo de tal forma que é imensa a quantidade de
pessoas que crê firmemente viver num país sem discriminação racial. Derrida interroga os objetivos da comissão sul-africana: trazer à tona o trauma e promover a reconciliação, ideal no qual ele
localiza uma expectativa de transcendência (p. 61).
Numa discussão sobre as condições de possibilidade do perdão, Derrida mais uma vez desloca o foco. Ao invés de perder-se
no debate sobre o mérito do perdão, afirma que só se pode perdoar o imperdoável. É desse paradoxo que surge a possibilidade de
responsabilidade em relação ao perdão. Num diálogo. filosófico
amplo, que vai de Kant a Hegel, Derrida guia o leitor pelos caminhos da desconstrução também na política, o que remete à questão sobre o tipo de contribuição que o pensamento da
desconstrução tem a dar no questionamento sobre os impasses da
vida contemporânea.
Conciliar o pensamento dessa desconstrução que acontece
e que aponta os limites da questão "o que é?" com prática política
era um desafio para o filósofo, como ele mesmo explicou: "Obtendo êxito de maneira irregular, mas nunca o bastante, tentei,
portanto, ajustar um discurso ou uma prática política às exigências da desconstrução. Não sinto um divórcio entre os meus escritos e os meus engajamentos, apenas diferenças de ritmos, de modo
de discurso, de contexto, etc." S Os engajamentos a que ele se
refere são sua militância contra a pena de morte, sua defesa dos
332
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
sem-documento, sua adesão à causa das minorias como mulheres,
homossexuais, e sua luta contra o apartheid, essa que o levou a escrever sobre a experiência dos tribunais de perdão da África do Sul.
Na exploração da desconstrução a que o livro se propõe
desde seu título, o texto de abertura, "O perdão, o adeus e a herança em Derrida: atos de memória", assinado pelo organizador
Evando Nascimento, serve de ótimo fio condutor para quem deseja caminhar pelo pensamento de Derrida. Uma forma de dar as
boas-vindas aos que estão chegando agora, mas também um
desbravamento pelo trabalho do filósofo em relação a questões
contemporâneas. Evando nos guia pelas trilhas, pelos rastros que
nos levam ao último Derrida, aquele que esticou até o limite sua
definição para filosofia: "Pensar em ação, fazendo algo". 6
Hospitalidade e acolhimento
Jacques Derrida: Pensar a desconstrução também é uma
demonstração do acolhimento que o pensamento de Derrida teve
no campo da Literatura. São dezenove artigos que, de alguma
forma, estão relacionados ao tema. O livro agrupa textos por afinidade temática: "Políticas da desconstrução", "Desconstrução,
hospitalidade e tradição de pensamento", "Derrida e a tradução"
e "Querer acreditar. Nas mãos do intelecto". É do pioneiro Silviano
Santiago, a quem cabe o mérito de ter sido um dos primeiros a
trazer a leitura de Derrida para os departamentos de Letras no
Brasil, nos idos da década de 1970, um texto que explora a
différance derridiana como a subversão de uma letra. O incômodo a que, acrescentado à palavra francesa différence, impede a
diferenciação entre o vocábulo escrito e falado, confundindo as
regras que deveriam separar claramente phoné e escrita. Esse incômodo Santiago identifica também na proposta de responsabilidade, trabalhada por Derrida sobretudo em Donner la mort,? e
discutida por Santiago em "O silêncio, o segredo, lacques Derrida".
Também no campo das Letras estão artigos como "Aquele que
desprendeu a ponta da cadeia", de Leyla Perrone-Moisés, que
aproxima Derrida do pensador francês Roland Barthes, e o belo
trabalho de Kathrin Holzermayr Rosenfield sobre Machado, Rosa,
Musil e Clarice Lispector.
'Entrevista publicada em httpJ
/indymedia.aI12all.org/
mail.php?id=83l23. Endereço
consultado em 20 de maio de
2005.
'DERRIDA, Jacques. Donner
la morl. Paris: Galilée, 1999.
333
8 DERRIDA, Jacques. This
strange institution called
Iiterature: interview. In:
ATTRIDGE, Derek (Ed.)
Jacques Derrida: acts of
literature. Nova YorkJLondres:
Routledge, 1992.
9 NASCIMENTO, Evando.
Derrida e a literatura. Niterói:
EdUFF, 1999, p. 274.
10 DERR1DA, Jacques. A
escritura e a diferença. São
Paulo: Editora Perspectiva,
2002.
11 DUQUE-ESTRADA, Paulo
Cesar. Derrida e a escritura. In:
DUQUE-ESTRADA, Paulo
Cesar (Org.). Às margens da
filosofia. Rio de Janeiro: Editora
PUC-RJlEdições Loyola, 2002.
É verdade que Derrida soube retribuir a atenção merecida
nos departamentos de Letras. Detrida definiu a literatura como o
lugar onde se pode dizer tud0 8 , o lugar mais interessante do mundo, talvez mais interessante do que o mundo. Menos por pretender criar algum fetiche em torno da literatura9 e mais para salvaguardar o espaço literário como esse lugar de abertura. Quando
diz que "o sujeito da escrita é um sistema de relações em camadas: da lousa mágica, da psique, da sociedade, do mundo" e que,
"no interior dessa cena, a simplicidade pontual do sujeito clássica
é impossível de ser encontrada lO ", Derrida está mais uma vez tirando o fundamento do solo no qual deveriam florescer conceitos
sólidos para a compreensão do mundo. No entanto, na Literatura,
pode-se afirmar que esse abalo é parte constituinte, o que seria
uma das razões para a valorização que Derrida faz da Literatura
como lugar de abertura.
Esse descentramento que destacou na escrita ou na psicanálise, o filósofo tentou espalhar para o campo do político até o limite
máximo, sempre propondo deslocamentos. Seria seguro afirmar que
são justamente esses deslocamentos, esses reenvios de sentido que
fazem com que Derrida seja mais lido nos departamentos de Letras
ou entre os teóricos da Psicanálise do que na Filosofia? O livro é
uma demonstração de como esse processo também se deu no Brasil
- e é importante ressaltar que o fenômeno se reproduz em todos os
países do Ocidente que se puseram a ler Derrida.
Entre os vinte e um artigos publicados, há apenas um filósofo brasileiro, o professor da PUC-RJ Paulo Cesar Duque-Estrada.
A solidão filosófica poderia indicar um certo apego da Filosofia
ao pensamento da verdade como fundamento, numa perspectiva
que Derrida trabalhou para desconstruir. É em "Derrida e a crítica
heideggeriana do humanismo" que Duque-Estrada explora o postulado humanista de volta ao sujeito. O autor lembra que Derrida
desconstrói a noção de identidade para substituí-la por identificação, esta mais próxima de um processo, de um movimento, de um
devir permanente que nunca se dá completamente, do que a rigidez
da identidade fixa, própria e apropriada. Para Derrida, o que forma
uma identidade é aquilo que já a desloca, num processo que se repete indefinidamente ll . Já naqueles que reivindicam a volta ao sujeito da tradição haveria o desejo de ancorar a questão do ser em
portos supostamente mais sólidos do que os indecidíveis derrianos.
334
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Duque-Estrada demonstra que a desconstrução está sendo
posta sob suspeita Cp. 247) porque, no seu descentramento do
sujeito, é acusada de não ter nada de substancial a oferecer diante
de um quadro político marcado pelo recrudescimento do
fundamentalismo religioso, pela violência urbana crescente, pela
globalização que tudo entrega às mãos invisíveis do mercado. A
crítica da insistência no humanismo, que Derrida '2 identifica inclusive no pensamento de Heidegger, poderia ser o ponto fraco no
qual os postuladores da volta ao sujeito percebem a desconstrução
como o pensamento que "não tem nada a dizer." No entanto, Duque-Estrada lembra que a clausura pode estar no pensamento que
insiste no homem Cp. 254).
Ainda no âmbito da filosofia, é no artigo "Mal de hospitalidade", da filósofa portuguesa Fernanda Bernardo, que o leitor
encontrará de maneira precisa a ligação entre desconstrução e
hospitalidade, para demonstrar como o acolhimento ao estrangeiro, ao outro que se apresenta a partir da desconstrução, a esse
outro que emerge quando a desconstrução acontece, como esse
incondicional sim ao estrangeiro, essa hospitalidade a todo e qualquer outro que "define a desconstrução como movimento de pensamento" (p. 193).
Etapas e deslocamentos
Há quem pretenda dividir o pensamento de Derrida em duas
etapas - a primeira, a da descontrução do signo, presente em textos do final da década de 1960, dos quais Gramatologia (1967) é
o mais exuberante. A categoria compreenderia também A différance
(1968), Afarmácia de Platão e A Disseminação, ambos de 1972.
Já o último Derrida seria aquele filósofo que ousou abarcar na sua
obra questões políticas contemporâneas e, por isso, teria vindo ao
Brasil, meses antes de morrer, falar sobre pena de morte e perdão. A
divisão, creia-se nela ou não, serve os críticos tanto do primeiro quanto
do último Derrida. De uma proposta de desconstrução que estaria
apenas "lendo textos de outro modo", ele teria passado a discutir
temas supostamente alheios à filosofia. Por isso, perguntam os filósofos dogmáticos, para usar uma expressão derridiana, o que perdão
tem a ver com a filosofia e com a questão primeira - "o que é"?
Quando, em Gramatologia, Derrida começa a questionar o
12 DERRIDA, lacques. os fins
do homem. In: DERRIDA.
largues. Margens dafilosofia
Campinas: Papirus, 1991, p
161.
335
signo como portador de uma unidade natural entre significante
(palavra) e significado (sentido), põe também em questão a tradição metafísica que estaria implicada na idéia de que a linguagem
carrega a possibilidade de expressão de uma verdade
transcendental. Ao desfazer a estrutura binária significante/significado, ele aponta para o "caráter arbitrário do signo" e questiona
a existência da ligação natural entre significante e significado, o
que equivale a suspender esse conjunto de supostas oposições
entre sensível/inteligível, dentro/fora, presença/ausência. Daí em
diante, há um longo caminho a percorrer até chegar à abordagem
política do "último Derrida", que parte da ausência de fundamentos para identificar violências, que joga com os indecidíveis para
questionar verdades, mesmo - ou principalmente - aquelas ditas
em nome do Bem.
Pode-se reconhecer que Derrida foi um pensador em ação,
que trilhou o tênue fio entre desconstrução e prática política. Com
isso, teria ele contaminado o pensamento filosófico, desviando-o
da questão "o que é"? Ao questionar os limites dessa pergunta tão
cara à filosofia, Derrida abriu-se à perspectiva de não apenas não
ter as respostas prontas, mas ousar dizê-lo. Pensar a desconstrução
é um livro que, no seu espectro amplo de abertura a diferentes
leitores de Derrida no Brasil e no exterior, monta um mosaico de
como o pensamento da desconstrução acontece, para além do jogo
de ausência/presença do último Derrida entre nós.
336
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
História. Ficção. Literatura.
Luiz Costa Lima
São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
Sérgio Alcides
(UFOP)
História. Ficção. Literatura, como outros livros de Luiz
Costa Lima, parte de uma questão aparentemente simples, por
trás da qual o teórico surpreende todo um labirinto de conexões e
impasses da maior relevância para diferentes setores das chamadas "humanidades". Foi assim com seus primeiros estudos sobre a
mímesis dos gregos: seria ela o mesmo que a sua contrapartida no
mundo romano, a im ita tio , subordinada ao primado do real? E
assim foi com a trilogia do Controle do imaginário: que estatuto
é reservado ao ficcional na modernidade, em face do tipo de razão
triunfante no Ocidente?
Desta vez a questão de partida está ligada a uma constatação:
tem sido superficial demais, desde a Antigüidade, a reflexão comparativo-contrastiva entre a história e a poesia. A carência de um
aporte teórico mais conseqüente a esse respeito adquiriu aspectos
de emergência desde os anos 1970, quando veio à tona com toda
a força a polêmica sobre a dependência da escrita da história frente a procedimentos e recursos ficcionais (tais como a narrativa e
as figuras de linguagem). Costa Lima tem participado do debate
há mais de uma década - mas só agora apresenta uma versão
cabal e mais desenvolvida de seus argumentos.
O título do livro já dá boas indicações do posicionamento
do autor: como termos separados por pontos, história, ficção e
literatura não se confundem, nem são intercambiáveis. As três
partes da obra teorizam sobre os termos separadamente, tratando
das especificidades de cada um, mas sem deixar de investigar suas
relações com os outros dois.
O longo prefácio procura expor a questão e apresentar uma
337
espécie de roteiro seguido pelo teórico na sua abordagem. É provável que esta venha a ser a parte do livro mais consultada nos
cursos universitários, sobretudo na área de história (pelo menos
num prognóstico talvez otimista demais). No contexto de um debate que já dura mais de trinta anos, escassamente conhecido no
Brasil, esse texto apresenta uma das críticas mais conseqüentes e
originais já feitas à obra de Hayden White, o autor de Metahistory
(1973). Por meio da análise literária de textos historiográficos clássicos, o teórico americano procurou demonstrar que a escrita da
história se constitui mais propriamente numa série de ficções verbais, cujo conteúdo é tão inventado quanto achado, e que têm
mais em comum com a literatura do que com as ciências.
É importante frisar que a crítica de Costa Lima nada tem de
reacionária - como tem sido, em geral, a pequena recepção da
obra de White no Brasil. Longe de fazer tabula rasa do chamado
linguistic tum que inspirou o trabalho de White nos anos 1970,
Costa Lima ressalta vários aspectos favoráveis trazidos por essa
virada de perspectiva epistemológica. Ao invés de negar in limine
toda e qualquer contribuição que venha dessa corrente, como tem
feito, por exemplo, Carlo Ginzburg, Costa Lima dialoga com ela e
assim encontra seus reais limites. Para além destes se encontra o
campo teórico novo, no qual ele procura fundar sua reflexão.
Para retomar a distinção entre história e ficção, o autor chama a atenção para as "metas discursivas" de cada gênero, e ainda
acompanha a concepção de Reinhart Koselleck de uma camada
pré-verbal a ser considerada na escrita da história. Em outros
momentos deste livro, ficará clara a maior proximidade de Costa
Lima com autores alemães do que com os americanos também na
área da teoria da história - assim como, na teoria literária, ele
nitidamente se identifica, desde finais dos anos 1970, com a constelação de autores formados sob o impacto da "estética da recepção", de Hans Robert Jauss - sobretudo Karlheinz Stierle e
Wolfgang Iser; a este último, presta um importante tributo na segunda parte do livro.
É também marcante nesse prefácio o trio de apoio teórico
que Costa Lima montou - totalmente inesperado e original- para
enfocar toda obra: um artigo esquecido de William J ames ("The
Perception of Reality", de 1889), outro de Alfred Schütz ("On
Multiple Realities", de 1954) e a obra capital de Erving Goffman
338
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
sobre a "análise por molduras" (de 1974). Partindo de três autores "fora de moda", ele traça uma maneira própria de considerar a
"construção social da realidade" (livrando-nos da rotina de Berger
e Luckmann a esse respeito). O leitor que conhecer bem a obra de
KoseIleck (ou a de Jauss, neste caso), não terá dificuldades em
notar como Costa Lima lê aqueles três autores de um ângulo "alemão", fortemente marcado pela nova hermenêutica - sendo o
melhor sinal disso o uso recorrente da dupla de categorias experiência/expectativa, à qual se recorre para explicar, por exemplo, o
conceito de frame ("moldura") do canadense Goffman.
Em J ames, Costa Lima busca uma interessante definição de
"crença" como estado emocional de conhecimento da realidade
que estabelece as condições para o consentimento e assim provoca a "cessação da agitação teórica". Para se acrescentar aos muitos sinais de ceticismo espalhados pela obra de Costa Lima, ele
conclui: "o oposto da crença não é a descrença, mas sim a dúvida". Esse indício, aparentemente banal, ganhará maior importância à medida que o leitor vai se dando conta do cerne do livro, que
diz respeito ao contraste entre o ficcional e o historiográfico. Seja
como for, o artigo de J ames afasta desde o princípio a reflexão do
teórico brasileiro de qualquer ranço positivista: "a fons et origo
de toda a realidade", afirma o americano, "é subjetiva, somos nós
mesmos". Para quem ainda supõe ser possível trabalhar em ciências sociais dentro de parâmetros teóricos mais simplórios, será
inquietante acompanhar a conclusão desse pensamento, segundo
a qual "a própria palavra 'real' é, em suma, uma fímbria". Ao que
Costa Lima acrescenta: "Ser, do ponto de vista humano, a realidade uma fímbria significa que não a vivenciamos como um território contínuo, apenas reconhecido a partir de seu registro pelos
órgãos dos sentidos". E continua: "Quando, portanto, nos dizemos que realidade é o que se põe diante de nós e provoca reações,
empregamos uma tosca lógica a posteriori, pois convertemos em
experiência passiva o que, na verdade, depende da participação
ativa da subjetividade".
A contribuição encontrada em Schütz serviu para dar mais
consistência, como objeto teórico, a essa fímbria heterogênea subjetivamente construída. Para tanto, recorreu-se à concepção desse sociólogo acerca das "províncias finitas de significação" que
cada um estabelece, na vida prática, diante das próprias experiên-
339
cias, gerando um "estilo cognitivo" específico. A realidade, assim,
torna-se ainda mais fragmentária- desde a "fímbria" subjetiva até
as "províncias" intersubjetivas. Goffman ajuda Costa Lima a
aprofundar ainda mais o problema, através das "molduras"
delineadas por cada interação discursiva na vida cotidiana, que
trazem implícitos um conjunto de expectativas e um padrão seletivo de percepção do mundo e dos outros. Isso desvia Costa Lima
da hipervalorização da retórica que vem ganhando espaço em diferentes domínios, como a economia, a história e os estudos literários. "Indiretamente", argumenta ele, "Goffman nos ensina que
a retórica nos acompanha em cada situação do cotidiano. Portanto, que não será por ela que poderemos definir uma situação
discursiva".
Toda essa problemática percorrerá o restante do livro subterraneamente; o autor não precisa mencioná-la para nos relembrar
de que as três partes de História. Ficção. Literatura nela se enraízam. A primeira destas é a que traz mais novidades para o conjunto da obra de Costa Lima, que aqui se consolida também como
um teórico da história. O objetivo, em linhas gerais, é fixar as
especificidades da escrita da história, sem deixar de insistir sobre
os seus débitos literários. "Preocupar-se com a construção do texto
não supõe considerar-se a verdade (alétheia) uma falácia convencional; a procura de dar conta do que houve e por que assim foi é
o princípio diferenciador d". escrita da história. Ela é a sua aporia".
Esse trecho introduz o conceito mais surpreendente de todo o
livro: aporia, como concepção de verdade uniforme e sem fissuras,
tida por auto-evidente e sempre idêntica a si própria, puro objeto
do reino dos fatos, independente de observação ou participação
subjetiva. Superado o primado positivista do real, a linha de distinção entre a história e a ficção não passa mais pela distinção
entre o documental e o imaginado, o factual e o fingido, mas sim
pela reivindicação de verdade que sustenta uma, aporética, ao passo
que a outra se isenta desse padrão pré-lingüístico e é, por isso,
mais porosa.
A surpresa aqui está tanto na formulação, por sua originalidade, quanto na terminologia adotada. Estudioso de filosofia (que,
aliás, tende ao trabalho do filósofo cada vez mais, pelo menos
desde Mímesis: desafio ao pensamento, do ano 2000), Costa Lima
certamente conhece a fortuna do termo aporia. Entre os diálogos
340
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
socráticos de Platão, são chamados de aporéticos justamente os
inconclusos, nos quais a discussão se encerra sem que os
interlocutores cheguem a uma conclusão firme sobre o tema em
pauta. Sem falar no famoso poema de Carlos Drummond de
Andrade, "Áporo", em que um inseto cava a terra em busca de
uma improvável saída. Maior defensor do ficcional entre os teóricos da literatura pós-estruturalistas, Costa Lima parece mais uma
vez alinhar-se aos céticos ao escolher esse vocábulo para modelar
um conceito: ele, por si só, põe em questão os privilégios da verdade. Essa impressão é reforçada pela circunstância de a aporia,
conforme a argumentação do autor, ser mais rígida sobretudo na
crença (sendo o contrário desta, como vimos com a ajuda de
William James, a dúvida).
Dentro desses referenciais, a primeira parte se inicia com
uma cerrada revisão do debate acerca de autores que, na Grécia
Antigüidade, foram chamados de "historiadores": Heródoto e
Tucídides. Estrangeiro em campo minado, Costa Lima não esconde suas preferências por M.1. Finley e F. Hartog,justamente aqueles
que, entre os especialistas em história antiga, têm sido os mais
polêmicos. Desde o início vem à tona uma preocupação que atravessará o livro inteiro, mesmo as duas partes seguintes, com o
temperamento refratário dos historiadores, em geral, frente a quaisquer discussões teóricas, resultando numa espécie de positivismo
naif que é freqüentemente "alfinetado" pelo autor: seus maiores
inimigos são "o arraigado positivismo dos historiadores, que não
aceitam sequer discutir a aporia da verdade", "a marca objetivista
do padrão positivista", "o infantilismo positivista dos historiadores", "a dificuldade dos historiadores de se libertarem da camisa
de força que se tornou a objetividade". Se rejeita a redução da
história à ficção, devido ao apoio daquela na aporia veraz, o teórico não deixa de questionar a inscrição da verdade no domínio do
factual, pura e simplesmente. Com isso, ele retoma um dos temas
recorrentes de sua obra desde pelo menos O controle do imaginário (de 1984), que é a crítica ao substancialismo inscrito na concepção de fato.
Por outro lado, em contraste com os pressupostos do
linguistic turn, Costa Lima postula a existência de um nível préverbal de experiência onde possa radicar a premissa de verdade
dos historiadores. É o que o autor chama de "história crua", aque-
341
la onde está imersa a vida. Ela é assim designada - quem sabe?talvez por não ter ainda sofrido a cocção discursiva. Ou, por outro lado, pela crueza dos afetos humanos, sobre os quais ela avança; num livro que se inicia com as interrogações e as perplexidades de Heródoto e Tucídides sobre as guerras da Antigüidade, e
escrito num tempo em que as paixões bélicas reaparecem em primeiro plano, é compreensível que Costa Lima reconheça uma
"marca amarga": "a história crua caminha sobre a violência". Deve
estar ligada ao mesmo amargor a hipótese de a ojeriza
historiográfica relacionar-se com os seus compromissos frente ao
Estado-nação. E a conseqüência prática - ou ética - da teoria de
Luiz Costa Lima se resume num trecho de síntese sobre toda a
primeira parte do livro: "O que esta seção tem afirmado, portanto, é a necessidade de, reconhecendo-se a aporia específica da
história, dar-lhe um tratamento flexível, submetê-la a um uso poroso". Antes, o autor já tinha observado que é próprio da aporia o
risco de se enrijecer contra o autoquestionamento, com a tendência ao dogma. A tarefa por excelência do historiador, portanto,
não será a montagem dessa superfície sem poros e veraz, mas, ao
contrário, a "abertura de horizontes". O que faz lembrar o conhecido ditado segundo o qual "o passado é um país estrangeiro".
Mas, como nos ensina este Costa Lima teórico da história, para
viajar nele é necessário bem mais do que um passaporte ou um
diploma de bacharel.
A segunda parte trata da ficção. Novamente, o autor começa pelo começo: na Grécia, primeiro com Homero, depois com a
'tragédia. Um destaque do primeiro capítulo é o tratamento dado a
Aristóteles (aliás já discutido em menor profundidade na seção
anterior), como um pensador tão seminal no campo das idéias
estéticas quanto falhado, por ter sido, na visão de Costa Lima,
mal compreendido e banalizado por seus continuadores: sua fortuna, afinal, terá s;do um infortúnio. A discussão também é originária do Controle do·imaginário, manancial de toda a obra madura do autor, que tem se revelado praticamente inesgotável e necessita de urgente reedição (o primeiro volume da trilogia teve
uma reedição revista, mas os outros dois não). Se no livro anterior o tema aristotélico revisto foi o conceito de verossimilhança,
além do de mímesis, agora o interesse maior recai sobre a tragédia
e o conceito de catarse.
342
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
Nessa mesma parte o autor se aprofunda em distinções finas, por exemplo entre o real e a realidade, a ficção e a
mímesis, o fictício e o ficcional. Reaparece aqui o problema da
retórica; para Costa Lima, a redução das teses aristotélicas a um
conjunto de preceitos retóricos foi "um desastre" - e, pode-se
concluir, a reificação desses preceitos pela crítica literária atual se
arrisca a repetir os efeitos desse antigo mal-entendido. Buscando
um roteiro próprio, Costa Lima prefere conduzir a discussão sobre obras marcantes da Antigüidade latina - tais como a Eneida,
de Virgílio, e as Metamorfoses, de Ovídio - a partir da relação
entre poesia, verdade e imaginação. Os especialistas em literatura
antiga talvez se sintam enciumados. Costa Lima verá em Virgílio a
tentativa de denegar a ficção, marcada pelo vínculo do seu poema
com a glorificação do império romano. Ao passo que as Metamorfoses tomam explicitamente o partido da imaginação: "O resultado é a retórica pôr-se a serviço do ficcional". E, assim como
a mímesis tem a propriedade de selecionar valores de uma determinada sociedade, inscritos no tempo, destinando-os à outra
temporalidade da obra de arte, o ficcional "traz em si incrito o
real": mais do que uma representação ou um reflexo dele, a ficção
é aquilo que o captura sob a forma de discurso, podendo assim
agir sobre ele. Fica evidente o caráter disruptivo e potencialmente
subversivo do ficcional.
A seção termina, depois de uma discussão sobre a obra de
Wolfgang Iser, com um capítulo inteiramente dedicado à análise
crítica - a partir dos pontos teóricos até aqui levantados - de um
longo diálogo entre Otaviano Augusto e o personagem principal
do romance A morte de Virgílio, de Hermann Broch. Está em causa precisamente o tema latente em todo o percurso de Costa Lima:
a quem pertence a poesia? ao poeta? ao Estado? No trecho analisado, o imperador procura evitar que o vate moribundo destrua o
seu poema épico que glorificava o Império.
A terceira parte é a menos ambiciosa do livro, mas é ela que
"amarra" todas as pontas deixadas pelas anteriores - o que talvez
já sinalize algo de relevante acerca da sua palavra-chave, "literatura". Esta, para Costa Lima, não se confunde com ficção. A própria dificuldade de definir o conceito, que o autor estuda na sua
raiz, em F. Schlegel, Mme. de Stael e Chateaubriand, serve-lhe de
apoio para investir teoricamente sobre esse próprio vazio. A lite-
343
ratura passará a ser o discurso aberto, que comporta o heterogêneo, o híbrido e o ainda não formulado, e cuja característica sensível é o que o autor chama de "espessura da linguagem". Esse
traço vago - mas por definição infenso ao tipo de enrijecimento
que se cristaliza em aporia - justificaria que obras inscritas originalmente no campo das ciências sociais, como Os sertões e Casa
grande & Senzala, uma vez perdida a sua vigência, sejam incorporadas ao acervo da literatura. Assim como na seção anterior o
teórico se faz de crítico e enfrenta A morte de Virgílio, aqui é a vez
de o material teórico formulado encontrar uma atuação crítica acerca das Memórias do cárcere, de Graciliano Ramos, obra na qual
Costa Lima encontrará uma "abstinência de ficcionalidade" que, no
entanto, revela uma concepção de literatura mais complexa do que
mostra o mesmo escritor em sua obra de imaginação, limitada, segundo o crítico, pela subordinação da ficção à realidade.
O último capítulo, na verdade um apêndice, consta de um
ensaio de Costa Lima sobre Os sertões - tema de seu livro mais
próximo deste, a meu ver, que é Terra ignota, sobre a obra de
Euclides da Cunha. O autor adverte que, nesse ensaio, a meio
caminho entre um livro e outro, as questões que gerariam História. Ficção. Literatura já estão em preparo, embora não inteiramente formuladas. Em Terra ignota (de 1997), as relações entre
história e literatura são o tema de um dos dois apêndices (sendo o
outro um dos textos mais importantes e menos comentados de
Costa Lima, "O pai e o trickster", sobre o contraste das condições
sociais e intelectuais de produção do saber e da literatura em meios "metropolitanos" ou "marginais").
História. Ficção. Literatura será visto como um marco importante de amadurecimento dentro da obra de Costa Lima. Tomara que o traduzam logo para alguma língua mais conhecida do
que o português, para que as contribuições originais que ele contém possam fazer algum eco - inclusive no Brasil (pois faz parte
das nossas síndromes esse efeito "bumerangue" da projeção internacional). Entre nós, talvez desperte mais interesse nos departamentos de letras do que nos de história (sendo exceção entre estes
o da PUC-RJ, onde o autor leciona). É pena, porque os maiores
beneficiários deste livro serão os historiadores menos "engessados"
nos preconceitos do seu métier.
345
Apresentação dos autores
Ana Cláudia Viegas é professora adjunta de Literatura
Brasileira da UERJ e de Teoria da Comunicação e Teoria da Imagem da PUC-Rio. Publicou, além de artigos diversos, o livro Bliss
& blue - segredos de Ana C. (São Paulo: Annablumme, 1998).
Desenvolve, atualmente, pesquisa em torno das relações entre a
Literatura Brasileira contemporânea e os media eletrônicos e digitais.
Andréa Borges Leão é doutora em Sociologia pela Universidade de São Paulo e professora do Programa de Pós-graduação em Educação Brasileira da Universidade Federal do Ceará.
Em 2005, realizou estágio pós-doutoral na École des Hautes
Études en Sciences Sociales, Paris, sobre a formação das coleções literárias infantis da Livraria Garnier. Sua última publicação
é : LEÃO, Andréa Borges. Universos da devoção, sabedoria e
moral: as Bibliotecas Juvenis Garnier (1858 e 1920). In: Revista
Educação em Revista N. 43. Belo Horizonte: Faculdade de Educação da UFMG, 2005.
Ângela Maria Dias é professora de Literatura Brasileira,
Teoria Literária e Literatura Comparada da UFF & Pesquisadora
do CNPq. Ensaísta e crítica literária, desde os anos 80. Publicações recentes: Estéticas da crueldade (Coordenação e Organização com Paula Glenadel), Ed.Atlântica/2004; "Barthes e a fotografia: Por uma fenomenologia do afeto". In: GLENADEL, Paula
& CASA NOVA, Vera. Viver com Barthes.Rio de Janeiro, 7Letras, 2005.
Délia Cambeiro é professora de língua e literatura italiana
da UERJ.
346
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
Edson Rosa da Silva é Professor Titular de Língua e Literatura Francesa da UFRJ, Pesquisador do CNPq, Membro do
Comitê Assessor de Letras e Lingüísticajunto ao CNPq, e especialista da obra de André Malraux, sobre a qual defendeu tese de
doutoramento na UFRJ (1984) e escreveu inúmeros artigos em
revistas nacionais e estrangeiras.
Joana LuÍza Muylaert de Araújo, professora de Teoria
Literária e Literatura Brasileira do Instituto de Letras e Lingüística da Universidade Federal de Uberlândia e do Mestrado em Teoria LiteráriaJUFU, é Coordenadora do Programa de Pós-graduação em Letras - Mestrado em Teoria Literária.
Laura Padilha é professora da UFF, pesquisadora do Cnpq,
ex- vice-presidente da ABRALIC e ex-presidente da ANPOLL.
Autora, entre outras, das obras: Entre voz e letra (Niterói/Lisboa:
EDUFFlNovo Imbondeiro, 1995/2(05); Novos pactos, outras ficções. (Porto Alegre/Lisboa: Ed. PUC-RGS /Novo Imbondeiro, 2002.
Luiz Gonzaga Marchezan é professor assistente-doutor
de Teoria da Literatura do Departamento de Literatura da UNESP,
na FCL do Campus de Araraquara. Organizou, com a Profa. Dra.
Sylvia Telarolli, dois volumes: Ce1las literárias: a narrativa em
foco e Faces do 1larrador, ambos editados pelo Laboratório Editorial da UNESP de Araraquara, em convênio com a Cultura Acadêmica, da Editora da UNESP, lançados, respectivamente, em
2002 e 2003. Em 2005, apresentou a edição de Ermos e gerais,
de Bernardo Elis, pela Editora Martins Fontes.
Maria de Lourdes Patrini-Charlon é professora do Departamento de Letras da Universidade Federal do Rio Grande do
Norte. Suas publicações mais recentes inc1uemA renovação do conto
- emergência de uma pratica oral. São Paulo: Cortez Editora, 2005.
Maria Esther Maciel é professora de Teoria da Literatura
da UFMG. Doutora em Literatura Comparada, com Pós-Doutorado pela Universidade de Londres. Autora, entre outros, dos livros As vertigens da lucidez: poesia e crítica em Octavio Paz
(1995), Vôo Transverso: poesia, modernidade e fim do século
347
xx (1999), A memória das coisas -
ensaios de literatura, cinema
e artes plásticas (2004) e O livro de Zenóbia (ficção, 2004). Tem
vários trabalhos publicados em revistas brasileiras e estrangeiras
Marília Librandi Rocha é Professora de Teoria da Literatura na Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia. Doutora em
Teoria Literária e Literatura Comparada, USP.
Maria Luiza Berwanger da Silva é professora do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul. Além de artigos em periódicos, publicou Paisagens Reinventadas (Traços Franceses no Simbolismo
Sul-Rio-Grandense). Porto Alegre: UFRGS, 1999.
Marisa Lajolo é atualmente professora da Universidade
Presbiteriana Mackenzie e professora titular de Teoria Literária da
Unicamp. Coordena o projeto temático" Monteiro Lobato (18821948) e outros modernismos brasileiros" (http://www.unicamp.br/
iel/monteirolobato) que tem apoio da Fapesp e do CNPq. Entre seus
livros listam-se: Coma e porque ler o romance brasileiro e Monteiro
Lobato - um brasileiro sob medida. Mais recentemente, organizou a
publicação dos postais que Monteiro Lobato enviou à noiva entre
1906 e 1908 (Quando o carteiro chegou).
Patrícia Kátia da Costa Pina é professora Adjunta de Literatura Brasileira da Universidade Estadual de Santa Cruz-UESC,
em Ilhéus, na Bahia. Organizou o resgate e a publicação do livro
Vindiciae, de Lafaiete Rodrigues, pela UERJ, em 1998, sob o título Vindiciae: em defesa de Machado de Assis; publicou o livro
Literatura e jornalismo 110 oitocentos brasileiro, em 2002, pela
EDITUS. Organizou, também pela EDITUS, a revista Literatta,
em 2002.
Pierre Rivas é professor de Literatura Comparada na Universidade de Paris, e especialista nas relações literárias entre França,
Portugal e Brasil. Suas publicações mais recentes incluem: Diálogos interculturais. São Paulo: HUCITEC, 2005.
348
Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.9, 2006
Regina Zilberman é Doutora em Romanística pela Universidade de Heidelberg, Alemanha; Professora Titular na Faculdade de
Letras, da PUCRS; Pesquisadora IA, CNPq. Publicações, entre outras: Estética da Recepção e História da Literatura (Ática); Fim
do livro, fim dos leitores? (Ed. Senac); A literatura infantil na
escola (Global); Como e porque ler literatura infantil brasileira
(Objetiva).
Rogério Lima é Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade de Brasília e autor de capítulos de livros e artigos publicados em periódicos, especialmente
sobre o mundo digital e as relações entre literatura e informática.
Sandra Guardini T. Vasconcelos é Doutora em Teoria Literária e Literatura Comparada pela Universidade de São Paulo.
Professora Associada de Literaturas de Língua Inglesa na Universidade de São Paulo, desenvolve nos últimos anos pesquisa sobre
as relações entre os romance inglês dos séculos XVIII e XIX e o
romance brasileiro do século XIX. Além de vários artigos e capítulos de livros publicados no Brasil e no exterior, é autora de Puras Misturas. Estórias em Guimarães Rosa (1997) e de Dez Lições sobre o Romance Inglês do Século XVIII (2002).
Socorro de Fátima Pacífico Vilar é professora da UFPB
desde 1987. Atualmente faz estágio de pós-doutorado na PUCRS,
com projeto relacionado aos jornais paraibanos. Desenvolve pesquisas na área de História da Leitura e História da literatura. Publicou
Primeiras leituras e outras histórias, pela EDUFPB e A invenção de
uma escrita: Anchieta, osjesuítas e suas histórias, pelaEDPUCRS.
Tha'is Flores Nogueira Diniz é professora adjunta de Literatura Comparada e Literaturas de Expressão Inglesa na Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais e especialista em tradução intersemiótica e teatro contemporâneo. Suas
áreas de pesquisa incluem a relação entre a literatura e as outras
artes, especialmente o cinema, estudo sobre mitos e sobre a
intermidialidade. Fez seu doutorado na UFMG e na Indiana
University at Bloomington, nos Estados Unidos, obtendo o título
em 1994. Fez seu pós-doutorado em Londres, no Queen Mary
College, University ofLondon em 2004.
Aos colaboradores
1. A Revista Brasileira de Literatura Comparada aceita trabalhos inéditos sob a forma de artigos e comentários de livros, de interesse
voltado para os estudos de literatura Comparada.
2. Todos os trabalhos encaminhados para publicação serão submetidos à aprovação dos membros do Conselho Editorial. Eventuais
sugestãoes de modificação de estrutura ou conteúdo, por parte do Conselho Editorial, serão comunicadas previamente aos autores.
3. Os artigos devem ser apresentados em três vias, texto datilografado em espaço duplo, com margem, além de dados sobre o autor
(cargo, áreas de pesquisa, últimas publicações, etc).
4. O original não deve exceder 30 páginas datilografadas; os comentários de livros, em tomo de 8 páginas.
5. As notas de pé de página devem ser apresentadas observandose a seguinte norma:
Para livros:
a) autor; b) título da obra em itálico; c) número da edição, se não
for a primeira; d) local da publicação; e) nome da editora; f) data de
publicação; g) número da página.
BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças de velhos. São
Paulo: T.A.Queiroz, 1979, p.31.
Para artigos:
a) autor; título do artigo; c) título do periódico (em itálico); d)
local da publicação; e) número do volume; f) número do fascículo; g)
página inicial e final; h) mês e ano.
ROUANET, Sérgio Paulo. Do pós-moderno ao neo -moderno.
Revista Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, n.1, p. 86-97,jan./mar., 1986.
7. As ilustrações (gráficos, gravuras, fotografias, esquemas) são
designadas como FIGURAS, numeradas no texto, de forma abreviada,
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Exemplo: FIG.1, (FIG.2)
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