ARTIGOS DE ESTUDOS DE LINGUAGEM
O AUTORITARISMO “CAMUFLADO” E A INTERDISCURSIVIDADE
PRESENTES NO DISCURSO DO PROFESSOR
Kátia Bruginski MULIK1
Resumo: Este artigo se propõe a analisar um recorte de um discurso de um professor
ministrando uma aula de ciências no ensino fundamental. Por meio deste discurso em
específico, pretende-se mostrar que, mesmo de forma camuflada, o discurso do
professor tem caráter autoritário e que a manifestação da interdiscursividade que se
faz bastante presente nesse discurso. Inicialmente são postulados alguns aspectos da
análise do discurso, a caracterização da instituição escolar e do discurso do professor.
A fundamentação teórica se baseia nos trabalhos de Orlandi (1987), Maingueneau
(1993, 2005), Brandão (2004), Possenti (2003) entre outros. Em seguida, apresenta-se
a contextualização histórico-social da instituição escolar, seguida da discussão e
análise dos dados. Finalmente têm-se as considerações finais que sintetizam o
estudo. Em suma, este trabalho contribui para a ampliação das perspectivas de
compreensão da análise do discurso, bem como das relações de poder e ideologia
presentes no discurso institucionalizado da escola que são materializadas no discurso
do professor.
Palavras-chave: análise do discurso, interdiscursividade, discurso do professor.
Abstract: The aim of this article is to analyze a sample of a teacher‟s discourse which
belongs the context of a science class in elementary education. Through this
discourse, in particular, we intended to show that even so disguised, the discourse of
the teacher is authoritarian and that the manifestation of interdiscursivity is strongly
manifested. Initially we postulate some aspects of the discourse analysis, the
characterization of the school as an institution and the teacher's discourse. The
theoretical framework is based on work by Orlandi (1987), Maingueneau (1993, 2005),
Brandão (2004), Possenti (2003) among others. After the discussion of the theoretical
basis we present the historical and social context of the school, followed by the
discussion and analysis of data. Finally there are the concluding remarks that
summarize the study. In short, this work help us to expand the understanding of the
perspectives of the discourse analysis, as well as relations of power and ideology
within the institutionalized discourse of school that are embodied in the teacher's
discourse.
Keywords: discourse analyses, interdiscursivity, teacher‟s discourse.
INTRODUÇÃO
Os estudos em Análise do Discurso (AD) tiveram sua origem na França
na década de 1960. Desde então, o discurso como forma de manifestação
social, vem sendo objeto de pesquisas de inúmeros estudiosos da área. Neste
1
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artigo, pretende-se investigar quais as estratégias que o professor utiliza para
“camuflar” as marcas de autoritarismo presentes em seu discurso e como a
interdiscursividade está instaurada no mesmo. Para isso, selecionou-se o
discurso de uma professora de ciências, lecionando em uma turma de segunda
série do ensino fundamental, de uma escola particular. Primeiramente, faz-se
uma breve introdução do que caracteriza o discurso do professor como
autoritário. Em seguida, faz-se a contextualização histórico - social e
seguidamente a análise o discurso propriamente dito.
Orlandi (1987) faz uma distinção sobre os três tipos de discursos
existentes e seu funcionamento. Dentre sua classificação está o discurso
lúdico, o polêmico e o autoritário. Tal classificação tem por base os
participantes do discurso e o nível de polissemia 2 nele existente. O discurso
lúdico caracteriza-se por uma polissemia aberta (exagero non sense) e não há
clara distinção dos papéis dos participantes. No discurso polêmico, os
participantes procuram dominar o seu referente, mostrando-se com uma
polissemia controlada. Já, o discurso autoritário, tem se referente “ausente”,
não há realmente uma interação entre interlocutores, resultando em uma
polissemia contida. Dentro dessa categorização do discurso, apresentada por
Orlandi, classifica-se o discurso do professor como um discurso autoritário. No
discurso pedagógico3, tem-se o professor que ensina, ou seja, “inculca” o aluno
(que recebe as informações) dentro do ambiente escolar (aparelho ideológico).
A imagem social do aluno é daquele que “não sabe nada” e precisa da
escola para aprender. Já o professor, é tido como sujeito idealizado que possui
o saber e está na escola ensinar. A escola, por sua vez, é o aparelho
ideológico, o qual está inserido esses sujeitos. Dessa forma, o discurso
pedagógico4 está vinculado à instituição, por isso pode-se dizer que o mesmo,
mostra-se em sua função um dizer institucionalizado, sobre as coisas, que se
2
Polissemia - multiplicidade de sentidos de uma palavra ou locução. Fonte: HOUAISS, A.
Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.
3
Essa abordagem baseia-se na AD-2.
4
Cabe fazer uma observação quanto à diferença dos termos “discurso do professor” e
“discurso pedagógico”. Já que a abordagem da análise será com base aos conceitos inseridos
na AD3 (Terceira fase da Análise do Discurso), preferiu-se fazer essa diferenciação. Assim,
quando se menciona “discurso do professor” este, refere-se apenas ao proferido por ele, por
outro lado, o “discurso pedagógico” envolve professor e alunos constitutivos do espaço escola.
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garante, garantindo-se pelo domínio de sua circularidade. Há uma “ilusão” de
que os participantes desse discurso encontram-se em um mesmo patamar, no
entanto há uma relação de hierarquia que nunca é “quebrada”.
Segundo Pacheco (1998, p. 2),
a escola é regida por regulamentos, ações tidas como modelos. Seu
discurso tem prestigio e legitimidade. A instituição escolar está
sedimentada sobre preceitos autorizados, portanto, aceitos
socialmente. Ela age assim devido a sua legitimidade e seu discurso, o
discurso pedagógico, definido como discurso circular, pois ao seu se
dizer coisas sobre a escola, mantém-na em seu lugar, ou seja, o de
sede da reprodução cultural.
CONTEXTO HISTÓRICO - SOCIAL
Para a AD as condições de produção do discurso são de extrema
relevância, uma vez que fazem parte da construção dos sentidos presentes no
texto. Assim, Mussalin (2002 p. 123), defende que “o contexto histórico-social,
o contexto da enunciação, constitui parte do sentido do discurso e não apenas
um apêndice que pode ou não ser considerada. Em outras palavras, pode-se
dizer que, para a AD, os sentidos são historicamente construídos”.
Brandão (1998 p.49) defende que “o sujeito é essencialmente histórico.
E porque sua fala é produzida a partir de um determinado lugar e de um
determinado tempo, à concepção de sujeito histórico articula-se outra noção
fundamental: a de um sujeito ideológico”. Portanto, cabe fazer essa
contextualização antes de partir para a análise, pois ela é de fundamental
importância para a compreensão dos enunciados presentes no discurso.
Para a análise, selecionou-se um discurso de uma professora de
Ciências de uma escola particular, lecionando em uma classe de 2ª série do
Ensino Fundamental. A faixa etária dos alunos é entre 7 e 8 anos. A temática
da aula envolve a retomada de conteúdos que foram trabalhados em aulas
anteriores sobre répteis e anfíbios. A professora expõe, ao passo que dá
definições e explicações sobre o tema. O discurso em questão, produzido no
dia 24 de maio do ano de 1992, foi gravado em vídeo e depois transcrito.
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O professor exerce papel fundamental na educação e formação de
cidadãos. O que o estudante precisa aprender é uma questão que se encontra
as margens de diversas discussões. No entanto, a resposta a esse
questionamento sempre se dá em torno da aquisição de conhecimentos gerais,
habilidades comunicativas e a busca e o uso de informações que o capacitem
para uma melhor convivência em sociedade. Porém, tais conhecimentos e
habilidades devem estar atrelados à construção de valores que possam
contribuir na formação de cidadãos críticos e conscientes do mundo e das
coisas. Segundo Schwartzman (2004, p. 9), “não deve haver incompatibilidade,
muito pelo contrário, entre capacitar as pessoas para a vida do trabalho e para
a vida social. A principal habilidade a ser adquirida na escola é o domínio da
língua, a capacidade de ler e escrever. Depois, o uso dos números, o raciocínio
abstrato. A partir daí, todo o resto”.
A educação, muitas vezes, é apontada como o principal instrumento
para a solução de problemas de pobreza e desigualdade, pois acredita-se que
por meio dela, pode-se aumentar o capital humano, consequentemente
gerando produtividade e riqueza para o país. “Por muitos anos, havia no Brasil
a ideia de que faltavam escolas, e que por isto a população não se educava
como devia. Hoje, o acesso à educação fundamental é praticamente universal,
e já é possível falar de „inflação educacional‟ em alguns setores”
(SCHWARTZMAN, 2004, p. 3).
O sistema educacional brasileiro ainda passa por inúmeras críticas, pois
muito se fala que a esse setor deveriam ser feitos mais investimentos. Porém,
não existe um método único e eficaz que possa ser aplicado e que resolva
todos os problemas educacionais. Como afirma Schwartzman (2004, p.10):
Não existem receitas simples para os problemas da educação básica.
Muita coisa já foi tentada, recursos e esforços foram desperdiçados, e
existe muita discordância sobre que pode e deve ser feito. Uma
prioridade óbvia é fortalecer a competência do país para pesquisar e
conhecer a experiência de outros países na área dos estudos
educacionais, e tomar em conta estes conhecimentos para a
formulação das políticas governamentais.
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Além de investimentos, em termos de estrutura, tem-se o Ministério da
Educação e Cultura (MEC) que rege o ensino, visando à qualidade, por meio
dos PCNs e Diretrizes Curriculares. Anualmente são publicadas e reformuladas
leis e documentos que visam promover melhoria no sistema educacional.
ARCABOUÇO TEÓRICO
Do ponto de vista discursivo, as palavras e os textos, são partes de
formações discursivas que, por sua vez, são partes de formações ideológicas.
Assim dentro do discurso pedagógico, tem-se o aluno que faz o uso de
perguntas e dialoga com o professor para obter respostas. Já o professor é
aquele que se mostra detentor do saber. Ele está ali para dar essas respostas.
Cabe aqui discutir o conceito de formação discursiva (FD), segundo o qual
estabelece as relações dos papéis dos participantes do discurso. Para
Mussalin (2002 p. 119) “uma formação discursiva determina o que pode/deve
ser dito a partir de um determinado lugar social”. Dessa forma, uma formação
discursiva é marcada e determinada por regularidades, ou seja, “por „regras de
formação‟ concebidas como mecanismos de controle que determinam o interno
(o que pertence) e o externo (o que não pertence) de uma formação
discursiva”. A autora ainda coloca que uma FD não se encontra em um espaço
estrutural fechado, ela é sempre invadida por elementos de outras formações
discursivas.
Em relação à formação discursiva, Brandão (2004, p. 88-9) defende que:
uma FD não deve ser entendida como um bloco compacto e coeso
que a opõe as outras FDs. Uma FD é „heterogenia a ela própria‟ e o
seu fechamento é bastante instável, não há limite rigoroso que separa
seu „interior‟ do seu „exterior‟ uma vez que ela confina com várias
outras FDs e as fronteiras entre elas se deslocam conforme os
embates da luta ideológica. É assim que pode-se afirmar que uma FD
é atravessada por várias FDs e, consequentemente, que toda FD é
definida a partir de seu interdiscurso.
Já para Maingueneau (1993, p.113),
o interdiscurso consiste em um processo de reconfiguração
incessante no qual uma formação discursiva é levada (...) a
incorporar elementos pré-construídos, produzidos fora dela, com eles
provocando sua redefinição e redirecionamento, suscitando
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igualmente, o chamamento de seus próprios elementos para
organizar sua repetição, mas também provocando, eventualmente, o
apagamento, o esquecimento ou mesmo a denegação de
determinados elementos.
Outro conceito importante apresentado por Maingueneau (1993) é a
questão da heterogeneidade, que é dividida em dois tipos: a heterogeneidade
mostrada e a constitutiva. Na primeira, se “incide manifestações explícitas,
recuperáveis a partir de uma diversidade de fontes de enunciação”
(MAINGUENEAU, 1993, p. 75). Já a segunda, “aborda a heterogeneidade que
não é marcada em superfície, mas que a AD, pode definir formulando
hipóteses, através do interdiscurso, a propósito da constituição de uma
formação discursiva” (MAINGUENEAU, 1993, p. 75).
Maingueneau (2005, p. 21) explica que “a unidade de análise pertinente
não é o discurso, mas um espaço de trocas entre vários discursos
convenientemente
escolhidos”.
Para
conceituar
o
que
vem
a
ser
interdiscursividade, o autor faz a distinção entre: universo discursivo, campo
discursivo e espaços discursivos. O primeiro deles é o “conjunto de formações
discursivas de todos os tipos que interagem numa dada conjuntura”
(MAINGUENEAU, 1993, p. 116-7). Já o segundo é “um conjunto das formações
discursivas que se encontram em uma ocorrência, se delimitam reciprocamente
em uma região determinada do universo discursivo” e os espaços discursivos
são recortes discursivos que o analista isola no interior de um campo discursivo
tendo em vista propósitos específicos de análise. Para Possenti (2003, p. 146)
a relação entre o “outro” e o espaço discursivo deve se dar da seguinte forma:
o Outro não deve ser pensado como uma espécie de „envelope‟ do
discurso nem um conjunto de citações. No espaço discursivo, o Outro
não é nem um fragmento localizável, uma citação, nem uma entidade
exterior; nem é necessário que seja localizável por alguma ruptura
visível da compacidade do discurso.
DISCUSSÃO E ANÁLISE
No discurso da professora de ciências, ficam evidentes algumas marcas,
as quais o “outro” está presente. Por exemplo:
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“Pr: Peraí, Luiza. Agora eu quero saber um pouco sobre o filme,
5
porque todas as histórias de lagartixa, de jabuti, vocês já contaram.
Então, agora nós vamos falar um pouco sobre o filme. Que que você
viu de diferente, que você não sabia?”.
Primeiramente, a professora inclui os alunos em seu discurso pelo uso
do “nós”, depois ela direciona uma pergunta apenas a uma das alunas. Nesse
caso, o uso do “você” está ligado a apenas a uma pessoa. No entanto, há
momentos no discurso da professora em que o “você” na verdade vem com
significado de nós.
“Pr: O encontro do corpo na água. Você nunca nadou? Você não
consegue flutuar legal e você não afunda? É quando você consegue
deixar o seu corpo em harmonia com a água. Entendeu?”.
No fragmento anterior, também fica claro de que esse “entendeu”, na
verdade quer dizer “entenderam”, pois é uma pergunta direcionada aos alunos,
com o intuito de verificar se a explicação ficou clara. Há outros exemplos em
que o “você” proferido pela professora significa o “nós”. O “você” nesse
contexto pode estar direcionado a qualquer indivíduo, não especificamente aos
alunos presentes em sala.
Outro recurso do professor é a utilização de perguntas retóricas, aquelas
em que o professor questiona sem esperar necessariamente uma resposta.
São retóricas porque o objetivo é de manutenção do canal comunicativo, uma
espécie de função fática, garantindo que o aluno esteja prestando atenção e
seguindo o raciocínio explicativo do professor.
“Pr: O que você chama de ambiente?
Al: O ambiente? O lugar onde ela vive.”
Além do uso do “você” como “nós”, há também o uso do “eu” como nós.
Como pode ser visto no fragmento abaixo. O pronome “eu” também está sendo
5
Os grifos são da autora do artigo com intuito de facilitar para o leitor a localização de certos
vocábulos mencionados nos parágrafos de análise.
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usado de forma indeterminadora, no lugar do pronome “alguém”. É uma
estratégia muito comum no ensino, no momento de exemplificação de ações ou
atitudes cujo sujeito não é específico.
“Pr: Por exemplo, aqui no texto, vai dar pra você fazer um parágrafo
pra cada história. Pra cada item, que é mais fácil que uma história.
Pra cada item que a gente teve. Escrevendo, a gente pode fazer um
parágrafo. Por isso, quando eu estiver falando da característica
principal dos répteis é um parágrafo; quando eu estiver falando da
alimentação, é outro parágrafo. Eu mudei de assunto, eu tô falando
da alimentação, quando eu tiver falando da locomoção, eu posso
juntar num parágrafo só, os membros que eles tem e como eles se
locomovem”.
Essas “tentativas” de inclusão do “outro” como participante do discurso,
ilustram o que Orlandi (1987, p.240) considera como “ilusão de reversibilidade”.
em se tratando do discurso autoritário, gostaríamos de observar que,
embora não haja reversibilidade de fato, é a ilusão da reversibilidade
que sustenta esse discurso. Isso, porque, embora o discurso
autoritário seja um discurso em que a reversibilidade tende a zero,
quando é zero que o discurso se rompe, desfaz-se a relação, o
contato, e o domínio (o escopo) do discurso fica comprometido. Daí a
necessidade de se manter o desejo de torna-lo reversível. Daí a
ilusão. E essa ilusão tem várias formas nas diferentes manifestações
do discurso autoritário.
A partir de Orlandi (1987), pode-se concluir que essa ilusão de
reversibilidade, a qual faz com que o aluno acredite ter seu espaço e seu papel
reservado na sala de aula, é de extrema importância, pois sem ela não haveria
possibilidade de interação no ambiente escolar. A troca de papéis, ou a idéia
de que os sujeitos encontram-se numa mesma posição discursiva, deve existir,
sem isso o discurso pode ficar comprometido.
Como mencionado anteriormente, na classificação feita por Orlandi
(1987), o discurso do professor, é um discurso autoritário. É possível identificar
algumas marcas linguísticas presentes no discurso em questão que confirmam
a proposta da autora.
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Pressupondo a visão interativa de linguagem que tem permeado as
relações na sala de aula, desde os anos 80 (PORTO e PERFEITO, 2006) o
professor do século XXI deveria ser muito mais aberto, promover maior diálogo
com o aluno, pois é consciente de que a aprendizagem ocorre por meio da
interação.
No entanto, parece existir ainda um fosso entre essa visão de
aprendizagem e a prática em sala de aula, pois a classificação do discurso do
professor continua sendo “autoritária”. Vale ressaltar que essa classificação
não está relacionada com a metodologia adotada pelo professor durante sua
aula. Essa classificação refere-se às relações de hierarquia social e ideológica.
A sociedade faz um estereótipo dos papéis dos sujeitos envolvidos no
ambiente escolar. A escola é o local do saber. O professor de cada área é o
detentor do saber (ou boa parte dele) naquela área, e o aluno está lá (nos
bancos escolares) para a legitimação desse saber, que ele (ou sua família)
almeja. Isso contribui para que a classificação do discurso do professor
continue sendo como um “discurso autoritário” (seguindo a classificação dada
por Orlandi, 1987) e não lúdico.
“Pr: Fala, Júlia, fala você. Não, qual a diferença que a gente
observou muito? Porque deu pra trazer um jabuti e deu pra trazer
umas tartaruguinhas e elas vieram em recipiente diferente, não foi?.
Al1: O ambiente diferente.
Al2: Além do ambiente diferente, ela tem as patas mais largas pra
poder nadar (faz o gesto com as mãos como se fosse uma tartaruga
nadando)
Pr: Coluna vertebral. Ou seja, animais que possuem//.Olha, a Juliana
falou uma coisa importante. Quando a gente tá fazendo um texto de
observação, descrevendo sobre um animal, a gente não pode ficar
inventando palavras, que eu já falei pra vocês. É diferente de uma
história, tá?!
Al: Mas e a cobra?
Pr: Aí, quando você quiser colocar coisas dos répteis que seja o que
foi observado aquele dia, com informação a mais, como curiosidade,
que você viu num filme, que você leu num texto, você pode colocar,
tá?”.
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Esses fragmentos relevam marcas de um discurso autoritário, pois não
há possibilidade de os alunos discordarem do professor. O professor fala de
uma forma amigável, mostrando que quer se aproximar de seus alunos, no
entanto, essa é uma forma “camuflada” de autoritarismo. As estratégias de
aproximação do professor com o aluno se dão por meio do uso da função
fática, que se preocupa em manter o contato com o destinatário para verificar
se está sendo compreendido, ou chamar a atenção do ouvinte.
Uma das características do discurso do professor é cientificidade
(Orlandi, 1987) que se caracteriza pela apropriação do cientista na fala do
professor.
O professor apropria-se do cientista e se confunde com ele sem que
se explicite sua voz de mediador. Há aí um apagamento, isto é,
apaga-se o modo pelo qual o professor apropria-se do conhecimento
do cientista, tornando-se ele próprio possuidor daquele
conhecimento. A opinião assumida pela autoridade professoral tornase definitória (e definitiva). (ORLANDI, 1987 p. 21).
Outros elementos que contribuem para a manutenção da legitimidade do
discurso do professor são o emprego de classificações e vocabulário específico
da área, tais como em um dos fragmentos acima “coluna vertebral”, “répteis” e
também o uso de um vocabulário mais formal que o do aluno, mostrando que o
conhecimento pertence ao mestre e que esse é esperado pelo aluno,
contribuindo para a manutenção da relação de hierarquia característica desse
discurso. Nos fragmentos abaixo, nota-se essa “apropriação” do discurso do
cientista feita pela professora.
“Pr: Também é vertebrado. Ela não tem membros. Ela tem coluna
vertebral. Vamos continuar aqui relembrando como vocês vão
começar.”
Pr: Da época dos dinossauros sobraram tartarugas. Qual a diferença
do jabuti e da tartaruga? A gente falou quando a gente observou,
quando a Jú trouxe, quando a....
Pr: Alimentam-se de alpiste, frutas e bebem água. Eles são ovíparos,
isto é...
Als: Animais que botam ovo.
Pr: Os filhotes nascem de...
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Als: Ovos.
Pr: A excreção é feita pela cloaca, isto é... Que que é isso”
Nessas explicações dadas pela professora, não há nenhuma vez a
menção de autores que comentam sobre o fato das tartarugas terem surgido
na época dos dinossauros, ou referências de onde foi retirada/ criada essa
classificação dos animais como vertebrados e ovíparos. O recurso utilizado
pela professora é a paráfrase que constitui na reformulação de um conceito ou
texto pré-existente explicitando-o com suas próprias palavras.
A
essa
“apropriação”
pode
se
estabelecer
à
relação
de
interdiscursividade presente, pois o discurso do professor permeia sobre a fala
do cientista e até mesmo se confunde, fazendo com que haja uma espécie de
apagamento. Com base nas reflexões sobre a formação discursiva, dentro do
interdiscurso presente na AD36, Brandão (1998, p. 73-74) afirma que
No nível da superfície discursiva, as formações discursivas
pertinentes a um espaço discursivo podem apresentar poucos
elementos indicadores da relação que as constitui (...). Um discurso
nunca seria autônomo: como ele se remete sempre a outros
discursos, suas condições de possibilidades semânticas se
concretizam num espaço de trocas, mas jamais enquanto identidade
fechada.
Tais elementos apresentados, não esgotam os inúmeros fatores
presentes no discurso do professor. Existem muitos outros aspectos que
merecem atenção e devem ser objeto de estudo da Análise do Discurso.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Na presente análise, foi possível identificar alguns recursos utilizados
pelo professor, na tentativa de “camuflar” seu autoritarismo, e mostrar-se estar
no mesmo patamar de seus alunos. Além disso, foi possível verificar que a
“ilusão da reversibilidade” é necessária para que exista interação na sala de
aula.
6
Terceira fase da Análise do Discurso. Segundo Mussalin, na AD-3 os discursos atravessam
uma FD (formação discursiva) e não são constituídos independentes, mas se formam no
interior de um interdiscurso.
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Outro fator interessante foi à maneira como o professor se apodera do
discurso do cientista, sem se deixar transparecer, utilizando recursos como a
paráfrase. Também foi possível perceber que a presença do “outro” está
inserida em seu discurso através do uso “eu” e do “você” atuando como “nós”.
A noção de interdiscurso, movida pela rede de formações discursivas, no
discurso do professor se estabelece e se caracteriza devido ao embate com
outros discursos, como o do aluno, o do cientista etc. Essa breve análise
mostra quão ampla é a área de AD e como ela é importante, ao passo que
podemos compreender melhor as relações de poder e a ideologia contidas no
discurso do outro.
REFERÊNCIAS
BRANDÃO, H. H. N. Introdução à análise de discurso. Campinas: Editora da
UNICAMP, 2004.
MAINGUENEAU, D. Novas tendências em análise do discurso. 2. ed.
Campinas: Pontes, 1993.
_____. Gênese dos discursos. Trad. Sírio Possenti. Curitiba: Criar, 2005.
MUSSALIM, F.; BENTES, A. C. Introdução à linguística: domínios e fronteiras.
São Paulo: Cortez, 2002.
ORLANDI, E. P. A linguagem e seu funcionamento: as formas do discurso. 2
ed., rev. e aum. Campinas: Pontes, 1987.
PACHECO, R. S. Silenciamentos no Discurso Pedagógico: Interferindo No
Currículo?. Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS. São
Leopoldo, 11 de nov. 1998. Disponível em:
http://www.liberato.com.br/upload/arquivos/0131010712532312.pdf Acesso em:
12 jun. 2012
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PORTO, I. M. N.; PERFEITO, Alba Maria. Interação em sala de aula: teoria e
prática. Estudos Lingüísticos XXXV, p. 928-935, 2006. Disponível em:
<http://www.gel.org.br/4publica-estudos-2006/sistema06/1182.pdf
>
Acesso
em: 26 de junho de 2008.
POSSENTI, S. Observações sobre o interdiscurso. Anais do 5º Encontro do
Celsul, Curitiba-PR, 2003 (140-148). Disponível em:
http://www.celsul.org.br/Encontros/05/pdf/014.pdf Acesso em: 20 jun. 2012.
SCHWARTZMAN, S. Educação: A Nova Geração De Reformas. In:
GIAMBIAGI, F.; REIS, J. G.; URANI, A. (Orgs). Reformas no Brasil: Balanço e
Agenda, Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 2004. Disponível em:
http://www.oei.es/reformaseducativas/educacion_nueva_generacion_reformas_
schwartzman.pdf Acesso em: 12 jun. 2012
ANEXO: DISCURSO ANALISADO
(Contexto inicial: Aula de Ciências. Alunos e professora discutem, retomando
conteúdos
trabalhados sobre répteis e anfíbios)
Pr: E os anfíbios, pelo nome, têm vida dupla. Metade da vida deles é água e
metade da vida deles é?
Al: É terra.
Pr: É na terra. Vai ser a próxima classe que a gente vai estudar. Peraí! Ô Júlio,
um por vez! Luiza!
Luiza: (S.I.)
Pr: Peraí, Luiza. Agora eu quero saber um pouco sobre o filme, porque todas
as histórias de lagartixa, de jabuti, vocês já contaram. Então, agora nós vamos
falar um pouco sobre o filme. Que que você viu de diferente, que você não
sabia?
Al: Eu não sabia que a tartaruga é, pesava, é 780 quilos de uma vez.
Pr: Algumas tartarugas que vivem no mar. Elas são pesadas. E como é que
elas conseguem nadar, se são tão pesadas?
Al: Porque a água diminui o peso delas.
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ISSN: 2238-8060
ARTIGOS DE ESTUDOS DE LINGUAGEM
Pr: Porque a água diminui o peso. Aí, ela se locomove.
Al: Como diminui o peso?
Pr: O encontro do corpo na água. Você nunca nadou? Você não consegue
flutuar legal e você não afunda? É quando você consegue deixar o seu corpo
em harmonia com a água. Entendeu?
(...)
Pr: Da época dos dinossauros sobraram tartarugas. Qual a diferença do jabuti
e da tartaruga? A
gente falou quando a gente observou, quando a Jú trouxe, quando a....
Al: Uma é subaquática.
Pr: Fala, Júlia, fala você. Não, qual a diferença que a gente observou muito?
Porque deu pra trazer um jabuti e deu pra trazer umas tartaruguinhas e elas
vieram em recipiente diferente, não foi?
Al1: O ambiente diferente.
Al2: Além do ambiente diferente, ela tem as patas mais largas pra poder nadar
(faz o gesto com as mãos como se fosse uma tartaruga nadando)
Pr: O que você chama de ambiente?
Al: O ambiente? O lugar onde ela vive.
Pr: E qual é o ambiente, o habitat, o lugar onde a tartaruga vive? Na...
Al: Na água.
Pr: E o jabuti?
Al: Na terra.
Pr: Na terra.
(...)
Pr: Olha, esse assunto que a gente tá falando aqui, vamos fazer um texto em
dupla. É a cabecinha de um com a cabecinha do outro, depois do recreio, pra
fazer um belo de um texto.
Al: Você vai escolher?
Pr: Sim, sobre a observação que a gente fez da tartaruga, ahn!
Al: E os mamíferos?
Pr: Os mamíferos, lembra que a gente conversou? Cada um fez um texto e
você colocou pra toda a classe. Aí a gente conversou que seria muito fazer um
novo texto .
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(...)
Pr: Por exemplo, aqui no texto, vai dar pra você fazer um parágrafo pra cada
história. Pra cada item, que é mais fácil que uma história. Pra cada item que a
gente teve. Escrevendo, a gente pode fazer um parágrafo. Por isso, quando eu
estiver falando da característica principal dos répteis é um parágrafo; quando
eu estiver falando da alimentação, é outro parágrafo. Eu mudei de assunto, eu
tô falando da alimentação, quando eu tiver falando da locomoção, eu posso
juntar num parágrafo só, os membros que eles tem e como eles se locomovem.
Quando tiver falando da reprodução, é um outro parágrafo. Aí, perfeito. Agora,
em história é difícil vocês ainda perceberem a hora que muda de assunto, a
não ser quando tem uma marca de tempo muito clara. (...) Vamos agora ficar
no assunto dos répteis aqui e aí é o seguinte: Ahn, o texto vai escrever como a
gente fez sozinho, não é por item. Por exemplo, deixa eu ler pra você (S.I.)
Olha como começa, primeiro ela tá caracterizando que eles são vertebrados e
qual a característica principal? Os répteis são animais o quê?
Al1: Vertebrados.
Al2: Invertebrados.
Pr: Animais vertebrados. São animais que tem...
Al: Coluna.
Pr: Coluna vertebral. Ou seja, animais que possuem// Olha, a Juliana falou
uma coisa importante. Quando a gente tá fazendo um texto de observação,
descrevendo sobre um animal, a gente não pode ficar inventando palavras, que
eu já falei pra vocês. É diferente de uma história, tá?!
Al: Mas e a cobra?
Pr: Também é vertebrado. Ela não tem membros. Ela tem coluna vertebral.
Vamos continuar aqui relembrando como vocês vão começar. Ahn, (começa a
ler o texto) "Os periquitos são
animais vertebrados. São aves que tem o corpo coberto de penas..." Presta
atenção, Gabriel e
Chica! "... eles tem quatro membros que são duas patas em forma de garra e
asas que servem
para voar. Eles se locomovem voando." Bom, disse os membros que eles tem,
como eles se
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locomovem e por onde se locomovem. Depois, "Os periquitos tem dois furinhos
no bico que
são narinas, que levam o ar até os pulmões. Eles tem respiração”...
Als: Pulmonar.
Pr: "Alimentam-se de alpiste, frutas e bebem água. Eles são ovíparos, isto é”...
Als: Animais que botam ovo.
Pr: “Os filhotes nascem de”...
Als: Ovos.
Pr: “A excreção é feita pela cloaca, isto é...” Que que é isso?
Al: (S.I.)
Pr: É quando sai as fezes e a urina. Olha as palavras que a gente tem que
usar. Não vamos usar “xixi” nem “cocô”, porque a gente tá fazendo um texto
científico, então “fezes, urina, membros traseiros, membros dianteiros,
reprodução, alimentação, locomoção”, vocês vão aprendendo pra usar num
texto dissertativo, de um animal.
(...)
Pr: Aí, quando você quiser colocar coisas dos répteis que seja o que foi
observado aquele dia, como informação a mais, como curiosidade, que você
viu num filme, que você leu num texto, você pode colocar, tá? Você pode dizer
quantos membros que o jabuti tem, se ele é vertebrado, porque ele é
vertebrado, alimentação, reprodução, da...
Al: Moradia.
Pr: Donde ele vive, do habitat. A gente pode colocar curiosidade sobre répteis.
Quem quiser já ir pensando, como começar, eu vou deixar aqui alguns itens
pra se lembrar. Não pode escrever
como item, isso aqui é só um lembrete. Lembra daquele dia da auto-avaliação,
que eu fiz lembretes, avisos, itens? Como se fosse um roteirinho de cinema?
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