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ARTIGOS DE ESTUDOS DE LINGUAGEM O AUTORITARISMO “CAMUFLADO” E A INTERDISCURSIVIDADE PRESENTES NO DISCURSO DO PROFESSOR Kátia Bruginski MULIK1 Resumo: Este artigo se propõe a analisar um recorte de um discurso de um professor ministrando uma aula de ciências no ensino fundamental. Por meio deste discurso em específico, pretende-se mostrar que, mesmo de forma camuflada, o discurso do professor tem caráter autoritário e que a manifestação da interdiscursividade que se faz bastante presente nesse discurso. Inicialmente são postulados alguns aspectos da análise do discurso, a caracterização da instituição escolar e do discurso do professor. A fundamentação teórica se baseia nos trabalhos de Orlandi (1987), Maingueneau (1993, 2005), Brandão (2004), Possenti (2003) entre outros. Em seguida, apresenta-se a contextualização histórico-social da instituição escolar, seguida da discussão e análise dos dados. Finalmente têm-se as considerações finais que sintetizam o estudo. Em suma, este trabalho contribui para a ampliação das perspectivas de compreensão da análise do discurso, bem como das relações de poder e ideologia presentes no discurso institucionalizado da escola que são materializadas no discurso do professor. Palavras-chave: análise do discurso, interdiscursividade, discurso do professor. Abstract: The aim of this article is to analyze a sample of a teacher‟s discourse which belongs the context of a science class in elementary education. Through this discourse, in particular, we intended to show that even so disguised, the discourse of the teacher is authoritarian and that the manifestation of interdiscursivity is strongly manifested. Initially we postulate some aspects of the discourse analysis, the characterization of the school as an institution and the teacher's discourse. The theoretical framework is based on work by Orlandi (1987), Maingueneau (1993, 2005), Brandão (2004), Possenti (2003) among others. After the discussion of the theoretical basis we present the historical and social context of the school, followed by the discussion and analysis of data. Finally there are the concluding remarks that summarize the study. In short, this work help us to expand the understanding of the perspectives of the discourse analysis, as well as relations of power and ideology within the institutionalized discourse of school that are embodied in the teacher's discourse. Keywords: discourse analyses, interdiscursivity, teacher‟s discourse. INTRODUÇÃO Os estudos em Análise do Discurso (AD) tiveram sua origem na França na década de 1960. Desde então, o discurso como forma de manifestação social, vem sendo objeto de pesquisas de inúmeros estudiosos da área. Neste 1 Letras Escreve – Revista de Estudos Linguísticos e Literários do Curso de Letras-UNIFAP http://periodicos.unifap.br/index.php/letras ISSN: 2238-8060 ARTIGOS DE ESTUDOS DE LINGUAGEM artigo, pretende-se investigar quais as estratégias que o professor utiliza para “camuflar” as marcas de autoritarismo presentes em seu discurso e como a interdiscursividade está instaurada no mesmo. Para isso, selecionou-se o discurso de uma professora de ciências, lecionando em uma turma de segunda série do ensino fundamental, de uma escola particular. Primeiramente, faz-se uma breve introdução do que caracteriza o discurso do professor como autoritário. Em seguida, faz-se a contextualização histórico - social e seguidamente a análise o discurso propriamente dito. Orlandi (1987) faz uma distinção sobre os três tipos de discursos existentes e seu funcionamento. Dentre sua classificação está o discurso lúdico, o polêmico e o autoritário. Tal classificação tem por base os participantes do discurso e o nível de polissemia 2 nele existente. O discurso lúdico caracteriza-se por uma polissemia aberta (exagero non sense) e não há clara distinção dos papéis dos participantes. No discurso polêmico, os participantes procuram dominar o seu referente, mostrando-se com uma polissemia controlada. Já, o discurso autoritário, tem se referente “ausente”, não há realmente uma interação entre interlocutores, resultando em uma polissemia contida. Dentro dessa categorização do discurso, apresentada por Orlandi, classifica-se o discurso do professor como um discurso autoritário. No discurso pedagógico3, tem-se o professor que ensina, ou seja, “inculca” o aluno (que recebe as informações) dentro do ambiente escolar (aparelho ideológico). A imagem social do aluno é daquele que “não sabe nada” e precisa da escola para aprender. Já o professor, é tido como sujeito idealizado que possui o saber e está na escola ensinar. A escola, por sua vez, é o aparelho ideológico, o qual está inserido esses sujeitos. Dessa forma, o discurso pedagógico4 está vinculado à instituição, por isso pode-se dizer que o mesmo, mostra-se em sua função um dizer institucionalizado, sobre as coisas, que se 2 Polissemia - multiplicidade de sentidos de uma palavra ou locução. Fonte: HOUAISS, A. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. 3 Essa abordagem baseia-se na AD-2. 4 Cabe fazer uma observação quanto à diferença dos termos “discurso do professor” e “discurso pedagógico”. Já que a abordagem da análise será com base aos conceitos inseridos na AD3 (Terceira fase da Análise do Discurso), preferiu-se fazer essa diferenciação. Assim, quando se menciona “discurso do professor” este, refere-se apenas ao proferido por ele, por outro lado, o “discurso pedagógico” envolve professor e alunos constitutivos do espaço escola. Letras Escreve – Revista de Estudos Linguísticos e Literários do Curso de Letras-UNIFAP http://periodicos.unifap.br/index.php/letras ISSN: 2238-8060 ARTIGOS DE ESTUDOS DE LINGUAGEM garante, garantindo-se pelo domínio de sua circularidade. Há uma “ilusão” de que os participantes desse discurso encontram-se em um mesmo patamar, no entanto há uma relação de hierarquia que nunca é “quebrada”. Segundo Pacheco (1998, p. 2), a escola é regida por regulamentos, ações tidas como modelos. Seu discurso tem prestigio e legitimidade. A instituição escolar está sedimentada sobre preceitos autorizados, portanto, aceitos socialmente. Ela age assim devido a sua legitimidade e seu discurso, o discurso pedagógico, definido como discurso circular, pois ao seu se dizer coisas sobre a escola, mantém-na em seu lugar, ou seja, o de sede da reprodução cultural. CONTEXTO HISTÓRICO - SOCIAL Para a AD as condições de produção do discurso são de extrema relevância, uma vez que fazem parte da construção dos sentidos presentes no texto. Assim, Mussalin (2002 p. 123), defende que “o contexto histórico-social, o contexto da enunciação, constitui parte do sentido do discurso e não apenas um apêndice que pode ou não ser considerada. Em outras palavras, pode-se dizer que, para a AD, os sentidos são historicamente construídos”. Brandão (1998 p.49) defende que “o sujeito é essencialmente histórico. E porque sua fala é produzida a partir de um determinado lugar e de um determinado tempo, à concepção de sujeito histórico articula-se outra noção fundamental: a de um sujeito ideológico”. Portanto, cabe fazer essa contextualização antes de partir para a análise, pois ela é de fundamental importância para a compreensão dos enunciados presentes no discurso. Para a análise, selecionou-se um discurso de uma professora de Ciências de uma escola particular, lecionando em uma classe de 2ª série do Ensino Fundamental. A faixa etária dos alunos é entre 7 e 8 anos. A temática da aula envolve a retomada de conteúdos que foram trabalhados em aulas anteriores sobre répteis e anfíbios. A professora expõe, ao passo que dá definições e explicações sobre o tema. O discurso em questão, produzido no dia 24 de maio do ano de 1992, foi gravado em vídeo e depois transcrito. Letras Escreve – Revista de Estudos Linguísticos e Literários do Curso de Letras-UNIFAP http://periodicos.unifap.br/index.php/letras ISSN: 2238-8060 ARTIGOS DE ESTUDOS DE LINGUAGEM O professor exerce papel fundamental na educação e formação de cidadãos. O que o estudante precisa aprender é uma questão que se encontra as margens de diversas discussões. No entanto, a resposta a esse questionamento sempre se dá em torno da aquisição de conhecimentos gerais, habilidades comunicativas e a busca e o uso de informações que o capacitem para uma melhor convivência em sociedade. Porém, tais conhecimentos e habilidades devem estar atrelados à construção de valores que possam contribuir na formação de cidadãos críticos e conscientes do mundo e das coisas. Segundo Schwartzman (2004, p. 9), “não deve haver incompatibilidade, muito pelo contrário, entre capacitar as pessoas para a vida do trabalho e para a vida social. A principal habilidade a ser adquirida na escola é o domínio da língua, a capacidade de ler e escrever. Depois, o uso dos números, o raciocínio abstrato. A partir daí, todo o resto”. A educação, muitas vezes, é apontada como o principal instrumento para a solução de problemas de pobreza e desigualdade, pois acredita-se que por meio dela, pode-se aumentar o capital humano, consequentemente gerando produtividade e riqueza para o país. “Por muitos anos, havia no Brasil a ideia de que faltavam escolas, e que por isto a população não se educava como devia. Hoje, o acesso à educação fundamental é praticamente universal, e já é possível falar de „inflação educacional‟ em alguns setores” (SCHWARTZMAN, 2004, p. 3). O sistema educacional brasileiro ainda passa por inúmeras críticas, pois muito se fala que a esse setor deveriam ser feitos mais investimentos. Porém, não existe um método único e eficaz que possa ser aplicado e que resolva todos os problemas educacionais. Como afirma Schwartzman (2004, p.10): Não existem receitas simples para os problemas da educação básica. Muita coisa já foi tentada, recursos e esforços foram desperdiçados, e existe muita discordância sobre que pode e deve ser feito. Uma prioridade óbvia é fortalecer a competência do país para pesquisar e conhecer a experiência de outros países na área dos estudos educacionais, e tomar em conta estes conhecimentos para a formulação das políticas governamentais. Letras Escreve – Revista de Estudos Linguísticos e Literários do Curso de Letras-UNIFAP http://periodicos.unifap.br/index.php/letras ISSN: 2238-8060 ARTIGOS DE ESTUDOS DE LINGUAGEM Além de investimentos, em termos de estrutura, tem-se o Ministério da Educação e Cultura (MEC) que rege o ensino, visando à qualidade, por meio dos PCNs e Diretrizes Curriculares. Anualmente são publicadas e reformuladas leis e documentos que visam promover melhoria no sistema educacional. ARCABOUÇO TEÓRICO Do ponto de vista discursivo, as palavras e os textos, são partes de formações discursivas que, por sua vez, são partes de formações ideológicas. Assim dentro do discurso pedagógico, tem-se o aluno que faz o uso de perguntas e dialoga com o professor para obter respostas. Já o professor é aquele que se mostra detentor do saber. Ele está ali para dar essas respostas. Cabe aqui discutir o conceito de formação discursiva (FD), segundo o qual estabelece as relações dos papéis dos participantes do discurso. Para Mussalin (2002 p. 119) “uma formação discursiva determina o que pode/deve ser dito a partir de um determinado lugar social”. Dessa forma, uma formação discursiva é marcada e determinada por regularidades, ou seja, “por „regras de formação‟ concebidas como mecanismos de controle que determinam o interno (o que pertence) e o externo (o que não pertence) de uma formação discursiva”. A autora ainda coloca que uma FD não se encontra em um espaço estrutural fechado, ela é sempre invadida por elementos de outras formações discursivas. Em relação à formação discursiva, Brandão (2004, p. 88-9) defende que: uma FD não deve ser entendida como um bloco compacto e coeso que a opõe as outras FDs. Uma FD é „heterogenia a ela própria‟ e o seu fechamento é bastante instável, não há limite rigoroso que separa seu „interior‟ do seu „exterior‟ uma vez que ela confina com várias outras FDs e as fronteiras entre elas se deslocam conforme os embates da luta ideológica. É assim que pode-se afirmar que uma FD é atravessada por várias FDs e, consequentemente, que toda FD é definida a partir de seu interdiscurso. Já para Maingueneau (1993, p.113), o interdiscurso consiste em um processo de reconfiguração incessante no qual uma formação discursiva é levada (...) a incorporar elementos pré-construídos, produzidos fora dela, com eles provocando sua redefinição e redirecionamento, suscitando Letras Escreve – Revista de Estudos Linguísticos e Literários do Curso de Letras-UNIFAP http://periodicos.unifap.br/index.php/letras ISSN: 2238-8060 ARTIGOS DE ESTUDOS DE LINGUAGEM igualmente, o chamamento de seus próprios elementos para organizar sua repetição, mas também provocando, eventualmente, o apagamento, o esquecimento ou mesmo a denegação de determinados elementos. Outro conceito importante apresentado por Maingueneau (1993) é a questão da heterogeneidade, que é dividida em dois tipos: a heterogeneidade mostrada e a constitutiva. Na primeira, se “incide manifestações explícitas, recuperáveis a partir de uma diversidade de fontes de enunciação” (MAINGUENEAU, 1993, p. 75). Já a segunda, “aborda a heterogeneidade que não é marcada em superfície, mas que a AD, pode definir formulando hipóteses, através do interdiscurso, a propósito da constituição de uma formação discursiva” (MAINGUENEAU, 1993, p. 75). Maingueneau (2005, p. 21) explica que “a unidade de análise pertinente não é o discurso, mas um espaço de trocas entre vários discursos convenientemente escolhidos”. Para conceituar o que vem a ser interdiscursividade, o autor faz a distinção entre: universo discursivo, campo discursivo e espaços discursivos. O primeiro deles é o “conjunto de formações discursivas de todos os tipos que interagem numa dada conjuntura” (MAINGUENEAU, 1993, p. 116-7). Já o segundo é “um conjunto das formações discursivas que se encontram em uma ocorrência, se delimitam reciprocamente em uma região determinada do universo discursivo” e os espaços discursivos são recortes discursivos que o analista isola no interior de um campo discursivo tendo em vista propósitos específicos de análise. Para Possenti (2003, p. 146) a relação entre o “outro” e o espaço discursivo deve se dar da seguinte forma: o Outro não deve ser pensado como uma espécie de „envelope‟ do discurso nem um conjunto de citações. No espaço discursivo, o Outro não é nem um fragmento localizável, uma citação, nem uma entidade exterior; nem é necessário que seja localizável por alguma ruptura visível da compacidade do discurso. DISCUSSÃO E ANÁLISE No discurso da professora de ciências, ficam evidentes algumas marcas, as quais o “outro” está presente. Por exemplo: Letras Escreve – Revista de Estudos Linguísticos e Literários do Curso de Letras-UNIFAP http://periodicos.unifap.br/index.php/letras ISSN: 2238-8060 ARTIGOS DE ESTUDOS DE LINGUAGEM “Pr: Peraí, Luiza. Agora eu quero saber um pouco sobre o filme, 5 porque todas as histórias de lagartixa, de jabuti, vocês já contaram. Então, agora nós vamos falar um pouco sobre o filme. Que que você viu de diferente, que você não sabia?”. Primeiramente, a professora inclui os alunos em seu discurso pelo uso do “nós”, depois ela direciona uma pergunta apenas a uma das alunas. Nesse caso, o uso do “você” está ligado a apenas a uma pessoa. No entanto, há momentos no discurso da professora em que o “você” na verdade vem com significado de nós. “Pr: O encontro do corpo na água. Você nunca nadou? Você não consegue flutuar legal e você não afunda? É quando você consegue deixar o seu corpo em harmonia com a água. Entendeu?”. No fragmento anterior, também fica claro de que esse “entendeu”, na verdade quer dizer “entenderam”, pois é uma pergunta direcionada aos alunos, com o intuito de verificar se a explicação ficou clara. Há outros exemplos em que o “você” proferido pela professora significa o “nós”. O “você” nesse contexto pode estar direcionado a qualquer indivíduo, não especificamente aos alunos presentes em sala. Outro recurso do professor é a utilização de perguntas retóricas, aquelas em que o professor questiona sem esperar necessariamente uma resposta. São retóricas porque o objetivo é de manutenção do canal comunicativo, uma espécie de função fática, garantindo que o aluno esteja prestando atenção e seguindo o raciocínio explicativo do professor. “Pr: O que você chama de ambiente? Al: O ambiente? O lugar onde ela vive.” Além do uso do “você” como “nós”, há também o uso do “eu” como nós. Como pode ser visto no fragmento abaixo. O pronome “eu” também está sendo 5 Os grifos são da autora do artigo com intuito de facilitar para o leitor a localização de certos vocábulos mencionados nos parágrafos de análise. Letras Escreve – Revista de Estudos Linguísticos e Literários do Curso de Letras-UNIFAP http://periodicos.unifap.br/index.php/letras ISSN: 2238-8060 ARTIGOS DE ESTUDOS DE LINGUAGEM usado de forma indeterminadora, no lugar do pronome “alguém”. É uma estratégia muito comum no ensino, no momento de exemplificação de ações ou atitudes cujo sujeito não é específico. “Pr: Por exemplo, aqui no texto, vai dar pra você fazer um parágrafo pra cada história. Pra cada item, que é mais fácil que uma história. Pra cada item que a gente teve. Escrevendo, a gente pode fazer um parágrafo. Por isso, quando eu estiver falando da característica principal dos répteis é um parágrafo; quando eu estiver falando da alimentação, é outro parágrafo. Eu mudei de assunto, eu tô falando da alimentação, quando eu tiver falando da locomoção, eu posso juntar num parágrafo só, os membros que eles tem e como eles se locomovem”. Essas “tentativas” de inclusão do “outro” como participante do discurso, ilustram o que Orlandi (1987, p.240) considera como “ilusão de reversibilidade”. em se tratando do discurso autoritário, gostaríamos de observar que, embora não haja reversibilidade de fato, é a ilusão da reversibilidade que sustenta esse discurso. Isso, porque, embora o discurso autoritário seja um discurso em que a reversibilidade tende a zero, quando é zero que o discurso se rompe, desfaz-se a relação, o contato, e o domínio (o escopo) do discurso fica comprometido. Daí a necessidade de se manter o desejo de torna-lo reversível. Daí a ilusão. E essa ilusão tem várias formas nas diferentes manifestações do discurso autoritário. A partir de Orlandi (1987), pode-se concluir que essa ilusão de reversibilidade, a qual faz com que o aluno acredite ter seu espaço e seu papel reservado na sala de aula, é de extrema importância, pois sem ela não haveria possibilidade de interação no ambiente escolar. A troca de papéis, ou a idéia de que os sujeitos encontram-se numa mesma posição discursiva, deve existir, sem isso o discurso pode ficar comprometido. Como mencionado anteriormente, na classificação feita por Orlandi (1987), o discurso do professor, é um discurso autoritário. É possível identificar algumas marcas linguísticas presentes no discurso em questão que confirmam a proposta da autora. Letras Escreve – Revista de Estudos Linguísticos e Literários do Curso de Letras-UNIFAP http://periodicos.unifap.br/index.php/letras ISSN: 2238-8060 ARTIGOS DE ESTUDOS DE LINGUAGEM Pressupondo a visão interativa de linguagem que tem permeado as relações na sala de aula, desde os anos 80 (PORTO e PERFEITO, 2006) o professor do século XXI deveria ser muito mais aberto, promover maior diálogo com o aluno, pois é consciente de que a aprendizagem ocorre por meio da interação. No entanto, parece existir ainda um fosso entre essa visão de aprendizagem e a prática em sala de aula, pois a classificação do discurso do professor continua sendo “autoritária”. Vale ressaltar que essa classificação não está relacionada com a metodologia adotada pelo professor durante sua aula. Essa classificação refere-se às relações de hierarquia social e ideológica. A sociedade faz um estereótipo dos papéis dos sujeitos envolvidos no ambiente escolar. A escola é o local do saber. O professor de cada área é o detentor do saber (ou boa parte dele) naquela área, e o aluno está lá (nos bancos escolares) para a legitimação desse saber, que ele (ou sua família) almeja. Isso contribui para que a classificação do discurso do professor continue sendo como um “discurso autoritário” (seguindo a classificação dada por Orlandi, 1987) e não lúdico. “Pr: Fala, Júlia, fala você. Não, qual a diferença que a gente observou muito? Porque deu pra trazer um jabuti e deu pra trazer umas tartaruguinhas e elas vieram em recipiente diferente, não foi?. Al1: O ambiente diferente. Al2: Além do ambiente diferente, ela tem as patas mais largas pra poder nadar (faz o gesto com as mãos como se fosse uma tartaruga nadando) Pr: Coluna vertebral. Ou seja, animais que possuem//.Olha, a Juliana falou uma coisa importante. Quando a gente tá fazendo um texto de observação, descrevendo sobre um animal, a gente não pode ficar inventando palavras, que eu já falei pra vocês. É diferente de uma história, tá?! Al: Mas e a cobra? Pr: Aí, quando você quiser colocar coisas dos répteis que seja o que foi observado aquele dia, com informação a mais, como curiosidade, que você viu num filme, que você leu num texto, você pode colocar, tá?”. Letras Escreve – Revista de Estudos Linguísticos e Literários do Curso de Letras-UNIFAP http://periodicos.unifap.br/index.php/letras ISSN: 2238-8060 ARTIGOS DE ESTUDOS DE LINGUAGEM Esses fragmentos relevam marcas de um discurso autoritário, pois não há possibilidade de os alunos discordarem do professor. O professor fala de uma forma amigável, mostrando que quer se aproximar de seus alunos, no entanto, essa é uma forma “camuflada” de autoritarismo. As estratégias de aproximação do professor com o aluno se dão por meio do uso da função fática, que se preocupa em manter o contato com o destinatário para verificar se está sendo compreendido, ou chamar a atenção do ouvinte. Uma das características do discurso do professor é cientificidade (Orlandi, 1987) que se caracteriza pela apropriação do cientista na fala do professor. O professor apropria-se do cientista e se confunde com ele sem que se explicite sua voz de mediador. Há aí um apagamento, isto é, apaga-se o modo pelo qual o professor apropria-se do conhecimento do cientista, tornando-se ele próprio possuidor daquele conhecimento. A opinião assumida pela autoridade professoral tornase definitória (e definitiva). (ORLANDI, 1987 p. 21). Outros elementos que contribuem para a manutenção da legitimidade do discurso do professor são o emprego de classificações e vocabulário específico da área, tais como em um dos fragmentos acima “coluna vertebral”, “répteis” e também o uso de um vocabulário mais formal que o do aluno, mostrando que o conhecimento pertence ao mestre e que esse é esperado pelo aluno, contribuindo para a manutenção da relação de hierarquia característica desse discurso. Nos fragmentos abaixo, nota-se essa “apropriação” do discurso do cientista feita pela professora. “Pr: Também é vertebrado. Ela não tem membros. Ela tem coluna vertebral. Vamos continuar aqui relembrando como vocês vão começar.” Pr: Da época dos dinossauros sobraram tartarugas. Qual a diferença do jabuti e da tartaruga? A gente falou quando a gente observou, quando a Jú trouxe, quando a.... Pr: Alimentam-se de alpiste, frutas e bebem água. Eles são ovíparos, isto é... Als: Animais que botam ovo. Pr: Os filhotes nascem de... Letras Escreve – Revista de Estudos Linguísticos e Literários do Curso de Letras-UNIFAP http://periodicos.unifap.br/index.php/letras ISSN: 2238-8060 ARTIGOS DE ESTUDOS DE LINGUAGEM Als: Ovos. Pr: A excreção é feita pela cloaca, isto é... Que que é isso” Nessas explicações dadas pela professora, não há nenhuma vez a menção de autores que comentam sobre o fato das tartarugas terem surgido na época dos dinossauros, ou referências de onde foi retirada/ criada essa classificação dos animais como vertebrados e ovíparos. O recurso utilizado pela professora é a paráfrase que constitui na reformulação de um conceito ou texto pré-existente explicitando-o com suas próprias palavras. A essa “apropriação” pode se estabelecer à relação de interdiscursividade presente, pois o discurso do professor permeia sobre a fala do cientista e até mesmo se confunde, fazendo com que haja uma espécie de apagamento. Com base nas reflexões sobre a formação discursiva, dentro do interdiscurso presente na AD36, Brandão (1998, p. 73-74) afirma que No nível da superfície discursiva, as formações discursivas pertinentes a um espaço discursivo podem apresentar poucos elementos indicadores da relação que as constitui (...). Um discurso nunca seria autônomo: como ele se remete sempre a outros discursos, suas condições de possibilidades semânticas se concretizam num espaço de trocas, mas jamais enquanto identidade fechada. Tais elementos apresentados, não esgotam os inúmeros fatores presentes no discurso do professor. Existem muitos outros aspectos que merecem atenção e devem ser objeto de estudo da Análise do Discurso. CONSIDERAÇÕES FINAIS Na presente análise, foi possível identificar alguns recursos utilizados pelo professor, na tentativa de “camuflar” seu autoritarismo, e mostrar-se estar no mesmo patamar de seus alunos. Além disso, foi possível verificar que a “ilusão da reversibilidade” é necessária para que exista interação na sala de aula. 6 Terceira fase da Análise do Discurso. Segundo Mussalin, na AD-3 os discursos atravessam uma FD (formação discursiva) e não são constituídos independentes, mas se formam no interior de um interdiscurso. Letras Escreve – Revista de Estudos Linguísticos e Literários do Curso de Letras-UNIFAP http://periodicos.unifap.br/index.php/letras ISSN: 2238-8060 ARTIGOS DE ESTUDOS DE LINGUAGEM Outro fator interessante foi à maneira como o professor se apodera do discurso do cientista, sem se deixar transparecer, utilizando recursos como a paráfrase. Também foi possível perceber que a presença do “outro” está inserida em seu discurso através do uso “eu” e do “você” atuando como “nós”. A noção de interdiscurso, movida pela rede de formações discursivas, no discurso do professor se estabelece e se caracteriza devido ao embate com outros discursos, como o do aluno, o do cientista etc. Essa breve análise mostra quão ampla é a área de AD e como ela é importante, ao passo que podemos compreender melhor as relações de poder e a ideologia contidas no discurso do outro. REFERÊNCIAS BRANDÃO, H. H. N. Introdução à análise de discurso. Campinas: Editora da UNICAMP, 2004. MAINGUENEAU, D. Novas tendências em análise do discurso. 2. ed. Campinas: Pontes, 1993. _____. Gênese dos discursos. Trad. Sírio Possenti. Curitiba: Criar, 2005. MUSSALIM, F.; BENTES, A. C. Introdução à linguística: domínios e fronteiras. São Paulo: Cortez, 2002. ORLANDI, E. P. A linguagem e seu funcionamento: as formas do discurso. 2 ed., rev. e aum. Campinas: Pontes, 1987. PACHECO, R. S. Silenciamentos no Discurso Pedagógico: Interferindo No Currículo?. Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS. São Leopoldo, 11 de nov. 1998. Disponível em: http://www.liberato.com.br/upload/arquivos/0131010712532312.pdf Acesso em: 12 jun. 2012 Letras Escreve – Revista de Estudos Linguísticos e Literários do Curso de Letras-UNIFAP http://periodicos.unifap.br/index.php/letras ISSN: 2238-8060 ARTIGOS DE ESTUDOS DE LINGUAGEM PORTO, I. M. N.; PERFEITO, Alba Maria. Interação em sala de aula: teoria e prática. Estudos Lingüísticos XXXV, p. 928-935, 2006. Disponível em: <http://www.gel.org.br/4publica-estudos-2006/sistema06/1182.pdf > Acesso em: 26 de junho de 2008. POSSENTI, S. Observações sobre o interdiscurso. Anais do 5º Encontro do Celsul, Curitiba-PR, 2003 (140-148). Disponível em: http://www.celsul.org.br/Encontros/05/pdf/014.pdf Acesso em: 20 jun. 2012. SCHWARTZMAN, S. Educação: A Nova Geração De Reformas. In: GIAMBIAGI, F.; REIS, J. G.; URANI, A. (Orgs). Reformas no Brasil: Balanço e Agenda, Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 2004. Disponível em: http://www.oei.es/reformaseducativas/educacion_nueva_generacion_reformas_ schwartzman.pdf Acesso em: 12 jun. 2012 ANEXO: DISCURSO ANALISADO (Contexto inicial: Aula de Ciências. Alunos e professora discutem, retomando conteúdos trabalhados sobre répteis e anfíbios) Pr: E os anfíbios, pelo nome, têm vida dupla. Metade da vida deles é água e metade da vida deles é? Al: É terra. Pr: É na terra. Vai ser a próxima classe que a gente vai estudar. Peraí! Ô Júlio, um por vez! Luiza! Luiza: (S.I.) Pr: Peraí, Luiza. Agora eu quero saber um pouco sobre o filme, porque todas as histórias de lagartixa, de jabuti, vocês já contaram. Então, agora nós vamos falar um pouco sobre o filme. Que que você viu de diferente, que você não sabia? Al: Eu não sabia que a tartaruga é, pesava, é 780 quilos de uma vez. Pr: Algumas tartarugas que vivem no mar. Elas são pesadas. E como é que elas conseguem nadar, se são tão pesadas? Al: Porque a água diminui o peso delas. Letras Escreve – Revista de Estudos Linguísticos e Literários do Curso de Letras-UNIFAP http://periodicos.unifap.br/index.php/letras ISSN: 2238-8060 ARTIGOS DE ESTUDOS DE LINGUAGEM Pr: Porque a água diminui o peso. Aí, ela se locomove. Al: Como diminui o peso? Pr: O encontro do corpo na água. Você nunca nadou? Você não consegue flutuar legal e você não afunda? É quando você consegue deixar o seu corpo em harmonia com a água. Entendeu? (...) Pr: Da época dos dinossauros sobraram tartarugas. Qual a diferença do jabuti e da tartaruga? A gente falou quando a gente observou, quando a Jú trouxe, quando a.... Al: Uma é subaquática. Pr: Fala, Júlia, fala você. Não, qual a diferença que a gente observou muito? Porque deu pra trazer um jabuti e deu pra trazer umas tartaruguinhas e elas vieram em recipiente diferente, não foi? Al1: O ambiente diferente. Al2: Além do ambiente diferente, ela tem as patas mais largas pra poder nadar (faz o gesto com as mãos como se fosse uma tartaruga nadando) Pr: O que você chama de ambiente? Al: O ambiente? O lugar onde ela vive. Pr: E qual é o ambiente, o habitat, o lugar onde a tartaruga vive? Na... Al: Na água. Pr: E o jabuti? Al: Na terra. Pr: Na terra. (...) Pr: Olha, esse assunto que a gente tá falando aqui, vamos fazer um texto em dupla. É a cabecinha de um com a cabecinha do outro, depois do recreio, pra fazer um belo de um texto. Al: Você vai escolher? Pr: Sim, sobre a observação que a gente fez da tartaruga, ahn! Al: E os mamíferos? Pr: Os mamíferos, lembra que a gente conversou? Cada um fez um texto e você colocou pra toda a classe. Aí a gente conversou que seria muito fazer um novo texto . Letras Escreve – Revista de Estudos Linguísticos e Literários do Curso de Letras-UNIFAP http://periodicos.unifap.br/index.php/letras ISSN: 2238-8060 ARTIGOS DE ESTUDOS DE LINGUAGEM (...) Pr: Por exemplo, aqui no texto, vai dar pra você fazer um parágrafo pra cada história. Pra cada item, que é mais fácil que uma história. Pra cada item que a gente teve. Escrevendo, a gente pode fazer um parágrafo. Por isso, quando eu estiver falando da característica principal dos répteis é um parágrafo; quando eu estiver falando da alimentação, é outro parágrafo. Eu mudei de assunto, eu tô falando da alimentação, quando eu tiver falando da locomoção, eu posso juntar num parágrafo só, os membros que eles tem e como eles se locomovem. Quando tiver falando da reprodução, é um outro parágrafo. Aí, perfeito. Agora, em história é difícil vocês ainda perceberem a hora que muda de assunto, a não ser quando tem uma marca de tempo muito clara. (...) Vamos agora ficar no assunto dos répteis aqui e aí é o seguinte: Ahn, o texto vai escrever como a gente fez sozinho, não é por item. Por exemplo, deixa eu ler pra você (S.I.) Olha como começa, primeiro ela tá caracterizando que eles são vertebrados e qual a característica principal? Os répteis são animais o quê? Al1: Vertebrados. Al2: Invertebrados. Pr: Animais vertebrados. São animais que tem... Al: Coluna. Pr: Coluna vertebral. Ou seja, animais que possuem// Olha, a Juliana falou uma coisa importante. Quando a gente tá fazendo um texto de observação, descrevendo sobre um animal, a gente não pode ficar inventando palavras, que eu já falei pra vocês. É diferente de uma história, tá?! Al: Mas e a cobra? Pr: Também é vertebrado. Ela não tem membros. Ela tem coluna vertebral. Vamos continuar aqui relembrando como vocês vão começar. Ahn, (começa a ler o texto) "Os periquitos são animais vertebrados. São aves que tem o corpo coberto de penas..." Presta atenção, Gabriel e Chica! "... eles tem quatro membros que são duas patas em forma de garra e asas que servem para voar. Eles se locomovem voando." Bom, disse os membros que eles tem, como eles se Letras Escreve – Revista de Estudos Linguísticos e Literários do Curso de Letras-UNIFAP http://periodicos.unifap.br/index.php/letras ISSN: 2238-8060 ARTIGOS DE ESTUDOS DE LINGUAGEM locomovem e por onde se locomovem. Depois, "Os periquitos tem dois furinhos no bico que são narinas, que levam o ar até os pulmões. Eles tem respiração”... Als: Pulmonar. Pr: "Alimentam-se de alpiste, frutas e bebem água. Eles são ovíparos, isto é”... Als: Animais que botam ovo. Pr: “Os filhotes nascem de”... Als: Ovos. Pr: “A excreção é feita pela cloaca, isto é...” Que que é isso? Al: (S.I.) Pr: É quando sai as fezes e a urina. Olha as palavras que a gente tem que usar. Não vamos usar “xixi” nem “cocô”, porque a gente tá fazendo um texto científico, então “fezes, urina, membros traseiros, membros dianteiros, reprodução, alimentação, locomoção”, vocês vão aprendendo pra usar num texto dissertativo, de um animal. (...) Pr: Aí, quando você quiser colocar coisas dos répteis que seja o que foi observado aquele dia, como informação a mais, como curiosidade, que você viu num filme, que você leu num texto, você pode colocar, tá? Você pode dizer quantos membros que o jabuti tem, se ele é vertebrado, porque ele é vertebrado, alimentação, reprodução, da... Al: Moradia. Pr: Donde ele vive, do habitat. A gente pode colocar curiosidade sobre répteis. Quem quiser já ir pensando, como começar, eu vou deixar aqui alguns itens pra se lembrar. Não pode escrever como item, isso aqui é só um lembrete. Lembra daquele dia da auto-avaliação, que eu fiz lembretes, avisos, itens? Como se fosse um roteirinho de cinema? Letras Escreve – Revista de Estudos Linguísticos e Literários do Curso de Letras-UNIFAP http://periodicos.unifap.br/index.php/letras ISSN: 2238-8060